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DADOS DE ODINRIGHT

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1.
Como foi que Mestre Cereja, o marceneiro, achou um toco de pau que chorava e
ria como um menino

– E ra –uma vez...
Um rei!
– Não, errou. Era uma vez um toco de madeira.
Não era uma madeira de luxo, mas um simples toco da
pilha de lenha, daqueles que colocamos nos fogões e nas
lareiras para acender o fogo e aquecer as casas no inverno.
Não sei como foi, mas o fato é que um belo dia esse toco
de pau apareceu na oficina do velho marceneiro Mestre
Antônio, chamado por todos de Mestre Cereja por causa da
ponta de seu nariz, sempre lustrosa e vermelha como uma
cereja madura.
Logo que viu aquele toco de pau,
Mestre Cereja alegrou-se todo e,
esfregando as mãos de tão contente
que estava, murmurou:
– Esse toco apareceu em boa hora,
serve para eu fazer as pernas de uma
mesinha.
Dito e feito: pegou logo o machado
afiado para começar a tirar a casca e
acertar a madeira. Mas, quando ia dar
a primeira machadada, ficou com o
braço parado no ar, pois ouviu uma
vozinha fraca, fraca, que pedia:
...ouviu uma vozinha fraca, fraca.

– Não me bata com força!


Imagine como ficou o bom e velho Mestre Cereja!
Espantado, girou os olhos em torno da oficina para ver de
onde podia ter saído aquela vozinha... e não viu ninguém!
Olhou debaixo da bancada, ninguém; olhou dentro de um
armário que ficava sempre fechado, ninguém; olhou na
cesta das aparas e da serragem, ninguém; abriu a porta da
oficina, deu uma espiada na rua, ninguém. Ou, quem
sabe...?
– Já entendi! – pensou então, coçando a peruca. E
começou a rir: – Claro que eu imaginei aquela vozinha. Ao
trabalho!
Pegando de novo o machado, disparou um forte golpe no
toco de pau.
– Ai! Você me machucou! – reclamou a vozinha.
Dessa vez Mestre Cereja ficou pasmo, com os olhos
arregalados, a boca escancarada e a língua balançando até
o queixo, como uma carranca de chafariz.
Logo que recuperou o uso da palavra, começou a dizer,
tremendo e gaguejando de espanto:
– Mas de onde terá saído essa vozinha?! Se aqui não há
vivalma... Será que por acaso esse toco de pau aprendeu a
falar e a chorar como um menino?! Eu não posso acreditar
nisso! Esse toco é um pau de lenha para lareira, como todos
os outros, e, no fogo, daria para ferver uma panela de
feijão... Ou, quem sabe, tem alguém escondido dentro
dele?! Se tem, tanto pior. Dou um jeito nele agora mesmo! 
E, dizendo isso, agarrou com as duas mãos o pobre toco
de pau e, sem dó nem piedade, começou a bater com ele
nas paredes da oficina.
Depois ficou escutando, para ouvir se alguma vozinha
reclamava. Esperou dois minutos, e nada; cinco minutos, e
nada; dez minutos, e nada!
– Agora entendi de uma vez por todas! – pensou, coçando
de novo a peruca. Mas, dessa vez, teve de se esforçar para
rir: – Está mais do que claro que imaginei a tal vozinha
dizendo ai! Ao trabalho!
E porque tinha ficado com um medo enorme, tentou
cantarolar para criar um pouco de coragem.
Entretanto, deixando de lado o machado, pegou a plaina
para acertar e alisar o toco de pau, mas, enquanto deslizava
a ferramenta para cima e para baixo, ouviu a vozinha, que
disse, rindo:
– Pare! Está me fazendo cócegas!
Dessa vez, o pobre Mestre Cereja desmaiou de susto.
Quando reabriu os olhos, estava sentado no chão. Seu rosto
não parecia o mesmo, e a ponta do nariz, sempre vermelha,
estava azul de tanto medo.
2.
Mestre Cereja dá o toco de pau ao amigo Gepeto, que tinha tido a ideia de
fabricar um boneco extraordinário que soubesse dançar, praticar esgrima e dar
saltos mortais

N
aquele momento, bateram na porta.
– Entre! – disse o marceneiro, sem força para ficar de
pé.
Quem entrou na oficina foi um velhote muito ágil,
chamado Gepeto. As crianças da vizinhança, quando
queriam provocar muita raiva nele, o chamavam de Polenta,
por causa de sua peruca amarela, que parecia muitíssimo
com uma polenta feita de milho.
Gepeto era muito bravo. Ai de quem o chamasse de
Polenta! Virava uma fera, e não havia mais como segurá-lo.
– Bom dia, Mestre Antônio. O que faz no chão?
– Ensino tabuada às formigas.
– Boa sorte nessa tarefa!
– O que o trouxe aqui, Compadre
Gepeto?
– Minhas pernas, Mestre Antônio. Vim
lhe pedir um favor.
– Estou aqui, pronto para servi-lo –
disse o marceneiro, ficando de pé.
– Esta manhã, tive uma ideia.
– Que ideia?
– Pensei em fabricar um belo boneco
de pau, mas um boneco extraordinário,
que saiba dançar, praticar esgrima e Um velhote muito ágil,
dar saltos mortais. Com esse boneco, chamado Gepeto.
quero andar pelo mundo, para ganhar um naco de pão e um
copo de vinho. O que acha disso?
– Bravo, Polenta! – gritou a vozinha que não se sabia de
onde vinha.
Ao ser chamado de Polenta, Compadre Gepeto ficou
vermelho feito um pimentão e, virando para o marceneiro,
disse, furioso por causa do atrevimento:
– Por que me ofende?
– Quem está ofendendo você?
– Você, que me chamou de Polenta!
– Não fui eu.
– Então, por acaso, fui eu mesmo?! Foi você, sim!
– Não!
– Sim!
– Não!
– Sim! 
E, cada vez mais furiosos, das palavras os dois partiram
para a ação e se atracaram, se unharam, se morderam e se
rasgaram.
Terminada a luta, Mestre Antônio tinha na mão a peruca
amarela de Gepeto, e Gepeto tinha na boca a peruca cinza
do marceneiro.
– Devolva minha peruca! – gritou Mestre Antônio.
– E você devolva a minha, e vamos fazer as pazes.
Os dois velhotes, depois de cada um ter recuperado a
própria peruca, apertaram as mãos e juraram ser bons
amigos por toda a vida.
– Então, Compadre Gepeto, o que quer de mim? – disse o
marceneiro, em sinal de que tinham mesmo feito as pazes.
– Quero um toco de pau para fabricar meu boneco. Pode
me dar? 
Mestre Antônio, todo contente, foi logo pegar aquele
pedaço de pau que lhe causara tanto medo. Mas quando ia
entregá-lo ao amigo, o toco deu um pinote e, escapando
violentamente das mãos do Mestre, foi bater com força nas
canelas magricelas do pobre Gepeto.
– Ah! É dessa bela maneira, Mestre Antônio, que você me
dá essa coisa? Você quase me estropiou!...
– Juro que não fui eu!
– Então fui eu, por acaso?!
– A culpa é toda desse toco...
– Sei que é do toco, mas foi você que o atirou nas minhas
pernas!
– Eu não atirei nada!
– Mentiroso!
– Gepeto, não me ofenda, senão
chamo você de Polenta!...
– Asno!
– Polenta!
– Burro!
– Polenta!
– Macaco feio!
– Polenta! 
Ao ser chamado de Polenta pela
terceira vez, Gepeto ficou cego de
raiva, avançou sobre o marceneiro... e
os dois se pegaram com unhas e
dentes.
Terminada a batalha, Mestre Antônio
se viu com dois arranhões a mais no nariz, e Gepeto, com
dois botões a menos no casaco. Com as contas assim
empatadas, apertaram as mãos e juraram ser bons amigos
por toda a vida.
Então Gepeto pegou o bravo toco de pau e, agradecendo
ao Mestre Antônio, voltou mancando para casa.
3.
GEPETO COMEÇA LOGO A FABRICAR O BONECO, A QUEM DÁ O NOME DE
PINÓQUIO. PRIMEIRAS TRAVESSURAS DO BONECO

A casa
de Gepeto era um quartinho térreo que recebia luz
de um vão de escada. A mobília não podia ser mais
simples: uma cadeira ruinzinha, uma cama nada boa e uma
mesinha toda arruinada. Na parede do fundo, via-se uma
lareira com fogo aceso, mas o fogo era só um desenho, e
perto dele estava pintada uma panela que fervia
alegremente e soltava para o ar uma nuvem de fumaça que
parecia fumaça de verdade.
Assim que entrou em casa, Gepeto pegou as ferramentas
e logo começou a entalhar o toco para fabricar seu boneco.
– Que nome vou dar a ele? Já sei, vou chamá-lo de
Pinóquio. Conheci uma família inteira de Pinóquios:
Pinóquio, o pai, Pinóquia, a mãe, e os filhos Pinóquios. O
mais rico deles ainda era pobre. E todos viviam bem. Esse
nome trará sorte a ele – disse para si mesmo.
Quando encontrou o nome para o boneco, Gepeto se
animou mais a trabalhar, e logo fez os cabelos, depois a
cara, depois os olhos.
Feitos os olhos, imagine a surpresa do velhote quando se
deu conta de que se moviam – mas, naquele momento,
estavam parados, imóveis, olhando para ele.
Gepeto, percebendo o olhar dos dois olhos de pau, quase
passou mal e perguntou, incomodado:
– Olhões de pau, por que me olham? 
Ninguém respondeu.
Depois dos olhos, Gepeto fez o nariz, mas, assim que
ficou pronto, o nariz começou a crescer – e cresceu, e
cresceu, e cresceu! Em poucos minutos, era um narigão que
não acabava nunca.
O pobre Gepeto já estava cansado de tanto entalhar, e,
quanto mais entalhava e cortava, mais aquele nariz
impertinente espichava.

Quanto mais entalhava e cortava, mais aquele nariz impertinente espichava.

Depois do nariz, começou a boca. Ela ainda não estava


pronta quando se pôs a rir e a zombar dele.
– Pare de rir! – disse Gepeto, irritado, mas foi como falar
com um muro. – PARE DE RIR, REPITO! – gritou, com voz
ameaçadora.
Então a boca parou de rir, mas botou a língua toda para
fora.
Gepeto, para não estragar seu dia, fingiu não notar e
continuou a trabalhar. Depois da boca fez o queixo, depois o
pescoço, depois os ombros, a barriga, os braços e as mãos.
Terminadas as mãos, Gepeto sentiu a peruca ser tirada de
sua cabeça. Olhou para cima da bancada... e o que viu? Sua
peruca amarela na mão do boneco.
– Pinóquio!... Devolva já minha peruca!
Mas Pinóquio, em vez de devolver, colocou a peruca na
própria cabeça, ficando meio sufocado debaixo dela.
Com aquele gesto atrevido e debochado, Gepeto ficou
triste e desanimado como nunca tinha ficado na vida e,
virando-se para Pinóquio, disse:
– Filho moleque! Ainda não está pronto e já está faltando
com o respeito ao seu pai! Mal, meu filho, começou mal! 
Mas Pinóquio, em vez de devolver, colocou a peruca na própria cabeça...

E enxugou uma lágrima.


Faltava ainda fazer as pernas e os pés.
Quando acabou de fazer os pés, Gepeto sentiu um chute
na ponta de seu nariz.
– Eu mereço! Devia ter pensado nisso antes! Agora é
tarde! – disse para si mesmo.
Então pegou o boneco por debaixo dos braços e o colocou
no chão, para fazê-lo caminhar.
– Peguem aquele boneco! Peguem aquele boneco! – gritava Gepeto.

Pinóquio tinha as pernas travadas, não sabia se mover, e


Gepeto conduziu-o pela mão para ensiná-lo a dar um passo
depois do outro.
Quando suas pernas se destravaram, Pinóquio começou a
caminhar e a correr pelo quarto, até que, passando pela
porta de casa, pulou para a rua e fugiu.
O pobre Gepeto corria atrás sem poder alcançá-lo, pois o
levado do Pinóquio ia aos pulos, como um coelho, e,
batendo os pés de pau no calçamento da rua, fazia o
barulho de vinte pares de tamancos.
– Peguem aquele boneco! Peguem aquele boneco! –
gritava Gepeto.
Mas as pessoas que andavam pela rua, vendo aquele
boneco de pau que corria feito um cavalo de corrida,
paravam para olhá-lo, encantadas, e riam, riam e riam até
não poderem mais.
Afinal, e por sorte, apareceu um guarda que, ouvindo
toda aquela algazarra e acreditando tratar-se de um
rapazote que tivesse levantado a mão para bater no patrão,
plantou-se corajosamente no meio da rua, de pernas
abertas, decidido a pará-lo para impedir maiores desgraças.
No entanto, Pinóquio, notando de longe que o guarda
barrava toda a rua, planejou passar de surpresa entre suas
pernas – mas falhou.
O guarda, sem nem se mover, agarrou-o gentilmente pelo
nariz (era um narigão despropositado, que parecia feito de
propósito para ser agarrado pelos guardas) e o colocou nas
mãos de Gepeto. Que, como corretivo, queria dar logo um
bom puxão de orelhas no boneco, mas imagine como ficou
quando, ao procurar as orelhas, não conseguiu encontrá-las.
E sabe por quê? Porque, na pressa de entalhar o boneco,
tinha se esquecido delas!
...agarrou-o gentilmente pelo nariz...

Gepeto segurou Pinóquio pela nuca e, enquanto o levava


de volta, disse, sacudindo ameaçadoramente a cabeça:
– Vamos logo para casa. Lá, não duvide, acertaremos
nossas contas!
Ouvindo essa falação, Pinóquio se atirou no chão e não
quis mais caminhar. Enquanto isso, os curiosos e os
desocupados, parando em volta dos dois, começavam a
fazer fofoca. Esse dizia uma coisa, aquele, outra.
Alguém comentou:
– Pobre boneco! Tem razão em não querer voltar para
casa! Quem sabe como o trataria esse brutamontes do
Gepeto!...
Outro acrescentou maldosamente:
– Aquele Gepeto parece um homem de bem, mas é um
verdadeiro tirano com as crianças! Se deixam aquele pobre
boneco em suas mãos, é muitíssimo capaz de picá-lo em
pedacinhos!
Afinal, tanto disseram e tanto fizeram, que o guarda
deixou Pinóquio em liberdade e levou para a prisão o pobre
Gepeto, que, não tendo palavras para se defender, chorava
como um bezerrinho e, ao entrar na cela, resmungava,
soluçando:
– Filho desalmado! E pensar que penei tanto para fazer
um boneco de bem! Mas é culpa minha! Devia ter pensado
nisso antes!...
O que aconteceu depois é uma história muito estranha,
daquelas difíceis de acreditar, e vou contá-la nos próximos
capítulos.
4.
A história de Pinóquio com o Grilo Falante, na qual se vê como as crianças
malcriadas se aborrecem ao serem corrigidas por quem sabe mais que elas

E
nquanto o pobre Gepeto era conduzido à prisão, sem ter
culpa nenhuma, o moleque do Pinóquio, livrando-se das
garras do guarda, danou a correr pelo campo, para voltar
mais depressa para casa. E, no grande entusiasmo de
correr, pulava barrancos altíssimos, moitas de ameixas e
valas cheias d’água, tal e qual teria feito um cabrito ou um
coelho perseguido por caçadores.
Chegando em casa, empurrou a porta da rua, que estava
meio aberta, entrou, trancou-a e sentou-se no chão,
deixando escapar um grande suspiro de contentamento.
Mas aquele contentamento durou pouco, pois ouviu bem
perto alguém que cantava assim:
– Cri-cri-cri!
– Quem está aí? – disse Pinóquio com medo.
– Sou eu! 
Pinóquio virou para aquele lado e viu um grande grilo que
subia devagar, passo a passo, pela parede.
– Diga-me, Grilo, quem é você?
– Eu sou o Grilo Falante, e moro aqui há mais de cem
anos.
– Mas agora este lugar é meu! E se quer me fazer um
grande favor, vá logo embora, sem olhar para trás – disse o
boneco.
– Eu não vou embora daqui sem antes lhe dizer uma
grande verdade – respondeu o Grilo.
– Diga e vá embora depressa.
– Ai daquelas crianças que se rebelam contra os pais e
que, por capricho, abandonam a casa paterna. Nunca terão
nada neste mundo e, cedo ou tarde, vão se arrepender
amargamente.
– Então cante, seu Grilo, como parece que gosta de fazer,
porque amanhã, ao amanhecer, vou embora daqui, pois, se
eu ficar, vai me acontecer o que acontece a todas as outras
crianças: vão me mandar para a escola, e, por bem ou por
mal, terei de estudar, e eu, para dizer a verdade, não tenho
um pingo de vontade de estudar, eu quero é me divertir,
correr atrás das borboletas, subir nas árvores e pegar os
passarinhos no ninho...
– Pobre tolinho!... Você não sabe que, fazendo isso,
quando crescer será um belíssimo burro, e todos vão rir de
você?
– Cale a boca, Grilão azarento! – berrou Pinóquio.
Mas o Grilo, que era paciente e filósofo, em vez de levar a
mal esse atrevimento, continuou, com o mesmo tom de voz:
– E se não gosta de ir à escola, por
que não aprende ao menos um ofício
que dê para ganhar honestamente um
pedaço de pão?
– Quer que lhe diga? Entre os ofícios
do mundo, há só um que
verdadeiramente me dá prazer –
respondeu Pinóquio, que começava a
perder a paciência.
– E que ofício seria esse?
– O de comer, beber, dormir, me
divertir; o de levar, da manhã até a
noite, a vida de vagabundo.
– Todos aqueles que praticam esse
ofício acabam quase sempre no
...pegando na bancada
hospital ou na prisão – disse o Grilo um martelo de madeira,
Falante com a calma de sempre. jogou-o contra o Grilo
Falante.
– Olhe aqui, Grilão azarento!... Se eu ficar com raiva, ai de
você!
– Pobre Pinóquio, você me dá dó!...
– Por que dou dó a você?
– Porque é um boneco e, o que é pior, porque tem a
cabeça de pau.
Ouvindo essas palavras, Pinóquio pulou com muita raiva
e, pegando na bancada um martelo de madeira, jogou-o
contra o Grilo Falante. Talvez não quisesse acertar para
valer, mas infelizmente o atingiu justo na cabeça, tanto que
o pobre grilo apenas teve fôlego para fazer:
– Cri-cri-cri... – e ficou ali, esticado e grudado na parede.
5.
Pinóquio tem fome e procura um ovo para fazer uma omelete, mas no melhor da
festa a omelete voa pela janela

N
esse meio-tempo, começou a cair a noite, e Pinóquio,
lembrando que não tinha comido nada, sentiu um vazio
no estômago muito parecido com apetite.
E o apetite das crianças aumenta rápido, e, de fato,
poucos minutos depois o apetite virou fome, e a fome, pelo
visto e pelo não visto, se transformou em uma fome de
lobos, uma fome tão dura, que quase se podia cortar com a
faca.
O pobre Pinóquio correu depressa à lareira, onde uma
panela fervia, e foi destampá-la, para ver o que havia
dentro, mas a panela era pintada na parede. Imagine como
ele ficou. Seu nariz, que já era comprido, ficou pelo menos
quatro dedos mais comprido.
Então o boneco começou a correr pelo quarto e a remexer
em todas as caixas e em todos os esconderijos em busca de
um pedaço de pão – e podia ser até uma fatia seca, uma
casquinha de pão ou um osso reservado para o cachorro,
um pouco de polenta mofada, uma espinha de peixe, um
bago de cereja, afinal, qualquer coisa para mastigar... Mas o
que encontrou? Nada, um grande nada, o próprio nada.
Entretanto a fome crescia, crescia sempre, e o pobre
Pinóquio não tinha o que fazer a não ser bocejar, e dava
bocejos tão longos que às vezes a boca lhe chegava até as
orelhas. E depois de ter bocejado, cuspia, e sentia que o
estômago parecia ter ido embora.
Então, chorando, desesperado, dizia:
– O Grilo Falante tinha razão. Eu fiz mal em me revoltar
contra meu pai e em fugir de casa... Se o meu pai estivesse
aqui agora, eu não estaria morrendo de bocejar! Oh! Que
doença ruim é a fome!
Nisso, ele pensou ver, no monte de lixo, algo redondo e
branco, que parecia em tudo com um ovo de galinha. Deu
um salto e jogou-se em cima dele. Foi um pulo só: era um
ovo, mesmo!
Impossível descrever a alegria do boneco: é preciso
imaginá-la. Quase pensando que fosse um sonho, revirava o
ovo entre as mãos, acariciando-o, beijando-o, tornando a
beijá-lo, e dizia:
– E agora, como devo cozinhá-lo? Faço uma omelete?...
Não, é melhor fazer um prato com ele!... Não ficaria mais
gostoso se o fritasse na frigideira? E se em vez disso o
cozinhasse como ovo quente, para beber? Não, o modo
mais rápido de todos é cozinhá-lo na frigideirinha: estou
com muita vontade de comê-lo!
Dito e feito: colocou a frigideirinha sobre o fogareiro
sempre cheio de brasas acesas e nela, em vez de azeite ou
de manteiga, jogou um pouco de água. E, quando a água
começou a fumegar...
– Tac!... – quebrou a casca do ovo para despejá-lo lá
dentro.
Mas em vez da clara e da gema, saiu lá de dentro, todo
alegre e gentil, um pintinho que, fazendo uma bela
reverência, disse:
– Mil agradecimentos, senhor Pinóquio, por ter me
poupado o trabalho de quebrar a casca! Até mais ver, fique
bem, e muita saúde aos de casa! 
Dito isso, abriu as asas e, atravessando a janela aberta,
voou até se perder de vista.
O pobre boneco ficou ali, como encantado, os olhos
parados, a boca aberta e as cascas do ovo na mão. Refeito,
porém, do primeiro susto, começou a chorar, a gritar, a
bater os pés no chão, desesperado e aos prantos:
– O Grilo Falante tinha razão! Se eu não tivesse fugido de
casa e se meu pai estivesse aqui, eu agora não estaria
morrendo de fome. Ah! Que doença grave é a fome!...
E porque o estômago continuava a roncar mais que nunca
e não sabia como fazer para acalmá-lo, Pinóquio pensou em
sair e dar uma escapada até algum lugar próximo, na
esperança de encontrar alguém caridoso que lhe desse de
esmola um pedaço de pão.
6.
Pinóquio adormece com os pés sobre o fogareiro e, na manhã seguinte, acorda
com eles queimados

E
ra decididamente uma noite infernal. Trovejava forte,
relampejava como se o céu pegasse fogo, e uma
ventania fria e cortante, assobiando raivosamente e
levantando uma imensa nuvem de poeira, fazia gemer e
ranger todas as árvores do campo.
Pinóquio tinha um medo enorme dos
trovões e dos raios, embora a fome
fosse mais forte que o medo, motivo
pelo qual encostou a porta de casa,
pegou a estrada e, com uma centena
de saltos, chegou até um lugar vizinho,
com a língua de fora e ofegando como
um cão de caça.
Mas encontrou tudo escuro e
deserto. As lojas estavam fechadas, as
portas das casas, fechadas, as janelas,
fechadas, e na rua nem ao menos um
Voltou para casa molhado
cão. Parecia um lugar de mortos.
como um pintinho...
Tomado pelo desespero e pela fome,
Pinóquio se agarrou à campainha de uma casa e começou a
tocá-la sem parar, dizendo baixinho:
– Vai aparecer alguém.
De fato, apareceu uma touca de dormir e, debaixo dela,
um velho, que gritou, irritado:
O que quer a esta hora?
– Você faria o favor de me dar um pedaço de pão?
– Espera aí, que eu volto já! – respondeu o velhinho,
acreditando ser alguma daquelas crianças maluquinhas que
se divertem, de noite, tocando as campainhas das casas,
para incomodar as pessoas de bem que dormem
tranquilamente.
Depois de meio minuto a janela se abriu, e a voz do
mesmo velhinho gritou para Pinóquio:
– Venha cá embaixo e apara com o chapéu.
Pinóquio, que não tinha ainda um chapéu, aproximou-se e
sentiu chover em cima dele uma enorme baciada d’água,
que o regou todo, da cabeça aos pés, como se fosse um
vaso de gerânios murcho.
Voltou para casa molhado como um pintinho e morto de
cansaço e de fome. E porque não tinha mais forças para
ficar de pé, foi sentar-se, apoiando os pés encharcados e
enlameados sobre o fogareiro cheio de brasas acesas.
Ali adormeceu; enquanto isso, seus pés, que eram de
pau, pegaram fogo: pouco a pouco viraram carvão e depois,
cinzas.
Pinóquio continuava a dormir e a roncar, como se os pés
não fossem dele. Finalmente, ao clarear o dia, acordou, pois
alguém tinha batido na porta.
– Quem é? – perguntou, bocejando e esfregando os olhos.
– Sou eu! – respondeu uma voz.
Era a voz de Gepeto.
7.
Gepeto volta para casa e dá ao boneco o lanche que tinha trazido para si

O
pobre Pinóquio, que tinha os olhos ainda sonolentos,
não havia visto que seus pés estavam queimados.
Assim que ouviu a voz do pai, escorregou do tamborete
para correr e tirar a tranca da porta, mas, em vez disso,
depois de dois ou três tropeções, caiu de bruços, estendido
de comprido no chão.
Ao bater no chão, fez o mesmo barulho que teria feito um
monte de colheres caindo de um quinto andar.
– Abra para mim! – Gepeto gritava da rua.
– Papai, não posso... – respondia o boneco, chorando e
rolando no chão.
– Por que não pode?
– Porque comeram meus pés.
– E quem os comeu?
– O gato! – disse Pinóquio, vendo o gato, que se divertia
fazendo dançar alguns gravetos de pau com as patas
dianteiras.
– Abra, já! Senão, quando entrar em casa, pego você em
vez do gato! – repetiu Gepeto.
– Não posso ficar de pé, acredite. Oh! Pobre de mim!
Pobre de mim, terei de andar de joelhos por toda a vida!
Gepeto, acreditando que todo esse chororô fosse outra
travessura do boneco, resolveu acabar com ela e,
encarapitando-se em cima do muro, entrou em casa pela
janela.
A princípio, queria fazer o que disse, mas quando viu seu
Pinóquio esticado no chão e, realmente, sem pés, se
enterneceu. E logo o pegou no colo e se pôs a beijá-lo e a
fazer mil carícias e agrados, e, com as lágrimas rolando por
suas bochechas, disse, soluçando:
– Pinoquinho meu! Como é que foi queimar os pés?!

Entrou em casa pela janela.

– Não sei, papai, mas acredite que foi uma noite dos
infernos, da qual me lembrarei enquanto viver. Trovejava,
relampejava, e eu tinha uma baita fome, e o Grilo Falante
me disse: “Bem feito: você foi malvado e mereceu isso”, e
eu disse: “Cuide-se, Grilo!...”, e ele me disse: “Você é um
boneco e tem a cabeça de pau”, e eu acertei nele o cabo do
martelo, e ele morreu, mas a culpa foi dele, pois eu não
queria matá-lo, prova é que pus uma frigideirinha na brasa
sempre acesa do fogareiro, mas o pintinho pulou para fora e
escapou dizendo: “Até mais ver... e muitas lembranças aos
de casa”. E a fome crescia sempre, motivo pelo qual
apareceu na janela a touca de dormir na cabeça de um
velhinho, que me disse: “Venha aqui embaixo e apara com o
chapéu”. E eu levei toda aquela baciada de água, mas pedir
um pouco de pão não é uma vergonha, não é verdade?
Voltei logo para casa, e porque estava ainda com uma fome
muito grande, pus os pés sobre o fogareiro para me secar, e
você voltou, e aqui estou eu todo queimado, e no entanto
continuo tendo fome, e pés não tenho mais! Ai! Ai! Ai! Ai!
E o pobre Pinóquio começou a chorar e a berrar tão forte,
que o ouviam a cinco quilômetros de distância.
Gepeto, que de todo aquele discurso complicado tinha
entendido uma coisa só, isto é, que o boneco estava
morrendo de tanta fome, tirou do bolso três peras e
estendeu-as a ele, dizendo:
– Essas três peras eram o meu lanche, mas eu dou a você
de boa vontade. Coma, e bom apetite.
– Se quer que eu coma, faça o favor de descascar.
– Descascar? – replicou Gepeto, surpreso. – Não sabia,
meu filho, que você tivesse tão pouco apetite e fosse tão
enjoado para comer. Vai mal! Neste mundo, desde criança,
devemos nos acostumar a morder e a comer de tudo, pois
não se sabe nunca o que pode vir pela frente. Acontece
tanta coisa!...
– Você está certo. Mas eu não comerei nunca uma fruta
que não esteja descascada. Não suporto cascas –
acrescentou Pinóquio.
E aquele bom homem pegou um canivete e, armado de
santa paciência, descascou as três peras e pôs todas as
cascas sobre um canto da mesa.
Quando, em duas bocadas, Pinóquio comeu a primeira
pera e fez que ia jogar fora o miolo, Gepeto segurou seu
braço, dizendo:
– Não jogue fora, tudo neste mundo pode ser aproveitado.
– Mas eu não como o miolo, de jeito nenhum!... – gritou o
boneco, revoltando-se, furioso.
– Quem sabe! Acontece tanta coisa!... – repetiu Gepeto,
sem se perturbar.
Fato é que os três miolos, em vez de jogados fora pela
janela, foram postos no canto da mesa, junto com as
cascas.
Comidas, ou, melhor dizendo, devoradas as três peras,
Pinóquio deu um longuíssimo bocejo e disse,
choramingando:
– Ainda tenho fome!
– Mas eu, meu filho, não tenho mais nada para lhe dar.
– Nada mesmo, NADA?
– Tenho somente essas cascas e esses miolos de pera.
– Paciência! Se não há outra coisa, como uma casca –
disse Pinóquio.
E começou a mastigar. A princípio, retorceu um pouco a
boca, mas depois, uma após a outra, engoliu de uma vez
todas as cascas, e depois das cascas, também os miolos, e
quando acabou de comer tudo, bateu todo contente na
barriga e disse, feliz:
– Agora sim, estou bem!
– Veja, então, que tenho razão quando digo que não
devemos ser nem muito exigentes nem muito enjoados de
paladar. Meu caro, não se sabe nunca o que se pode
encontrar neste mundo. Acontece tanta coisa!... – observou
Gepeto.
8.
Gepeto refaz os pés de Pinóquio e vende a própria casaca para comprar-lhe o
Abecedário

Deixou-o chorar e desesperar-se durante a metade do dia...

boneco, assim que matou a fome, começou logo a


O resmungar e a chorar, pois queria um par de pés novos.
Mas Gepeto, para castigá-lo pela travessura, deixou-o
chorar e se desesperar por algumas horas, e lhe disse:
– E por que eu deveria refazer seus pés? Para vê-lo fugir
de casa de novo?
– Prometo que de hoje em diante serei bom... – disse o
boneco, soluçando.
– Todas as crianças, quando querem conseguir alguma
coisa, dizem isso – replicou Gepeto.
– Prometo que irei à escola, estudarei e serei honrado...
– Todas as crianças, quando querem conseguir algo,
repetem a mesma história.
– Mas eu não sou como as outras crianças! Eu sou melhor
que todas, e digo sempre a verdade. Prometo, papai, que
aprenderei algum ofício e que serei o consolo e a bengala
de sua velhice.
Gepeto, que, embora fizesse cara de
mau, tinha os olhos cheios de lágrimas
e o coração inchado de tristeza ao ver
seu pobre Pinóquio naquele estado
lamentável, não disse mais nenhuma
palavra. Mas, pegando as ferramentas
e dois pedacinhos de pau de bom
aspecto, começou a trabalhar com
grandíssimo empenho.
Em menos de uma hora, os pés já
estavam prontos: dois pezinhos ágeis,
firmes e vigorosos, como se tivessem
Começou a dar mil
sido entalhados por algum artista
piruetas...
genial.
Então Gepeto disse ao boneco:
– Feche os olhos e durma!
E Pinóquio fechou os olhos e fingiu dormir. E durante o
tempo em que fingia dormir, Gepeto prendeu os dois pés
nos tornozelos com um pouco de cola derretida dentro de
uma casca de ovo, e os prendeu tão bem que não se via
nem mesmo o sinal do remendo.
Assim que percebeu ter pés novamente, o boneco saltou
de cima da mesa onde estava estendido e começou a dar
mil piruetas e mil cambalhotas, como se tivesse
enlouquecido de contentamento.
– Para recompensá-lo pelo que fez
por mim, quero ir logo à escola – disse
Pinóquio.
– Bravo menino!
– Mas para ir à escola preciso de
alguma roupa.
Gepeto, que era pobre e não tinha no
bolso nem mesmo uma moedinha, fez
para ele um terninho de papel florido,
um par de sapatos de casca de árvore
e um chapéu de miolo de pão.
Pinóquio correu logo a se admirar em
Então fez para ele... um
uma bacia cheia d’água e ficou tão chapéu de miolo de pão.
cheio de si que disse, pavoneando-se:
– Pareço mesmo um senhor!*
– É verdade, pois não é a roupa bonita que faz o senhor, é
a roupa limpa, tenha isso em mente – replicou Gepeto.
– Mas para ir à escola ainda me falta uma coisa. Ainda me
falta o melhor da história – acrescentou o boneco.
– E o que é?
– O Abecedário.
– Tem razão, mas como se faz para conseguir um?
– É facílimo: indo a um livreiro e comprando.
– E o dinheiro?
– Eu não tenho nenhum.
– Muito menos eu... – acrescentou o bom velho, triste.
Pinóquio, ainda que fosse um boneco alegríssimo, ficou
triste também, pois a miséria, quando é miséria de verdade,
todos entendem o que é, até as crianças.
– Paciência! – gritou Gepeto, ficando em pé de um pulo; e,
enfiando-se na velha casaca de flanela, toda puída e
remendada, saiu correndo de casa.
Depois de um tempo, voltou, e tinha na mão o Abecedário
para o filho, mas não tinha mais a casaca. O pobre homem
estava só de camisa, e lá fora nevava.
– E a casaca, papai?
– Vendi.
– Por que vendeu?
– Porque me dava calor.
Pinóquio entendeu essa resposta no ar, e, não podendo
controlar o impulso de seu bom coração, saltou no colo de
Gepeto e começou a beijá-lo por todo o rosto.
9.
Pinóquio vende o Abecedário para ir ver o Teatro de Bonecos

A
ssim que parou de nevar, Pinóquio, com seu belo
Abecedário novo debaixo do braço, saiu e foi andando
pela rua que levava à escola; enquanto caminhava,
fantasiava mil raciocínios e mil castelos no ar, cada um mais
bonito que o outro. E discursando para si mesmo, dizia, todo
comovido:
– Hoje, na escola, quero logo aprender a ler; amanhã
aprenderei a escrever, e depois de amanhã, a fazer contas.
Então, com minha habilidade, ganharei muitas moedas, e
com as primeiras moedas que ganhar, quero logo fazer para
meu pai uma bela casaca de pano. Mas... por que de pano?
Vou fazê-la toda de prata e de ouro, com botões de
brilhantes. Aquele pobre homem merece isso de verdade,
pois, afinal, para me comprar os livros e para me instruir,
ficou só de camisa... neste frio! Não há muitos pais capazes
de um sacrifício como esse!...
Nesse momento, ouviu à distância uma música de pífaros:
– Pi-pi-pi, pi-pi-pi...
E batidas de bumbo:
– Bum, bum, bum, bum...
Parou e ficou escutando. Os sons vinham do fundo de uma
rua comprida, que atravessava a rua da escola e levava a
um lugarejo à beira do mar.
– O que será essa música? Pena que eu tenho de ir para a
escola...
E permaneceu ali, indeciso. Mas precisava tomar uma
decisão: ou ir para a escola ou ir ouvir os pífaros.
– Hoje vou ouvir os pífaros e amanhã vou à escola. Para ir
à escola sempre há tempo – disse finalmente o moleque,
sacudindo os ombros.
Dito e feito: entrou na rua comprida e começou a correr.
Quanto mais corria, mais claro ficava o som dos pífaros:
– Pi-pi-pi, pi-pi-pi, pi-pi-pi...
E as batidas do bumbo:
– Bum, bum, bum, bum...
Logo Pinóquio se encontrou no meio de uma praça cheia
de gente, a qual rodeava um grande barracão de madeira e
de lona pintada de mil cores.
– O que é aquele barracão? – perguntou Pinóquio a um
menino do lugarejo.
– Leia o cartaz e saberá.
– Leria numa boa, mas justo hoje não sei ler.
– Belo burro! Então eu leio. Naquele cartaz de letras
vermelhas como o fogo está escrito:
GRANDE TEATRO DE BONECOS
– E faz muito tempo que começou a comédia?
– Vai começar agora.
– E quanto se paga para entrar?
– Quatro moedas.
Pinóquio, que tinha a febre da curiosidade, perdeu toda a
timidez e, sem se envergonhar, disse ao menino:
– Você me emprestaria quatro moedas até amanhã?
– Emprestaria numa boa, mas justo hoje não posso
emprestar – respondeu o outro, rindo dele.
– Por quatro moedas eu lhe vendo a minha jaqueta – disse
o boneco.
– Que quer que eu faça com uma jaqueta de papel florido?
Se chove, não há mais como tirá-la do corpo.
– Quer comprar os meus sapatos?
– São bons para acender o fogo.
– Quanto me dá pelo chapéu?
– Bela compra, essa! Um chapéu de miolo de pão! Os ratos
podem até vir comer minha cabeça!
− Você me dá quatro moedas por este Abecedário novo?

Pinóquio pisava em ovos. Estava prestes a fazer a última


oferta, mas não tinha coragem, duvidava, agitava-se, sofria.
Por fim, disse:
– Você me dá quatro moedas por este Abecedário novo?
– Eu sou uma criança, e não compro nada de crianças –
respondeu o menino, que tinha mais juízo que ele.
– Por quatro moedas, eu compro o Abecedário! – gritou um
revendedor de roupas usadas que estava ouvindo a
conversa.
E o livro foi vendido em dois tempos. E pensar que o pobre
do Gepeto tinha ficado em casa, tremendo de frio, só de
camisa, para comprar o Abecedário do filho!
10.
Os bonecos reconhecem em Pinóquio um irmão e lhe fazem uma grande festa;
mas, no melhor dela, aparece o titereiro Come-Fogo, e Pinóquio corre o risco de
ter um péssimo fim

Q
uando Pinóquio entrou no teatro de marionetes,
aconteceu um fato que quase provocou uma revolução.
A cortina estava levantada, e uma comédia muito antiga e
conhecida por todo mundo já tinha começado.
Em cena, os personagens de sempre, Arlequim e Pulcinela,
estavam brigando e, como costumavam fazer, ameaçavam
de um momento para o outro trocar uma sequência de tapas
e pauladas.
A plateia, muito atenta, passava mal de tanto dar risadas
ao ouvir o bate-boca dos dois bonecos, que gesticulavam e
falavam cada insulto com tanta perfeição que pareciam ser
dois animais racionais de verdade, duas pessoas de carne e
osso.
De repente, no meio daquele “é-não é”, Arlequim parou de
recitar e, virando-se para o público e abanando a mão para
alguém no fundo da plateia, começou a gritar em tom
dramático:
– Deuses do céu! Estou sonhando ou estou acordado?
Aquele lá embaixo é Pinóquio!...
– Verdade! É Pinóquio! – gritou Pulcinela.
– É ele mesmo! – gritou a personagem Rosaura, apontando
a cabeça no fundo da cena.
– É Pinóquio! É Pinóquio! – gritaram em coro todos os
bonecos, saindo aos saltos das coxias.
– É Pinóquio! É nosso irmão Pinóquio! Viva Pinóquio!...
− Aquele lá embaixo é Pinóquio!...

– Pinóquio, venha para cá, junto de mim! Venha se jogar


nos braços de seus irmãos de madeira! – gritou Arlequim.
Ao ouvir esse afetuoso convite, Pinóquio deu um salto e,
do fundo da plateia, foi pulando aqui e ali, e depois, com
mais saltos, acabou montado na cabeça do diretor da
orquestra, e dali pulou para o palco.
É impossível imaginar os abraços, os apertões e os
beliscões de amizade e as cabeçadas de verdadeira e
sincera fraternidade que Pinóquio recebeu, em meio a
tamanha confusão, dos atores e das atrizes daquela
companhia dramático-vegetal.
Era um espetáculo comovente, não há como negar, mas o
público, vendo que a comédia não ia adiante, se impacientou
e começou a gritar:
– A comédia! Queremos a comédia!
Tanto fôlego jogado fora! Pois os bonecos, em vez de
continuar a apresentação, redobraram o barulho e os gritos
e, pondo Pinóquio sobre os ombros, o levaram em triunfo às
luzes da ribalta.
Então surgiu o titereiro, um homem
feio, mas tão feio, que dava medo só de
olhá-lo. Tinha uma barba negra como
um borrão de tinta e tão longa que
descia do queixo até o chão. Basta dizer
que, quando caminhava, embaraçava
os pés nela. A boca era larga como a de
um forno, os olhos pareciam duas
lanternas com luzes acesas por trás de
vidros vermelhos, e na mão direita ele À aparição inesperada do
estalava um grosso chicote, feito de titereiro, todos ficaram
serpentes e de rabos de raposas mudos...
trançados juntos.
À aparição inesperada do titereiro, todos ficaram mudos,
ninguém respirou mais. Seria possível ouvir voar uma
mosca. Os pobres bonecos, machos e fêmeas, tremiam como
varas verdes.
– Por que veio fazer confusão no meu teatro? – o titereiro
perguntou friamente a Pinóquio, com o vozeirão grave de um
ogro.
– Creia, ilustríssimo, que a culpa não foi minha!...
– Basta disso! Essa noite acertaremos nossas contas.
De fato, acabada a apresentação da comédia, o titereiro
foi à cozinha, onde preparavam, para o jantar, um belo
cordeiro que girava lentamente, enfiado no espeto. E, como
faltava lenha para acabar de assá-lo e de dourá-lo, o titereiro
chamou Arlequim e Pulcinela e disse:
– Tragam aqui aquele boneco bagunceiro que deixei
pendurado no prego. Parece feito de uma madeira muito
seca, e estou certo de que, se jogá-lo no fogo, dará uma
belíssima tostada no assado.
Arlequim e Pulcinela a princípio vacilaram, mas,
amedrontados por um olhar do patrão, obedeceram, e
voltaram à cozinha trazendo nos braços o pobre Pinóquio,
que, contorcendo-se como uma enguia fora d’água, gritava,
em desespero:
– Papai, salve-me! Não quero morrer, não, não quero
morrer!...
11.
Come-Fogo espirra e perdoa Pinóquio, que então salva da morte o amigo
Arlequim

O titereiro
Come-Fogo (era esse o seu nome) parecia um
homem espantoso, não nego, em especial por aquela
barba negra que, como um avental, lhe cobria inteiramente
o peito e as pernas; no fundo, porém, não era um homem
mau. Prova disso foi que, quando viu trazerem diante dele o
pobre Pinóquio, que se debatia para todo lado berrando
“Não quero morrer, não quero morrer!”, começou logo a
ficar comovido, penalizado, e, depois de resistir por um bom
tempo, não pôde mais e deixou escapar um sonoríssimo
espirro.
Ao ouvir o espirro, Arlequim, que até então estava aflito e
dobrado como um salgueiro chorão, mostrou o rosto, todo
alegre, e, inclinando-se para Pinóquio, sussurrou:
– Boas novas, irmão! O titereiro espirrou, isso é sinal de
que teve pena de você, e agora está salvo.
É necessário saber, pois, que, enquanto todos os homens,
quando sentem pena de alguém, ou choram, ou fingem
enxugar os olhos, Come-Fogo, toda vez que se enternecia
de verdade, espirrava. Era um modo como qualquer outro
de mostrar aos outros a sensibilidade de seu coração.
Depois do espirro, o titereiro, continuando a bancar o
ranzinza, gritou para Pinóquio:
– Pare de chorar! Seus lamentos me dão um mal-estar
aqui no fundo do estômago... Sinto um espasmo, que quase,
quase... – e deu outros dois espirros:
– Atchim! Atchim!
– Saúde! – disse Pinóquio.
– Obrigado. Seu pai e sua mãe ainda estão vivos? –
perguntou Come-Fogo.
– Oh, o papai, sim; a mamãe, eu não conheci.
– Quem sabe o desgosto que seria para o seu velho pai se
eu jogasse você entre aqueles carvões ardentes... Pobre
velho! Lamento... – e deu outros três espirros:
– Atchim, atchim, atchim!
– Saúde! – disse Pinóquio.
– Obrigado. Afinal, também eu devo me lastimar, pois,
como vê, não tenho mais lenha para acabar de assar aquele
cordeiro, e você, na verdade, nesse caso me seria muito
útil! Mas agora, que estou com pena de você, é ter
paciência. Vou pôr para queimar no espeto, em vez de você,
algum boneco da minha companhia. Olá, guardas!
A esse comando apareceram logo dois bonecos de
madeira altos, altos; secos, secos, de chapéu pontudo na
cabeça e espada desembainhada na mão.
Então o titereiro lhes disse com a voz rouca:
– Tragam aquele Arlequim ali, amarrem-no bem e o
joguem no fogo. Quero que o meu cordeiro fique bem
assado!
Imagine o pobre Arlequim! Foi tamanho o seu espanto,
que suas pernas se dobraram e ele caiu de bruços no chão.
Pinóquio, diante daquele espetáculo
torturante, foi jogar-se aos pés do
titereiro e, chorando exageradamente e
banhando de lágrimas os pelos da
longuíssima barba, começou a dizer
com voz suplicante:
– Piedade, senhor Come-Fogo!...
– Aqui não há senhores! – replicou
duramente o titereiro.
– Piedade, senhor Cavalheiro!... − Tragam aquele
Arlequim ali...
– Aqui não há cavalheiros!
– Piedade, senhor Comendador!
– Aqui não há comendadores!
– Piedade, Excelência!...
Ao ser chamado de Excelência, o titereiro fez logo uma
boquinha de coração e, tornando-se de repente mais
humano e mais tratável, perguntou a Pinóquio:
– Bem, o que quer de mim?
– Peço perdão para o pobre Arlequim!...
– Aqui não há perdão que resolva. Se poupei você, preciso
pôr o Arlequim no fogo, pois quero que o cordeiro seja bem
assado.
– Nesse caso, conheço meu dever! Adiante, senhores
guardas! Amarrem-me e joguem-me lá, entre aquelas
chamas. Não é justo que o pobre Arlequim, meu amigo de
verdade, morra em meu lugar! – gritou ferozmente Pinóquio,
erguendo-se e jogando fora o chapéu de miolo de pão.
Essas palavras, pronunciadas em voz
alta e em tom heroico, fizeram chorar
todos os bonecos presentes àquela
cena. Os próprios guardas, embora
fossem de madeira, choravam como
dois cordeirinhos de leite.
Come-Fogo, no princípio, ficou duro e
imóvel como um cubo de gelo, mas
pouco a pouco, ele também começou a
se comover e a espirrar. E quatro ou
cinco espirros depois, abriu
afetuosamente os braços e disse a
Pinóquio: E escalando como um
– Você é um grande e bravo boneco! esquilo a barba do
Venha cá, e me dá um beijo. titereiro...
Pinóquio correu logo e, escalando como um esquilo a
barba do titereiro, foi dar um belíssimo beijo na ponta de
seu nariz.
– Então o perdão está dado? – perguntou o pobre
Arlequim, com um fio de voz que mal se ouvia.
– O perdão está dado! – respondeu Come-Fogo, que
depois acrescentou, suspirando e balançando a cabeça:
– Paciência! Por esta noite eu me conformo a comer o
cordeiro meio cru: mas de outra vez, ai daquele a quem
couber ir para o fogo...!
À notícia do perdão dado, os bonecos correram para o
palco, foram acesas as luzes e os lampadários como em
noitada de gala, e todos começaram a saltar e a dançar.
Era madrugada e dançavam ainda.
12.
O titereiro Come-Fogo dá a Pinóquio cinco moedas de ouro para que as entregue
a Gepeto, mas, em vez disso, Pinóquio se deixa enrolar pela Raposa e pelo Gato
e vai embora com eles

N
o dia seguinte, Come-Fogo chamou Pinóquio de lado e
perguntou:
– Como se chama seu pai?
– Gepeto.
– E que ofício ele tem?
– O ofício de pobre.
– Ganha muito?
– Ganha tanto quanto é preciso para não ter nunca uma
moedinha no bolso. Imagine que, para me comprar o
Abecedário da escola, teve de vender a única casaca que
vestia: uma casaca que, entre puídos e remendos, era um
trapo só.
– Pobre diabo! Quase me dá compaixão. Eis aqui cinco
moedas de ouro. Vá logo levar para ele, com minhas
saudações. 
Pinóquio, como é fácil imaginar, agradeceu mil vezes ao
titereiro, abraçou um a um todos os bonecos da companhia,
os guardas e, fora de si de contentamento, começou a
viagem de volta para casa.
Mas não tinha caminhado nem meio quilômetro quando
encontrou uma Raposa coxa de um pé e um Gato cego dos
dois olhos, que vagavam por ali, um ajudando o outro, bons
companheiros de desventura. A Raposa, que era manca,
caminhava apoiando-se no Gato, e o Gato, que era cego,
era guiado pela Raposa.
− Como é que sabe o meu nome?

– Bom dia, Pinóquio! – disse a Raposa, saudando-o


educadamente.
– Como é que sabe o meu nome? – perguntou o boneco.
– Conheço bem o seu pai.
– Onde o viu?
– Vi-o ontem, na porta de sua casa.
– E o que ele fazia?
– Estava só de camisa e tremia de frio.
– Pobre papai! Mas, se Deus quiser, de hoje em diante
não tremerá mais!
– Por quê?
– Porque eu me tornei um grande senhor.
– Um grande senhor, você?! – disse a Raposa, e começou
a rir com um riso grosseiro e zombeteiro; o Gato ria
também, mas, para não dar na vista, penteava os bigodes
com as patas da frente, tapando a boca.
– Não tem graça nenhuma! Na verdade, não gosto de lhes
dar água na boca, mas essas aqui, se bem me entendem,
são cinco belíssimas moedas de ouro – gritou Pinóquio,
irritado.
E mostrou as moedas presenteadas por Come-Fogo.
Ao simpático som do dinheiro, a Raposa, em um
movimento involuntário, esticou a pata que parecia
estropiada, e o Gato arregalou os olhos, que pareciam duas
lanternas verdes, mas os fechou depressa. Tanto é que
Pinóquio não percebeu nada.
– E o que vai fazer com essas moedas? – perguntou a
Raposa.
– Antes de tudo, quero comprar para o meu pai uma bela
casaca nova, toda de ouro e de prata, com botões de
brilhantes, e depois quero comprar um Abecedário para
mim – respondeu o boneco.
– Para você?
– Sim, pois quero ir à escola e começar a estudar direito.
– Olhe para mim! Pelo desejo idiota de estudar, perdi uma
perna – disse a Raposa.
– E eu? Pelo desejo idiota de estudar, perdi a visão dos
dois olhos – disse o Gato.
Naquele meio-tempo, um melro branco, empoleirado
sobre a cerca viva da estrada, cantarolou:
– Pinóquio, não dê ouvidos a conselhos de más
companhias. Se der, vai se arrepender!
Pobre Melro, melhor que não tivesse nunca cantado isso!
O Gato, com um grande salto, caiu em cima dele e, sem lhe
dar nem mesmo o tempo de dizer Ai, comeu-o de uma
bocada, com as penas e tudo.
Depois de comer e limpar a boca, fechou os olhos de novo
e tornou a bancar o cego.
– Pobre Melro! Por que o tratou tão mal? – perguntou
Pinóquio.
– Fiz isso para lhe dar uma lição. Assim, em outra vez
aprenderá a não meter o bico nas conversas dos outros.
Tinham passado do meio da estrada quando a Raposa,
parando de repente, disse ao boneco:
– Quer multiplicar suas moedas de ouro?
– O quê?
– Quer, de cinco miseráveis moedas, fazer cem, mil, duas
mil?
– Talvez! E de que maneira?
– A maneira é facílima. Em vez de voltar para casa, venha
conosco.
– E para onde querem me levar?

Dando um grande salto, caiu em cima dele...

– Para o País dos Bobalhões.


Pinóquio pensou um pouco e disse, decidido:
– Não, não quero ir. Agora estou perto de casa, e quero ir
para lá, onde está meu pai, que me espera. Quem sabe,
pobre velho, o quanto suspirou ontem porque não voltei.
Infelizmente, tenho sido um mau filho, e o Grilo Falante
tinha razão quando dizia: “As crianças desobedientes não
podem se dar bem neste mundo”. E eu aprendi isso a duras
penas, pois me aconteceram muitas desgraças, e mesmo
ontem à noite, na casa de Come-Fogo, corri perigo... Brrr!
Tenho arrepios só de pensar nisso!
– Então quer mesmo ir para casa? Pois vá, e tanto pior
para você – disse a Raposa.
– Tanto pior para você! – repetiu o Gato.
– Pense bem, Pinóquio, pois você dará um chute na sorte.
– Na sorte! – repetiu o Gato.
– As suas cinco moedas, da noite pro dia, poderiam virar
duas mil.
– Duas mil! – repetiu o Gato.
– Mas como é possível que virem tantas?! – perguntou
Pinóquio, a boca aberta de assombro.
– Explico. No País dos Bobalhões, há um campo mágico
chamado por todos de Campo dos Milagres. Você faz um
pequeno buraco no chão e põe dentro, por exemplo, uma
moeda de ouro. Então, enche o buraco de terra, rega com
dois baldes de água de fonte, joga por cima uma pitada de
sal e, à noite, vai tranquilamente para a cama. Enquanto
isso, durante a noite, a moeda germina e floresce, e na
manhã seguinte, voltando ao Campo, o que você encontra?
Uma bela árvore, carregada de tantas moedas de ouro
quantos grãos de trigo pode ter uma bela espiga no tempo
da colheita – disse a Raposa.
– Então, se eu enterrasse naquele campo as minhas cinco
moedas, na manhã seguinte quantas moedas eu
encontraria? – perguntou Pinóquio, cada vez mais
espantado.
– É uma conta facílima. Uma conta que pode ser feita na
ponta dos dedos. Imagine que cada moeda vire um cacho
de quinhentas moedas; multiplique quinhentos por cinco e,
na manhã seguinte, terá no bolso duas mil e quinhentas
moedas brilhantes, estalando de novas – respondeu a
Raposa.
– Oh, que maravilha! Logo que eu tiver recolhido essas
moedas, pegarei duas mil para mim e as outras quinhentas
darei de presente a vocês – gritou Pinóquio, pulando de
alegria.
– De presente para nós? Nada disso! – gritou a Raposa,
desdenhosa e parecendo ofendida.
– Nada disso! – repetiu o Gato.
– Nós não somos interesseiros, trabalhamos para
enriquecer os outros – continuou a Raposa.
– Os outros! – repetiu o Gato.
– Que criaturas boas! – pensou Pinóquio e, esquecendo-se
de imediato do pai, da casaca nova, do Abecedário e de
todos os seus bons propósitos, disse à Raposa e ao Gato:
– Vamos logo, eu vou com vocês.
13.
A Pousada do Camarão Vermelho

C
aminharam, caminharam, caminharam e, afinal, no
início da noite, chegaram mortos de cansaço à Pousada
do Camarão Vermelho.
– Vamos parar aqui um pouco, para comer alguma coisa e
para descansarmos algumas horas. À meia-noite,
partiremos, para estarmos amanhã, ao amanhecer, no
Campo dos Milagres – disse a Raposa.
Na Pousada, os três sentaram-se à mesa, mas nenhum
deles tinha apetite.
O pobre Gato, sentindo-se gravemente indisposto do
estômago, não pôde comer a não ser trinta e cinco tainhas
com molho de tomate e quatro porções de dobradinha com
manteiga e queijo. E como a dobradinha não lhe parecia
temperada a seu gosto, refez por três vezes o pedido de
mais manteiga e queijo ralado!
A Raposa tinha beliscado, com prazer, alguma coisa
também, mas como o médico lhe tinha passado uma
rigorosíssima dieta, teve de se contentar com uma simples
lebre ao molho doce e azedo, com um levíssimo
acompanhamento de frangos gordos e de galetos al primo
canto.** Depois da lebre, pediu, para arrematar, um
refogadinho de perdizes, codornas, coelhos, rãs, lagartixas e
uva do paraíso, e depois não quis mais nada. Tinha tanto
enjoo da comida, dizia ela, que não podia nem sentir o
cheiro dela.
O que comeu menos foi Pinóquio. Pediu a metade de uma
noz e uma ponta de pão e deixou tudo no prato. O pobre
menino, com o pensamento fixo no Campo dos Milagres,
teve uma indigestão antecipada por causa das moedas de
ouro.

O que comeu menos foi Pinóquio.

Quando terminaram a ceia, a Raposa disse ao hoteleiro:


– Veja dois bons quartos, um para o senhor Pinóquio e
outro para mim e meu companheiro. Antes de partir,
tiraremos uma soneca. Lembre-se, porém, que à meia-noite
queremos ser despertados para continuar a nossa viagem.
– Sim, senhor – respondeu o hoteleiro, piscando o olho
para a Raposa e para o Gato, como quem diz: “Para o bom
entendedor, um pingo é letra!”.
Logo que se enfiou na cama, Pinóquio adormeceu e
começou a sonhar. Parecia estar no meio de um campo, e
esse campo era cheio de arbustos carregados de cachos, e
esses cachos estavam carregados de moedas de ouro que,
balançando com o vento, faziam zin, zin, zin, como se
quisessem dizer: “Quem quiser, venha nos pegar”. Estava
na melhor parte do sonho, esticando o braço para pegar de
uma mãozada só todas aquelas belas moedas e colocá-las
no bolso, quando foi despertado por três pancadas violentas
na porta do quarto.
Era o hoteleiro, informando que soara a meia-noite.
– Meus companheiros estão prontos? – perguntou o
boneco.
– Mais que prontos! Partiram há duas horas.
– Por que tanta pressa?
– Porque o Gato recebeu uma mensagem dizendo que seu
gatinho mais velho, doente de frieiras nos pés, estava em
perigo de vida.

Era o hoteleiro, informando que soara a meia-noite.

– E pagaram a ceia?
– Nem pensar! Eles são criaturas muito educadas para
fazerem semelhante afronta a Vossa Senhoria.
– Pena! Essa afronta teria me dado muito prazer! – disse
Pinóquio, coçando a cabeça; então perguntou:
– E onde meus bons amigos disseram que iam esperar por
mim?
– No Campo dos Milagres, de manhãzinha, ao despontar o
dia.
Pinóquio pagou uma moeda pelos quartos, por sua ceia e
pelas de seus companheiros, e partiu.
Pode-se dizer até que partiu tateando pelo caminho, pois
fora da Pousada estava uma escuridão tão escura, que não
se via nada daqui até ali. No campo em torno não se ouvia
farfalhar uma folha. Somente alguns passarões noturnos,
atravessando a estrada de uma moita a outra, vinham bater
as asas no nariz de Pinóquio, que, dando um salto para trás
de medo, gritava:
– Quem vem lá?
E o eco das colinas em volta repetia à distância: – Quem
vem lá? Quem vem lá? Quem vem lá?
Enquanto caminhava, o boneco viu no tronco de uma
árvore um animalzinho minúsculo que reluzia com uma luz
pálida e opaca, como uma chama dentro de uma lâmpada
de porcelana transparente de noite.
– Quem é você? – perguntou Pinóquio.
– Sou a sombra do Grilo Falante – respondeu o
animalzinho com uma vozinha fraca, fraca, que parecia vir
de outro mundo.
– O que quer de mim? – disse o boneco.
– Quero dar um conselho. Volte e leve as quatro moedas
que sobraram ao seu pobre pai, que chora e se desespera
por não ter mais visto você.
– Amanhã meu pai será um grande senhor, pois estas
quatro moedas virarão duas mil.
– Não confie, meu menino, naqueles que prometem fazer
você rico da noite para o dia. Em geral, ou são loucos ou
trapaceiros! Preste atenção, volte!
– Ao contrário, quero ir em frente.
– Já está tarde!...
– Quero ir em frente.
– A noite está escura...
– Quero ir em frente.
– A estrada é perigosa...
– Quero ir em frente.
– Lembre-se de que as crianças que querem fazer tudo
por capricho e ao modo delas cedo ou tarde se arrependem.
– Sempre as mesmas histórias. Boa noite, Grilo.
– Boa noite, Pinóquio, e que o céu o salve da geada e dos
assassinos.
Assim que disse essas últimas palavras, o Grilo Falante se
apagou de repente, como quando se sopra uma vela, e a
estrada ficou mais escura que antes.
14.
Pinóquio, por não dar atenção aos bons conselhos do Grilo Falante, se encontra
com os assassinos

verdade... Como somos infelizes nós, pobres crianças.


– É Todos se zangam conosco, todos nos censuram, todos
nos dão conselhos. A bem dizer, todos pensam ser os
nossos pais e os nossos mestres, todos, até os grilos
falantes. Olhe só: porque eu não quis dar atenção àquele
aborrecido do Grilo, quem sabe quantas desgraças, segundo
ele, deverão me acontecer! Devo encontrar até assassinos!
Menos mal que em assassinos eu não acredito, não acreditei
nunca. Para mim, os assassinos foram inventados de
propósito pelos pais, para pôr medo nas crianças que
querem sair à noite. E se eu encontrasse alguns aqui na
estrada, será que teria medo? Nem pensar: eu iria até eles,
gritando: “Senhores assassinos, o que querem de mim?
Lembrem-se: comigo não se brinca! Então, metam-se com
seus assuntos e calem-se!”. Ouvindo essa ameaça, feita a
sério, os pobres assassinos, parece que os vejo na minha
frente, dariam o fora, como o vento. Se fossem ignorantes a
ponto de não fugir, então fugiria eu, e assim daria tudo por
encerrado... – dizia consigo mesmo o boneco, enquanto
caminhava.
Mas Pinóquio não pôde acabar seu raciocínio, pois
naquele momento lhe pareceu ouvir atrás de si um ligeiro
farfalhar de folhas.
Ao se virar, viu, no escuro, duas figuronas negras,
totalmente cobertas por dois sacos de carvão, correndo
atrás dele, pulando na ponta dos pés, como se fossem dois
fantasmas.
– Os assassinos em carne e osso! – e, não sabendo onde
esconder as quatro moedas, colocou-as na boca, bem
debaixo da língua.
Então tentou fugir. Mas não tinha dado o primeiro passo
quando foi agarrado pelos braços e ouviu duas vozes
horríveis e cavernosas que diziam:
– A bolsa ou a vida!
Pinóquio, não podendo responder com palavras por causa
das moedas que tinha na boca, fez mil salamaleques e mil
pantomimas, para dar a entender aos dois encapuzados,
dos quais somente os olhos podiam ser vistos pelos buracos
dos sacos, que ele era um pobre boneco e que não tinha no
bolso nem ao menos uma moeda falsa.
– Vá, vá! Menos papo, passe para cá o dinheiro! –
gritaram os dois assaltantes, ameaçadores.
O boneco fez um sinal com a cabeça e com as mãos,
como quem diz:
– Não tenho.
– Passe para cá o dinheiro, ou está morto! – disse o
assassino mais alto.
– Morto! – repetiu o outro.
– E depois de matar você, mataremos também seu pai!
– Também seu pai!
... foi agarrado pelos braços...

– Não, não, não, meu pobre pai, não! – gritou Pinóquio


desesperado –, e as moedas tilintaram na sua boca.
– Ah, trapaceiro! Então você escondeu as moedas debaixo
da língua? Cuspa, logo!
E Pinóquio, firme.
– Ah! Você finge de surdo? Espere um pouco, nós vamos
fazê-lo cuspir!
De fato, um deles agarrou o boneco pela ponta do nariz, o
outro o pegou pelo queixo, e começaram a puxar
brutalmente, um para cá, o outro para lá, para obrigá-lo a
abrir a boca, mas não havia como: a boca do boneco
parecia pregada e firme.
Então o assassino mais baixo, pegando um facão, tentou
enfiá-lo, como se fosse uma alavanca, entre os lábios do
Pinóquio, mas o boneco, rápido como um raio, agarrou sua
mão com os dentes, e depois tê-la arrancado de uma só vez
com uma mordida, cuspiu-a, e imagine qual não foi sua
surpresa quando, em vez de uma mão, percebeu ter
cuspido uma patinha de gato.
Encorajado por essa primeira vitória, o boneco se libertou
à força das unhas dos malfeitores e, saltando a cerca viva
da estrada, começou a fugir pelo campo, com os assassinos
atrás dele como dois cães atrás de um coelho. Aquele que
tinha perdido uma pata corria com uma perna só, e não se
soube nunca como conseguia.
Depois de uma corrida de quinze quilômetros, Pinóquio
não se aguentava mais. Então, vendo-se perdido,
encarapitou-se no tronco de um altíssimo pinheiro e foi se
sentar no topo dos galhos. Os assassinos tentaram fazer o
mesmo, mas, chegando à metade do tronco, escorregaram
e, na descida, esfolaram as mãos e os pés.
Nem por esse motivo se deram por vencidos. Em vez
disso, juntando um feixe de lenhas secas ao pé do pinheiro,
atearam fogo nele. Em um piscar de olhos a árvore
começou a queimar, incendiando-se como uma vela
soprada pelo vento. Pinóquio, vendo que as chamas subiam
mais e mais, e não querendo acabar como um pombo
assado, deu um belo salto do alto da árvore, danando a
correr de novo pelos campos e vinhedos, com os assassinos
atrás, sempre atrás, sem nunca se cansar.
Entretanto, quando o dia começava a clarear, Pinóquio
encontrou a passagem interrompida por um fosso largo e
profundíssimo, cheio de uma aguaceira suja, cor de café
com leite. O que fazer?
– Um, dois, três! – gritou o boneco e, com um grande
impulso, saltou para o outro lado.
Os assassinos saltaram, também, mas, não tendo
calculado bem a distância...
TCHIBUM-SPLASH-SPLOSH!... – caíram no meio do fosso.
Pinóquio, que ouviu o baque e sentiu os respingos de
água, gritou rindo e continuando a correr:
– Bom banho, senhores assassinos!
Já imaginava que estivessem bem afogados quando, em
vez disso, ao olhar para trás, percebeu que os dois corriam
bem perto dele, sempre empacotados nos seus sacos,
gotejando água como dois balaios.
15.
Os assassinos perseguem Pinóquio e, alcançando-o, logo o penduram em um
galho do Grande Carvalho

boneco, perdendo o ânimo, chegou ao cúmulo de se


O jogar no chão, dando-se por vencido, quando, ao olhar
em torno, viu, em meio ao verde profundo das árvores,
branquear a distância uma casinha clara como a neve.
– Se eu tiver fôlego para chegar até aquela casa, talvez
esteja salvo! – disse consigo mesmo.
Sem demorar um minuto, retomou a longa carreira pelo
bosque, com os assassinos sempre atrás.
Depois de uma corrida desesperada de quase duas horas,
finalmente, chegou todo esbaforido à porta da casinha e
bateu.
Ninguém respondeu.
Tornou a bater com maior violência, pois sentia se
aproximar o rumor dos passos e o bafo grosso e fanhoso de
seus perseguidores.
O mesmo silêncio.
Vendo que bater não resolvia nada, começou, por
desespero, a dar chutes e socos na porta. Então chegou à
janela uma bela menina, com os cabelos azuis e o rosto
branco feito uma estátua de cera, os olhos fechados, as
mãos cruzadas sobre o peito e, sem mover os lábios, disse
com uma vozinha que parecia vir de outro mundo:
– Nesta casa não há ninguém, estão todos mortos.
– Abra você, então! – gritou Pinóquio, chorando e
implorando.
– Estou morta também.
– Morta? E então o que faz aqui à janela?
– Espero o caixão que vem para me levar embora.
Assim disse isso, a menina desapareceu, e a janela se
fechou sem fazer barulho. Pinóquio gritou:
– Ó bela menina dos cabelos azuis, abra, por caridade!
Tenha compaixão de um pobre menino perseguido por
assassi...
Mas não pôde acabar a palavra, pois foi agarrado pelo
pescoço, e os mesmos vozeirões grunhiram
ameaçadoramente:
– Agora não nos escapa mais!
Vendo brilhar a morte diante dos olhos, o boneco foi
tomado de um tremor tão forte, que fez soarem as juntas de
suas pernas de madeira e as quatro moedas escondidas
debaixo da língua.
– E então? Quer abrir a boca, sim ou não? Ah! Não
responde? Deixa estar, que desta vez nós faremos você
abrir...! – disseram os assassinos.
E tiraram fora dois longos facões, afiados como navalhas
e...
– Paf e paf... – dois golpes entre seus rins.
Mas o boneco, para sua sorte, era feito de uma madeira
duríssima, motivo pelo qual as lâminas, quebrando-se,
caíram em mil pedaços, e os assassinos ficaram com os
cabos na mão, a se olharem.
– Entendi. É preciso enforcá-lo. Vamos enforcá-lo! – disse
um deles.
– Vamos enforcá-lo! – repetiu o outro.
Dito e feito: amarraram as mãos de Pinóquio atrás das
costas e, passando um nó de correr em torno de sua
garganta, o penduraram no galho de uma grossa árvore,
chamada de Grande Carvalho.
Então ficaram lá, sentados no capim, esperando que o
boneco desse a última esperneada, mas três horas depois
ele ainda tinha os olhos abertos, a boca
fechada e esperneava mais que nunca.
Cansados finalmente de esperar,
viraram-se para Pinóquio e disseram,
gargalhando:
– Adeus, até amanhã. Quando
voltarmos aqui, esperamos que nos
faça a gentileza de estar bem morto e
com a boca escancarada.
E se foram.
Nisso, levantou-se um forte vento do
norte que, assobiando e uivando com
raiva, sacudia para cá e para lá o pobre
enforcado, fazendo-o balançar violentamente feito o badalo
de um sino batendo para as festas. Aquele balançar lhe
causava fortíssimos engasgos, e o nó de correr, apertando
mais e mais a garganta, cortava sua respiração.
Pouco a pouco, seus olhos se embaçaram e, embora
sentisse a morte se avizinhar, ainda esperava que, de um
momento para o outro, aparecesse alguma alma piedosa
para ajudar.
Mas quando, espera que espera, viu que não aparecia
ninguém, ninguém mesmo, o pobre pai lhe voltou à mente...
e ele murmurou, quase morrendo:
– Oh, meu pai! Se você estivesse aqui!
Não teve fôlego para dizer mais nada. Fechou os olhos,
abriu a boca, esticou as pernas e, com uma grande
sacudida, ficou imóvel.
16.
A Bela Menina dos Cabelos Azuis recolhe o boneco, coloca-o na cama e chama
três médicos para saber se está vivo ou morto

N
aquele momento em que o pobre Pinóquio, enforcado
pelos assassinos em um galho do Grande Carvalho,
parecia mais morto que vivo, a Bela Menina dos Cabelos
Azuis chegou de novo à janela e, com pena daquele infeliz
suspenso pelo pescoço que dançava no ar aos sopros do
vento norte, bateu palmas por três vezes, produzindo três
delicados sons.
A esse sinal, ouviu-se um grande rumor de asas
apressadas que voavam com vigor, e um grande Falcão veio
pousar no parapeito da janela.
– O que ordena, minha graciosa Fada? – disse o Falcão,
baixando o bico em ato de reverência, pois fique sabendo
que a Menina dos Cabelos Azuis não era outra, no final das
contas, senão uma boníssima Fada, que há mais de mil anos
vivia nas vizinhanças daquele bosque.
– Vê aquele boneco balançando em um galho do Grande
Carvalho?
– Vejo.
– Bem: voe até lá, corte com seu fortíssimo bico o nó que
o mantém suspenso e, delicadamente, deite-o no capim ao
pé do Carvalho. 
O Falcão voou e voltou dois minutos depois, dizendo:
– O que ordenou está feito.
– E como o encontrou? Vivo ou morto?
Um grande falcão veio pousar no parapeito da janela.

– Parecia morto, mas não devia estar ainda


completamente morto, pois, logo que afrouxei o nó de
correr em volta da garganta dele, soltou um suspiro,
murmurando em voz baixa:
– Agora me sinto melhor!...
A Fada bateu palmas, e apareceu um magnífico Cão
Cacheado,*** que caminhava em pé sobre as pernas
traseiras, como se fosse humano.
O Cão Cacheado estava vestido de cocheiro em uniforme
de gala. Tinha na cabeça um chapeuzinho de três pontas
contornado de ouro, uma peruca loura com os cachos que
desciam pescoço abaixo, uma jaqueta cor de chocolate com
botões de brilhantes e dois grandes bolsos para levar os
ossos que a patroa Fada lhe dava para comer, um par de
calças curtas de veludo vermelho, meias de seda, sapatos
cavados e, saindo da casaca, uma espécie de sacola de
cetim azul para pôr a cauda dentro quando começasse a
chover.
– Seja bondoso, Medoro! Mande atrelar a mais bela
carruagem da minha cocheira e tome o caminho do bosque.
Chegando sob o Grande Carvalho, encontrará estendido no
capim um pobre boneco meio morto. Recolha-o com
delicadeza, pouse-o cuidadosamente sobre as almofadas da
carruagem e traga-o aqui. Entendeu? – disse a Fada ao Cão
Cacheado.
O Cão Cacheado, para mostrar que havia entendido,
abanou três ou quatro vezes a sacola de cetim azul que
levava sobre o lombo e partiu como um cavalo de corrida.
Dali a pouco, saiu da cocheira uma bela carruagenzinha
cor de ar, toda recoberta de penas de canarinho e forrada,
no interior, de creme chantili e de musse com biscoito
champanhe. Era puxada por cem parelhas de camundongos
brancos, e o Cão Cacheado, sentado na boleia, estalava o
chicote para a direita e para a esquerda feito um cocheiro
quando está atrasado.
O Cão Cacheado... partiu como um cavalo de corrida.

Não tinha se passado um quarto de hora quando a


carruagenzinha voltou e a Fada, que esperava à porta de
casa, pegou no colo o pobre boneco, levando-o a um quarto
com paredes de madrepérola, e mandou chamar depressa
os médicos mais famosos da vizinhança.
Os médicos chegaram logo, um depois do outro – quer
dizer, chegou um Corvo, chegou uma Coruja e chegou um
Grilo Falante.
– Gostaria de saber algo de suas senhorias. Gostaria de
saber de suas senhorias se esse infeliz boneco está vivo ou
morto!... – disse a Fada, dirigindo-se aos três médicos
reunidos em torno da cama de Pinóquio.
A Fada pegou no colo o pobre boneco...

O Corvo, tomando a frente, examinou o pulso de Pinóquio,


então examinou o nariz, então examinou o dedo mindinho
dos pés e então, quando tinha examinado tudo bem, muito
bem, pronunciou solenemente estas palavras:
– A meu ver, o boneco está bem morto, mas, se por acaso
não estivesse morto, então seria sinal certo de que está
bem vivo!
– Desagrada-me contradizer o Corvo, ilustre amigo e
colega: para mim, em vez disso, o boneco está bem vivo,
mas, se por acaso não estivesse vivo, então seria sinal de
que está morto de verdade – disse a Coruja.
– E você, não diz nada? – perguntou a Fada ao Grilo
Falante.
– Eu digo que a melhor coisa para o médico prudente,
quando não sabe o que dizer, é ficar calado. Além disso,
esse boneco não é fisionomia nova para mim. Eu o conheço
há um tempo!
Pinóquio, que até então estivera imóvel feito um
verdadeiro pedaço de pau, teve uma espécie de convulsão
que sacudiu a cama.
– Esse boneco aí é um velhaco perfeito... – continuou a
dizer o Grilo Falante.
Pinóquio abriu e fechou os olhos rapidinho.
– É um moleque, um preguiçoso, um malandro... 
Pinóquio escondeu o rosto sob os lençóis.
– Esse boneco aí é um filho desobediente, que fará morrer
de coração partido o pobre pai!...
Nesse momento, ouviu-se no quarto um som sufocado de
choros e soluços. Imagine como ficaram todos assim que,
levantando um pouco os lençóis, perceberam que quem
chorava e soluçava era Pinóquio.
– Quando o morto chora, é sinal de que está a caminho da
cura – disse solenemente o Corvo.
– Dói-me contradizer o meu ilustre amigo e colega. Mas,
para mim, quando o morto chora, é sinal que lhe desagrada
morrer – acrescentou a Coruja.
17.
Pinóquio come o açúcar, mas não quer se medicar. Porém, quando vê os
coveiros que o levarão embora, toma o remédio. Depois diz uma mentira, e por
castigo seu nariz cresce

A
ssim que os três médicos saíram do quarto, a Fada
aproximou-se de Pinóquio e, depois de tocar sua testa,
percebeu que era acometido de uma febrona de não se
acreditar.
Então dissolveu um pozinho branco em meio copo d’água
e, estendendo-o ao boneco, disse, amorosamente:
– Beba, e em poucos dias estará curado.
Pinóquio olhou o copo, torceu um pouco a boca e
perguntou, com voz de choro:
– É doce ou amargo?
– É amargo, mas lhe fará bem.
– Se é amargo não quero.
– Confie em mim: beba.
– O amargo não me agrada.
– Beba, e quando tiver bebido darei a você uma balinha
de açúcar, para refrescar a boca.
– Onde está a balinha de açúcar?
– Aqui – disse a Fada, tirando-a de um açucareiro de ouro.
– Antes quero a balinha de açúcar, e depois beberei
aquela água amarga...
– Promete?
– Sim...
A Fada lhe deu a balinha, e Pinóquio, depois de mastigar e
engolir em um segundo, disse, lambendo os lábios:
– Beleza! Se o açúcar também fosse um remédio!... Eu
me medicaria todos os dias.
– Agora mantenha a promessa e beba essas poucas gotas
d’água, que lhe devolverão a saúde.
Pinóquio pegou o copo com má vontade, enfiou dentro
dele a ponta do nariz, depois o aproximou da boca, depois
tornou a enfiar nele a ponta do nariz, e, finalmente, disse:
– É muito amarga! Não posso beber. Muito amarga!
– Como pode dizer isso, se nem ao menos provou?
– Eu imagino! Senti o cheiro. Quero antes outra balinha de
açúcar... e então beberei!
Então a Fada, com toda a paciência de uma boa mãe, pôs
em sua boca outro pouco de açúcar, depois lhe ofereceu de
novo o copo.
– Assim não posso beber! – disse o boneco, fazendo mil
caretas.
– Por quê?
– Porque me dá enjoo aquele travesseiro que tenho lá
embaixo nos pés.
A Fada tirou o travesseiro.
– É inútil! Nem mesmo assim posso beber.
– Que outra coisa lhe dá enjoo?
– A porta do quarto, que está meio aberta.
A Fada foi lá e fechou a porta do quarto.
– Afinal, não quero beber essa água amarga, não, não,
não!... – gritou Pinóquio em um ataque de choro.
– Meu menino, você se arrependerá...
– Não me importa...
– A sua doença é grave.
– Não me importa...
– A febre levará você em poucas horas para o outro
mundo...
– Não me importa...
– Não tem medo da morte?
– Nenhum medo! Antes morrer que beber esse remédio
ruim.
Nesse momento, a porta do quarto se escancarou, e
entraram quatro coelhos negros como breu, carregando nos
ombros um pequeno caixão.

Entraram quatro coelhos negros como tinta...

– O que querem de mim? – gritou Pinóquio, apavorado,


sentando-se na cama.
– Viemos buscá-lo – respondeu o coelho maior.
– Buscar-me? Mas eu ainda não estou morto!...
– Ainda não, mas restam poucos momentos de vida a
você, porque se recusou a beber o remédio que o teria
curado da febre!
– Ó Fada minha, ó minha Fada! Dê-me depressa aquele
copo... Depressa, por caridade, pois não quero morrer, não...
não quero morrer! – o boneco começou então a gritar.
E pegou o copo com as duas mãos, esvaziando-o de um
gole só.
– Paciência! Desta vez fizemos a viagem de graça. Desta
vez... – disseram os coelhos, e, pondo de novo o pequeno
caixão nos ombros, saíram do quarto resmungando e
murmurando entre os dentes.
Fato é que dali a poucos minutos Pinóquio saltou de cima
da cama, já curado, pois os bonecos de pau têm o privilégio
de adoecer raramente e de se curarem rapidinho.
A Fada, vendo-o correr e brincar pelo quarto, ágil e alegre
como um galinho garnisé, disse:
– Então meu remédio fez bem de verdade?
– Mais que bem! Trouxe-me de volta ao mundo!
– Então, por que você demorou tanto a beber?
– É que nós, crianças, somos todas assim! Temos mais
medo dos remédios que da doença.
– Que vergonha! As crianças deveriam saber que um bom
remédio, tomado a tempo, pode salvá-las de uma grave
doença e talvez até da morte...
– Oh! Mas na próxima vez não vou demorar tanto a
beber! Lembrarei daqueles coelhos negros com o caixão nos
ombros... então pegarei logo o copo na mão e... Já! –
completou.
– Agora, me conte como foi que caiu nas mãos dos
assassinos.
– O titereiro Come-Fogo me deu cinco moedas de ouro e
me disse: “Tome, leve-as ao seu pai!”. E eu, em vez disso,
acabei encontrando na estrada uma Raposa e um Gato,
duas criaturas do bem, que me disseram: “Quer que essas
moedas virem mil e depois duas mil? Venha conosco e o
levaremos ao Campo dos Milagres”. E eu disse: “Vamos”. E
eles disseram: “Paremos aqui na Pousada do Camarão
Vermelho, e depois da meia-noite tornaremos a partir”. E,
quando eu acordei, eles não estavam mais, tinham partido.
Então comecei a caminhar pela noite, e estava uma
escuridão tão escura, que andar parecia impossível; foi
quando encontrei pela estrada dois assassinos dentro de
dois sacos de carvão que me disseram: “Entregue as
moedas”. E eu disse: “Não as tenho”. Mas tinha as moedas
de ouro escondidas na boca, e um dos assassinos tentou
tirá-las com a mão, e eu, com uma mordida, a arranquei e
cuspi, mas em vez da mão cuspi uma patinha de gato. E os
assassinos correram atrás de mim, e eu corri e corri até que
me alcançaram e me amarraram pelo pescoço em uma
árvore do bosque, com estas palavras: “Amanhã voltaremos
aqui, e então estará morto e com a boca aberta, e assim
levaremos embora as moedas de ouro que você escondeu
debaixo da língua”.
– E agora, onde colocou as quatro moedas? – perguntou a
Fada.
– Perdi! – respondeu Pinóquio, mas era uma mentira, pois
as moedas estavam no bolso.
Assim que disse a mentira, seu nariz, que era já
comprido, cresceu dois dedos.
– E onde as perdeu?
– No bosque vizinho.
A essa segunda mentira, o nariz tornou a crescer.
– Se perdeu as moedas no bosque vizinho, nós podemos
procurar e encontrar, pois tudo aquilo que se perde no
bosque vizinho é sempre encontrado – disse a Fada.
– Ah! Agora me lembro que não perdi: engoli as quatro
moedas sem ver, enquanto bebia seu remédio – replicou o
boneco, trapaceando.
A essa terceira mentira, seu nariz cresceu de modo tão
extraordinário que o pobre Pinóquio não podia mais virar a
cabeça para nenhum lado. Se virava para cá, batia o nariz
na cama ou nas vidraças da janela; se virava para lá, batia
nas paredes ou na porta do quarto; se erguia um pouco
mais a cara, corria o risco de enfiar o nariz em um olho da
Fada.
Seu nariz cresceu de modo tão extraordinário...

A Fada olhava e ria.


– Por que ri? – perguntou o boneco, todo confuso e
pensativo sobre aquele nariz que crescia a olhos vistos.
– Rio da mentira que você disse.
– Como sabe que eu disse uma mentira?
– As mentiras, meu menino, logo são reconhecidas, pois
existem mentiras de duas espécies. Existem as que têm as
pernas curtas e as que têm o nariz longo. A sua mentira é
exatamente daquelas que têm o nariz longo. 
Pinóquio, não sabendo mais onde se esconder de
vergonha, tentou fugir do quarto e não conseguiu. O nariz
tinha crescido tanto que não passava mais pela porta.
18.
Pinóquio reencontra a Raposa e o Gato, e vai com eles semear as quatro
moedas no Campo dos Milagres

C
omo você pode imaginar, a Fada deixou que o boneco
chorasse e berrasse uma boa meia hora por causa
daquele nariz que não passava mais pela porta do quarto.
Fez isso para lhe dar uma severa lição e para que corrigisse
o feio hábito de dizer mentiras, o mais feio vício que uma
criança pode ter. Mas, quando o viu transfigurado e com os
olhos arregalados de desespero, ficou com pena: bateu
palmas, e a esse sinal entraram pela janela mil grandes
pássaros chamados pica-paus que, pousando sobre o nariz
de Pinóquio, começaram a bicá-lo tanto, tanto, que em
poucos minutos aquele nariz enorme e despropositado foi
reduzido ao seu tamanho natural.
– Como você é boa, minha Fada, e quanto lhe quero bem!
– disse o boneco, enxugando os olhos.
– Quero-lhe bem também, e, se quiser ficar comigo, será
o meu irmãozinho, e eu, a sua boa irmãzinha... – respondeu
a Fada.
– Eu ficaria numa boa, mas... e o meu pobre pai?
– Pensei em tudo. O seu pai já foi avisado, e antes que
anoiteça estará aqui.
– Verdade? Então, Fadinha minha, se não se importa,
queria ir ao encontro dele! Não vejo a hora de poder dar um
beijo naquele pobre velho que tanto sofreu por mim! –
gritou Pinóquio, saltando de alegria.
– Vá, então, mas cuide de não se distrair. Pegue o
caminho do bosque, estou certa de que o encontrará.
Pinóquio partiu, e logo que entrou no bosque começou a
correr como um cabrito. Mas quando chegou quase diante
do Grande Carvalho, parou, pois pareceu ter percebido
vultos andando por entre as árvores. De fato, viu aparecer,
na estrada, adivinhe quem? A Raposa e o Gato, ou seja, os
dois companheiros de viagem com os quais tinha jantado na
Pousada do Camarão Vermelho.
– Eis o nosso caro Pinóquio! Como veio parar aqui? –
gritou a Raposa, abraçando-o e beijando-o.
– Como veio parar aqui? – repetiu o Gato.
– É uma longa história, depois conto com calma. Saibam,
porém, que na outra noite, quando me deixaram sozinho na
Pousada, encontrei assassinos na estrada... – disse o
boneco.
– Assassinos?... Oh, pobre amigo! E o que queriam?

− Eis o nosso caro Pinóquio! – gritou a Raposa, abraçando-o.

– Queriam roubar minhas moedas de ouro.


– Infames! – disse a Raposa.
– Infamíssimos! – repetiu o Gato.
– Mas eu comecei a fugir, e eles, sempre atrás, até que
me alcançaram e me penduraram em um galho daquele
carvalho... – continuou o boneco.
E apontou para o Grande Carvalho, a dois passos dali.
– Pode acontecer coisa pior? Em que mundo estamos
condenados a viver! Onde encontraremos um refúgio
seguro, nós, criaturas do bem? – disse a Raposa.
No momento em que falavam assim, Pinóquio percebeu
que o Gato era coxo da perna direita da frente, pois lhe
faltava a pata, razão pela qual perguntou:
– O que fez de sua pata? 
O Gato queria responder, mas se atrapalhou. Então a
Raposa disse depressa:
– O meu amigo é muito modesto, por isso não responde.
Eu respondo por ele. Há uma hora, encontramos na estrada
um velho lobo, quase desmaiando de tanta fome, que nos
pediu uma pequena esmola. Como não tínhamos nem ao
menos uma espinha de peixe para dar a ele, o que fez meu
amigo, que tem um ótimo coração? Arrancou com os dentes
uma de suas patinhas e a jogou para a pobre fera, para que
pudesse quebrar o jejum.
E a Raposa, ao dizer isso, enxugou uma lágrima. Pinóquio,
comovido também, chegou pertinho do Gato e sussurrou:
– Se todos os gatos se parecessem com você, que sorte a
dos ratos!
– E o que faz neste lugar? – perguntou a Raposa ao
boneco.
– Espero meu pai, que deve chegar a qualquer momento.
– E as moedas de ouro?
– Estão no bolso, menos uma que gastei na Pousada do
Camarão Vermelho.
– E pensar que, em vez de quatro moedas, poderiam ser
amanhã mil e depois duas mil! Por que não dá atenção ao
meu conselho? Por que não vai semeá-las no Campo dos
Milagres?
– Hoje é impossível, irei outro dia.
– Outro dia será tarde demais! – disse a Raposa.
– Por quê?
– Porque aquele campo foi comprado por um grande
senhor, e de amanhã em diante não será mais permitido a
ninguém semear nele qualquer dinheiro.
– O Campo dos Milagres fica longe daqui?
– Dois quilômetros só. Quer vir conosco? Em meia hora
estará lá, semeará logo as quatro moedas, depois de
poucos minutos colherá duas mil, e ainda esta noite voltará
com os bolsos cheios. Quer vir conosco? 
Pinóquio duvidou um pouco antes de responder, pois lhe
voltaram à mente a boa Fada, o velho Gepeto e as
advertências do Grilo Falante, mas acabou por fazer como
fazem todas as crianças sem um pingo de juízo, quer dizer,
acabou por balançar a cabeça e dizer à Raposa e ao Gato:
– Vamos, então, eu vou com vocês. 
E partiram.
Depois de caminhar algumas horas, chegaram a um lugar
chamado Apanhabocós. Logo que entrou na cidade,
Pinóquio notou que as ruas eram povoadas de cães sem
pelos que bocejavam de fome, ovelhas tosquiadas que
tremiam de frio, galinhas sem crista e sem barbela que
pediam de esmola um grão de milho, grandes borboletas
que não podiam mais voar, pois tinham vendido suas
belíssimas asas coloridas, pavões completamente sem
rabos que se envergonhavam de serem vistos, e faisões que
mancavam silenciosos, lamentando que suas cintilantes
penas de ouro e de prata tivessem se perdido para sempre.
Em meio a essa multidão de mendigos e de pobres
envergonhados, passavam de tempo em tempo algumas
carruagens elegantes, e dentro delas ia ou alguma raposa,
ou algum pássaro ladrão, ou alguma ave de rapina.
– E o Campo dos Milagres, onde é? – perguntou Pinóquio.
– É daqui a dois passos.
Dito e feito: atravessaram a cidade e, saindo dos seus
limites, foram parar em um campo solitário que, em tudo e
por tudo, parecia com todos os outros campos.
– Chegamos. Agora, cave com as mãos um pequeno
buraco e ponha dentro as moedas de ouro – disse a Raposa
ao boneco.
Pinóquio obedeceu. Cavou o buraco, pôs nele as quatro
moedas de ouro que sobraram e cobriu tudo com um pouco
de terra.
– Agora, vá ao açude vizinho, pegue um balde com água e
regue o terreno em que semeou – disse a Raposa.
Pinóquio foi ao açude, e, como não encontrou nenhum
balde, tirou um chinelo, encheu-o de água, regou a terra
que cobria o buraco. Então perguntou:
Pinóquio notou que as ruas eram povoadas de cães sem pelos...

– Mais alguma coisa?


– Nada mais, podemos ir embora. Volte aqui dentro de
uns vinte minutos e encontrará o arbusto já despontando do
solo, com os galhos carregados de moedas – respondeu a
Raposa.
O pobre boneco, fora de si de tanto contentamento,
agradeceu mil vezes à Raposa e ao Gato, e prometeu a eles
um belíssimo presente.
– Nós não queremos presentes, basta termos ensinado a
você como enriquecer sem fazer esforço e já estamos
contentes como nunca – responderam os dois malandros.
Dito isso, deram adeus a Pinóquio e, desejando-lhe boa
colheita, foram para seus afazeres.
19.
Pinóquio tem as moedas de ouro roubadas e, como castigo, leva quatro meses
de prisão

V
oltando à cidade, o boneco começou a contar os
minutos. Quando pareceu ser a hora, correu para a
estrada que levava ao Campo dos Milagres.
Enquanto caminhava com passo apressado, seu coração
batia forte, parecia um relógio de sala quando funciona de
verdade: – Tique-taque, tique-taque...
Ao mesmo tempo, Pinóquio falava consigo mesmo:
– E se em vez de mil moedas eu
encontrasse duas mil nos galhos da
árvore? E se em vez de duas mil, eu
encontrasse cinco mil? E se em vez de
cinco mil, eu encontrasse cem mil? Oh,
eu me tornaria, então, um belo senhor!
Teria um belo palácio, mil pôneis de
madeira e mil estábulos para me
divertir, uma adega de licores, com
aquele bem docinho, e uma estante
cheinha de doces cristalizados, tortas,
panetones, torrões de amêndoas e
enrolados com chantili.
Assim fantasiando, chegou bem ...tirou uma mão do bolso
perto do campo e parou para verificar e deu uma longuíssima
se avistava alguma árvore com os coçada na cabeça.
galhos carregados de moedas, mas não viu nada. Deu mais
cem passos adiante, e nada; entrou no campo e foi justo até
o pequeno buraco no qual tinha enterrado suas moedas... e
nada. Ficou um tempo pensativo e, esquecendo as regras
da etiqueta e da boa educação, tirou uma mão do bolso e
deu uma longuíssima coçada na cabeça.
Nisso, uma grande risada retumbou em seus ouvidos;
olhando para cima, viu em uma árvore um grande papagaio
que arrepiava as poucas penas que tinha pelo corpo.
– Por que ri? – perguntou Pinóquio com voz irritada.
– Rio porque arrepiar me dá cócegas sob as asas.
O boneco não respondeu. Foi ao açude, encheu de água o
mesmo chinelo e começou novamente a regar a terra que
recobria as moedas de ouro.
Outra risada, ainda mais impertinente que a primeira, se
fez ouvir na solidão silenciosa do campo.
– Afinal, posso saber, Papagaio malcriado, do que está
rindo? – gritou Pinóquio, com raiva.
– Rio dos bobalhões que acreditam em toda e qualquer
bobagem e se deixam enganar por quem é mais esperto
que eles.
– Por acaso está falando de mim?
– Sim, falo de você, pobre Pinóquio, de você, que é tão
desmiolado que acredita que é possível semear e colher
dinheiro nos campos, como se faz com os feijões e as
abóboras. Eu também acreditei nisso uma vez e hoje pago
com minhas penas! Hoje estou convencido de que, para
juntar honestamente algum dinheiro, é preciso saber ganhar
ou com o trabalho das próprias mãos, ou com a inteligência
da própria cabeça. Mas agora é tarde.
– Não entendo – disse o boneco, que já começava a
tremer de medo.
– Paciência! Explico melhor. Fique sabendo que, enquanto
você estava na cidade, a Raposa e o Gato voltaram aqui,
pegaram as moedas de ouro enterradas e fugiram com a
rapidez do vento. E agora, quem pode alcançá-los? – contou
o Papagaio.
Pinóquio ficou boquiaberto, não querendo acreditar nas
palavras do Papagaio, e com as mãos e as unhas começou a
escavar o terreno que tinha regado. E escava, que escava,
que escava, acabou fazendo um buraco tão fundo que nele
caberia, em pé, um monte de feno – mas as moedas não
estavam mais lá.
Tomado de desespero, o boneco voltou correndo à cidade
e foi direto ao tribunal, para denunciar os dois malandrinhos
que o tinham roubado.

Pinóquio, na presença do juiz, contou tintim por tintim a injusta fraude...

O juiz era um macaco da raça dos gorilas, um velho


macaco respeitável pela avançada idade, pela barba branca
e, especialmente, pelos óculos de ouro, sem lentes, que era
obrigado a usar continuamente por causa de uma secreção
nos olhos que o atormentava há vários anos.
Pinóquio, na presença do juiz, contou tintim por tintim a
injusta fraude da qual tinha sido vítima, informou o nome, o
sobrenome e as características dos malandrinhos e, por fim,
pediu justiça.
O juiz escutou com muita bondade, tomou parte ativa no
relato, enterneceu-se, comoveu-se e, quando o boneco não
tinha mais nada a dizer, estendeu a mão e tocou a
campainha.
Imediatamente, entraram na sala dois cães de guarda.
Então o juiz, apontando para Pinóquio, disse a eles:
– Esse pobre diabo foi roubado em quatro moedas de
ouro; portanto, levem-no e metam-no logo na prisão.
O boneco, ouvindo essa sentença sem pé nem cabeça,
ficou de boca aberta e ia protestar, mas os guardas, para
evitar uma inútil perda de tempo, taparam sua boca e o
conduziram ao xadrez.
Ali Pinóquio deveria ficar por quatro meses, quatro
longuíssimos meses, e teria ficado até mais se não tivesse
acontecido um grande golpe de sorte.
O jovem Imperador que reinava na cidade de
Apanhabocós, tendo conquistado uma bela vitória contra os
inimigos, ordenou grandes festas públicas, luzes, fogos de
artifício, corrida de cavalos e de bicicletas; e, em sinal de
maior festança ainda, queria que fossem abertas também
as prisões e libertados todos os malandros.
– Se os outros saem das prisões, eu também quero sair –
disse Pinóquio ao carcereiro.
– Você não, pois não é um bom exemplo... – respondeu o
carcereiro.
− Esse pobre diabo foi roubado em quatro moedas de ouro; portanto, levem-no
e metam-no logo na prisão.

– Peço desculpa, mas eu também sou um malandro –


retrucou Pinóquio.
– Nesse caso, você tem toda a razão para sair! – disse o
carcereiro, tirando o boné, e, saudando-o respeitosamente,
abriu as portas da prisão e o deixou ir.
...taparam sua boca e o conduziram ao xadrez.
20.
Libertado da prisão, Pinóquio se prepara para voltar à casa da Fada, mas na
estrada encontra uma serpente horrível e acaba preso em uma armadilha

I
magine a alegria de Pinóquio quando se viu livre. Sem
dizer uma palavra, saiu logo da cidade e pegou a estrada
para voltar à casa da Fada.
Por causa do tempo chuvoso, a estrada virou uma lama
só, que ia até o meio de suas pernas. Mas o boneco não se
importava. Entusiasmado pelo desejo de rever o pai e a
irmãzinha de cabelos azuis, ia aos pulos como um cão de
caça; com isso, os respingos chegavam até a altura de seu
chapéu.
Enquanto corria, Pinóquio ia dizendo consigo mesmo:
– Quantas desgraças me aconteceram... E eu mereço!
Pois sou um boneco teimoso e pirracento, quero sempre
fazer as coisas do meu modo, sem dar atenção aos que me
querem bem e que têm mil vezes mais juízo que eu! Mas,
quando chegar em casa, prometo mudar de vida e me
tornar um menino comportado e obediente! Só agora eu sei,
e muito bem, que as crianças, por serem desobedientes,
sempre se dão mal e enfiam os pés pelas mãos. E meu pai,
estará me esperando? Será que vou encontrá-lo na casa da
Fada? Faz tanto tempo que não o vejo, pobre homem, que
morro de vontade de fazer mil carinhos nele e de enchê-lo
de beijos! E a Fada, me perdoará pelo mal que fiz a ele? E
pensar que recebi tantas atenções e tantos cuidados
amorosos de meu pai... E pensar que, se ainda estou vivo,
devo a ele! Será que existe um menino mais ingrato e mais
sem coração que eu?!
Nesse momento, Pinóquio levou um susto tão grande que
deu quatro pulos para trás. O que tinha visto?
Estendida de atravessado na estrada, estava uma enorme
serpente de pele verde, olhos de fogo e uma cauda pontuda
que fumegava como uma chaminé.
Impossível imaginar o medo do boneco. Afastando-se
mais de meio quilômetro, resolveu sentar-se sobre um
montinho de pedras, esperando que a serpente fosse dar
uma bela volta para cuidar de seus afazeres e deixasse a
passagem livre.
Esperou uma hora, duas horas, três horas, mas a
serpente estava sempre lá, e mesmo de longe Pinóquio via
o avermelhado de seus olhos de fogo e a coluna de fumaça
que saía da ponta da cauda.
Então, fingindo ter coragem, o boneco chegou a poucos
passos de distância e, com uma vozinha doce, jeitosa e
suave, disse:
– Desculpe, Dona Serpente, a senhora faria o favor de sair
um pouquinho da frente, um tanto que desse para eu
passar?
Foi o mesmo que falar com um muro. Ela não se moveu.
Então ele continuou, com a mesma vozinha:
– Sabe, Dona Serpente, estou indo para casa, onde está
meu pai, que me espera e que há muito tempo não vejo!
Portanto, permite que eu siga meu caminho?
Esperou alguma resposta para aquela pergunta, mas ela
não veio. Pelo contrário: a serpente, que até então parecia
ágil e cheia de vida, ficou imóvel e quase dura. Os olhos se
fecharam, e a cauda parou de fumegar.
– Está morta de verdade? – disse Pinóquio com grande
alegria, esfregando as mãos de contente e, sem perder
tempo, fez que ia pular por cima dela, para passar para o
outro lado da estrada. Mas ele ainda não tinha acabado de
levantar a perna quando a serpente se ergueu de repente,
como uma mola, e o boneco, ao pular para trás de susto,
tropeçou e caiu no chão.
E caiu tão mal, tão mal mesmo, que ficou com a cabeça
enfiada na lama da estrada e com as pernas para o ar.
Ao ver aquele boneco que esperneava, em uma
velocidade incrível, de cabeça para baixo, a serpente teve
tamanho ataque de riso, que riu, riu, riu e, por fim, pelo
esforço de tanto rir, uma veia arrebentou em seu peito e,
dessa vez, ela morreu de verdade.

E caiu tão mal, que ficou com a cabeça enfiada na lama da estrada...

Então Pinóquio começou a correr para chegar à casa da


Fada antes que escurecesse. Porém, ao longo da estrada,
não podendo mais controlar as pontadas terríveis da fome,
entrou em um campo com a intenção de colher alguns
cachos de uva. Não devia nunca ter feito isso! Logo que
chegou debaixo da parreira, ouviu:
– Crac...
E sentiu as pernas apertadas por dois ferros cortantes,
que o fizeram ver quantas estrelas existem no céu.
O pobre boneco tinha ficado preso em uma armadilha
posta por camponeses para agarrar o bando das Fuinhas, o
terror de todas as galinhas da vizinhança.
21.
Pinóquio é preso por um camponês, que o obriga a fingir de cão de guarda em
um galinheiro

P
inóquio, como você pode imaginar, começou a chorar, a
gritar, a se lamentar, mas eram choros e gritarias
inúteis, pois ali em volta não havia casas, e na estrada não
passava vivalma.
Então anoiteceu.
Um pouco pela dor causada pela armadilha que lhe
apertava os tornozelos, um pouco pelo medo de ficar
sozinho e no escuro no meio daquele campo, o boneco já ia
desmaiar quando, vendo passar um vaga-lume sobre sua
cabeça, chamou-o e disse:
– Oi, Vaga-Lume, faria a caridade de me libertar desse
suplício?
– Pobre filhote! Como foi ficar com as pernas agarradas
entre esses ferros afiados? – perguntou o Vaga-Lume,
parando e olhando-o com pena.
– Entrei no campo para colher dois cachos dessa uva
moscatel, e...
– Mas a uva é sua?
– Não, não é...
– E quem ensinou você a pegar as coisas dos outros?
– Estou com fome...
– A fome, meu menino, não é uma boa razão para pegar
as coisas que não são nossas...
– É verdade, é verdade! Mas de outra vez não farei mais
isso – gritou Pinóquio chorando.
Nesse momento, a conversa foi interrompida por um
barulhinho de passos que se aproximavam. Era o dono do
campo, que vinha na ponta dos pés para ver se alguma das
Fuinhas, que durante a noite comiam suas galinhas, tinha
ficado presa na armadilha.
E sua surpresa foi enorme quando, tirando a lanterna do
bolso do paletó, percebeu que, em vez de uma das Fuinhas,
tinha ficado preso um menino.
– Ah, ladrãozinho! Então é você que leva embora as
galinhas? – disse o camponês, enraivecido.
– Eu não, eu não! Entrei neste campo somente para pegar
dois cachos de uva! – gritou Pinóquio, soluçando.
– Quem rouba uvas é bem capaz de roubar também
galinhas. Faça isso, que darei a você uma lição para não
esquecer por muito tempo. 

− Ah, ladrãozinho! Então é você que leva embora as galinhas?


E, aberta a armadilha, agarrou o boneco pela nuca e o
carregou até sua casa, como se levasse um carneirinho de
leite.
Chegando ao terreiro diante da casa, jogou-o na terra e,
pondo um pé em seu pescoço, disse:

− ...você pode dormir naquela casinhola de madeira...

– Já está tarde, e quero ir para a cama. Acertaremos


nossas contas amanhã. No entanto, como hoje morreu o cão
que fazia a guarda da noite para mim, você ocupará
imediatamente o lugar dele. Você será meu cão de guarda.
Dito e feito: enfiou no pescoço do boneco uma grossa
coleira cheia de pontas de metal e apertou-a de modo a não
poder ser tirada pela cabeça. A coleira estava amarrada a
uma longa corrente de ferro presa ao muro.
– Se começar a chover, você pode dormir naquela
casinhola de madeira, onde há ainda a palha que serviu de
cama durante quatro anos para o meu pobre cão. E se, por
azar, vierem os ladrões, lembre-se de ficar de orelha em pé
e de latir – disse o camponês.
Depois desse último aviso, o homem entrou em casa,
fechando a porta com muitos cadeados, e o pobre Pinóquio
ficou agachado no terreiro, mais morto que vivo por causa
do frio, da fome e do medo. E, de tanto em tanto tempo,
enfiando raivosamente as mãos na coleira que apertava sua
garganta, dizia chorando:
– Está bem! Está bem até demais! Fui bancar o
preguiçoso, o malandro... Fui dar atenção a maus
companheiros, e por isso a má sorte me persegue sempre.
Se tivesse sido um bom menino, como existem tantos, se
tivesse tido vontade de estudar e de trabalhar, se tivesse
ficado em casa com meu pobre pai, a esta hora não estaria
aqui, no meio de um campo, a servir de cão de guarda na
casa de um camponês. Oh, se pudesse nascer outra vez!
Mas agora é tarde, e preciso ter paciência!
Feito esse pequeno desabafo, que veio mesmo do
coração, entrou na casinhola e adormeceu.
22.
Pinóquio descobre os ladrões e, como recompensa por ter sido fiel, é posto em
liberdade

F
azia mais de duas horas que dormia gostosamente
quando, perto da meia-noite, foi acordado por um
sussurro e por um ti-ti-ti de vozinhas estranhas, que
pareciam vir do terreiro. Botando a ponta do nariz para fora
da entrada da casinhola, viu, reunidos em um pequeno
grupo, quatro bichos de pelo escuro que pareciam gatos.
Mas não eram gatos, eram fuinhas, animaizinhos carnívoros,
gulosíssimos de ovos e de franguinhos jovens. Uma das
Fuinhas, afastando-se das companheiras, foi até o buraco da
casinhola e disse baixinho:
– Boa noite, Melampo.
– Eu não me chamo Melampo – respondeu o boneco.
– Então quem é você?
– Eu sou Pinóquio.
– E o que faz aqui?
– Finjo que sou o cão de guarda.
– Onde está o Melampo? Onde está o velho cão que ficava
nessa casinhola?
– Morreu essa manhã.
– Morreu? Pobre animal! Era tão bom! Mas, pela sua cara,
você também me parece um cão educado.
– Peço desculpas, mas eu não sou um cão!
– E o que é?
– Eu sou um boneco.
– E finge ser cão de guarda?
– Infelizmente, para meu castigo!
– Bem, eu lhe proponho o mesmo combinado que tinha
com o falecido Melampo, e você ficará contente.
– E qual é esse combinado?
– Nós viremos uma noite por semana, como no passado,
para visitar este galinheiro, e levaremos embora oito
galinhas. Dessas galinhas, sete nós comeremos e uma
daremos a você, com a condição – está entendendo? – de
você fingir dormir e não ter nunca a ideia de latir e acordar o
camponês.
– E Melampo fazia isso mesmo? – perguntou Pinóquio.
– Fazia, sim, ele e nós sempre tivemos esse acordo. Então,
durma tranquilamente e esteja certo de que, antes de partir,
deixaremos na casinhola uma galinha bem depenada para o
seu café da manhã. Estamos entendidos?
– Entendidos até demais!... – respondeu Pinóquio, e
balançou a cabeça de modo ameaçador, como se estivesse
querendo dizer: – Daqui a pouco, veremos!...
Quando as quatro Fuinhas acreditaram ter acertado o
plano, foram direto ao galinheiro, que ficava bem próximo à
casinhola de cachorro, e, abrindo com fúria de dentes e
unhas a porteirinha de madeira, escorregaram para dentro,
uma depois da outra. Mas nem bem tinham acabado de
entrar, ouviram a porteirinha se fechar com enorme
violência.
Uma das fuinhas, afastando-se das companheiras, foi até o buraco da casinhola...

Quem tinha fechado a porteirinha era Pinóquio que, não


contente em fechá-la, ainda atravessou na frente dela, para
maior segurança, uma grande pedra, servindo de escora.
E então começou a latir e, latindo como se fosse mesmo
um cão de guarda, fazia, com voz grossa:
– Au-au-au-auuuu...
Com o latido, o camponês pulou da cama, pegou o fuzil e,
chegando à janela, perguntou:
– O que há de novo?
– Aqui estão os ladrões! – respondeu Pinóquio.
– Onde?
– No galinheiro.
– Estou descendo.
Em um piscar de olhos, o camponês desceu, entrou
correndo no galinheiro e, depois de ter agarrado e fechado
em um saco as quatro Fuinhas, disse, com verdadeira
alegria:
– Por fim, caíram nas minhas mãos! Poderia castigá-las,
mas não sou tão covarde! Vou me contentar, em vez disso,
em levá-las amanhã ao hoteleiro do lugarejo vizinho, que vai
despelá-las e cozinhá-las ao molho agridoce. É uma honra
que vocês não merecem, mas os homens generosos como
eu não ligam para coisinhas à toa!...
Depois, aproximando-se de Pinóquio, começou a lhe fazer
muitos carinhos e, entre outras coisas, perguntou:
– Como fez para descobrir o plano dessas quatro ladras? E
dizer que Melampo, o meu fiel Melampo, nunca percebeu
nada!...
O boneco poderia contar o que sabia, isto é, poderia
contar o combinado vergonhoso que existia entre Melampo e
as Fuinhas, mas, lembrando que o cão estava morto, pensou
depressa: – Para que acusar os mortos? Os mortos estão
mortos, e a melhor coisa que se pode fazer é deixá-los em
paz!
– Quando as Fuinhas chegaram ao terreiro, estava
acordado ou dormindo? – perguntou o camponês.
– Dormindo, mas as Fuinhas me acordaram com a
tagarelice delas, e uma veio até aqui na casinhola para me
dizer: “Se prometer não latir e não acordar o patrão, nós
daremos a você uma franguinha bem depenada!”.
Entendeu? Ter o atrevimento de fazer a mim uma proposta
dessas! Pois que saibam que eu sou um boneco, que posso
ter todos os defeitos desse mundo, mas nunca o de ser
amigo e parceiro de gente desonesta! – respondeu Pinóquio.
– Bravo menino! Por esses sentimentos, você tem minha
admiração, e para provar minha grande satisfação deixo
você livre desde já para voltar para casa – gritou o
camponês, batendo em seu ombro.
E tirou dele a coleira de cão.
23.
Pinóquio chora a morte da Bela Menina dos Cabelos Azuis, encontra Colombo,
que o leva até a beira do mar, e se joga na água para ajudar Gepeto

A
ssim que deixou de sentir o peso incômodo e
humilhante daquela coleira em volta do pescoço,
Pinóquio começou a correr pelos campos e não parou nem
um minuto enquanto não alcançou a estrada principal, que
devia levá-lo à casinha da Fada.
Chegando à estrada principal, virou-se para olhar a
planície abaixo e viu muitíssimo bem, a olho nu, o bosque
onde, por infelicidade, tinha encontrado a Raposa e o Gato.
Viu, acima das árvores, a copa do Grande Carvalho, no qual
tinha sido pendurado pelo pescoço. Mas, olha daqui, olha
dali, não conseguiu ver a casinha da Bela Menina dos
Cabelos Azuis.
Então teve uma espécie de triste pressentimento e,
correndo com toda a força que tinha nas pernas, chegou em
poucos minutos ao prado onde, um dia, tinha encontrado a
casinha branca. Porém ela não existia mais. Havia, em seu
lugar, uma pequena pedra de mármore, na qual se liam, em
letras maiúsculas, estas dolorosas palavras:
AQUI JAZ A MENINA DOS CABELOS AZUIS,MORTA DE
DOR POR TER SIDO ABANDONADA POR SEU
IRMÃOZINHO PINÓQUIO
Como ficou o boneco quando aquelas palavras
anunciaram o pior, deixo para você imaginar. Caiu de bruços
no chão e, cobrindo de mil beijos aquele túmulo de
mármore, teve um grande ataque de choro. Chorou toda a
noite e no dia seguinte, no início da manhã, chorava ainda,
embora não tivesse mais lágrimas nos olhos; e seus gritos e
seus lamentos, de cortar o coração, eram tão agudos, que
todas as colinas em volta repetiam seus ecos.
Chorando, Pinóquio dizia:
– Ó Fadinha minha, por que está morta? Por que, em vez
de você, não estou morto eu, que sou tão mau, enquanto
você era tão boa? E meu pai, onde estará? Ó Fadinha minha,
diga-me onde posso encontrá-lo, quero estar sempre com
ele, não vou deixá-lo nunca mais! Nunca mais! Nunca mais!
Ó Fadinha minha, diga que não é verdade que está morta!
Se me quer bem de verdade... se quer bem ao seu
irmãozinho, reviva... fique viva como antes! Não se
incomoda de me ver sozinho, abandonado por todos? Se
chegarem os assassinos, me amarrarão de novo ao galho da
árvore... e então morrerei para sempre. O que quer que eu
faça sozinho neste mundo? Agora que perdi você e meu pai,
quem me dará o que comer? Onde dormirei à noite? Quem
me fará uma jaquetinha nova? Oh! Seria melhor, cem vezes
melhor, que eu também morresse! Sim, quero morrer! Ai!
Ai! Ai!
− Ó Fadinha minha, por que está morta?

Enquanto se desesperava assim, o boneco tentou


arrancar os cabelos, mas seus cabelos, sendo de madeira,
nem ao menos podiam lhe dar o gosto de ficar entre os
dedos.
Nesse momento, passou voando um grande pombo,
Colombo, que freou e gritou na maior altura:
– Diga, menino, o que faz aí embaixo?
– Não está vendo? Choro! – disse Pinóquio, erguendo a
cabeça para aquela voz, e esfregando os olhos com a
manga da jaqueta.
– Por acaso você conhece, entre seus colegas, um boneco
chamado Pinóquio? – acrescentou Colombo.
– Pinóquio? Disse Pinóquio? Pinóquio sou eu! – repetiu o
boneco, ficando em pé depressa.
Ouvindo a resposta, Colombo desceu na maior velocidade
e pousou. Era maior que um peru.
– Portanto, conhece Gepeto também? – perguntou.
– Se o conheço! É meu pobre pai! Por acaso ele falou de
mim? Me leva até ele? Mas sabe se ainda está vivo?
Responda, por caridade, ainda está vivo?
– Deixei-o na beira do mar faz três dias.
– O que ele estava fazendo?
– Fabricava uma pequena barquinha, para atravessar o
oceano. Tem mais de quatro meses que aquele pobre
homem anda pelo mundo procurando por você, e, não o
encontrando nunca, pôs na cabeça que vai procurar nos
países distantes do Novo Mundo.****
– A que distância fica a praia? – perguntou Pinóquio, com
afeto e ansiedade.
– A mais de mil quilômetros daqui.
– Mil quilômetros? Ó Colombo, que coisa boa se eu
pudesse ter asas!
– Se quer vir comigo, eu levo você.
– Como?
– A cavalo, na minha garupa. É muito pesado?
– Pesado? Ao contrário! Sou leve como uma folha.
E, sem dizer mais nada, Pinóquio pulou na garupa de
Colombo e, pondo uma perna de cada lado, como fazem os
cavaleiros, gritou, todo contente:
– Galope, galope, cavalinho, tenho pressa de chegar logo!
Colombo decolou, e em poucos minutos voava tão alto
que quase encostava nas nuvens. Chegando àquela altura
extraordinária, o boneco teve a curiosidade de olhar para
baixo, e ficou com tanto medo e com tanta tonteira que,
para não cair, agarrou com força, bem apertado, o pescoço
de sua cavalgadura emplumada.
Agarrou com força, bem apertado,
o pescoço de sua cavalgadura emplumada.

Voaram o dia todo. No início da noite, Colombo disse:


– Estou com muita sede!
– E eu, com muita fome! – acrescentou Pinóquio.
– Vamos parar nesse pombal por alguns minutos e depois
continuamos a viagem, para estarmos amanhã de manhã
na beira do mar.
Entraram em um pombal deserto, onde havia somente
uma bacia cheia de água e um cesto cheio de ervilhas.
O boneco, em seu pouco tempo de vida, nunca tinha
suportado ervilhas, davam-lhe enjoo, reviravam seu
estômago, mas naquela tarde comeu deliciado, e quando
tinham quase acabado, virou-se para Colombo:
– Nunca teria acreditado que ervilhas fossem tão boas!
– Meu menino, precisa se convencer de que, quando a
fome fala mais alto e não há nada para comer, até as
ervilhas ficam deliciosas! Com a fome, não há capricho nem
gula! – replicou Colombo.
Terminado rapidinho o pequeno lanche, retomaram a
viagem, e na manhã seguinte chegaram à beira do mar.
Colombo pousou Pinóquio no chão e, não querendo o
incômodo de ouvir agradecimentos por ter feito uma boa
ação, logo levantou voo e desapareceu.
A praia estava cheia de gente que gritava e gesticulava,
olhando para o mar.
– O que aconteceu? – perguntou Pinóquio a uma velhinha.
– Aconteceu que um pobre pai, tendo perdido o filho, quis
entrar em uma barquinha para ir procurá-lo do outro lado do
mar, mas o mar hoje está muito bravo, e a barquinha está
quase afundando...
– Onde está a barquinha?
– Lá longe, na direção do meu dedo – disse a velha,
indicando uma pequena barca que, daquela distância,
parecia uma casca de noz com um homenzinho bem
pequeno dentro.
Depois de olhar atentamente, Pinóquio soltou um berro:
– É meu pai! É meu pai!
Entretanto, a barquinha, batida pela fúria das ondas, ora
desaparecia entre as grandes ondas, ora aparecia flutuando,
e Pinóquio, em pé na ponta de um alto rochedo, não parava
de chamar o pai pelo nome e de fazer sinais com as mãos,
com o lencinho de nariz e, por fim, com o chapéu.
E parece que Gepeto, embora estivesse muito longe da
praia, reconheceu o filho, pois também levantou o chapéu e
o saudou; depois, com gestos, deu a entender que, se
pudesse, voltaria atrás, mas o mar estava tão bravo, que o
impedia de remar e de se aproximar da terra.

Pinóquio não parava mais de chamar o pai pelo nome...


Muito de repente, veio uma terrível onda e a barca
desapareceu. Esperaram que voltasse à tona, mas isso não
aconteceu.
– Pobre homem! – disseram os pescadores reunidos na
praia, e, murmurando em voz baixa uma oração,
começaram a voltar para suas casas.
Nisso, ouviram um uivo desesperado e, virando-se, viram
que um menino, de cima de um rochedo, se jogava ao mar,
gritando:
– Vou salvar meu pai!
Pinóquio, sendo feito de madeira, flutuava facilmente e
nadava como um peixe. Ora desaparecia debaixo d’água,
levado pelo impulso das ondas, ora reaparecia, uma perna
ou um braço, a enorme distância da terra. Por fim o
perderam de vista.
24.
Pinóquio chega à Ilha das Abelhas Trabalhadoras e reencontra a Fada

A
nimado pela esperança de chegar a tempo de ajudar o
pai, Pinóquio nadou a noite toda.
E que noite horrível, aquela! Foi um dilúvio: choveu
granizo, trovejou assustadoramente e com tantos
relâmpagos que parecia dia.
No início da manhã, o boneco conseguiu ver, a pouca
distância, uma longa faixa de terra. Era uma ilha no meio do
mar.
Fez de tudo para chegar àquela praia, mas foi inútil. As
ondas, perseguindo-se e encavalando-se, o embolavam
entre elas, como se fosse um galho ou um fio de palha. Por
fim, e por sorte, veio uma onda tão forte e poderosa, que o
atirou de uma vez na areia da praia. O golpe foi tão forte
que, batendo no chão, todas as costelas e todas as juntas
de Pinóquio estalaram, mas ele logo se consolou, dizendo:
– Mais uma vez, escapei de boa!
Pouco a pouco, o céu se acalmou, o sol apareceu em todo
o seu brilho, e o mar ficou muito tranquilo, liso como um
lago.
Então o boneco estendeu suas roupas ao sol, para
enxugá-las, e começou a olhar por todos os lados para ver
se avistava, naquela imensa superfície de água, uma
barquinha com um homenzinho dentro. Entretanto, depois
de ter olhado com muita atenção, não viu nada a não ser
céu, mar e alguma vela de navio, mas longe, tão longe, que
parecia uma mosca.
– Se eu soubesse ao menos como se chama esta ilha! Se
soubesse ao menos se ela é habitada por gente de bem,
quero dizer, por gente que não tenha mania de pendurar
meninos em galhos de árvores! Mas a quem posso
perguntar? A quem, se não há ninguém?... – dizia.
A ideia de estar só, só, só no meio daquele grande lugar
desabitado lhe deu tanta tristeza, que estava quase
chorando quando viu passar, pertinho da margem, um
grande peixe que nadava tranquilamente, na dele, com a
cabeça fora d’água.
Não sabendo seu nome, o boneco gritou bem alto, para
que ele não deixasse de ouvir:
– Ei, Senhor Peixe, me permite uma palavrinha?
– Até duas – respondeu o peixe, que era um golfinho
muito educado, como poucos que se pode encontrar em
todos os mares do mundo.
– Faria o favor de me dizer se nesta ilha há lugares onde
se possa comer, sem perigo de ser comido?
– Com certeza! Encontrará um, um pouco longe daqui –
respondeu o Golfinho.
– E que caminho eu pego para ir lá?
– Deve pegar aquela estradinha ali, à esquerda, e
caminhar sempre seguindo seu nariz. Não pode errar.
– Diga-me outra coisa. Você, que passeia todo o dia e
toda a noite pelo mar, não teria encontrado, por acaso, uma
barquinha com meu pai dentro?
– E quem é seu pai?
– Ele é o melhor pai do mundo, como eu sou o pior filho
que possa existir.
– Com a tempestade que caiu esta noite, a barquinha
deve ter ido para o fundo – respondeu o Golfinho.
– E meu pai?
– A esta hora pode ter sido engolido pelo terrível Peixe-
Cão,***** que há alguns dias veio espalhar a morte e a
desolação nas nossas águas.
– É muito grande, esse Peixe-Cão? – perguntou Pinóquio,
que já começava a tremer de medo.
− Até mais ver, Senhor Peixe, desculpe tanto incômodo, e mil agradecimentos
pela sua gentileza.

– Se é grande?!... Para você ter uma ideia, eu diria que é


maior que um prédio de cinco andares e tem uma bocarra
tão larga e profunda que nela passaria, comodamente, todo
o trem da estrada de ferro, com locomotiva e tudo – replicou
o Golfinho.
– Minha mãe! – gritou espantado o boneco e, tomado de
pressa e de raiva, disse:
– Até mais ver, Senhor Peixe, desculpe tanto incômodo, e
mil agradecimentos pela sua gentileza.
O boneco pegou logo a estradinha e começou a caminhar
bem rápido. Tão rápido que parecia correr. E a cada
barulhinho que ouvia, virava-se para trás, com medo de
estar sendo perseguido por aquele terrível Peixe-Cão,
grande como um prédio de cinco andares e com um trem da
estrada de ferro na boca.
Depois de caminhar por mais de meia hora, chegou a um
lugarejo chamado País das Abelhas Trabalhadoras. As ruas
formigavam de criaturas que corriam daqui e dali em suas
tarefas. Todas trabalhavam, todas tinham alguma coisa para
fazer. Não era possível encontrar, nem mesmo com uma
lanterna, alguma delas zanzando, desocupada.
– Este lugar não é feito para mim! Eu não nasci para
trabalhar! – disse logo o preguiçoso do Pinóquio.
Entretanto, a fome o atormentava, pois já fazia vinte e
quatro horas que tinha comido alguma coisa, e depois mais
nada, nem ao menos uma pratada de ervilhas.
O que fazer?
Só lhe restavam dois jeitos para matar a fome: ou
procurar algum trabalho ou pedir, de esmola, algum
dinheiro ou um bocado de pão.
Tinha vergonha de pedir esmola, pois seu pai sempre lhe
disse que só os velhos e os doentes têm o direito de fazer
isso. Os verdadeiros pobres, merecedores de assistência e
de compaixão, são os que, por causa da idade ou de
doença, não conseguem ganhar o pão com o trabalho das
próprias mãos. Todos os outros têm a obrigação de
trabalhar, e, se não trabalham e passam fome, pior para
eles.
Naquele meio-tempo, passou pela rua um homem todo
suado e ofegante que puxava sozinho, com grande esforço,
duas carretas carregadas de carvão.
Pinóquio, julgando ser um bom homem, pelo jeito dele,
chegou perto e, baixando os olhos de vergonha, disse em
voz baixa:
– Faria a caridade de me dar uma moeda, pois estou
morrendo de fome?
– Não só uma, mas até quatro, desde que você me ajude
a puxar até em casa essas duas carretas de carvão –
respondeu o carvoeiro.
– Epa! Essa não! – respondeu o boneco, ofendido. – Fique
sabendo que eu nunca me fiz de burro de carga, nunca
puxei uma carroça.
– Melhor para você! Então, meu menino, se está mesmo
morrendo de fome, coma duas belas fatias de seu orgulho, e
cuidado para não ter uma indigestão  – respondeu o
carvoeiro.
Poucos minutos depois, passou pela rua um pedreiro
levando nos ombros uma lata de cal.
– Cavalheiro, faria a caridade de dar uma moeda a um
pobre menino que está morrendo de fome?
– De boa vontade. Venha comigo levar a cal, e em vez de
uma moeda, lhe darei cinco – respondeu o pedreiro.
– Mas a cal é pesada, e eu não quero trabalhar duro –
replicou Pinóquio.

− Faria a caridade de me dar uma moeda, pois estou morrendo de fome?

– Se não quer trabalhar duro, então, meu menino, divirta-


se com sua fome, e boa sorte.
Em menos de meia hora passaram outras vinte pessoas,
e a todas Pinóquio pediu alguma esmola, mas todas lhe
responderam:
– Não se envergonha? Em vez de bancar o preguiçoso
pela rua, trate de procurar algum trabalho, aprenda a
ganhar o pão!
Finalmente passou uma boa moça que carregava dois
jarros de água.
– Permita, boa moça, que eu beba um gole de água do
seu jarro? – pediu Pinóquio, seco de sede.
– Pois beba, meu menino! – disse a moça, pousando os
dois jarros no chão.
Quando terminou de beber como uma esponja, Pinóquio
murmurou em voz baixa, enxugando a boca:
– Já que me matou a sede, talvez pudesse matar minha
fome!...
A boa moça, ouvindo essas palavras, disse:
– Se me ajudar a levar para casa um desses jarros de
água, lhe darei um belo pedaço de pão. 
Pinóquio olhou o jarro e não respondeu nem sim nem não.
– E, junto com o pão, lhe darei um belo prato de couve-
flor temperada com azeite e vinagre – acrescentou a moça.
Pinóquio deu outra olhada no jarro e não respondeu nem
sim nem não.
– E, depois da couve-flor, lhe darei um belo bombom
recheado de licor.
Atraído por essas últimas guloseimas, Pinóquio não pôde
mais resistir e, tomando uma firme decisão, disse:
– Paciência! Levarei o jarro até sua casa!
O jarro era muito pesado, e o boneco, não tendo força
para levá-lo nas mãos, teve de levá-lo na cabeça.
Chegando em casa, a moça fez Pinóquio sentar-se diante
de uma pequena mesa posta e lhe serviu o pão, a couve-flor
temperada e o bombom.
Pinóquio não comeu: devorou. Seu estômago parecia um
bairro inteiro vazio e desabitado por cinco meses.
Aos poucos, acalmadas as mordidas
raivosas da fome, o boneco ergueu a
cabeça para agradecer à sua
benfeitora, mas não tinha ainda
acabado de olhar aquele rosto quando
soltou uma longa exclamação de
surpresa:
– Ohhh! – e ficou encantado, com os
olhos arregalados, o garfo no ar e a
boca cheia de pão e de couve-flor.
– O que é toda essa surpresa, agora?
– disse, rindo, a boa moça.
– É que... É que... É que... que você parece... você me
lembra... sim, sim, sim, a mesma voz... os mesmos olhos...
os mesmos cabelos... sim, sim, sim... você também tem os
cabelos azuis... como ela! Ó Fadinha minha!... Ó Fadinha
minha!... Diga-me que é você, que é mesmo você!... Não
me faça mais chorar! Se soubesse! Chorei tanto, sofri
tanto!... – respondeu Pinóquio, gaguejando.
Pinóquio chorava sem parar e, jogando-se de joelhos no
chão, abraçava as pernas da moça misteriosa.
25.
Pinóquio promete à Fada ser bom e estudar, pois está cansado de ser um
boneco e quer virar um menino de bem

D
e início, a moça começou a dizer que não era a
pequena Fada dos Cabelos Azuis, mas depois, vendo-se
desmascarada e não querendo levar mais longe aquela
comédia, acabou por concordar e disse a Pinóquio:
– Boneco malvado! Como você percebeu que era eu?!
– Foi o grande bem que lhe quero que me contou.
– Lembra, não é? Quando você partiu eu era menina,
agora sou uma moça, tanto que quase poderia ser sua mãe.
– E eu gostei muito, pois assim, em vez de irmãzinha,
chamarei você de mãe. Faz tanto tempo que desejo ter uma
mãe, como todas as outras crianças! Mas como fez para
crescer tão depressa?
– É segredo.
– Ensine-me como, pois eu gostaria de crescer um pouco
também. Não vê? Fiquei sempre da mesma altura.
– Mas você não pode crescer – replicou a Fada.
– Por quê?
– Porque os bonecos não crescem nunca. Nascem
bonecos, vivem bonecos e morrem bonecos.
– Oh! Estou cansado de ser sempre um boneco! Já é hora
de me tornar também um homem... – gritou Pinóquio, dando
um tapa em si mesmo.
– E poderia se tornar, se fizesse por merecer...
– Verdade? E o que devo fazer para merecer?
– Uma coisa facílima: aprender a ser um bom menino.
– E por acaso eu não sou?
– Ao contrário! As crianças boas são obedientes, e você,
em vez disso...
– ...não obedeço nunca.
– As crianças boas tomam amor pelo estudo e pelo
trabalho, e você...
– E eu, em vez disso, banco o preguiçoso e o vagabundo o
ano todo.
– As crianças boas dizem sempre a verdade...
– E eu, sempre mentiras.
– Os bons meninos vão contentes à escola...
– E a mim, a escola dá dor de barriga... Mas de hoje em
diante quero mudar de vida.
– Promete?
– Prometo. Quero virar um bom menino e quero ser a
alegria do meu pai... Onde estará o meu pobre pai, a esta
hora?
– Não sei.
– Terei ainda a sorte de poder revê-lo e abraçá-lo?
– Creio que sim; mais ainda: tenho certeza.
Ao ouvir isso, foi tão grande o contentamento de
Pinóquio, que ele pegou as mãos da Fada e começou a
beijá-las com tanto entusiasmo, que parecia fora de si.
De repente, erguendo o rosto e olhando-a amorosamente,
perguntou:
– Diga, mãezinha, então você não está mesmo morta?
– Claro que não – respondeu a Fada Sorrindo.
– Se você soubesse que dor e que aperto na garganta eu
senti quando li:
AQUI JAZ...
– Eu sei, e é por isso que o perdoei. A sinceridade de sua
dor me fez saber que você tem um coração bom. E dos
meninos bons de coração, ainda que sejam um pouco
moleques e se comportem mal, há sempre algo a esperar.
Ou seja, sempre se pode esperar que entrem no caminho da
verdade. Por isso vim até aqui para procurá-lo. Eu serei a
sua mãe...

− Diga, mãezinha, então você não está mesmo morta?


– Oh, que coisa boa! – gritou Pinóquio, pulando de alegria.
– Você me obedecerá e fará sempre aquilo que eu disser.
– De boa vontade, com prazer, com muito gosto!
– Então, você começará indo à escola amanhã –
acrescentou a Fada.
Pinóquio ficou um pouco menos alegre.
– Então escolherá, a seu gosto, uma arte ou um ofício...
Pinóquio ficou sério.
– O que resmungou entre os dentes? – perguntou a Fada,
magoada.
– Dizia... que agora me parece um pouco tarde para ir à
escola... – gemeu o boneco em voz baixa.
– Não, senhor. Ponha na cabeça que, para se instruir e
aprender, nunca é tarde.
– Mas eu não quero fazer nem artes nem ofícios...
– Por quê?
– Porque trabalhar parece cansar.
– Menino, aqueles que dizem isso acabam quase sempre
na prisão ou no hospital. Fique sabendo que qualquer
homem, nascendo rico ou pobre, é obrigado a fazer alguma
coisa neste mundo, a se ocupar, a trabalhar. Não se deixe
prender pelo ócio! O ócio é uma doença gravíssima, e
precisamos curá-la logo, desde crianças, senão, quando
grandes, não nos curamos mais – disse a Fada.
Essas palavras tocaram o coração de Pinóquio, que,
levantando alegremente a cabeça, disse à Fada:
– Eu estudarei, eu trabalharei, eu farei tudo aquilo que me
disser, pois, afinal, a vida de boneco me deu tédio, e quero
virar um menino a qualquer preço. Você me prometeu, não
é verdade?
– Prometi, e agora depende de você.
26.
Pinóquio vai com colegas de escola até a beira do mar para ver o terrível Peixe-
Cão

N
o dia seguinte, Pinóquio foi à escola pública.
Imagine aqueles meninos maldosos quando viram um
boneco entrar na escola! Foi uma risada só, que não
acabava mais. Era uma brincadeira atrás da outra: um
tirava o chapéu de sua mão, outro puxava sua jaqueta para
trás, um terceiro tentava fazer, com tinta, dois grandes
bigodes debaixo de seu nariz, e outro, ainda, queria amarrar
fios aos pés e às mãos para fazê-lo dançar.
Por um tempo Pinóquio foi esperto e escapou, mas,
sentindo sua paciência acabar, se revoltou contra aqueles
que mais o incomodavam e disse-lhes, de cara feia:
– Cuidado, meninos! Eu não vim aqui para ser o palhaço
de vocês. Eu respeito os outros e quero ser respeitado.
– Bravo, diabrete! Falou como em um livro ilustrado! –
gritaram os moleques, dando loucas risadas; e um deles,
mais impertinente que os outros, estendeu a mão para
pegar o boneco pela ponta do nariz.
Mas não deu tempo, pois Pinóquio esticou a perna
debaixo da mesa e deu um chute nas canelas dele.
– Ai! Que pés duros! – gritou o menino, esfregando o
machucado.
– E os cotovelos!... Ainda mais duros que os pés! – disse
outro que, por suas piadas grosseiras, tinha ganhado uma
cotovelada no estômago.
O fato é que, depois daquele chute e daquela cotovelada,
Pinóquio ganhou logo a estima e a simpatia de todos os
meninos da escola, que passaram a gostar dele de coração
e a lhe fazer mil carinhos.
Até o professor o elogiava, pois o via atento, estudioso,
inteligente, sempre o primeiro a entrar na escola, sempre o
último a se levantar quando a aula acabava.
O único problema que tinha era o de se dar bem com
todos os colegas, sem exceção, e entre eles havia muitos
moleques conhecidíssimos pela pouca vontade de estudar e
ser corretos.

Até o professor o elogiava, pois o via atento, estudioso, inteligente...

O professor o advertia todos os dias, e até a Fada não se


cansava de dizer e de repetir muitas vezes:
– Cuidado, Pinóquio! As más companhias da escola
acabarão, cedo ou tarde, por fazê-lo perder o amor pelo
estudo e, quem sabe, por jogá-lo em alguma grande
desgraça.
– Não há perigo! – respondia o boneco, sacudindo os
ombros e tocando a testa com o dedo, como quem diz: – Há
muito juízo aqui dentro!
Mas aconteceu que, um belo dia, enquanto caminhava
para a escola, o boneco encontrou o bando de colegas de
sempre, que, quando o viram, foram logo dizendo:
– Sabe da grande novidade?
– Não.
– É que no mar aqui perto chegou um Peixe-Cão grande
como uma montanha.
– É verdade?! Será o mesmo Peixe-Cão de quando meu
pai se afogou?!
– Nós vamos à praia para ver. Quer vir também?
– Eu não, vou à escola.
– Que importa a escola? À escola, vamos amanhã. Uma
aula a mais, uma aula a menos, seremos sempre os
mesmos burros.
– E o que dirá o professor?
– Deixa o professor falar. É pago para reclamar todos os
dias mesmo...
– E minha mãe?
– As mães não sabem de nada! – responderam os
malandros.
– Sabem o que vou fazer? Quero ver o Peixe-Cão por
alguns motivos meus... Mas vou depois da escola – disse
Pinóquio.
– Pobre ingênuo! Acredita que um Peixe-Cão daquele
tamanho vai ficar ali por sua conta? Logo que enjoar, toma
rumo para outro lugar, e então quem viu, viu, quem não viu,
que visse – rebateu um do bando.
...o bando de moleques, com os livros e cadernos
debaixo dos braços, saiu correndo pelo campo...

– Quanto tempo leva daqui até a praia? – perguntou o


boneco.
– Em uma hora vamos e voltamos numa boa.
– Então, vamos! E quem correr mais é o campeão! –
gritou Pinóquio.
Dado o sinal da partida, o bando de moleques, com os
livros e cadernos debaixo dos braços, saiu correndo pelo
campo, e Pinóquio estava sempre na frente de todos,
parecia ter asas nos pés.
De vez em quando, virando-se para trás, caçoava dos
colegas, que vinham a uma boa distância, e ria muito ao ver
que estavam ofegantes, bufando, empoeirados e com um
tanto de língua para fora. O infeliz, naquele momento, não
sabia com que medos nem com que horrível desgraça ainda
iria se deparar.
27.
Em uma grande luta entre Pinóquio e os colegas, um deles fica ferido, e Pinóquio
é preso pelos guardas

C
hegando à praia, Pinóquio deu uma bela espiada no
mar, mas não viu nenhum Peixe-Cão. O mar estava liso
como um grande espelho de cristal.
– Onde está o Peixe-Cão? – perguntou, virando-se para os
colegas.
– Deve ter ido tomar café – respondeu um deles, rindo.
– Ou se jogou na cama para tirar uma soneca –
acrescentou outro, rindo mais ainda.
Por aquelas respostas inconsequentes e aquelas
gargalhadas tolas, Pinóquio entendeu que os colegas
tinham feito uma grande brincadeira com ele, dando a
entender uma coisa que não era verdade. E levando aquilo
a mal, disse, com raiva:
– E então? Que motivo tinham para inventar a história do
Peixe-Cão?
– Um bom motivo! – responderam em coro os moleques.
– E qual seria?
– Fazer você matar aula e vir conosco. Não tem vergonha
de se mostrar o tempo todo tão correto e dedicado nas
aulas? Não tem vergonha de estudar tanto como faz?
– Se eu estudo, o que isso importa a vocês?
– Importa muitíssimo, pois prejudica nossa imagem com o
professor...
– Por quê?
– Porque os alunos que brilham sempre ofuscam aqueles
que, como nós, não têm vontade de estudar. E nós não
queremos ser ofuscados! Nós também temos amor
próprio!...
– E o que devo fazer para alegrá-los?
– Deve ficar com raiva da escola, das aulas e do
professor, que são os nossos três grandes inimigos.
– E se eu quiser continuar a estudar?
– Nós não olharemos mais na sua cara, e na primeira
ocasião você pagará por isso.
– Vocês me fazem rir – disse o boneco com uma sacudida
de cabeça.
– Ei, Pinóquio! Não venha bancar o valentão, não venha
bancar o galo de briga! Pois, se não tem medo de nós, nós
muito menos temos medo de você! Lembre-se de que você
é um só, e nós somos sete – gritou o maior daqueles
meninos, encarando-o.
– Sete como os pecados capitais – disse Pinóquio com
uma grande risada.
– Ouviram? Insultou a todos nós! Disse que somos
pecados capitais!...
– Pinóquio! Peça desculpa pela ofensa... senão, ai de
você!
– Cuco! – fez o boneco, batendo o indicador na ponta do
nariz, zoando.
– Pinóquio! Vai acabar mal!
– Cuco!
– Zurrará como um burro!
– Cuco!
– Voltará para casa com o nariz quebrado!
– Cuco!
– Agora quem vai lhe dar o Cuco sou eu! Pegue esse
pagamento e sirva no jantar desta noite – gritou o mais
atrevido dos moleques, antes de dar um soco na cabeça de
Pinóquio.
Mas foi, como se costuma dizer, vapt-vupt, pois o boneco,
conforme era de se esperar, respondeu logo com outro soco
– e aí, de um momento para o outro, a luta ficou geral e
violenta.
Pinóquio, embora estivesse sozinho, se defendia como um
herói. Com aqueles pés de madeira duríssimos, lutava tão
bem, que mantinha os inimigos sempre a uma respeitosa
distância. Onde seus pés conseguiam alcançar e bater,
deixavam sempre uma marca de lembrança.
Então os meninos, envergonhados por não poderem
medir forças no corpo a corpo com o boneco, pensaram logo
em puxar suas armas: pegaram os livros de escola e
começaram a atirar contra ele os dicionários, as gramáticas,
os compêndios de aritmética, de geografia, de história, de
ciências e outros livros escolares; mas o boneco, que tinha
olho rápido e malicioso, desviava a tempo, de modo que os
livros, passando sobre sua cabeça, iam todos cair no mar.
Imagine os peixes! Os peixes, acreditando que aqueles
livros fossem coisas de comer, corriam em massa à
superfície, mas, depois de abocanharem alguma página ou
alguma capa, cuspiam logo, fazendo careta, torcendo a
boca, como se dissessem:
– Isso não é bom para nós, estamos acostumados a comer
muito melhor!
Entretanto, a luta crescia, e eis que um grande
Caranguejo, saindo da água devagar e, devagar, subindo
em uma pedra, gritou, com um vozeirão de trombone
resfriado:
– Parem, moleques, vocês não são de nada! Essa guerra
de braço entre meninos raramente acaba bem. Acontece
sempre alguma desgraça!...
...e eis que um grande caranguejo, saindo da água...

Pobre Caranguejo! Foi o mesmo que falar com o vento. De


fato, o moleque do Pinóquio, virando-se para trás, de cara
feia, disse rudemente:
– Quieto, Caranguejo aborrecido! Faria melhor se
chupasse duas pastilhas de algas para curar essa dor de
garganta. Vá para a cama e procure suar!...
Naquele meio-tempo os meninos, que tinham acabado de
atirar todos os livros, viram, a pouca distância dali, a
pequena pilha de livros do boneco, e se apossaram deles
em um piscar de olhos.
Entre os livros, havia um volume grosso, encadernado
com capa dura, lombada e pontos de couro. Era o Tratado
de Aritmética. Deixo você imaginar se era muito pesado...
Um dos moleques agarrou aquele volume e, tomando
como mira a cabeça de Pinóquio, o jogou com toda a força
que tinha no braço, mas, em vez de acertar o alvo, acertou
a cabeça de um dos colegas, que ficou branco como um
pano alvejado e não disse mais do que estas palavras:
– Ó minha mãe... me ajude, estou morrendo!... – e caiu
estendido na areia da praia.
Em vista daquele desastre, os meninos, espantados,
fugiram a toda velocidade, e em poucos minutos não
podiam mais ser vistos.
Mas Pinóquio ficou ali e, embora, pela dor e pelo espanto,
ele também estivesse mais morto que vivo, ainda assim
correu para molhar seu lenço na água do mar e pôs-se a
banhar a testa do pobre colega. E chorando
exageradamente, o chamava pelo nome, desesperado,
dizendo:
– Eugênio! Pobre Eugênio! Abra os olhos e olhe para mim!
Por que não responde? Não fui eu, sabe, que fez tanto mal a
você! Acredite, não fui eu! Abra os olhos, Eugênio! Se ficar
com os olhos fechados, vou morrer também... Ó meu Deus!
Como farei agora para voltar para casa? Com que coragem
poderei encarar minha mãe? O que será de mim? Para onde
fugir? Onde vou me esconder? Oh, como seria melhor, mil
vezes melhor que tivesse ido à escola! Por que dei atenção
àqueles colegas, que são a minha condenação? E o
professor havia me dito! E minha mãe havia repetido: “Fuja
das más companhias!”. Mas eu sou um teimoso... não me
corrijo... escuto todos eles e então faço sempre do meu
modo! E depois sou eu que pago por tudo. Por isso, desde
que estou no mundo, nunca tive quinze minutos de sossego.
Meu Deus! O que será de mim? O que será de mim? O que
será de mim?
Pinóquio continuava a chorar, a gritar, a dar com os
punhos na cabeça e a chamar o pobre Eugênio, quando
ouviu um barulho surdo de passos que se aproximavam.
Virou-se: eram dois guardas.
– O que faz assim, deitado no chão? – perguntaram a
Pinóquio.
– Cuido desse meu colega de escola.
– Ele passou mal?
– Sim!
– Mais que mal: esse menino foi ferido na testa, quem o
feriu?! – disse um dos guardas, inclinando-se e observando
Eugênio de perto.
– Não fui eu! – gaguejou o boneco, que não tinha mais
fôlego.
– Se não foi você, quem foi então?
– Eu, não! – repetiu Pinóquio.
– E com o que ele foi ferido?
– Com este livro – e o boneco apanhou do chão o Tratado
de Aritmética, encadernado com capa dura e couro, para
mostrar ao guarda.
– E esse livro de quem é?
– Meu.
– Basta, foi você mesmo. Levante-se logo e venha
conosco.
– Mas eu...
– Venha conosco!
– Mas eu sou inocente...
– Venha conosco!
Antes de partir, os guardas chamaram alguns pescadores,
que naquele momento passavam de barco exatamente em
frente a eles, e disseram:
– Confiamos a vocês esse menino ferido na cabeça.
Levem-no e cuidem dele. Amanhã voltaremos para vê-lo.
Então se viraram para Pinóquio, puseram-no entre eles
dois e o intimaram, com um comando militar:
– Em frente! Marche! Depressa, senão, pior para você!
Sem esperar que repetissem, o boneco começou a
caminhar pela estradinha que conduzia ao lugarejo. O pobre
coitado não sabia mais nem em que mundo estava. Parecia
sonhar, e que sonho ruim! Estava fora de si. Seus olhos
viam tudo duplo, as pernas tremiam, a língua colara no céu
da boca, e ele não podia mais dizer uma só palavra. Ainda
assim, em meio àquela espécie de estupidez e de torpor,
um espinho agudíssimo perfurava seu coração: o
pensamento de que iria passar debaixo das janelas da casa
da Fada no meio daqueles guardas. Teria preferido morrer.
Então se viraram para Pinóquio, puseram-no entre eles dois...

Estavam para entrar no lugarejo quando um sopro


devastador de vento tirou o chapéu da cabeça de Pinóquio,
levando-o a uma boa distância.
– Permitam que eu vá buscar meu chapéu? – disse o
boneco aos guardas.
– Vá, então, mas vá bem rápido.
O boneco foi, pegou o chapéu... mas, em vez de na
cabeça, colocou-o entre os dentes e começou a correr a
toda velocidade para a beira do mar. Ia como uma bala de
fuzil.
Os guardas, julgando difícil alcançá-lo, lançaram atrás
dele um grande cão mastim, que tinha recebido o primeiro
prêmio em todas as corridas de cães. Pinóquio corria, e o
animal corria mais que ele, por isso todas as pessoas
chegavam à janela e se ajuntavam no meio da rua, ansiosas
para verem o fim de um páreo tão duro. Mas não puderam
satisfazer essa vontade, pois o cão e Pinóquio levantaram,
ao longo da estrada, um tal poeirão que, em poucos
minutos, não era possível ver mais nada.
28.
Pinóquio corre o risco de ser frito na frigideira feito um peixe

D
urante aquela corrida desesperada, houve um
momento terrível, o momento em que Pinóquio
acreditou estar perdido, pois Heliodoro (era esse o nome do
cão mastim), na fúria de correr e correr, quase o tinha
alcançado.

...o boneco ouvia atrás de si, à distância de um palmo, o arfar ofegante daquela
fera...

Basta dizer que o boneco ouvia atrás de si, a distância de


um palmo, o arfar ofegante daquela fera, e sentia até o bafo
quente de sua respiração.
Por sorte, a praia estava próxima, e o mar, a poucos
passos.
Logo que chegou à praia, o boneco deu um belíssimo
salto, como teria feito uma rã, e foi cair na água. Heliodoro,
por sua vez, queria parar, mas, levado pelo impulso da
corrida, acabou entrando também no mar. E o infeliz não
sabia nadar, motivo pelo qual começou logo a bater as
patas para manter-se à tona, mas, quanto mais batia, mais
sua cabeça afundava.
Quando voltou a pôr a cabeça para fora, o pobre cão
tinha os olhos apavorados, arregalados, e latia:
– Estou afogando! Estou afogando!
– Morra! – respondeu Pinóquio, que já se via livre do
perigo.
– Ajude-me, meu Pinóquio!... Salve-me da morte!... 
Àqueles gritos comoventes, o boneco, que no fundo tinha
um excelente coração, se encheu de compaixão e disse:
– Mas, se eu ajudar você a se salvar, promete que não me
dará mais problema, que não vai correr atrás de mim?
– Prometo! Prometo! Rapidão, por caridade, pois, se
demorar mais meio minuto, estarei morto.
Pinóquio duvidou um pouco, mas, lembrando que o pai
tinha dito tantas vezes que não se perde nada ao fazer uma
boa ação, nadou para alcançar Heliodoro e, segurando-o
pela cauda com as duas mãos, levou-o são e salvo para a
areia enxuta da praia.

...nadou para alcançar Heliodoro e, segurando-o pela cauda...


O pobre cão não se aguentava mais em pé. Tinha bebido
tanta água salgada, que estava inchado feito um balão. Por
outro lado, o boneco, não querendo confiar muito nisso,
achou prudente se jogar novamente no mar e, afastando-se
da praia, gritou ao amigo salvo:
– Adeus, Heliodoro, boa viagem e muitas lembranças aos
de casa.
– Adeus, Pinóquio, mil agradecimentos por me salvar da
morte. Você me fez um grande favor, e neste mundo o que
é feito está feito. Se houver oportunidade, nos
encontraremos... – respondeu o cão.
Pinóquio continuou a nadar, mantendo-se sempre perto
da areia. Finalmente, lhe pareceu ter chegado a um lugar
seguro e, dando uma olhada na praia, viu sobre os rochedos
uma espécie de gruta da qual saía um longuíssimo penacho
de fumaça.
– Naquela gruta deve ter fogo. Ainda bem! Poderei me
enxugar, me aquecer, e depois... E, depois, o que será,
será! – disse para si próprio.
Tomada essa decisão, aproximou-se dos rochedos, mas
quando foi se encarapitar neles, sentiu debaixo da água
alguma coisa que subia, subia, subia e o levava para o ar.
Tentou fugir, mas já era tarde, pois, para sua grande
surpresa, se viu preso dentro de uma grande rede, no meio
de um cardume de peixes de toda forma e tamanho, que
davam rabanadas e se debatiam, desesperados.
Ao mesmo tempo, viu sair da gruta um pescador tão feio,
mas tão feio, que parecia um monstro marinho. Em vez de
cabelos, tinha um grosso tufo de algas verdes, e verde era a
pele de seu corpo, verdes os olhos, verde a enorme barba
que descia até o chão. Parecia um grande lagarto erguido
sobre os pés de trás.
Quando o pescador puxou a rede, gritou, todo contente:
– Bendito seja! Hoje ainda poderei fazer uma bela fritada
de peixe!
– Menos mal, eu não sou um peixe! – disse Pinóquio
consigo mesmo, retomando um pouco de coragem.
A rede cheia de peixes foi levada para dentro da gruta,
um lugar escuro e enfumaçado, no meio do qual fervia uma
grande frigideira com azeite, que soltava um cheiro de
gordura, forte, de cortar a respiração.
– Agora, vejamos que peixes pegamos! – disse o pescador
verde, e, enfiando na rede uma mão tão enorme que
parecia uma pá de padeiro, puxou um punhado de tainhas.
– Boas, essas tainhas! – disse, olhando-as e cheirando-as
com carinho. E depois de cheirá-las, jogou em uma bacia
sem água.
Então repetiu mais vezes a mesma operação e, a cada
vez que tirava outros peixes, ficava com água na boca e,
alegre, dizia:
– Boas, essas merluzas!...
– Saborosos, esses salmões!...
– Deliciosos, esses linguados!...
– Gostosos, esses caranguejos!...
– Lindas, essas anchovas com cabeça!
Como se pode imaginar, as merluzas, os salmões, os
linguados, os caranguejos e as anchovas iam todos para a
bacia, fazer companhia para as tainhas.
O último que ficou na rede foi Pinóquio.
Logo que o pescador o pegou, arregalou com surpresa os
olhões verdes, gritando, quase apavorado:
– Que raça de peixe é essa?! Não me lembro de ter
comido um peixe assim, nunca!
Tornou a olhá-lo atentamente e depois de tê-lo examinado
muito bem, de todos os lados, concluiu:
– Entendi, deve ser um caranguejo do mar.
Então Pinóquio, deprimido por ser confundido com um
caranguejo, disse, com voz zangada:
– Que caranguejo, que nada! Olhe
como você me trata! Eu, fique
sabendo, sou um boneco.
– Um boneco?! Confesso, peixe-
boneco é novidade para mim! Melhor
assim! Comerei com mais vontade –
replicou o pescador.
– Comerá? Quer fazer o favor de
entender que eu não sou um peixe? Ou
não vê que falo e penso como você?
– Verdadíssima! E como vejo que é
um peixe e que tem a sorte de falar e
de pensar como eu, então quero tratá-
−Que raça de peixe é
lo também com a devida consideração essa?!
– acrescentou o pescador.
– Que consideração...?
– Em sinal de amizade e de estima especial, deixarei você
escolher como quer ser preparado. Deseja ser frito na
frigideira ou prefere ser cozido na panela com molho de
tomate?
– Para dizer a verdade, se posso escolher, prefiro ser
deixado livre para poder voltar para minha casa –
respondeu Pinóquio.
– Tá brincando! Quer que eu perca a oportunidade de
saborear um peixe tão raro? Nunca aparece, nunquinha, dia
nenhum, um peixe-boneco nesses mares. Deixa comigo:
fritarei você na frigideira, junto com todos os outros peixes,
e você ficará contente. Ser frito em boa companhia é
sempre um consolo.
O infeliz Pinóquio, ouvindo essa falação, começou a
chorar, a gritar, a se lamentar e a dizer:
– Como teria sido melhor se eu tivesse ido à escola! Fui
dar ouvidos aos meus colegas e agora pago por isso! Ai! Ai!
Ai!
O boneco escorregava como uma enguia e fazia esforços
incríveis para escapar das suas garras, então o pescador
verde pegou um belo cipó e, depois de amarrá-lo pelas
mãos e pelos pés, como um salame, jogou-o no fundo da
bacia com os outros.
Depois, pegando uma gamela de madeira cheia de
farinha, começou a empanar todos os peixes e a jogá-los na
frigideira.
As primeiras a dançar no azeite fervendo foram as pobres
merluzas, seguidas dos caranguejos, dos salmões, dos
linguados, das anchovas, e então chegou a vez de Pinóquio.
Que, ao ver tão de perto a morte (e que morte!), foi tomado
de tanto tremor e de tanto espanto, que não tinha mais nem
voz nem fôlego para se lamentar.
O pobre boneco se lamentava apenas com os olhos! Mas
o pescador verde, sem se importar, o passou cinco ou seis
vezes na farinha, empanando-o tão bem da cabeça aos pés,
que agora ele parecia um boneco de gesso.
Então o homem o pegou pela cabeça e...
29.
Pinóquio volta para a casa da Fada, e ela lhe promete que no dia seguinte não
será mais um boneco, mas um menino. Grande lanche de café com leite para
festejar o acontecimento

Q
uando o pescador já ia jogar Pinóquio na frigideira,
entrou na gruta um grande cão, atraído até ali pelo
cheiro fortíssimo e apetitoso da fritura.
– Passe fora! – gritou o pescador, ameaçando-o, sem
largar o boneco enfarinhado.
Mas o pobre cão tinha uma fome de quatro cães e,
gemendo e agitando a cauda, parecia dizer:
– Me dê um bocado de fritura e vou embora.
– Passe fora, já disse! – repetiu o pescador, esticando a
perna para um chute.
O cão, que, quando tinha fome de verdade, não era de
deixar pousar nem moscas no seu nariz, se voltou rosnando
para o pescador, mostrando suas terríveis presas.
Naquele instante se ouviu uma vozinha fraca, fraquinha:
– Salve-me, Heliodoro! Se não me salvar, estou frito!
O cão reconheceu logo a voz de Pinóquio e percebeu, com
grande surpresa, que ela havia saído daquele pacote
enfarinhado que o pescador segurava.
O que faz, então? Dá um grande salto, abocanha o pacote
e, segurando-o delicadamente entre os dentes, sai correndo
da gruta, rápido como um raio!
O pescador, raivosíssimo ao ver arrancado da sua mão
aquele peixe que teria comido de muito bom grado, tentou
perseguir o cão, mas com poucos passos teve um acesso de
tosse e foi obrigado a voltar.
− Passa fora! – gritou o pescador...

Entretanto, Heliodoro, reencontrando a estradinha que


conduzia ao lugarejo, parou e pousou delicadamente o
amigo Pinóquio no chão.
Segurando-o levemente com os dentes, ele corre para fora da caverna e se
afasta como um raio!

– Devo agradecer muito a você! – disse o boneco.


– Não é preciso, você me salvou, e o que é feito está feito.
Neste mundo, precisamos todos ajudar uns aos outros –
replicou o cão.
– Mas como você apareceu naquela gruta?
– Estava aqui ainda, estendido na praia, mais morto que
vivo, quando o vento me trouxe de longe um cheirinho de
fritura. Aquele cheirinho me abriu o apetite e fui atrás dele.
Se chegasse um minuto mais tarde!...
– Nem me diga! Nem me diga! Se você chegasse um
minuto mais tarde, a esta hora eu estaria bem frito, comido
e digerido. Brrr! Tenho arrepios só de pensar nisso! –
exclamou Pinóquio, que ainda tremia de medo.
Heliodoro, rindo, estendeu a pata direita para o boneco,
que a apertou com força em sinal de grande amizade,
depois foram embora.
O cão seguiu a rua de casa e Pinóquio, ficando sozinho,
andou até uma cabana pouco distante dali e perguntou a
um velhote que estava na porta, se aquecendo ao sol:
– Diga, cavalheiro, sabe algo de um pobre menino ferido
na cabeça, chamado Eugênio?
– O menino foi trazido por alguns pescadores a esta
cabana e agora...
– Agora está morto! – interrompeu Pinóquio, assustado.
– Não, está vivo e já voltou para a casa dele.
– Verdade? Verdade? Então o ferimento não era grave...?!
– gritou o boneco, pulando de alegria.
– Mas podia se tornar gravíssimo e até mortal! Pois lhe
atiraram na cabeça um grosso livro encadernado, com capa
dura – respondeu o velhote.
– E quem atirou?
– Um seu colega de escola, um tal de Pinóquio...
– E quem é esse Pinóquio? – perguntou o boneco,
disfarçando.
– Dizem que é um valentão, um desocupado, um
verdadeiro brutamontes.
– Calúnia! Tudo calúnia!
– Conhece esse Pinóquio?
– De vista! – respondeu o boneco.
– E o que acha dele? – perguntou o velhote.
– A mim me parece muito bom filho, cheio de vontade de
estudar, obediente, afeiçoado ao pai e à família...
Enquanto desfiava, na cara de pau, todas essas mentiras,
o boneco tocou o nariz e percebeu que ele crescera mais de
um palmo. Então, apavorado, começou a gritar:
– Não dê atenção a tudo de bom que eu lhe disse, pois
conheço muitíssimo bem o Pinóquio e posso afirmar que é
mesmo um valentão, um desobediente e um preguiçoso, e
que, em vez de ir à escola, sai com os colegas para fazer
bagunça!
Logo que pronunciou essas palavras, seu nariz voltou ao
tamanho normal.
– E por que está branco desse jeito? – perguntou de
repente o velhote.
– É que... sem perceber, me esfreguei em um muro
caiado de pouco – respondeu o boneco, envergonhado de
contar que o haviam enfarinhado como se fosse um peixe a
ser frito.
– O que fez da sua jaqueta, de seu calção e do seu
chapéu?
– Encontrei ladrões que me levaram tudo. Diga, bom
velho, não teria por acaso alguma roupa para me dar, para
que eu possa voltar para casa?
– Meu menino, quanto a roupas, eu só tenho um pequeno
saco onde guardo grãos. Se quiser, pegue, está ali. 
Pinóquio não o esperou dizer duas vezes. Pegou logo o
saco de grãos, que estava vazio, fez com uma tesoura um
pequeno buraco no fundo e um buraco de cada lado e o
enfiou feito uma camisa. E, vestido daquele modo
improvisado, rumou para o lugarejo. Mas, ao longo da
estrada, não se sentia nada tranquilo, tanto que dava um
passo adiante e um para trás e, discursando para si mesmo,
ia dizendo:
– Como farei para me apresentar à minha Fadinha? Que
dirá ela ao me ver? Será que vai me perdoar essa segunda
travessura? Aposto que não! Oh! Com certeza, não me
perdoa! E é minha culpa, pois sou um moleque que promete
sempre se corrigir e não cumpre nunca!
− Diga, cavalheiro, sabe algo de um pobre menino
ferido na cabeça, chamado Eugênio?

Chegou ao lugarejo já noite escura; chovia muito, a água


vinha abaixo de montão, e ele foi direto à casa da Fada,
decidido a bater na porta até que abrissem.
Mas quando chegou lá, sentiu faltar a coragem e, em vez
de bater, se afastou correndo. Voltou pela segunda vez e
não fez nada; aproximou-se pela terceira vez e nada; na
quarta vez, com a mão tremendo, pegou a argola de ferro e
deu um leve toque na porta.
Esperou, esperou, e finalmente, depois de meia hora,
uma janela do último andar (a casa tinha quatro andares) se
abriu, e nela Pinóquio viu a grande Lesma, com um
candelabro aceso na cabeça, que perguntou:
– Quem é, a esta hora?
– A Fada está em casa? – perguntou o boneco.
– A Fada está dormindo e não quer ser acordada. Mas
quem é você?
– Sou eu!
– Eu quem?
– Pinóquio.
– Que Pinóquio?
– O boneco, aquele que mora com a Fada.
– Ah! Entendi. Espera aí, que estou descendo e abro logo
– disse a Lesma.
– Rapidinho, por caridade, senão eu morro de frio.
– Meu menino, eu sou uma Lesma, e as lesmas nunca têm
pressa.
Passou-se uma hora, passaram-se duas, e a porta não se
abria. Pinóquio, que tremia de medo e de frio por causa da
chuva, tomou coragem e bateu uma segunda vez, desta
vez, mais forte.
Àquele segundo toque, abriu-se uma janela do andar de
baixo e apareceu a mesma Lesma.
– Lesminha bela, há duas horas que espero! E duas horas,
em uma noite como essa, se tornam mais longas que dois
anos. Rapidinho, por caridade! – gritou Pinóquio da rua.
– Meu menino, meu menino, eu sou uma Lesma, e as
lesmas nunca têm pressa – respondeu aquele animalzinho
totalmente da paz e da calma, e a janela se fechou.
Dali a pouco, soou a meia-noite; depois um toque, depois
dois após a meia-noite, e a porta continuava fechada.
Então Pinóquio, perdendo a paciência, agarrou com raiva
a argola da porta para dar um golpe de deixar surda toda a
casa, mas a argola, que era de ferro, virou de repente uma
enguia viva que, escorregando de suas mãos, desapareceu
na enxurrada que escorria pelo meio da rua.
– Ah! É assim?! Se a argola desapareceu, eu continuo a
bater a pontapés – gritou Pinóquio ainda mais cego de raiva.
E afastando-se um pouco para trás, mandou ver um
soleníssimo pontapé na porta da casa. O golpe foi tão forte,
que o pé penetrou até a metade na madeira, e, quando o
boneco tentou puxá-lo para fora, o esforço foi totalmente
inútil, pois o pé ficou enfiado lá dentro, como um prego
batido.
Imagine o pobre Pinóquio! Teve de
passar todo o resto da noite com um pé
no chão e o outro para o alto.
De manhã, no início do dia, a porta
finalmente se abriu. Aquele bravo
animalzinho, a Lesma, para descer do
quarto andar até a porta da rua, gastou
somente nove horas. É preciso dizer
que foi mesmo uma canseira.
– O que faz com esse pé enfiado na
porta? – perguntou rindo ao boneco.
– Aconteceu uma desgraça. Veja ao
menos, Lesminha bela, se consegue
libertar-me desse suplício. E, vestido daquele modo
– Meu menino, isso pede um improvisado, rumou para
carpinteiro, e eu nunca fui carpinteira. o lugarejo.
– Implore à Fada por mim!
– A Fada está dormindo e não quer ser acordada.
– Mas o que quer que eu faça? Que fique pregado o dia
todo nessa porta?
– Divirta-se contando as formigas que passam pela rua.
– Traga-me ao menos alguma coisa para comer, pois me
sinto acabado.
– Rapidinho! – disse a Lesma.
Depois de três horas e meia, a Lesma voltou com uma
bandeja de prata na cabeça. Nela havia um pão, um frango
assado e quatro damascos maduros.
– Eis o lanche que a Fada lhe manda – disse a Lesma.
Ao ver aquela bênção de Deus, o boneco sentiu tudo
melhorar. Mas qual não foi seu desgosto quando,
começando a comer, percebeu que o pão era de gesso, o
frango, de papelão, e os quatro damascos, de alabastro,
coloridos como se fossem verdadeiros.
Queria chorar, queria entrar em desespero, queria jogar
fora a bandeja e o que estava dentro, mas, em vez disso, ou
pela grande dor ou pela grande fraqueza do estômago, o
fato é que caiu desmaiado.
Quando se recuperou, estava estendido sobre um sofá,
com a Fada junto dele.
– Desta vez ainda o perdoo, mas ai de você se me fizer
outra das suas! – disse a Fada.
Pinóquio prometeu e jurou que iria estudar, que se
comportaria sempre bem. E que manteria sua palavra por
todo o resto do ano.
− O que faz com esse pé enfiado na porta?

De fato, nos exames antes das férias teve a honra de ser


o melhor da escola, e seu comportamento, em geral, foi
julgado tão louvável e satisfatório que a Fada, toda
contente, lhe disse:
– Amanhã, finalmente, seu desejo será satisfeito!
– Qual?
– Amanhã deixará de ser um boneco de pau e se tornará
um menino para sempre.
Quem não viu Pinóquio recebendo essa notícia tão
desejada nunca poderá imaginar sua alegria. Todos os seus
amigos e colegas de escola seriam convidados para um
grande lanche no dia seguinte na casa da Fada, para
festejarem juntos o grande acontecimento, e a Fada tinha
mandado preparar duzentas xícaras de café com leite e
quatrocentos pãezinhos com manteiga passada por dentro e
por fora. Aquele dia prometia ser muito bom e muito alegre,
mas...
Infelizmente, na vida dos bonecos, há sempre um mas,
que estraga tudo...
Quem não viu Pinóquio recebendo essa notícia tão desejada nunca poderá
imaginar sua alegria.
30.
Pinóquio, em vez de virar um menino, viaja escondido com seu amigo Pavio para
o País dos Brinquedos

C
omo era natural, Pinóquio logo pediu permissão à Fada
para andar pela cidade e fazer os convites, e a Fada
disse:
– Vá, sim, convidar seus colegas para o lanche de
amanhã, mas lembre-se de voltar para casa antes que
escureça. Entendeu?
– Dentro de uma hora prometo estar de volta – replicou o
boneco.
– Cuidado, Pinóquio! Os meninos têm pressa em
prometer, mas na maioria das vezes demoram a cumprir.
– Mas eu não sou como os outros. Eu, quando digo uma
coisa, cumpro.
– Veremos. Caso desobedeça, pior para você.
– Por quê?
– Porque os meninos que não dão atenção aos conselhos
de quem sabe mais que eles vão sempre ao encontro de
algum problema.
– Eu já caí nessa! Mas agora não caio mais! – disse
Pinóquio.
– Veremos se diz a verdade.
Sem dizer mais nada, o boneco se despediu da Fada, que
era para ele uma espécie de mãe, e, cantando e dançando,
saiu.
Em pouco mais de uma hora, todos os seus amigos
tinham sido convidados. Alguns aceitaram logo e de coração
o convite; outros, de início, se fizeram um pouco de difíceis,
mas, quando souberam que os pãezinhos de molhar no café
com leite teriam manteiga também na parte de fora,
confirmaram:
– Iremos também, para agradar você...
Entre os amigos e colegas de escola, Pinóquio tinha um
predileto e queridíssimo, Romeu, que todos chamavam pelo
apelido de Pavio, por causa de sua aparência esguia, seca e
fina, tal e qual o pavio novo de uma lamparina.
Pavio era o menino mais preguiçoso e mais moleque de
toda a escola, porém Pinóquio queria muito bem a ele. De
fato, foi um dos primeiros que procurou em casa para
convidar para o lanche, mas não o encontrou; voltou uma
segunda vez, e Pavio não estava; voltou uma terceira vez, e
perdeu a caminhada.
Onde poderia encontrá-lo? Procura daqui, procura dali,
finalmente o viu escondido debaixo da varanda de uma casa
de camponeses.
– O que faz aqui? – perguntou Pinóquio.
– Espero a meia-noite, para partir...
– Aonde vai?
– Longe, longe, longe!
– E eu que fui procurá-lo em casa três vezes!
– O que queria de mim?
– Não sabe do grande acontecimento? Não sabe a sorte
que tive?
– Qual?
– Amanhã deixo de ser um boneco e viro um menino,
igual a você e a todos os outros.
– Grande sorte!
– Amanhã, portanto, espero você para o lanche na minha
casa.
– Mas se estou dizendo que parto esta noite.
– A que hora?
– Daqui a pouco.
– E para onde vai?
– Vou morar em um país... que é o mais belo país deste
mundo, uma verdadeira boa vida!...
– Como se chama?
– Chama-se País dos Brinquedos. Por que não vem
também?
– Eu? Não, nem pensar!
– Deixe de ser bobo, Pinóquio! Acredite em mim, se não
for, se arrependerá. Onde vai encontrar um país mais
saudável para nós, meninos? Lá não há escolas, não há
professores, não há livros. Naquele país bendito não se
estuda nunca. Na quinta-feira não tem aula, e cada semana
é composta de seis quintas-feiras e de um domingo.
Imagine que as férias começam em 1º de janeiro e acabam
no último dia de dezembro. Eis um país que
verdadeiramente me agrada! Assim deveriam ser todos os
países civilizados!
– Mas como são os dias no País dos Brinquedos?
– Os dias são feitos para entretenimento e diversão, da
manhã à noite. Então, cama, e na manhã seguinte começa
tudo de novo. O que lhe parece?
– Hum! É uma vida que eu levaria sem reclamar, também
– pensou Pinóquio, balançando ligeiramente a cabeça.
– E então, quer partir comigo? Sim ou não? Decida.
– Não, não, não e não. Prometi à minha boa Fada virar um
bom menino e quero cumprir o prometido. E agora, como o
sol está caindo, deixo você e dou o fora. Portanto, adeus e
boa viagem.
– Aonde vai com tanta pressa?
– Para casa. A Fada quer que eu volte antes da noite.
– Espere mais dois minutos.
– Ficará muito tarde.
– Dois minutos apenas.
– E se a Fada gritar comigo?
– Deixe gritar. Quando tiver gritado bastante, se calará –
disse o moleque do Pavio.
– E como você vai? Parte sozinho ou tem companhia?
– Sozinho? Seremos mais de cem meninos.
– E vão a pé?
– Daqui a pouco passará aqui a carruagem que vai me
pegar e me levar até dentro dos limites daquele
afortunadíssimo país.
– O que eu não daria para que a carruagem passasse
agora!
– Para quê?
– Para ver vocês partirem todos juntos.
– Fique aqui mais um pouco e verá.
– Não, não, quero é voltar para casa.
– Espere mais dois minutos.
– Já demorei muito. A Fada deve estar pensando em mim.
– Pobre Fada! Por acaso tem medo que os morcegos
comam você?
– Mas, vem cá, você tem certeza de que naquele país não
há mesmo escolas? – perguntou Pinóquio.
– Nem sombra delas.
– E nem mesmo professores?
– Nem mesmo um.
– E não há nunca a obrigação de estudar?
– Nunca, nunca, nunca!
– Que belo país! Que belo país! Eu nunca estive lá, mas
posso imaginar! – disse Pinóquio com água na boca.
– Por que não vem também?
– É inútil insistir! Como disse, prometi à Fada que vou
virar um menino ajuizado e não quero faltar com a palavra.
– Portanto, adeus, Pinóquio, mande lembranças minhas à
escola! E também aos nossos colegas que encontrar pela
rua.
– Adeus, Pavio, boa viagem, divirta-se e lembre-se de vez
em quando dos amigos.
O boneco deu dois passos, como se fosse embora, mas,
parando e virando-se para o amigo, perguntou:
– Mas está mesmo certo de que naquele país todas as
semanas são compostas de seis quintas-feiras e de um
domingo?
– Certíssimo.
– E está certo de que as férias começam em 1º de janeiro
e acabam no último dia de dezembro?
– Certíssimo.
– Que belo país! – repetiu Pinóquio, cuspindo inveja.
Então, em uma firme decisão, acrescentou, com pressa e
raiva:
– Portanto, adeus de verdade e boa viagem.
– Adeus.
– Dentro de quanto tempo vai partir?
– Daqui a pouco.
– Pena! Se faltasse só uma hora para a partida, eu seria
bem capaz de esperar.
– E a Fada?
– Agora já estou atrasado!... E voltar para casa uma hora
antes ou uma hora depois dá no mesmo.
– Pobre Pinóquio! E se a Fada gritar com você?
– Paciência! Deixarei que grite. Quando tiver gritado
bastante, vai se calar.
Já era noite, e noite escura; de repente viram mover-se a
distância uma luzinha, e ouviram o som de algo
chacoalhando e um toque de trombeta, tão fraco e sufocado
que parecia o zumbido de um mosquito.
– Aí está ela! – gritou Pavio, ficando em pé.
– O que é? – perguntou Pinóquio em voz baixa.
– É a carruagem que vem me pegar. Então, quer vir, sim
ou não?
– Mas é mesmo verdade que nesse país os meninos não
têm nunca a obrigação de estudar? – perguntou o boneco.
– Nunca, nunca, nunca!
– Que país incrível! Que país incrível! Que país incrível!
31.
Depois de cinco meses de boa vida, Pinóquio, para sua grande surpresa, sente
nascer um belo par de orelhas de burro e vira um burrico, com cauda e tudo

F
inalmente a carruagem chegou, e chegou sem fazer o
menor barulho, pois suas rodas eram enfaixadas com
estopa e trapos.
Era puxada por doze parelhas de burricos, todos do
mesmo tamanho, mas com pelagens de cores diferentes.
Alguns eram cinzentos, outros brancos, outros pintados
feito sal e pimenta, outros rajados de grandes listras
amarelas e azuis.
Mas a coisa mais fora do comum era esta: as doze
parelhas, ou seja, os vinte e quatro burricos, em vez de
terem ferraduras como todos os outros animais de carga,
tinham, nos pés, botas de homem feitas de pele branca.
E o cocheiro da carruagem?

Finalmente a carruagem chegou...


Imagine um homenzinho mais largo
que alto, macio e oleoso como uma bola
de manteiga, com um rostinho rosa de
maçã, uma boquinha de coração que ria
o tempo todo e uma voz suave e
ronronante, como a de um gato que se
enrola no colo de uma dona de casa de
bom coração.
Todos os meninos, logo que o viam,
ficavam encantados e disputavam para
subir na carruagem, para serem levados
por ele para aquela verdadeira boa
vida, conhecida no mapa geográfico
pelo atraente nome de País dos Imagine um homenzinho
mais largo do que
Brinquedos.
comprido, macio e oleoso
De fato, a carruagem já estava cheia como uma bola de
de meninos entre os oito e os doze manteiga.
anos, amontoados como sardinhas na
lata. Estavam desconfortáveis, estavam esmagados, quase
não podiam respirar, mas nenhum dizia um ai! Nenhum
reclamava. O consolo de saber que dentro de poucas horas
chegariam a um país onde não havia nem livros, nem
escolas, nem professores, deixava-os tão contentes e
resignados, que não sentiam nem dificuldades, nem
cansaço, nem fome, nem sede, nem sono.
Logo que a carruagem parou, o homenzinho se virou para
Pavio e, com mil caretas e salamaleques, perguntou
sorrindo:
– Diga, meu belo menino, você também quer ir para nosso
afortunado país?
– Claro que quero ir!
– Mas aviso, meu lindinho, que na carruagem não há mais
lugar. Como vê, está lotada!...
– Paciência! Se não há lugar dentro, vou sentado no eixo
da carruagem. – replicou Pavio e, dando um salto, montou a
cavalo em um dos eixos.

− Se eu for com vocês, o que dirá a minha boa Fada?

– E você, meu querido, o que pretende fazer? Vem conosco


ou fica?... – disse o homenzinho, virando-se todo respeitoso
para Pinóquio.
– Eu fico. Quero voltar para minha casa, quero estudar e
ganhar prêmios na escola, como fazem todos os bons
meninos– respondeu Pinóquio.
– Boa sorte, então!
– Pinóquio, preste atenção, venha conosco e seremos
todos felizes! – disse Pavio.
– Não, não, não!
– Venha conosco e seremos todos felizes! – gritaram
outras quatro vozes de dentro da carruagem.
– Venha conosco e seremos todos felizes! – gritaram juntas
cem vozes.
– Se eu for com vocês, o que dirá a minha boa Fada? –
disse o boneco, que começava a amolecer e a vacilar.
– Não encha a cabeça com tanta tristeza. Pense que
vamos a um lugar onde seremos livres para fazer barulho da
manhã até a noite!
Pinóquio não respondeu, mas deu um suspiro, deu outro
suspiro, deu um terceiro suspiro e, finalmente, disse:
– Arranjem um lugar para mim, quero ir também!

...e, com um fortíssimo coice, atirou o pobre boneco no meio da estrada.

– Os lugares estão todos ocupados, mas, para mostrar o


quanto é bem-vindo, posso ceder meu lugar na boleia –
respondeu o homenzinho.
– E você?
– Eu vou a pé pela estrada.
– Nem pensar, não aceito isso! Prefiro subir na garupa de
qualquer um desses burricos! – gritou Pinóquio.
Dito e feito: aproximou-se do burrico da direita da primeira
parelha e fez que ia montar, mas o bicho, virando-se, deu
uma grande focinhada em seu estômago e o jogou de pernas
para o ar.
Imagine a gargalhada atrevida e escancarada dos meninos
diante da cena.
Mas o homenzinho não riu. Cheio de bondade, chegou
perto do burrico rebelde e, fingindo que ia dar um beijo em
sua orelha, com uma mordida arrancou a metade dela.
Pinóquio, erguendo-se furioso do chão, de um salto
montou na garupa do pobre animal. E o salto foi tão belo que
os meninos, parando de rir, começaram a gritar:
– Viva Pinóquio! – e deram uma salva de palmas que não
acabava mais.
De repente, o burrico ergueu as pernas traseiras e, com
um fortíssimo coice, atirou o pobre boneco sobre um monte
de pedras no meio da estrada.
De novo, grandes risadas, mas o homenzinho, em vez de
rir, foi tomado de tanto amor pelo irrequieto burrico que,
com um beijo, arrancou de vez a metade da outra orelha
dele. Depois, disse ao boneco:
– Monte sem medo. Esse burrico tinha algum grilo na
cabeça, mas eu lhe disse duas palavrinhas nas orelhas que,
espero, o deixaram mansinho e razoável.
Pinóquio montou, e a carruagem começou a rodar; mas
enquanto os burricos galopavam e a carruagem corria sobre
as pedras da estrada principal, pareceu ao boneco ouvir uma
voz suave dizendo:
– Pobre joguete! Quis fazer ao seu modo, mas se
arrependerá!
Pinóquio, meio apavorado, olhou para lá e para cá, para
saber de que lado vinham essas palavras, mas não viu
ninguém: os burricos galopavam, a carruagem corria, os
meninos dormiam dentro dela, Pavio roncava feito um
arganaz,****** e o homenzinho sentado na boleia cantarolava
entre os dentes:
Todos à noite dormem
E eu não durmo nunca...
Meio quilômetro adiante, Pinóquio ouviu novamente a
vozinha:
– Tenha isso em mente, boboca! Os meninos que param de
estudar e dão as costas para os livros, a escola e os
professores, para se dedicarem inteiramente aos brinquedos
e aos divertimentos, não podem ter outra coisa senão um
fim infeliz! Eu estou de prova e posso afirmar! Um dia, você
vai chorar também, como eu choro hoje... mas então será
tarde demais! 
A essas palavras sussurradas suavemente, o boneco, mais
espantado que nunca, saltou da garupa e foi pegar seu
burrico pelo focinho.
E imagine como ficou, quando percebeu que o burrico
chorava... e chorava mesmo, como um menino!
– Ei, senhor homenzinho, o que é isso?! Este burrico está
chorando! – gritou Pinóquio para o cocheiro.
– Deixe-o chorar, vai rir quando se casar!
– Por acaso o ensinou também a falar?
– Não, aprendeu sozinho a murmurar algumas palavras,
depois de três anos em uma companhia de cães amestrados.
– Pobre animal!
– Rápido, rápido! Não vamos perder tempo vendo um
burro chorar. Monte nele e vamos, a noite está fresca e a
estrada é longa – disse o homenzinho.
Pinóquio obedeceu imediatamente. A carruagem retomou
sua corrida, e de manhãzinha chegaram sem problemas ao
País dos Brinquedos.
O lugar não parecia com nenhum outro do mundo. Sua
população era toda composta de meninos. Os mais velhos
tinham catorze anos, e os mais novos, apenas oito. Nas ruas,
muita alegria, muito barulho, muita zoeira, de fazer perder o
juízo! Bandos de moleques por todo lado: um jogava com
nozes, outro, com cacos, outro, com bola; um andava de
velocípede, outro, em um cavalinho de pau; esses brincavam
de cabra-cega, aqueles, de pega-pega; outros, vestidos de
palhaço, engoliam fogo; um recitava, outro cantava, um
dava saltos mortais, outro se divertia andando com as mãos
no chão e os pés no ar, aquele rodava um grande aro; uns
passeavam vestidos de general, com capacete de lata e
espada de papelão; um ria, outro gritava, outro, ainda,
chamava alguém; esse batia palmas, aquele assobiava,
aquele outro imitava o cacarejo da galinha quando bota ovo:
era um tal pandemônio, um tal ti-ti-ti, uma tal algazarra
endiabrada que, para não ficar surdo, era preciso pôr
algodão nos ouvidos. Em todas as praças se viam teatrinhos
de lona, lotados de meninos da manhã até a noite, e em
todos os muros das casas se liam, escritas com carvão,
coisas belíssimas como estas: Viva os brinquedo! (em vez de
Vivam os brinquedos), Não queremo mais escola (em vez de
Não queremos mais escola), Abaixo Ari Timética (em vez de
Abaixo Aritmética) e outras pérolas parecidas.
A população era toda composta de meninos.

Pinóquio, Pavio e os outros meninos, assim que desceram


da carruagem, logo se enfiaram no meio da grande
barafunda e, em poucos minutos, como é fácil imaginar,
ficaram amigos de todos. Em meio às contínuas distrações e
aos variados divertimentos, as horas, os dias, as semanas
passavam como relâmpagos. Quem era o mais feliz, quem
era o mais contente deles?
– Oh! Que vida boa! – dizia Pinóquio todas as vezes que,
por acaso, se encontrava com Pavio.
– Vê como eu tinha razão? E dizer que você não queria vir!
E pensar que tinha posto na cabeça voltar para a casa da
Fada, para perder tempo estudando! Se hoje você está livre
da chatice dos livros e da escola, deve a mim, aos meus
conselhos, a minhas dicas, concorda? Não há nada como os
verdadeiros amigos, que sabem prestar grandes favores
como esse – dizia Pavio.
– É verdade, Pavio! Se hoje eu sou um menino
verdadeiramente contente, o mérito é todo seu. E o
professor, ao contrário, sabe o que me dizia sempre, falando
de você? “Não conviva com aquele moleque do Pavio, pois
ele é má companhia, não pode aconselhar ninguém a não
ser para fazer o mal!”
– Pobre professor! Sei muito bem que tinha implicância
comigo e que se divertia sempre a me caluniar, mas eu sou
generoso e o perdoo! – respondeu o outro, balançando a
cabeça.
– Grande coração! – disse Pinóquio, abraçando
afetuosamente o amigo e dando-lhe um beijo na testa.
Já fazia cinco meses que durava essa bela e boa vida de
só brincar e só se divertir o dia inteiro, sem nunca ver nem
livro nem escola, quando, uma manhã, Pinóquio acordou e
teve, como se costuma dizer, uma enorme e horrível
surpresa, que o deixou de péssimo humor.
32.
Nascem orelhas de burro em Pinóquio, e ele vira um verdadeiro burrico e
começa a zurrar

qual foi essa surpresa?


E A surpresa foi que Pinóquio, acordando, começou
naturalmente a coçar a cabeça, e ao coçar a cabeça,
percebeu... adivinhe! Percebeu, para seu grande espanto,
que suas orelhas tinham crescido mais de um palmo.
Você sabe que o boneco, desde seu
nascimento, tinha as orelhas pequenas,
tão pequenas que, a olho nu, quase
não se viam! Imagine, portanto, como
ele ficou quando percebeu com a mão
que suas orelhas, durante a noite,
tinham se alongado tanto, que
pareciam duas escovas peludas. Foi
logo em busca de um espelho, mas,
não encontrando um, encheu de água
a bacia de lavar as mãos e viu,
refletido, o que não teria nunca ...suas orelhas, durante a
desejado ver, ou seja, sua imagem noite, tinham se alongado
enfeitada por um magnífico par de tanto que pareciam duas
orelhas de burro. Deixo para você escovas peludas.
imaginar a dor, a vergonha e o desespero do pobre
Pinóquio!
Começou a chorar, a gritar, a bater a cabeça na parede,
mas, quanto mais se desesperava, mais as orelhas
cresciam, assim como os pelos, que também cresciam para
o alto.
Com o barulho daqueles gritos agudíssimos, entrou na
sala uma bela Marmotinha que morava no andar de cima, e,
vendo o boneco em tão grande desespero, perguntou
gentilmente:
– O que há, meu caro vizinho?
– Estou doente, minha Marmotinha, muito doente... e
doente de uma doença que me dá medo! Você entende de
pulso?
– Um pouquinho.
– Veja então se eu tenho febre.
A Marmotinha ergueu a pata direita e, depois de verificar
o pulso de Pinóquio, disse, suspirando:
– Meu amigo, lamento ter que dar uma má notícia!
– O que é?
– Você tem uma grande e bruta febre!
– Que febre é essa?
– É a febre de burro.
– Não conheço essa febre! – respondeu o boneco, que no
entanto tinha entendido muito bem.
– Então explico. Saiba que, dentro de duas ou três horas,
você não será mais nem um boneco nem um menino... –
disse a Marmotinha.
– E o que serei?
– Dentro de duas ou três horas, você terá virado um
verdadeiro burrico, como aqueles que puxam carreto e
levam os repolhos e as verduras ao mercado.
– Oh! Pobre de mim! Pobre de mim! – gritou Pinóquio
agarrando as duas orelhas e, raivoso, puxando para
arrancá-las como se fossem de outro.
– Meu caro, o que quer fazer? Isso é destino, isso está
escrito nos Decretos de Sabedoria: todos os meninos
preguiçosos que, aborrecidos com os livros, a escola e os
professores, passam os dias em brincadeiras, em jogos e
em diversões, devem acabar, cedo ou tarde, transformando-
se em pequenos burros – respondeu a Marmotinha para
consolá-lo.
– Mas é assim, mesmo, de verdade? – perguntou o
boneco, soluçando.

− É a febre de burro.

– Infelizmente, é assim mesmo! E agora, os choros são


inúteis. Precisava ter pensado antes!
– Mas a culpa não é minha. A culpa, acredite, Marmotinha,
é toda do Pavio!
– E quem é esse Pavio?
– Um colega de escola. Eu queria voltar para casa, queria
ser obediente, queria continuar a estudar e a ser honrado,
mas Pavio me disse: “Por que quer se aborrecer estudando?
Por que quer ir à escola? Venha comigo ao País dos
Brinquedos. Lá não estudaremos mais, lá nos divertiremos
da manhã até a noite e estaremos sempre alegres”.
– E por que seguiu o conselho desse falso amigo, desse
mau colega?
– Por quê? Porque, minha Marmotinha, eu sou um boneco
sem juízo... e sem coração. Oh! Se eu tivesse um tiquinho
de coração, não teria nunca abandonado aquela boa Fada,
que me queria como uma mãe e que tinha feito tanto por
mim! E a esta hora não seria mais um boneco, e sim um
menino comportado, como tantos outros! Oh!... Mas se
encontro o Pavio, ai dele! Vai ouvir poucas e boas!
Ia sair quando se lembrou das orelhas de burro e,
envergonhado de mostrá-las em público, o que inventou?
Pegou um grande capuz de algodão e enfiou-o na cabeça,
puxando-o para baixo até cobrir as orelhas.
Depois saiu e começou a procurar Pavio por toda parte.
Procurou nas ruas, nas praças, nos teatrinhos, em todo
lugar, mas não o encontrou. Pediu notícias a quem
encontrou pela rua, mas ninguém o tinha visto.
Então foi procurá-lo em casa e, chegando à porta, bateu.
– Quem é? – perguntou Pavio do lado de dentro.
– Sou eu! – respondeu o boneco.
– Espere um pouco, vou abrir.
Depois de meia hora a porta se abriu, e imagine como
ficou Pinóquio quando, entrando na sala, viu o Pavio com
um grande capuz de algodão que descia até abaixo do
nariz.
Ao ver o capuz, Pinóquio sentiu quase um consolo e
pensou logo:
– Será que meu amigo está doente da mesma doença que
eu? Será que tem também a febre de burrico?
E fingindo não ter percebido nada, perguntou, sorrindo:
– Como está, meu caro Pavio?
– Bem demais. Bem como um rato em uma tigela de
queijo parmesão.
– Sério?
– E por que não deveria ser?
– Desculpe, amigo, mas, então, por
que tem na cabeça esse capuz que
cobre suas orelhas?
– O médico me receitou, pois eu
estou mal de um joelho. E você, caro
Pinóquio, por que usa esse capuz
puxado até abaixo das orelhas?
– O médico me receitou, pois eu
esfolei um pé.
– Oh! Pobre Pinóquio!
– Oh! Pobre Pavio! 
Seguiu-se um longo silêncio, durante
o qual os dois amigos não fizeram mais
que olhar um para o outro, com cara de
zombaria.
Finalmente o boneco, com uma Pegou um grande capuz
vozinha doce, de flauta, disse: de algodão e enfiou-o na

– Tenho uma curiosidade, meu caro cabeça...


Pavio: já sofreu de alguma doença nas orelhas?
– Nunca! E você?
– Nunca! Porém, desde hoje cedo sinto pontadas na
orelha.
– Também sinto a mesma coisa!
– Você também?! E qual é a orelha que dói?
– As duas. E em você?
– As duas. Será a mesma doença?
– Receio que sim.
– Me faz um favor, Pavio?
– Claro! De todo o coração.
– Me deixe ver suas orelhas?
– Por que não? Mas antes quero ver as suas, caro
Pinóquio.
– Não, o primeiro deve ser você.
– Não, meu caro! Primeiro você, e depois eu!
– Bem, vamos fazer um pacto entre bons amigos – disse
então o boneco.
– E qual é o pacto?
– Vamos nós dois tirar o capuz ao mesmo tempo, aceita?
– Aceito.
– Então, atenção! 
E Pinóquio começou a contar em voz alta:
– Um! Dois! Três!
No três, cada um tirou seu capuz e jogou para o ar.
Aí aconteceu uma cena que pareceria incrível, se não
fosse verdadeira: Pinóquio e Pavio, quando se viram
atacados os dois pela mesma catástrofe, em vez de ficarem
deprimidos e chorosos, começaram a fazer mímicas sobre
suas orelhas demasiadamente crescidas, e, depois de mil
palhaçadas, acabaram chorando de rir.
E riram, riram, riram de ter de segurar a barriga, até que,
no melhor do riso, Pavio, se calou repentinamente e,
cambaleando e mudando de cor, pediu:
Começaram a fazer mímicas sobre as suas orelhas demasiadamente crescidas...

– Ajude-me, ajude-me, Pinóquio!


– O que há?
– Ai de mim! Não consigo mais ficar de pé.
– Eu também não! – gritou Pinóquio, gemendo e
cambaleando.
Ficaram os dois de quatro no chão e, caminhando com as
mãos e com os pés, começaram a rodar e a correr pela sala.
E enquanto corriam, seus braços viraram patas, os rostos se
alongaram e ganharam focinhos, e as costas se cobriram de
um pelo cinza-claro com pintinhas negras.
Mas sabe qual foi o pior momento para os dois infelizes?
O pior momento, o mais humilhante, foi quando sentiram a
cauda despontar atrás. Vencidos então pela vergonha e pela
dor, tentaram chorar e lamentar pelo seu destino.
Melhor que não tivessem feito isso nunca! Em vez de
gemidos e de lamentos, soltavam zurrados de burro. E
zurrando sonoramente, faziam os dois, em coro:
– Hi-hó... Hi-hó... Hi-hó.
Nesse meio-tempo, bateram na porta, e uma voz disse lá
de fora:
– Abram! Sou o cocheiro da carruagem que trouxe vocês
a este país. Abram logo, senão, ai de vocês!

E zurrando sonoramente, faziam os dois, em coro: Hi-hó... Hi-hó... Hi-hó.


33.
Virando um burrico de verdade, Pinóquio é levado para ser vendido, e o diretor
de uma companhia de palhaços o compra para ensiná-lo a dançar e a saltar
cercas; mas uma noite ele se fere, e alguém o compra para fazer um tambor com
sua pele

V
endo que a porta não se abria, o homenzinho a
arrebentou com um violentíssimo chute e, entrando na
sala, disse a Pinóquio e a Pavio, com seu risinho de sempre:
– Bravos meninos! Zurraram bem, eu logo reconheci suas
vozes e por isso estou aqui.
Os dois burricos ficaram abatidos, desanimados, de
cabeças e orelhas baixas e com as caudas entre as pernas.
A princípio o homenzinho os alisou, acariciou, apalpou e,
então, pegando uma escova, começou a escová-los bem.
Escovando com fúria, deixou os dois lustrosos como
espelhos; então pôs cabrestos neles e os conduziu para a
praça do mercado, na esperança de vendê-los e conseguir
um bom dinheiro.
Os compradores, de fato, não se fizeram esperar. Pavio foi
comprado por um camponês cujo burro tinha morrido no dia
anterior, e Pinóquio foi vendido ao diretor de uma companhia
de palhaços e de saltadores de corda, que o comprou para
amestrá-lo e fazê-lo saltar e dançar junto com os outros
animais da companhia.
Agora você compreendeu qual era o belo trabalho do
homenzinho? Aquele bruto monstro, que tinha a fisionomia
doce como leite com mel, ia de tempos em tempos, com
uma carruagem, viajar pelo mundo. Com promessas e
adulações, recolhia os meninos preguiçosos, que tinham
horror a livros e escolas, e, depois de lotar com eles a
carruagem, os conduzia ao País dos Brinquedos para
passarem o tempo em jogos, em algazarras e em
divertimentos. Quando aqueles pobres meninos iludidos, na
ânsia de brincar sempre e de não estudar nunca, viravam
burricos, o monstro, alegre e contente, os levava para
vender nas feiras e nos mercados. E assim, em poucos anos,
tinha feito rios de dinheiro e ficado milionário.

...e os conduziu para a praça do mercado, na esperança de vendê-los...

O que aconteceu com Pavio, não sei. Sei, por outro lado,
que Pinóquio enfrentou, desde os primeiros dias, uma vida
duríssima e atribulada.
Quando foi conduzido ao estábulo, o novo patrão encheu o
cocho de palha, mas Pinóquio, depois de uma bocada, cuspiu
no chão.
O patrão, resmungando, encheu o cocho de feno, que
também não agradou ao burrico.
– Ah! Não lhe agrada nem mesmo o feno? Deixa estar,
burrico mimado, que se tem caprichos, vou tratar de livrar
você deles! – gritou o patrão, enraivecido.
E como corretivo, lascou logo uma chicotada nas pernas
do burrico.
Pinóquio começou a chorar e a zurrar de dor, e zurrou:
– Hi-hó... Hi-hó... Não posso digerir a palha!
– Então come o feno! – respondeu o patrão, que entendia
muitíssimo bem o dialeto dos burros.
– Hi-hó... hi-hó... O feno me faz doer a barriga!
– Quer que eu sustente um burro como você com peito de
galinha e geleia de mocotó? – retrucou o patrão,
enraivecendo-se ainda mais e lascando uma segunda
chicotada.
Com a segunda chicotada, Pinóquio, por prudência, se
calou, não disse mais nada.
Nesse meio-tempo, a estrebaria foi fechada; Pinóquio ficou
sozinho e, como não comia havia muitas horas, começou a
salivar de fome, muita fome. E, salivando, escancarava uma
boca que parecia a de um forno.
Afinal, não achando nada no cocho, se conformou em
mastigar um pouco de feno: mastigou bastante, fechou os
olhos e engoliu.
– Esse feno até que não é ruim, mas teria sido muito
melhor se eu tivesse continuado a estudar!... A esta hora,
em vez de feno, poderia estar comendo uma ponta de pão
fresco e uma bela fatia de salame. Paciência! – disse consigo
mesmo.
Na manhã seguinte, acordando, procurou no cocho um
pouco mais de feno, mas não encontrou, pois tinha comido
tudo de noite.
Então deu uma bocada na palha picada e, enquanto
mastigava, teve de se convencer de que o sabor da palha
picada não parecia nada com o de risoto à milanesa ou o de
macarrão à napolitana.
– Paciência! Que ao menos minha infelicidade possa servir
de lição aos meninos desobedientes e que não têm vontade
de estudar. Paciência! Paciência! – repetiu, continuando a
mastigar.
– Paciência coisa nenhuma! Está pensando, meu belo
burrico, que eu comprei você unicamente para lhe dar de
beber e de comer? Eu o comprei para que trabalhe e me
faça ganhar muito dinheiro! Levante, vamos! Venha comigo
ao circo, vou ensiná-lo a saltar através dos aros, a furar com
a cabeça os barris de lata e a dançar a valsa e a polca em pé
sobre as patas traseiras– gritou o patrão, entrando na
estrebaria.
O pobre Pinóquio, ou por amor ou pela força, teve que
aprender todas essas belíssimas coisas, mas para isso foram
precisos três meses de lições e muitas chicotadas de
arrancar o pelo.
Chegou finalmente o dia em que seu patrão pôde anunciar
um espetáculo verdadeiramente extraordinário. Os cartazes
de várias cores, pregados nas esquinas das ruas, diziam:
Naquela noite, como pode imaginar, uma hora antes que
começasse o espetáculo o teatro estava repleto.
Não se achava mais nem uma poltrona, nem um lugar
especial, nem um camarote, nem que se pagasse a peso de
ouro.
As arquibancadas do circo formigavam de meninos, de
meninas e de jovens de todas as idades, atraídos pela ideia
de ver dançar o famoso burrico Pinóquio.
Acabada a primeira parte do espetáculo, o diretor da
companhia, vestido de túnica negra, calções brancos na
altura das coxas e botas de pele até acima dos joelhos, se
apresentou à lotadíssima plateia e, depois de uma grande
reverência, recitou com muita solenidade o seguinte e
despropositado discurso:
– Respeitável público, cavalheiros e damas! O humilde
subscrito, estando de passagem por esta ilustre metrópole,
quis conferir-me a honra, senão o prazer, de apresentar a
esse inteligente e notável auditório um célebre burrico que
teve já a honra de dançar na presença de Suas Majestades,
os Imperadores de todas as principais cortes da Europa. E,
agradecendo-vos, ajudem-nos com vossa animadora
presença e compreensão!
O discurso foi recebido com muitas risadas e com muitos
aplausos, mas os aplausos se redobraram e viraram uma
espécie de furacão quando o burrico Pinóquio chegou ao
meio do picadeiro. Ele estava todo embonecado para a festa:
tinha uma rédea nova de couro encerado, com fivelas e
tachas de bronze, duas camélias brancas nas orelhas, a crina
dividida em muitos cachos amarrados com fitinhas de seda
vermelha, uma grande faixa de ouro e prata atravessada no
peito e a cauda trançada com fitas de veludo roxo e azul.
Era, para resumir, um burrico apaixonante!
O diretor, ao apresentá-lo ao público, acrescentou:
– Meus respeitáveis ouvintes! Não estarei aqui a falar
mentiras sobre as grandes dificuldades que me oprimiram
para compreender e subjugar esse mamífero, enquanto ele
pastava livremente de montanha em montanha nas planícies
da zona tórrida. Observem, peço, quanta selvageria
transparece em seus olhos, já que tendo sido inúteis todos
os meios para domesticá-lo, a fim de que convivesse com os
quadrúpedes civis, tive muitas vezes de recorrer ao delicado
dialeto do chicote. Mas toda a minha gentileza, em vez de
me fazer querer bem a ele, me prejudicou enormemente o
ânimo. Eu, porém, seguindo o sistema de Galles, achei em
seu crânio uma pequena cartilagem óssea que a própria
Faculdade Médica de Paris reconheceu ser o bulbo
regenerador dos cabelos e da dança pírrica.******* E por isso eu
quis amestrá-lo na dança, bem como nos relativos saltos
através dos aros e dos barris revestidos de metal. Admirem-
no e depois julguem! Antes, porém, de verem com seus
próprios olhos, permitam, senhores, que eu os convide ao
diurno espetáculo de amanhã à noite, mas na apoteose de
que o tempo chuvoso ameace água, então o espetáculo, em
vez de amanhã à noite, será adiado para amanhã de manhã,
às 11 horas antemeridianas da tarde.
E aqui o diretor fez outra profundíssima reverência e, em
seguida, virando-se para Pinóquio, disse:
– Ânimo, Pinóquio! Antes de dar início a seus exercícios,
cumprimente o respeitável público, cavalheiros, damas e
crianças!
Pinóquio, obediente, dobrou os joelhos da frente e ficou
ajoelhado até que o diretor, estalando o chicote, gritou:
– A passo!
Então o burrico se ergueu sobre as quatro patas, e
começou a girar em torno do picadeiro, caminhando
devagar, sempre a passo.
Depois de um tempo, o diretor gritou:
– A trote! – E Pinóquio, obedecendo, trocou o passo por
trote.
– A galope! – e Pinóquio começou a galopar.
– À carreira! – e Pinóquio desandou a correr, em grande
carreira. Mas enquanto corria como um cavalo de corrida, o
diretor, erguendo o braço para o alto, descarregou um tiro de
pistola.
O burrico, então, fingindo estar ferido, caiu estendido no
picadeiro, como se estivesse morrendo de verdade.
Erguendo-se em meio a uma explosão de aplausos, de
urras e de palmas que iam até as estrelas, ele levantou a
cabeça e olhou para cima... e viu, em um camarote, uma
bela senhora que tinha no pescoço um grosso colar de ouro,
do qual pendia um medalhão. No medalhão estava pintado o
retrato de um boneco.
Pinóquio, obediente, dobrou os joelhos da frente...

– Aquele é o meu retrato! Aquela senhora é a Fada! –


pensou Pinóquio, reconhecendo-a. E, tomado de grande
contentamento, tentou gritar:
– Oh, Fadinha minha! Oh, Fadinha minha!
Mas em vez dessas palavras, saiu de sua garganta um
zurro tão sonoro e prolongado que fez rir todos os
espectadores, especialmente as crianças.
Então o diretor, para ensinar que não é de boa educação
começar a zurrar na frente do público e para fazer com que
aprendesse, bateu em seu focinho com o cabo do chicote.
O pobre burrico, botando para fora um palmo de língua,
ficou lambendo o focinho pelo menos cinco minutos,
acreditando poder aliviar, assim, a dor que sentia.
Mas qual foi o seu desespero quando, virando-se para
cima uma segunda vez, viu que o camarote estava vazio e
que a Fada tinha desaparecido!
Sentiu como se fosse morrer: seus olhos se encheram de
lágrimas e começou a chorar exageradamente. Porém
ninguém percebeu, menos ainda, o diretor, que, estalando o
chicote, gritou:
– Vamos, Pinóquio! Agora mostrará a esses senhores com
que graça sabe saltar pelo aro.
Pinóquio tentou duas ou três vezes, mas cada vez que
chegava diante do aro, em vez de atravessá-lo, passava
muito comodamente por baixo. Afinal, deu um salto e o
atravessou, mas as patas de trás ficaram agarradas no aro,
motivo pelo qual caiu, com o aro enganchado e tudo, do
outro lado do picadeiro.
Quando se ergueu, estava manco, e a duras penas pôde
voltar para a estrebaria.
– Pinóquio! Pinóquio! Queremos o burrico! Que venha o
burrico! – gritavam as crianças da plateia, penalizadas e
comovidas com o tristíssimo acontecimento.
Mas naquela noite o burrico não foi mais visto.

O burrico, com aquela pedra no pescoço, foi logo ao fundo...

Na manhã seguinte, o veterinário declarou que ficaria


manco para o resto da vida.
Ouvindo isso, o diretor disse ao ajudante de estrebaria:
– O que vou fazer com um burro manco? Será só uma boca
a mais para alimentar... Leve-o para a praça e venda-o.
Chegando à praça, encontraram logo um comprador, que
perguntou ao ajudante de estrebaria:
– Quanto quer por esse burrico manco?
– Vinte moedas.
– Dou duas. Não pense que o compro para serviços,
compro unicamente pela pele. Vejo que tem a pele muito
dura, e com ela quero fazer um tambor para a banda musical
do meu vilarejo.
Deixo para você pensar, leitor, o que sentiu o pobre
Pinóquio quando percebeu que estava destinado a virar um
tambor!
O fato é que o comprador, logo que pagou as duas
moedas, levou o burrico a um rochedo que havia na beira do
mar; lá, com a mesma corda, amarrou uma pedra ao
pescoço dele e uma corda em uma de suas pernas,
mantendo a ponta da corda nas mãos; depois empurrou
Pinóquio, jogando-o na água.
O burrico, com aquela pedra no pescoço, logo afundou, e o
comprador, segurando firme a ponta da corda, sentou no
rochedo, esperando que ele tivesse todo o tempo necessário
para morrer afogado; então iria esfolá-lo e retirar sua pele.
34.
Pinóquio, jogado no mar, é comido pelos peixes e volta a ser um boneco, mas,
enquanto nada para se salvar, é engolido pelo terrível Peixe-Cão

D
epois de cinquenta minutos que o burrico estava na
água, o comprador concluiu:
– A esta hora, o meu pobre burrico manco deve estar bem
afogado. Vamos, portanto, retirá-lo, e fazer com a pele um
belo tambor!
E começou a puxar a corda, e puxa que puxa, viu
aparecer na superfície... adivinhe? Em vez de um burrico
morto, surgiu na outra ponta da corda um boneco vivo que
se contorcia feito uma enguia.
Vendo aquele boneco de pau, o pobre homem acreditou
que sonhava e ficou ali tonto, de boca aberta e olhos
esbugalhados.
Recuperando-se um pouco do primeiro susto, disse,
chorando e gaguejando:
– E o burrico que joguei no mar, onde está?
– Aquele burrico sou eu! – respondeu o boneco, rindo.
– Você?!
– Eu mesmo.
– Ah! Ladrão! Está me zoando?!
– Zoando? Muito pelo contrário, eu falo sério.
– Mas como você, que há pouco era um burrico, entrou na
água e virou um boneco de pau?!
– Deve ser efeito da água do mar. O mar tem dessas
manhas.
– Sem essa, boneco, sem essa! Nem pense em se divertir
às minhas custas. Ai de você, se perco a paciência!
– Bem, patrão, quer saber a verdadeira história?
Desamarre minha perna e eu conto. 
Em vez de um burrico morto, surgiu na outra ponta da corda um boneco vivo...

O bom boboca do comprador, curioso para conhecer a


verdadeira história, desatou logo o nó da corda, e então
Pinóquio, livre como um pássaro no ar, começou a contar:
– Fique sabendo que eu era um boneco de pau, como
agora, mas queria porque queria virar um menino como
existem tantos neste mundo. Então, pela minha pouca
vontade de estudar e por dar atenção a colegas sem juízo,
fugi de casa... e um belo dia, acordando, me vi
transformado em um burro com orelhas enormes... e com
uma baita cauda! Que vergonha aquilo foi para mim! Uma
vergonha imensa, caro patrão, que o bendito Santo Antônio
nunca o faça passar por ela! Levado para ser vendido no
mercado dos burros, fui comprado pelo diretor de uma
companhia equestre, um circo, que pôs na cabeça fazer de
mim um grande bailarino ou um grande saltador de aros;
mas uma noite, durante o espetáculo, sofri uma bruta
queda e fiquei manco de duas pernas. Então o diretor, não
sabendo o que fazer com um burro manco, mandou me
vender, e você me comprou!
– Infelizmente! E paguei duas moedas. E agora, quem me
dá de volta as minhas pobres duas moedas?
– E por que me comprou? Você me comprou para fazer
um tambor com a minha pele! Um tambor!
– Infelizmente! E agora, onde encontrarei outra pele?!
– Não se desespere, patrão. Há tantos burricos neste
mundo!
– Diga-me, moleque impertinente, sua história acaba
aqui?
– Não. Mais umas poucas palavras, e ela termina. Depois
de me comprar, você me trouxe a este lugar para me
matar; mas, cedendo a um sentimento piedoso de
humanidade, preferiu amarrar uma pedra no meu pescoço e
me jogar no fundo do mar. Esse sentimento de delicadeza
honra muitíssimo você, e eu guardarei eterno
reconhecimento. Porém, caro patrão, dessa vez você não
contou com a Fada... – respondeu o boneco.
– E quem é essa Fada?
– É minha mãe, que se parece com todas as boas mães,
que querem um grande bem aos seus filhos e não os
perdem nunca de vista, ajudando-os amorosamente em
qualquer situação, mesmo quando esses filhos, pelas
trapalhadas e pelos maus comportamentos, mereceriam ser
abandonados e deixados por conta própria. Disse, portanto,
que a boa Fada, assim que me viu em perigo de afogar,
mandou logo um bando infinito de peixes que, acreditando
que eu era mesmo um burrico morto, começaram a me
comer! E que bocas faziam! Eu nunca teria acreditado que
os peixes fossem mais gulosos ainda que as crianças! Um
me comeu as orelhas, outro, o focinho; um, o pescoço e a
crina, outro, a pele das patas; um, a pelagem das costas... E
entre eles havia um peixinho tão educado, que demorou a
começar a mastigar minha cauda.
– De hoje em diante, juro não provar mais carne de peixe!
Muito me desagradaria abrir uma tainha ou uma merluza e
encontrar, na barriga, uma cauda de burro! – disse o
comprador, horrorizado.
– Eu penso como você. E tem mais: quando acabaram de
comer toda aquela pele de burro que me cobria da cabeça
aos pés, os peixes, como é natural, chegaram ao osso... ou,
para dizer melhor, chegaram à madeira, pois, como vê, sou
feito de madeira duríssima. Mas depois das primeiras
mordidas, aqueles gulosos perceberam que a madeira não
era carne para seus dentes e, enjoados daquela comida
indigesta, foram embora, um para cá, outro para lá, sem
nem ao menos se virar para me dizer “obrigado”... E está
contado como você, puxando a corda, encontrou um boneco
vivo em vez de um burrico morto – concluiu o boneco, rindo.
– Eu até posso rir da sua história. Mas sei que gastei duas
moedas para comprar você e quero meu dinheiro de volta.
Sabe o que vou fazer? Vou levar você de novo ao mercado e
o venderei a preço de lenha seca para acender o fogo na
lareira – o comprador gritou, embrutecido.
– Me venda, sim, fico contente – disse Pinóquio.
Mas, ao dizer isso, pulou na água. E nadando
alegremente, afastando-se da praia, gritava:
– Adeus, patrão! E se precisar de uma pele para fazer um
tambor, lembre-se de mim! 
E ria e nadava e, em seguida, virando-se para trás,
gritava mais forte:
– Adeus, patrão! Se precisar de um pouco de lenha seca
para acender a lareira, lembre-se de mim!
Assim, em um piscar de olhos tinha se afastado tanto,
que quase não era mais visto: na superfície do mar, via-se
apenas um pontinho negro, que de vez em quando
levantava as pernas e fazia piruetas e saltos, como um
golfinho de bom humor.
Enquanto nadava ao acaso, Pinóquio viu no mar um
rochedo que parecia de mármore branco, e em cima dele,
uma bela cabritinha, que balia amorosamente e fazia sinal
para que se aproximasse.
A coisa mais fora do comum era que a lã da cabritinha,
em vez de branca, ou negra, ou malhada, como as de
outras cabras, era azul, mas de um azul tão fulgurante que
lembrava muitíssimo os cabelos da Bela Menina.
Deixo para você pensar se o coração do pobre Pinóquio
começou a bater mais forte!
Redobrando as forças e a energia, ele começou a nadar
rumo ao rochedo branco, e já estava a meio caminho
quando surge acima da superfície e vem a seu encontro
uma horrível cabeça de monstro marinho, com a boca
escancarada como um abismo e três fileiras de presas que
teriam dado medo mesmo se fossem pintadas.
E sabe quem era aquele monstro marinho?
Nada mais, nada menos que aquele gigantesco Peixe-Cão,
muitas vezes lembrado nesta história e que, pelas suas
chacinas e pela sua insaciável voracidade, era apelidado de
Terror dos Peixes e dos Pescadores.
Imagine o espanto do pobre Pinóquio ao avistar o
monstro. Procurou evitá-lo, mudar de rumo, procurou fugir,
mas aquela imensa boca escancarada vinha sempre a seu
encontro com a velocidade de uma flecha.
– Rapidinho, Pinóquio, por caridade! – gritava a bela
cabritinha.
E Pinóquio nadava desesperadamente com os braços,
com o peito, com as pernas e com os pés.
– Corra, Pinóquio, o monstro se aproxima!
E Pinóquio, reunindo todas as suas forças, redobrava o
esforço na corrida.
– Cuidado, Pinóquio! O monstro vai pegar você! Lá vem
ele! Lá vem ele! Rapidinho, por caridade, ou está perdido!

E Pinóquio nadava desesperadamente com os braços,


com o peito, com as pernas e com os pés.

E Pinóquio, nadando mais rápido que nunca, ia, ia e ia,


como uma bala de fuzil. E quando estava chegando no
rochedo, a cabritinha já debruçada, estendendo as patinhas
para ajudá-lo a sair da água...
...era tarde! O monstro o alcançou. Ao tomar fôlego, o
monstro bebeu o pobre boneco como teria bebido um ovo
de galinha, e o engoliu com tanta violência e com tanta
avidez, que Pinóquio, a caminho da barriga dele, bateu de
um modo tão desajeitado que ficou atordoado por um bom
quarto de hora.
Quando voltou a si, não sabia nem se orientar, nem ao
menos em que mundo estava. A seu redor havia uma
grande escuridão, uma escuridão tão negra e tão profunda
que parecia ter entrado de cabeça em um tinteiro cheio.
Prestou atenção e não ouviu nenhum rumor; somente, de
tempo em tempo, sentia bater no rosto um grande sopro de
vento. A princípio não sabia de onde saía aquele vento, mas
logo entendeu que vinha dos pulmões do monstro: é que o
Peixe-Cão sofria muitíssimo de asma, e quando respirava
parecia até que o vento norte estava soprando.
Pinóquio, de início, tentou criar um pouco de coragem,
mas, quando teve a prova e a contraprova de estar preso na
barriga do monstro marinho, começou a chorar e a gritar e,
chorando, gritava:
– Socorro! Socorro! Oh, pobre de mim! Tem alguém aí
para me salvar?!
– Quem é que vai salvá-lo, infeliz? – ouviu-se, naquela
escuridão, uma voz rachada de violão desafinado.
– Quem é que está falando? – perguntou Pinóquio,
sentindo-se gelar de espanto.
– Sou eu! Sou um pobre Atum, engolido pelo Peixe-Cão
junto com você. E que peixe é você?
– Eu não tenho nada a ver com peixes. Eu sou um boneco.
– Então, se não é um peixe, por que se deixou engolir pelo
monstro?
– Não fui eu que me deixei engolir, foi ele que me engoliu!
E agora, o que devemos fazer aqui nesta escuridão?...
– Nos conformar e esperar que o Peixe-Cão faça sua
digestão...
– Mas eu não quero ser digerido! – berrou Pinóquio,
recomeçando a chorar.
– Nem eu quero ser digerido, mas sou um tanto filósofo e
me consolo pensando que, quando se nasce Atum, há mais
dignidade em morrer na água do que no azeite! – retrucou o
Atum.
– Bobagem! – gritou Pinóquio.
– É minha opinião, e as opiniões, como dizem os Atuns
Políticos, devem ser respeitadas! – replicou o Atum.
– Eu quero ir embora daqui... Eu quero fugir...
– Fuja, se conseguir!
– É muito grande, esse Peixe-Cão que nos engoliu? –
perguntou o boneco.
– Imagine que seu corpo tem mais de um quilômetro de
comprimento, sem contar a cauda.
No momento em que tinha essa conversa na escuridão,
Pinóquio pensou ver, ao longe, uma espécie de clarão.
– E que diacho será aquela luzinha lá longe, bem longe? –
disse Pinóquio.
– Deve ser algum nosso companheiro de desventura, que
espera, como nós, o momento de ser digerido!
– Quero ir até lá. Não pode ser algum velho peixe capaz
de me ensinar o caminho para fugir?
– Desejo que sim, de coração, caro boneco.
– Adeus, Atum.
– Adeus, boneco, e boa sorte.
– Quando nos veremos de novo?
– Quem sabe? É melhor nem pensar!
35.
Dentro da barriga do Peixe-Cão, Pinóquio reencontra... Quem? Leia o capítulo e
saberá

L
ogo que disse adeus ao Atum, Pinóquio saiu tateando no
meio da escuridão e, caminhando e apalpando as
paredes da barriga do Peixe-Cão, rumou, passo a passo, na
direção do pequeno clarão que via brilhar lá longe.
Ao caminhar, sentiu que seus pés chafurdavam em água
oleosa e escorregadia, e a água tinha um cheiro tão forte de
peixe frito que se sentiu em um vilarejo, em uma noite da
Quaresma.
uanto mais avançava, mais brilhante
e distinto ficava o clarão. Pinóquio
caminhou, caminhou, até que chegou,
e quando chegou... o que encontrou?
Dou uma chance em mil para você
adivinhar: encontrou uma pequena
mesa posta, com uma vela acesa em
cima, enfiada em uma garrafa de
cristal verde. E, sentado diante dela,
um velhote todo branco, como se fosse
de neve ou de creme chantili, que
mordiscava alguns peixinhos vivos,
mas tão vivos que às vezes, quando
iam ser mordidos, acabavam Quanto mais avançava,
escapando da boca. mais brilhante ficava o
Diante daquela cena, Pinóquio teve clarão...
uma alegria tão grande e tão inesperada, que não faltou
nadinha para que entrasse em delírio. Queria rir, queria
chorar, queria dizer um monte de coisas, mas em vez disso
murmurava confusamente e gaguejava palavras
incompletas e incompreensíveis. Finalmente, conseguiu
lançar um berro de alegria e, escancarando os braços e
pulando no pescoço do velhote, começou a gritar:
– Oh! Meu papaizinho! Finalmente o encontrei! Agora não
o deixo mais, nunca mais, nunca mais!

...pulando no pescoço do velhote, começou a gritar...

– Então os meus olhos me dizem a verdade?! Então é


mesmo o meu querido Pinóquio?! – replicou o velhote,
esfregando os olhos.
– Sim, sim! Sou eu, eu mesmo! E você já me perdoou, não
é verdade? Oh, meu papaizinho, como é bom! E pensar que
eu, ao contrário... Oh! Mas se soubesse quantas desgraças
choveram sobre a minha cabeça, e quantas coisas deram
errado para mim! Imagine que o dia em que você, pobre
papaizinho, vendeu sua casaca e comprou o Abecedário
para eu ir à escola, eu fugi para ver os bonecos, e o titereiro
queria me jogar no fogo onde ia assar um cordeiro, e foi ele
que me deu cinco moedas de ouro para eu levar para você,
mas eu encontrei a Raposa e o Gato, que me conduziram à
Pousada do Camarão Vermelho, onde eles comeram como
lobos, e, partindo sozinho na noite, encontrei os assassinos,
que se puseram a correr atrás de mim, e eu corria, e eles
iam atrás, e eu corria, e eles iam sempre atrás, e eu corria,
até que me pegaram e penduraram em um galho do Grande
Carvalho, de onde a Bela Menina dos Cabelos Azuis mandou
me tirar com uma carruagem, e os médicos, quando me
visitaram, disseram logo: “Se não está morto, é sinal de que
está mesmo vivo”, e então me escapou uma mentira, e meu
nariz começou a crescer, e eu não passava mais pela porta
do quarto, motivo pelo qual parti com a Raposa e com o
Gato para enterrar as quatro moedas de ouro, porque uma
eu gastei na Pousada, e o Papagaio danou a rir, e, em vez
de duas mil moedas, não encontrei mais nada, e quando o
juiz soube que fui roubado, mandou logo me meterem na
prisão, para dar uma satisfação aos ladrões, daí, ao ir
embora, vi um belo cacho de uvas em um campo, fiquei
preso na armadilha, e o camponês, com toda a razão, me
colocou a coleira do cão para que eu fizesse a guarda do
galinheiro, daí reconheceu a minha inocência e me deixou ir
embora, e a serpente, com a cauda que saía fumaça,
começou a rir e arrebentou uma veia do peito, e assim
voltei à casa da Bela Menina, que estava morta, e Colombo,
vendo que eu chorava, me disse: “Vi o seu pai, que
fabricava uma barquinha para ir procurar você”, e eu lhe
disse: “Oh! Se eu tivesse asas também”, e ele me disse:
“Quer ir até seu pai?”, e eu lhe disse: “Talvez! Mas quem me
leva lá?”, e ele me disse: “Eu o levo”, e eu lhe disse:
“Como?”, e ele me disse: “Monta na minha garupa”, e assim
voamos a noite toda, então de manhã todos os pescadores
que olhavam para o mar me disseram: “Há um pobre
homem em uma barquinha que está para se afogar”, e eu
de longe o reconheci, pois o coração me dizia que era você,
e fiz sinal para que voltasse para a praia...
– Eu também o reconheci, e teria de bom grado voltado
para a praia, mas o que fazer? O mar estava bravo, e um
vagalhão revirou a barquinha. Então um terrível Peixe-Cão
que estava ali perto, assim que me viu na água, correu para
mim e, pondo a língua para fora, me apanhou e me engoliu
como um bolinho – disse Gepeto.
– E há quanto tempo está preso aqui? – perguntou
Pinóquio.
– Daquele dia em diante, faz dois anos: dois anos, meu
Pinóquio, que me pareceram dois séculos!
– E como fez para viver? E onde encontrou a vela? E os
fósforos para acendê-la, quem lhe deu?
– Vou contar tudo a você. Deve saber que aquela mesma
tempestade que virou minha barquinha fez também afundar
um navio mercantil. Os marinheiros se salvaram, todos, mas
o navio foi ao fundo. Acontece que esse mesmo Peixe-Cão,
que naquele dia estava com excelente apetite, depois de
me engolir, engoliu também o navio...
– Como! Engoliu tudo de uma bocada só?! – perguntou
Pinóquio, maravilhado.
– Tudo de uma bocada só! Cuspiu só o mastro principal,
que tinha ficado preso entre seus dentes como uma espinha
de peixe. Para minha grande sorte, o navio estava
carregado não só de latas de carne em conserva, mas
também de garrafas de vinho, de caixas de biscoito, de pão
torrado, de uva-passa, de queijo, de café, de açúcar, de
velas e de fósforos. Com toda essa fartura, pude viver por
dois anos, mas hoje estou no fim da reserva, na despensa
não há mais nada, e essa vela é a última que sobrou...
– E agora?
– Agora, meu caro, ficaremos os dois no escuro.
– Então, meu papaizinho, não há tempo a perder.
Precisamos pensar logo em sair daqui – disse Pinóquio.
– Sair daqui?... Como?
– Escapando da boca do Peixe-Cão e fugindo pelo mar.
– Você fala bem, mas eu, caro Pinóquio, não sei nadar!
– E o que importa?... Você monta a cavalo nos meus
ombros e eu, que sou um bom nadador, o levarei são e
salvo até a praia.
– Ilusão, meu menino! Acha possível que um boneco de
apenas um metro de altura, como você, possa ter tanta
força para me levar a nado? – replicou Gepeto, balançando
a cabeça e sorrindo tristemente.
– Experimente e verá! De todo modo, se está escrito nas
estrelas que devemos morrer, tenhamos ao menos o grande
consolo de morrer juntos, abraçados.
E sem dizer mais nada Pinóquio pegou a vela e, andando
em frente para iluminar o caminho, disse ao pai:
– Venha atrás de mim e não tenha medo.
Assim caminharam um bom pedaço e atravessaram toda
a barriga e todo o estômago do Peixe-Cão. Mas chegando ao
ponto onde começava a espaçosa garganta do monstro,
acharam bom parar, dar uma olhada e escolher o momento
oportuno para a fuga.
Ora, o Peixe-Cão, sendo muito velho e sofrendo de asma e
de palpitações no coração, era obrigado a dormir de boca
aberta, razão pela qual Pinóquio, chegando ao início da
garganta e olhando para cima, pôde ver, fora daquela
enorme boca escancarada, um belo pedaço de céu com
estrelas e um belíssimo luar.
– Esse é o verdadeiro momento de escapar. O Peixe-Cão
dorme como um arganaz, o mar está tranquilo e se vê tudo
como se fosse de dia. Venha atrás de mim, papai, e daqui a
pouco estaremos salvos – sussurrou o boneco.
Dito e feito: subiram pela garganta do monstro marinho e,
chegando à imensa boca, começaram a caminhar na ponta
dos pés sobre a língua, uma língua tão larga e tão longa que
parecia a trilha de um parque. E já estavam a ponto de dar
o grande salto e jogar-se no mar quando, no mais belo
momento, o Peixe-Cão espirrou, dando um pinote tão
violento que Pinóquio e Gepeto foram jogados para trás e
arremessados novamente no fundo do estômago do
monstro.
No grande choque da queda, a vela se apagou, e pai e
filho ficaram no escuro.
– E agora? – perguntou Pinóquio, sério.
– Ora, meu menino, estamos mais que perdidos.
– Por que perdidos? Me dê a mão, papai, e cuidado para
não escorregar!...
– Para onde me leva?
– Devemos tentar de novo a fuga. Venha comigo e não
tenha medo.
Pinóquio pegou o pai pela mão e, caminhando sempre na
ponta dos pés, subiram juntos pela garganta do monstro,
atravessaram toda a língua e escalaram as três fileiras de
dentes. Antes, porém, de dar o grande salto, o boneco
disse:
– Monte nos meus ombros e me abrace bem forte. O
resto, deixe comigo.
Logo que Gepeto se acomodou sobre os ombros do filho,
o bravo Pinóquio, seguro do que fazia, jogou-se na água e
começou a nadar. O mar estava tranquilo como um lago, a
lua espalhava seu clarão, e o Peixe-Cão continuava a
dormir, um sono tão profundo que não teria acordado nem
com um tiro de canhão.
...jogou-se na água e começou a nadar.
36.
Finalmente, Pinóquio deixa de ser um boneco e vira um menino

E
nquanto nadava rápido para alcançar a praia, Pinóquio
percebeu que o pai, a cavalo sobre seus ombros e com
as pernas na água, tremia muito, como se estivesse com
febre.
Tremia de frio ou de medo? Quem sabe? Talvez as duas
coisas. Mas Pinóquio, acreditando que a tremedeira fosse de
medo, disse, para confortá-lo:
– Coragem, papai! Em poucos minutos chegaremos à
praia e estaremos salvos.
– Mas onde está essa bendita praia? Olho para toda parte
e não vejo senão céu e mar! – reclamou o velhote, ficando
mais inquieto e apertando os olhos como fazem as
costureiras quando vão enfiar a agulha.
– Mas eu já vejo a praia. Saiba que eu sou como os gatos,
vejo melhor de noite que de dia – disse o boneco.
O pobre Pinóquio fingia estar de bom humor, mas em vez
disso... em vez disso, começava a se desencorajar, as forças
se acabavam, a respiração ficava pesada e difícil... Por fim,
não aguentava mais, e a praia estava sempre longe.
Nadou enquanto teve fôlego; então, virou a cabeça para
Gepeto e disse, com palavras entrecortadas:
– Papai, me ajuda... estou morrendo...
Pai e filho estavam a ponto de se afogar quando ouviram
uma voz de violão desafinado dizer:
– Quem é que está morrendo?
– Eu e meu pobre pai!
– Essa voz eu conheço! Você é Pinóquio!
– Certo, e você?
– Eu sou o Atum, seu companheiro de prisão na barriga do
Peixe-Cão.
– E como fez para escapar?
– Segui seu exemplo. Você foi quem me ensinou o
caminho, e depois de você eu também fugi.
– Meu caro Atum, você apareceu mesmo a tempo! Peço,
pelo amor que tem aos seus filhotes atuns, que nos ajude,
ou estamos perdidos.
– De bom grado e de todo o coração. Agarrem a minha
cauda e deixem-me guiar. Em quatro minutos levarei vocês
até a costa.

...julgaram mais cômodo montar na garupa do Atum.


Gepeto e Pinóquio, como pode imaginar, aceitaram logo o
convite, mas em vez de agarrarem a cauda, julgaram mais
cômodo montar na garupa do Atum.
– Somos muito pesados? – perguntou Pinóquio.
– Pesados? Nem pensar. Parece que tenho em cima de
mim duas casquinhas de concha – respondeu o Atum, que
tinha um corpo grande e robusto como o de um bezerro de
dois anos.
Chegando à praia, Pinóquio saltou antes para ajudar o
pai; depois se virou para o Atum e, com voz comovida,
disse:
– Meu amigo, você salvou meu pai! Portanto, não tenho
palavras para agradecer o bastante! Permita ao menos que
lhe dê um beijo, em sinal de reconhecimento eterno!
O Atum pôs o focinho fora da água, e Pinóquio, de joelhos
na areia, deu um afetuoso beijo em sua boca. O pobre
Atum, que não era acostumado a essa espontânea e viva
ternura, se sentiu de tal forma comovido que, envergonhado
de ser visto chorando como um menino, enfiou a cabeça na
água e desapareceu.
Nesse meio-tempo, amanhecera.
Pinóquio, oferecendo o braço a Gepeto, que tinha fôlego
apenas para ficar em pé, disse:
– Apoie-se no meu braço, querido papai, e vamos. Vamos
devagar, devagarinho como as formigas, e, quando ficarmos
cansados, descansaremos ao longo do caminho.
– E aonde devemos ir? – perguntou Gepeto.
– Em busca de uma casa ou de uma cabana onde nos
deem, por caridade, um naco de pão e um pouco de palha
que nos sirva de cama.
...Pinóquio, de joelhos na areia, deu um afetuoso beijo em sua boca.

Não tinham dado cem passos quando viram, sentados no


barranco da estrada, dois brutos focinhos, que estavam ali
naquela de pedir esmola.
Eram o Gato e a Raposa, mas quase não dava para
reconhecer nem um nem outro. Imagine que o Gato, no
esforço de se fingir de cego, tinha acabado por ficar cego de
verdade, e a Raposa, envelhecida, sem pelos e paralítica de
um lado, não tinha mais nem a cauda. Pois é... Aquela triste
ladrazinha, caída na mais completa miséria, um belo dia se
viu obrigada a vender até sua belíssima cauda a um
vendedor ambulante, que a comprou para fazer um mata-
moscas.
– Ó Pinóquio! Faça um pouco de caridade a esses dois
pobres doentes! – gritou a Raposa, choramingando.
– Doentes! – repetiu o Gato.
– Adeus, farsantes! Me enganaram mais de uma vez,
agora não me pegam mais – respondeu o boneco.
– Acredite, Pinóquio, que hoje somos pobres e
desgraçados de verdade!
– De verdade! – repetiu o Gato.
– Se são pobres é porque mereceram. Lembrem-se do
provérbio que diz: “As moedas roubadas não dão frutos
nunca”. Adeus, farsantes.
– Tenha compaixão de nós!
– De nós!
– Adeus, farsantes! Lembrem-se do provérbio que diz: “A
farinha do diabo vai toda no farelo”.
– Não nos abandone!
– ...done...! – repetiu o Gato.
– Adeus, farsantes! Lembrem-se do provérbio que diz:
“Quem rouba o cobertor do próximo, em geral, morre de
frio”. 
Assim dizendo, Pinóquio e Gepeto continuaram
tranquilamente pela estrada até que, mais cem passos
adiante, viram no fundo de uma trilha, no meio de um
campo, uma bela cabana de palha, com teto coberto de
telhas e de tijolos.
– Naquela cabana deve morar alguém. Vamos até lá –
disse Pinóquio.
Foram e bateram na porta.
– Quem é? – disse uma vozinha lá dentro.
– Somos um pobre pai e um pobre filho sem pão e sem
teto – respondeu o boneco.
– Gire a chave e a porta se abrirá – disse a vozinha.
Pinóquio girou a chave e a porta se abriu. Logo que
entraram, olharam para cá, olharam para lá, e não viram
ninguém.
– Onde será que está o dono da cabana? – perguntou
Pinóquio, curioso.
– Aqui em cima! 

− Adeus, farsantes! Lembrem-se do provérbio que diz: “Quem rouba o cobertor


do próximo, em geral, morre de frio”.
Pai e filho se viraram para o teto e viram, sobre um
caibro, o Grilo Falante.
– Oh! Meu caro Grilinho! – disse Pinóquio,
cumprimentando-o educadamente.
– Ah, agora me chama de “Meu caro Grilinho”, não é? Mas
se lembra de quando, para me expulsar de sua casa, me
acertou com o cabo do martelo?
– Tem razão, Grilinho! Expulse-me também... Acerte
também em mim o cabo de um martelo, mas tenha piedade
do meu pobre pai...
– Tenho piedade do pai e também do filho! Mas quis
lembrar a você os maus tratos recebidos, para ensinar que,
neste mundo, quando se pode, é preciso ser bondoso com
todos, se quisermos receber igual bondade nos dias de
necessidade.
– Tem razão, Grilinho, tem razão, e não vou esquecer a
lição que me dá. Mas me conte como fez para comprar esta
bela cabana?
– Essa cabana me foi dada ontem por uma graciosa
cabra, que tinha a lã de uma belíssima cor azul.
– E a cabra, onde está? – perguntou Pinóquio, com
vivíssima curiosidade.
– Não sei.
– E quando volta?
– Nunca. Ontem partiu toda aflita e, balindo, parecia
dizer: “Pobre Pinóquio! Não o verei nunca mais! O Peixe-
Cão, a esta hora, já deve tê-lo devorado!”.
– Disse isso mesmo? Então era ela! Era ela! Era a minha
querida Fadinha!... – começou a gritar Pinóquio, soluçando
exageradamente.
Depois de ter chorado bastante, enxugou os olhos e,
preparando uma boa cama de palha, fez o velho Gepeto se
deitar. Então perguntou ao Grilo Falante:
– Diga-me, Grilinho, onde posso encontrar um copo de
leite para o meu pai?
– Três campos adiante daqui, fica a granja do Janjão, que
tem vacas. Vá até lá e encontrará leite.
Pinóquio correu até a casa do granjeiro Janjão, que
perguntou:
– Quanto quer de leite?
– Quero um copo cheio.
– Um copo de leite custa uma moeda. Primeiro, o dinheiro.
– Não tenho nem ao menos um tostão – respondeu
Pinóquio, deprimido e dolorido.
– Isso é mau, meu boneco: se você não tem nem ao
menos um tostão, eu não tenho nem ao menos um dedo de
leite – replicou o granjeiro.
– Paciência! – disse Pinóquio, e fez que ia embora.
– Espere um pouco. A gente pode combinar. Quer tentar
girar o sarilho? – disse Janjão.
– O que é sarilho?
– É aquela peça de madeira que serve para puxar água da
cisterna para regar as hortaliças.
– Posso tentar...
– Então puxe cem baldes de água e eu lhe darei, em
troca, um copo de leite.
– Está bem.
Janjão levou o boneco até a horta e lhe ensinou como
girar o sarilho. Pinóquio começou logo o trabalho, mas,
antes de ter puxado os cem baldes de água, estava
encharcado de suor da cabeça aos pés. Nunca havia
encarado uma canseira daquela.
– Até agora, essa tarefa de girar o sarilho era feita pelo
meu burrico, mas hoje o pobre animal está no fim da vida –
disse o granjeiro.
– Posso vê-lo? – disse Pinóquio.
– À vontade.
Logo que entrou na estrebaria, Pinóquio viu um belo
burrico estendido sobre a palha, consumido pela fome e
pelo trabalho repetitivo. Quando o olhou fixo, disse consigo,
perturbado:
– Mas eu conheço esse burrico! Sua fisionomia não é
estranha!
E, inclinando-se para ele, perguntou, no dialeto de burros:
– Quem é você?
A essa pergunta, o burrico abriu os olhos moribundos e
respondeu gaguejando no mesmo dialeto:
– Sou o Pa... vi... o...
Depois fechou os olhos e morreu.
– Pobre Pavio! – disse Pinóquio em voz baixa e, pegando
um punhado de palha, enxugou uma lágrima que lhe
escorria pelo rosto.
E, inclinando-se para ele, perguntou, no dialeto de burros: − Quem é você?

– Comoveu-se tanto por um burro que não lhe custou


nada? E eu, que o comprei por quatro moedas, o que
deveria fazer? – disse Janjão.
– Era um amigo meu...
– Seu amigo?!
– Um colega de escola!
– Como?! Como?! Teve burros como colegas de escola?!
Imagino os belos estudos que faziam!... – gritou Janjão, às
gargalhadas.
O boneco, deprimido com aquelas palavras, não
respondeu: pegou seu copo de leite quase quente e voltou
para a cabana.
E, daquele dia em diante, continuou por mais de cinco
meses a levantar toda manhã, antes de clarear, para ir girar
o sarilho e assim ganhar aquele copo de leite, que fazia tão
bem para a saúde frágil de seu pai. E não se contentou com
isso: passado algum tempo, aprendeu também a tecer
cestas e balaios de junco e, com as moedas que ganhava
com a venda, arcava, com muito juízo, com todas as
despesas diárias. Entre outras coisas, construiu um elegante
carrinho em que, nos dias bonitos, levava o pai para tomar
um bocado de ar.
Nos serões, à noite, treinava leitura e escrita. Tinha
comprado no lugarejo vizinho, por poucas moedinhas, um
grande livro sem capa e sem índice, e nele exercitava sua
leitura. Quanto a escrever, usava uma vareta como se fosse
uma pena e, não tendo nem tinteiro nem tinta, a molhava
em um frasco cheio de suco de amora e cereja.
O fato é que, com sua boa vontade de planejar, de
trabalhar e de progredir, conseguiu não só manter quase
confortavelmente o pai, sempre adoentado, como também
reservar algum dinheiro para comprar uma roupa nova.
Uma manhã, disse ao pai:
– Vou até o mercado vizinho para comprar uma
jaquetinha, um chapeuzinho e um par de sapatos. Quando
voltar, estarei tão bem vestido que me tomarão por um
grande senhor – acrescentou rindo.
E saindo de casa, começou a correr todo contente. De
repente, ouviu chamar seu nome e, virando-se, viu uma
bela lesma que saía de uma moita.
– Não está me reconhecendo? – disse a Lesma.
– Parece e não parece com...
– Não se lembra daquela lesma que trabalhava como
camareira da Fada dos Cabelos Azuis? Não se lembra
daquela vez que desci levando uma luz para você, que
estava com um pé enfiado na porta de casa?
– Lembro-me de tudo! E me diga, Lesminha bela, onde
está a minha boa Fada? O que ela andou fazendo? Me
perdoou? Lembra-se sempre de mim? Ainda me quer bem?
Está muito longe daqui? Posso encontrá-la? – disparou
Pinóquio.
A todas essas perguntas, feitas precipitadamente e sem
tomar fôlego, a Lesma respondeu com a calma de sempre:
– Meu Pinóquio! A pobre Fada jaz no fundo de um leito no
hospital!
– No hospital?!
– Infelizmente. Atingida por mil desgraças, está
gravemente doente e não tem mais como comprar um naco
de pão!
– É verdade? Oh! Que grande dor! Pobre Fadinha! Pobre
Fadinha! Pobre Fadinha! Se tivesse, levaria um milhão para
ela... Mas tenho apenas umas moedas... Aqui estão! Ia justo
comprar uma roupa nova. Pegue, Lesma, e vá logo levar
para minha boa Fada.
– E sua roupa nova?
– Que me importa a roupa nova? Venderia até esses
trapos que uso para poder ajudá-la! Vá, Lesma, depressa! E
dentro de dois dias volte aqui, que espero poder mandar
mais algum dinheiro. Até agora tenho trabalhado para
manter meu pai. De hoje em diante, trabalharei cinco horas
a mais para manter também minha mãe. Adeus, Lesma, e
dentro de dois dias espero você.
A Lesma, contra seu costume, começou a correr igual a
uma lagartixa nos dias muito quentes de verão.
Quando Pinóquio voltou para casa, o pai perguntou:
– E a roupa nova?
– Não encontrei uma que me caísse bem. Paciência!
Comprarei de outra vez.
Aquela noite, Pinóquio, em vez de fazer serão até as dez,
foi até a meia-noite! E em vez de fazer só oito cestos de
junco, fez dezesseis.
Então foi para a cama e adormeceu. E ao dormir, parecia
ver em sonho, toda bela e sorridente, a Fada, que lhe deu
um beijo e disse:
– Bravo, Pinóquio! Graças ao seu bom coração, eu perdoo
todas as travessuras que fez até hoje. As crianças que
cuidam amorosamente dos próprios pais, nas suas
dificuldades e nas suas doenças, merecem sempre grande
louvor e grande afeto, mesmo que não possam ser citados
como modelos de obediência e de boa conduta. Tenha juízo
para o futuro e será feliz.
Nesse momento, o sonho acabou, e Pinóquio acordou com
os olhos arregalados.
Agora, imagine você qual foi sua surpresa quando
percebeu que não era mais um boneco de pau, e sim um
menino como todos os outros. Deu uma olhada em volta e,
em vez das mesmas paredes de palha da cabana, viu um
belo quarto mobiliado e decorado com uma simplicidade
quase elegante. Saltando da cama, encontrou preparada
uma bela roupa nova, um chapéu novo e um par de botas
de pele que o deixavam muito bonito.
Logo que se vestiu, aconteceu, naturalmente, de enfiar as
mãos nos bolsos e encontrar um pequeno porta-moedas de
marfim, que logo abriu. Dentro, em vez de moedas de
cobre, brilhavam moedas de ouro, todas novas. No porta-
moedas estava escrito:
A Fada dos Cabelos Azuis restitui as moedas ao seu caro
Pinóquio e agradece muito pelo seu bom coração.
Pinóquio foi se olhar no espelho, e parecia outro. Não viu
mais a figura de uma marionete de pau, mas sim a imagem
ativa e inteligente de um belo menino de cabelos
castanhos, olhos azuis e um ar alegre e festivo.
Em meio a todas as maravilhas que não parava de
descobrir, Pinóquio não sabia mais nem se estava acordado
de verdade ou se sonhava de olhos abertos.
– E meu pai, onde estará? – lembrou-se, e, entrando na
sala ao lado, encontrou, sadio, ágil e de bom humor, como
antes, o velho Gepeto, que, tendo retomado a profissão de
entalhador, desenhava uma belíssima moldura cheia de
folhagens, de flores e de cabeças de animais.

...apontou para um grande boneco apoiado em uma cadeira...

– Satisfaça minha curiosidade, papai: como se explica


toda essa mudança inesperada? – perguntou Pinóquio,
pulando no pescoço do pai e cobrindo-o de beijos.
– Essa inesperada mudança na nossa casa é mérito seu –
disse Gepeto.
– Por que mérito meu?
– Porque quando as crianças más se tornam boas, têm a
virtude de trazer um clima novo e alegre também para
dentro dos lares de suas famílias.
– E o velho Pinóquio de pau, por onde andará?
– Ali está ele! – Gepeto apontou para um grande boneco
apoiado em uma cadeira, com a cabeça tombada para um
lado, os braços bambos, as pernas cruzadas e torcidas;
parecia um milagre que estivesse em pé.
Pinóquio se virou e, depois de olhar longamente o boneco,
disse para si mesmo, com grande carinho:
– Como eu era engraçado quando era um boneco! E como
estou contente por ter me tornado um bom menino!

FIM
Aqui, com o sentido de pessoa nobre ou distinta, elegante, e também de
proprietário de terras. (N.E.)
Expressão italiana que significa “no seu primeiro canto” – no caso, um galeto
(galinho, franguinho) abatido muito cedo, assim que canta pela primeira vez.
(N.E.)
No original, Can-barbone, cão de pelos longos e enrolados, como o poodle. (N.T.)
Assim eram chamadas as Américas, descobertas por Cristóvão Colombo em
1492. (N.E.)
No original, Pesce-cane, nome popular dado ao tubarão. (N.T.)
Na animação da Disney, de 1940, reproduzida em várias outras versões, era
uma baleia. (N.E.)
Pequeno roedor, parecido com o esquilo, que come e dorme muito. (N.T.)
Dança guerreira grega que usa lanças e tochas acesas. (N.T.)

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