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As galochas vermelhas

Não há coisa mais linda do que chapinhar nas


poças, chlap, chlap… com galochas.
As galochas são luvas de borracha para os pés
não se constiparem. Mas eu não sabia.
Um dia fui com o meu primo Celestino comer
uvas à Vinha do Lagar Velho. A Vinha do Lagar
Velho é um pedaço de terra cheia de cachos de uvas
docinhas…
Para chegar à Vinha do Lagar Velho é preciso
passar por baixo da Pedra Bulideira. É uma pedra
enorme e muito pesada que parece mesmo que vai
cair… mas não cai. Eu tenho um bocadinho de medo
de ir por ali. Nesse dia, fui devagarinho a assobiar e,
quando cheguei pertinho, zás! Desatei a correr muito
depressa. Eu até acho que a pedra buliu, mas não
caiu.
O meu primo Celestino, que não sabe assobiar,
não conseguia passar.
E eu disse-lhe:
- Não tenhas medo. Se não sabes assobiar…
canta.
E ele lá cantou: “Ó linda pedrinha, não tremas
de medo, vou passar por ti, mais tarde ou mais
cedo”.
E passou por mim a correr e a gritar:
- À vooolta, vamos pelo caminho da casa do Zé
Finiiiinho!
A vinha era logo ali. A minha avó ensinou-me
que, para as uvas não fazerem mal à barriga, antes
de as comer, é preciso dizer:

Uva Rei, Uva Rainha


Não tem cacho nem grainha.
Rabigato, Esgana Cão,
Trincadeira e Folgazão,
Chapeludo e Gadelhudo,
Não faz mal, come-se tudo.
Carão de Moça e Touriga
Não fazem mal à barriga.

O meu primo Celestino, que não consegue


decorar nada, enganava-se. Tivemos de repetir
tantas vezes, que nos esquecemos das uvas.
Começou a chover.
Primeiro ping, ping, ping; depois chchchchch…
A nossa sorte foi estarmos à beira do coberto da
Maria da Groba. Ficamos lá abrigados a ver a chuva.
A chuva, quando cai nas covas, faz poças. E as
poças parecem lagos pequeninos onde os barcos
são folhas.
As últimas gotas caíram nas poças ploc, ploc,
ploc.
O Celestino gritou:
- Quem puser o pé na poça é salta-pocinhas!
E saiu a correr.
Eu também desatei a correr, mas mais devagar.
Muito mais devagar. É que eu adoro ser salta-
pocinhas e aquelas poças estavam tão cheiinhas de
água! Andava, saltava e chlap, chlap! Cada vez
chapinhava mais.
O meu primo até disse:
- Ó Ana, vou dizer à tua mãe!
E eu respondi:
- Quem faz de queixinha, engasga a espinha.
E continuei a minha marcha poça aqui, poça
acolá, até que fiquei toda encharcadinha dos pés.
Bem, encharcadinha dos tornozelos… ou melhor,
encharcadinha até aos joelhos.
E o meu primo tornou a dizer:
- Ó Ana, vou dizer à tua mãe!
E eu respondi:
- Quem é queixoso, cozo e recozo.
E lá continuei a minha marcha. Poça aqui,
poça acolá, chapinhava toda contente.
O meu primo Celestino disse outra vez:
- Ó Ana, vou dizer à tua mãe!
E eu respondi:
- Quem faz queixume, morde-lhe o lume.
Uma coisa que me irrita no meu primo
Celestino: tem a mania que é forte. Até pensa que é
mais forte do que eu.
Voltou para trás e empurrou-me para fora da
poça. Ora eu não gostei. E não me fiquei. Ele
empurrou e eu puxei. Eu empurrei e ele puxou. Ele
puxei e eu puxei… e ele caiu.
Catrapum é quando se cai fora da poça;
catraplach é quando se cai dentro da poça. O
Celestino fez catraplach. Ficou encharcadinho dos
pés até aos joelhos. Bem, encharcadinho dos pés
até à cabeça.
E eu disse assim:
- Ora faz-me queixinhas a mim…
E ele respondeu:
- Atchim! Atchim!

Quando sobe a temperatura.


A dor de cabeça dura
E pingamos do nariz,
O corpo treme infeliz
A falar anasalado
Com o olho arremelado.
Até as dores de garganta
Ficam debaixo da manta
A comer uma gemada.
Ou a beber limonada.
Uma canja de galinha
Com muito amor, mimadinha
Pela mãe, à cabeceira.
A fingir que é enfermeira.

Por falar em enfermeira: a enfermeira da minha


aldeia chama-se Odete e só vem às terças e quintas.
A minha mãe até diz:
- A enfermeira Odete cura nove e mata sete!
Mas isto não se diz.
Quando cheguei a casa, toda encharcadinha, a
minha mãe, à cautela, fez-me um chazinho de limão
com mel.
Por causa da constipação do meu primo, fomos
ao posto médico. A minha mãe, a minha tia, o meu
primo e eu.
A enfermeira Odete perguntou:
- Como é que isto aconteceu?
E disse assim o meu primo:
- Zou eu que esdou gonsdibado! Foi a badeda
da Ana, gue me emburrou.
- O quê? – perguntou a enfermeira Odete.
- É ele que está constipado…
- Ai, nesse caso então… vai levar uma injeção.
O meu primo, que é medricas, desatou a correr
porta fora a gritar:
- Já esdou bom, já esdou bom… já não zindo
nada!
Uma coisa que tem o meu primo, é que ninguém
acredita nele. Lá teve ele que tomar a injeção. E a
minha tia aproveitou para lhe dar o xarope das
bichas e um supositório para a febre.
A mim, a minha mãe comprou-me umas
galochas vermelhas lindas, para eu poder chapinhar
nas poças, à vontade, sem constipar os pés.
“10 meses de histórias”
Rosa-Dos-Ventos, Ano 55, Nº 598, Santa Casa da
Misericórdia do Porto, CPAC, Edições Braille.

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