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A Todo Vapor

adaptado dos originais de Artur Azevedo

pesquisa dramatúrgica e musical – Zé Henrique de Paula

e Fernanda Maia

adaptação – Thiago Ledier

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01 - Passarinho do Relógio - Cuco

(Haroldo Lobo e Mílton Oliveira – 1940)

Cuco-cuco-cuco!
O passarinho do relógio
Está maluco
Ainda não é hora do batente
Ele fica impertinente
Acordando toda gente

Eu pego às oito e quarenta e cinco


E levanto às sete,
Pra tomar banho e café
Mas quando são mais ou menos
Três e cinco, ele começa:
Cuco-cuco-cuco!
E só termina
Quando estou de pé

Cena Um

“Projetos”

D. Henriqueta — Meninas, vocês viram o projeto do Alcindo Guanabara?


Filha — Que projeto?
D. H. — Que projeto? Você só sabe de moda!... O projeto unificando os
vencimentos dos funcionários públicos.
Filha — Papai lucra com isso alguma coisa?
D. H. — Decerto! Vosso pai, que atualmente ganha... Quanto é mesmo,
Antunes?
Antunes — Sete contos e duzentos.
D. H. — Ficará ganhando doze contos!
A. — Fora os descontos.
Filho Mais Velho — Doze contos! Quem bom! Só assim terei um colete novo!
Filha — E eu poderei comprar aquele soirée que vi nas Fazendas Pretas!
Filho Mais Novo — E o que é um soirée?
Filha — Soirée é um vestido chique, para se usar à noite;
Filho Mais Novo — Ahhh...
Filha — E também realizar o meu sonho, que é possuir um relógio.

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Filho Mais Novo — Eu só quero um tamborim! Quando vem esse cobre?
D. H. — Calem-se! O projeto ainda não passou!
A. — Nem se sabe se passará... .
D. H. — Quando houver mais algum dinheiro nesta casa, a primeira despesa a
fazer é reformar a mobília da sala de visitas, que está toda bichada.
Filho Mais Velho — Ora, mamãe! a mobília pode esperar, e eu preciso muito de
um colete novo!
Filha — O meu chapéu está indecente! E um relógio não custa os olhos da
cara!
Filho Mais Novo — Não há menino pobre que não tenha um tamborim!
Dr. R. — Isso é lá com vosso pai!
A. — Se vier o aumento (o que duvido, porque quando a esmola é muita o
pobre desconfia), em primeiro lugar farei o possível para ficar livre de dois
agiotas que me tiram couro e cabelo, e tratarei de pagar aos outros credores.
Depois veremos. (Olhando tristemente para os pés.) Também eu preciso de
umas botinas, que estas, compradas há três anos, estão rasgadas e já levaram
duas meias solas e dois remontes!

02 - Cem Mil Réis

(Noel Rosa e Vadico – 1936)

Você me pediu cem mil réis,


Pra comprar um soirée,
E um tamborim,
O organdi anda barato pra cachorro,
E um gato lá no morro,
Não é tão caro assim.

Não custa nada,


Preencher formalidade,
Tamborim pra batucada,
Soirée pra sociedade,
Sou bem sensato,
Seu pedido atendi,
Já tenho a pele do gato,
Falta o metro de organdi.

Sei que você,


Num dia faz um tamborim,

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Mas ninguém faz um soirée,
Com meio metro de cetim,
De soirée,
Você num baile se destaca,
Mas não quero mais saber,
Papai me compra uma casaca.

Cena Dois

“A Despedida”

Filha — Que tem hoje papai? Acabou de tomar o café da manhã e, em vez de
sair como de costume, fechou-se no gabinete!
O Filho mais velho. — Algum trabalho urgente da repartição?
D. A. — Tua irmã diz bem: aquilo não é natural.
O Filho mais novo. — Ele estava muito preocupado durante o almoço. . .
FILHA — Não sei o que me diz o coração!
H. — Oh, menina, assim você me assusta! Parece que tem medo de que seu
pai se suicide!
O F. M. V. — Que lembrança!
O F. M. N. — Que razões haveria para papai suicidar-se?
FILHA — Quem sabe lá! — Vou espiar pelo buraco da fechadura . . . (Adianta-
se pé ante pé para o gabinete, cuja porta se abre. Antunes aparece com ares
solenes e uma carta lacrada na mão. Silêncio geral.)
Antunes (depois de uma longa pausa comovido.) — Minha
mulher. . . meus filhos.,. . o momento é solene. (Outra pausa.) Sentemo-nos.
(Sentam-se todos a olharem uns para os outros. Nova pausa.) Minha adorada
mulher. . . meus queridos filhos. . . vou sair, e não sei se voltarei a esta casa.
Todos. — Oh!
A. — Henriqueta, aqui tens o meu testamento!
H. — O teu testamento?!
A. — Sim; há viver e morrer!
H. — A tua vida corre perigo?
A. — (com voz sumida). Sim.
A S. (com um grito): Ah! já sei. . . não é outra coisa! Papai vai bater-se em
duelo! (Choradeira geral.)

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A. — Que é isso? Não chorem! Não me vou bater em duelo!
H. — Que vais então fazer?
A. — Não te esqueças de que o inquilino do chalé da rua dos Araújos está
devendo três meses vencidos... Não te esqueças de que o compadre
Malaquias não pagou ainda aqueles trezentos mil réis que me pediu. . . Não te
esqueças
.H. — Antunes, você vai se matar?
A. — Não! Nunca! Os meus papéis estão todos em ordem. A apólice do teu
seguro de vida está no cofre. A Funerária fará o meu enterro. Todas as
indicações estão na gaveta do meio. (Recrudesce a choradeira.)
H. — (debulhada em pranto). Pelo amor de Deus, mas onde você vai,
Antunes?
A. — (com um suspiro). Pela primeira vez na vida vou tomar o bonde. O bonde
da nova linha de S. Januário.

03 - O Bonde de São Januário

(Ataulfo Alves e Wilson Batista – 1941)

Quem trabalha
É quem tem razão
Eu digo
E não tenho medo
De errar

O Bonde São Januário


Leva mais um operário
Sou eu
Que vou trabalhar

Antigamente
Eu não tinha juízo
Mas resolvi
Garantir meu futuro
Graças a Deus
Sou feliz
Vivo muito bem
A boemia
Não dá camisa
A ninguém
Passe bem!

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Quem trabalha
É quem tem razão
Eu digo
E não tenho medo
De errar

O Bonde São Januário


Leva mais um funcionário
Sou eu
Que vou trabalhar

Cena Três

“O Grevista Poeta”

— Não se apresse mulherzinha que hoje não saio de casa. Pode servir o café
mais tarde que hoje ninguém se atrasa.

— Está sonhando? Olha que não é domingo!

— Bem sei que é dia de labuta, mas mudei minha conduta. Sendo direto e
breve: a partir de hoje me encontro em greve!

— Está em greve, Manuel? Isso é o diabo!

— É o diabo, mas que remédio?! Não me resta outra opção. Parado me avança
o tédio; quase morro de aflição! Por mim, jamais pararia, pois é na lida de cada
dia que está a garantia de trazer pra casa o pão que alimenta a dona do meu
coração. Mas, se o patrão vive no abuso, não me resta outra opção: da greve
eu faço uso pra resolver a situação.

— Tudo isso é muito bom quando a gente aveza para os feijões.

— Não julgue que me diverte estar sem fazer nada. Sou homem de trabalho,
me aflige ficar em casa. Que me dê um estupor se não prefiro o batente a na
cama ficar parado, dormindo feito um doente.

— Ainda se isso valesse alguma coisa! Você fica sem receber e daqui uns dia
volta para o serviço ganhando o mesmo que ganhava antes da greve!

— Lá por isso não, mulher, que o patrão é boa pessoa. Não é por gosto que
paro que eu não sou um qualquer à-toa. Assim que ao trabalho voltar, com o
patrão irei conversar para que, os dias em que não trabalhei, faça o favor de
não descontar.

— Duvido que te ele pague.

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— Se ele me der o calote, mostro então do que sou capaz: aos companheiros
todos convenço, do faxineiro ao capataz, que juntos somos mais forte, os laços
ficam mais tensos. Convoco greve geral e viro o Brasil do avesso!

— Vira o Brasil do avesso de estômago vazio? Você que eu também ainda não
tomei café?

— Por que não come? Não teve fome?

— Fome tive e tenho, o que me faltou foi dinheiro!

— Meu bem, fala-me de tudo, tudo suporto altaneiro, mas, pelo bem que me
quer, não me fale em dinheiro!

— Então a quem hei de falar?

— Fala à brisa que sussurra, fala à fonte que murmura, fala às flores do jardim;
fala aos serros, campos, fragoas, fala às nuvens, fala às águas, mas não fale
pra mim!...

— Você é um doido!

— Um doido? Sim! Acertou! Um doido! Tem razão! Mas sou um doido sublime!
Um poeta de inspiração!

— Fale sério, seu Cardoso: você quer que eu morra de fome?

— Uma mulher como você, que é das mulheres a flor, não pode morrer de
fome, só pode morrer de amor!

— (vencida pela poesia). Que diabo de homem! Quando você terá juízo?

— (Com veemência.) Nunca!... O juízo, meu anjo, não conhece os poetas: é


triste coisa inventada apenas para os patetas.

— Que vida a nossa!

— Amanhã temos dinheiro, contanto que o prelo gema, imprimindo um belo


canto do meu formoso poema. Mas a hora logo voa e meu estômago já
reclama. Vá acender o fogão e aquecer-se junto à chama.

— Acender o gás! Pois você não sabe que hoje não há gás? Alguém esqueceu
de pagar a conta...

— Se não há gás, meu amor, também não há problema: desmontamos


guarda-roupas e acendemos uma fogueira. O fogo o café esquenta, e o pão a
barriga alimenta.

— Não temos em casa nem um grão de café!...

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— Meu Deus, que miséria a nossa! Não ter nem pão nem dinheiro!. . . Mas
então para que serve haver na esquina um vendeiro?

— O vendeiro já não nos fia nem um fósforo, muito menos um filão de pão!

— Se morro à falta de pão, à falta de amor não morro! A lua serena e casta de
noite vem trazer--me o seu socorro! Ó deusa augusta da noite, que aclaras o
mundo inteiro, sem temer que te suprimam o operário e o taverneiro; se de dia
te esconde o sol, a noite é inteira tua; és na vida meu farol, guiando-me por
essa rua.

— E a lua vai encher a sua barriga?

— Vai encher-me de alegria ao iluminar teu semblante. Enfeitiçado cairei,


alimentando como amante.

— Já estou vendo que sou eu que vou acabar de barriga cheia...

04 - Falta Um Zero No Meu Ordenado

(Benedito Lacerda e Ary Barroso – 1948)

Trabalho como louco


Mas ganho muito pouco
Por isso eu vivo sempre atrapalhado
Fazendo faxina
Comendo no "China"

Tá faltando um zero no meu ordenado


Trabalho como louco
Mas ganho muito pouco
Por isso eu vivo sempre atrapalhado
Fazendo faxina
Comendo no China"

Tá faltando um zero
No meu ordenado
Tá faltando um zero no meu ordenado
Tá faltando sola no meu sapato
Somente o retrato
Da rainha do meu samba
É que me consola
Nesta corda bamba

05 - Inimigo Do Batente

(Germano Augusto e Wilson Batista – 1939)

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Eu já não posso mais!
A minha vida não é brincadeira
Estou me desmilinguindo igual a sabão na mão da lavadeira
Se ele ficasse em casa ouvia a vizinhança toda falando
Só por me ver lá no tanque
Lesco-lesco, lesco-lesco
Me acabando

Se lhe arranjo um trabalho


Ele vai de manhã, de tarde pede as contas
E eu já estou cansada de dar murro em faca de ponta
Ele disse pra mim que está esperando ser presidente
Tirar patente no sindicato dos inimigos do batente

Meu Deus eu já não posso mais


A minha vida não é brincadeira
Estou me desmilinguindo igual a sabão na mão da lavadeira
Se ele ficasse em casa ouvia a vizinhança toda falando
Só por me ver lá no tanque
Lesco-lesco, lesco-lesco
Me acabando

Ele dá muita sorte


É um moreno forte, é mesmo um atleta
Mas tem um grande defeito
Ele diz que é poeta
Ele tem muita bossa e compôs um samba e que é de abafar
É de amargar
Eu não posso mais
Em nome da forra, vou desguiar

Cena Quatro

“Inofensiva Brahma”

S — Jesus! De onde o senhor vem neste belo estado?

H1— Que é isso, chefe? Que tem? Por que tanta alegria?

H2 — Não tenho que dar explicações a vocês! Venho de onde


venho! Bebi muita cerveja, ora aí está! E agora?

S — Pois o senhor não jurou nunca mais beber cerveja?

H1 — Esqueceu-se da grande desgraça, chefe?

H2 — Que desgraça?!

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S — Pois foi o senhor mesmo quem nos contou. Não descobriram, no
Laboratório Municipal de Análises, que a cerveja é um veneno?

H2 — Sim, mas...

H1 — Cada litro tem 100 miligramas de ácido sulfuroso anidro.

H2 — Não, mas...

H1 — Dona Rosália, a senhora sabe o que é ácido sulfuroso anidro?

S — Não, senhor.

H1 — Nem eu, mas deve ser um veneno terrível! E toda aquela história da
reação de Boedeker, chefe?

H2 — Então, hoje...

H1 — Dona Rosália, a senhora sabe o que é a reação de Boedeker?

S — Não, senhor.

H1 — Nem eu, mas dizem que é a reação característica dos sulfitos.

S — Ah, bom! Agora já sei; não há nada como explicar as coisas.

H1 — A reação de Boedeker não admite dúvidas, chefe. Já não se trata da


reação do hidrogênio nascente. É a reação definitiva.

H2 — Sim, no entanto...

S — A pobre cerveja está completamente desmoralizada. Me tira uma dúvida,


seu José: nesse caso, a venda vai ser proibida?

H1 — Naturalmente! Pois hão de consentir que se venda uma cerveja que


tem sulfitos? É um veneno! Eu já não a quero nem de graça!

S — Pois é pena, porque ainda aí estão umas três dúzias de garrafas na copa!

H2 — (Eufórico) Três dúzias? Que me dizes? Vai buscar uma garrafa, dona
Rosália!

S — Pois o patrão quer envenenar-se?

H2— Ora, envenenar-me! Então vocês não leram os jornais de hoje?

S e H1 – Não!

H2 – Era o que estava tentando explicar. Eu só bebia Brahma, e a Brahma


tinha sido condenada. Mas hoje ela compareceu a novo júri e foi absolvida!

S — Que história de júri é essa? O senhor não está dizendo coisa com coisa!

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H1 — Pudera! Nesse estado...

H2 – Deixem- me falar! Descobriu-se que o la. . . la. . . labora. . .

S — (ajudando-o). Laboratório Municipal de Análises.

H2 — Esse mesmo... Acontece que eles não tinham razão. Fizeram grossa
patifaria.

S — Valha-me Deus!

H2 — Está reconhecido que a Brahma é completamente inofensiva. A notícia


desta vitória foi festejada com uma bebedeira monumental!

S — Com todo o respeito, ainda nem deu a hora do almoço...

H1 — ... e você está mais mamado que um gambá, chefe. Melhor voltar pra
casa.

S — O senhor não pode ficar aqui assim!

H2 — Por que não? Eu sou o chefe aqui!

H1 — Mas você não está em estado de trabalhar!

H2 — Não sejam estúpidos!

H1 e S – Oh!

S — O senhor faça o favor de me respeitar!

H2 — Não faço nada! Sua, sua... Secretária intrometida!

S — Se o senhor vai me tratar assim, eu saio!

(Quer levantar-se; o chefe segura-a por um braço.)

H2 — Se for sair, é pra buscar aquelas três dúzias de cerveja!

S — De jeito nenhum!

H2 — Ah, não vai? Então, toma! (Esbordoa-a.)

H1 — Meu Deus! E dizem que a Brahma é inofensiva!

06 - O Trem Atrasou

(Estanilau Silva, Artur Vilarinho e Paquito – 1940)

Patrão, o trem atrasou


Por isso estou chegando agora

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Trago aqui um memorando da Central
O trem atrasou, meia hora
O senhor não tem razão
Pra me mandar embora !

O senhor tem paciência


É preciso compreender
Sempre fui obediente
Reconheço o meu dever
Um atraso é muito justo
Quando há explicação
Sou um chefe de família
Preciso ganhar meu pão
E eu tenho razão.

Cena Cinco

“Higiene”

Na fila do refeitório:

H1 — O Madureira, bons ventos te tragam! Há quanto tempo não aparecia aqui


no refeitório! Olha, chegou em boa ocasião: fure a fila aqui com a gente! Dona
Rosália, deixe o Madureira passar na sua frente. Uma bandeja pro Madureira,
dona Chiquinha.

M — Confesso que vim experimentar o almoço daqui. Em (nome da cidade em


que se estiver apresentando) não há o que se coma senão o que se traz na
marmita. Não tenho confiança em comida de bandejão. Estou com uma fome
de três dias!

C — Vai a sopa?

M — Sopa? Deus me livre! Pois vocês ainda são do tempo em que se tomava
sopa?

S — Um almoço sem sopa não é almoço.

M — Nada! O doutor disse-me que a sopa só serve para dilatar


o estômago! Dispenso-a.

C — Olha, a fritada de peixe está com uma cara boa.

M — Peixe?! Mas vocês enlouqueceram? Não comam peixe!

H1 — Por quê?

M — Pode estar contaminado!

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S — Deixa-te disso, e come.

M — Nem coberta de ouro.

C — A fritada está deliciosa!

M — Não duvido, mas não como peixe! Nada, que meu pai não faz outro!

C — Então pegue o bife. Temos hoje bife de panela!

M — Também não como carne de vaca. Foi uma recomendação especial do


defunto Benício.

S — Deste modo o senhor não almoça!

M — Paciência!

C — Ao menos come as batatas

M — Um farináceo? Boas! Olhe o que diz dos farináceos o Rocha Faria!

H1 — Ah! Agora o senhor não tem comido nada, nem mesmo pão!

M — O pão é coisa que dilata o estômago. O Crisciuma disse--me que não


comesse pão senão bem tostado.

C — Nesse caso, atira-te a estas linguiças!

M — Linguiças! Livra! Pois vocês não viram que a Prefeitura consentiu que um
fabricante de linguiças abatesse o gado rejeitado pela diretoria de higiene?
Pois vocês querem comer carne de animais tuberculosos? Com efeito! A isto é
que se chama vontade de morrer!

C — Ao menos bebe! Prova desta limonada.

M — O Miguel Couto proibiu-me o consumo de limão

C — Prefere groselha?

M — Groselha? Depois do que tem acontecido?! Pelo sim, pelo não, o melhor é
não beber groselha, mesmo porque essa é a opinião do Barbosa Romeu.

C — Pois, meu querido, nada mais tenho que te ofereça. Só sobrou carne
assada.

M — Comam, não se importem comigo, já estou habituado a não comer.

C — Bem! Leve ao menos a sobremesa! Temos aqui pêssegos em calda

M — Também não como disso. Sei lá como são feitos esses doces! Não meto
no estômago nada dessas coisas que vêm do estrangeiro em latas.

C — Aceita uma laranja?

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M — Laranjas neste tempo? Boas! Deviam ser proibidas!

C — Ao menos tome uma xícara de café.

M — Foi moído aqui?

C — Não.

M — Então não vai. Não tenho confiança. Andam agora a misturá-lo com milho.

07 - Penerô Xerém

(Luiz Gonzaga e Miguel Lima – 1945)

Ôi pisa o milho, penerô xerém


Ôi pisa omilho,penerô xerém
Eu num vou criar galinha
Pra dar pinto pra ninguém } bis

Na minha terra
Dá de tudo que plantar
O Brasil dá tanta coisa
Que eu num posso decorar

Dona Chiquinha
Bote o milho pra pilar
Pro angu, pra canjiquinha
Pro xerém, pro munguzá

Só passa fome
Quem não sabe trabalhar
Essa vida é muito boa
Pra quem sabe aproveitar

Pego na peneira
Me dano a sacolejar
De um lado fica o xerém
Do outro sai o fubá

Sacoleja, sacoleja,
sacoleja, sacoleja
Penerô Xerém

(No final da canção, Madureira cai desmaiado no chão.)

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C — Meu Deus!

S — Não te assustes, não é nada, é fome.

H1— Mas este homem com semelhante dieta é capaz de morrer!

S — Deixa! Ao menos morre de perfeita saúde.

Todos – Saúde!

09 - Apanhei Um Resfriado

(Almirante – 1937)

Pelo costume de beber gelado


Apanhei um resfriado que foi um horror
Porém, com medo de fazer despesa
Quis a franqueza e não fui ao doutor
Pra me curar
De tudo quanto foram me ensinado
Eu fui tomando e cada vez pior
E quem quiser, que siga o tratamento
Pois, se não morrer da cura, ficará melhor

Tomei de tudo: escalda-pé, chá de limão


Até xarope de alcatrão
E nada me faltou
Tive dieta só de caldo de galinha
O galinheiro da vizinha
Se evaporou
E tive febre, tive tosse e dor no peito
E até fiquei daquele jeito
Sem poder falar
Mandei chamar então um especialista
Que pediu dinheiro a vista
Pra poder me visitar

Cena Seis

“Depois das Eleições”

Marcondes. — Então, Sousa? Não dizias que a tua eleição era certa,
certíssima?
Sousa. — E era! Eu teria sido eleito. . .
M. — . . . Se não fosses derrotado — boa dúvida!

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S. — Não é isso; eu teria sido eleito, se não houvesse fraude. Foi roubado,
escandalosamente roubado!.. .
M. — Dize antes a verdade: a tua candidatura não tinha a menor probabilidade
de êxito; eras um candidato de bobagem. Quais foram os teus elementos?
S. — Os meus bons desejos, a minha seriedade, a minha honradez, o meu
passado. . .
M. — Ora o teu passado! O passado, passado! Isso não vale nada quando não
se tem por si um partido, um grupo ou mesmo um homem! Mas querer subir
neste país sem outros degraus que não sejam os do próprio merecimento é o
cúmulo da ingenuidade!
S. — Pois deixa que te diga: fiquei surpreso da pequena votação que tive.
Confesso que esperava mais. Quando apresentei a minha candidatura, havia
um ponto negro no horizonte: o Coisa, uma das figuras mais influentes do
sindicato, que estava mal comigo; mas eu procurei-o, fizemos as pazes, e ele
prometeu que faria tudo por mim.
M. — Mas eu disse: você é um ingênuo! Pois você ainda se fia nas promessas
de um amigo urso? Se quer ser eleito, tem que aprender a jogar o jogo.
S. — Agora é tarde.
M. — Como tarde? Nunca é tarde para ser eleito! Você tem sempre alguma
votação.
S. — Sim, mas estou em vigésimo lugar.
M. — Queiram eles, e passarás para o primeiro. A coisa é tecer os pauzinhos.

8 - Amigo Urso

(Henrique Gonçalves – 1942)

Amigo Urso, saudação polar


Ao leres esta, hás de te lembrar
Daquela grana que eu te emprestei
Quando estavas mal de vida e nunca te cobrei
Hoje estás bem e eu me encontro em apuros
Espero receber e pode ser sem juros
Este é o motivo pelo qual te escrevi
Agora quero que saibas como me lembrei de ti
Conjeturando sobre a minha sorte transportei-me em pensamento até o Pólo-
Norte

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E lá chegando sobre aquelas regiões
Vai vendo só quais as minhas condições
Morto de fome, de frio e sem abrigo
Sem encontrar em meu caminho um só amigo
Eis que de repente vi surgir na minha frente
Um grande urso e apavorado me senti
E ao vê-lo caminhando sobre o gelo
- Porque não dizê-lo?
Foi que me lembrei de ti
Espero que mandes pelo portador
O que não é nenhum favor, tô te cobrando o que é meu
Sem mais, queira aceitar um forte abraço
Deste que muito te favoreceu
O meu garoto já cresceu, dá cá o meu

Cena Sete

“O Terno”

S – Com licença, dr. José Mariano.


ZM – Pois não, dona Rosália.
S – Dr., eu gostaria de fazer uma reclamação sobre o... Seu Zé Mariano, o que
o senhor tem?
ZM – Oh, dona Rosália, em que tempos difíceis vivemos!
S – Mas o que aconteceu?
ZM – A senhorita conhece o Saturnino do caixote?
S – O engraxate da porta fábrica?
ZM – Esse mesmo.
S – O que tem ele?
ZM – Você viu como ele está vestido hoje?
S – Desculpe, doutor, eu não coloco atenção em qualquer um.
ZM – Ah, dona Rosália, nem eu. Mas hoje foi impossível não perceber. Ele está
com um terno igualzinho ao meu!
S – Oh! O mesmo modelo?
ZM – O mesmo modelo? Até a mesma cor! Como um homem pode viver
assim? Hoje em dia qualquer um pode comprar um terno. Para onde vai o
respeito? Vão pensar que compro meus ternos a prestações!
S – Ah, seu Zé Mariano! Isso é muito grave!
ZM – Eu estou tão, mas tão, mas tão... Como é mesmo aquela palavra, dona
Rosália?

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S – Désolée.
ZM – Isso não foi o que eu comi no almoço?
S – Não, aquilo era fricassé.
ZM – Ah, guarde essa língua estranha para você. Eu estou é arrasado. É o
meu fim.
S – Seu José Mariano, não fique assim. Olha, sem querer me intrometer, mas
eu poderia ajudar o senhor.
ZM – Como?
S – Modéstia a parte, eu entendo tudo de modas. Para um homem da sua
posição, não existe nada melhor que um terno feito sob medida.
ZM – Mas onde eu vou fazer um terno sob medida?
S – Num bom alfaiate.
ZM – Eu não conheço nenhum alfaiate, dona Rosália.
S – Isso não é um problema. Eu conheço o melhor alfaiate da cidade!
ZM – Mentira!
S – Eu jamais mentiria para o senhor!
ZM – Então chame esse homem aqui! Quero um terno novo para amanhã.
S – Eu não sei se ele conseguirá fazer um terno em...
ZM – Eu estou pagando, dona Rosália. Quero um terno sob medida aqui,
amanhã, depois do almoço.
S – Mas ele precisa tirar ao menos suas medidas.
ZM – Não precisa. A senhorita mesmo pode fazer isso.
S – Eu?
ZM – A senhorita. Eu só confio na senhorita. Vamos, se apresse! Tire as
medidas e as envie imediatamente para o seu alfaiate.
S – Não seria melhor se...
ZM – Imediatamente!
S – Sim, senhor...

(passagem de tempo)

ZM — Dona Rosália, por favor, venha aqui!


S – Pois não, dr. José Mariano.
ZM – Já faz meia hora que espero pelo alfaiate. Por que será tanta demora?
Ele ainda não apareceu?

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S – Não, senhor. E também não ligou para avisar sobre o atraso. Mas ele já
deve estar chegando. Ele é o melhor alfaiate da cidade.
ZM – Assim espero. A senhorita pediu para dona Chiquinha preparar o café
para servir ao alfaiate?
S – Sim, senhor.
ZM – O suco?
S – Sim, senhor.
ZM – A cerveja?
S – Ai!
ZM – O que foi, dona Rosália?
S – É o resfriado. Um espirro... A cerveja já está gelando também.
ZM – Ótimo. Espero que esse alfaiate seja mesmo tudo isso que a senhorita
me disse.
(A porta abre-se lentamente, e aparece o Alfaiate.)
A – Com licença.
S – Oh, desculpe! Por favor, entre. Dr. José Mariano, o alfaiate chegou.
ZM – Ah, entre, por favor! Estava esperando ansiosamente pelo senhor. Como
está?
A – Muito bem, e o senhor?
ZM – Como está o terno, homem!
A – Ah, está aqui. Ficou uma beleza!
S – O senhor recebeu as medidas que enviei, correto?
A – Sim, sim. Fiquei com um pouco de dúvida com as...
ZM – Dúvida? Que dúvida?
A – Não foi nada demais. Eu só preciso experimentar, para fazer os últimos
ajustes.
ZM – Tudo bem. O senhor aceita alguma coisa para beber? Café, suco,
cerveja?
S – Ai!
ZM – O que foi, dona Rosália?
S – Nada. É o resfriado.
A – O café foi torrado aqui?
S – Não.
A – Então eu aceito um copo d’água.
S – Só um instante.(Sai.)
ZM – Então, vamos com isso ou não?
A – Ah, sim! Aqui está o terno.

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ZM – O que é isso?
A – O seu terno, sob medida.
ZM – Tem alguma coisa estranha nele.
A – Vamos prová-lo?
ZM – Você tem certeza que esse é o meu terno?
A – Mas é claro. Foi feito com as medidas que dona Rosália tirou do senhor. Se
o senhor pudesse se despir, por favor...
ZM – Mas aqui assim, na sua frente?
A – Não se acanhe.
(Zé Mariano fica só de roupas de baixo.)
S – (entrando) Dona Chiquinha já vai trazer a... Ai!
ZM – Ai!
A – O que foi?
S – Desculpe, não sabia que o senhor estava sem... Eu espero lá...
ZM – Não, venha cá. Ajude o rapaz a me vestir.
S – Esse é o terno pro seu Zé Mariano? Não está faltando alguma coisa?
A – Eu fiz de acordo com as medidas que a senhorita me mandou.
ZM – Venham logo me ajudar a vestir esse terno que eu não estou
conseguindo enfiar o...
S – Mete aqui, doutor...
A – Não, precisa alargar um pouco a...
ZM – Cuidado que tá entalando...

(entra dona Chiquinha)

DC – Com licença. Eu trouxe a água.


ZM – Deixe aí na mesa e venha aqui ajudar a gente.
DC – Jesus, o que está acontecendo aqui?
S – O doutor está experimentando o novo terno.
DC – Não tá faltando alguma coisa nesse terno?
A – Eu fiz de acordo com as medidas que me foram enviadas.
ZM – Alguém me solta disso aqui.

(entra Cardoso.)

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C – Com licença, chefe. A dona Rosália não estava lá fora, eu fui entrando...
Mas o que vocês estão fazendo?
ZM – Cardoso, vem aqui ajudar.
DC – Vem logo que eu não sei nem o que fazer.
A – Eu fiz tudo de acordo com as medidas.
S – O senhor não se aproxime de mim.
C – Eu só queria ter uma palavrinha com o senhor em particular.
ZM – Primeiro me ajude a sair desse enrosco.
C – É um pouco urgente, chefe.
S – O senhor não se aproxime de mim, eu já disse!
A – Eu não entendo o que aconteceu...
DC – Jesus, que aperto!
ZM – Eu estou quase sufocando aqui.
DC – O senhor aceita um copo d’água?
A – A água é pra mim.
C – Não tem mais cerveja?
S- Ai! Tirem esse homem daqui!
ZM – Dona Rosália, a culpa disso é da senhorita!
DC – É pra buscar a cerveja?
ZM – Ai, se eu pego vocês!
A – Socorro!
C – Pode trazer a cerveja, dona Chiquinha!
S – Alguém me ajude, pelo amor de Deus!
ZM – Assim que eu sair daqui, vocês vão ver só. Eu pego esse alfaiate. E pego
a senhorita. E pego o Saturnino, aquele engraxate dos diabos! Eu exijo uma
explicação, seu alfaiate de meia tigela!

10 - Cortando O Pano

(Jeová Portela, Luiz Gonzaga e Miguel Alves – 1945)

Errei no corte, seu Zé Marino


Peço desculpas pelo meu engano
Sou alfaiate do primeiro ano
Pego na tesoura e vou cortando o pano

Ai, ai, que vida ingrata


O alfaiate tem

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Quando ele erra, estraga o pano todo
Quando ele acerta, a roupa não convém

Já fiz seu terno, seu Zé Mariano


Ficou curtinho porque houve engano
Sou alfaiate de primeiro ano
Peguei na tesoura e fui cortando o pano

Ai, ai, que vida ingrata


O alfaiate tem
Quando ele erra, estraga o pano todo
Quando ele acerta, a roupa não convém

Se chegar seu mano


Vou cortando o pano
E se estragar o pano
Vou cortando o pano
Se furar o pano
Vou cortando o pano
Se queimar o pano
Vou cortando o pano
Se chegar o fulano
Vou cortando o pano
E se chegar o Sicrano
Vou cortando o pano
Se chegar o Germano
Vou cortando o pano
Mas vai cortando o pano
Vou cortando o pano

Sai daqui, Germano


Tá me perturbando, peste
Tá me aporrinhando

Sou alfaiate do primeiro ano


Não faço roupa pra qualquer fulano
Só não acerto quando há engano
Se Deus ajuda o terno sai bacano
Pelo sistema norte-americano
Sou alfaiate do primeiro ano
Pego na tesoura e vou cortando o pano

(Sirene da fábrica).

11 - Sonora Garoa

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(Passoca – 1982)

Sonoro sereno
serena garoa
pela madrugada
não faço nada que me condene
a sirene toca
bem de manhãzinha
quebrando o silêncio
sonorizando a madrugada

Passa o automóvel
na porta da fábrica
o radinho grita
com voz metálica
uma canção

Sonora garoa
sereno de prata
sereno de lata
reflete o sol
bem no caminhão

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