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ROTEIRO (MATUTINO) – O cortiço

Parte 1: O Começo
João Romão era descendente português, dono de uma quitanda' localizada no Bairro Botafogo no Rio de
Janeiro. Ele economizava muito. Quem cozinhava para ele era Bertoleza, sua vizinha também quitandeira' que
era escrava de um velho cego que morava em Juiz de Fora.
Romão logo se interessou pela crioula, e tratou logo de satisfazer suas vontades.
JOÃO ROMÃO: Agora não és mais escrava, e de agora em diante, tudo ocorrerá bem. Está livre!
Porém, o que a pobre Bertoleza não imaginava era que a carta não passava de uma farsa criada pelo próprio
Romão, e que, na realidade, ela não estava liberta. Para tentar despistar o dono da preta, João contava que ela
havia fugido para a Bahia.
Cena: João escreve uma carta e envia ao cego dono de Bertoleza.
JOÃO ROMÃO (escrevendo a carta): Caro senhor, até hoje não tive notícias da desgraçada fujona. Mas peço-
lhe que não se preocupe, tão logo eu saiba do paradeiro desta infeliz, envio outra correspondência.
(João guarda a carta para depois enviá-la.)
Todo o dinheiro que João Romão ganhava ia para a caixa de economias. Ele mesmo construiu seu cortiço,
amassava e carregava barro roubado da vizinhança com a ajuda de sua companheira. O português era
demasiadamente mão de vaca e também muquirana.
Parte 2: A Mudança de Miranda
Na mesma época, foi vendido um sobrado à direita da venda, o comprador foi Miranda que também era
português e dono de uma loja de tecidos.
Mudaram-se ele, sua esposa Estela e sua filha Zulmirinha. Miranda queria comprar um espaço no fundo para
aumentar seu quintal, então decidiu conversar com João Romão. Ele, porém, não aceitou.
JOÃO ROMÃO: Minhas terras? Não mesmo!
MIRANDA: Me dê pelo menos 10 braços...
JOÃO ROMÃO: Mais nem meio palmo!
MIRANDA: Você se arrependerá de não me ceder. Passar bem!
JOÃO ROMÃO: Adeus!
E assim, João Romão aumentou a venda, levantou o cortiço, que se tornou ponto para todas as lavadeiras de
roupas da cidade. Todos os dias se repetiam as mesmas cenas.
 A primeira que se pôs a lavar foi a Leandra, por alcunha a “Machona”, portuguesa feroz, berradora, pulsos
cabeludos e grossos, anca de animal do campo. Tinha duas filhas, uma casada e separada do marido, Ana das
Dores, a quem só chamavam a “das Dores” e outra donzela ainda, a Neném, e mais um filho, o Agostinho,
menino levado dos diabos, que gritava tanto ou melhor que a mãe. A das Dores morava em sua casinha à parte,
mas toda a família habitava no cortiço.
Ao lado da Leandra foi colocar-se à sua tina a Augusta Carne-Mole, brasileira, branca, mulher de Alexandre,
um mulato de quarenta anos, soldado de polícia, pernóstico, de grande bigode preto, queixo sempre escanhoado
e um luxo de calças brancas engomadas e botões limpos na farda, quando estava de serviço. Também tinham
filhos, mas ainda pequenos, um dos quais, a Juju, vivia na cidade com a madrinha que se encarregava dela. Esta
madrinha era uma cocote de trinta mil-réis para cima, a Léonie, com sobrado na cidade. Procedência francesa.
Junto dela pôs-se a trabalhar a Leocádia, mulher de um ferreiro chamado Bruno, portuguesa pequena e socada,
de carnes duras, com uma fama terrível de leviana entre as suas vizinhas.
Seguia-se a Paula, uma cabocla velha, meio idiota, a quem respeitavam todos pelas virtudes de que só ela
dispunha para benzer erisipelas e cortar febres por meio de rezas e feitiçarias. Era extremamente feia, grossa,
triste, com olhos desvairados, dentes cortados à navalha, formando ponta, como dentes de cão, cabelos lisos,
escorridos e ainda retintos apesar da idade. Chamavam-lhe “Bruxa”.
Depois via-se a velha Isabel, isto é, Dona Isabel, porque ali na estalagem lhes dispensavam todos certa
consideração, privilegiada pelas suas maneiras graves de pessoa que já teve tratamento: uma pobre mulher
comida de desgostos. Fora casada com o dono de uma casa de chapéus, que quebrou e suicidou-se, deixando-
lhe uma filha muito doentinha e fraca, a quem Isabel sacrificou tudo para educar, dando-lhe mestre até de
francês. Andava sempre de botinhas ou sapatinhos com meias de cor, seu vestido de chita engomado; tinha as
suas joiazinhas para sair à rua, e, aos domingos, quem a encontrasse à missa na igreja de São João Batista, não
seria capaz de desconfiar que ela morava em cortiço.
Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um
cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era
lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarizado que elas o tratavam como a
uma pessoa do mesmo sexo; em presença dele falavam de coisas que não exporiam em presença de outro
homem; faziam-no até confidente dos seus amores e das suas infidelidades, com uma franqueza que o não
revoltava, nem comovia. Quando um casal brigava ou duas amigas se disputavam, era sempre Albino quem
tratava de reconciliá-los, exortando as mulheres à concórdia.
Machona, a Augusta, a Leocádia, a Bruxa, a Marciana e sua filha conversavam de tina a tina, berrando e quase
sem se ouvirem, a voz um tanto cansada já pelo serviço, defronte delas, separado pelos jiraus, formava-se um
novo renque de lavadeiras, que acudiam de fora, carregadas de trouxas, e iam ruidosamente tomando lugar ao
lado umas das outras, entre uma agitação sem tréguas, onde se não distinguia o que era galhofa e o que era
briga. Uma a uma ocupavam-se todas as tinas.
Parte 3: A chegada de Jerônimo
Enquanto isso, um novo morador chegava ao cortiço.
JOÃO ROMÃO: Como se chama, rapaz?
JERÔNIMO: Jerônimo! Eu vim trabalhar na sua pedreira e morar no seu cortiço.
JOÃO ROMÃO: Você já trabalhou nisso antes?
JERÔNIMO: Sim!
JOÃO ROMÃO: Quanto era seu ganho?
JERÔNIMO: 70 mil réis, não trabalho por menos que isso.
JOÃO ROMÃO: Impossível, caro demais. É... é caro mas pode ser um serviço bom, então, pode se alojar
quando quiser.
(Atravessaram o cortiço.)
JOÃO ROMÃO: Vamos por aqui mesmo que é mais perto.
E os dois, em vez de procurarem a estrada, atravessaram o capim quente e trescalante.
Meio-dia em ponto. O sol estava a pino; tudo reverberava a luz irreconciliável de dezembro, num dia sem
nuvens. A pedreira, em que ela batia de chapa em cima, cegava olhada de frente.
Daí à pedreira restavam apenas uns cinquenta passos e o chão era já todo coberto por uma farinha de pedra
moída que sujava como a cal.
O cavouqueiro meneou a cabeça com ar de lástima. O seu gesto desaprovava todo aquele serviço.
JERÔNIMO: Veja lá! Olhe para aquilo! Sua gente tem ido às cegas no trabalho desta pedreira. Deviam atacá-
la justamente por aquele outro lado, para não contrariar os veios da pedra. Esta parte aqui é toda granito, é a
melhor! Pois olhe só o que eles têm tirado de lá.
E depois de uma pausa, acrescentou, tomando na sua mão, grossa como o próprio cascalho, um paralelepípedo
que estava no chão:
JERÔNIMO: Que digo eu?! Cá está! Macacos de granito! Isto até é uma coisa que estes burros deviam
esconder por vergonha!
JOÃO: certo! Está contratado.
Parte 4: A Festa e a chegada de Rita Baiana
Narrador: Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e pouco calor. As tinas
estavam abandonadas; os coradouros despidos. Tabuleiros e tabuleiros de roupa engomada saíam das casinhas,
carregados na maior parte pelos filhos das próprias lavadeiras que se mostravam agora quase todas de fato
limpo; os casaquinhos brancos avultavam por cima das saias de chita de cor. Desprezavam-se os grandes
chapéus de palha e os aventais de aniagem; agora as portuguesas tinham na cabeça um lenço novo de ramagens
vistosas e as brasileiras haviam penteado o cabelo e pregado nos cachos negros um ramalhete de dois vinténs;
aquelas trancavam no ombro xales de lã vermelha, e estas de crochê, de um amarelo desbotado. Viam-se
homens de corpo nu, jogando a placa, com grande algazarra. Um grupo de italianos, assentado debaixo de uma
árvore, conversava ruidosamente, fumando cachimbo. Mulheres ensaboavam os filhos pequenos debaixo da
bica, muito zangadas, a darem-lhes murros, a praguejar, e as crianças berravam, de olhos fechados,
esperneando. A casa da Machona estava num rebuliço, porque a família ia sair a passeio; a velha gritava,
gritava Neném, gritava o Agostinho. De muitas outras saíam cantos ou sons de instrumentos; ouviam-se
harmônicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte
de trombone.
Os papagaios pareciam também mais alegres com o domingo e lançavam das gaiolas frases inteiras, entre
gargalhadas e assobios. À porta de diversos cômodos, trabalhadores descansavam, de calça limpa e camisa de
meia lavada, assentados em cadeira, lendo e soletrando jornais ou livros; um declamava em voz alta versos de
“Os Lusíadas”, com um empenho feroz, que o punha rouco. Transparecia neles o prazer da roupa mudada
depois de uma semana no corpo. As casinhas fumegavam um cheiro bom de refogados de carne fresca fervendo
ao fogo. Do sobrado do Miranda só as duas últimas janelas já estavam abertas e, pela escada que descia para o
quintal, passava uma criada carregando baldes de águas servidas. Sentia-se naquela quietação de dia inútil a
falta do resfolegar aflito das máquinas da vizinhança, com que todos estavam habituados. Para além do solitário
capinzal do fundo a pedreira parecia dormir em paz o seu sono de pedra; mas, em compensação, o movimento
era agora extraordinário à frente da estalagem e à entrada da venda. Muitas lavadeiras tinham ido para o portão,
olhar quem passava; ao lado delas o Albino, vestido de branco, com o seu lenço engomado ao pescoço,
entretinha-se a chupar balas de açúcar, que comprara ali mesmo ao tabuleiro de um baleiro freguês do cortiço.
Dentro da taverna, os martelos de vinho branco, os copos de cerveja nacional e os dois vinténs de parati ou
laranjinha sucediam-se por cima do balcão, passando das mãos do Domingos e do Manuel para as mãos ávidas
dos operários e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas exclamações de pândega. A Isaura, que
fora num pulo tomar o seu primeiro capilé, via-se tonta com os apalpões que lhe davam. Leonor não tinha um
instante de sossego, saltando de um lado para outro, com uma agilidade de mono, a fugir dos punhos calosos
dos cavouqueiros que, entre risadas, tentavam agarrá-la; e insistia na sua ameaça do costume: “que se queixava
ao juiz de orfe!”, mas não se ia embora, porque defronte da venda viera estacionar um homem que tocava cinco
instrumentos ao mesmo tempo, com um acompanhamento desafinado de bombo, pratos e guizos. Eram apenas
oito horas e já muita gente comia e palavreava na casa de pasto ao lado da venda. João Romão, de roupa
mudada como os outros, mas sempre em mangas de camisa, aparecia de espaço em espaço, servindo os
comensais; e a Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, lá estava ao fogão,
mexendo as panelas e enchendo os pratos.
Um acontecimento, porém, veio revolucionar alegremente toda aquela confederação da estalagem. Foi a
chegada da Rita Baiana, que voltava depois de uma ausência de meses, durante a qual só dera notícias suas nas
ocasiões de pagar o aluguel do cômodo. Vinha acompanhada por um moleque, que trazia na cabeça um enorme
samburá carregado de compras feitas no mercado; um grande peixe espiava por entre folhas de alface com o seu
olhar embaciado e triste, contrastando com as risonhas cores dos rabanetes, das cenouras e das talhadas de
abóbora vermelha.
— Põe isso tudo aí nessa porta. Aí no número 9, pequeno! gritou ela ao moleque, indicando-lhe a sua casa, e
depois pagou-lhe o carreto. — Podes ir embora, carapeta!
Desde que do portão a bisparam na rua, levantou-se logo um coro de saudações.
MACHONA: Olha! Quem aí vem!
LEOCÁDIA: Olé! Bravo! É a Rita Baiana!
DONA ISABEL: Já te fazíamos morta e enterrada!
DAS DORES: E não é que o demo da mulata está cada vez mais sacudida?...
MACHONA: Então, coisa-ruim! Por onde andaste atirando esses quartos?
LEÓCADIA: Desta vez a coisa foi de esticar, hein?!
Rita havia parado em meio do pátio.
Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novas dela. E a festa estourava no cortiço...
Ia se aproximando uma moça acompanhada, e uma das moradoras grita:
— OLHA A RITA BAIANAAAA!!!! QUANTO TEMPO MULHEEER...
RITA BAIANA: Agora estou com compromisso, por isso o sumiço.
MACHONA: E ainda durou esse tempo todo?
RITA BAIANA: Cale sua matraca, Firmo é um homem sério!
E a festa continua estourando...
Falavam e riam todos ao mesmo tempo; tilintavam os talheres e os copos. Cá de fora sentia-se perfeitamente o
prazer que aquela gente punha em comer e beber à farta, com a boca cheia, os beiços envernizados de molho
gordo. Alguns cães rosnavam à porta, roendo os ossos que traziam lá de dentro.
O Miranda apareceu furioso à janela, com o seu tipo de comendador, a barriga empinada para a frente, de paletó
branco, um guardanapo ao pescoço e um trinchante empunhado na destra, como uma espada.
Miranda: Vão gritar para o inferno! Isto também já é demais! Se não se calam, vou daqui direito chamar a
polícia! Súcia de brutos!
Com os berros do Miranda muita gente chegou à porta de casa, e o coro de gargalhadas, que ninguém podia
conter naquele momento de alegria, ainda mais o pôs fora de si.
(Os convidados vão se aproximando, dentre eles, o amante, Firmo e o amigo, Porfirio, por fim, Piedade e
Jerônimo.) Toca-se, canta-se e bebe-se em exagero. Gritos e algazarras sinalizavam para longe a alegria da
festa.
Durante a festa, Jerônimo começa a se apaixonar intensamente por Rita Baiana. Ao final, ele começa a se sentir
mal.
No dia seguinte, Jerônimo larga o trabalho na hora do almoço e, sentindo-se morrinhento volta para casa. Pede
à mulher que avise ao Romão que não volta ao trabalho naquele dia.
A notícia espalhou-se logo ali entre as lavadeiras e as visitas ao doente começaram uma após a outra,
Jerônimo ia reclamar, quando, pelo cheiro, percebeu que Rita vinha vê-lo.
Jerônimo apertou-lhe a mão.
JERÔNIMO: Gostei de vê-la ontem dançar, disse, muito mais animado.
RITA BAIANA: Já tomou algum remédio?...
JERÔNIMO: A mulher falou aí em chá preto...
RITA BAIANA: Chá! Que asneira! Chá é água morna! Isso que você tem é uma resfriagem. Vou-lhe fazer
uma xícara de café bem forte para você beber com um gole de parati, e me dirá se sua ou não, e fica depois fino
e pronto para outra! Espera aí!
E saiu logo, deixando todo quarto impregnado dela. Piedade tornou, pesada, triste, quando a infeliz se
aproximou do marido, este, fora do costume, notou-lhe o cheiro azedo do corpo. Voltou-lhe então o mal-estar e
desapareceu o último vestígio do sorriso que ele tivera havia pouco.
JERÔNIMO: Não cozas o chá. Vou tomar outra coisa... ‘Stá bem, filha, não vais tratar do teu serviço?...
PIEDADE: Pedi à Leocádia que me esfregasse a roupa. Ela hoje tinha pouco que fazer e eu queria ficar a teu
lado, Jeromo!
JERÔNIMO: E eu acho que isso é tolice! Vai! Anda!
Ela ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que entrava muito ligeira e sacudida,
trazendo na mão a fumegante palangana de café com parati e no ombro um cobertor grosso para dar um
suadouro ao doente.
E passou a cuida-lo.
A portuguesa não dizia nada, sorria contrafeita, no íntimo, ressentida contra aquela invasão de uma estranha nos
cuidados pelo seu homem. Não era a inteligência nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o instinto, o
faro sutil e desconfiado de toda a fêmea pelas outras, quando sente o seu ninho exposto.
RITA: Ele daqui a nada deve estar ensopado de suor; mude-lhe toda a roupa e dê-lhe dois dedos de parati, logo
que peça água. Cuidado com o vento!
E saiu, Piedade chegou-se então para o cavouqueiro, ajudando-o, resmungou:
PIEDADE: Deus queira que isto não te vá fazer mal em vez de bem!... Nunca tomas café, nem gostas!...
JERÔNIMO: Isto não é por gosto, filha, é remédio!
E de fato, funcionou. Quando Piedade chegou lá fora, dando parte do bom resultado do remédio, a Rita correu
de novo ao quarto do doente.
RITA: Então, que me diz agora? Sente-se ou não melhorzinho?
Ele voltou para a rapariga o seu olhar de animal, passou-lhe o braço esquerdo na cintura e procurou com a mão
direita segurar a dela.
Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro, escapou-lhe das garras com um pulo.
RITA BAIANA: Olhe que peste! Faça-se de tolo, que digo à sua mulher, hein? Ora vamos lá! Mas, como a
Piedade entrava na salinha ao lado, disfarçou logo, acrescentando noutro tom: Agora é tratar de dormir e mudar
de roupa, se suar outra vez. Até logo! E saiu.
Parte 5: visita de Jerônimo à Rita Baiana
Em casa, piedade tenta chegar-se a Jeronimo, que por sua vez a rejeita.
PIEDADE: Sabe meu homem, eu estava aqui me lembrando de como era a nossa vida antes de arribarmos pra
cá... e sabe do que eu me lembrei (de frente, passando a mão por seu peito com o braço envolto da cintura de
Jerônimo) ... lembrei de como meu homem é forte, fogoso.
Jeronimo esquiva-se.
JERÔNIMO: Eu sei mulher, e ainda o sou. Mas agora não tenho tempo. Aqui faz muito calor. E outra, estou
indisposto, cansado. Na pedreira é muito trabalho. Piedade...
PIEDADE: Sim...
JERÔNIMO: Não queria te falar, mas... sabes? Deves tomar banho todos os dias e... mudar de roupa. Isto não
é como lá! Isto aqui sua-se muito! É preciso trazer o corpo sempre lavado, que, ao se não, cheira-se mal!... Tem
paciência!
Piedade chora desesperadamente. Todas as suas mágoas desataram-se numa única vez.
JERÔNIMO: Agora estás tu a chorar! Ora filha, deixa-te disso!
Piedade continua chorando. Jeronimo bebe um copo d’água.
JERÔNIMO: Então, que é isto mulher? Pões-te agora a fazer tamanho escarcéu, nem que se cuidade de coisa
séria.
Piedade desabou ainda em soluços:
PIEDADE: É que já não me queres! Já não és o mesmo homem para mim! Dantes não me achavas que pôr, e
agora até já te cheiro mal. (Continua chorando)
JERÔNIMO: Não digas asnices, filha!
PIEDADE: Ah! Eu bem sei o que isto é...
JERÔNIMO: E bobagem tua, é o que é!
PIEDADE: Maldita hora em viemos dar ao raio desta estalagem! Antes me tivera caído um calhau na cabeça!
Jeronimo, irritado com a acusação da esposa.
JERÔNIMO - Estás a queixar-te da sorte sem razão! Que Deus te não castigue. (Jerônimo sai enquanto
piedade continua sentada, batendo na mesa e lamentando-se)
PIEDADE: Maldita Rita Baiana! Maldita!
(...)
Jeronimo vai até a casa de Rita levar um presente pela ajuda recebida quando estava enfermo e a encontra
calçada batendo os tapetes.
PIEDADE: Boa tarde, dona Rita!
RITA: Boa tarde, seu Jeronimo!
JERÔNIMO: Eu trouxe esse pequeno presente como forma de agradecimento pela ajuda do outro dia.
RITA: Não precisava homem! A vida é assim.
JERÔNIMO: E a pobrezinha de Cristo, como tem passado? A senhora fez bem, Dona Rita! A senhora mostrou
com isso que tem bom coração...
RITA: Ah, meu amigo, neste mundo hoje por mim, amanhã por ti. A princípio, aboletei-a na casa de umas
engomadeiras do Catete, são minhas camaradas. Mas aí não deu certo e arranjei uma casa de família. Lá ela está
servindo de ama seca. Da última vez que nos vimos, ela havia descoberto um bom arranjo num colégio de
meninas.
JERÔNIMO: Muito bem! Muito bem! (Jeronimo aplaude aprovando os gestos de Rita)
RITA: Ora, o quê! O mundo é largo. Há lugar pro gordo e pro magro. Bem tolo é quem se mata! Após concluir
o pensamento, Rita introduz novo assunto – Leocádia está grávida.
JERÔNIMO: grávida? Mas então não é do marido!....
RITA: pode bem ser que sim. Barriga de quatro meses....
JERÔNIMO: Ah! Mas ela não foi há mais tempo do que isso?...
RITA: Não. Vai fazer agora pelo São João quatro meses justamente.
(Jeronimo percebe que passou muito tempo na conversa.)
JERÔNIMO: Bom, tenho que ir. Até mais dona Rita!
RITA: Até mais, seu Jerônimo!
Parte 6: Piedade Visita a Bruxa
Bate à porta.
PIEDADE: Dona Paula? Dona Paula? Ô de casa?
A velha abre a porta.
BRUXA: o que você quer?
PIEDADE: quero que restitua meu homem.
BRUXA: entra e senta.
(A Bruxa acende uma vela de cera posta num pires, queima algumas ervas aromáticas e tira a sorte nas caras. À
medida que tira uma carta e outra, resmunga com o “rhum” cada figura. Depois, calma e convicta, sem tirar os
olhos da carte)
BRUXA: ele tem a cabeça virada por uma mulher trigueira.
PIEDADE: (Batendo na mesa num tom de revolta) é o diacho da Rita Baiana! Bem cá me palpitava por dentro!
Ai, meu rico homem!
Piedade pensa um pouco e principia a chorar. Depois, limpa as lagrimas com o avental.
PIEDADE: Dona Paula, pelas almas moribundas do purgatório, por favor, recomende-me algo para que
consiga remediar tamanha desgraça. Ai, se perco aquela criatura, senhora Paula! Nem sei que virá a ser de mim
neste mundo de Cristo! ..... Ensine-me alguma coisa que me puxe o Jeromo!
BRUXA: Escute, você deve tomar banho todos os dias e der a beber ao seu homem, no café pela manhã,
algumas gotas das águas da lavagem. Se, no fim de um certo tempo, este regime não produzir o desejado efeito,
então você deve cortar um pouco dos cabelos do corpo, torrá-los até produzir um pó. Despeje esse pó por cima
da comida dele.
PIEDADE: Farei isso! Pegue, dona Paula (colocando uma moeda de prata na mão da feiticeira). Prometo te dar
uma coisa muito melhor se eu tiver o resultado que desejo com esse remédio.
(Piedade vai embora. A Bruxa verifica se a moeda é verdadeira.)
Parte 7: Descoberta da gravidez de Florinda e revolta de Marciana e todas as outras mulheres do cortiço
Num outro dia, às seis horas da manhã, a mulata – Rita Baiana – dá de cara com o português. Os dois se
encontram, trocam olhares que revelam estar ambos apaixonados um pelo outro, mas seguem em silêncio após
cumprimentarem-se, constrangidos, com um mero bom-dia. Mas antes de se distanciarem, a mulata adverte
Jerônimo.
RITA: senhor Jerônimo?
JERÔNIMO: Sim, minha senhora!
RITA: preciso que você seja cauteloso com o Firmo. Conheço-o bem e sei do que ele é capaz de fazer sob a
influência dos ciúmes. (Em tom de súplica) Por favor, tome cuidado!
JERÔNIMO: pode deixar, senhora!
(...)
(No número 12, estão Marciana e a filha Florinda. Marciana espera Florinda sentada na mesa para tomarem
café juntas.)
MARCIANA: dormiu bem? (Desconfiada)
FLORINDA: mal. (sentando-se na mesa)
MARCIANA: Aqui está. Café pra te suster.
(Ao sentir o cheiro dos ovos malpassados, a pequena sai às pressas da mesa para vomitar ao bacio)
MARCIANA: que é isto?
FLORINDA: não sei, mamãe...
MARCIANA: Que sentes tu?...
FLORINDA: nada...
MARCIANA: Nada, e estás lançando?... Hein?
FLORINDA: não sinto nada não senhora!...
(Marciana aproxima-se da filha, desata-lhe violentamente o vestido. Levanta-lhe as saias e examina todo o
corpo inquieta, zangada. Não encontrando resposta, vai chamar a Bruxa enquanto Florinda espera-lhe aflita por
ter sido descoberto o segredo)
PAULA: o que houve? (Examinando a mulatinha)
MARCIANA: Lançou após sentir o cheiro dos ovos e do café. Além disso, o fluxo menstrual está desregrado
faz três meses.
BRUXA: Está grávida. (Sem demonstrar nenhum sentimento ao sentenciar para Marciana)
(PAULA sai e Marciana cerca Florinda. Enfurecida, a mulata parte para cima da desgraçada, sacudindo murros
e soltando palavrões. Florinda berra como uma louca. Todas lavadeiras e demais moradores do cortiço ouvem a
gritaria. Inquietos, querem saber o que está havendo)
- Marciana, o que está acontecendo?
- abra a porta, Marciana! Abra, do contrário, entraremos pela janela.
(Lá dentro, a mulata, irresoluta, por cima da rapariga com as mãos apertando-lhe o pescoço grita e repete)
MARCIANA: quem foi? Quem foi? Fala!
(Florinda apenas chora)
MARCIANA: Ah, não queres dizer por bem? Ora, espera!
(Marciana sai para pegar vassoura e Florinda escapa para fora. Marciana, sedenta, parte para cima da menina
novamente ameaçando a todos com a vassoura)
MARCIANA: Deixem que o problema dessa peste eu resolvo! E ai de quem se meter!...
RITA: Então o que é isso, tia Marciana? Então o que é isso?
MARCIANA: Que é isto?! É que esta assanhada está de barriga! Está aí o que é! Para tanto não lhe faltou jeito,
nem foi preciso que a gente andasse atrás dela se matando, como sucede sempre que há um pouco mais de
serviço e é necessário puxar pelo corpo! Ora está aí o que é!
AUGUSTA: Bem, mas não lhe bata agora, coitada! Assim você lhe dá cabo da pele!
MARCIANA: Não! Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ela há de dizer quem foi ou quebro-lhe os
ossos!
DAS DORES: Então, Florinda, diz logo quem foi... É melhor! (Aconselhando)
(Fez-se em torno da rapariga um silêncio ávido, cheio de curiosidade. Ela não disse nada)
MARCIANA: Estão vendo?... Não responde, este diabo! Mas esperem, que eu lhes mostro se ela fala, ou não!
(E as lavadeiras agarram Marciana novamente e tiram a vassoura de sua mão)
RITA: Florinda, diga logo quem foi? Não tem porque esconder.
BRUXA: Desembucha menina, não vê que sua mãe já está furiosa?!
FLORINDA: Foi seu Domingos... (chorando e cobrindo o rosto com a fralda do vestido, rasgado na luta.)
DAS DORES: O Domingos!...
ALBINO: O caixeiro da venda!...
MARCIANA: Ah! Foi aquele cara de nabo? Vem cá! (Arrasta a filha pelo braço até a estalagem de João
Romão e o todo o restante da multidão a segue. Lá dentro da estalagem, está Domingos, Manuel e João Romão)
Marciana na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que a seguia como um animal puxado pela
coleira, ao chegar à porta lateral da venda, berrou:
MARCIANA: Ó seu João Romão!
JOÃO ROMÃO: Que temos lá? (perguntou de dentro o vendeiro, atrapalhado de serviço)
(Bertoleza, com uma grande colher de zinco gotejante de gordura, apareceu à porta, muito ensebada e suja de
tisna; e, ao ver tanta gente reunida, gritou para seu homem):
BERTOLEZA: Corre aqui, seu João, que não sei o que houve!
JOÃO: Que diabo é isso aquilo?
MARCIANA: Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar conta dela!
JOÃO: Hein! Que é lá isso?! (Perplexo)
— Foi o Domingos! dizem muitas vozes.
JOÃO: O seu Domingos! (Chamou ao empregado)
DOMINGOS: “Senhor...” (com uma voz de delinquente.)
JOÃO: Chegue cá!
E o criminoso apresentou-se, lívido de morte.
JOÃO: Que fez você com esta pequena?
DOMINGOS: Não fiz nada, não senhor!...
FLORINDA: Foi ele, sim! (Desmentindo-o. O caixeiro desvia os olhos, para a não encarar.) — Um dia de
manhãzinha, às quatro horas, no capinzal, debaixo das mangueiras...
(As mulheres entram numa gargalhada só)
JOÃO: Então o senhor anda-me aqui a fazer conquistas, hein?!... (Balançando a cabeça num gesto de
desaprovação). Muito bem! Pois agora é tomar conta da fazenda e, como não gosto de caixeiros amigados, pode
procurar arranjo noutra parte!...
(Domingos entra e as demais lavadeiras se espalham. Marciana invade a estalagem com a filha agarrada pelo
braço).
MARCIANA: Então? Que tenciona fazer?
(Ele não deu resposta. Começou a arrumar suas coisas)
MARCIANA: Vamos! Vamos! Fale! Desembuche!
DOMINGOS: Ora lixe-se! (Resmungou o caixeiro, agora muito vermelho de cólera.)
MARCIANA: Lixe-se, não!... Mais devagar com o andor! Você há de casar: ela é menor!
DOMINGOS: casar? Oras! Essa rapariga não vale nada. Vou é meter o pé. Não sou obrigado.
MARCIANA: ah, é? Pois é o que veremos. (Revoltada grita para que todas as pessoas ouçam) Sabe? O cara de
nabo diz que não casa!
(Ao ouvirem isso, todas as lavadeiras se aproximam indignadas)
RITA BAIANA: Era só o que faltava!
AUGUSTA: Tinha graça!
DONA ISABEL: Então mais ninguém pode contar com a honra de sua filha?
MACHONA: Se não queria casar pra que fez mal?
RITA BAIANA: Quem não pode com o tempo não inventa modas!
MACHONA: Ou ele casa ou sai daqui com os ossos em sopa!
DONA ISABEL: Quem não quer ser lobo não lhe vista a pele!
RITA: Ó seu João Romão, se o homem não casa, mande-o pra cá! Temos ainda algumas pequenas que lhe
convêm!
DONA ISABEL: Mas onde está esse ordinário? Saia o canalha!
MARCIANA: está fazendo a trouxa!
DONA ISABEL: Quer escapar!
MACHONA: Não deixe sair!
DONA ISABEL: Chame a polícia! Onde está o Alexandre?
(Começa uma reclamação mútua de indignação e revolta. E ninguém mais se entendia. À vista daquela
agitação, João Romão foi ter com o Domingos.)
JOÃO: Não saia agora. (Ordenou-lhe). Deixe-se ficar por enquanto. Logo mais lhe direi o que deve fazer.
(João vai à porta da estalagem)
JOÃO: Vá de rumor! Não quero isto aqui! É safar!
— Pois então o homem que case! responderam.
RITA: Ou dê-nos pra cá o patife!
DAS DORES: Fugir é que não!
DONA ISABEL: Não foge! Não deixa fugir! Ninguém se arrede!
(Marciana bufando de ódio, com os punhos fechados, se dirige a João Romão)
MARCIANA: Escuta, seu João! Deixe-o vir pra fora! O senhor nem pense em defender este miserável
ordinário. Não ouse! Se não, eu acabo com tudo!
JOÃO: se a senhora me ameaçar de novo está fora do meu cortiço! Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua
obrigação, que eu não posso perder tempo!
MARCIANA: Ponha-nos então pra cá o homem! exigiu a mulata velha.
TODAS AS MULHERES: Venha o homem! É, mande-o. É preciso dar-lhe uma lição!
JOÃO: O rapaz casa! (Fala Sisudo). Já lhe falei... Está perfeitamente disposto! E, se não casar, a pequena terá o
seu dote! Vão descansados; respondo por ele ou pelo dinheiro!
(Todas ficam satisfeitas com a respostas e se dispersam pelo cortiço. João entra para a estalagem e conversa
com Domingos, advertindo-o)
JOÃO: Escute aqui. Não arredes o pé da casa antes da noite fechada. No mais... pode tratar de vida nova! Nada
o prende aqui.
DOMINGOS: Como? Se o senhor ainda não me fez as contas?!...
JOÃO: Contas? Que contas? O seu saldo não chega para pagar o dote da rapariga!...
DOMINGOS: Então eu tenho de pagar um dote?!...
JOÃO: Ou casar... Ah, meu amigo, este negócio de três vinténs é assim! Custa dinheiro! Agora, se você
quiser, vá queixar-se à polícia... Está no seu direito! Eu me explicarei em juízo!...
DOMINGOS: Com que, não recebo nada?...
JOÃO: E não principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o ficar às turras lá fora com esses
danados! Você bem viu como estão todos a seu respeito! E, se há pouco não lhe arrancaram os fígados,
agradeça-o a mim! Foi preciso prometer dinheiro e tenho de cair com ele, decerto! Mas não é justo, nem eu
admito, que saia da minha algibeira porque não estou disposto a pagar os caprichos de ninguém, e muito menos
dos meus caixeiros!
DOMINGOS: Mas...
JOÃO: Basta! Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de ficar calado; ao contrário — rua!
(João se afasta e o rapaz fica indignado)
Parte 8: visita da extravagante cocote Léonie à casa dos compadres.
(Léonie chega muito extravagante. Chama por seus compadres.)
AUGUSTA: comadre, seja bem-vinda! Onde está Juju?
LÉONIE: está em casa. Estou apenas de passagem para marcar uma certa visita. Por favor, mandem que
Pombinha venha até aqui, pois temos algo a tratar.
(Enquanto Alexandre vai chamar Pombinha, Augusta e Léonie conversam sentadas)
LÉONIE: Ouvi falar que Pombinha está noiva. É verdade?
AUGUSTA: sim, é verdade. Você bem sabe que ela sempre vai à sociedade de dança com a Mãe, e numa
dessas ocasiões, conheceu o Costa.
LÉONIE: Costa? O noivo?
AUGUSTA: sim, o noivo.
LÉONIE: E aquilo? Já veio? (Com voz abafada)
AUGUSTA: Qual! Não é por falta de boa vontade da parte delas, coitadas! Agora mesmo a velha fez uma nova
promessa a Nossa Senhora da Anunciação... Mas não há meio!
AUGUSTA: a senhora quer uma xícara de café?
LÉONIE: não, querida, eu não posso. Estou em uso de remédios. Prefiro um copo de cerveja.
LÉONIE: Quando você, comadre, agora me aparece por lá?...
AUGUSTA: Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre tem precisão de alguma... pode-
se aprontar com mais pressa...
LÉONIE: Então é bom mandar-me toalhas e lençóis... Camisas de dormir, é verdade! Também tenho poucas.
AUGUSTA: Depois d’amanhã está tudo lá.
LÉONIE: está tarde! (Olhando para o relógio) devo ir agora.
(Pombinha aparece)
LÉONIE: olha quem apareceu?! Então, minha flor, como está essa lindeza? (Perguntou-lhe, mirando-a toda.)
POMBINHA: saudades suas....
LÉONIE: Por um pouco que não me apanhas... (continuou a cocote na sua conversa com a menina) Se a pessoa
que me vem buscar tivesse chegado já, eu estaria longe. — E mudando de tom, a acarinhar-lhe os cabelos: —
Por que não me apareces!... Não tens que recear: minha casa é muito sossegada... Já lá têm ido famílias!...
POMBINHA: Nunca vou à cidade... É raro! (suspirou)
LÉONIE: — Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas comigo...
POMBINHA: Se mamãe deixar... Olha! Ela aí vem. Peça.
LÉONIE: estávamos agorinha mesmo falando de você. (Se dirigindo a Dona Isabel). Quero que me visitem
amanhã. Podem?
DONA ISABEL: amanhã não será possível. Mas iremos no domingo.
E despediram-se.
Parte 9: Marciana cobra o dote a João Romão
(Marciana vai ao encontro de João Romão.)
MARCIANA: então, seu Romão, onde está aquele desgraçado que seduziu minha filha?
JOÃO: Sei cá! Creio que não podia trazê-lo pendurado ao pescoço!...
MARCIANA: Mas você disse que respondia por ele!
JOÃO: De acordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?... É ter paciência!
MARCIANA: Pois então ande com o dote!
JOÃO: Que dote? Você está bêbeda?
MARCIANA: Bêbeda, hein? Ah, corja! Tão bom é um como o outro! Mas eu hei de mostrar!
JOÃO: Ora, não me amole!
(E João Romão virou-lhe as costas, para falar à Bertoleza que se chegara.)
Parte 10: A extinção da inocência de Pombinha
No outro dia, Pombinha e Dona Isabel vão visitar uma amiga da família, Léonie, prostituta, luxuosa, madrinha
de Juju, comadre de Alexandre e Augusta.
O passeio à casa de Léonie fizera-lhe muito mal. Trouxe de lá impressões de íntimos vexames, que nunca mais
se apagariam por toda a sua vida.
A cocote recebeu-a de braços abertos, radiante com apanhá-la junto de si, naqueles divãs fofos e traidores, entre
todo aquele luxo extravagante e requintado próprio para os vícios grandes. Ordenou à criada que não deixasse
entrar ninguém, ninguém, nem mesmo o Bebê, e assentou-se ao lado da menina, bem juntinho uma da outra,
tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade de perguntas, e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo,
de olhos fechados.
Léonie: Então, minha flor, como está essa lindeza?
Pombinha: Saudades suas...
Dona Isabel suspirava também, mas de outro modo; na sua parva compreensão do conforto, aqueles
impertinentes espelhos, aqueles móveis casquilhos e aquelas cortinas escandalosas arrancavam-lhe saudosas
recordações do bom tempo e avivavam a sua impaciência por melhor futuro.
Ai! Assim Deus quisesse ajudá-la!...
Às duas da tarde, Léonie, por sua própria mão serviu às visitas um pequeno lanche de foie-gras, presunto e
queijo, acompanhado de champanha, gelo e água de Seltz, e, sem se descuidar um instante da rapariga, tinha
para ela extremas solicitudes de namorado; levava-lhe a comida à boca, bebia do seu copo, apertava-lhe os
dedos por debaixo da mesa.
Depois da refeição, Dona Isabel, que não estava habituada a tomar vinho, sentiu vontade de descansar o corpo;
Léonie franqueou-lhe um bom quarto, com boa cama, e, mal percebeu que a velha dormia, fechou a porta.
Léonie: Bem! Agora estavam perfeitamente a sós!
Léonie: Vem cá, minha flor!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair sobre um divã. Sabes? Eu te
quero cada vez mais!... Estou louca por ti!
E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a menina, enchendo-a de espanto e de um
instintivo temor, cuja origem a pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era.
A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a mão.
Léonie: Descansemos nós também um pouco... propôs, arrastando-a para a alcova.
Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda perplexa, com vontade de afastar-se, mas sem
ânimo de protestar, por acanhamento, tentou reatar o fio da conversa, que elas sustentavam um pouco antes, à
mesa, em presença de Dona Isabel.
Pombinha: Não! Para quê!... Não quero despir-me...
Léonie: Mas faz tanto calor... Põe-te a gosto...
Pombinha: Estou bem assim. Não quero!
Léonie: Que tolice a tua...! Não vês que sou mulher, tolinha?... De que tens medo?... Olha! Vou dar exemplo!
E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha. A menina, vendo-se descomposta, cruzou os
braços sobre o seio, vermelha de pudor.
Pombinha: Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila trêmula.
E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta, e
precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo bico do peito.
Pombinha: Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se em cócegas, e deixando ver
preciosidades de nudez fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta.
Léonie: Que mal faz?... Estamos brincando...
Pombinha: Não! Não! Balbuciou a vítima, repelindo-a.
Léonie: Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo em contato
com o dela todo o seu corpo nu.
No caminho para casa, Dona Isabel passou o tempo perguntando à sua filha:
Isabel: O que fizeste lá, minha filha?
Pombinha: Nada, mãe!
Nisto, Pombinha soltou um ai formidável e despertou sobressaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do
corpo. E feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das
entranhas, em uma onda vermelha e quente.
A natureza sorriu-se comovida. Um sino, ao longe, batia alegre as doze badaladas do meio-dia. O sol, vitorioso,
estava a pino e, por entre a copagem negra da mangueira, um dos seus raios descia em fio de ouro sobre o
ventre da rapariga, abençoando a nova mulher que se formava para o mundo.
Dona Isabel, sabendo disso, tratou logo de preparar o enxoval para o casamento.
Parte 11: O adultério
Na rua, levantou-se outro cortiço, o Cabeça de Gato, que ocasionou uma certa competição entre os dois cortiços
presentes no lugar.
Bertoleza continuava a trabalhar como uma escrava, sem folgas de domingo ou dia santo.
Firmo, continuava a se envolver com Rita Baiana, mas a mesma agora o tratava com frieza e acabou faltando à
um encontro marcado, era justamente o dia em que Jerônimo havia recebido alta do hospital.
Ao sair do hospital já recuperado, Jerônimo e outros homens armam uma emboscada para dar fim à vida de
Firmo, para se vingar pela navalhada que levou do capoeira.
Assim que o capoeira já bêbado saiu do estabelecimento onde estava, mal tocou com os pés em terra, Jerônimo
desferiu um golpe na cabeça do companheiro de Rita, ao mesmo tempo que a primeira cacetada lhe abria a
nuca. Deu um grito e voltou-se cambaleando. Uma nova paulada cantou-lhe nos ombros, e outra em seguida
nos rins, e outra nas coxas, outra mais violenta quebrou-lhe a clavícula, enquanto outra logo lhe rachava a testa
e outra lhe apanhava a espinha, e outras, cada vez mais rápidas, batiam de novo nos pontos já espancados, até
que se converteram numa carga contínua de porretadas, a que o infeliz não resistiu, rolando no chão, a gotejar
sangue de todo o corpo.
Depois disso, Jerônimo a procura:
Rita Baiana: Escute! Sua mulher está começando a desconfiar de nosso caso, e eu não quero desavenças com
meu nome.
Jerônimo: Amo minha mulher, mas não encontro mais nela coisas que eu desejava.
Rita Baiana: Homem é tudo da mesma laia mesmo, otária é quem bota a mão no fogo, por isso não quero mais
homem na minha vida.
Jerônimo: Quem? Eu?
Rita Baiana: Esse mesmo, não vale nada!
Jerônimo: E se você encontrasse assim um... diferente!
Rita Baiana: Que esperança, não me venha com seus truques.
Jerônimo: Por quê, Rita?
Rita Baiana: Não vale mais a pena!
Vendo que sua esposa Piedade passava, disfarçou com uma frase improvisada:
Jerônimo: Os banhos frios são para isso, descanse um pouco.
Jerônimo mata Firmo, logo após isso, Rita fica com Jerônimo. Ele larga sua esposa Piedade, e dá umas
economias a ela!
Depois, Piedade vai tirar satisfações com Rita:
Piedade: Epa! Pare aí sua puta, você roubou meu marido de mim.
Rita Baiana: Minha Senhora, eu tenho culpa de fazer ele enlouquecer na cama melhor que você? Tabaco de
bacalhau!
Neste momento, as duas se agarram e começam a brigar...
— SUA TALARICAAAA!!!
Durante a briga, Paula põe fogo no cortiço.
Enquanto Jerônimo e Rita se mudaram para outra cidade e foram ser felizes, Piedade acabou se afundando no
alcoolismo e se mudou para o cortiço Cabeça de Gato onde vivia sustentada por Pombinha.
O casamento de Pombinha não durou muito tempo, influenciada por Léonie, acabou abandonando o marido e se
dedicou à prostituição. Dona Isabel foi internada e acabou morrendo de desgosto pela sua filha, que até então
era inocente e "pura".
Parte 12: A traição de Romão e a morte de Bertoleza
As obras na venda e no cortiço terminaram em alguns meses, o cortiço agora abrigava uma nova camada social.
João ia jantar todos os dias na casa de Miranda, e passeava com Zulmira no teatro.
Bertoleza havia ficado esquecida no churrasco, Zulmira acaba aceitando Romão como seu marido. E ele pensa:
João Romão: E agora? O que fazer com Bertoleza? 
João se dirige até Bertoleza...
João Romão: Eu te dou a quitanda!
Bertoleza: Eu não quero a quitanda!
João Romão: E o quê que você quer?
Bertoleza: Eu quero viver contigo...
João Romão: Pois saiba que aquela carta de liberdade era falsa, seu dono já está vindo te buscar.
Suposto dono: EU QUERO MINHA ESCRAVA!!!!
Bertoleza: NÃO! PREFIRO TUDO DO QUE FICAR NAQUELE INFERNO DE NOVO.
Bertoleza se dirige até o local onde consertava peixe, pega a faca, e corta sua barriga de um lado a outro ali
mesmo, e cai morta com uma poça de sangue ao redor de si. João Romão agora se sentia desolado e foi nos
fundos da quitanda chorar.
Nesse momento, parava na porta da rua uma carruagem, eram abolicionistas que vinham de casaca dar a João
um diploma de sócio pela libertação de escravos.
João manda que os conduzisse até a sala de visitas.
João Romão: E que esperem! Tenho que me recompor um pouco, não demoro muito.
Olhou pela janela, recompondo-se entre aliviado e culpado, e não soltou uma única lágrima, mas se corroeu de
inveja quando viu de longe Jerônimo abraçado e apaixonado pela sua mulata, como se não precisassem mais de
nada no mundo. Era uma felicidade que escorre da pobreza, da podridão do cortiço.
E assim, termina nossa história!

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