Você está na página 1de 11

Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha:

O embranquecimento do Choro e a negritude apagada

Chiquinha Gonzaga and Pixinguinha: The whitening of Choro and the erased blackness

Glaw Nader
Universidade Federal de Minas Gerais
glaw.nader@gmail.com

Resumo: Discuto neste artigo, o embranquecimento do choro notadamente evidenciado em três situações: 1. A
negritude apagada de Chiquinha Gonzaga, que até pouco tempo estava no imaginário brasileiro como o de uma
mulher branca; 2. A estética sonora embranquecida com base na história protagonizada por Pixinguinha e
Radamés Gnatalli na gravadora Victor; 3. O racismo por parte dos protagonistas brancos no choro e no samba nos
anos 1930 e 1940. O embranquecimento, remonta ao projeto politico pós-abolição de embranquecer o povo
brasileiro, Esta discussão se dará com base em conceitos de negritude (seus usos e sentidos) de Munanga (2019),
racismo e desigualdade de Carneiro (2011) e decolonialidade e pensamento afrodiaspórico de Bernardino-Costa,
Maldonado-Torres E Grosfoguel (2020).

Palavras-chave: embranquecimento do choro; história do choro; choro; Chiquinha Gonzaga; Pixinguinha.

Abstract: In this article, I discuss the whitening of choro, notably evidenced in three situations: 1. Chiquinha
Gonzaga's erased blackness, which until recently was in the Brazilian imagination as that of a white woman; 2. The
whitened sound aesthetic based on the story starred by Pixinguinha and Radamés Gnatalli at the Victor label; 3.
Racism on the part of white protagonists in choro and samba in the 1930s and 1940s. Whitening dates back to the
post-abolition political project of whitening the Brazilian people. This discussion will be based on concepts of
blackness (its uses and meanings) of Munanga (2019), racism and inequality of Carneiro (2011) and decoloniality
and aphrodiasporic thinking of Bernardino-Costa, Maldonado- Torres e Grosfoguel (2020).

Keywords: whitening of choro; history of choro; choro ; Chiquinha Gonzaga; Pixinguinha.

1 – Introdução

O objetivo deste trabalho é discutir o processo de embranquecimento no choro e


consequentemente no samba, à luz da trajetória de dois grandes nomes da música popular
brasileira: Chiquinha Gonzaga (1847) e Pixinguinha (1897).

O surgimento do choro é datado em meados de 1870, localizando-se na Pequena


África, região central do Rio de Janeiro, reduto dos negros vindos da Bahia. Ali se
desenvolveram e resistiram sob as tradições africanas o choro, maxixe, o samba e o candomblé,
presentes nas festas nas casas das tias baianas fundamentais na garantia desses espaços tão
importantes para a história da música afrobrasileira como Durvalina e Tia Ciata. De acordo com

1
ALVES (2020), poucas eram as figuras femininas nos registros à época do choro. Alexandre
Gonçalves Pinto (1936) registrava em seu livro “O choro: reminescências dos chorões antigos”,
a história de centenas de chorões e apesar disso, há poucos personagens femininos nesse
registro. E as únicas musicistas citadas são Chiquinha Gonzaga e Lily São Paulo.

Ao falar de choro é preciso falar da compositora, professora e instrumentista


Chiquinha Gonzaga (1847-1935). E mais, remontar à sua negritude que, ao longo da história foi
apagada, dando lugar à uma falsa branquitude na imagem de Chiquinha reforçada pelas
inúmeras representações da musicista tanto no teatro quanto na televisão. A esse respeito,
ALVES (2020), explica:

Remeto à figura de Chiquinha Gonzaga para que, observando sua história a partir de
uma perspectiva interseccional , seja possível compreender como a articulação entre
categorias como gênero e raça é fundamental para pensar sua trajetória como mulher
negra. A figura de Chiquinha é acionada para que possamos refletir sobre o
silenciamento de mulheres negras no domínio da cultura popular. Tendo lutado contra
o machismo e o sexismo presentes nos ambientes de produção musical de sua época,
Chiquinha pode ser pensada a partir das disputas em torno de sua imagem, que insistem
em branquear personagens negros da história do Brasil (ALVES, 2020 p.20-21).

Da mesma forma, ao falar do choro é também preciso falar de Pixinguinha. Nascido


Alfredo da Rocha Vianna Filho (1897-1973), o instrumentista, compositor e arranjador
Pixinguinha, figura importante na história do choro, vivenciou um momento peculiar do
embranquecimento na estética sonora do choro e do samba quando trabalhava como principal
arranjador da gravadora Victor, sendo substituído por Radamés Gnatalli. Ao que BESSA (2008),
conta:

[...]Pixinguinha , um dos mais destacados arranjadores brasileiros do início da


fonografia elétrica, perdeu espaço para Radamés Gnattali , músico de formação erudita
que o substituiu como principal maestro da gravadora Victor e tornou-se um dos
principais orquestradores dos programas de música da Rádio Nacional. A partir de
então, esses dois músicos passariam a representar vertentes distintas e
complementares da música popular brasileira: o primeiro seria associado ao típico, ao
antigo, ao tradicional; o segundo, ao novo, ao sofisticado, ao moderno. Embora a
diferença de idade entre os arranjadores não chegasse a dez anos, um fosso de gerações
se instaurou entre eles. Para além de uma natural sucessão artística, a substituição de
um artista por outro revela, entre outros aspectos, o processo de “branqueamento” que
vinha ocorrendo na cultura brasileira em geral e que se refletia particularmente na
produção musical da época (BESSA, 2008, p.1).

Perseguindo o fio de ambas histórias, pretendo ao longo deste artigo apontar e


discutir como o processo de embranquecimento ocorreu, evidenciando como o projeto político

1
eugenista pós-abolição corroborou para que a negritude fosse apagada não apenas da imagem
dos que realizaram o choro, como aconteceu com Chiquinha Gonzaga , mas, da estética sonora
embranquecida e no quanto isso influenciou na perda da identidade originária e
representatividade negras nas rodas de choro nas quais hoje, predomina a presença de músicos
brancos e de um público branco elitizado.

2 – Chiquinha Gonzaga e o apagamento de sua negritude

Ao mencionar o nome de Chiquinha Gonzaga, a primeira imagem que vem à mente


da maioria das pessoas é sempre a de uma mulher branca. Isso acontece, porque toda
representação da artista ao longo da história se deu dessa forma: tanto no teatro quanto na
televisão, foram atrizes brancas que personificaram Chiquinha, consolidando assim a sua
imagem. “Ainda nos dias de hoje, causa espanto mencionar que a pianista era neta de uma mulher
negra escravizada e filha de mãe negra forra” (ALVES, 2020 p.20). Carolina Alves, analisou
periódicos da época de atuação de Chiquinha Gonzaga com o intuito de encontrar material que
evidenciasse acentos coletivos que permitissem a discussão de sua negritude de forma a
delinear questões étnico-raciais na sociedade brasileira contemporânea, destacando elementos
que foram apagados nessa narrativa. Para ela, “tornar visíveis essas histórias, a partir de uma
perspectiva afrocentrada, é garantir que as narrativas e práticas de mulheres negras possam
aflorar, fornecendo importantes elementos para a reinterpretação do passado (ALVES, 2020
p.21).

Quatro momentos distintos entre o teatro e a televisão apresentaram como


protagonistas de Chiquinha Gonzaga mulheres brancas, consolidando assim a imagem da
musicista como uma mulher branca de fato. O primeiro deles, acontece em agosto de 1974,
quando estreia no Teatro Dulcina (Rio de Janeiro), o musical “Chiquinha Gonzaga”, trazendo
como protagonista a atriz Eva Todor. ALVES (2020) destaca que, ao se debruçar sobre os jornais
da época, as críticas que encontrou não mencionavam em nada o equívoco na representação
imagética de Chiquinha Gonzaga. A crítica se restringiu ao fato da atriz Eva Todor não saber
cantar. Anos mais tarde, em 1983, Maria Adelaide Amaral escreve “Ô abre alas” por encomenda

1
do Teatro Popular do SESI e dessa vez, a protagonista é a atriz Regina Braga. Em comemoração
aos 150 anos de Chiquinha Gonzaga, uma nova montagem foi produzida em 1998 e trazia como
protagonista a atriz Rosamaria Murtinho. Em 1999, a TV Globo lançou a minisserie Chiquinha
Gonzaga. Escrita por Lauro Cesar Muniz, dirigida por Jayme Monjardim, trazia como
protagonistas as atrizes Gabriela Duarte (Chiquinha Gonzaga jovem) e sua mãe, Regina Duarte
(como Chiquinha Gonzaga adulta). Nem no teatro, nem na televisão a negritude de musicista foi
mencionada. Nas palavras de Carolina Alves, “na série, os debates sobre negritude se resumiam
ao fato de Chiquinha ter sido influenciada pela música de negros, por ser abolicionista e pela
negritude de sua mãe, Rosa Maria de Lima, interpretada por Solange Couto” (ALVES, 2020 p. 22).

Chiquinha era neta de uma mulher negra escravizada e filha de mãe negra forra. Nesse
sentido, ainda que seu pai fosse branco, não seria possível percebê-la como uma mulher
branca. Considero que o processo de negação da negritude de Chiquinha e a
consolidação de sua imagem como a de uma mulher branca podem ser compreendidos
à luz do que alguns intelectuais chamam de “ideologia do branqueamento”, que deve
ser observada sem que se perca de vista, o racismo estrutural existente no Brasil
(ALVES, 2020 p.26).

Uma vez que não foi possível buscar o acento racial de Chiquinha Gonzaga com base
nos periódicos da época, visto que a crítica se ocupava com o seu gênero, a autora Carolina
Alves sugeriu outro rumo, no qual se reinvindicasse a negritude da artista com base na atuação
do movimento negro, tendo como caso de maior repercussão a negritude reconhecida do
escrito Machado de Assis. E, para discutir sobre o apagamento da negritude em consequência
desse branqueamento histórico no Brasil, é importante que se entenda o que é negritude e/ou
identidade negra, e como ela é percebida e assimilada. A negritude enquanto conceito e
movimento ideológico existe há aproximadamente 70 anos. Para Munanga (2019):

Nem sempre está claro quando se fala de identidade: identidade atribuída pelos
estudiosos por meio de critérios objetivos, identidade como categoria de autodefinição
ou atribuição do próprio grupo pelo grupo vizinho? [...] A negritude e/ou a identidade
negra se referem à história comum que liga, de uma maneira ou de outra, todos os
grupos humanos que o olhar do mundo ocidental “branco” reuniu sob o nome de
“negros” (MUNANGA, 2019).

Atualmente, ao pensar a negritude/identidade negra no Brasil, é possível notar que


é um assunto do qual muito se fala, mas, pouco se define. Há um pensamento que se desenvolve
a partir de uma identidade objetiva, circulando em torno de aspectos culturais e linguísticos
que também se confunde com uma ideia de identidade subjetiva, que toma corpo a partir de
como o próprio grupo se define ou como é definido pelo vizinho (MUNANGA, 2019, p.11). Sob

1
a ótica de que a negritude tem referência direta com a história comum que liga de uma ou outra
maneira todos os grupos humanos que o mundo branco eurocêntrico reuniu e nomeou como
negros, é importante frisar, de acordo com Munanga, que apesar de negritude ter origem na cor
da pele negra, ela não é essencialmente de ordem biológica. É importante salientar que, quando
o autor fala sobre história, se refere às barbaridades sofridas pelos povos africanos em diáspora
na tentativa brutal de desumanização e destruição de suas culturas. O autor lembra ainda, que
nos primórdios da dita civilização, “a África negra era considera como um deserto cultural e seus
habitantes como um elo entre o homem e o macaco” (MUNANGA, 2019, p.19). Ao que ele diz:

Tomada de consciência de uma comunidade de condição histórica [...] a negritude deve


ser vista também afirmação e solidariedade entre as vítimas. Consequentemente, tal
afirmação não pode permanecer na condição de objeto e de aceitação passiva. Pelo
contrário, deixou de ser presa do ressentimento e desembocou em revolta,
transformando a solidariedade e a fraternidade em armas de combate. A negritude
torna-se uma convocação permanente de todos os herdeiros dessa condição para se
engajem no combate para reabilitar os valores de suas civilizações destruídas e de suas
culturas negadas [...] as mulheres e os homens descendentes de africanos no Brasil [...]
cujas plenas valorização e aceitação de sua herança africana faz parte do processo do
resgate de sua identidade coletiva, a negritude faz parte de sua luta para reconstruir
positivamente sua identidade (MUNANGA, 2019, p.19).

Com base nessa ótica de resgate de uma identidade coletiva, de uma comunidade de
condição histórica e consciente, é que se torna imperativo reinvindicar a negritude de
personagens históricos como Chiquinha Gonzaga, compreendendo a negritude como parte da
luta para reconstruir positivamente a identidade da artista.

3 – Pixinguinha, Radamés e a estética musical embranquecida

Entre as décadas de 1930 e 1940, a música popular brasileira difundida por meio de
discos e rádio sofreu uma série de modificações, afastando-se cada vez mais das práticas de
choro e de samba, passando a incluir uma estética mais voltada para o erudito, tanto na
composição, quanto no arranjo e interpretação. Novos gêneros foram incorporados ao
repertório de música brasileira como valsas e canções sentimentais, que ganhavam público

1
entre os de maior poder aquisitivo. Dos elementos estéticos da música popular brasileira, o que
mais evidenciou essa guinada estética foi o arranjo.

Pixinguinha (1897-1973) tornou-se arranjador/orquestrador exclusivo da


gravadora Victor entre 1927 e 1934. O gaúcho Radamés Gnatalli (1906-1988) pianista,
impossibilitado de viver de concertos, passou a integrar orquestras populares como as de
Romeu Silva e Fon-fon no Rio de Janeiro. Em 1932, tornou-se pianista da gravadora Victor, sob
a regência de Pixinguinha. De acordo com Bessa (2008), nesse contexto:

Pixinguinha , um dos mais destacados arranjadores brasileiros do início da fonografia


elétrica, perdeu espaço para Radamés Gnattali, músico de formação erudita que o
substituiu como principal maestro da gravadora Victor [...]. A partir de então, esses dois
músicos passariam a representar vertentes distintas e complementares da música
popular brasileira: o primeiro seria associado ao típico, ao antigo, ao tradicional; o
segundo, ao novo, ao sofisticado, ao moderno [...] Para além de uma natural sucessão
artística, a substituição de um artista por outro revela, entre outros aspectos, o processo
de “branqueamento” que vinha ocorrendo na cultura brasileira em geral e que se
refletia particularmente na produção musical da época (BESSA, 2008, p.1).

Embora a diferença etária entre Pixinguinha e Radamés não chegasse a 10 anos,


estabeleceu-se uma separação na atuação de ambos que gerou um abismo de gerações entre
eles. Segundo Virgínia Bessa, Radamés passou a assinar na Victor todos os arranjos do
repertório romântico, sempre privilegiando a escrita para cordas, e também os samba-
exaltação gravados por metais, restando para Pixinguinha apenas os arranjos de música
carnavalesca que a essa altura já estavam escassos.

De fato, entre 1937 e 1941, a “Orquestra Diabos do Céu”, dirigida por Pixinguinha,
gravou apenas 58 fonogramas, número irrisório se comparado aos 304 gravados entre
1932 e 1936. Entre 1942 e 1945, as gravações dessa orquestra foram apenas 12. Nesse
último período, já eram raras na Victor gravações de sambas e marchas carnavalescos
acompanhadas por orquestra: somadas, não chegavam a 40. Em contraste, aumentava
o número de valsas, foxes e sambas-canções gravados com acompanhamento
orquestral (BESSA, 2008 p.4).

Apesar do que se dizia na época a respeito dos arranjos de Pixinguinha não serem
modernos, entre 1938 e 1940, segundo a biógrafa Marília Barboza da Silva:

Pixinguinha compôs cinco dos oito arranjos sinfônicos inéditos que foram encontrados
pela pesquisadora no arquivo pessoal do músico. Um deles, o de Carinhoso, foi levado
ao ar pela rádio Mayrink Veiga em 1938, durante as comemorações do quinto
aniversário da direção artística de César Ladeira na emissora. Segundo Sérgio Cabral,
era uma resposta aos boatos que corriam na época, segundo os quais Pixinguinha teria
“perdido a vez” para Radamés Gnattali porque não sabia escrever para cordas (BESSA,
2008 p.5).

1
Com base nessas informações, pode-se notar que o afastamento de Pixinguinha da
indústria fonográfica não foi espontâneo e ao que se sabe, veio acompanhado de dificuldades
econômicas, que segundo Bessa (2008) obrigaram Pixinguinha a vender a co-autoria de
diversas composições suas para Benedito Lacerda. Entre os anos de 1946 e 1951, juntos
gravaram pela Victor 34 fonogramas. A parceria entre ambos só se encerrou com a morte de
Benedito. De acordo com a autora, Benedito exigiu ser o flautista nessa parceria, o que levaria
Pixinguinha a assumir o saxofone de vez. Apesar do resultado positivo do trabalho com
Benedito Lacerda permitir que Pixinguinha pagasse a dívida de sua casa própria, jamais se
compararia com o sucesso e status do qual ele havia desfrutado nos idos de 1930.

A respeito do afastamento de Pixinguinha, alguns autores propõem atribuir culpa


ao alcoolismo, inclusive, esse foi o argumento de Radamés para explicar a preferência dada
pelas emissoras de rádio aos profissionais brancos de classe média, em detrimento dos negros
ditos “cachaças” (BESSA, 2008 p.5). É possível apontar a substituição de Pixinguinha por
Radamés como a “ponta do iceberg” sob a qual se veria também a substituição dos músicos
negros das orquestras do rádio, vindos das rodas de choro e samba, sendo substituídos por
músicos brancos de classe média. Um novo momento para a música do rádio e seus fazedores:
um nicho comercial, no qual a profissão de músico passou a ser reconhecida. Segundo, Bessa
(2008):

Os instrumentistas aproveitados nesse novo nicho profissional, entretanto, já não eram


os “pioneiros” da música popular, que no início do século se reuniam nas rodas de
samba e de choro da Pequena África e conseguiram se valer dos primeiros postos de
trabalho abertos com a indústria do entretenimento. Ao contrário, a maioria deles
provinha das camadas médias da população do Rio de Janeiro ou mesmo de outras
cidades brasileiras, instrumentistas que migravam para a Capital Federal num
momento em que a profissão passou a ser financeiramente valorizada e socialmente
reconhecida (BESSA, 2008 p.6).

Na orquestra da Rádio Nacional, a predominância era de músicos brancos, filhos de


imigrantes europeus. O destaque da época foi a Orquestra Carioca, a “mais brasileira de todas”,
conduzida por Radamés Gnatalli. Segundo Luciano Perrone, percussionista da orquestra,
grande parte dos instrumentistas que a compunham eram descendentes de italianos. A
Orquestra Carioca se apresentava semanalmente na programação da rádio de nome Nossa
música brasileira. As substituições de músicos negros por músicos brancos já não se restringia
às orquestras das rádios, e já havia atingindo também os conjuntos regionais, onde já se contava

1
com uma predominância de músicos brancos, e os poucos negros de pele clara que se
mantinham nesses grupos eram relegados aos instrumentos de percussão (BESSA, 2008).

O regional da Rádio Nacional, por exemplo, era liderado por Dante Santoro, músico
gaúcho de formação erudita, contemporâneo de Pixinguinha. É verdade que havia
negros entre os membros do conjunto. Mas eles não eram bem vistos pelo principal
maestro da rádio, Radamés Gnattali: “eram tudo uns cachaças”. Radamés simpatizava
mesmo era com o regional de Benedito Lacerda [...] Além do líder flautista, faziam parte
do conjunto os violonistas Dino (sete cordas) e Meira (seis cordas, único artista negro
do conjunto) e o cavaquinhista Canhoto, que juntos formariam o “trio de base” mais
conhecido entre os regionais brasileiros. Nesse grupo, o caráter informal das antigas
rodas de choro foi substituído por um profissionalismo bastante rigoroso, sob a
liderança de Benedito Lacerda, que aplicava multas por faltas e atrasos e, às vezes,
tratava os músicos com violência, principalmente os ritmistas (BESSA, 2008 p.7).

No ano de 1977, Radamés em entrevista concedida ao jornal Pasquim, afirma que


Os oito batutas, liderado por Pixinguinha nos anos 1920 era uma “esculhambação”, e encontra
eco em Jacob do Bandolim que dispara: “Tinha três violões, não tinha? Cada um fazendo um baixo
diferente. Tava todo mundo lá de cana e achando muito bom. Mas não era, pô” (Com a batuta
Radamés Gnatalli, 1977, p.13). Provavelmente, a “esculhambação” à qual ambos se referem diga
respeito à naturalidade e espontaneidade dos músicos oriundos das rodas de choro e samba ao
performarem seu repertório, exercendo sua liberdade criativa. Com a profissionalização das
rádios, mesmo o repertório dos regionais acabou por se guiar pelos critérios vindos da música
de concerto, buscando a afinação impecável, o ajuste rítmico metronômico e excluindo a
improvisação (BESSA, 2008).

Para Sueli Carneiro (2011), o pensamento social no Brasil está pautado no estudo
da problemática racial e, apesar disso, a negação da discriminação ainda perdura. De acordo
com a autora, uma das características do racismo:

É a maneira pela qual ele aprisiona o outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto
reserva para os racialmente hegemônicos o privilégio de serem representados em sua
diversidade. Assim, para os publicitários, por exemplo, basta enfiar um negro no meio
de uma multidão de brancos em um comercial para assegurar suposto respeito e
valorização da diversidade étnica e racial e livrar-se de possíveis acusações de exclusão
racial das minorias. Um negro ou japonês solitários em uma propaganda povoada de
brancos representam o conjunto de suas coletividades. Afinal, negro e japonês são
todos iguais, não é? Brancos não. São individualidades, são múltiplos, complexos e
assim devem ser representados (CARNEIRO, 2004 para o site Portal Geledés).

Sob essa ótica, pode-se compreender o processo que estereotipou os músicos negros
das orquestras das rádios, quando susbstituídos pelos músicos brancos de ascendência

1
européia no momento da profissionalização das orquestras, sendo relegados a uma
participação muito tímida, ocupando em maioria apenas a função de ritmistas. Os músicos
negros, pejorativamente chamados de “cachaças” e “esculhambados”, perderam seu trabalho
para os músicos brancos, entendidos como verdadeiros profissionais.

Ao tratarmos especificamente do abismo de gerações que se colocou entre a atuação


de Pixinguinha e Radamés, colocando o primeiro em posição de “museu vivo”, é importante
mencionar que um dos principais responsáveis por isso foi o radialista Almirante. Em 1946, ele
convidou Pixinguinha e outros músicos “da antiga” para participar de um programa dedicado à
música brasileira de “tempos imemoriais”. Surge, assim, o Pessoal da Velha Guarda (BESSA, 2008
p.8) – a menos de uma década do sucesso de Carinhoso. Sendo Pixinguinha e Radamés
contemporâneos, há de se compreender essa separação de geração entre os dois como um
plano, por assim dizer, de “aposentar” Pixinguinha antes mesmo de seus 50 anos de idade,
saudando Radamés com o novo.

Em 1947, o programa de rádio Caricaturas traz um episódio sobre Pixinguinha em


abril, ocasião de seu aniversário de 50 anos, e em outubro, um episódio sobre Radamés Gnatalli.
O percurso escolhido para falar de Pixinguinha foi o de enfatizar Carinhoso, como se toda a sua
trajetória musical se restringisse a esse momento. Meses depois, no episódio que trazia
Radamés como caricaturado, o enfoque foi outro:

O programa se inicia destacando a origem simples do pai de Radamés, Alexandre


Gnattali, imigrante italiano que, depois do duro expediente como operário na cidade de
Porto Alegre, ainda encontrava tempo para se dedicar ao estudo do piano. Com isso,
procurava destacar o caráter combativo e trabalhador do futuro maestro, herdado do
progenitor – qualidades bastante distintas daquelas apresentadas na caricatura de
Pixinguinha, cujo pai era descrito como um funcionário público que, nas horas vagas,
também era músico. “Resultado” – conclui o caricaturista: “um mau funcionário.” “E
olha” – acrescenta o caricaturado: “um mau músico” (BESSA, 2008 p.9).

Pixinguinha sendo “lembrado” como alguém que deixou (no passado) uma jóia, algo
de precioso para o Brasil se lembrar e celebrar: Carinhoso; enquanto a Radamés, é dado o
destaque em contínuo de alguém atuante e magistral, o músico competente, inovador, que
conquistou seu lugar na música brasileira com muito trabalho e esforço. Após narrar com
ênfase os feitos de Radamés, o radialista encerra o programa ao som de Alma brasileira, da
seguinte forma:

1
Os olhos se embaçam quando se percebem o vulto de um gênio. É o que deve ter
acontecido comigo. Quando a contribuição vale pela admiração que evoca o artista
perfeito. Porque é simples e faz questão que o chamem de músico. Apenas músico.
Músico que tem um nome: Radamés Gnattali (Programa Caricaturas nº 14 apud BESSA,
2008 p.12).

4 – Considerações finais

Apresentada a trajetória de Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, é perceptível a


problemática racial em torno de ambos. De um lado, temos o apagamento da negritude de
Chiquinha Gonzaga, sempre apresentada e representada como uma mulher branca. Do outro, o
recorte de Pixinguinha e sua substituição por Radamés que não somente delineia o
embranquecimento no choro/samba produzidos a partir de então, como aponta o racismo
evidente que sofreram os músicos negros vindos da Pequena África, inclusive em como eram
vistos (como sujeitos não profissionais e sim alcóolatras). Situações que culminaram na perda
de seu protagonismo, numa música que era sua.

O impacto desse embranquecimento pode ser sentido até os dias de hoje quando se
ouve falar das rodas de choro. Os corpos que realizam o choro já não são mais negros. Uma
presença maciça de músicos brancos que se ajuntam nas rodas, munidos de partituras das
músicas compostas muitas vezes por músicos negros, incluindo no choro instrumentos de
corda eruditos, performando o choro aos moldes da música de concerto, como a mencionada
herança imposta a partir do regional de Benedito Lacerda. E, como se já não bastasse, essas
rodas acontecem em bares frequentados por um público branco zona sul. Para Maldonado
Torres (2007):
Se olharmos para a sociedade brasileira, encontraremos o protagonismo negro
denunciando esse mesmo colonialismo e colonialidade. Ele está no clamor de negras e
negros cujas vozes ecoaram contra a escravidão e no corpo dos que lutaram e ainda
lutam pela nossa humanidade [...] contra a hegemonia do padrão estético branco-
europeu e o conhecimento eurocentrado (MALDONADO-TORRES, 2007 p.225).

Diante disso, reivindicar a negritude de Chiquinha Gonzaga, bem como trazer à luz
o racismo evidente nas décadas de 1930 e 1940, atingindo especialmente Pixinguinha e os

1
demais músicos negros das orquestras de rádio da época, se torna imperativo. Principalmente
porque isso coloca em perspectiva o protagonismo negro no choro, de forma a atribuir aos
artistas negros sua autoria, produção e manutenção, bem como situar historicamente os
eventos de forma a criar identificação e senso de comunidade na negritude que construiu e
moldou o choro.

Referências de Texto

1. ALVES, Carolina Gonçalves. “Ô abre alas que eu quero passar”: rompendo o silêncio sobre
a negritude de Chiquinha Gonzaga. PROA: Revista de Antropologia e Arte, 10. P. 18-36.
UNICAMP, 2020.

2.BERNARDINO-COSTA, Joaze, MALDONADO-TORRES, Nelson e GROFOGUEL, Ramón.


Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Editora Autêntica. Belo Horizonte. 2020.

3. BESSA, Virgínia de Almeida. Pixinguinha, Radamés Gnatalli e o branqueamento da


música popular. Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência, Exclusão.
ANPUH-SP. São Paulo. 2008.

4. CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro. São Paulo.
2011.

5. MUNANGA, Kabengele. Negritude, usos e sentidos. Editora Autêntica. Belo Horizonte. 2019.

Referência da Web

CARNEIRO, Sueli. Negros de Pele Clara. Portal Geledés. 2004. Acessado em 27 de novembro
de 2022. https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/

Você também pode gostar