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Os atuais debates nos “meios psi” têm associado o termo Clínica – que por tanto
tempo foi suficiente para referir saberes e fazeres bem delimitados – a outros que parecem
querer atribuir ao primeiro uma conotação menos restrita. Transdisciplinar, institucional,
porosa, arejada, ampliada... são alguns dos adjetivos que, não raro, têm alimentado
discussões acerca da Clínica e apontado o irrefutável argumento de que algo demanda
ampliações.
A fim de evitar a tentação das rápidas respostas, o que se propõe aos pensadores
da subjetividade é que exercitem sua vocação a interrogar antes de “solucionar”,
procedendo a uma rápida análise de demanda sobre o que hoje se tem produzido e referido
por instituição psicologia.
O convite para que procedamos juntos e brevemente a esta análise vai no sentido de
provocar um debate acerca dos limites com que talvez uma certa Clínica, concebida nos
contornos da modernidade, possa estar se deparando. Proponho trabalharmos um pouco
sobre estes limites com o intuito de fazê-los falar, talvez, sobre aquilo que pode estar
“pedindo passagem”.
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O presente artigo produziu-se entre os debates que me foram oportunizados pelos convites a participar da Oficina
organizada pelo CRP 07 no III FSM intitulada “Clínica Ampliada” (fevereiro de 2003 em Porto Alegre), da mesa sobre o
mesmo tema no Congresso Norte-Nordeste de Psicologia (maio de 2003) e do Seminário “Corpo, Arte e Clínica”
promovido pelo PPGPSI-UFRGS (abril de 2003) , que originou a presente coletânea.
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Psicóloga, analista institucional pela INTERSECÇÃO: Instituições e Clínica, Doutora em Psicologia Clínica (PUCSP) e
professora da UNISINOS.
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O subtítulo, assim como alguns dos recortes clínicos que o seguem, faz referência à mesa redonda intitulada “O que
pode a Clínica?” ocorrida dia 09/04/2003 com participação do Dr. Eduardo Passos e Dra. Tânia Galli Fonseca como parte
do Seminário supra-citado.
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Como será que estamos nos virando com nossas estratégias e ferramentas de
trabalho para o enfrentamento com o sofrimento psíquico tal como o momento atual o tem
apresentado? Quais os limites que o contemporâneo impõe a um certo instrumental
analítico? Se, em tempos modernos este instrumental teórico-conceitual deu conta de fazer
profundas intercessões nas formas dominantes de se lidar com a subjetividade, hoje ele
parece mostrar seus sinais de esgotamento.
A proposta de que pensemos “O que pode a Clínica” a partir do que ela, talvez “não
esteja podendo tanto” está longe de querer resumir-se à denúncia mera e simples dos
entraves pragmáticos que os atuais grupos privilegiados encontram para ampliar os limites de
seu campo de saber. Ao contrário disto - que seria apenas reforçar as fronteiras que o
dispositivo foucaultiano do saber-poder faz parecerem tão nítidas - partir dos pontos de
desgaste onde elas parecem se esgarçar equivale a tomar estes entraves como
dispositivos-analisadores4 da Instituição-Clínica que se quer analisar. Pensar, com eles,
através deles, onde a “totalidade Clínica’ de outrora deixe aparecer uma outra, cheia de
poros e brechas que a façam exercer sua potência de desindividualização, a façam avançar
na interseção dos planos político e clínico.
4
“Chamo analisador a todo acontecimento, todo dispositivo suscetível de decompor (análise de decomposição) uma
totalidade, que até este momento se percebia de forma global”. (Lapassade Apud Coimbra, 1995, p. 63)
5
Conforme Alfredo Naffah Neto, 1994.
6
Veiga, Aida. Ética: Incesto de Proveta. Revista Veja, 27/06/2001, p. 86.
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Qual dos tradicionais especialismos psicológicos teria sido convocado para tal
atendimento? Que “perfil” estaria suposto para o profissional que a assumisse? E que
designação lhe seria atribuída?
Também no âmbito da formação, teríamos alguns recortes curiosos para nos ajudar
a pensar os rumos que a Clínica pode estar tomando. Como supervisora acadêmica de
estágios de um Hospital Geral, tive oportunidade de debater longamente este tema com
alunos que findavam estágios de psicologia clínica e permaneciam por mais um ano no
mesmo local para fazerem estágio de psicologia organizacional. Com isto mudava a
supervisão, a teorização e as tarefas de que se ocupavam no estágio anterior. Ocorria que
no primeiro ano como estagiários de “clínica mesmo” como eles diziam, o atendimento
baseava-se em prestar apoio a pacientes e familiares na beira do leito. Encerrada esta
etapa, só mantinham o crachá de estagiários de psicologia e seus desejos de continuarem
o trabalho no hospital, mas aí eram lotados nos Recursos Humanos e só voltavam aos
quartos para aplicar questionários de qualidade total no atendimento. Por sorte - ou
descuido dos RH - o crachá não atribuía o “tipo” de psicologia que lhes caberia naquele
momento. Graças a isto, freqüentemente surgiam situações embaraçosas em que os
pacientes e familiares em crise, pelas mesmas circunstâncias que justificariam seus
atendimentos no estágio anterior, ao se depararem com “alguém da psicologia” solicitavam
apoio, queriam ser escutados, enfim, apresentavam-se como usuários de um atendimento
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que estava longe de poder limitar-se à aplicação dos tais questionários. Além de muita
ansiedade, tal circunstância valeu aos estagiários inflamados debates sobre sua “tarefa
analítica”, sua formação, o sentido que queriam a ela atribuir. Com este processo, o grupo
foi-se autorizando a escutar a demanda endereçada à psicologia do hospital, o que
funcionou como um sinalizador para que negociassem práticas menos fragmentárias com o
local. O caso tornou-se emblemático dos limites a que uma formação voltada aos
especialismos poderia nos levar e forneceu subsídios importantes para a revisão curricular
do Curso em questão que hoje comporta apenas um estágio profissional em psicologia.7
Muitas são as questões que cenas cotidianas como estas poderiam convocar a
pensar: Que querem de nós, afinal? Que indicam do que se demanda da nossa atividade
hoje? Que psicologia estamos fazendo e que ampliações dela/de nós aí se demanda?
Em suma, como apontado por Baremblitt (1997, p.19), “El Poliverso Psy
contemporâneo se divesifica y se multiplica interiormente en uma dispersión y en un
combinacionismo y/o sincretismo incesante en el que co-existen todas las tendencias de su
historia, mas o menso ‘aggiornadas’, com otras neo-arcaicas y muchas enteramente
novedosas.”
Neste contexto polissêmico, mutante, heterólogo a que esse autor refere por
“Poliverso Psy”, será uma questão de repensarmos nosso âmbito de atuação e
diversificarmos as possibilidades de inserção no mercado de trabalho? Ou trata-se, antes,
de afinarmos e atualizarmos nosso instrumentos e técnicas a fim de fazê-los acompanhar
os processos atuais?! Ou, talvez, as mudanças sociais obriguem-nos a repensar mais
profundamente os próprios pilares teóricos de onde se originaram as diferentes correntes
da psicologia.
Sem que se coloque na “ordem do dia” questões como estas corremos o risco de
simplesmente inventar um novo nome para legitimar o que temos de mais instituído em
nome da necessidade de ampliar as demandas sobre a Clínica. Responder às demandas
de mercado, para dizer de outro jeito. Neste caso, falar-se de uma Clínica Ampliada
corresponderia a vestir uma nova roupagem em velhas formas de intervenção em nome de
alguma espécie de “modernização”.
Pensarmos uma ampliação da Clínica que não se limite à criação de um novo clichê
– referendo de velhos especialismos - parece mesmo requerer esforços teóricos, éticos e
políticos que extrapolam em muito meras respostas às ampliações das demandas para o
trabalho Clínico que o contemporâneo também impõe.
Quero, com isto, enfatizar que não apenas respeito como considero da maior
relevância todas as iniciativas – em grande parte das vezes, inclusive, de grande ousadia –
para ampliar o acesso às metodologias de intervenção na subjetividade de todo um
contingente de pessoas, condenadas à solidão das saídas individuais ao próprio sofrimento
7
Informações mais detalhadas acerca do modelo de estágio gerado pelo processo de revisão curricular do curso de
Psicologia da UNISINOS podem ser obtidas no texto “Outras leituras e práticas clínicas na formação do psicólogo” de
autoria de Fábio Moraes, São Leopoldo, 2002, não publicado.
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Trata-se aí, muito mais de questionarmos as novas formas com que o sofrimento
psíquico se apresenta, os sintomas sociais contemporâneos se impõem e os modos pelos
quais os fazeres “psi” estão estruturados para atendê-los. Isto requer que a análise aqui
proposta recaia sobre os diferentes eixos que sustentam a Clínica, incluindo desde seu
âmbito de atuação; as técnicas e instrumentos através dos quais ela se realiza, até as
concepções de sujeito e da própria Clínica daí decorrentes.
Baptista (2000) refere-se a esses riscos, por exemplo, como a disseminação de uma
espécie de “psicologia vaidosa” que desenvolveria práticas meio pastorais, com a intenção
de estender o que consideram benefícios dos ensinamentos freudianos às camadas sociais
desfavorecidas. “Subir o morro” e reunir as pessoas em grupo para interpretar Édipo de um
a um não é exatamente alguma ampliação que nos interesse implementar à Clínica.
Tampouco parece ser isto que os segmentos sociais alijados de qualquer tipo de acesso a
práticas profissionais de saúde mental teriam a nos solicitar. Mas aí já é outra questão.
Castel (1980) também fala dos riscos de uma psicologização do social e aponta uma
ideologização da psicanálise operada através de uma infiltração difusa na cultura de
massas que a aproxima aos mais diversos campos e modos de aplicações numa espécie
de “ampliação em círculos concêntricos a partir do divã”.
Lancemos, então, mão do espírito genealógico - que não teme olhar de frente para
as próprias produções no que tenham de mais desejável e execrável - para aproximarmos
nossa concepção da Clínica a algo que faça jus ao fatídico adjetivo.
“Ao por fim à superstição que até agora proliferava com uma frondosidade
quase tropical em torno da representação da alma, o novo psicólogo se desterrou
a si mesmo, desde logo, por assim dizê-lo, a um novo deserto e a uma nova
desconfiança – pode ser que os psicólogos antigos vivessem de modo mais
cômodo e mais divertido -; por fim, ele se sabe, justamente com isso, também
condenado a inventar - e, quem sabe, talvez a encontrar. -”(Nietzsche apud
Giacoia Jr., 2001, p.58)
A tarefa do novo psicólogo, assim vista, é ousar, arriscar-se nos ensaios de criar
estratégias que acompanhem as modalidades variadas de constituição da subjetividade.
Irrevogavelmente descolada da concepção tradicional de uma psicologia racional centrada
no átomo consciência, a tarefa do novo psicólogo implica inventar procedimentos clínico-
críticos conseqüentes à descoberta de uma outra hipótese sobre a unidade do sujeito
sustentada pelo corpo como grande razão.
Tarefa esta que requer algo de uma psicologia social que outrora revirou o
conceito de subjetividade; algo de trágico para produzir enfrentamentos com o inusitado da
vida; algo de humana, demasiado humana, para encaixar-se em especialismos
cientificistas; algo de psicanalítico, para recuperar o espírito cartográfico de um Freud tanto
quanto de esquizoanalítica em sua fórmula essencial de incrementar o que funciona.
Mas que operação pode nos levar a encontrar a potência utópica da invenção?
Potencializar este seu caráter desviante passa por arriscar-se mais nos limites que
fazem borrar as fronteiras disciplinares e anunciam os pontos de esgarçamento do que já
não se conforma aos contornos restritos de uma certa instituição. Mas o que pode se
constituir em ferramenta desta clínica que faz o sujeito derivar de si mesmo?
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Sobre este conceito psicanalítico de inspiração nietzscheana, ver Naffah Neto, “Dez Mandamentos para a Psicanálise
Trágica” In: Revista Percurso – Revista de Psicanálise, ano XV, n. 28, São Paulo, 1o semestre de 2002, pp.15-22.
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Nas palavras de Ruas de Melo, a ‘Técnica’ pode apenas servir de justificativa aos
olhos da Razão para que o processo terapêutico encontre seus “momentos iluminados”.
Neste ponto de viragem, como denominado por Nietzsche, entre uma posição
depreciadora da vida e uma vontade de poder expandi-la, é possível identificar-se um
potente dispositivo para a Clínica que quiser, também, ampliar a vida que se quer maior.
O que significa dizer que a tarefa analítica, como a vimos entendendo, exige mais do
que a tão promulgada posição em meios psicanalíticos de escuta ou acolhimento. Requer,
efetivamente, uma capacidade de acolhimento dos múltiplos devires não apenas
percebidos no paciente/cliente mas também em si mesmo. Todavia, para que tais devires
funcionem como dispositivo de novas formas de subjetivação, criadoras de novos valores e
inventoras de outras instituições, o analista será ainda exigido a questionar os próprios
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Clarice Lispector,
Tomando por alerta, as palavras de Lispector, tratemos logo de dizer que a Clínica
contemporânea parece demandar SIM algumas ampliações.
Ampliação, por fim - e só assim mesmo, no fim, é que ela pode fazer sentido –
também das ferramentas de intervenção que possam instrumentalizar uma Clínica a
realizar sua potência desviante retomando a ousadia, nem sempre lembrada por nossos
contemporâneos seguidores daquele que talvez siga sendo seu mais subversivo inspirador.
Talvez a maneira com que Freud, em carta a Fliess, referiu-se à tarefa analítica (em
1910!) aponte de forma mais contundente, do que eu pude aqui fazê-lo, este caráter
transgressor e amplificador da vida que a Clínica deve assumir:
Bibliografia Citada: