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Bolsonaro contou a

história que quis, não


aquela dos
documentos
Foram transportados para as Américas 12 milhões de
africanos e africanas durante todo o período do
tráfico negreiro


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31.jul.2018 às 17h00

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Lilia Schwarcz

Vira e mexe alguém volta com a teoria de que a escravidão não


foi uma ideia dos ocidentais, mas sim dos próprios africanos.
Nada mais covarde e perverso do que transformar a vítima em
algoz. Vítimas, aliás, que sempre reagiram, e de inúmeras
formas, ao cativeiro.
Na segunda-feira, dia 30, em entrevista ao programa Roda Viva,
foi a vez do presidenciável Jair Bolsonaro se sair com a seguinte
frase: “se for ver a história realmente, os portugueses nem
pisavam na África. Foram os próprios negros que entregavam os
escravos (...) Faziam o tráfico, mas não caçavam os negros.
Eram entregues pelos próprios negros”.

Craque na política do fake news, Bolsonaro contou a história


que quis, não aquela encontrada nos documentos. Esqueceu de
explicar, por exemplo, que a escravidão já estava presente na
Europa. Desde a Antiguidade, o continente conheceu diversas
formas de escravidão, mas menos intensas ou disseminadas do
que aquela que surgiria a partir do século 16. A escravidão
mercantil.

Por sinal, poucos povos deixaram de conviver com alguma


forma de escravidão; a África também. No entanto, por lá, a
instituição se desenvolveu paralelamente a sistemas de
linhagem e de parentesco. Os escravizados não eram
entendidos, pois, como “coisas” ou “propriedades”, nem
tampouco considerados centrais para o funcionamento regular
dessas sociedades.

Já o contato luso com a África Negra teve longa história,


antecedendo em até meio século a descoberta do Brasil. Em
1455, Zurara, em sua “Crônica de Guiné”, descrevia atividades
portuguesas na foz do rio Senegal. 

Nessa época, o interesse luso estava voltado mais para o ouro,


sendo que escravos, marfim e pimenta eram motivações
secundárias. Foi com a introdução da cultura do açúcar que a
história girou: os escravizados tornaram-se fundamentais na
produção agrícola, o negócio tornou-se muito lucrativo e o
interesse se voltou da pimenta para o tráfico de viventes com os
portugueses entrando continente africano adentro.

Enquanto isso, já em meados do 16, Lisboa era a cidade


europeia que mais possuía escravos africanos: contava com
cerca de 100 mil habitantes, dos quais 10 mil eram cativos. 

Em Cabo Verde, São Tomé e Madeira desenvolveram-se ao


longo do 16 e do 17 verdadeiras sociedades luso-africanas,
condicionadas pelo comércio transatlântico. Em 1582, cerca de
16 mil pessoas viviam nessas ilhas, sendo 87% formada por
escravizados.

Por volta de 1520, portugueses mantinham número razoável de


feitorias na África, controlando caravanas de cativos que
vinham do baixo rio Zaire e do Benin. Dirigiam-se para São
Tomé, e, a partir de 1570, voltaram-se para o rico mercado do
Brasil. 

A chegada dos portugueses à costa atlântica subsaariana no


começo do 16 alteraria de forma radical as modalidades de
comércio, tanto no que se refere à escala, como ao recurso
crescente à violência. A nova conquista modificaria também
modalidades internas de guerra e de redes de relacionamento
no interior de estados africanos. Tudo com a interferência direta
dos lusos, que “pisaram” firme no continente. 

Com a cultura do açúcar, dentre os principais produtos do


Império português, a situação se modificaria ainda mais,
sobretudo a partir das relações estáveis com os congoleses.
Naquele local, os portugueses destacaram-se por sua forte e
estável presença, atuando no local como clérigos, traficantes e
soldados. 

Também a quantidade de almas humanas traficadas pelos


portugueses cresceu e muito: enquanto na primeira metade do
século 16 o volume de africanos entrados no Brasil não passava
de algumas centenas anuais, registram-se 3.000 importações
por ano já na década de 1580. 

Teve papel fundamental a conquista de uma nova feitoria em


Luanda, a qual, a partir de 1576, se transformaria em posto
ativo nesse tipo de comércio. Por dois séculos os portugueses
manteriam seus “pés” bem firmes em Luanda, na região do rio
Cuanza e Benguela.

O certo é que, a essa altura, os lusitanos estavam bem


familiarizados com as populações africanas que escravizavam.
Além do mais, com o incremento do comércio do ouro e do
marfim no Oeste da África, e o crescimento da atuação
econômica portuguesa na Ásia, as relações foram ficando ainda
mais corriqueiras. 

Enfim, a eficácia crescente dos traficantes portugueses do


Atlântico na oferta de mão de obra, na regularidade no
suprimento de cativos vindos daquele continente e o declínio
dos preços fizeram com que, para a Europa do século 16, os
africanos se transformassem em sinônimo de mão de obra
escrava e os portugueses em grandes especialistas na arte de
traficar dentro e fora da África. 

Foram transportados para as Américas 12 milhões de africanos


e africanas durante todo o período do tráfico negreiro, sendo
que, desse total, 4,9 milhões tiveram como destino final o
Brasil.

O tráfico era um negócio complexo e dominado pelos


portugueses, que acabaram promovendo inúmeras guerras e
alterando a estrutura interna dos estados africanos com graves
consequências atuais. Os lusos “pisaram” muito no território
africano, e não há como tirar a responsabilidade de quem sabe
que a tem.

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