Caminhos e fronteiras, 4 ediçao – São Paulo, Companhia das letras,
2017
CAPITULO 08
DO PEAO AO TROPEIRO
P. 153: “ So pelo século XVIII é que as primeiras cavalgaduras começam a afluir
esporadicamente para o sertão remoto e, ainda assim, onde houvesse terras já desbravas e povoadas. Todas as tentativas no sentido de incluir esses animais no aparato regular das expedições de descobrimento viram-se condenados ao malogro. Dos 38 cavalos que levou Bartolomeu Bueno a Goiás, em 1722, cinco apenas puderam resistir a todas as asperezas da jornada.” P. 154: “ Durante todo o século XVII , os cavalos, na capitania de São Paulo, serviam aparentemente para marchas relativamente breves e em descampados do planalto; as cargas eram levadas de preferencia nos ombros dos escravos e administrados. E não so as cargas como os próprios passageiros.” P. 154: “ No trajeto de São Paulo a Santos ela fora durante longo tempo o único meio de locomoção seguro e comodo de que dispunham os que não quisessem viajar a pé. Em 1629 ainda era impossível fazer-se a cavalo o percurso, conforme depoimento de d. Luis de Cespedes. Oitenta ou noventa anos mais tarde já o caminho era acessível às cavalgaduras, ‘ exceto em dois ou tres passos, donde se apeiao os que não querem ver em perigo’.” P. 156: “ Em realidade as estradas do sertão e a do mar – esta construída de proposito para pedestre, e parece que em forma de escada nos lugares mais alcantilados, segundo fazem crer velhos testemunhos – adaptavam-se mal às cavalgaduras durante todo o século XVII , o século das bandeiras. E além disso a relativa escassez de cavalares nessa época não autoriza a crer que pudessem ser utilizados em escala considerável pelos moradores da terra. A posse de cavalgaduras correspondia, aparentemente, menos a uma conveniência pratica de que a um luxo.” P. 156: “ É verdade que documentos dos tempos iniciais da colonização não autorizam a acreditar muito na escassez de cavalos por essa época. No ano de 1592 eles chegavam mesmo a ser tao numerosos nas redondezas de São Paulo, que faziam dano às roças e matavam a coisas as criações.” P. 157: “ Contudo, nos decênios seguintes, a situação tenderia a modificar-se, ao menos no que diz respeito às cavalgaduras. O fato é que, ate meados do século XVIII , estas não teriam em São Paulo função essencial, nem nas expedições ao sertão longiquo, nem nos núcleos rurais estáveis.” P. 157: “ O maior dos criadore das época, Manuel Gois Raposo, não teve mais de cinquenta cavalos. [ Alfredo Ellis Junior]” P. 158: “ Em realidade, so pelo terceiro decênio do século seguinte, com a abertura do Viamao e à colonia do Sacramento, é que o cavalo começa a ter lugar no ritmo ordinário da vida paulista.” P. 159: “ Agora será a vez dos largos chapéus de palha e dos ponchos, sobretudo do poncho azul forrado de baeta vermelha, que ia tornar-se uma espécie de traje nacional dos paulistas. Na mesma época parece desenvolver-se, em São Paulo, o gosto pelo manejo de cavalaria e encontradas.” P. 159: “ Com os cavalos começam a introduzir-se, em larga escala, os muares, que so excepcionalmente aparecem referidos nos antigos inventários paulistas. Duas mulas e um macho, pertencentes a Francisco Pedroso Xavier, e o burro castiço de Antonia de Oliveira, são quase tudo quanto encontramos. A partir de 1733, ou pouco depois, é que começa a avolumar-se o numero de bestas muares vindas do Sul, geralmente de passagem para as minas.” P. 160; “ Já por essa época não seriam muito numerosos, em São Paulo, os índios de carga, substituídos, cada vez mais, pelos cavalares e muares. O que representaria, sem duvida, progresso notável na rapidez dos negócios, além de poupar trabalhadores, em um momento em que a mao de obra indígena era menos abundante, e em que os negros, excessivamente dispendiosos, ficavam geralmente reservados às fainas agrícolas. (...) Alem disso, à escassez de cavalares corresponderia, durante longo tempo, a existência de índios de serviços especialmente dedicados ao transporte de fardos de passageiros, sobretudo através da Paranapiacaba. Sem falar nos bastardo e mamalucos, que faziam o mesmo trabalho mediante remuneração. Em que situação iria ficar essa gente, quase imprestável, muitas vezes, para outro mister, uma vez suprimido seu principal modo de vida? O recurso exclusivo aos animais de transporte teria, sem duvida, uma consequencia desastrosa: a de aumentar consideravelmente o numero de desocupados e vadios, que sempre foram uma grave preocupação das autoridades coloniais. Em São Paulo não chegou a apresentar-se o problema em sua forma aguda, isso porque a substituição dos carregadores pelos cavalares e muares so se processo muito lentamente. Quase ate meados do século passado ainda transitavam pelo caminho do mar as cadeirinhas e liteiras, preferidas pelas senhoras ricas.” P. 161-2: “ Ao lado desses obstáculos, cabe acentuar os que criava a própria administração colonial. Embora favorecendo e ate incentivando a criação de equinos, necessários à milicia, a Coroa sempre cuidou de estorvar por todos os meios a multiplicação dos muares, mais apropriados do que os cavalos aos serviços de transporte e carga. De 1761 é a carta regia ordenando expressamente que não se desse ‘despacho algum a machos ou mulas, e que mais antes pelo contrario, todos e todas as que se introduzissem depois de publicada essa total proibição, delles sejao irremediavelmente perdidos, e mortos, pagando as pessoas em cujo poder se acharem, a metade de seu valor para os [que] denunciarem da clandestina introdução delles e que nas mesmas penas incorrerão as pessoas que uzarem de semelhantes cavalgaduras passado o ano, que para o consumo das que tiverem, se lhes concede’. O motivo direta dessa ordem parece ter sido a preferencia que nas Minas Gerais se costumava das aos híbridos e o receio de que tal preferencia resultasse na diminuição progressiva do numero de cavalos. Mas a medida não podia sustentar-se por muito tempo. Tao grande, já então, era o numero de muares, que a medicina proposta so poderia ter consequencias funestas. Bastariam mais tres anos para que se revogasse a ordem.” P. 162: “Escrevendo em novembro de 1770 ao marques de Lavradio, o capitão-general de São Paulo fazia ver o dano causado tanto aos vassalos como aos próprios interesses da Coroa. Não havia quem, dispondo dos recursos e habilitações indispensáveis, hesitasse em ir buscar animais ao Viamao gastando de ano e meio a dois anos na viagem de ida e volta ate Sorocaba, onde se realizavam os principais negócios. / Com as feiras de animais de Sorocaba, assinala-se, distintamente, uma significativa etapa na evolução da economia e também da sociedade paulista. Os grossos cabedais que nelas se apuram, tendem a suscitar uma nova mentalidade da população. O tropeiro é o sucessor direto do sertanista e o precursor, em muitos pontos, do grande fazendeiro.” P. 163: “ Aqui, como nas monções do Cuiabá, uma ambição menos impaciente do que a do bandeirante ensina a medir, a calcular oportunidades, a contar com danos e perdas.” P. 163: “ Não haverá aqui, entre parênteses, uma das explicações possíveis para o fato de justamente São Paulo se ter adaptado, antes de outras regiões brasileiras, a certos padrões do moderno capitalismo?” P. 163: “ Há na figura do tropeiro paulista, como na do curitibano, do rio-grandense, do correntino, uma dignidade sobranceira e senhoril, aquela mesma dignidade que os antigos costumavam atribuir ao ócio mais do que ao negocio. Muitos dos seus traços revelam nele a herança, ainda bem viva, de tempos passados, inconciliável com a moral capitalista. A dispensa muito frequente de outra garantia nas transações, além da palavra empenhada, que se atesta no geste simbólico de trocar um fio de barba em sinal de assentimento, casa-se antes com a noção feudal de lealdade do que com o conceito moderno de honestidade comercial.” P. 163-4: “ O amor ao luxo e aos prazeres domina, em pouco tempo, esses indivuos rústicos, que ajaezam suas cavalgaduras com ricos arreios de metal precioso ou que timbram em gastar fortunas nos cabarés, nos jogos, nos teatros. Sorocaba vive mai intensamente nos tempos de feira do que muita capital de província. Não admira se ainda em 1893, quando o desenvolvimento ferroviário extinguira quase de todo esse comercio, um sacerdote zeloso, o conego Antonio Augusto Lessa, chamasse a atenção de seu prelado para a necessidade um combate sem tréguas aos costumes soltos e ate às doutrinas heterodoxas que observava na cidade – ‘fruto pernicioso das antigas e celebres feiras de animais, e pela aglomeração de gente de toda espécie, sem lei, sem religião e sem fe, que denominando-se negociantes, vinham de toda parte do Brasil. “ P. 164: “ A ostentação de capacidade financeira vale aqui quase por uma demonstração de força física. Ao menos nisto, e também na aptidão para enfrentar uma vida cheia de riscos e rigores, o tropeiro ainda pertence a familia do bandeirante.”