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HOLANDA, Sérgio Buarque.

Caminhos e fronteiras, 4 ediçao – São Paulo, Companhia das letras,


2017

CAPITULO 08

DO PEAO AO TROPEIRO

 P. 153: “ So pelo século XVIII é que as primeiras cavalgaduras começam a afluir


esporadicamente para o sertão remoto e, ainda assim, onde houvesse terras já
desbravas e povoadas. Todas as tentativas no sentido de incluir esses animais no
aparato regular das expedições de descobrimento viram-se condenados ao malogro.
Dos 38 cavalos que levou Bartolomeu Bueno a Goiás, em 1722, cinco apenas puderam
resistir a todas as asperezas da jornada.”
 P. 154: “ Durante todo o século XVII , os cavalos, na capitania de São Paulo, serviam
aparentemente para marchas relativamente breves e em descampados do planalto; as
cargas eram levadas de preferencia nos ombros dos escravos e administrados. E não
so as cargas como os próprios passageiros.”
 P. 154: “ No trajeto de São Paulo a Santos ela fora durante longo tempo o único meio
de locomoção seguro e comodo de que dispunham os que não quisessem viajar a pé.
Em 1629 ainda era impossível fazer-se a cavalo o percurso, conforme depoimento de
d. Luis de Cespedes. Oitenta ou noventa anos mais tarde já o caminho era acessível às
cavalgaduras, ‘ exceto em dois ou tres passos, donde se apeiao os que não querem ver
em perigo’.”
 P. 156: “ Em realidade as estradas do sertão e a do mar – esta construída de proposito
para pedestre, e parece que em forma de escada nos lugares mais alcantilados,
segundo fazem crer velhos testemunhos – adaptavam-se mal às cavalgaduras durante
todo o século XVII , o século das bandeiras. E além disso a relativa escassez de
cavalares nessa época não autoriza a crer que pudessem ser utilizados em escala
considerável pelos moradores da terra. A posse de cavalgaduras correspondia,
aparentemente, menos a uma conveniência pratica de que a um luxo.”
 P. 156: “ É verdade que documentos dos tempos iniciais da colonização não autorizam
a acreditar muito na escassez de cavalos por essa época. No ano de 1592 eles
chegavam mesmo a ser tao numerosos nas redondezas de São Paulo, que faziam dano
às roças e matavam a coisas as criações.”
 P. 157: “ Contudo, nos decênios seguintes, a situação tenderia a modificar-se, ao
menos no que diz respeito às cavalgaduras. O fato é que, ate meados do século XVIII ,
estas não teriam em São Paulo função essencial, nem nas expedições ao sertão
longiquo, nem nos núcleos rurais estáveis.”
 P. 157: “ O maior dos criadore das época, Manuel Gois Raposo, não teve mais de
cinquenta cavalos. [ Alfredo Ellis Junior]”
 P. 158: “ Em realidade, so pelo terceiro decênio do século seguinte, com a abertura do
Viamao e à colonia do Sacramento, é que o cavalo começa a ter lugar no ritmo
ordinário da vida paulista.”
 P. 159: “ Agora será a vez dos largos chapéus de palha e dos ponchos, sobretudo do
poncho azul forrado de baeta vermelha, que ia tornar-se uma espécie de traje nacional
dos paulistas. Na mesma época parece desenvolver-se, em São Paulo, o gosto pelo
manejo de cavalaria e encontradas.”
 P. 159: “ Com os cavalos começam a introduzir-se, em larga escala, os muares, que so
excepcionalmente aparecem referidos nos antigos inventários paulistas. Duas mulas e
um macho, pertencentes a Francisco Pedroso Xavier, e o burro castiço de Antonia de
Oliveira, são quase tudo quanto encontramos. A partir de 1733, ou pouco depois, é
que começa a avolumar-se o numero de bestas muares vindas do Sul, geralmente de
passagem para as minas.”
 P. 160; “ Já por essa época não seriam muito numerosos, em São Paulo, os índios de
carga, substituídos, cada vez mais, pelos cavalares e muares. O que representaria, sem
duvida, progresso notável na rapidez dos negócios, além de poupar trabalhadores, em
um momento em que a mao de obra indígena era menos abundante, e em que os
negros, excessivamente dispendiosos, ficavam geralmente reservados às fainas
agrícolas. (...) Alem disso, à escassez de cavalares corresponderia, durante longo
tempo, a existência de índios de serviços especialmente dedicados ao transporte de
fardos de passageiros, sobretudo através da Paranapiacaba. Sem falar nos bastardo e
mamalucos, que faziam o mesmo trabalho mediante remuneração. Em que situação
iria ficar essa gente, quase imprestável, muitas vezes, para outro mister, uma vez
suprimido seu principal modo de vida? O recurso exclusivo aos animais de transporte
teria, sem duvida, uma consequencia desastrosa: a de aumentar consideravelmente o
numero de desocupados e vadios, que sempre foram uma grave preocupação das
autoridades coloniais. Em São Paulo não chegou a apresentar-se o problema em sua
forma aguda, isso porque a substituição dos carregadores pelos cavalares e muares so
se processo muito lentamente. Quase ate meados do século passado ainda
transitavam pelo caminho do mar as cadeirinhas e liteiras, preferidas pelas senhoras
ricas.”
 P. 161-2: “ Ao lado desses obstáculos, cabe acentuar os que criava a própria
administração colonial. Embora favorecendo e ate incentivando a criação de equinos,
necessários à milicia, a Coroa sempre cuidou de estorvar por todos os meios a
multiplicação dos muares, mais apropriados do que os cavalos aos serviços de
transporte e carga. De 1761 é a carta regia ordenando expressamente que não se
desse ‘despacho algum a machos ou mulas, e que mais antes pelo contrario, todos e
todas as que se introduzissem depois de publicada essa total proibição, delles sejao
irremediavelmente perdidos, e mortos, pagando as pessoas em cujo poder se
acharem, a metade de seu valor para os [que] denunciarem da clandestina introdução
delles e que nas mesmas penas incorrerão as pessoas que uzarem de semelhantes
cavalgaduras passado o ano, que para o consumo das que tiverem, se lhes concede’. O
motivo direta dessa ordem parece ter sido a preferencia que nas Minas Gerais se
costumava das aos híbridos e o receio de que tal preferencia resultasse na diminuição
progressiva do numero de cavalos. Mas a medida não podia sustentar-se por muito
tempo. Tao grande, já então, era o numero de muares, que a medicina proposta so
poderia ter consequencias funestas. Bastariam mais tres anos para que se revogasse a
ordem.”
 P. 162: “Escrevendo em novembro de 1770 ao marques de Lavradio, o capitão-general
de São Paulo fazia ver o dano causado tanto aos vassalos como aos próprios interesses
da Coroa. Não havia quem, dispondo dos recursos e habilitações indispensáveis,
hesitasse em ir buscar animais ao Viamao gastando de ano e meio a dois anos na
viagem de ida e volta ate Sorocaba, onde se realizavam os principais negócios. / Com
as feiras de animais de Sorocaba, assinala-se, distintamente, uma significativa etapa na
evolução da economia e também da sociedade paulista. Os grossos cabedais que nelas
se apuram, tendem a suscitar uma nova mentalidade da população. O tropeiro é o
sucessor direto do sertanista e o precursor, em muitos pontos, do grande fazendeiro.”
 P. 163: “ Aqui, como nas monções do Cuiabá, uma ambição menos impaciente do que
a do bandeirante ensina a medir, a calcular oportunidades, a contar com danos e
perdas.”
 P. 163: “ Não haverá aqui, entre parênteses, uma das explicações possíveis para o fato
de justamente São Paulo se ter adaptado, antes de outras regiões brasileiras, a certos
padrões do moderno capitalismo?”
 P. 163: “ Há na figura do tropeiro paulista, como na do curitibano, do rio-grandense,
do correntino, uma dignidade sobranceira e senhoril, aquela mesma dignidade que os
antigos costumavam atribuir ao ócio mais do que ao negocio. Muitos dos seus traços
revelam nele a herança, ainda bem viva, de tempos passados, inconciliável com a
moral capitalista. A dispensa muito frequente de outra garantia nas transações, além
da palavra empenhada, que se atesta no geste simbólico de trocar um fio de barba em
sinal de assentimento, casa-se antes com a noção feudal de lealdade do que com o
conceito moderno de honestidade comercial.”
 P. 163-4: “ O amor ao luxo e aos prazeres domina, em pouco tempo, esses indivuos
rústicos, que ajaezam suas cavalgaduras com ricos arreios de metal precioso ou que
timbram em gastar fortunas nos cabarés, nos jogos, nos teatros. Sorocaba vive mai
intensamente nos tempos de feira do que muita capital de província. Não admira se
ainda em 1893, quando o desenvolvimento ferroviário extinguira quase de todo esse
comercio, um sacerdote zeloso, o conego Antonio Augusto Lessa, chamasse a atenção
de seu prelado para a necessidade um combate sem tréguas aos costumes soltos e ate
às doutrinas heterodoxas que observava na cidade – ‘fruto pernicioso das antigas e
celebres feiras de animais, e pela aglomeração de gente de toda espécie, sem lei, sem
religião e sem fe, que denominando-se negociantes, vinham de toda parte do Brasil. “
 P. 164: “ A ostentação de capacidade financeira vale aqui quase por uma
demonstração de força física. Ao menos nisto, e também na aptidão para enfrentar
uma vida cheia de riscos e rigores, o tropeiro ainda pertence a familia do bandeirante.”

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