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CRIMINOLOGIA

Eduardo Viana

8ª edição
revista, atualizada e ampliada

2020
C A P Í T U L O I I I

Breve notícia sobre


escolas penais no Brasil
Sumário • 1. Breve notícia sobre escolas penais no Brasil; 1.1. Recepção do positivismo criminoló-
gico italiano; 1.1.1. Viveiros de Castro; 1.1.2. Raimundo Nina Rodrigues; 1.1.3. Resistência ao positi-
vismo; 1.2. Recepção do tecnicismo jurídico; 1.2.1. O primeiro Hungria; 1.2.2. O segundo Hungria;
1.3. A Escola socialista de Roberto Lyra; 2. Ainda sobre o percurso histórico da Criminologia no
Brasil; 2.1. Breves notas aos pioneiros da Criminologia no Brasil; 2.1.1. João Vieira de Araújo; 2.1.2.
Tobias Barreto; 2.1.3. Clóvis Beviláqua; 2.1.4. Euclides da Cunha; 2.1.5. Afrânio Peixoto; 2.1.6. Hilário
Veiga de Carvalho; 2.1.7 Cândido Motta; 2.1.8 Júlio Pires Pôrto-Carrero; 2.1.9 Aurelino Leal; Quadro
sinótico; Questões.

1. BREVE NOTÍCIA SOBRE ESCOLAS PENAIS NO BRASIL


Um grande recuo nas ideias penais brasileiras extrapolaria, e muito, o objetivo
desta seção. Sendo assim, aqui limitar-me-ei a traçar breve descrição da repercussão
que algumas Escolas penais tiveram em solo brasileiro.
Para não deixar de registrar um ponto curioso de nosso inventário de ideias
penais, convém mencionar que Tobias Barreto foi fervoroso crítico dos postulados
da escola clássica, aos penalistas metafísicos, como disse. Com efeito, assim referia-
-se ao chefe daquela Escola, Carrara: “Não pertenço ao grupo dos seus admiradores,
parte dos quaes, ao certo, nunca se deu ao trabalho de reflectir sobre as suas doutri-
nas [...]. Carrara é um penalista metaphysico da peor especie”351. A fervorosa
recepção do positivismo criminológico italiano contrasta com a resistência ao pen-
samento abstrato dos clássicos.

1.1. Recepção do positivismo criminológico italiano352


Segundo informa Lyra, entre nós, as ideias penais assumem caráter científi-
co com a Escola Positiva, cuja popularização é decorrente das obras de João Viei-
ra de Araújo, Viveiros de Castro e Cândido Mota353. Ao lado desses poderíamos
agregar nosso antropólogo criminal – reconhecido internacionalmente como o

351. Barreto, Tobias. Menores e loucos em direito criminal. 2. ed. Recife: Typographia Central, 1886, p. 72,
nota de rodapé n. 29. (mantive a grafia do original; o negrito é meu). As referências a seguir dizem res-
peito, sempre, à segunda edição.
352. Para um horizonte mais amplo cf. Alvarez, Marcos César. Bacharéis, criminologicistas e juristas: saber
jurídico e a nova escola penal no Brasil. São Paulo: Método, 2003.
353. Lyra, Roberto. Novíssimas... Op. cit, p.16.

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apóstolo da antropologia criminal no novo mundo – Raimundo Nina Rodrigues.


Concentrar-me-ei aqui em algumas observações sobre as concepções de Viveiros de
Castro e Nina Rodrigues.

1.1.1. Viveiros de Castro


Além de avocar para si o mérito de ter sido o primeiro a divulgar as ideias italia-
nas em solo brasileiro, Viveiros de Castro é contundente ao avaliar não somente a re-
percussão que a Escola Positiva teve no Brasil, mas também a eloquente resistência
que os cientistas da época tiveram às suas propostas354. Sua defesa do positivismo
foi desenvolvida especialmente na obra “A Nova Escola Penal” (1894)355.
Viveiros de Castro inicia o livro reconhecendo que a crítica de Tobias Barre-
to em relação ao atraso da ciência brasileira merece aprovação. Isso servirá como
elemento para, segundo ele, explicar o porquê da resistência da práxis e da ciência
brasileiras em relação às novas ideias no âmbito criminal356:
No direito criminal estamos em uma ignorância miseravel. Na magistratura, no
professorado, da advocacia, na litteratura, não há sinão atrazo e pobreza.

Os escriptores brasileiros limitam-se a obras de praxe, formularios e annotações,


sem criterio, sem philosofia, sem sciencia, livros de especulação mercantil, de ver-
dadeiro negocio.

Os professores ignoram a verdadeira revolução que tem modificado tão profunda-


mente o direito penal, são incapazes de fazerem uma exposição razoavel das ideias
de um Lombroso, de um Ferri, de um Lacassagne, e muito anchos de si, no atrevi-
mento da ignorancia, repetem em postillas sebentas como ultimas novidades as li-
ções de um Ortolan ou de um Bertauld. Os nossos magistrados reduziram o direito
penal a uma formalistica ridicula cheia de chicanas e rabulices...

Sobre a atitude supostamente cômoda dos cientistas brasileiros no tocante


à mera reprodução das ideias metafísicas do século XVIII  – aqui o autor se re-
fere claramente à Escola Clássica –, escreveu: “Se apparece porém um pensador
cheio de sciencia, de genio, de originalidade, destruindo todos estes principios,
demonstrando o que elles têm de erroneo e de falso, longe de applaudirem-no e
de seguirem-no, como a estrella de fogo que guiava os hebreus para a terra da
promissão, cobrem de improperios e de insultos este atrevido que veio perturbar
tão malcreadamente a paz da igreja d’Elvas. Não se dão ao esforço de ler-lhe os

354. Ressalta a doutrina que ele não foi o primeiro jurista, cronologicamente, a abraçar de forma franca o
positivismo penal, o primeiro teria sido João Vieira de Araújo. Deve-se a Viveiros de Castro, contudo, o
reconhecimento de ter publicado o primeiro livro com o título voltado especificamente para a sociologia
criminal. Freitas, Ricardo de Brito A. P. As razões do positivismo penal no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2002, p. 297.
355. Cf. Alvarez, Marcos César. Bacharéis, criminologicistas... Op. cit., p. 84-95.
356. Castro, Viveiros de. A nova escola penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1913, p. 8.
(mantive, e manterei nas demais citações, a grafia original).

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livros, de procurar saber suas idéas e doutrinas. Na inconsciencia da ignorancia,


no atrevimento da estupidez, propagam que o pobre sabio é um louco varrido;
atribuem-lhe os maiores dislates, formam-assim uma corrente de idéas falsas que
desvirtuam opinião. É essa a sorte que tem tido a nova escola penal” 357. E é justa-
mente em razão dessa apatia científica nacional que ele mesmo atribui à sua obra
predicados como propagandista e combativa358.
O que há de interessante na defesa de Viveiros de Castro é o reconhecimento
da ausência de originalidade das ideias lombrosianas. Ele é categórico ao rememorar
o período pré-científico da Criminologia, nomeadamente os autores Quetelet, Gall,
Broca, Equirol, Orfila, Casper, Tardieu e Pinel, exaltando-os como antecessores evi-
dentes do pensamento positivista italiano. Contudo, confere a Lombroso a glória de
pôr ordem naquele caos de ideias e criar, assim, uma nova ciência359.
Deriva da observação de Viveiros de Castro, de que a grande resistência às
ideias do positivismo tem origem na atitude pedantesca e isolacionista dos juristas,
mas, especialmente, no medo de que a ciência penal se transformasse em um mero
capítulo da medicina360. O que, para ele, não seria ruim, afinal, o direito criminal
(como denominavámos à época) era ciência parva e ridícula, reduzida a discussões
bizantinas e estéreis. No campo da prática, a ácida crítica ao formalismo empreen-
dido pelo modelo clássico vem estampada no seguinte trecho: “O formalismo pro-
cessual absorveu o magistrado, sugando-lhe a intelligencia em tentaculos de polvo.
Velhos desembargadores, de patriarchaes barbas brancas e bojudo ventre discutem,
graves e serios, se deve ser annullado um julgamento no jury, decidindo finalmente
affirmativa, porque não consta dos autos ter o official de justiça tocado o badalo ao
abrir a sessão. As questões preliminares avoluman-se e crescem em uma importância
de gigantes, e em vez de abordarem resolutamente a hypothese, interpretando a lei
em um sentido philosophico e literal, deixam-se os juizes levar por essas filigranas
e rabulices, que reduzem o direito penal a uma casuistica esteril, a um amontoado
de sophismas”361. Os professores e magistrados brasileiros, finaliza, estão na mais
completa ignorância sobre as ideias da nova escola.
Adepto das ideias defendidas pela escola italiana, ele reconhece a importância
das teses defendidas por Lombroso, Ferri e Garofalo: critica o livre-arbítrio como cri-
tério para a valoração da conduta humana; considera a hereditariedade como fator
da criminalidade; recusa a definição legal de crime proposta pelos clássicos; argu-
menta que uma responsabilidade penal fundada no livre-arbítrio conduz à impuni-
dade e à impotência da defesa social contra os criminosos; defende os substitutivos
penais em substituição à pena; e em relação ao sexo e a criminalidade, argumentava

357. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 18-19.


358. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 9.
359. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 19-20.
360. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 20.
361. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 21 (itálico no original).

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que o menor número de crimes praticados pelas mulheres está associado à sua pe-
quena capacidade craniana.
Esclarece que a antropologia italiana foi importante para a identificação dos
fatores que contribuem para o desenvolvimento ou diminuição do crime362. Esses
fatores são: físicos, fisiológicos e morais. Quanto aos primeiros, os físicos, o mais im-
portante é o clima; entre os fatores fisiológicos, a hereditariedade; finalmente, dos
fatores morais (ou sociais) dever-se-ia considerar a instrução, a educação, as profis-
sões, a miséria, a riqueza, a civilização e o progresso363. Analisarei duas abordagens:
a criminalidade feminina e a hereditariedade.
Sobre a baixa representação da criminalidade feminina, assentado em dados es-
tatísticos, por exemplo, de Quetelet, reproduziu os despropositados, para não usar um
adjetivo menos elegante, argumentos de Giuseppe d’Aguanno: “A capacidade craneana
da mulher é inferior ao homem na razão de 142 a 220, o que quer dizer na maioria
geral dos casos, que a mulher é muito inferior em inteligência ao homem. A histo-
ria o prova. Nenhuma grande descoberta que honra a humanidade teve como autora
a mulher”364. A estreiteza de sua inteligência, prossegue ele, “não lhes permite, pois,
conceber, preparar, amadurecer, realizar estes crimes que exigem reflexões acuradas,
frias, encandeiamento de acção, série de planos”365. E arremata, entre parênteses, com
um depoimento pessoal: “O escriptor destas linhas exerce ha seis anos o cargo de pro-
motor publico e até hoje ainda não teve occasição de ver uma só mulher processada por
crimes de estelionato e falsidade”366. A esses fatores somam-se argumentos associados
à constituição fisiológica da mulher, bem assim às causas morais367.
Quanto aos fatores raciais, esses também foram objeto de análise. Após men-
cionar alguns casos de gênio hereditário, a exemplo do naturalista Darwin e do mú-
sico Bach; os Médicis como exemplo de falta absoluta de escrúpulos políticos e de
proteção inteligente e desvelada pela arte e pela literatura; e de tributar a Joana,
a louca, a responsabilidade por trazer à Espanha série de Felipes supersticiosos e
fanáticos que acenderam a fogueira da inquisição, conclui que também no direito
penal a hereditariedade é uma das causas mais produtoras de crime368. Essa heredi-
tariedade atuaria com mais força nos mestiços porque esses tenderiam a agir sem os
freios morais369.

362. Isso não significa que ele resume a revolução científica europeia sobre a questão do fenômeno criminal
à contribuição italiana. Em verdade, a antropologia criminal italiana integra uma revolução científica
mais ampla: “Uma nova escola se apresentou […]propagando-se como um rastilho de polvora, conquis-
tando as adhesões dos espiritos mais eminentes. Na Italia tornou-se especialmente anthropologica…
Na França tornou-se especialmente sociologica…”. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 9.
363. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 155.
364. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 195.
365. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 195.
366. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 195.
367. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 196 e ss.
368. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 161.
369. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 163-164.

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Talvez, após essa breve descrição, um leitor concorde com aquela parcela da li-
teratura científica que classifica Viveiros de Castro como um positivista radical370.
Provavelmente esse mesmo leitor também se pergunte sobre o modo como Viveiros
de Castro projetava a incorporação das ideias dessa nova escola penal à realidade
brasileira. Nesse âmbito, ele mesmo apresenta algumas propostas, das quais destaco
três: o júri; o ensino jurídico e a natureza das ações penais.
Em relação ao júri, por exemplo, ele defendia a sua supressão e que assim de-
veria ser porque a especialidade é um dos fatos característicos do século XIX: quem
quer construir um dique dirige-se ao engenheiro hidráulico; quem sofre da vista,
procura o oculista, argumentou. Transportando essa lógica para o sistema criminal,
defendeu que as questões debatidas no júri exigem a mais alta competência cientí-
fica, razão pela qual a decisão sobre elas não poderia ser entregue a indivíduos sem
conhecimentos especializados371.
Naturalmente que o impacto científico da nova escola seria estéril em território
nacional se não houvesse uma reformulação do modelo de estudos jurídicos no Brasil.
Nesse sentido, Viveiros de Castro argumentou que os estudos jurídicos para aqueles
que se dedicam à magistratura deveriam compreender também a medicina legal, a
anatomia, principalmente do cérebro, a psiquiatria, a estatística, a antropologia, a so-
ciologia criminal372. Mas não somente isso, ele também sustentou a necessidade de
incrementar a prática no âmbito educacional: é necessário obrigar os alunos a serem
internos nas prisões, isso para estudarem o criminoso, não como descrevem os juris-
tas, mas como ele realmente é, com suas anomalias anatômicas e psíquicas373.
No âmbito processual, ele também defendeu que a divisão da ação penal em
pública e privada deveria desaparecer dos códigos modernos por essa divisão não se
ajustar ao fundamento racional do direito de punir, não atender à classificação cien-
tífica do criminoso e também por não passar de um resquício da ideia de vingança,
que nos tempos primitivos foi o conceito justificativo da pena. Se a razão da puni-
ção está na defesa social, qualquer crime justificaria a ação pública. Exemplificada-
mente: se a vítima não quiser procurar o seu agressor, fica impune um indivíduo
perigoso, animado por essa mesma impunidade a cometer novos delitos. O ladrão
continua a furtar, o sedutor a desonrar moças, o caluniador a manchar reputações
imaculadas. A iniciativa do processo, portanto, deve sempre caber ao representante
do ministério público374.
Creio que a esta altura o meu leitor pode então concluir, sem nenhum esforço,
que a recepção do positivismo no Brasil, ao menos aquela empreendida e difundida

370. Cf. Freitas, Ricardo de Brito A. P. As razões... Op. cit., p. 302.


371. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 243-244.
372. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 251-252.
373. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 252.
374. Castro, Viveiros de. A nova... Op. cit., p. 263.

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pela pena habilidosa de Viveiros de Castro, desenrolou-se em uma atmosfera que


sintetizava um misto de modernidade e fantasia. Se essas ideias positivistas, que
hoje certamente provocam alguma espécie, foram agasalhadas sem nenhum aca-
nhamento e transmitidas com a atmosfera de cientificidade, isso serve como pre-
cioso exemplo histórico do quanto a “ciência” pode ser instrumentalizada para o
direcionamento do controle social.

1.1.2. Raimundo Nina Rodrigues


Talvez motivados pela vergonha que assombra a historiografia das ideias pe-
nais no Brasil, os criminólogos e penalistas brasileiros são acusados de tendencioso
esquecimento sobre a concepção racista de Nina Rodrigues375. Não me aparece muito
claro o horizonte de extensão da dura afirmação. Parece-me que o olvido à concep-
ção rodriguiana está muito mais atrelado ao período de letargia que acometeu a Cri-
minologia brasileira, isto é, ao embotamento do pensamento criminológico desde
fins do século XIX até fins do século XX. Some-se a isso o crescente interesse pela
Criminologia estadunidense de corte sociológico desde o primeiro quarto da segun-
da metade do século XX. Contudo, é preciso concordar, tais argumentos não isentam
de responsabilidade a comunidade acadêmica brasileira pela omissão eloquente. Em
suma, se a mim os motivos do esquecimento não são aqueles aventados por Zaffa-
roni, ao menos não primariamente, isso não é suficiente para cultivar, tampouco
justificar, o nevoeiro de esquecimento sobre o pai da Criminologia brasileira376.
Para situá-lo no discurso criminológico, nada mais eloquente, e absolutamente
suficiente, que as palavras do próprio Nina Rodrigues ao dizer que “A Raça Negra
no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa ci-
vilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante
abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus
turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade
como povo”377.
Fortemente influenciado pelo “suporte científico” e pela escola criminológica
italiana, especialmente pela direção antropobiológica de Lombroso e pela frenolo-
gia, publica uma série de ensaios sobre a fundamentação biológica da inferioridade
racial e como isso repercutia no âmbito da imputabilidade e responsabilidade penal.
Assim, por exemplo, vale mencionar “As raças humanas e a responsabilidade penal
no Brasil (1894)”; “O animismo fetichista dos negros da Bahia (1900)” e “Os africa-
nos no Brasil (1932)”.

375. Zaffaroni, Eugênio R. Hacia un realismo jurídico penal marginal. Caracas: Monte Avila Latinoamerica,
1993.
376. Pela justa razão, cabe menção à obra de Alvarez, Marcos César. Bacharéis, criminologicistas... Op. cit.,
passim.
377. Rodrigues, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1932, p. 14-15.

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O ensaio de 1894, “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, mui-


to mais voltado para o campo médico-legal que jurídico, propugnava variações ét-
nicas de responsabilidade penal, é dizer, defendia a existência de códigos penais
distintos para raças distintas. Ele inicia o livro com uma oração que denuncia – e
muito – aquilo que virá nas páginas seguintes: “Constituirá objecto destas proxi-
mas conferencias, o estudo das modificações que as condições de raça imprimem
á responsabilidade penal”378. E essa tese – segundo ele – tem atestados históricos.
Sobre as civilizações pré-colombianas no México e Peru, por exemplo, questionou:
“O que é feito hoje das civilizações barbaras brilhantes, complexas e poderosas que,
ao tempo da descoberta da America, occupavam o México e o Peru?” Dissolveram-se,
desapareceram totalmente na concurrencia social com a civilisação européa, muito
mais polida e adiantada”379. O estudo das raças inferiores, continua, “tem fornecido
á sciencia exemplos bem observados dessa incapacidade organica, cerebral”380.
Assentado nessas premissas, o grau de civilidade ainda não alcançado pelo ne-
gro era o critério supostamente científico para fundamentar o tratamento desigual.
E, nesse ponto, era enérgico ao afirmar que essa inferioridade era algo absolutamen-
te natural, “produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da huma-
nidade nas suas diversas divisões ou seções”381. Daí que “A concepção espiritualista
de uma alma da mesma natureza em todos os povos, tendo como consequencia uma
intelligencia da mesma capacidade em todas as raças, apenas variavel no gráo de cul-
tura e passivel, portanto, de attingir mesmo num representante das raças inferiores,
o elevado gráo a que chegaram as raças superiores, é uma concepção irremissivel-
mente condemnada em face dos conhecimentos scientificos modernos”382.
Dominando por todas essas ideias, parece ser natural a severa crítica que Nina
Rodrigues levantaria contra a “velha” doutrina do livre-arbítrio – do bem e do mal;
do justo e do injusto em todos os cérebros humanos – tão cara aos representantes
da escola clássica – e contra aqueles que negavam, ou ainda colocavam em xeque, as
ideias deterministas. Posta à margem a questão do livre-arbítrio, para ele metafísica
e insolúvel, o problema da vontade não escaparia às contingências do desenvolvi-
mento evolutivo da mentalidade humana383. E é justamente neste pavimento ideo-
lógico que Nina Rodrigues propõe um exame da responsabilidade penal à luz das
raças brasileiras. E deveria ser assim porque o código penal, argumentava, assentava
a responsabilidade penal com base no livre-arbítrio. Como nas raças inferiores não
haveria essa liberdade de ação, ou bem punir-se-ia sacrificando a ideia de livre-ar-

378. Rodrigues, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brazil. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara, [s/d], p. 29 (espero que o leitor não estranhe, mas em todas as citações optei por
manter a grafia original).
379. Rodrigues, Raimundo Nina. As raças humanas... Op. cit., p. 33.
380. Rodrigues, Raimundo Nina. As raças humanas... Op. cit., p. 35.
381. Rodrigues, Raimundo Nina. Os africanos... Op. cit., p. 12.
382. Rodrigues, Raimundo Nina. As raças humanas…Op. cit., p. 30.
383. Rodrigues, Raimundo Nina. As raças humanas…Op. cit., p. 48.

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bítrio ou dever-se-ia respeitar esse princípio em detrimento da segurança coletiva.


Justamente por isso, o legislador penal deveria estar atento às exigências da diver-
sidade de raça e, consequentemente, elaborar tantos códigos quantos necessários
fossem. Esse era o único modo de contornar a impunidade em códigos que assentam
a responsabilidade na liberdade de atuar. Escreveu: “as raças inferiores no Brazil
podem disputar os benefícios da impunidade perante um codigo que faz repousar a
responsabilidade penal sobre o livre arbitrio”384. E justamente nisso residia o perigo
social do livre-arbítrio.
Sua obra Os africanos no Brasil registra o peso e a força do seu pensamento etno-
lógico em várias passagens. Para além dos trechos mencionados, nos quais aborda a
temática das razões da abolição da escravidão e seu revestimento sentimental, escre-
veu: “Para dar-lhe esta feição impressionante foi necessário ou conveniente empres-
tar ao negro a organização psíquica dos povos brancos mais cultos[…] O sentimento
nobilíssimo de simpatia e piedade, ampliado nas proporções duma avalanche enor-
me na sugestão coletiva de todo um povo, ao Negro havia conferido ex-autoridade
própria, qualidades, sentimentos, dotes morais ou ideias que ele não tinha...”385.
Ressaltando a miscigenação brasileira, a existência de diversos Brasis e possi-
bilidade de fraturas territoriais, registrou “Ao brasileiro mais descuidado e impre-
vidente não pode deixar de impressionar a possibilidade da oposição futura, que
já se deixa entrever, entre uma nação branca, forte e poderosa, provavelmente de
origem teutônica, que se está constituindo nos estados do Sul, donde o clima e a
civilização eliminarão a Raça Negra; e de outro lado, os estados do Norte, mestiços,
vegetando na turbulência estéril de uma inteligência viva e pronta, mas associada à
mais decidida inércia e indolência, ao desânimo e por vezes à subserviência, e assim,
ameaçados de se converterem em pasto submisso de todas as explorações de régulos
e pequenos ditadores”386. Tão claro quanto o texto é a nota de rodapé a ele agregada:
“Um observador brasileiro, o Dr. Remédios Monteiro, me informava em carta de 11
de abril de 1899: ‘A raça negra tende a desaparecer em Santa Catarina por efeito do
clima: as crianças anemiam-se, escrofulizam-se, e tuberculizam-se, enquanto as que
não são de tal origem criam-se bem’.”
As citações no mesmo sentido poderiam abundar, mas creio demasiadamente
suficientes para registrar o pensamento do médico maranhense. Como registrado
no momento de valoração crítica do positivismo, o pensamento de Nina Rodrigues
situa-se no momento histórico no qual a ciência experimental era o Théos do saber
científico. O papel desempenhado pela ideia rodriguiana situa-se no campo do fo-
mento à pesquisa. Naturalmente isso não impede especular que a sua tese de inferio-
ridade biológica pode ter contribuído, em maior ou menor medida, para a construção
e distorção do papel do negro na sociedade brasileira, com evidente repercussão,

384. Rodrigues, Raimundo Nina. As raças humanas…Op. cit., p. 87.


385. Rodrigues, Raimundo Nina. Os africanos... Op. cit., p. 11.
386. Rodrigues, Raimundo Nina. Os africanos... Op. cit., p. 15-16.

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também com maior ou menor intensidade, na constituição de um estereótipo de


indivíduo criminal, a modo lombrosiano. Seu modelo teórico, não seria um exagero
dizer, viabiliza o controle social formal orientado pelo criminoso e não pelo crime.

1.1.3. Resistência ao positivismo


Para além da diversidade de autores que poderiam ser aqui mencionados co-
mo pertencentes ao discurso de resistência à recepção das ideias italianas, desen-
volvo a análise a seguir à luz da obra do pai da Escola de Recife, Tobias Barreto, e
de Nélson Hungria.
As ligeiras observações do professor de Recife, como não poderiam ser diferen-
tes, direcionaram-se aos estudos de Lombroso, especialmente ao “O homem delin-
quente”. Embora ressaltasse o mérito de toda construção científica que transitava
pelas ideias lombrosianas, Tobias Barreto ressaltava o exagero e excesso presentes
na obra, sendo considerado o primeiro crítico de Lombroso em solo nacional387.
O homem delinquente, dizia ele, não pode ser compreendido apenas à luz da
psiquiatria ou da medicinização do Direito. Com efeito, retorquia com eloquência
à pretensão do médico italiano em destronar o jurista e dispensar o Direito Penal.
Escreveu: “Se é certo que o delicto como fato natural, está sujeito a outras leis que
não as leis da liberdade, isto não quer dizer que o direito deve deixar de impôr-se
como meio de corrigir a natureza”388. Lombroso, diz ele, “propõe a substituição da
cadeia pelo manicomio criminale. Dou de barato. Porém os seus principios ou seus
dados positivos, destendidos pela lógica, levam a consequencia de ser talvez preciso
metter-se no hospital a humanidade inteira, se não é que o ilustre autor nos tenha
proposto somente uma questão de palavras, e entre cadeia e hospital de criminosos
não se estabeleça distinção notável”389.
À pena de Hungria não escapam as teses lombrosianas, especialmente o pro-
pugnado pela vertente rodriguiana racista. Tradicionalmente – diz ele – a inferiorida-
de de raça tem servido de fundamento para comprovar as estatísticas que apontam
a quantidade de criminalidade praticada por homens de cor390 como maior que a da
população branca. Afirma-se que negros e mestiços seriam, organicamente, mal
ajustados às condições da sociedade civilizada; trazem consigo uma irredutível so-

387. Moraes, Evaristo de. Primeiro crítico de César Lombroso no Brasil. In: Revista de Direito Penal, 1939, v.
XXV, p. 142 e ss. Por outro lado, Castiglione faz uma advertência: há divergência sobre o ano de publi-
cação da primeira edição da obra Menores e Loucos. Se considerarmos as referências que apontam 1884
como sendo o ano de aparição o primeiro a tratar das ideias de Lombroso teria sido João Vieira de Araú-
jo e não Tobias Barreto. Cf. Castiglione, Teodolindo. Lombroso... Op. 269-270. Clóvis Beviláqua aponta
que o ano de aparição é 1882, nas colunas do Diário de Pernambuco. Beviláqua, Clóvis. Criminologia e
Direito. Bahia: Livraria Magalhães, p. 19, nota de rodapé n. 1.
388. Barreto, Tobias. Menores... Op. cit., p. 72.
389. Ibidem, p. 70-71 (destaque no original).
390. O autor se refere aos negros e mulatos.

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CRIMINOLOGIA • E duardo V iana

brevivência da semianimalidade características das tribos africanas, cujo sangue


corre nas veias; a delinquência apresenta-se entre eles como um fenômeno de ata-
vismo, de regressão ao primitivismo de seus ancestrais. Essas as tradicionais justifi-
cativas para a maior frequência da criminalidade por parte dos homens de cor, e sobre
elas deve ser oposta a mais formal contradita391.
Em primeiro lugar, diz Hungria, a ideia fantasiosa da superioridade entre raças é
algo que ficou no passado, ideia demolida pelos antropólogos e sociólogos: já não tem
significação alguma a diversidade de estatura, medida de crânio e outras ideias a que
se arrimam os preconceitos racistas. Bem comprova isto o fato dos grandes gênios, a
exemplo de Goethe, Kant, Luthero, Schopenhauer, Schubert, Rembrandt, nascerem
de raças cruzadas392.
Não há também, continua ele, qualquer base para afirmar que há uma procli-
vidade racial para o crime, isto é, uma característica hereditária que implique uma
orgânica propensão para o crime393.
Hipótese que desafia comprovação é a relação entre morfologia e crime. E, nesse
ponto, afirma o autor, a teoria lombrosiana é um anacronismo insalvável. Não me-
nos desvalioso é o argumento de menor peso do cérebro do negro em cotejo com o
do branco. Inexistem traços fisiológicos ou marcas cranianas que indiquem no negro
uma inferioridade antropológica condicionante de seu alto índice de criminalidade
na sociedade civilizada: “o parcial desajustamento...está ligado, não a fatôres raciais,
hereditários ou orgânicos, mas exclusivamente culturais, ambientais ou sociais”394.
E arremata: “É preciso que se abandone, de uma vez por tôdas, a idéia de que a crimi-
nalidade dos homens de côr tenha um fundo racial”395.
Como se vê, em Hungria, os conflitos de padrões culturais são fator criminó-
geno primordial e suficiente para justificar a criminalidade, à época, dos negros e
mulatos. A questão da criminalidade deslocava-se do plano do determinismo bioló-
gico para o plano do abandono cultural. O negro (e também os mulatos) foram aban-
donados à própria sorte após a abolição da escravatura; sem qualquer socorro social
e econômico, alocados a uma ambiência de desorganização familiar e atascados à
miséria, ambos foram empuxados à criminalidade.
Em modo de síntese, para Hungria o maior coeficiente de criminalidade dos
negros e mulatos não se assentava em sua inabilidade de evolução ou sua predis-
posição ao crime em razão das regressões atávicas, mas sim em fatores exógenos,
especialmente o seu abandono social e, com isso, a consequente impossibilidade de

391. Hungria, Nelson. A criminalidade dos homens de côr. In: Hungria, Nelson. Comentários ao código pe-
nal. 4. ed. Rio: Forense, 1959, vol. III, p. 291-295.
392. Ibidem, p. 297.
393. Ibidem, p. 298.
394. Ibidem, p. 299.
395. Ibidem, p 301.

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Cap. III • B reve notícia sobre escolas penais no B rasil

chegarem ao padrão cultural geral dos brancos. Ao fim e ao cabo, as fontes máximas
para a maior criminalidade dos homens de cor derivavam de problemas de cunho
econômico e de retardo social. Apenas a educação (substancial e não exclusivamente
formal) seria capaz de libertá-los de tal jugo.
Disso tudo se pode inferir que a resistência ao positivismo criminológico, em
primeiro momento, decorreu muito mais do receio pelas novas ideias do que, pro-
priamente, por uma opção científica. O achismo intelectual que sempre assaltou o
jurista impulsionava a desconfiança e assombro com qualquer ciência que ameaças-
se a zona de conforto criada com a Escola Clássica.

1.2. Recepção do tecnicismo jurídico


1.2.1. O primeiro Hungria
Com igual fervor à recepção do positivismo criminológico, e também, derivado
de magistral pena, o tecnicismo foi avidamente defendido em solo brasileiro. Sua
defesa coube à tinta de Oscar Stevenson e Nelson Hungria, cuja elocução e erudição
seriam determinantes para arregimentar uma série de seguidores.
Escreveu Hungria: “A ciência do direito penal somente pode consistir no estudo
da lei penal em sentido lato ou do complexo de normas jurídicas mediante as quais o
Estado manifesta o seu propósito de coibir a delinqüência...”396. Nesse primeiro mo-
mento, o autor deixa claro que o limite do Direito Penal é a lei, “não há Direito Penal
fora da órbita legal”. Outras ciências, pré-ciências ou pseudociências que propõem
o estudo da criminalidade como fenômeno biopsíquico-sociológico e a pesquisa de
meios de preservação e defesa sociais, diz ele, nada tem a ver com a ciência penal
propriamente dita397. Daí porque a autêntica ciência jurídico-penal não pode ter por
objeto a indagação experimental em torno do problema da criminalidade, mas tão
somente a construção do Direito Penal por meio das normas legais398.
A resistência à influência de outras ciências no campo de investigação da
criminalidade, e consequentemente sua pureza dogmática, bem vem registrada
em sua comparação entre o Direito Penal e as ciências auxiliares: “Compete aos
juristas, e não aos sociólogos, biólogos, psicólogos ou filósofos. É a dogmática jurí-
dico-penal ou jurisprudência penal, tomado o vocábulo jurisprudência no sentido ro-
manístico. Não há entre ela e essa teia de Penélope que se intitula ‘criminologia’
afinidade alguma ou relação necessária. Trata-se de uma ciência normativa, e não
causal-explicativa...” 399.

396. Op. cit., p. 93.


397. Ibidem, p. 94.
398. Idem, Ibidem.
399. Ibidem, p. 94 (o negrito é meu).

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