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Atendimento Psicanalítico

Atendimento
psicanalítico
Baseado em pesquisas

Compilado por
Felix J Lescinskiene

Capa:
Médico fazendo uma anamnese.
(The Doctor, por Samuel Luke Fildes, 1891)

2014

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Atendimento Psicanalítico

Introdução

O modelo de trabalho clínico que os iniciantes em atendi-


mento psicanalítico têm na cabeça é bastante diferente
daquilo que a experiência de uma entrevista psicanalítica
proporciona.

Os iniciantes trazem consigo suas referências de vida e


raramente tiveram oportunidade de experimentar uma
escuta sustentada psicanaliticamente. Mormente, pensam
que ajudar é persuadir, aconselhar e resolver os proble-
mas alheios com a experiência que possuem. Não sendo
diferente, ocorre um choque entre o modelo imaginário
do iniciante e aquele que pressupõe um encontro com o
inconsciente.

A questão é que, na busca curiosa e ainda ingênua do en-


contro com o inconsciente alheio, o primeiro que se en-
contra é o próprio inconsciente, coisa que irão descobrir
logo.

Aqui existe um duplo risco:

 De um lado, o aprisionamento num ensino pura-


mente teórico, desligado da experiência clínica e
distante do que os iniciantes podem assimilar com a
bagagem desse momento;

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Atendimento Psicanalítico

 De outro, a possibilidade de oferecer uma vivência


clínica através da experiência prática, que, entre-
tanto, por sua própria natureza, pode provocar um
impacto capaz de intensificar indesejavelmente as
resistências.

Ao realizar a opção pela experiência prática, assume-se o


risco de criar uma excitação inicial seguida de uma resis-
tência bastante considerável para prosseguir.

Alguns calouros logo percebem que essa situação os atin-


ge em algum nível que eles não sabem bem como explicar;
detectam algo que lhes perturba a paz e os desvia dos pla-
nos de aprender com a distância positivista daquele que
observa seu objeto de estudo sem se deixar tocar.

Como exercer a prática em clinica psicanalítica, desenvol-


ver a postura ideal e o raciocínio clínico necessários para o
atendimento?

Não existe um roteiro básico ou formal para que o profis-


sional calouro siga.

O raciocínio clínico será desenvolvido junto com a teoria e


técnica psicoterapêutica de forma criativa, como um pro-
fissional pensante, e não como uma regra a ser seguida ou
um mito ou uma religião.

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Para fortalecer o desenvolvimento destas habilidades ne-


cessárias para a prática de atendimento psicanalítico se-
gue a apresentação de três estudos distintos que abordam
o que e como pode ser conduzido um atendimento.

Lembre-se sempre que a prioridade é do atendido e não


do atendente. Deixe sempre o dialogo correr livre e sem
pressão ou interrogatório.

Nestes estudos consta o que você basicamente deve saber


para montar um mapa mental do seu atendido, e para isso
você tem todo o tempo do mundo para fazê-lo. Não preci-
sa ser tudo na primeira sessão.

Estudos apresentados

O exame do estado mental.


É possível sistematizá-lo?
Da Santa Casa de misericórdia de São Paulo
Modelo de anamnese, exame psíquico para avaliação
e planejamento em psicoterapia breve.
Da Santa Casa de misericórdia do Rio de Janeiro
Caso Aimée - Exame Clinico
De Jacques Lacan
Psicanalista francês

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Atendimento Psicanalítico

O exame do estado mental.


É possível sistematizá-lo?

Resumo

A avaliação estado mental de um paciente pode cor-


responder a tarefa bastante complexa. O presente ar-
tigo aborda aspectos semiológicos e psicopatológicos
relacionados à realização do exame psíquico.

Adicionalmente, apresenta uma proposta de sistema-


tização do referido exame, a qual pode ser útil tanto
para o psiquiatra como para o não-especialista.

Introdução

A avaliação minuciosa do estado mental de um paci-


ente corresponde, provavelmente, a uma das mais
subjetivas tarefas com as quais um médico pode se
deparar. Embora, nos grandes centros, seja muitas
vezes possível delegar esta função a um especialista (o
psiquiatra), em diversas circunstâncias caberá ao não-
especialista a realização do referido exame. Queixas
psiquiátricas são comuns na prática clínica e a ade-
quada realização do exame psíquico será peça funda-
mental no processo de raciocínio diagnóstico, bem

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como na decisão de encaminhar ou não o paciente


para atendimento especializado.

O exame psíquico, ou exame do estado mental, é por


definição baseado no referencial teórico fenomenoló-
gico. De forma simplificada, isto significa que, ao en-
trevistar um paciente, é necessário mais que apenas
escutá-lo. É necessário que, durante toda a entrevista,
seja feito o constante exercício de empatizar com o
paciente. É preciso que o examinador compare as vi-
vências do paciente com as suas próprias, buscando
similaridades e diferenças. O entrevistador deve, a
todo instante, se perguntar: “se eu estivesse experi-
mentando estas sensações, estes pensamentos, de
que forma me sentiria? De que forma me comportari-
a?”

À dificuldade naturalmente associada ao processo a-


cima, soma-se o fato de que, salvo raríssimas exce-
ções, não se dispõe, em psiquiatria, de exames com-
plementares para a confirmação dos achados de exa-
me. Recentemente, muita ênfase tem sido dada a
questionários, escalas de avaliação de estado mental e
listas de sintomas.

Embora possibilitem a coleta de dados de maneira rá-


pida e confiável, correspondendo a excelentes ferra-

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mentas de triagem, estes instrumentos podem às ve-


zes imbuir um falso conceito de que as funções men-
tais são passíveis de adequada avaliação de forma pu-
ramente objetiva.

Finalmente, não há qualquer tipo de padronização na


maneira como as diferentes funções psíquicas são a-
grupadas e organizadas para efeito de descrição, sen-
do que cada psiquiatra tende a seguir a sistematização
adotada no serviço em que obteve sua formação.

O presente artigo descreve uma proposta de padroni-


zação do exame psíquico (Quadro 1), baseada na lite-
ratura especializada, adotada na Divisão de Psiquiatria
Geral de Adultos do Departamento de Psiquiatria da
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São
Paulo.

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Quadro 1
Componentes do exame psíquico

 Apresentação
 Atitude
 Contato
 Consciência
 Atenção
 Orientação
 Memória
 Senso-percepção
 Pensamento
 Crítica e Noção de Doença
 Juízo
 Vontade ou Conação
 Humor e Afeto
 Psicomotricidade
 Inteligência
 Personalidade

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O exame do estado mental

Apresentação

O primeiro item do exame psíquico diz respeito à apa-


rência física do paciente, mais especificamente à ma-
neira como o mesmo se encontra vestido e suas con-
dições de higiene.

A apresentação poderá, portanto, estar adequada,


descuidada, exagerada, bizarra, dentre outros adjeti-
vos. É interessante notar que a caracterização da a-
presentação deverá levar em consideração, obrigato-
riamente, o contexto onde a entrevista estiver sendo
realizada. O fato de um paciente trajar pijamas duran-
te uma entrevista em um hospital será, provavelmen-
te, considerado adequado, diferentemente do que
ocorreria se a mesma entrevista estivesse ocorrendo
em um consultório particular.

Observar:

 Aspecto geral e cuidados (ex: higiene, cabelo,


barba, vestes, presença de adornos);

 Faciais (ex: marmórea, melancólica);

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 Porte (ex: encurvado, retraído, altivo);

 Atitude em relação ao investigador (ex: adequa-


ção, colaboração, hostilidade, oposição, descon-
fiança);

Atitude

De que maneira o paciente se posta diante do exami-


nador? Esta pergunta será respondida com base na
descrição de sua atitude. Alguns pacientes adotarão
atitude ativa e colaborativa, respondendo às pergun-
tas adequadamente. Outros, colocar-se-ão de forma
negativista, seja ignorando intencionalmente as per-
guntas e solicitações do examinador (negativismo ati-
vo), seja por se encontrarem alheios e indiferentes aos
que lhes é solicitado ou perguntado (negativismo pas-
sivo).

Contato

No item contato, descrevemos uma impressão subje-


tiva do examinador referente à entrevista daquele pa-
ciente. Foi fácil a realização da entrevista? Foi difícil
estabelecer empatia com o mesmo? Quais sentimen-
tos contra-transferenciais foram experimentados pelo

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examinador? Tais questões devem ser incluídas neste


item do exame do estado mental.

Consciência

O termo consciência pode ser usado, em psicopatolo-


gia, com vários significados distintos. Por um lado, en-
quanto consciência neurológica, diz respeito ao grau
de vigília de um paciente, ou seja, à nitidez das vivên-
cias psíquicas (eixo vertical) e à amplitude desta vigília.

Dessa forma, no eixo vertical, a consciência poderá


estar preservada (paciente lúcido, consciente ou vigil)
ou rebaixada (paciente sonolento, obnubilado ou tor-
poroso). O termo “confusão mental” corresponde, em
termos genéricos, a qualquer grau de rebaixamento
do nível de consciência, excetuando se o coma. No
eixo horizontal, encontramos os estreitamentos da
consciência, estados crepusculares habitualmente de
natureza epiléptica ou dissociativa.

Atenção

À capacidade de direcionar ou focar a vida mental em


determinados estímulos específicos damos o nome de
atenção.

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Distinguem-se a atenção voluntária (tenacidade), isto


é, a capacidade de direcionar, voluntariamente, a vida
mental para um estímulo específico, e a atenção es-
pontânea (vigilância), a capacidade não intencional de
re-direcionar a vida mental para estímulos novos, a
qual é determinada pelas características dos estímulos
em questão (por exemplo, intensidade dos mesmos).

Habitualmente, há certa relação inversa entre as duas


formas de atenção: se a atenção espontânea está pa-
tologicamente aumentada, a voluntária estará diminu-
ída, e vice-versa. Entretanto, alguns estados cursam
com diminuição global de ambas as formas de aten-
ção.

Orientação

Chamamos orientação à capacidade de um indivíduo


de conseguir situar-se tempo-espaço (em relação ao
ambiente) e quanto a si mesmo. Didaticamente, divi-
de-se a orientação em autopsíquica (identidade do eu)
e alopsíquica (quanto ao mundo externo, subdividida
em orientação temporal e orientação espacial).

Memória

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É a função psíquica responsável pela fixação, armaze-


namento e evocação dos estímulos e vivências.

Embora existam diversas classificações e subsistemas


de memória, uma das mais adotadas é aquela que leva
em consideração o tempo decorrente entre a fixação
do estímulo e sua evocação. Com base neste critério,
podemos classificar a memória em imediata, recente e
remota (Quadro 2).

Quadro 2
Tipos de memória e técnicas de avaliação
Tempo entre
Tipo de Forma de avaliação durante o
a fixação e a
memória exame psíquico
evocação
Falar três palavras ou núme-
ros e pedir que o paciente os
Imediata Segundos
repita imediatamente após
ouvi-los.
Pedir para que o paciente
Minutos repita novamente os núme-
Recente Horas ros ou palavras, após a apli-
Dias cação de uma ação de dis-
tração.
Semanas Perguntas sobre fatos ocor-
Remota Meses ridos no passado.
Anos

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Senso-percepção

As sensações resultam dos efeitos produzidos por es-


tímulos externos sobre os órgãos dos sentidos en-
quanto as percepções correspondem a fenômenos
psíquicos relacionados ao reconhecimento e significa-
do subjetivo das sensações.

Dessa forma, as alterações da senso-percepção com-


preendem dois grupos de fenômenos. Por um lado,
incluem alterações da senso-percepção propriamente
ditas, as distorções perceptivas.

Estas correspondem a distorções no tamanho, cor ou


forma dos objetos, bem como a alterações na percep-
ção de espaço. Tais problemas são comuns em trans-
tornos mentais orgânicos e em estados relacionados
ao uso de substâncias.

O outro grupo de alterações compreende as ilusões e


alucinações. Embora a rigor estes fenômenos não cor-
respondam a alterações senso-perceptivas, mas sim
do juízo de realidade, são tradicionalmente descritas
entre os distúrbios da senso-percepção.

Nas ilusões, o paciente vivencia uma representação


mental distorcida de um objeto externo presente. São

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basicamente restritas á esfera visual, e altamente su-


gestivas de afecções cérebro-orgânicas.

Já nas alucinações temos, em termos psicopatológi-


cos, a existência de uma representação mental que é
erroneamente aceita pelo juízo de realidade como
proveniente do meio exterior.
Dessa forma, a alucinação corresponde, a grosso mo-
do, a uma “percepção sem objeto”, podendo ser en-
contrada na esfera visual (alucinações visuais), auditi-
va (alucinações auditivas), olfativa, táctil (alucinações
cenestésicas) ou gustativa.

Exemplificação:

 Ilusão: distorção de um percepto real, não ne-


cessariamente patológica (ex: ilusão óptica);
 Alucinações (verdadeiras): percepção nítida, ob-
jetiva e externa na ausência de um percepto re-
al (ex: “São vozes de mulher vinda da sala que
comentam as minhas ações”);
Obs: alucinações auditivas são as mais comuns;
visuais, tácteis e cenestésicas: afastar transtor-
no orgânico (ex: delirium, epilepsia, tumor);
 Pseudoalucinações: localizadas no espaço sub-
jetivo interno (ex: “vozes dentro da cabeça”).

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 Alucinose: crítica do individuo em relação ao


fenômeno (ex: alucinose alcoólica)

A presença de alucinações é característica dos qua-


dros psicóticos. Enquanto alucinações visuais, tal quais
as ilusões, sinalizam para a existência de alterações
orgânicas, as auditivas são altamente sugestivas de
psicoses não-orgânicas, tais como surto psicótico agu-
do, quadros esquizofrênicos e transtornos de humor
com sintomatologia psicótica.

Pensamento

Na imensa maioria das avaliações, o pensamento será


avaliado indiretamente, com base no discurso do pa-
ciente. São descritas no exame psíquico três dimen-
sões do pensamento: curso, forma e conteúdo.

 Curso: é a velocidade do pensamento, ou seja, a


velocidade com que as idéias se encadeiam u-
mas nas outras. O curso pode estar lento, acele-
rado ou normal.

 Forma: aqui, descreve-se a forma como as idéi-


as se encadeiam umas nas outras. A forma habi-
tual do pensamento normal é chamada de a-
gregada, na medida em que as idéias se enca-

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deiam de maneira natural e harmônica, mudan-


do-se gradualmente de um tema para outro. As
alterações da forma do pensamento estão des-
critas no Quadro 3. Vale lembrar que nem todas
são necessariamente patológicas, podendo ser
encontradas em indivíduos normais.

 Conteúdo: as idéias expressas pelo paciente são


habitualmente agrupadas neste subitem. Po-
demos, assim, incluir na descrição do conteúdo
do pensamento idéias suicidas, desejo de mor-
te, planos para o futuro, dentre outras. Algumas
destas merecem atenção especial.

As idéias prevalentes são conteúdos que, em


função de sua carga afetiva, ocupam a maior
parte do conteúdo do pensamento do indivíduo
no momento do exame.

As idéias delirantes consistem em crenças irre-


ais não removíveis mediante a argumentação
lógica, podendo ser de temática persecutória,
mística, grandiosa, de ruína, dentre outras. As
idéias obsessivas são pensamentos de caráter
intrusivo, reconhecidas pelo próprio paciente
como absurdas, porém de difícil controle.

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Quadro 3
Alterações da forma do pensamento
Valor
Alteração Descrição
Semiológico
As idéias se encadeiam, po- Quadros
Arborização rém o pensamento tende a Maniformes;
do se distanciar do foco origi-
pensamento nal, com mudanças progres- Alguns quadros
sivas do tema do discurso. psicóticos.
O paciente muda o tema do Fase maníaca
Fuga de
discurso de forma mais rápi- do transtorno
idéias
da que na arborização. afetivo bipolar.
As idéias tendem a não se
encadear umas nas outras,
Desagregação Quadros
sendo o discurso composto
do Psicóticos.
por frases desconexas ou, às
pensamento
vezes, palavras desconexas
(salada de palavras)
Transtornos
Dificuldade em abandonar o
Perseveração mentais
tema do discurso.
orgânicos
Incapacidade em distinguir o Transtornos
Prolixidade que é fundamental do que é mentais
acessório no discurso orgânicos

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Atendimento Psicanalítico

Crítica e noção de doença

Aqui, avalia-se o grau de insight do paciente, ou seja, o


quanto de compreensão o mesmo apresenta em rela-
ção a seu próprio estado mental. Embora muitas vezes
usados como sinônimos há uma discreta diferença en-
tre os dois conceitos acima. Crítica diz respeito à per-
cepção da inadequação ou da gravidade de suas vi-
vências ou de seu comportamento. Noção de doença
se refere a quanto o paciente admite que tais vivên-
cias ou comportamento anormais são decorrentes de
doença mental.

Juízo

Capacidade de criticar, ajuizar e avaliar satisfatoria-


mente a realidade vivida;

Gradações:

 Idéias sobrevaloradas (ex: fundamentalismo re-


ligioso, apaixonamentos), idéias deliróides (ex:
idéias de grandeza em mania)

 Delírio: alteração patológica do juízo: pensa-


mento errôneo, fato improvável caracterizado
por uma certeza subjetiva, irrefutabilidade pela

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lógica e impossibilidade de se compartilhado;


tipos: ciúme, persecutórios, ruína, grandeza,
místico etc. (ex: esquizofrenia e delírios persis-
tentes).

Vontade ou Conação

Está relacionada aos atos voluntários. É uma disposi-


ção (energia) interior que tem por princípio alcançar
um objetivo consciente e determinado.

 Representações volitivas
Intenção (vontade, desejo, interesse):

Alterações quantitativas:

 Hipobulia (ex: depressão),


 Hiperbulia (ex: mania);
 Qualitativas: piromania,
 Parafilias (ex: pedofilia).

 Tomada de decisão
(envolve juízos, deliberação);
ex: alteração: hesitação enfrentada em estados
depressivos e obsessivos;

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 Pragmatismo:
 Capacidade de praticar ou interromper
ações (ex: cessar um vício);
 Capacidade de manter atividades gerais
da vida prática (ex: banhar-se, estudar).

Humor e afeto

Estes itens correspondem provavelmente à seção mais


difícil e subjetiva do exame do estado mental, haja
vista que compreendem a descrição do estado emo-
cional do indivíduo durante a avaliação.

Tal subjetividade decorre das inúmeras variações en-


contradas na maneira como as emoções e sentimen-
tos são vivenciados e expressos, não somente de indi-
víduo para indivíduo como também de cultura para
cultura. Denomina-se humor como a disposição afeti-
va fundamental. Em outras palavras, poderíamos dizer
que o humor corresponderia à emoção predominante
durante a entrevista.

O afeto, por outro lado, designaria a totalidade das


emoções no momento em questão, bem como sua
relação com o conteúdo do pensamento.

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Atendimento Psicanalítico

Segundo as conceituações acima, o humor pode ser


basicamente classificado como depressivo, eufórico,
irritado (disfórico) ou ansioso.

O afeto, por sua vez, pode ser classificado de várias


formas:

 Segundo a sintonia com o conteúdo do pensa-


mento:
o Congruente ou
o Incongruente (“dissociado”);

 Segundo as variações do estado emocional du-


rante a entrevista:
o Pouco móvel ou
o Lábil;

 Segundo a intensidade da expressão emocional:


o Hipermodulante,
o Estável ou
o Plano;

 Segundo o grau de sintonia com o ambiente e o


examinador:
o Ressoante ou
o Pouco ressoante.

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Atendimento Psicanalítico

Componentes do afeto:

 Tônus (quantidade, carga)


 Modulação (variação),
 Ressonância: aos estímulos + ou –.

Tipos:

 Embotamento afetivo (afeto hipotônico, hipo-


modulante e pouco ressonante característico da
esquizofrenia);

 Labilidade afetiva (passagem súbita de um es-


tado afetivo para outro);

 Dissociação do afeto (incoerência entre a idéia


expressa e o afeto presente na histeria -
“Indiferença”);

 Ambivalência (amor / ódio ao objeto vivenciado


na esquizofrenia).

Humor (estado basal do afeto)

Tipos:
 Eutímico (normal);

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Atendimento Psicanalítico

 Depressivo, elado/elevado (ex: hipomania),


 Eufórico (ex: mania / intoxicação exógena),
 Disfórico (instável, depressivo e irritável; ex:
personalidade borderline),
 Ansioso,
 Irritável,
 Delirante ou tremático (perplexidade caracterís-
tica das fases prodrômicas das psicoses);

Psicomotricidade

Os fenômenos motores exibidos pelo paciente duran-


te a entrevista são descritos neste item.

Do ponto de vista quantitativo, a psicomotricidade


oscila entre dois pólos:

 Inibição psicomotora, ou abulia


 Agitação psicomotora

Entre estes dois extremos, encontramos uma gama de


conceituações. O paciente poderá, assim, estar inquie-
to, acelerado, lentificado, apático, dentre outros ter-
mos.

Quadros de extrema agitação psicomotora são tam-


bém denominados estados de furor, enquanto esta-

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Atendimento Psicanalítico

dos de extrema inibição psicomotora são chamados


de estados de estupor, onde se observa imobilidade
e mutismo.

Exemplificação:

 Lentificação (ex: Parkinson, depressão),


 Inquietude (ex: ansiedade),
 Agitação (ex: mania),
 Movimentos repetitivos e estereotipados (ex:
tiques, ecopraxia),
 Flexibilidade cerúlea (ex: catatonia),
 Distonias, acatisia e discinesia tardia (ocasiona-
da pelo uso de neurolépticos).

É interessante frisar que quaisquer das alterações a-


cima podem se dever a múltiplas etiologias, ou seja,
resultar de diversos transtornos psiquiátricos. O estu-
por, por exemplo, pode ser encontrado em episódios
depressivos graves, quadros psicóticos com caracterís-
ticas catatônicas e crises dissociativas.

Além das alterações acima descritas, valem serem ci-


tadas algumas alterações qualitativas da psicomotrici-
dade, em relação às quais impera grande confusão.

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Todas se caracterizam por movimentos repetitivos.


São elas as estereotipias, os maneirismos e os tiques
(Quadro 4).

Quadro 4
Alterações qualitativas da psicomotricidade
Finalidade do mo-
Complexidade do
movimento
Alteração

vimento

Outras
Valor semiológico
características

Podem ser Transtornos de


Ausente
Tiques

Baixa

suprimidos tique; transtornos


pela do spectrum obses-
vontade. sivo-compulsivo

Transtornos
Estereotipias

Ausente

Psicóticos
Media

Contínuas (especialmente
quadros catatôni-
cos)

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Movimento
Maneirismos

com finalidade

Presente
específica exe- Transtornos
Alta

cutado de ma- psicóticos


neira bizarra
ou pouco usual

Inteligência

Função psíquica complexa que determina resolução


de problemas e adaptação do indivíduo. Avaliar histó-
rico escolar, profissão; considerar nível cultural e regi-
onalismos. Medida quantitativa (QI); cálculo, resolu-
ção de equações, capacidade de abstração (ex: com-
preensão de ditados populares).

Personalidade

Função psíquica complexa que determina o ajusta-


mento do individuo e seu padrão de resposta às con-
dições impostas. “Organização dinâmica dos sistemas
psicofísicos do individuo que determinam seu ajusta-
mento (único) ao (seu próprio ambiente)”

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Atendimento Psicanalítico

Determinada por 4 componentes:

1. Temperamento (componente afetivo):


a. Predominantemente herdado
(“ele é explosivo como o pai”);

2. Caráter (componente conativo):


a. Predominantemente adquirido
(“ele ficou egoísta depois que saiu do orfana-
to”)

3. Componente Intelectivo (Inteligência);

4. Componente somático (estatura, genética).

Avaliação do padrão “gatilho-resposta”, diversas en-


trevistas, convocação de familiares.

Discussão

O presente artigo descreve uma proposta de sistema-


tização do exame do estado mental.

Ainda que, em características gerais, a mesma se as-


semelhe às incluídas em livros-texto, algumas peculia-
ridades merecem ser destacadas.

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Atendimento Psicanalítico

Primeiro, os itens “prospecção” e “pragmatismo” não


foram incluídos na descrição do exame psíquico, já
que os mesmos estariam contemplados em outros i-
tens da avaliação psiquiátrica.

O item “inteligência”, em razão das diversas contro-


vérsias envolvidas em sua conceituação cria uma certa
dificuldade em enquadrá-la como uma função psíquica
específica. O ideal é que a inteligência seria mensura-
da indiretamente por meio da avaliação do pensamen-
to.

Pela mesma razão, neste artigo não classificamos os


delírios como alterações do juízo, mas sim do pensa-
mento, mais especificamente do seu conteúdo.

Adicionalmente, optamos por uma conceituação es-


pecífica dos itens “humor e afeto”, não se adotando a
noção bastante difundida de que o afeto corresponde-
ria aos aspectos emocionais subjetivamente identifi-
cados pelo examinador, enquanto humor estaria liga-
do ao colorido do discurso e outras expressões emo-
cionais objetivas.

Finalmente, optamos por não incluir o item “discurso”,


já que sua descrição tende a se sobrepor à das dimen-

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Atendimento Psicanalítico

sões do processo do pensar (curso, forma e conteú-


do).

Este artigo não visa esgotar o tema ou propor contro-


vérsias de natureza teórica. Dada a complexidade do
referencial teórico utilizado para embasar a descrição
do estado mental, compreensões distintas das acima
referentes à conceituação e semiologia das diversas
funções psíquicas e à própria estruturação do exame
são encontradas.

Por outro lado, não é possível que o exame psíquico


seja pura e simplesmente substituído por uma escala
ou formulário, utilizando critérios diagnósticos de al-
gum dos sistemas de classificação dos transtornos
mentais atualmente disponíveis.

Conclusão

Ainda que o exame psíquico não seja passível de uni-


formização, o presente trabalho corresponde a uma
tentativa de sistematização do mesmo, de modo a fa-
cilitar a descrição e a organização do exame do estado
mental. A presente proposta pode ser útil não apenas
para residentes de psiquiatria como também para es-
tudantes de medicina e médicos não-especialistas.

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Atendimento Psicanalítico

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2004; 26 (supl.3):54-6, 2004.

10.Serby M. Psychiatric resident conceptualizations


of mood and affect within the mental status ex-
amination. Am J Psychiatry 2003; 160: 1527-9.

11.Organização Mundial da Saúde. Classificação de


transtornos mentais e de comportamento da
CID 10. Porto Alegre: Artes Médicas; 1993.

12.American Psychiatric Association. Diagnostic


and statistical manual of mental disorders 4th
ed. Washington DC: American Psychiatric Press;
1994.

34
Atendimento Psicanalítico

Créditos

O exame do estado mental. É possível sistematizá-lo?

Marsal Sanches
Ana Paula Marques
Samanta Ortegosa
Andrea Freirias
Ricardo Uchida
Sérgio Tamai

Fonte:
Arquivos Médicos dos Hospitais e da Faculdade Ciên-
cias Medicas da Santa Casa São Paulo - 2005;
Sem menção de direitos autorais

Santa Casa de São Paulo

35
Atendimento Psicanalítico

36
Atendimento Psicanalítico

Modelo de anamnese, exame psíquico para avaliação


e planejamento em psicoterapia breve

Objetivo

Este trabalho surgiu da percepção da dificuldade que


alguns profissionais da área da saúde mental, nota-
damente os psicólogos, têm em colher e organizar da-
dos que auxiliem a reconstituição da história do paci-
ente por meio da elaboração da chamada técnica de
anamnese.

Com este trabalho tentamos auxiliar aquele que pou-


co ou nenhum contato tiveram na realização dessa
técnica, explicando seus vários itens e, na medida do
possível, contribuindo com esclarecimentos que sub-
sidiem a inclusão ou não de determinados fatos ou
naquele item constante do roteiro.

Como também foi observada a necessidade de mais


esclarecimentos práticos que permitissem ao profis-
sional em treinamento maior facilidade e autonomia
na elaboração escrita de seu trabalho, tentamos a-
crescentar, ao final de cada item, exemplos de reda-
ção.

37
Atendimento Psicanalítico

As bases deste trabalho estão firmadas nos aponta-


mentos das aulas ministradas pelo Dr. Anchyses Lopes
para o curso de Psicopatologia I, bem como na aposti-
la preparada pela Dra. Vera Lemgruber e em suas au-
las para o curso de Psicopatologia II, ambos da PUC-RJ,
e também no trabalho do Prof. Leme Lopes – “Técnica
do Diagnóstico”.

O modelo de anamnese aqui usado é o biomédico


clássico e esperamos que, efetivamente, torne mais
fácil a organização e a realização desta técnica por a-
queles que desejam obter, de seus pacientes, dados
que possibilitem um ponto de partida mais claro para
a reconstrução de suas histórias e complemento à
compreensão psicodinâmica.

38
Atendimento Psicanalítico

Anamnese

O termo vem do grego ana (remontar) e mnesis (me-


mória). Para nós, a anamnese é a evocação voluntária
do passado feita pelo paciente, sob a orientação do
médico ou do terapeuta.

O objetivo dessa técnica é o de organizar e sistemati-


zar os dados do paciente, de forma tal que seja permi-
tida a orientação de determinada ação terapêutica
com a respectiva avaliação de sua eficácia; o forneci-
mento de subsídios para previsão do prognóstico; o
auxílio no melhor atendimento ao paciente, pelo con-
fronto de registros em situações futuras.

Não podemos deixar de lado o fato de que essa técni-


ca advém de uma relação interpessoal, na qual ao te-
rapeuta cabe, na medida do possível, não cortar o flu-
xo da comunicação com seu paciente, assim como,
paralelamente, não deixar de ter sob sua mira aquilo
que deseja saber.

Para tanto, faz-se necessário que um esquema com-


pleto do que perguntar esteja sempre presente em
sua mente. Assim, diante de um paciente que se apre-
sente prolixo ou lacônico, estes não serão fatores de
empecilho para que se possa delinear sua história.

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Atendimento Psicanalítico

Ao entrevistador inexperiente cabe lembrar o cuidado


em não transformar coleta de dados em “interrogação
policial”. Um equilíbrio entre neutralidade, respeito e
solidariedade ao paciente deve ser mantido. O pacien-
te deve perceber o interesse do entrevistador e não o
seu envolvimento emocional com a sua situação.

Muitas vezes, não se consegue ter todo o material em


uma única entrevista, principalmente em instituições
em que o número de pacientes e a exigüidade do
tempo de atendimento tornam-se fatores preponde-
rantes.

É aconselhável que a entrevista seja conduzida de uma


maneira informal, descontraída, com termos acessí-
veis à compreensão do paciente, porém bem estrutu-
rada.

Em uma anamnese, acaba-se por fazer dois cortes na


vida do paciente: um longitudinal ou biográfico e ou-
tro transversal ou do momento.

No corte longitudinal, podemos localizar os registros


das histórias pessoal, familiar e patológica pregressas.

40
Atendimento Psicanalítico

No corte transversal, enquadraríamos a queixa princi-


pal do sujeito, a história da sua doença atual e o exa-
me psíquico que dele é feito.

O roteiro para sua execução pode sofrer algumas pou-


cas variações, em função daquilo a que se propõe, po-
rém a estrutura básica que aqui será colocada é aque-
la da anamnese médica clássica. Nele constam:

 A identificação do paciente;
 O motivo da consulta ou queixa que o traz ao
médico ou terapeuta;
 A história da doença atual;
 A história pessoal;
 A história familiar (estas duas poderão vir sob o
mesmo título – “História Pessoal e Familiar”);
 A história patológica pregressa;
 Um exame psíquico;
 Uma súmula psicopatológica;
 Uma hipótese de diagnóstico nosológico.

Além disso, é de nosso interesse que, após a anamne-


se propriamente dita, conste uma proposição de uma

41
Atendimento Psicanalítico

hipótese psicodinâmica, um planejamento para que se


conduza o caso e uma breve descrição da atuação te-
rapêutica junto ao paciente em questão.

Alguns cuidados terão que ser tomados ao se fazer


uma anamnese:

 As informações fornecidas pelo paciente devem


constar como de sua responsabilidade. Daí, na
redação, serem usados verbos como relatar, de-
clarar, informar, tendo o paciente como sujeito
deles.

Ex: Paciente informa ter medo de sair à rua so-


zinho... Outras expressões como: “conforme re-
lato do paciente...”, “de acordo com declara-
ções do paciente...” são usadas, sempre com o
intuito de aclarar que o que estiver sendo regis-
trado é baseado no que é informado pelo en-
trevistado.

 Sempre que forem usadas expressões do entre-


vistado, estas virão entre aspas.

 Depois de identificado o paciente, no item I da


anamnese, aparecerá apenas as suas primeiras
iniciais ao longo do registro.

42
Atendimento Psicanalítico

Na medida do possível, ao longo deste trabalho, ten-


taremos apontar outros cuidados.

Cabe lembrar que não é objetivo deste trabalho um


curso de psicopatologia, mas sim, a tentativa de uni-
formizar as informações colhidas nas entrevistas inici-
ais com os pacientes, para que delas se tire maior pro-
veito no auxílio terapêutico a tais pacientes.

A próxima etapa será o desenvolvimento da anamnese


propriamente dita.

I. IDENTIFICAÇÃO (ID)

Os dados são colocados na mesma linha, em seqüên-


cia (tipo procuração).

Dela constam os seguintes itens:

 Somente as iniciais do nome completo do paci-


ente, uma vez que, por extenso, constará o
mesmo do seu prontuário ou ficha de triagem
(ex: R.L.L.P.);
 Idade em anos redondos (ex. “35 anos”);
 Sexo;

43
Atendimento Psicanalítico

 Cor: branca, negra, parda, amarela;


 Nacionalidade;
 Grau de instrução: analfabeto, alfabetizado,
primeiro, segundo ou terceiro grau completo ou
incompleto;
 Profissão;
 Estado civil – não necessariamente a situação
legal, mas se o paciente se considera ou não ca-
sado, por exemplo, numa situação de coabita-
ção;
 Religião;
 Número do prontuário.

II. QUEIXA PRINCIPAL (QP)

Neste item, explicita-se o motivo pelo qual o paciente


recorre ao Serviço em busca de atendimento. Caso o
paciente traga várias queixas, registra-se aquela que
mais o incomoda e, preferencialmente, em não mais
de duas linhas.

Deve-se colocá-la entre aspas e nas palavras do paci-


ente.

44
Atendimento Psicanalítico

Ex: “Tô sem saber o que faço da minha vida. Acho que
é culpa do governo”.

III. HISTÓRIA DA DOENÇA ATUAL (HDA)

Aqui se trata apenas da doença psíquica do paciente.

Registram-se os sintomas mais significativos, a época


em que começou o distúrbio; como vem se apresen-
tando, sob que condições melhora ou piora.

Indaga-se se houve instalação súbita ou progressiva,


se algum fato desencadeou a doença ou episódios
semelhantes que pudessem ser correlacionados aos
sintomas atuais.

Alguma coisa fazia prever o surgimento da doença?

Houve alguma alteração nos interesses, hábitos, com-


portamento ou personalidade?

Quais as providências tomadas?

Averigua-se se já esteve em tratamento, como foi rea-


lizado e quais os resultados obtidos, se houve interna-
ções e suas causas, bem como o que sente atualmen-

45
Atendimento Psicanalítico

te. Pede-se ao paciente que explique, o mais claro e


detalhado possível, o que sente.

É importante lembrar que ao se fazer o relato escrito


deve haver uma cronologia dos eventos mórbidos (do
mais antigo para o mais recente).

Aqui também são anotados, se houver os medicamen-


tos tomados pelo paciente (suas doses, duração e u-
so). Caso não tome remédios, registra-se: “Não faz uso
de medicamentos”.

Neste item busca-se, com relação à doença psíquica,


“como” ela se manifesta, com que freqüência e inten-
sidade e quais os tratamentos tentados.

IV. HISTÓRIA PESSOAL (HP)

Coloca-se, de forma sucinta, separando-se cada tópico


em parágrafos, dados sobre a infância, educação, es-
colaridade, relacionamento com os pais, relaciona-
mento social, aprendizado sobre sexo..., enfim, tudo o
que se refere à vida pessoal do paciente. Não se titu-
lam esses tópicos, apenas relata-se a que se refere
cada um deles.

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Atendimento Psicanalítico

Apreciam-se as condições:

 De nascimento e desenvolvimento: gestação


(quadros infecciosos, traumatismos emocionais
ou físicos, prematuridade ou nascimento a ter-
mo), parto (normal, uso de fórceps, cesariana),
condições ao nascer. Se o paciente foi uma cri-
ança precoce ou lenta, dentição, deambulação
(ato de andar ou caminhar), como foi o desen-
volvimento da linguagem e a excreta (urina e
fezes).
Ex: “Paciente declara ter nascido de gestação a
termo, parto normal...”.

 Sintomas neuróticos da infância: medos, terror


noturno, sonambulismo, sonilóquio (falar dor-
mindo), tartamudez (gagueira), enurese notur-
na, condutas impulsivas (agressão ou fuga),
chupar o dedo ou chupeta (até que idade), ser
uma criança modelo, crises de nervosismo, ti-
ques, roer unhas.

Ex: “A.F. informa ter tido muitos pesadelos e in-


sônia, além de ser uma criança isolada até os 9
anos...”.

47
Atendimento Psicanalítico

 Escolaridade: anotar começo e evolução, ren-


dimento escolar, especiais aptidões e dificulda-
des de aprendizagem, relações com professores
e colegas, jogos mais comuns ou preferidos, di-
vertimentos, formação de grupos, amizades,
popularidade, interesse por esportes, escolha
da profissão.

Ex: “Afirma ter ido à escola a partir dos 10 anos,


já que não havia escolas próximas à sua casa...”
ou “Afirma ter freqüentado regularmente a es-
cola, sempre com idade e aprendizado compatí-
veis...”.

 Lembrança significativa: perguntar ao paciente


qual sua lembrança antiga mais significativa que
consegue recordar. O objetivo é observar a ca-
pacidade de estabelecer vínculos, além do auxí-
lio à compreensão da ligação passado-presente.

Ex: “Foi quando minha mãe estava limpando


uma janela, bateu com a cabeça e caiu no chão.
Era tanto sangue que pensei que ela estava
morta. Nessa época, eu tinha 3 anos”.

 Puberdade: época de aparição dos primeiros si-


nais; nas mulheres, a história menstrual (me-

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Atendimento Psicanalítico

narca: regularidade, duração e quantidade dos


catamênios; cólicas e cefaléias; alterações psí-
quicas, como nervosismo, emotividade, irritabi-
lidade, depressão; menopausa, última menstru-
ação).

Ex: “Paciente relata que os primeiros sinais da


puberdade ocorreram aos onze anos e que ob-
teve informações sobre menstruação...”.

 História sexual: aqui se registram as primeiras


informações que o paciente obteve e de quem;
as primeiras experiências masturbatórias; início
da atividade sexual; jogos sexuais; atitude ante
o sexo oposto; intimidades, namoros; experiên-
cias sexuais extraconjugais; homossexualismo;
separações e recasamentos; desvios sexuais.

Ex: “Teve sua primeira experiência sexual aos 18


anos com seu namorado, mantendo, desde en-
tão, relacionamentos heterossexuais satisfató-
rios com outros namorados...”.

 Trabalho: registrar quando o paciente começou


a trabalhar, diferentes empregos e funções de-
sempenhadas (sempre em ordem cronológica),
regularidade nos empregos e motivos que leva-

49
Atendimento Psicanalítico

ram o paciente a sair de algum deles, satisfação


no trabalho, ambições e circunstâncias econô-
micas atuais, aposentadoria.

Ex: “Conta que aos 20 anos obteve seu primeiro


trabalho como contador numa empresa trans-
portadora...”.

 Hábitos: uso do álcool, fumo ou quaisquer ou-


tras drogas. Caso não faça uso, assinalar: “Não
faz uso de álcool, fumo ou quaisquer outras
drogas”.

V. HISTÓRIA FAMILIAR (HF)

O item deve abrigar as relações familiares (começa-


se pela filiação do paciente).

 Pais: idade; saúde; se mortos; causa e data do


falecimento; ocupação; personalidade; separa-
ções e novos casamentos, se houver, de cada
um deles. Verificar se há caso de doença mental
em um deles ou ambos.

Ex: “A.F. é o quinto filho de uma prole de dez.


Seu pai, J.C., falecido, em 1983, aos 70 anos, de
infarto...”.

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Atendimento Psicanalítico

 Irmãos: idade; condições maritais; ocupação;


personalidade. Indagar se há caso de doença
mental. Apenas referir-se por iniciais.

Ex: “Seus irmãos são: A.M., 34 anos, solteiro,


desempregado, descrito como violento, não se
dá com ele”.

 Cônjuge: idade, ocupação e personalidade;


compatibilidade; vida sexual; frigidez ou impo-
tência; medidas anticoncepcionais.

Ex: A.F. coabita maritalmente com G., 39 anos,


do lar, descrita como carinhosa e “boazinha”.

 Filhos: número; idades; saúde; personalidade.


Também referir-se apenas pelas iniciais.

Ex: “Tem dois filhos: J., de 8 anos, cursando a 2ª


série do 1º grau, apontado como “carinhoso,
mas cobra demais de mim e da minha mulher”.

 Lar: neste quesito, descrevem-se, em poucas


palavras, a atmosfera familiar, os acontecimen-
tos mais importantes durante os primeiros anos
e aqueles que, no momento, estão mobilizando

51
Atendimento Psicanalítico

toda a família; as relações dos parentes entre si


e destes com o paciente.

Ex: “Quanto ao seu lar, diz não se adaptar muito


bem à filha mais velha, que é muito desobedien-
te...” ou “Não gosta do ambiente familiar, pois
nele há muitas pessoas doentes...”.

Nunca é demais lembrar que se evite o estilo roman-


ceado e opiniões pessoais por parte de quem faz a a-
namnese.

Frases curtas e objetivas, contendo dados essenciais,


facilitarão a apreensão do caso.

A utilização das palavras do paciente será produtiva na


medida em que se queira explicitar, de maneira obje-
tiva e clara, alguma situação ou característica relevan-
te.

VI. HISTÓRIA PATOLÓGICA PREGRESSA (HPP)

Nesta etapa, investigam-se os antecedentes mórbidos


do paciente. Devem constar somente as doenças físi-
cas.

52
Atendimento Psicanalítico

Viroses comuns da infância, desmaios, convulsões e


sua freqüência, doenças, operações, acidentes, trau-
matismos (sintomas, datas, duração), internações e
tratamentos.

VII. EXAME PSÍQUICO (EP)

Até aqui, tivemos um relato feito pelo paciente e, em


alguns casos, outros dados colhidos por familiares ou
pessoa que o acompanha à entrevista. Nosso trabalho
foi o de registrar e organizar tais informações.

Neste ponto da anamnese, cessa esse relato do paci-


ente e passa-se a ter o registro da observação do en-
trevistador ou terapeuta, no momento da(s) entrevis-
ta(s).

No exame psíquico, as anotações deverão ser feitas de


forma que alguém de fora da área “Psicanálise” possa
compreendê-las.

A sua organização deve obedecer a determinados


quesitos que, obrigatoriamente, serão respondidos
pelo entrevistador.

Nunca é demais lembrar que tudo o que não é obser-


vado no momento da entrevista ficará na HDA ou HPP.

53
Atendimento Psicanalítico

Exemplo: se o paciente diz ter insônia, isso constará da


HDA.

Os tópicos seguintes apontam para os diferentes as-


pectos da vida psíquica do indivíduo e devem ser in-
vestigados. A coleta desses dados, bem como a de to-
dos os outros, poderá ser feita na ordem em que me-
lhor parecer ao entrevistador. Porém, no texto final,
será mantida uma ordem preestabelecida, com a fina-
lidade de facilitar o acesso ao material.

Para melhor organização, usa-se a forma de parágrafo


para cada um dos assuntos, sem, porém titulá-los.

No exame psíquico, não se usam termos técnicos; o


que se espera que seja registrado aqui são aspectos
objetivos que justifiquem os termos técnicos que se-
rão empregados posteriormente na súmula.

Ex: “Paciente apresenta-se inquieto, demonstrando


desassossego, mas podendo ainda controlar sua agi-
tação.” Isso corresponde ao que se chama de “hiper-
cinesia moderada”. Esse termo não será aqui utilizado.
Ele aparecerá somente na súmula quando se estiver
apontando o termo técnico indicativo da psicomotrici-
dade do paciente.

54
Atendimento Psicanalítico

Em seguida, apontamos os diversos aspectos que in-


tegram o exame psíquico.

1. Apresentação

Refere-se à impressão geral que o paciente causa no


entrevistador. Compreende:

a. Aparência: tipo constitucional, condições de hi-


giene pessoal, adequação do vestuário, cuida-
dos pessoais. Não confundir com a classe social
a que pertence o indivíduo.

Ex: “Paciente é alto, atlético e apresenta-se para


a entrevista em boas condições de higiene pes-
soal, com vestes adequadas, porém sempre com
a camisa bem aberta...”.

b. Atividade psicomotora e comportamento:


 Mímica – atitudes e movimentos expres-
sivos da fisionomia (triste, alegre, ansio-
so, temeroso, desconfiado, esquivo, dra-
mático, medroso, etc.);
 Gesticulação (ausência ou exagero);
 Motilidade – toda a capacidade motora
(inquieto, imóvel, incapacidade de man-
ter-se em um determinado local);

55
Atendimento Psicanalítico

 Deambulação – modo de caminhar (ten-


so, elástico, largado, amaneirado, encur-
vado, etc.).

Ex: “Sua mímica é ansiosa, torce as mãos ao fa-


lar, levando-as à boca para roer as unhas...” ou
“Seu gestual é discreto...”.

c. Atitude para com o entrevistador: cooperativo,


submisso, arrogante, desconfiado, apático, su-
perior, irritado, indiferente, hostil, bem-
humorado, etc.

Ex: “Mostra-se cooperativo, mas irrita-se ao fa-


lar de sua medicação...”.

d. Atividade verbal: normalmente responsivo às


deixas do entrevistador, não-espontâneo (tipo
pergunta e resposta), fala muito, exaltado ou
pouco e taciturno.

Ex: “É normalmente responsivo às deixas do en-


trevistador, mas torna-se hostil quando algo é
anotado em sua ficha...”.

56
Atendimento Psicanalítico

2. Consciência

Não se trata de consciência como capacidade de ajui-


zar valores morais, mas, sim, num sentido amplo, uma
referência a toda atividade psíquica, ou seja, é a capa-
cidade do indivíduo de dar conta do que está ocorren-
do dentro e fora de si mesmo.

Consciência, aqui, será a indicação do processo psíqui-


co complexo, que é capaz de integrar acontecimentos
de um determinado momento numa atividade de co-
ordenação e síntese. Na prática, a consciência se reve-
la na sustentação, coerência e pertinência das respos-
tas dadas ao entrevistador.

A clareza dessa consciência é traduzida pela lucidez.


Quando o paciente está desperto, recebendo e devol-
vendo informações do meio ambiente, ele está lúcido,
não importando, para esta classificação, o teor de sua
integração com o meio.

Os distúrbios da consciência geralmente indicam dano


cerebral orgânico. As informações sensoriais chegam
amortecidas ou nem chegam à consciência.

Os estados de rebaixamento da consciência podem


ser: rebaixamento ou embotamento, turvação ou ob-

57
Atendimento Psicanalítico

nubilação (que é um rebaixamento geral da capacida-


de de perceber o ambiente) e estreitamento (perda da
percepção do todo com uma concentração em um ú-
nico objetivo paralelo à realidade (ex. estados de hip-
notismo e sonambulismo).

Cabe ao entrevistador avaliar o grau de alteração da


consciência, observando se o paciente faz esforço para
manter o diálogo e levar a entrevista a termo, se a
confusão mental interfere na exatidão das respostas,
que se fazem com lentidão, ou se o paciente chega
mesmo a cochilar, adormecer no curso da entrevista.

O paciente que exibe estado alterado da consciência,


com freqüência mostra algum prejuízo também de
orientação, embora o contrário não seja verdadeiro.

Exemplo de como descrever paciente lúcido nas en-


trevistas: “Paciente apresenta-se desperto durante as
entrevistas, sendo capaz de trocar informações com o
meio ambiente...”.

3. Orientação

Pode-se definir orientação como um complexo de fun-


ções psíquicas, pelo qual tomamos consciência da si-

58
Atendimento Psicanalítico

tuação real em que nos encontramos a cada momento


de nossa vida.

A orientação pode ser inferida da avaliação do estado


de consciência e encontra-se intimamente ligada às
noções de tempo e de espaço.

Em geral, o primeiro sentido de orientação que se


perde é o do tempo, depois o do espaço, que envolve
deslocamento e localização e, num estado mais grave,
a desorientação do próprio eu (identidade e corpo).

A orientação divide-se em:

a. Autopsíquica: paciente reconhece dados de i-


dentificação pessoal e sabe quem é;

b. Alopsíquica: paciente reconhece os dados fora


do eu; no ambiente:
o Temporal: dia, mês, ano em que está; em
que parte do dia se localiza (manhã, tar-
de, noite);
o Espacial: a espécie de lugar em que se
encontra, para que serve; a cidade onde
está; como chegou ao consultório;
o Somatopsíquica: alterações do esquema
corporal, como, por exemplo, os mem-

59
Atendimento Psicanalítico

bros fantasmas dos amputados, negação


de uma paralisia, a incapacidade de loca-
lizar o próprio nariz ou olhos...

Ex: “Sabe fornecer dados de identificação pessoal, in-


formar onde se encontra, dia, mês e ano em que es-
tá...”.

4. Atenção

A atenção é um processo psíquico que concentra a


atividade mental sobre determinado ponto, traduzin-
do um esforço mental. É resultado de uma atividade
deliberada e consciente do indivíduo – foco da consci-
ência – a fim de inserir profundamente nossa ativida-
de no real.

Essa energia concentrada sobre esse foco está inti-


mamente ligada ao aspecto da afetividade. Destaca-se
aí a vigilância (consciência sem foco, difusa, com aten-
ção em tudo ao redor) e a tenacidade (capacidade de
se concentrar num foco). O paciente não pode ter es-
sas duas funções concomitantemente exaltadas (o pa-
ciente maníaco, por exemplo, é hipervigil e hipote-
naz), porém, pode tê-las rebaixadas, como no caso do
sujeito autista, esclerosado ou esquizofrênico catatô-
nico.

60
Atendimento Psicanalítico

Investiga-se assim:

 atenção normal: ou euprossexia; normovigilân-


cia;
 hipervigilância: ocorre num exagero, na facili-
dade com que a atenção é atraída pelos aconte-
cimentos externos;
 hipovigilância: é um enfraquecimento significa-
tivo da atenção, onde é difícil obter a atenção
do paciente;
 hipertenacidade: a atenção se adere em dema-
sia a algum estímulo ou tópico; concentração
num estímulo;
 hipotenacidade: a atenção se afasta com dema-
siada rapidez do estímulo ou tópico.

Ex: “Concentra-se intensamente no entrevistador e no


que lhe é dito, abstendo-se completamente do que se
passa à sua volta...”.

5. Memória

“É o elo temporal da vida psíquica (passado, pre-


sente, futuro)”. A memória permite a integração de
cada momento. Há cinco dimensões principais do seu
funcionamento:

61
Atendimento Psicanalítico

 percepção (maneira como o sujeito percebe os


fatos e atitudes em seu cotidiano e os reconhe-
ce psiquicamente),
 fixação (capacidade de gravar imagens na me-
mória),
 conservação (refere-se tudo que o sujeito guar-
da para o resto da vida; a memória aparece co-
mo um todo e é um processo tipicamente afeti-
vo),
 evocação (atualização dos dados fixados – nem
tudo pode ser evocado). Cabe ressaltar aqui que
nada é fixado e evocado de maneira anárquica:
há dependência das associações que estabele-
cem entre si (semelhança, contraste, oposição,
contigüidade e causalidade), e
 reconhecimento (reconhecimento do anagrama
(imagem recordada) como tal – é o momento
em que fica mais difícil detectar onde e quando
determinado fato aconteceu no tempo e no es-
paço).

A função mnésica pode ser avaliada pela rapidez, pre-


cisão e cronologia das informações que o próprio pa-
ciente dá, assim como a observação da capacidade de
fixação.

62
Atendimento Psicanalítico

O exame da memória passada (retrógrada) faz-se com


perguntas sobre o passado do paciente, data de acon-
tecimentos importantes. Contradições nas informa-
ções podem indicar dificuldades.

Com relação à memória recente (anterógrada), podem


ser feitas perguntas rápidas e objetivas, como “O que
você fez hoje?” ou dizer um número de 4 ou 5 alga-
rismos ou uma série de objetos e pedir para que o pa-
ciente repita após alguns minutos, se houver necessi-
dade.

Para o exame da memória de retenção pode-se pedir


ao paciente que repita algarismos na ordem direta e
depois inversa.

A maior parte das alterações da memória é provenien-


te de síndromes orgânicas (amnésia, hiper ou hipom-
nésia).

Ex: “A.F. é capaz de fornecer dados com cronologia


correta; consegue lembrar de informações recentes,
como a próxima consulta com seu psiquiatra...”.

63
Atendimento Psicanalítico

6. Inteligência

O que se faz nessa avaliação da inteligência não é o


que chamamos “uma avaliação fina”, realizada por
meio de testes. É mais para se constatar se o paciente
está dentro do chamado padrão de normalidade. Inte-
ressa a autonomia que o paciente tenha, a sua capaci-
dade laborativa.

Quando houver suspeita de déficit ou perda intelecti-


va, as informações podem ser obtidas pedindo-se-lhe
que explique um trabalho que realize alguma situação
do tipo: “Se tiver que lavar uma escada, começará por
onde?”, que defina algumas palavras (umas mais con-
cretas, como “igreja”, outras mais abstratas, como
“esperança”), que estabeleça algumas semelhanças,
como, por exemplo, “o que é mais pesado, um quilo
de algodão ou de chumbo?”.

A consciência, a inteligência e a memória estão aloca-


das entre as funções psíquicas de base.

Ex: “Durante as entrevistas percebe-se que o paciente


tem boa capacidade de compreensão, estabelecendo
relações e respostas adequadas, apresentando insi-
ghts...”.

64
Atendimento Psicanalítico

Um déficit intelectivo (oligofrenia) é diferente de uma


perda intelectiva, onde após o desenvolvimento psí-
quico ter atingido a plenitude ocorre uma baixa, indi-
cando síndromes organocerebrais crônicas.

Uma alteração de consciência pode indicar um quadro


organocerebral agudo. Uma alteração de inteligência e
memória pode indicar uma síndrome organocerebral
crônica.

7. Sensopercepção

É o atributo psíquico, no qual o indivíduo reflete sub-


jetivamente a realidade objetiva. Fundamenta-se na
capacidade de perceber e sentir.

Neste ponto, investigam-se os transtornos do eu sen-


sorialmente projetados, simultâneos à percepção ver-
dadeira, ou seja, experiências ilusórias ou alucinató-
rias que são acompanhadas de profundas alterações
do pensamento.

Ilusão é a percepção deformada da realidade, de um


objeto real e presente, uma interpretação errônea do
que existe.

65
Atendimento Psicanalítico

Alucinação é uma falsa percepção, que consiste no


que se poderia dizer uma “percepção sem objeto”,
aceita por quem faz a experiência como uma imagem
de uma percepção normal, dadas as suas característi-
cas de corporeidade, vivacidade, nitidez sensorial, ob-
jetividade e projeção no espaço externo.

São significativas as alucinações verdadeiras (aquelas


que tendem a todas as características da percepção
em estado de lucidez), as pseudo-alucinações (mais
representação do que realmente percepção; os rela-
tos são vagos), as alucinações com diálogo em terceira
pessoa, fenômenos de repetição e eco do pensamen-
to, sonorização, ouvir vozes.

As alucinações podem ser auditivas, auditivo-verbais


(mais comuns), visuais, olfativas, gustativas, cenestési-
cas (corpórea, sensibilidade visceral), cinestésicas
(movimento).

As perguntas que esclareçam essa análise poderão ser


feitas à medida que a oportunidade apareça. Porém,
não se pode deixar de investigar completamente esse
item.

Algumas perguntas são sugeridas:

66
Atendimento Psicanalítico

 “Acontece de você olhar para uma pessoa e


achar que é outra?”;
 “Já teve a impressão de ver pessoas onde
apenas existam sombras ou uma disposição
especial de objetos?;
 “Você se engana quanto ao tamanho dos ob-
jetos ou pessoas?”;
 “Sente zumbidos nos ouvidos?”;
 “Ouve vozes?”; “O que dizem?”;
 “Dirigem-se diretamente a você ou se refe-
rem a você como ele ou ela?”;
 “Falam mal de você?”;
 “Xingam?”;
 “De quê?”;
 “Tem tido visões?”;
 “Como são?”;
 “Vê pequenos animais correndo na parede
ou fios”;
 “Sente pequenos animais correndo pelo cor-
po?”; “Tem sentido cheiros estranhos?”.

67
Atendimento Psicanalítico

Ex: Relata sentir um vazio na cabeça, mas que “é bom,


pois não ligo pros problemas da vida” e “ouvir uma voz
que lhe diz ser um deus...”.

Caso o paciente não apresente nenhuma situação dig-


na de nota neste item, pode-se registrar: “Não apre-
senta experiências ilusórias ou alucinatórias”.

8. Pensamento

Por meio do pensamento ou do raciocínio, o ser hu-


mano é capaz de manifestar suas possibilidades de
adaptar-se ao meio. É por ele que se elaboram concei-
tos, articulam-se juízos, constrói-se, compara-se, solu-
cionam-se problemas, elaboram-se conhecimentos
adquiridos, idéias, transforma-se e cria-se.

Este item da anamnese é destinado à investigação do


curso, forma e conteúdo do pensamento. Aqui se faz
uma análise do discurso do paciente.

Curso: Trata-se da velocidade com que o pensamento


é expresso e pode ir do acelerado ao retardado, pas-
sando por variações.

 Fuga de idéias: paciente muda de assunto a to-


do instante, sem concluí-los ou dar continuida-

68
Atendimento Psicanalítico

de, numa aceleração patológica do fluxo do


pensamento; é a forma extrema do taquipsi-
quismo (comum na mania).
 Interceptação ou bloqueio: há uma interrupção
brusca do que vinha falando e o paciente pode
retomar o assunto como se não o tivesse inter-
rompido (comum no esquizofrenia).
 Prolixidade: é um discurso detalhista, cheio de
rodeios e repetições, com uma certa circunstan-
cialidade; há introdução de temas e comentá-
rios não-pertinentes ao que se está falando.
 Descarrilamento: há uma mudança súbita do
que se está falando.
 Perseveração: há uma repetição dos mesmos
conteúdos de pensamento (comum nas demên-
cias).

Forma: Na verdade, é um conceito difícil de se expli-


car. Porém, pode-se dizer que a forma é a maneira
como o conteúdo do pensamento é expresso. O pen-
samento abriga um encadeamento coerente de idéias
ligadas a uma carga afetiva, que é transmitida pela
comunicação. Há um caráter conceitual.

69
Atendimento Psicanalítico

As desordens da forma podem ocorrer por:

 Perdas (orgânicas)

 Deficiência (oligofrenia) qualitativas ou quanti-


tativas de conceitos ou por perda da intenciona-
lidade (fusão ou condensação, desagregação ou
escape do pensamento, pensamento imposto
ou fabricado), onde pode se compreender as
palavras que são ditas, mas o conjunto é incom-
preensível, cessando-se os nexos lógicos, co-
mum na esquizofrenia.

É importante lembrar que a velocidade do pensamen-


to (curso) pode ser normal, porém a forma pode estar
alterada por conter idéias frouxas com o fluxo que-
brado.

Ex: “Paciente apresenta um discurso com curso regu-


lar, porém não mantém uma coerência entre as idéias,
que se apresentam frouxas e desconexas”.

Conteúdo: As perturbações no conteúdo do pensa-


mento estão associadas a determinadas alterações,
como as obsessões, hipocondrias, fobias e especial-
mente os delírios.

70
Atendimento Psicanalítico

Para se classificar uma idéia de delirante tem-se que


levar em conta alguns aspectos:

 A incorrigibilidade (não há como modificar a i-


déia delirante por meio de correções).
 A ininfluenciabilidade (a vivência é muito inten-
sa no sujeito, chegando a ser mais fácil o deli-
rante influenciar a pessoa dita normal).
 A incompreensibilidade (não pode ser explicada
logicamente).

O delírio é uma convicção íntima e inemovível, contra


a qual não há argumento.

Os delírios podem ser primários (núcleo da patologia)


ou secundários (são conseqüentes a uma situação so-
cial, a uma manifestação afetiva ou a uma disfunção
cerebral).

Uma distinção faz-se importante:

a. Delirium: rebaixamento da consciência (delirium


tremens; delirium febril);

b. Delírio: alteração do pensamento (alteração do


juízo);

71
Atendimento Psicanalítico

1. Idéia delirante: também chamada de delí-


rio verdadeiro; é primário e ocorre com
lucidez de consciência; não é conseqüên-
cia de qualquer outro fenômeno. É um
conjunto de juízos falsos, que não se sabe
como eclodiu.
2. Idéia deliróide: é secundária a uma per-
turbação do humor ou a uma situação a-
fetiva traumática, existencial grave ou uso
de droga. Há uma compreensão dos me-
canismos que a originaram.

As idéias delirantes podem ser agrupadas em temas


típicos de:
 Expansão do eu: (grandeza, ciúme, reivindica-
ção, genealógico, místico, de missão salvadora,
deificação, erótico, de ciúmes, invenção ou re-
forma, idéias fantásticas, excessiva saúde, capa-
cidade física, beleza...).
 Retração do eu: (prejuízo, auto-referência, per-
seguição, influência, possessão, humildades,
experiências apocalípticas).
 Negação do eu: (hipocondríaco, negação e
transformação corporal, auto-acusação, culpa,
ruína, niilismo, tendência ao suicídio).

72
Atendimento Psicanalítico

O exame do conteúdo do pensamento poderá ser fei-


to por meio da conversa, com a inclusão hábil por par-
te do entrevistador de algumas questões que condu-
zam à avaliação.

Pode-se perguntar se o paciente tem pensamentos


dos quais não consegue se livrar (explicar quais), se
acha que quando está andando na rua as pessoas o
observam ou fazem comentários a seu respeito (expli-
citar); se os vizinhos implicam; se existe alguém que
lhe queira fazer mal, alguma organização secreta; se
acha que envenenam sua comida; se possui alguma
missão especial na Terra (qual), se é forte e poderoso,
rico; se freqüenta macumba; se sofre de “encosto”; se
espíritos lhe falam; se há alguma comunicação com
Deus e como isso se processa. Aqui vale apontar para
o fato cultural-religioso.

Dependendo da religião que professa (espiritismo,


umbanda, candomblé), algumas dessas situações po-
dem ser observadas, sem, no entanto, a priori, faze-
rem parte de patologias.

Ex: “A.F. muda de assunto a todo instante e subita-


mente. Reconhece que já ficou “bem ruim, mas nunca
fiz sadomasoquismo, porque isso é coisa de judeu de

73
Atendimento Psicanalítico

olhos azuis. Mas, graças a Deus, nunca pisei numa


maçonaria. Não influencio ninguém, mas sou influen-
ciado. Sou o deus A., defensor dos fracos e oprimi-
dos...”.

9. Linguagem

A comunicação é o meio que permite ao indivíduo


transmitir e compreender mensagens. A linguagem é a
forma mais importante de expressão da comunicação.

A linguagem verbal é a forma mais comum de comuni-


cação entre as pessoas.

A linguagem é considerada como um processo mental


predominantemente consciente, significativo, além de
ser orientada para o social. É um processo dinâmico
que se inicia na percepção e termina na palavra falada
ou escrita e, por isso, se modifica constantemente.

Neste tópico, o que irá nos interessar é o exame da


linguagem falada e escrita. Sua normalidade e altera-
ções estão intimamente relacionadas ao estudo do
pensamento, pois é pela linguagem que ele passa ao
exterior. Abaixo, enumeramos alguns tipos mais co-
muns de patologias que, não custa lembrar, poderá

74
Atendimento Psicanalítico

ser apenas descritos no exame psíquico e não deno-


minados tecnicamente.

 Disartrias (má articulação de palavras),


 Afasias (perturbações por danos cerebrais que
implicam na dificuldade ou incapacidade de
compreender e utilizar os símbolos verbais),
 Verbigeração (repetição incessante de palavras
ou frases),
 Parafasia (emprego inapropriado de palavras
com sentidos parecidos),
 Neologismo (criação de palavras novas),
 Jargonofasia (“salada de palavras”),
 Mussitação (voz murmurada em tom baixo),
 Logorréia (fluxo incessante e incoercível de pa-
lavras),
 Para-respostas (responde a uma indagação com
algo que não tem nada a ver com o que foi per-
guntado), etc.

Ex: “Expressa-se por meio de mensagens claras e bem


articuladas em linguagem correta...”.

75
Atendimento Psicanalítico

10. Consciência do Eu

Este item refere-se ao fato de o indivíduo ter a consci-


ência dos próprios atos psíquicos, a percepção do seu
eu, como o sujeito apreende a sua personalidade.
As características formais do eu são:

 Sentimento de unidade: eu sou uno no momen-


to;
 Sentimento de atividade: consciência da própria
ação;
 Consciência da identidade: sempre sou o mes-
mo ao longo do tempo;
 Cisão sujeito-objeto: consciência do eu em opo-
sição ao exterior e aos outros.

O terapeuta orientará sua entrevista no sentido de


saber se o paciente acha que seus pensamentos ou
atos são controlados por alguém ou forças exteriores,
se sente hipnotizado ou enfeitiçado, se alguém lhe
rouba os pensamentos, se existe eletricidade ou outra
força que o influencie, se pode transformar-se em pe-
dra ou algo estático, se sente que não existe ou se é
capaz de adivinhar e influenciar os pensamentos dos
outros.

76
Atendimento Psicanalítico

11. Afetividade

A afetividade revela a sensibilidade intensa da pessoa


frente à satisfação ou frustração das suas necessida-
des.

Interessa-nos a tonalidade afetiva com que alguém se


relaciona as ligações afetivas que o paciente estabele-
ce com a família e com o mundo, perguntando-se so-
bre: filhos, pai, mãe, irmãos, marido ou esposa, ami-
gos, interesse por fatos atuais.

Pesquisa-se estados de euforia, tristeza, irritabilidade,


angústia, ambivalência e labilidade afetivas, inconti-
nência emocional, etc. Observa-se, ainda, de maneira
geral, o comportamento do paciente.

Ex: É sensível frente à frustração ou satisfação, apre-


sentando ligações afetivas fortes com a família e ami-
gos...”.

12. Humor

O humor é mais superficial e variável do que a afetivi-


dade. É o que se pode observar com mais facilidade
numa entrevista; é uma emoção difusa e prolongada

77
Atendimento Psicanalítico

que matiza a percepção que a pessoa tem do mundo.


É como o paciente diz sentir-se:

 Deprimido,
 Angustiado,
 Irritável,
 Ansioso,
 Apavorado,
 Zangado,
 Expansivo,
 Eufórico,
 Culpado,
 Atônito,
 Fútil,
 Autodepreciativo.

Os tipos de humor dividem-se em:

 Normotímico: normal;
 Hipertímico: exaltado;
 Hipotímico: baixa de humor;
 Distímico: quebra súbita da tonalidade do hu-
mor durante a entrevista;

No exame psíquico, descreve-se o humor do paciente


sem, no entanto, colocá-lo sob um título técnico. Ex:

78
Atendimento Psicanalítico

“O paciente apresenta uma quebra súbita de humor,


passando de um estado de exaltação a um de inibi-
ção...”.

13. Psicomotricidade

Todo movimento humano objetiva satisfação de uma


necessidade consciente ou inconsciente.

A psicomotricidade é observada no decorrer da entre-


vista e se evidencia geralmente de forma espontânea.

Averigua-se se está normal, diminuída, inibida, agitada


ou exaltada, se o paciente apresenta maneirismos,
estereotipias posturais, automatismos, flexibilidade
cérea, ecopraxia ou qualquer outra alteração.

Ex: “Apresenta tique, estalando os dedos da mão di-


reita...”.

14. Vontade

Está relacionada aos atos voluntários. É uma disposi-


ção (energia) interior que tem por princípio alcançar
um objetivo consciente e determinado.

79
Atendimento Psicanalítico

O indivíduo pode:

 Se apresentar normobúlico (vontade normal)


 Ter a vontade rebaixada (hipobúlico),
 Ter uma exaltação patológica (hiperbúlico),
 Responder a solicitações repetidas e exageradas
(obediência automática),
 Concordar com tudo o que é dito, mesmo que
sejam juízos contraditórios (sugestionabilidade
patológica),
 Realizar atos contra a sua vontade (compulsão),
 Duvidar exageradamente do que quer (dúvida
patológica),
 Opor-se de forma passiva ou ativa, às solicita-
ções (negativismo), etc.

Ex: “Apresenta oscilações entre momentos de grande


disposição interna para conseguir algo e momentos
em que permanece sem qualquer tipo de ação...”.

15. Pragmatismo

Aqui, analisa-se se o paciente exerce atividades práti-


cas como comer, cuidar de sua aparência, dormir, ter
autopreservação, trabalhar, conseguir realizar o que
se propõe e adequar-se à vida.

80
Atendimento Psicanalítico

Ex: “Exerce suas tarefas diárias e consegue realizar


aquilo a que se propõe...”.

16. Consciência da doença atual

Verifica-se o grau de consciência e compreensão que o


paciente tem de estar enfermo, assim como a sua per-
cepção de que precisa ou não de um tratamento.

Observa-se que considerações os pacientes fazem a


respeito do seu próprio estado; se há perda do juízo
ou um embotamento.

Ex: “Compreende a necessidade de tratamento e con-


sidera que a terapia pode ajudá-lo a encontrar melho-
res soluções para seus conflitos...”.

81
Atendimento Psicanalítico

VIII. SÚMULA PSICOPATOLÓGICA

Uma vez realizado e redigido o exame psíquico, deve-


rão constar na súmula os termos técnicos que expres-
sam a normalidade ou as patologias observadas no
paciente. Trata-se de um resumo técnico de tudo o
que foi observado na entrevista.

Aconselha-se seguir-se uma determinada ordem, as-


sim como na redação do exame psíquico. A disposição
da súmula deverá constar de um único parágrafo, com
cada item avaliado limitado por ponto.

Costuma-se não usar a palavra “normal” para qualifi-


car qualquer um dos itens, evitando-se, assim, possí-
veis distorções com relação ao conceito de normalida-
de.

Com o objetivo de melhor esclarecer, apresentamos


um exemplo de súmula de um paciente que apresen-
tava uma hipótese diagnóstica de “quadro maníaco
com sintomas psicóticos”.

82
Atendimento Psicanalítico

“Lúcido. Vestido adequadamente e com boas


condições de higiene pessoal. Orientado auto e
alopsiquicamente. Cooperativo. Normovigil. Hi-
pertenaz. Memórias retrógrada e anterógrada
prejudicadas. Inteligência mantida. Sensoper-
cepção alterada com alucinação auditivo-
verbal. Pensamento sem alteração de forma,
porém apresentando alteração de curso (fuga
de idéias e descarrilamento) por ocasião da a-
gudização do quadro e alteração de conteúdo
(idéias deliróides de perseguição, grandeza e
onipotência). Linguagem apresentando alguns
neologismos. Consciência do eu alterada na fa-
se aguda do quadro. Nexos afetivos mantidos.
Hipertimia. Psicomotricidade alterada, apresen-
tando tiques. Hiperbúlico. Pragmatismo parci-
almente comprometido. Com consciência da
doença atual”.

Com a súmula, é possível a outro profissional da área,


em poucos minutos, inteirar-se da situação do pacien-
te.

83
Atendimento Psicanalítico

IX. HIPÓTESE DIAGNÓSTICA

“Diagnóstico” é uma palavra de origem grega e signifi-


ca “reconhecimento”. No ato médico, refere-se ao re-
conhecimento de uma enfermidade por meio de seus
sinais e sintomas. Trata-se aqui de diagnóstico nosoló-
gico a ser seguido em conformidade com a CID-10.

De acordo com o que pode ser observado durante a


entrevista, propõe-se uma hipótese de diagnóstico,
que poderá ser esclarecida, reforçada ou contestada
por outro profissional ou exames complementares, se
houver necessidade. Não é demais lembrar que pode-
rá haver um diagnóstico principal e outro(s) secundá-
rio(s), em comorbidade.

Ex: F 30.2 – Mania com sintomas psicóticos.

X. HIPÓTESE PSICODINÂMICA

A hipótese psicodinâmica e a atuação terapêutica de-


verão constar em outra folha à parte. Um entendi-
mento psicodinâmico do paciente auxilia o terapeuta
em seu esforço para evitar erros técnicos. Há que se
ter uma escuta que vá além do que possa parecer à
primeira vista. A compreensão da vida intrapsíquica

84
Atendimento Psicanalítico

do paciente é de fundamental importância no reco-


lhimento de dados sobre ele.

Uma avaliação psicodinâmica não prescinde da avalia-


ção realizada na anamnese. Pode ser considerada, in-
clusive, como uma extensão valiosa e significativa de-
la.

É na busca do funcionamento psicodinâmico do paci-


ente que se tem um melhor entendimento do quanto
ele está doente, de como adoeceu e como a doença o
serve.

Estabelecido um bom rapport entre entrevistador e


paciente, é de fundamental importância que este úl-
timo seja compreendido como alguém que em muito
contribui para o seu próprio entendimento, além de
ajudar na precisão de um diagnóstico.

O paciente não é uma planta sendo observada por um


botânico. É uma pessoa que, por não conseguir mais
se gerenciar sozinho, busca auxílio em outro ser hu-
mano. Sente medo, ansiedade, desconfiança, alegria e
está diante de uma outra pessoa que ele julga poder
auxiliá-lo.

85
Atendimento Psicanalítico

À medida que esse entendimento vai se estruturando,


o entrevistador pode começar a formular hipóteses
que liguem relacionamentos passados e atuais do pa-
ciente, assim como a repetição de seus padrões de
relação e comportamento. Deve haver, portanto, uma
interpretação global da problemática desse paciente a
respeito do que pode estar causando suas dificuldades
atuais, motivo da busca de ajuda profissional.

Fica evidente que uma hipótese psicodinâmica vai a-


lém do que o paciente diz. Alcança, também, o estilo
de relação que ele estabelece com o terapeuta e que
dá indícios de sua demanda latente.

Também é preciso ressaltar que a hipótese psicodi-


nâmica está sempre baseada num referencial teórico
seguido pelo terapeuta, que deverá circunscrever o
funcionamento psicodinâmico do paciente, formulan-
do uma hipótese que resuma, da melhor maneira pos-
sível, a psicodinâmica básica do paciente.

No Setor de Psicoterapia do Serviço de Psiquiatria da


Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, aten-
dendo às exigências técnicas da P.B. que utilizamos, há
que se estabelecer, ainda, para melhor avaliação da
condição psicodinâmica do paciente atendido, o triân-
gulo do conflito:

86
Atendimento Psicanalítico

 I – impulso;
 A – ansiedade;
 D – defesa,

O foco (isto é, a prioridade a ser estabelecida como


trabalho terapêutico) e o planejamento (onde se colo-
ca aquilo que se pretende fazer na condução do caso,
além do objetivo a ser atingido pelo terapeuta ao final
de seu trabalho com o paciente).

É ainda importante lembrar que a hipótese psicodi-


nâmica formulada serve apenas como uma compreen-
são maior do funcionamento do paciente para o tera-
peuta e deve conter em seu bojo o foco e o conflito
nuclear.

87
Atendimento Psicanalítico

Créditos

Modelo de anamnese, exame psíquico para avaliação


e planejamento em psicoterapia breve

Este trabalho foi elaborado por Regina Lúcia Pontes,


para o Setor de Psicoterapia do Serviço de Psiquiatria
do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do RJ,
com o intuito de uniformizar a apresentação de casos
em reuniões clínicas. Sem menção de direitos auto-
rais.

Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do RJ

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Atendimento Psicanalítico

89
Atendimento Psicanalítico

Caso Aimée - Exame Clinico


Paris – França - 1932

O caso Aimée é a história de uma funcionária da ferrovia, Mar-


gueritte Anzieu, que é presa e logo internada no hospital Saint-
Anne após atacar uma importante atriz da época, Huguette
Duflos, em 1932.

Margueritte fracassa no ataque, ferindo apenas a mão da atriz.

Aos cuidados do jovem psiquiatra, Marguerite vai contar sua


história em sucessivas entrevistas e confiando a Lacan suas car-
tas e escritos.

No estudo do caso Lacan cria um novo conceito diagnóstico, o


de “paranóia de autopunição”, a partir do fato de sua paciente
ter se curado após cometer o ato de agressão contra a atriz.

Na “paranóia de autopunição” Lacan mostra que ao atacar a


atriz, na verdade, Aimée estava atacando a si mesma, ao seu
Ideal de Eu.

A tese de Lacan marca uma passagem da Psiquiatria à Psicanáli-


se, pois nela vemos que Lacan vai buscar a explicação para ex-
plicar o caso, não na Psiquiatria e sim nos conceitos Freudianos.

“Minha paciente, chamei-a Aimée,


era realmente muito tocante”
Lacan, 1970

90
Atendimento Psicanalítico

Síntese refere-se ao Capitulo II


Parte 1 do livro
“Da psicose paranóica em suas
relações com a personalidade”
de Jacques Lacan.

Exames e antecedentes físicos

 A estatura da doente está acima da média.


 Esqueleto amplo e bem constituído.
 Ossatura torácica bem desenvolvida, acima da
média nas mulheres de sua classe.
 Nem gorda nem magra.
 Crânio regular. As proporções crânío-facíais são
harmoniosas e puras.
 Tipo étnico bastante bonito.
 Ligeira dissimetria facial, que fica dentro dos li-
mites habitualmente observados.
 Nenhum sinal de degenerescência.
 Nem sinais somáticos de insuficiência endócri-
na.
 Taquicardia branda quando de sua entrada,
número de pulsações: 100.

91
Atendimento Psicanalítico

 A palpação revela um pequeno bócio, de natu-


reza endêmica, pelo qual a mãe e a irmã mais
velha são igualmente afetadas.
 No período que precede a primeira internação,
recebe tratamento para esse bócio (extrato ti-
reoidiano?).
 Ela tomava essa medicação "sem seguir as pres-
crições e em quantidades maciças".
 Um mês depois de sua entrada, o pulso voltou a
80.
 A pressão dos glóbulos oculares, exercida du-
rante um minuto, dá, no segundo quarto de mi-
nuto, uma diminuição da freqüência a 64.
 Durante vários meses conserva um estado sub-
febril leve, criptogenético, de três ou quatro dé-
cimos acima da média matinal e vespertina.
 Contraiu, pouco antes de seu casamento, uma
congestão pulmonar (de origem gripal - 1917) e
suspeitou-se de bacilose.
 Exames radioscópicos e bacteriológicos repeti-
dos deram um resultado negativo.
 A radiografia nos mostrou uma opacidade hilar
à esquerda. Outros exames negativos.

92
Atendimento Psicanalítico

 Perdeu quatro quilos durante os primeiros me-


ses de sua permanência, recuperou-os nova-
mente, depois voltou a perdê-los.
 Seu peso estabilizou-se há vários meses em 61
quilos.
 Diagnóstico de sífilis do marido negativa.
 Durante os primeiros seis meses de internação,
interrupção das regras que eram normais até
então.
 Metabolismo basal medido repetidas vezes:
normal.
 Dois partos cujas datas anotamos.
 Uma criança natimorto asfixiada por circular do
cordão.
 Não se constatou anomalia fetal nem placentá-
ria.
 Diversas cáries dentárias por ocasião dos esta-
dos de gravidez.
 A doente tem uma dentadura postiça no maxi-
lar superior.
 Segundo filho, menino bem desenvolvido, boa
saúde.
 Atualmente com oito anos. Normal na escola.

93
Atendimento Psicanalítico

Assinalemos, quanto aos antecedentes somáticos, que


a vida levada pela doente desde a sua estada em Paris:
 Trabalhava no escritório das 7 às 13 horas.
 Depois do expediente, estudava, percorrendo
bibliotecas e lendo desmedidamente.
 Caracteriza-se por um surmenage intelectual e
físico evidente.
 Ela se alimentava de maneira muito precária,
escassa e insuficiente para não perder tempo, e
em horas irregulares.
 Durante anos, mas só depois de sua permanên-
cia em Paris, bebeu cotidianamente cinco ou
seis xícaras de café preparado por ela mesma e
muito forte.
 O pai e a mãe, camponeses, ainda vivem.
 A mãe é considerada na família como tomada
por "loucura de perseguição".
 Uma tia rompeu com todos e deixou uma repu-
tação de revolta e desordem em sua conduta.
 A mãe ficou grávida oito vezes: três filhas antes
de nossa doente, um aborto espontâneo depois

94
Atendimento Psicanalítico

dela, e por fim três meninos, seus irmãos mais


novos.
 Destas oito gravidezes, seis filhos ainda estão
vivos.
 A família insiste muito quanto à emoção violen-
ta sofrida pela mãe durante a gestação de nossa
doente: a morte da filha mais velha se deveu,
com efeito, a um acidente trágico. Ela caiu na
frente de sua mãe, na boca de um forno aceso e
rapidamente morreu em decorrência de quei-
maduras graves.

Antecedentes de capacidade e fundo mental

 Inteligência normal, acima das provas de testes


utilizadas no serviço asilar.
 Estudos primários bons. Obtém seu certificado.
 Não é aprovada num exame destinado a enca-
minhá-la para o ensino superior.
 Não persevera.
 É admitida aos 18 anos, depois de um exame de
admissão, na administração onde permaneceu;

95
Atendimento Psicanalítico

 Aos 21 anos alcança um ótimo lugar no exame


público, o que assegura sua titulação e seus di-
reitos.
 Durante sua permanência em Paris é reprovada
num exame de nível mais elevado;
 Ao mesmo tempo preparava (aos 35 anos) seu
exame de grau superior.
 É reprovada três vezes.
 Consideram-na em seu serviço como muito tra-
balhadora, "pau para toda obra", e atribuem a
isso seus distúrbios de humor e de caráter.
 Dão-lhe uma ocupação que a isola em parte.
 Uma sondagem junto a seus chefes não revela
nenhuma falha profissional até seus últimos di-
as em liberdade.
 Muito pelo contrário, na manhã seguinte ao a-
tentado, chega ao escritório sua nomeação para
um cargo acima do que ocupava.
 Descrevemos acima a redução atual de seu delí-
rio.
 Em suas respostas às entrevistas, ela se exprime
com oportunidade e precisão.

96
Atendimento Psicanalítico

 A indeterminação e o maneirismo só se introdu-


zem em sua linguagem quando a fazemos evo-
car certas experiências delirantes, elas mesmas
constituídas por intuições imprecisas e indizíveis
logicamente.

Comportamento no asilo
 Nenhuma perturbação na boa ordem do serviço
hospitalar.
 Diminui o tempo que poderia dedicar a seus
trabalhos literários favoritos para executar inú-
meros trabalhos de costura com que presenteia
o pessoal do serviço.
 Estes trabalhos são de feitura delicada, de exe-
cução cuidadosa, porém de gosto pouco sensa-
to.
 Recentemente a designamos para o serviço da
biblioteca o qual executou a contento.
 Nas relações com as outras doentes, demons-
trou tato e discernimento.
 As anomalias do comportamento são raras.
 Risos solitários aparentemente imotivados

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Atendimento Psicanalítico

 Bruscas excursões pelos corredores. Estes fe-


nômenos não são freqüentes e só foram obser-
vados pelas enfermeiras.

Produções literárias
Já evocamos ou citamos alguns escritos da doente.

Vamos estudar agora as produções propriamente lite-


rárias que ela destinava à publicação.

Estes escritos nos informam sobre o estado mental da


doente na época de sua composição;

Permitem que possamos apreender ao vivo certos tra-


ços de sua personalidade, de seu caráter, dos comple-
xos afetivos e das imagens mentais que a habitam.

Os romances (dois) foram escritos pela doente nos


oito meses que antecederam o atentado, e sabemos
em qual relação com o sentimento de sua missão e
com o da ameaça iminente contra seu filho.

O primeiro data de agosto-setembro de 193.. e foi es-


crito, segundo a doente, de um só fôlego em onze se-
manas.

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Atendimento Psicanalítico

O segundo foi composto em dezembro do mesmo a-


no, em um mês aproximadamente, "numa atmosfera
febril".

Os rascunhos e manuscritos que temos em nosso po-


der se opõem à apresentação habitual dos escritos
dos paranóicos interpretantes:

 Maiúsculas iniciais nos substantivos comuns,


 Sublinhas,
 Palavras destacadas,
 Vários tipos de tinta,
 Todos os traços simbólicos das estereotipias
mentais.

Em análise grafológica, destacou-se:

 Cultura. Personalidade. Sentido artístico instin-


tivo. Generosidade. Desdém pelas coisas insigni-
ficantes e pelas intriguinhas. Nenhuma vulgari-
dade.

 Fundo de candura, de virgindade de alma, com


traços de infantilismo. Reações, sonhos, medos
de criança.

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Atendimento Psicanalítico

 Ímpeto interior, capaz de exercer influência. A-


gitação, com certo aspecto simpático. Ambos,
no entanto, Com uma qualidade mais Intelectu-
al que afetiva.

 Grande sinceridade para consigo mesma. Inde-


cisão. Voluntária apesar de tudo

 Ternura. Muito pouca sensualidade. Acessos de


angústia, que suscitam nela um certo espírito de
maquinação, de possibilidades de maldade.

 Fora dos acessos persiste na doente não uma


hostilidade, nem uma desconfiança verdadeiras,
e sim, antes, uma inquietude continua, funda-
mental, sobre si mesma e sua situação.
As duas obras têm valor desigual.
A segunda traduz, sem dúvida, uma baixa de nível,
tanto no encadeamento das imagens quanto na quali-
dade do pensamento. Entretanto, o traço comum é
que ambas apresentam uma grande unidade de tom e
que um ritmo interior constante lhes garante uma
composição.

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Atendimento Psicanalítico

Lacan faz uma exaustiva releitura das obras buscando


entender e obter fatos que possam esclarecer o com-
portamento da doente.

O Diagnostico
Que diagnóstico fazer sobre uma doente como esta,
no atual estado da nosografia?
O que domina com muita evidência o quadro é o delí-
rio sistematizado.
Afastamos, desde o primeiro momento, os diagnósti-
cos de demência orgânica, de confusão mental.
Tampouco levaremos em conta o de demência para-
nóide.
Não se trata, é claro, de delírio crônico alucinatório.
Devem-se deixar de lado igualmente as diversas varie-
dades de parafrenías kraepelinianas.
A paratrenia expansiva apresenta alucinações, um es-
tado de hipertonia afetiva, essencialmente eufórica,
uma luxúria do delírio, que são estranhos ao nosso
caso.
A parafrenia fantástica só apresenta mitos cósmicos,
místico-filosóficos, pseudocientíficos, metafísicos,
tramas de forças divinas ou demoníacas, que ultrapas-

101
Atendimento Psicanalítico

sam de muito em riqueza, complexidade e estranheza


o que vemos em nosso delírio.
Não se trata tampouco, em nosso caso, de parairenia
confabulante, delírios de imaginação rico em inúmeras
e complexas aventuras, em histórias de raptos, falsos
matrimônios, trocas de crianças, enterros simulados,
de que conhecemos exemplos muito belos.
A psicose paranóide esquizofrênica, de Claude, deve
ser deixada de lado pelas mesmas razões.
Nossa paciente conservou nos limites normais a noção
de sua personalidade; seu contato com o real manteve
uma eficácia suficiente; a atividade profissional pros-
seguiu até a véspera do atentado. Estes sinais elimi-
nam tal diagnóstico.
A partir daí, somos levados ao amplo quadro definido
por Claude com o nome de psicoses paranóicas.
Nosso caso, por sua sistematização, seu egocentrismo,
seu desenvolvimento lógico a partir de premissas fal-
sas, pela elaboração tardia dos meios de defesa, se
enquadra perfeitamente dentro destes limites gerais.
Transcrevamos, para terminar este capítulo, o laudo
quinzenal que nós mesmos redigimos por ocasião da
entrada da doente:

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Atendimento Psicanalítico

 Psicose paranóica.
 Delírio recente tendo chegado a uma tentativa de
homicídio.
 Temas aparentemente resolvidos depois do ato.
 Estado oniróide.
 Interpretações significativas, extensivas e concên-
tricas, agrupadas em torno de uma idéia prevalen-
te: ameaças a seu filho.
 Sistema passional: dever a cumprir para com este.
 Impulsões polimorfas ditadas pela angústia: dili-
gências junto a um escritor, junto à sua futura víti-
ma.
 Execução urgente de escritos.
 Remessa destes à Corte da Inglaterra.
 Escritos panfletários e bucólicos.
 Cafeinismo.
 Desvios de regime.
 Duas exteriorizações interpretativas anteriores,
determinadas por incidentes genitais e comple-
mento tóxico (tireoidina).
 Atitude vital tardiamente centrada por um apego
materno exclusivo, mas onde dominam anterior-

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Atendimento Psicanalítico

mente valores interiorizados, permitindo uma a-


daptação prolongada a uma situação familiar a-
normal, a uma economia provisória.
 Bócio mediano.
 Taquicardia.
 Adaptação à sua situação legal e maternal presen-
te. Reticência.
 Esperança.

Psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981)

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Créditos:
Material coletado na internet de sites sem menção de restrição
a reprodução.

Notas:
Compilar significa reunir, agrupar e coligir textos de diversos
autores ou de determinado assunto.

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