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ENSAIO | ESSAY 189

O saber-corpo e a busca pela descolonização


da saúde coletiva
The body-knowledge and the search for the decolonization of public
health

Flavia de Assis Souza1

DOI: 10.1590/0103-11042019S814

RESUMO Pensar o campo da saúde coletiva a partir do corpo que circula nas instituições acadêmicas
e nos serviços de saúde proporciona um olhar privilegiado sobre as questões que permeiam tanto a
produção do conhecimento quanto os diversos tipos de violências perpetradas pelo sistema. Este ensaio,
portanto aponta que o caminho da descolonização da saúde coletiva se mostra como alternativa para que
as desigualdades em saúde sejam finalmente desveladas e superadas no âmbito do desenho das políticas
de saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS).

PALAVRAS-CHAVE Sistema Único de Saúde. Colonialismo. Saúde coletiva.

ABSTRACT Thinking about the field of collective health from the perspective of the body that circulates in
academic institutions and health services provides us with a privileged look at the issues that permeate both
the production of knowledge and the various types of violence perpetrated by the system. Therefore, this essay
points out that the path of decolonization of public health is an alternative for health inequalities to finally
be unveiled and overcome within the Unified Health System (SUS).

KEYWORDS Unified Health System. Colonialism. Public health.

1 Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Uerj),
Instituto de Medicina
Social (IMS) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
flavia.assis26@yahoo.com.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 43, N. ESPECIAL 8, P. 189-202, DEZ 2019
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Refletindo a partir do povos indígenas desde a colonização e que


Saber-corpo por conta disso a educação brasileira se
mantinha colonizadora.
Meu corpo é o meu território. Da mesma maneira, o meu corpo de mulher
(Sandra Benites). negra, mãe, nascida na Baixada fluminense,
filha de empregada doméstica, durante muitos
A epígrafe que inicia o presente ensaio chegou anos foi desqualificado como um corpo ‘apto’
como um disparo aos meus ouvidos. Em uma a produzir conhecimento dentro da acade-
mesa composta por um Babalorixá, um cine- mia. O caráter racista e sexista intrínseco à
asta negro, uma jovem negra e uma mulher saúde coletiva fica muito evidente quando
indígena, frases como essa têm o poder de nos uma estudante do doutorado entra no curso
arrebatar. Esse cenário foi organizado pelo com o desejo de estudar um tema a partir do
professor Renato Noguera e tratou-se de uma seu corpo marcado pelas diversas estruturas
jornada sobre infâncias, raças e etnias e suas de opressão e esse desejo é violentamente
interseções, que aconteceu na Universidade rechaçado. Ocupar o espaço que foi constru-
Federal Rural no Rio de Janeiro, em julho ído pelo homem branco, sendo uma mulher
do corrente ano, no campus de Nova Iguaçu. negra, somente lhe é oferecido duas opções:
Descrevo o cenário em detalhes porque é muito ou você embranquece e se encaixa no modelo
potente o diálogo produzido por personagens de produção de conhecimento instituído ou
tão distintos, mas que em certa medida se co- você desiste do curso. Nós mulheres negras,
nectam. E esse encontro aconteceu em uma não temos muitas escolhas em um ambiente
localidade fora daquilo que podemos chamar extremamente elitista, racista e sexista.
de ‘eixo geopolítico de produção de conheci- Por conseguinte, fazendo um paralelo com
mento’. Em outras palavras, essa discussão a importante fala de Sandra, também sigo o
acontece em um local em que tipicamente entendimento de que o corpo precisa ser
esse tipo de debate ocorre muito raramente. ouvido, não somente no que tange ao desenho
Fiquei durante alguns dias pensando de políticas públicas, mas também na produção
sobre a frase dita por Sandra Benites naquela de conhecimento. Isso implica entendermos
mesa porque era algo sobre o qual eu mesma que é no corpo do indivíduo que está inscrito
já estava refletindo e escrevendo em minha toda a sua ancestralidade, seu modo de ser,
tese de doutorado e é uma temática que me as marcas de diversas estruturas de opressão
acompanhou durante toda minha trajetória que lhe atravessa, assim como a sua maneira
dentro do campo da saúde coletiva. Sandra de entender o mundo. É a partir disso que
é uma mulher pertencente à etnia Guarani, faço algumas reflexões sobre o que aqui estou
antropóloga e educadora, que trabalhou chamando de saber-corpo e sua contribuição
durante muitos anos com educação infantil na produção de conhecimento para o campo
em aldeias indígenas. Em suma, a sua fala da saúde coletiva.
potente enfatizava a importância do não Sabemos que o modelo de produção do
apagamento dos corpos do sujeito indígena conhecimento científico moderno ocidental
no espaço escolar. Para Sandra, os educado- adota o paradigma cartesiano que centra a
res deveriam ouvir os alunos indígenas de produção legítima do conhecimento na mente
modo a construírem em conjunto um saber do homem. Ademais, aqui o sentido da palavra
que respeitasse a cultura e a cosmovisão que utilizo para a palavra ‘homem’ não é o de
daqueles sujeitos que deveriam ser envol- humanidade, mas sim, daquilo que entende-
vidos no processo educacional. Todavia, a mos como ‘macho’. Contudo, é importante nos
antropóloga nos chamava a atenção para atentarmos para o fato de que esse conheci-
o embranquecimento que se impunha aos mento centrado na mente do macho também

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não é de qualquer macho, mas é o conheci- seu corpo encontra-se distanciado. Ao relatar
mento centrado na mente do macho branco sua experiência como aluna na graduação a
ocidental. Isto é, o conhecimento percebido autora ressalta que preferia ter estudado o
como legítimo é o produzido a partir da mente pensamento crítico afro-americano com um
do macho-branco-europeu. Com isso, a filoso- professor negro progressista do que com a
fia e a sociologia ocidental, ao separar o corpo professora branca com quem fez o curso. É
da mente apagaram o sujeito de enunciação certo que com o professor negro progressista
e a localização de onde está se produzindo o a experiência do corpo negro traria para a sala
conhecimento. Com o apagamento do corpo de aula tanto o saber experimental quanto o
transmite-se a falsa ideia de que o conheci- saber analítico, o que tornaria o aprendizado
mento científico está isento das subjetividades da citada disciplina mais enriquecedora. Assim
e da localização desse sujeito nas hierarquias hooks2(123-124) assinala que
de poder, é a dita imparcialidade da ciência.
No entanto, na verdade, essa falsa imparcia- esse ponto de vista [do corpo negro] não pode
lidade está impregnada de valores e crenças ser adquirido por meio dos livros, tampouco
que são construídas a partir de um ponto de pela observação distanciada e pelo estudo de
vista. Como afirma Donna Haraway1, uma determinada realidade.

as hierarquias de classe, sexuais, de gênero, A autora acrescenta: “para mim esse ponto
espirituais, linguísticas, geográficas e raciais de vista privilegiado não nasce da ‘autoridade
desse mundo patriarcal-capitalista-colonial- da experiência’, mas sim, da paixão da expe-
-moderno são inescapáveis. riência, da paixão da lembrança”2(123-124). O
que podemos constatar no dia a dia do ‘fazer
Na minha perspectiva, o saber-corpo ciência’ na academia é que o distanciamento do
também pode ser traduzido como o conhe- corpo da realidade a ser descrita ou teorizada
cimento produzido a partir da experiência incorre na formulação de reflexões e opiniões
porque coaduna com a ideia de se localizar e muitas vezes preconceituosas ou distorcidas
de falar a partir das marcas, do espírito e da de determinada realidade.
ancestralidade (inscrita no corpo). Entretanto, Ainda refletindo sobre o que bell hooks2
acrescento que o saber-corpo não implica chama de ‘paixão da experiência’ a conotação
abandonar a mente como locus de produção de dessa expressão criada pela a autora nos ajuda
saberes, mas, trata-se de agregar a este, o corpo a pensar o quanto é importante, digamos, ‘colo-
e o espírito, formando uma tríade interconec- carmos o corpo para jogo’. A autora traz para a
tada. Por isso, minha proposta é de tomarmos discussão outro nível de entendimento sobre a
o corpo de volta ao processo de produção de produção de saberes. À vista disso, hooks2 traz
saberes na academia, o que considero como a dimensão do sofrimento inscrito no corpo
um necessário ato de rebeldia contra a ciência de quem fala como um componente primor-
moderna colonizadora. dial para a construção do conhecimento. Nas
Somente dessa maneira, acredito que cos- palavras da autora:
mologias outras, fora da racionalidade patriar-
cal-branca-europeia, serão entendidas como [a paixão da experiência] é um modo de co-
saberes legítimos. Os autores e autoras negras nhecer que muitas vezes se expressa por
da diáspora africana e do sul global, têm nos meio do corpo, o que ele conhece, o que foi
chamado a atenção para o saber ancorado na profundamente inscrito nele pela experiência.
experiência de homens e mulheres negras. Essa complexidade da experiência dificilmen-
Dessa forma, bell hooks2 aponta para a di- te poderá ser declarada e definida à distância.
ficuldade de falar de questões pelas quais o É uma posição privilegiada, embora não seja a

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única nem, muitas vezes, a mais importante a sobre a criação de corpos ideais arquitetada
partir da qual o conhecimento é possível2(124). pelo homem branco desde os tempos coloniais,
em outras palavras, como corpos brancos cis-
Diante do exposto até aqui podemos con- -heterossexuais se transformaram na norma,
cluir que o conhecimento produzido a partir da ou no corpo ‘ideal’. O segundo aspecto discuti-
experiência, como reivindicado pelas autoras do é o que nos adverte quem tem legitimidade
negras, traz de volta o corpo (como locus pri- de produzir conhecimento e quem não tem.
vilegiado da produção do conhecimento) para Já a terceira questão a ser discutida é sobre os
o interior da torre de marfim... a academia. corpos considerados fora da norma. Reflito o
Em nome do conhecimento imparcial ou quanto a existência de um constructo de corpo
da verdade científica diversas vezes corpos ‘ideal’ influencia nas políticas e práticas de
brancos teorizando sobre realidades vividas saúde coletiva. Em resumo, como esses corpos
por corpos negros distorcem ou produzem fora da norma são tratados no Sistema Único
as tais ‘zonas cinzentas’. A zona cinzenta é de Saúde (SUS)?
aquilo que fica invisibilizado e que somente
é possível de enxergar por meio da paixão da
experiência de bell hooks2. O saber-corpo negro
É o que acontece no meu curso de Pós- deslegitimado na Pós-
Graduação em Saúde Coletiva. Não temos
professor negro lecionando em nenhuma
Graduação em Saúde
das três subáreas que compõem o curso. A Coletiva
pós é composta pelas áreas de epidemiolo-
gia, política, planejamento e administração Por que tamanha dificuldade de inserirmos o
em saúde e pelo Departamento de Ciências debate racial no interior do campo da saúde
Humanas. Duas questões se impõem diante coletiva? Por que temos problemas em re-
dessa constatação. A primeira é: por que que conhecer corpos fora da norma no desenho
os corpos negros não ocupam o espaço legi- de políticas de saúde e no seu atendimento
timado de produção de conhecimento em um no âmbito dos serviços? Essas perguntas nos
programa de pós-graduação tão importante? E remetem a tentarmos compreender o movi-
a segunda é a que já mencionei, por conta dos mento da normatização e do apagamento dos
corpos brancos que dominam esse espaço o corpos característico não somente no campo
debate racial na saúde está ausente ou quando da saúde, mas, também da ciência. Ressalto
se apresenta é em um formato de ‘recorte’ e que este ensaio não se propõe a chegar em
não como ponto central do debate, além de respostas fechadas a respeito das questões
perspectivas muito distanciadas da realidade. levantadas, mas, sim, suscitar um debate até
Acrescentaria ainda mais um ponto que é a então ignorado pelo campo da saúde coletiva.
problemática que se instaura, em termos de Assim, chamo a atenção para o fato de que
desenho de políticas públicas, quando o corpo existe uma ideologia racial que foi introjetada
que está pensando as políticas de saúde é o na sociedade brasileira pelo projeto colonial
corpo branco cis-heterossexual. moderno e que cristalizou no nosso ‘incons-
Em vista dos argumentos apresentados, ciente coletivo’ dois elementos fundamentais,
parto do princípio de que o corpo é fonte de a normatização do corpo e a noção de raça
produção de saberes, pois carrega a ancestra- superior e inferior.
lidade, a visão de mundo e as marcas de inú- Como afirma Grosfoguel3 os primeiros co-
meras estruturas de opressão que se incidem lonizadores que chegaram em terras brasilis
sobre ele. O presente ensaio visibiliza o debate trouxeram consigo uma enredada estrutura de
sobre três questões interligadas. A primeira é poder ampla e vasta que provocou mudanças

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profundas na estrutura social que aqui existia. não sobra observar que nossa colonização
Segundo o autor, desembarcou dos navios por- mental foi ainda mais completa porque o es-
tugueses o homem heterossexual/branco/ paço social no qual as universidades se insta-
patriarcal/cristão/militar/capitalista/europeu. laram era inteiramente branco, o que facilitou
Lélia Gonzalez4 sublinha que no século XIX a identificação dos nossos acadêmicos com
o racismo constituía a ciência da superioridade os seus pares (brancos) europeus5(85).
euro-cristã (branca e patriarcal), na medida
em que se estruturava o modelo ariano de ex- Tendo em vista a hegemonia de corpos
plicação que viria a ser não só o referencial brancos dentro das universidades brasileiras, a
das classificações triádicas do evolucionismo saúde coletiva resiste firmemente em entender
positivista das nascentes ciências do homem, que o racismo é o elemento fundacional do
como ainda hoje direciona o olhar da produção Estado moderno brasileiro. A Pós-Graduação
acadêmica ocidental. em Saúde Coletiva, pelo menos no meu curso,
O importante com toda essa história é enten- continua a ignorar que no início do século XX
dermos que essa estrutura de poder – estabele- a política eugenista implementada no Brasil
cida pelo colonialismo – que aqui instaurou-se andava de mãos dadas com o sanitarismo.
levou à formação patriarcal, racista, sexista Em sua dissertação de mestrado Vanderlei
e heteronormativa da sociedade brasileira. Sebastião6 ressalta que a política eugenista
Isto é, o corpo branco cis-heterossexual foi introduzida no Brasil durante os anos de 1910
normatizado. foi rapidamente difundida como símbolo de
Em termos institucionais, de maneira a sus- modernidade cultural, vista como uma ferra-
tentar e a reproduzir a estrutura patriarcal, menta fundamental para auxiliar o processo
racista, sexista e heteronormativa da nossa de reforma da saúde pública e de regeneração
sociedade, entendo que as universidades racial da população. O autor ainda enfatiza a
tiveram papel essencial. De acordo com José importante participação do principal teórico
Jorge Carvalho5 a condição de criação mesma eugenista brasileiro, o médico Renato Kehl.
das nossas universidades foi colonizada. Nossa Nas palavras de Sebastião6(16):
elite branca trouxe uma elite acadêmica eu-
ropeia branca para fundar uma universidade [...] apesar de Kehl ter participado do movi-
estritamente nos moldes das universidades mento sanitarista e defendido por vários anos
ocidentais modernas. O modelo institucional um programa eugênico mais ‘suave’, ao estilo
foi o humboltiano, com a separação entre a da ‘eugenia preventiva’, no final dos anos 1920
faculdade e o instituto de pesquisa, obede- suas ideias foram profundamente reconfigu-
cendo à mesma divisão de saberes da matriz radas, o que o aproximou dos pressupostos
europeia e inscrevendo nossa academia como mais radicais oriundos da ‘eugenia negativa’
uma variante da chamada civilização ocidental. alemã, norte-americana e inglesa.
José Jorge5 assinala que o mito racista e
xenófobo, resultado dos imperialismos, colo- Por isso ressalto a importância de trazermos
nialismos e da escravidão atlântica foi trans- o debate racial para dentro do campo da saúde.
plantado para o Brasil na criação das nossas Reconhecer que a ideia de um corpo ideal foi
universidades. A nossa primeira universidade construída pelo colonialismo e que a universi-
somente foi inaugurada na segunda década dade sustenta esse ideal é imprescindível para
do século XX, a Universidade Federal do Rio que avancemos na direção de uma academia
de Janeiro (UFRJ) criada por meio de uma mais inclusiva e de um sistema de saúde que
missão francesa, instalando assim a nossa elite acolha todos os tipos de corpos que por ali
branca acadêmica como uma continuação da circulem. Com relação à problemática do não
elite acadêmica europeia. O autor afirma que reconhecimento de corpos fora da norma no

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ambiente dos serviços de saúde, abordarei com as muitas cartas que recebi de negras,
sobre isso na próxima seção. discutindo o ensaio, sobre as dificuldades que
A partir daqui evoco uma narrativa que enfrentei como estudante universitária.
esmiúça, expõe e teoriza sobre parte da minha
trajetória acadêmica, pois, acredito que minha Trouxe comigo essa mesma dúvida a respeito
história pessoal explicita o processo de des- da aceitação do meu trabalho como algo com ex-
legitimação sobre determinado saber-corpo, pressão acadêmica e não meramente um texto
sobretudo aqueles fora do ideal de corpo pro- que agradaria apenas aos meus companheiros
duzido nas sociedades colonizadas. fiduciários daquilo que denomino de epistemo-
Trago novamente bell hooks7 para essa logia da resistência. Diante disso, também havia
conversa porque as intelectuais negras têm o temor de produzir um estudo com a ideia de
nos ensinado o quanto é rica a produção de repensar o positivismo científico intrínseco
saberes a partir daquilo que a professora à saúde coletiva, mas que ao tentar fazer isso
Ângela Figueiredo8 denomina de ‘teorização acabasse reproduzindo as mesmas bases cien-
do cotidiano’. O texto de bell hooks7 me fez tíficas que eu mesma estava criticando.
rememorar a angústia que senti ao defrontar- Por conseguinte, refleti sobre o quanto
-me com a possibilidade de desenvolver uma colegas (sobretudo as mulheres negras) da pós-
pesquisa de tese sobre maternidade a partir -graduação poderiam estar vivendo o mesmo
da minha própria experiência como mãe. Ao dilema. Ainda discutindo com base no trabalho
olhar para minha trajetória como estudante de hooks7, a autora relata a dificuldade das
de doutorado, percebi que desde o primeiro mulheres negras de se inserirem no campo
momento tentei me furtar de desenvolver um acadêmico. Um dos motivos que mais chamam
trabalho que incluísse aspectos subjetivos em a atenção no texto é o fato de que mulheres
seu desenvolvimento. O campo da saúde co- negras desde muito novas são convencidas a
letiva sempre demonstrou, a meu ver, forte não se enxergarem como potenciais formu-
resistência a produções com a fala ‘em primeira ladoras de saberes. Essas mulheres recebem
pessoa’, privilegiando um apagamento da sub- um tipo de socialização sexista e racista, em
jetividade autoral e do seu lugar no mundo. que são condicionadas a entender que devem
Durante algum tempo vivi a ambiguida- estar sempre prontas para servir a alguém e
de, pois, ao mesmo tempo que trazia o desejo não para a reflexão.
de escrever algo a partir de minhas reflexões, Outra questão importante, apontada pela
ou mais autoral, a todo momento era tolhida autora, é o fato de a escrita das mulheres negras
pelos próprios sentimentos esculpidos na lógica ser muito discriminada. Por conta de se ba-
profundamente positivista eurocentrado do searem amplamente em suas experiências
campo de conhecimento no qual estou inserida. pessoais, os trabalhos produzidos pelas autoras
A minha autorrecusa quanto à possibilidade de negras ainda são colocados à prova ou postos
desenvolver uma escrita reflexiva, decerto, que em dúvida pela academia. Segundo hooks7,
era o reflexo de anos de castração intelectual. isso faz com que essas escritoras assumam o
Por isso, entendi muito bem o drama descrito posicionamento do anti-intelectualismo.
por bell hooks7(472) quando afirma que: À questão do descrédito relacionado com o
trabalho produzido pelas intelectuais negras,
[...] escrevendo ensaios que incluem reflexões Patricia Hill Collins9 nos ensina que, uma vez
confessionais senti-me, a princípio, insegura a que os homens brancos controlam as estrutu-
respeito de se eles falariam a um público além ras de validação do conhecimento ocidental,
de mim mesma e meus amigos. Quando pu- seus interesses permeiam temas, paradigmas
bliquei minha primeira coletânea de ensaios e epistemologias do trabalho acadêmico tra-
Talking Back (Retrucando), surpreendi-me dicional. Dessa forma, as experiências das

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mulheres negras africanas, americanas, latino- dissimulada, envolvida por palavras jocosas
-americanas ou mulheres negras da diáspora e até mesmo ‘afetuosas’. O mais assustador
têm sido desqualificadas ou até mesmo ex- é que a deslegitimação e a desqualificação
cluídas daquilo que os acadêmicos chamam é praticada periodicamente, então, a vítima
de ‘conhecimento’. acaba acreditando que de fato aquele meio
Por isso, compreendi o porquê de minha compartilhado por pessoas ‘altamente quali-
inquietação ao confrontar-me com a possibili- ficadas’ não lhe pertence.
dade de produzir um saber que, dentro dos pa- Sueli Carneiro10(97) define muito bem como
râmetros da ciência positivista eurocentrada, se processa o epistemicídio e seus efeitos.
não se encaixava como ‘conhecimento científi- Segundo a autora,
co’. Encontrei nos textos de intelectuais negras
como bell hooks, Patricia Hill Collins, Lélia O epistemicídio é, para além da anulação e
Gonzalez, Sueli Carneiro explicações sobre o desqualificação do conhecimento dos povos
silenciamento e apagamento dos saberes das subjugados, um processo persistente de pro-
mulheres negras que historicamente foram dução da indigência cultural: pela negação ao
rechaçadas dos espaços de produção do co- acesso à educação, sobretudo de qualidade;
nhecimento. Precisamos ter em mente que pela produção da inferiorização intelectual;
são os homens brancos que dominam o campo pelos diferentes mecanismos de deslegitima-
do conhecimento, por isso, colocam a ciência ção do negro como portador e produtor de
a serviço de seus próprios interesses, como conhecimento e de rebaixamento da capa-
apontado por Patricia Hill Collins9. Aliás, é cidade cognitiva pela carência material e/ou
importante sempre nos lembrarmos que esses pelo comprometimento da autoestima pelos
interesses são aqueles ligados à perpetuação processos de discriminação correntes no pro-
do próprio sistema eurocêntrico-branco- cesso educativo.
-racista-classista que sustenta a academia.
Ou seja, é a imposição de uma geopolítica do Assim, a interiorização de uma ideia cuida-
conhecimento que estabelece as relações entre dosamente construída pelo cânone da ciência
o centro e a periferia do sistema mundo na branca europeia, ou seja, de que o conheci-
produção dos saberes. Então, dito de outra mento só é válido se for produzido apoiado em
maneira, trata-se de quem tem a permissão de parâmetros (brancos) e regras predetermina-
produzir o conhecimento e de quem não tem. das, desmotiva quem não se enquadra nesse
Por isso, dentro da geopolítica do conheci- perfil. Algumas de nós, intelectuais negras,
mento ou desse sistema eurocêntrico-branco- ao nos utilizarmos de outras cosmologias
-racista-classista, as mulheres negras têm para entendermos/lermos o mundo, somos
encarado historicamente a realidade de ter o imediatamente desqualificadas e banidas
seu ‘fazer ciência’ subjugado ou não reconhe- do campo acadêmico por não nos encaixar-
cido. Durante os dois primeiros anos da pós- mos nos parâmetros instituídos pela ciência
-graduação tive que lidar com essa realidade. branca. É preciso ressaltar que em nome de
Ao me posicionar quanto ao encaminhamento sua autopreservação o cânone branco ocidental
teórico da minha pesquisa (totalmente anco- assume esse posicionamento sob a justificati-
rado no feminismo negro) deparei-me com va de garantir uma suposta imparcialidade e
um tipo de violência que, até então ignorava: o objetividade nos resultados a serem obtidos
epistemicídio. Como toda violência praticada pelos estudos produzidos na academia.
por alguém que temos grande apreço e admi- Desse modo, narro sobre minha própria
ração, o epistemicídio se torna difícil de ser experiência como mulher, mãe, preta, peri-
detectado por quem é a vítima. O processo de férica e acadêmica. A intenção é de alguma
apagamento se dá de maneira muito insidiosa, maneira visibilizar a violência provocada pela

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branquitude acadêmica em corpos tão marca- escrever meus textos era considerada boa pelo
dos quanto o meu; os corpos fora da norma. ‘deus da orientação’. Esse mesmo deus se uti-
O meu corpo atravessado por tantos mar- lizava de seu lugar de poder e autoridade para
cadores da diferença me coloca no lugar do humilhar e deixar muito claro que o meu corpo
infans, como nos alerta Lélia Gonzalez11. Ao preto não tinha legitimidade para produzir por
descrever a localização dos negros na socieda- si mesmo nada que pudesse ser considerado
de brasileira – o lugar do subalterno, a autora como conhecimento. O conhecimento que
assinala que, devido a esse lugar, o povo negro eu deveria produzir era sempre orientado e
é constantemente infantilizado. A autora as- tutelado, sempre em direção à Europa.
sinala que significa aquele que não tem A academia, mais especificamente, a pós-
fala própria, é a criança que se fala na terceira -graduação, tem sido um espaço de adoeci-
pessoa, porque é falada pelos adultos. Então, mento coletivo, sobretudo para o povo negro.
para a academia eurocentrada-patriarcal- Adoecemos quando, ainda no processo seleti-
-branca, o meu corpo de mulher negra, pe- vo, nos são impostas inúmeras barreiras que
riférica e vinda das classes subalternizadas é impedem o nosso acesso. Adoecemos quando
entendido como aquele incapaz de produzir queremos realizar um trabalho de pesquisa
conhecimento por si; e, por isso, a produção de de acordo com nossas experiências e somos
saberes deve ser referendada por aqueles que tolhidos. Adoecemos quando temos que em-
são reconhecidos como detentores do legítimo branquecer para sermos aceitos.
saber, ou, o homem branco. Ou aqueles que
desempenham a função de reprodutores da
lógica colonizadora. O mito da neutralidade
Dentro dessa academia racista o corpo preto científica subjacente à
é o corpo fora da norma, pois, como já dito, esse
espaço foi pensado e criado pelos e para os
saúde coletiva: entrave para
corpos brancos. Então, diante da insubmissão políticas emancipatórias
do meu corpo preto fui destinada a ser castiga-
da e a sofrer as dores da violência epistêmica. Donna Haraway1 discute a questão da “ob-
Ainda durante o período pré-qualificação me jetividade”/imparcialidade para a ciência e
recordo que demorei muitos dias para escre- como estes se tornam conceitos totalmente
ver aquilo que seria as primeiras páginas do vazios de sentido quando estamos falando da
meu projeto de tese. Ao fim de longas semanas pesquisa feminista. A autora menciona que as
consegui o resultado de 84 páginas escritas do feministas têm empreendido muito esforço em
projeto de qualificação. Enviei as 84 laudas criticar o termo e em explicar o seu significado
assim que terminei de escrever ao orientador, para as suas pesquisas. Para a autora “o saber
entretanto, ele somente leu após três meses. E, é policiado por filósofos que codificam as leis
logo após a leitura ele desconsiderou a maior canônicas do conhecimento’’ e na opinião de
parte do que eu havia escrito. Ou seja, passei Haraway1, são eles, um grupo pequeno de cien-
noites a fio escrevendo para no fim nada do que tistas masculinistas que têm o poder de ditar
havia escrito fosse aproveitado; e a justifica- as regras da pesquisa acadêmica.
tiva para tal ato era que a minha formação de A pretensa imparcialidade ou objetividade
base havia sido deficitária e que eu precisaria do cânone científico, de acordo com a autora,
estudar mais. Sem falar nas ocasiões em que não é nada menos do que uma visão parcia-
expressava minha opinião durante a aula ou lizada do fenômeno, é a visão do dominador
no grupo de orientação e tinha minha fala ou a perspectiva do homem branco europeu.
imediatamente desqualificada e diminuída. É a imparcialidade do sujeito que se entende
Nenhuma autora negra que lia e usava para como universal. Ou seja, para que a visão de

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mundo do homem branco europeu se torne como gênero, raça, classe, sexualidade, terri-
hegemônica, cria-se o mito de que o conhe- tório, nacionalidade etc. Esse corpo é capaz de
cimento somente é possível de ser construí- elaborar sua própria epistemologia e de se lo-
do a partir da objetividade científica e, para calizar dentro da hierarquia social, assim como
isso, nega-se o lugar de fala dos indivíduos identificar relações de poder. Portanto, cabe a
pesquisados, ou lhe é negada a prerrogativa nós pesquisadoras(es) abandonarmos a ideia
de sujeito potencialmente capaz de produzir de objetificá-lo como se ele fosse coisa, e assim,
conhecimento. Por outro lado, ao darmos voz silenciá-lo. Por conseguinte, uma alternativa
e ouvidos aos silenciados, como reivindicado é a epistemologia feminista negra decolonial,
por Donna Haraway1, há a manifestação de pois tem nos ensinado a fazer ciência baseada
um conhecimento capaz de evidenciar “situ- nas experiências do saber-corpo.
ações extraordinárias”, isto é, que nos leva ao A partir dessas premissas, ao direcionar a
conhecimento não regular, ou àquele que está reflexão do saber-corpo para a saúde coletiva,
fora do estabelecido pelo cânone científico. é perceptível que o campo caminhou no sentido
Em outras palavras, segundo a autora, de criticar a visão objetificada do corpo, no que
tange ao campo de pesquisa. O esquadrinha-
precisamos também buscar a perspectiva da- mento e o retalhamento do corpo praticado
queles pontos de vista, que nunca podem ser pela medicina com o objetivo de transformá-
conhecidos de antemão, que prometam algu- -lo em objeto, de modo a entender e controlar
ma coisa extraordinária, isto é, conhecimento o seu funcionamento, já foram criticados por
potente para construção de mundos menos Foucault12 em seu trabalho: ‘O nascimento da
organizados por eixos de dominação1. clínica’. Esse texto é tido como obrigatório nos
cursos de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, e
É interessante também a defesa que a autora é utilizado para marcar a crítica do campo à me-
faz da versão corporificada da objetividade. dicina que durante séculos objetificou o corpo.
Esta é uma perspectiva contrária àquela A discussão sobre biopolítica vai aparecer
verdade científica sem corpo e dita impar- na obra de Foucault no final da década de 1970,
cial. Donna Haraway1 defende a “objetividade em ‘Segurança, território, população’ e em
corporificada”. Ou seja, esta é uma perspectiva ‘Nascimento da biopolítica’13. A biopolítica, em
que leva em consideração os corpos marcados, outras palavras, significa a utilização de téc-
com seus saberes (que são localizados), cul- nicas de biopoderes com vistas ao controle de
turas e trajetórias. populações. O discurso médico ancorado em
A autora insiste na importância de localizar um saber científico como instrumento de bio-
os saberes, em que políticas e epistemologias poder atuará diretamente nas subjetividades
de alocação, posicionamento e situação nas dos indivíduos, alterando seus valores sobre
quais parcialidade e não universalidade é a os modos de viver. Desse modo, a biopolítica
condição de ser ouvido. A defesa é por uma se ocupará em gerir a saúde, a alimentação,
visão do saber-corpo, que não é neutro, nem a natalidade, a sexualidade, impondo assim
distanciado de sua realidade, ao contrário, está o disciplinamento dos corpos. Para Daniel
organicamente imbricado nessa realidade. Fernandes e Gabriela Resmini14(1):
Toda a reflexão trazida por Donna Haraway1
nos fornece instrumentos para entendermos [biopolítica] Ela representa uma ‘grande me-
que o saber além de localizado é corporificado. dicina social’ que se aplica a população a fim
Desse modo, mais uma vez, advogo por uma de controlar a vida: a vida faz parte do campo
ciência pensada a partir do corpo. É preciso do poder. O pensamento medicalizado utili-
compreender que o corpo é marcado e atra- za meios de correção que não são meios de
vessado por marcadores sociais da diferença punição, mas meios de transformação dos

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indivíduos, e toda uma tecnologia do com- Na minha perspectiva, o movimento de


portamento do ser humano está ligada a eles. Reforma Sanitária, por ter sido idealizado e
Permite aplicar a sociedade uma distinção liderado, em sua grande maioria, por homens
entre o normal e o patológico e impor um sis- brancos oriundos da classe média, que pre-
tema de normalização dos comportamentos dominantemente eram médicos do sistema,
e das existências, dos trabalhos e dos afetos. ou professores de universidades pode ter in-
fluenciado um espelhamento da branquitude
Baseada nas obras citadas a saúde coletiva e da heteronormatividade na construção do
faz a crítica sobre a normatização dos corpos, SUS. Dessa maneira, o movimento de Reforma
entretanto, sem racializá-los; além de não dis- Sanitária não discutiu o direito à saúde a partir
cutirmos o quanto, nós planejadores de polí- da perspectiva de saberes e corpos coloniza-
ticas de saúde, também temos pensado saúde dos racializados, e, por esse motivo, utilizou-
a partir do corpo normatizado. A normatiza- -se da ideia do corpo universal. O indicativo
ção dos corpos e seu apagamento produzem disso é o fato de que o Programa Nacional de
efeitos no que concerne às práticas de saúde Saúde Integral da População Negra (PNSIPN)
na medida em que estabelece também a ideia somente foi criado no ano de 2009. O reco-
de um corpo universal. Este significa que são nhecimento de que havia (e ainda há) uma
ignorados os inúmeros atravessamentos que desigualdade brutal quanto ao acesso e à dis-
marcam os corpos dos indivíduos. Marcadores criminação nas práticas de saúde para com o
como gênero, raça, classe, geração, sexuali- povo negro somente aconteceu após 21 anos de
dade, ancestralidade entre outros, não são instituição do SUS. No entanto, é importante
evidenciados na ideia de corpo construída ressaltar que o reconhecimento da iniquida-
pela branquitude colonizadora, ou seja, o de no setor saúde ocorre somente no âmbito
corpo universal é essencialmente branco e legal, pois poucas mudanças são observadas
cis-heteronormativo. no cotidiano dos serviços no que se refere ao
Por isso, ao pensar em escrever este ensaio, combate à discriminação racial.
além do desejo de discutir os efeitos do apaga- Jurema Werneck15 em seu artigo ‘Racismo
mento do meu corpo como locus de produção institucional e saúde da população negra’ de-
de conhecimento, fui também muito motivada monstra a ausência de estudos sobre a saúde da
pela reflexão sobre a possibilidade de exis- mulher no campo da saúde coletiva. Em uma
tência dos corpos lidos como ‘estranhos’. A pesquisa preliminar a autora revela que a pes-
modernidade colonial foi bem-sucedida em quisa com o descritor ‘saúde da mulher negra’
impor a criação de um ‘Outro’, ou, aquele que obteve apenas seis artigos. Assim, Werneck
é estranho à norma do corpo branco cis-hete- levanta o questionamento sobre o porquê
rossexual. É importante deixar claro que desde dessa ausência/insuficiência de pesquisas
então a violência é exercida sobre esses corpos, que versem sobre a temática racial na saúde.
que, por sua vez, não enxergam a possibilidade A autora ressalta que não há como sabermos ao
de existência fora desse signo. Assim, esse certo a origem dessa problemática, mas levanta
corpo que não é reconhecido pelo conjunto da algumas hipóteses, tais como: desinteresse,
sociedade, pois está fora da norma, ao circular falta de estímulo ou existência de restrições
pelo sistema de saúde sofre o estigma da vio- explícitas nas instituições de pesquisas, bar-
lência. Seja a violência física como a obstétrica, reiras interpostas pelos conselhos editoriais
preponderante sobre os corpos das mulheres dos diferentes periódicos, ou a combinação de
negras, seja a violência psíquica perpetrada todos esses elementos. Todavia, o que de mais
pelos próprios trabalhadores da saúde diante importante concluímos com o apontamento da
de outros corpos tidos como fora da norma autora é que essa ausência de artigos da citada
(população LGBTQI+). temática significa a não consolidação da saúde

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O saber-corpo e a busca pela descolonização da saúde coletiva 199

da população negra e da saúde da mulher negra Isso significa dizer que mulheres negras
como campos de pesquisa, o que está relacionado ainda são as maiores vítimas de violência obs-
com o baixo grau de penetração nas instituições tétrica, ou, que corpos LGBTQI+ ainda são
de pesquisa dos debates sobre o racismo, seus im- tratados com grande estranhamento por parte
pactos na saúde e suas formas de enfrentamento. dos profissionais que atendem nos serviços
O artigo de Jurema Werneck15 dialoga sobre- de saúde. Sem falar quando o indivíduo se
maneira com o presente ensaio, pois, assim como encontra em uma encruzilhada de múltiplos
a autora, identifiquei a ausência do debate racial marcadores sociais da diferença, colocando-o
no interior da Pós-Graduação em Saúde Coletiva em uma posição de extrema vulnerabilidade.
e consequentemente, o apagamento do corpo Nessa situação seu atendimento necessitaria
negro. Outrossim, esse apagamento ocorreu in- de um olhar cuidadoso, por parte dos pro-
clusive no movimento de Reforma sanitária que fissionais de saúde, sobre os efeitos desses
teve início no final da década de 1970. Werneck múltiplos marcadores. Como afirmam Melo
corrobora meu posicionamento de que o debate e Gonçalves17(169-170):
racial esteve ausente no movimento que insti-
tuiu o SUS. A autora sublinha que o movimento Ainda que no âmbito das políticas governa-
negro, sobretudo o de mulheres negras esteve mentais universais haja uma tendência para
presente nos processos de Reforma Sanitária e o reconhecimento de singularidades identitá-
de instituição do SUS. A autora ressalta que a rias – como raça, gênero e geração –, estas em
presença do movimento negro contribuiu para a geral não são apreendidas de maneira inter-
concepção de um sistema universal de saúde com seccionada, uma vez que as ações e projetos
integralidade, equidade e participação social, mas raramente se destinam a combater, simulta-
não foi suficiente para inserir no novo sistema neamente, múltiplas diferenças e desigual-
mecanismos de superação das barreiras enfren- dades, concomitantes a formas diversas de
tadas pela população negra no acesso à saúde, discriminação e exclusão sociais.
particularmente aquelas impostas pelo racismo.
Em síntese, entender a garantia do direito à Pensemos no questionamento dos autores
saúde a partir da universalidade, como afirma sobre como desenhar políticas no âmbito do
Deivison Faustino16 “entendida nos marcos li- SUS de modo que essas visem atender o sujeito,
berais”, a meu ver, trouxe em seu bojo a garantia atravessado por múltiplos marcadores sociais da
de políticas pensadas a partir de um corpo igual- diferença. A meu ver, a questão se coloca como
mente universal. um tema no qual os pensadores do campo da
Logo, ao pensarmos saúde a partir de corpos saúde coletiva devem debruçar-se. De acordo
universais – que é o corpo não marcado pelas com um exemplo de Melo e Gonçalves17:
diferenças – observamos que há o impacto, tanto
no acesso quanto na prática de saúde em si, o que imaginemos o caso de como seria o atendi-
configura um enorme entrave para a consolidação mento numa consulta ao ginecologista a uma
das diretrizes do SUS. Como nos alerta Melo e mulher lésbica. Sabemos que os profissionais
Gonçalves17, da saúde não estão habilitados para realizar
o atendimento a pessoas fora do modelo de
apesar de termos, no âmbito federal, um nú- ‘corpo ideal’ (branco e cis-heterossexual).
mero significativo de propostas de ações que
se fundam na atenção simultânea a discri- Ou seja, essas mulheres passam pelo cons-
minações diversas, no mundo concreto das trangimento de ter de responder perguntas
políticas públicas os sujeitos continuam a ser sobre gravidez, uso de contraceptivos, aborto e
pensados universalmente. até sobre possíveis dores durante a penetração.

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Rumo à descolonização todos vocês é que a partir da questão da raça,


assumindo tal hierarquia, o pensamento de-
O trabalho de Melo e Gonçalves17 é fundamen- colonial propõe um relato sobre a totalidade
tal, pois nos alerta para o fato da necessidade que integra o gênero, a classe, a sexualidade,
de abandonarmos o ideal do corpo universal. mas que nos liberta de toda forma de euro-
Defendo então a necessidade de uma virada centrismo e trabalha para o desafio radical da
decolonial no pensamento sanitário brasileiro, modernidade que, por meio do imperialismo,
no que tange ao desenho de políticas de saúde, do capitalismo e da constituição dos Estados
para que possamos superar as desigualdades nação, contribuiu largamente na produção do
arraigadas nesse sistema. Fica claro no texto tríptico raça, classe e gênero18(9).
que a saída apontada pelos autores é por meio de
uma perspectiva interseccionada desse sujeito. Notemos que a proposta de Bouteldja18 é
A interseccionalidade configura-se como uma pensarmos as questões político-sociais com
perspectiva que pensa o sujeito a partir das múl- base em uma perspectiva decolonial; e, no
tiplas opressões sofridas. Significa olhá-lo a partir que tange à formulação de políticas públicas,
da articulação de múltiplos marcadores sociais da centremos no sujeito colonizado racializado.
diferença e apreender ‘a diferença que faz diferen- A abordagem decolonial amplia o foco, pois,
ça’ diante de um cenário de múltiplas opressões. além de trabalhar a partir da questão da raça,
Apesar da interseccionalidade configurar-se como integra outras opressões estruturais próprias
um proficiente método ou episteme de aborda- ao sujeito colonizado racializado.
gem sobre determinado problema, no caso de Destarte, por que a virada decolonial no
construção de políticas públicas, seria necessária pensamento sanitário é importante? Porque,
uma abordagem mais ampliada. dessa maneira, assumiríamos que o evento da
Houria Bouteldja18 ressalta que ao adotarmos colonização introduziu a ideia de raça como
a perspectiva interseccionada para pensarmos elemento estrutural das relações políticas,
agenda política instala-se uma problemática. Por econômicas e sociais no País. A partir daí, ins-
conta do elevado grau de abstração da perspecti- taurou a ideologia de raça superior e inferior,
va interseccional, é quase impossível determinar estabelecendo o racismo e outras formas de
uma agenda única para reivindicações políticas. opressão como o modus operandi do Estado,
Além disso, a definição de um sujeito revolucio- das instituições, das leis e das relações sociais.
nário em uma perspectiva interseccional, ou no Tendo o racismo e a cis-heteronormatividade
qual se constituirá o projeto de transformação como estruturas que organizam a vida na so-
social, representará a figura daquele indivíduo ciedade brasileira, o sistema de saúde e por
que é o mais oprimido dos oprimidos. Além disso, consequência, as políticas de saúde não passa-
de acordo com a autora, como são minoria, de- ram ilesas quanto à ingerência dessa estrutura.
penderiam daqueles que estão fora do grupo, mas A minha proposta assenta-se, portanto, na
que se solidarizam com a causa, pois, de maneira emergência de pensarmos políticas e práticas
contrária, não seria suficientemente capaz de de saúde a partir de um sujeito que passou pelo
provocar tensionamento político. evento da colonização sob o signo da violência,
Ademais, a análise de Houria Bouteldja18 ou seja, negras/os e indígenas. Isso é importan-
nos aponta para a alternativa de que seria te porque a raça ganha centralidade em nossas
mais producente nos organizarmos ao redor elaborações de políticas de saúde, ou seja, a
do sujeito colonizado racializado no sentido base para pensarmos saúde estaria na raça
de produzirmos transformações sociais mais tendo no horizonte a totalidade do sujeito que
profundas. Segundo a autora, integraria questões como gênero e sexualidade.
A classe, a meu ver, não se descola da raça, no
Aquilo que eu gostaria de dizer a todas e caso do sujeito colonizado racializado, raça é

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O saber-corpo e a busca pela descolonização da saúde coletiva 201

classe, como nos adverte Angela Davis19. do negro para o interior do pensamento políti-
O segundo movimento imprescindível no co brasileiro, mas que, infelizmente, ainda não
sentido da virada decolonial no campo da saúde alcançaram as bibliografias do campo da saúde.
coletiva está relacionada com a descoloniza- Estudantes passam pelos cursos de especializa-
ção dos saberes e corpos. Significa dizer que ção, mestrado e doutorado sem sequer ouvir falar
é necessário imprimir mudanças na formação de obras essenciais desses autores. Por outro
acadêmica dos pensadores da saúde. Apesar lado, ninguém sai do curso de Pós-Graduação
da aguda crítica que o campo da saúde coletiva em Saúde Coletiva sem entrar em contato com
faz a medicina, a grade curricular dos cursos textos de autores como: Marx, Foucault e Weber.
da pós-graduação ainda é muito branqueada. Em síntese, trilhar o caminho rumo à desco-
Temos poucas disciplinas que pautam relações lonização do campo da saúde coletiva e conse-
étnico-raciais, isto é, ainda persiste nas grades quentemente, das políticas e práticas em saúde
curriculares disciplinas cujas referências são significa repactuar o projeto de nação que foi
preponderantemente de autores europeus. Estou introjetado pelo colonizador europeu há, pelo
dizendo que não se tem discutido, nas disciplinas menos, 500 anos. Práticas racistas que até os
do curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, o dias de hoje acontecem nos sistemas de saúde
quanto a raça molda diferentes maneiras de olhar são encobertas pelo mito da democracia racial,
o mundo e o quanto são ricas as reflexões de e precisam urgentemente ser derrubadas.
autoras/es negra/os sobre os efeitos do racismo
em seus corpos e mentes. Autores que revolucio-
naram o pensamento sociológico como: Frantz Colaborador
Fanon, Clovis Moura, Abdias do Nascimento,
Lélia Gonzalez, Beatriz do Nascimento, entre Souza FA (0000-0003-2197-8609)* é respon-
muitos outros, que trouxeram o ponto de vista sável pela elaboração do manuscrito. s

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