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Negritude em Movimento

lutas, debates e conquistas da negritude amazônica


Alef Monteiro
Maira Ningrithy Martins Nery
Marilu Marcia Campelo
(Orgs.)

Negritude em Movimento
lutas, debates e conquistas da negritude amazônica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M693

Negritude em movimento: lutas, debates e conquistas da negritude


amazônica / Organizado por Alef Monteiro, Maira Ningrithy
Martins Nery e Marilu Marcia Campelo. Belém: GEAM, 2019.
130 p.

ISBN: 978-65-901988-0-8

1.Cultura e instituições 2. Ciências Humanas e Sociais.

CDD 306

Universidade Federal do Pará

Reitor
Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho

Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas


Prof. Dr. Fernando Arthur de Freitas Neves

Diretora da Faculdade de Ciências Sociais


Prof.ª Dr.ª Marise Rocha Morbach

Coordenadora do Grupo de Estudos Afro-Amazônico


Prof.ª Dr.ª Marilu Marcia Campelo

Produção Editorial
Alef Monteiro

Capa
José Adailton Marques Martins

© 2019, Alef Monteiro de Souza. Todos os direitos cedidos ao

Grupo de Estudos Afro-Amazônico


O primeiro NEAB da Região Norte

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, sala 00. Campus


Setorial Básico, Cidade Universitária José da Silveira Neto. Rua
Augusto Correa, 01, Guamá, Belém, Pará. CEP: 66075-110.

Fone: (91) 3201-8365


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RELIGIÃO

(In) tolerância religiosa


As matrizes africanas cultuam a
Não tenho religião ancestralidade
Mas tenho discernimento De orum veio ao orum voltará
Se deus católico e evangélico é amor Encantados e com a força da natureza
Porque tanta maldade em nome dele é O que demanda manda a energia vai
feito? vibrar
Deu nos jornais, no noticiário A proteção vem das ervas e das oferendas
sangrento Ao som dos tambores no ponto do santo
Mataram mais um pai de santo e entoado em yorubá
queimaram seu templo Caboclo dança e canta faz festa ao se
Se Jesus semeou a paz manifestar
O que essa humanidade está fazendo? Tolerar apenas não basta
Se ele divide espaço no conga com os Tem que haver respeito
orixás Pois que tolera suporta, mas não aceita
Porque vocês meros mortais não que o outro tenha direitos.
aceitam?
A verdade não é absoluta Shaira Mana Josy
A salvação é individual

R E L I G
G I Ã O
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Reflexos da educação formal antirracista na


construção da negritude de jovens
pentecostais
Alef Monteiro

Resumo:

O artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa do meu Trabalho de Conclusão de Curso em
Ciências Sociais realizada entre os meses de novembro de 2016 a abril de 2017 em uma
congregação da Assembleia de Deus no município de Castanhal, Região Metropolitana de
Belém. O objetivo é saber os reflexos da Educação Formal antirracista na construção da
negritude de jovens negros da comunidade religiosa estudada. A metodologia para a coleta de
dados foi a pesquisa etnográfica e os dados foram analisados à luz da Teoria Decolonial. O
estudo constatou que as mudanças nas legislações educacionais, em particular, a Lei 10.639/03
que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura dos africanos e afro-brasileiros,
vêm causando certo impacto no consciente coletivo da sociedade brasileira e, consequentemente,
na religiosidade pentecostal. Conscientes do racismo, por causa da Educação Formal antirracista,
alguns negros pentecostais têm ressignificado suas cosmovisões e forjado uma identidade negra
pentecostal com negritude própria. Esta consciência, entretanto, dá-se de maneira mais
abrangente entre os jovens, estes, sem abandonar as crenças fundamentais do pentecostalismo,
adotam diversos itens culturais afrocentrados como a estética, a música e a corporalidade, fato
que tende a tomar proporções cada vez maiores graças à Educação Formal antirracista.

Palavras-chave: Pentecostalismo. Negritude. Juventude. Educação Formal. Educação


Antirracista.

1 Introdução
O futuro se aproxima
Devagar, mas vem
Já se vai aproximando, nunca tem pressa
Vem com projetos e sacos de sementes
Com anjos maltratados e fiéis andorinhas
Devagar, mas vem
Sem fazer muito ruído
[...]
(Mario Benedetti)

Pego carona nas palavras de Mario Benedetti para falar daquilo que
vem lento, mas vem. Vem, como diz o poeta, acompanhado de anjos
maltratados, mas com um saco cheio de sementes cujas algumas já lançadas
em terra mostram suas primeiras folhagens. Infelizmente, este evento não
73

1
“A descolonização que acontece de igual modo em todos os lugares, muitos ainda não podem ou
se propõe mudar a or- não conseguiram constata-lo, por isso, não me frustro com aqueles que
dem do mundo é […] desconfiam de minhas palavras. Digo-lhes apenas que, diferente de vocês,
um programa de desor- resolvi olhar para aquilo que cresce sem nenhum ruído, sem o alarde dos
dem absoluta […] um
problemas que nós, cientistas sociais, estamos acostumados a tentar
processo histórico […]
feito por homens novos, entender.
uma nova linguagem,
uma nova humanidade” Falo do germinar de uma nova ordem do mundo, de um germinar que
(FANON, 2001, p. 30 traz consigo, como diz Fanon (2001)1, o nascimento de homens novos, com
2
uma nova linguagem, uma nova humanidade e, por sua vez, uma nova
Cito SOUZA, 2015;
ALENCAR, 2007 e educação. Por ser um dos que preconizam este novo momento, o relatarei e
CAMPOS, 2005. refletirei sobre ele também com linguagem nova, linguagem que para
muitos poderá parecer “não científica”, a questão é que nós, homens e
mulheres do antigo “Terceiro Mundo”, cultural, econômico e
fenotipicamente marcados e discriminados pelos países autores de nossa
colonização e seus herdeiros em colonialidade aqui deixados falamos em
“línguas”, para usar o termo de Anzaldúa (2000), que fogem à linguagem
habitual da academia porque questionamos o poder hegemônico e
produzimos ciência como prática intervencionista, contestadora e engajada
na construção de outro mundo possível, inclusive na maneira como
escrevemos. É desta forma que falarei de meu encontro com uma das frentes
de encaminhamento desta desapressada nova ordem de mundo.

Deparei-me com ela na investigação que realizei por ocasião de meu


trabalho de fim de curso de graduação (MONTEIRO, 2017), nele, examinei,
a partir de um estudo de caso, a matriz pentecostal brasileira e sua relação
com o racismo. Parte de minhas conclusões coincidiram com a opinião de
setores do Movimento Negro Brasileiro e com os resultados de estudos
anteriores ao meu2: grande parte do pentecostalismo é ácida aos elementos
culturais e fenotípicos oriundos do continente africano, o racismo não só
está presente entre os pentecostais como estrutura o ethos e a instituição
religiosa a qual pertencem, sendo tudo encoberto por um imaginário que
discutirei a seguir. Confesso que esta foi minha hipótese e, como cientista
militante, lamentei a constatação da mesma que pôs em cheque estudos
como o de Lopes (2013) e Burdick (2002), os quais defendem um caráter
multiétnico e inclusivista do pentecostalismo que foi gestado no meio das
camadas populacionais pobres e negras.

Entretanto, minha hipótese não estava totalmente correta, Benedetti


tinha razão, o futuro já há muito anunciado por “fiéis andorinhas” (que no
contexto que analiso são as/os teóricas/os e militantes engajados na
resistência ao sistema-mundo capitalista em toda sua colonialidade)
finalmente começa a aparecer sob mais um aspecto num conhecido espaço
de opressão e de resistência: as instituições educacionais, e este
aparecimento tem reverberado sobre o consciente coletivo e, de forma
consequente na religião. Contatei que a escola e a universidade, quando
promotoras de uma educação antirracista, têm atuado como mediadores
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culturais que ressignificam elementos culturais de origem africana até então


aviltados pelo racismo, assim, elas atuam na construção de novas
mentalidades em detrimento do imaginário racista e possibilitam o
aparecimento de uma religiosidade cada vez mais desprendida da
colonialidade e do racismo a ela inerente.

Analisarei a maneira como este fenômeno se mostrou entre os


pentecostais e, particularmente, entre a juventude negra pentecostal. A
escolha do recorte aconteceu por dois motivos: 1) a consciência do racismo
se dá de maneira mais abrangente entre os adolescentes e jovens
pentecostais que nas gerações adultas; 2) interessa-me a dialética da
mudança religiosa na construção do novo, de espaços e identidades que não
existiam.

A fim de ser didático, dividi a discussão em três partes, na primeira,


mostro a relação existente entre pentecostalismo e racismo na sociedade
brasileira, pois só assim será possível compreender o caráter revolucionário
da construção de uma negritude pentecostalizada. Em seguida, falarei sobre
os reflexos da educação antirracista, via escola e universidade, entre os
pentecostais e como isso tem modificado sua cosmovisão especialmente
entre a juventude pentecostal que, ao se conscientizar do racismo, têm
construído uma negritude própria. Por fim, encerrarei com algumas
observações que apontam para algumas possibilidades de estudo e
continuidade da pesquisa. Iniciemos, então, nosso diálogo.

2 A colonialidade da religião: relações entre racismo e


pentecostalismo na sociedade brasileira
Como mostra Dussel (1993), uma das principais estratégias da
construção do mundo colonial foi o apagamento da história local de cada
povo que se quis colonizar. Seja através da memória transmitida pela
oralidade ou pela escrita, é através da história contada que entendemos
como tudo se tornou o que é; é a história a nós contada que permite o
entendimento de quem é o grupo social do qual fazemos parte, que lugar
cabe a nós dentro dele e o que podemos esperar nos acontecimentos futuros.
Por esta razão, quero começar bem do começo, é minha intenção que
possamos entender a vocação histórica do pentecostalismo – vocação que
diz respeito a toda e qualquer religião. A maneira como o pentecostalismo
se apresenta na sociedade brasileira não é fato inexoravelmente imutável,
mas pura contingência histórica, recuperarei sua história, mostrarei como ele
foi instrumentalizado pelo colonialismo na construção das mentalidades e,
como ele tem sido utilizado de maneira diferente por mulheres e homens
novos.
75
3
Conforme GROSFO- Exatamente por isso, o início de nossa conversa não poderia ser outro
GUEL e CASTRO- senão um momento que antecede o surgimento deste movimento religioso,
GOMEZ, 2007; CÉ-
refiro-me à colonização do território das atuais Américas. Como a quase
SAIRE, 2006.
totalidade dos processos de colonização, o domínio colonial do atual
território americano não foi apenas um processo de dominação com a
intenção de obter vantagens materiais através da cobrança de tributos, bens,
riquezas e nada mais, ao contrário, ele se caracterizou num projeto social
completo que visava construir, a qualquer custo, uma nova sociedade que
fosse o espelho subalternizado das metrópoles européias. Logo, mais que
efeitos econômicos, o colonialismo interferiu na cultura e produziu modos
de se relacionar, pensar/conhecer e ser, o conjunto desses modos lhe serviu
como estrutura geradora de eficácia, e a ele chamamos de colonialidade3.

Apesar do colonialismo político-territorial dos países europeus sobre


as Américas ter chegado ao fim, os efeitos de séculos de dominação
permanecem sob a forma da colonialidade. Não há como apagá-la de uma
hora para outra, anos a fio foram gastos em sua construção, outros anos mais
serão necessários para que a mesma seja desconstruída. A colonialidade
pode ser percebida em todos os âmbitos da vida social e política: a
colonialidade do poder opera nas relações internacionais (em geral, os
países detentores de poderio econômico e político de hoje, assim como os
países pobres, são os mesmos do período colonial), como também na
divisão das classes sociais, nas relações de poder entre grupos sociais e
étnicos distintos – todos ainda guardam em si os traços delineados pela
colonização.

Tais traços lançam-se também sobre as formas de pensar: há a


colonialidade do saber que se mostra na supremacia do modelo de
pensamento europeu e suas categorias em detrimento de qualquer outro que
não nascido, inspirado ou consagrado no solo da Europa; qualquer forma de
conhecimento produzida nas ou a partir das culturas originárias dos países
colonizados é tida como fetichismo ou saberes inferiores e menos
necessários que as ciências e a Filosofia. A consequência da colonialidade
está estampada no ser dos sujeitos: violência, autoritarismo e sadismo
resumem a maneira de ser do opressor e a autodesvalia, dependência
emocional e desejo de parecer com o opressor resume a maneira de ser do
oprimido (a colonialidade do ser opera em ambos).

Na empreitada colonialista, muitas ideias foram elaboradas a fim de


dar sentido e legitimar o empreendimento da colonização, como aponta
Quijano (2005), dentre essas muitas ideias se destaca a ideia de raça e o
racismo que ela engendra. É na Modernidade – momento do colonialismo
europeu sobre as Américas, África e mais tarde Ásia e Oceania – que as
várias crenças raciais presentes no continente Europeu desde a Antiguidade
serão reunidas em doutrinas raciais legitimadoras do racismo e do
colonialismo. Cabe aqui, porém, uma observação: é verdade que os países
europeus realizaram na Era Moderna uma colonização com proporções
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4
Conforme Moore, nunca antes vistas na história da humanidade, mas como dissemos, eles
2007, p. 83-106: Alco- apenas instrumentalizaram sob a forma de “teorias” crenças que há muito
rão, Bíblia Hebraica, existiam no continente e que não eram exclusividades suas, infelizmente,
Talmude, etc. como bem observa Castoriadis (apud VIÑAR, 1998, p. 176):
5
No nazismo o princi-
O racismo participa de algo muito mais universal do que habitualmente se
pal marcador era a cul-
tura. Acreditavam que a admite. É fruto, particularmente agudo e exacerbado, uma especificação
genética inferior das monstruosa de um traço que se constata empiricamente como quase
raças abaixo da ariana universal nas sociedades humanas. Trata-se da incapacidade de construir-
determinava sua cultura se como si mesmo sem excluir o outro, e da incapacidade de excluir o
também inferior. Neste outro sem desvalorizá-lo e finalmente odiá-lo.
rol entravam Judeus,
ciganos e negros (sendo Ideais raciais podem ser verificados desde o Mahabharata (texto
que negros e ciganos sagrado do Hinduísmo), passando pelos árabe-semitas e sua literatura
também eram discrimi-
religiosa4, aos povos que já habitavam a Europa em suas crenças na
nados por sua cor, ela
era um marcador racial superioridade (passada através do sangue) de clãs e grupos étnicos em
também e por isso di- relação a outros, as quais resultaram na nobreza europeia com suas famílias
zemos que “em geral” o “de sangue azul”, ou ainda, e de modo mais recente, o racismo pode ser
racismo nazista tinha verificado entre os povos indígenas da América do Sul estudados por Pierre
como marcador a cul-
Clastres (2013) na segunda metade do século passado.
tura. Nesse sentido,
eram também portado-
res de marcadores raci- Por ser um fenômeno universal, o racismo coincide com a pluralidade
ais não culturais, isto é, das culturas humanas e isto lhe confere caráter extremamente plástico e o
fenotípicos, os defici- faz operar através de marcadores distintos. No Brasil, ele está alicerçado
entes físicos, mentais e principalmente na cor, mas também em traços físicos e culturais que têm
homossexuais, pois se
origem nos povos africanos ou indígenas, são esses itens que marcam as
acreditava que eram
humanos degenerados e “raças” existentes, já no racismo nazista, por exemplo, o marcador era em
que poderiam passar geral cultural5 e por não se poder em todos os momentos enxergar a cultura,
suas “degenerescências” os judeus foram obrigados a andar com uma faixa amarrada em seus braços
para gerações futuras). contendo o desenho de uma estrela.

Apesar dessa diferença entre marcadores visíveis e invisíveis, o


racismo em suas múltiplas formas apresenta uma característica comum. Por
racismo, compreendo o conjunto de ideais coletivos e individualizados, bem
como as ações deles resultantes baseados na crença da existência de raças. E
isto não em sentido biológico, a Engenharia Genética lançou por terra a
possibilidade da existência de raças humanas, porém, como os ideais
racializados são tão antigos como nossa capacidade de registros históricos
através da escrita, uma descoberta tão recente como esta não foi capaz de
apagar essas representações antigas do consciente coletivo do Ocidente.
Esta reminiscência resulta em um fato social: a raça. Por isso, em sentido
sociológico, "Raças são discursos sobre a origem de um grupo, que usam
termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades
morais, intelectuais, psicológicas, etc. pelo sangue” (GUIMARÃES, 2008,
p. 66).

Doravante, o racismo, como diz Quijano (2005), estruturou não só a


organização da sociedade colonial como também o desdobramento desta: a
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6
De acordo com Fon- sociedade Ocidental Capitalista contemporânea. O racismo foi a ideologia
seca (2003, p. 68), me- que outorgou legitimidade às relações de dominação de tal sorte que os
diadores culturais são
grupos identificados como de raças inferiores no passado permanecem ainda
pessoas, objetos e insti-
tuições que “atuam hoje à margem da sociedade porque a moldura social racializada ainda
como mediadores entre permanece como resultado da colonialidade.
tempos e espaços diver-
sos, contribuindo na
elaboração e na circula- Além disso, o próprio poder político e econômico mundial também
ção de representações e permanece atrelado às antigas divisões sistêmicas e aos papéis que cada raça
do imaginário. Por seu possuía, diz Quijano (Op.cit., p. 108) que “raça converteu-se no primeiro
forte enraizamento cul-
tural e sua grande mo- critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis,
bilidade, esses mediado- lugares e papel na estrutura de poder da nova sociedade [a capitalista
res atuam como catali-
sadores de ideias, sendo
industrial e hoje, a capitalista financeira]”, e ainda, “raça e divisão do
capazes de organizar trabalho, foram estruturalmente associados reforçando-se mutuamente”.
sentidos e de criar um
sistema de conexões Confirmando o que diz Quijano, mas com relação ao Brasil já na
dentro do universo cul-
tural no qual transitam”. década de 1980, Neusa Santos Souza (1983, p. 20) observa que

Nas sociedades de classes multirraciais e racistas como o Brasil, a raça


exerce funções simbólicas (valorativas e estratificadoras). A categoria
racial possibilita a distribuição dos indivíduos em diferentes posições na
estrutura de classe, conforme pertença ou esteja mais próximo dos
padrões raciais da classe/raça dominante.

E como a mentalidade racista e colonizada foi e é construída nos


indivíduos? Esta construção se dá através de mediadores culturais6 e a
religião é destacadamente um dos principais. Como diz Durkheim (2008),
para existir, as sociedades produzem representações que lhes são
estruturalmente necessárias e a religião é o fenômeno social que engloba
essas crenças sob discursos simbólicos e metafóricos, em outras palavras, a
religião apresenta a realidade social numa ordem cósmica, a confirmação e
reafirmação dessa ordem cósmica são feitas por meio de reuniões e
instituições que aproximam os indivíduos e os fazem viver uma catarse
valorativa de coletividade.

Por se utilizar dos valores mais fundamentais das sociedades em que


estão inseridas, Geertz (2008, p. 67) chega a dizer que os símbolos sagrados
sintetizam o ethos de um povo e sua visão de mundo:

Na crença e na prática religiosa, o ethos de um grupo torna-se


intelectualmente razoável porque demonstra representar um tipo de vida
idealmente adaptado ao estado de coisas atual que a visão de mundo
descreve, enquanto esta visão de mundo torna-se emocionalmente
convincente por ser apresentada como uma imagem de um estado de
coisa verdadeiro, especialmente bem arrumado para acomodar tal tipo de
vida. (GEERTZ, Ibidem).

Ora, se o ethos das sociedades que foram colonizadas é marcado pela


colonialidade racista, as religiões presentes nas terras outrora colonizadas
tenderão a refletir e promover a colonialidade. Isto pode ser verificado no
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Uma ideologia que pentecostalismo, em razão de ter suas raízes na sociedade estadunidense
“permite ao homem altamente racista e segregacionista, o pentecostalismo terminou por refletir a
comum, ao sábio e ao
lógica racial desta sociedade (CAMPOS, 2005). Muitos de seus líderes
ideólogo conceber uma
sociedade altamente iniciais tinham não só inclinações racistas como também simpatia pela Ku
dividida por hierarqui- Klux Klan. A observação da linhagem do pentecostalismo brasileiro não
zações como uma tota-
lidade integrada por deixa sombra de dúvidas sobre a influência do imaginário racista
laços humanos dados estadunidense na Assembleia de Deus que, por sua vez, sofreu em seu
com o sexo e os atribu- interior o amalgama desse imaginário com o “racismo à brasileira”
tos raciais ‘comple-
mentares’; e, final- assentado na “fábula das três raças”7, exatamente por isso, sem fazer alusão
mente, é essa fábula que à cor ou a raça o pentecostalismo brasileiro é avesso aos padrões de cultura
permite visualizar nossa
sociedade como algo
e fenótipos que remetam à África ou aos povos indígenas.
singular – especifici-
dade que nos é apre- Com efeito, sendo a comunidade por mim estudada parte do universo
sentada pelo encontro pentecostal forjado no racismo colonial, nela o racismo é a base do Ideal do
harmonioso das três
‘raças’” [negros africa- Ego, como explica Neusa Santos (Souza, 1983, p. 33 e 34), o ideal do Ego é
nos, índios e branco um modelo a partir do qual o indivíduo pode se construir “um modelo ideal,
português]. (DA-
perfeito, ou quase”, citando Freud, a autora continua: “‘há sempre uma
MATTA, 1987, p, 69-
70, grifo meu). sensação de triunfo quando algo no Ego coincide com o Ideal do Ego. E o
sentimento de culpa (bem como de inferioridade) também pode ser
8
Segundo Sovik (2001),
entendido como uma tensão entre o Ego e o Ideal do ego’”, no
branquitude é a identi- pentecostalismo o ideal do Ego é sintetizado na figura de Deus, seja nos
dade racial construída a cultos, reuniões de oração e estudos bíblicos a máxima é “temos que ser
partir de ideias de bran-
queamento que mantém igual a Deus!”. No imaginário cristão, Deus encarnado na pessoa de Jesus
os privilégios ou direi- Cristo é o modelo de vida a ser seguido (ações, fala, vestimenta, etc.) e
tos adquiridos. No sis- mais, um dia, creem os cristãos, todos serão transformados exatamente
tema racial, são traços
culturais típicos dos como Deus é.
brancos e, por isso,
ligados à sua identidade. Quando perguntei aos meus interlocutores (10 pessoas todas negras)
como eles imaginavam Deus a resposta foi unânime: Deus é homem, idoso
9
Esta é a ordem hierár- e, acima de tudo, branco. A consequência dessa representação do Deus
quica (organizada de branco legitima um rígido racismo institucional: Como o padrão estético
modo crescente) do
clero assembleiano. assembleiano é marcado pela branquitude8, uma mulher negra que deixe seu
cabelo crespo natural e o use em estilo Black Power ou mesmo faça tranças,
jamais será escolhida para assumir a liderança na igreja. As mulheres negras
com cabelo crespo ou devem alisar o cabelo ou prendê-lo com grampos para
que fique bem baixo. Os homens também são afetados pelo racismo
institucional, para ser obreiro deve-se sempre usar roupa social para ir aos
cultos, cortar o cabelo sempre baixo (corte social ou “militar” – ação que
historicamente mascara o cabelo crespo de homens negros). O obreiro
(auxiliar, diácono, presbítero, evangelista ou pastor9) deve inexoravelmente
ir ao culto de gravata. Caso não use o acessório, não poderá pregar ou sentar
no altar. Acredita-se que a gravata é o distintivo dos “oficiais” da igreja.
(MONTEIRO, 2017).

A representação do Deus branco como ideal de Ego gera sofrimento


psíquico nas mulheres negras e nos homens negros pentecostais, na
sociedade brasileira e no pentecostalismo assembleiano, a população negra é
79

10
Negritude é um con- estigmatizada e a única saída para ela é lançar mão daquilo que Fanon
ceito polissêmico. Cada (2008) chamou de “máscaras brancas”, qual seja, a negação total da
segmento da população
negritude10 e adoção dos padrões culturais eurocentrados. É desta maneira
negra tende a dar ênfase
a aspectos diferentes e a que a religião pentecostal e o racismo se misturam na sociedade brasileira e
adotar posturas políticas formam uma das faces da colonialidade.
distintas a partir de suas
próprias realidades, o

3 Educação antirracista, pentecostalismo, negritude e


juventude: novas vivências para além do racismo
que se configura em um
Como mostrei anteriormente, por contingência histórica, as igrejas
modo próprio de negri-
tude, todavia, podemos pentecostais produzem um discurso sobre a negritude que conflita com o
dizer que negritude é crescente movimento por uma valorização das culturas da Diáspora
um ideal de ser negro
que envolve aspectos Africana e da negritude. Algumas mudanças, porém, vem acontecendo neste
culturais, históricos, cenário e elas são fruto de mudanças recentes na mentalidade brasileira,
fenotípicos, políticos e geradas pela Educação Formal antirracista.
identitários centrados na
valorização dos valores
civilizatórios das cultu- O ensino da história e cultura dos africanos e afro-brasileiros tornados
ras africanas (MU- obrigatórios pela Lei 10.639/03 está na base desta mudança. Diferente da
NANGA, 1988).
maioria dos entrevistados (e até mesmo de sua mãe que é negra e para mim
declarou-se “morena”), Anita11, de 17 anos quando perguntei como se
11
Com o intuito de declarava quanto sua cor me respondeu “sou negra”. Quando lhe perguntei
resguardar meus interlo-
cutores, os nomes dados o que é ser negra, ela me disse:
a cada um, neste texto,
são fictícios. Eu não sei falar muito, mas é ter essa pele – não querendo diminuir as
outras cores – pra mim é a mais bonita. Acho a pele negra muito bonita!
Muita gente queria ser diferente de como Deus fez, mas eu não. Não
tenho que ter vergonha da minha pele, do meu cabelo, da minha
aparência. Foi Deus que me fez assim.

Diferentes de muitas mulheres da igreja, Anita não tinha cabelo


alisado, quando lhe perguntei se já alisara o cabelo alguma vez e por que,
ela me disse:

Antes sim, hoje em dia eu não aliso mais. Eu alisava ante porque, assim,
a gente aprende que cabelo crespo – cabelo fuá – é feio, mas isso é uma
opinião racista. Hoje em dia eu me arrependo muito porque eu fiz isso,
mas faz muito tempo que eu não aliso meu cabelo e hoje em dia eu to
deixando ele voltar ao normal. (grifo meu)

A entrevista de Anita foi a primeira e uma das poucas em que ouvi


uma pessoa pentecostal negra classificar como atitude racista a
discriminação que sofrera: ela reconheceu que a opinião que aprendeu sobre
seu cabelo era uma opinião racista. Imediatamente lhe perguntei onde ouvira
que essa opinião sobre o cabelo era racismo, ela então me disse: “Na escola
[Anita cursa o 2º ano do Ensino Médio], a gente estudou sobre o racismo, o
Movimento Negro, a cultura brasileira que tem raízes negras. Aí fui parar pra
pensar nessas coisas e como a sociedade é muito racista”.
80
12
Como profissional Diferente de sua mãe que alisa o cabelo e se declara “morena”, Anita,
formado na área, fiquei
contente em saber que o de 17 anos se declara negra e decidiu não alisar mais o cabelo por que
componente curricular descobriu que a opinião que tinha sobre ele era racista. Essa descoberta não
em que Ramom fez o
foi feita na igreja, e nem poderia, aconteceu no ambiente escolar, mas tem
trabalho foi Sociologia.
um reflexo profundo na forma como ela vive sua fé. Agora, Anita, sendo
ainda pentecostal, não alisa mais o cabelo e, de maneira muito valorativa,
acredita que tem a pele de cor mais bonita porque Deus a fez assim.

Ainda outro exemplo: quase todos os meus entrevistados, exceto


Ramom, de 18 anos, disseram que Umbanda e Candomblé são coisas do
Diabo, magia negra, bruxaria e outras classificações preconceituosas.
Quando lhe perguntei o que lhe vinha à mente quando ouvia falar em
Umbanda e Candomblé e quais as razões de sua compreensão sobre essas
religiões, obtive como resposta:

Mais uma religião. Pra mim, Umbanda e Candomblé são só mais uma
religião. Diferente da minha, claro que eu não concordo porque fui
criado no Cristianismo, mas acho elas mais uma religião, só isso. [...] Eu
passei a pensar assim depois de um trabalho que eu fiz na escola. O
professor passou um seminário, a gente tava estudando religião, ai ele
perguntou a religião de cada e dividiu várias religiões pra gente
pesquisar e apresentar. O meu grupo ficou com religiões afro-
brasileiras. Antes desse trabalho, pra mim tudo era macumba e coisa do
Diabo. Mas daí eu e meu grupo a gente foi no terreiro. Eu tava meio
desconfiado, mas a gente foi bem recebido, a gente conversou com a mãe
de santo, ela explicou o que era a religião, em que eles acreditam – eles
acreditam em deuses, na força da natureza, lembrei até do filme do Thor
– não tem nada a ver com o que eu achava, até voltamos lá de novo
depois do trabalho. Aí vi que é só mais uma religião.

Ramom não deixou de ser pentecostal, continua com a mesma crença


religiosa de antes da realização do trabalho escolar, mas algo mudou: a
compreensão que tinha sobre religiões de matriz africana. Hoje ele as vê
como “mais uma religião” e não como “macumba e coisa do Diabo”12.

Por fim, quero encerrar essa série de relatos com a história de Genice
– esta história junta num movimento vívido duas forças sociológicas que se
embatem no processo de transformação da religião pentecostal: de um lado
ainda a postura racista típica da colonialidade na religião e, do outro, o ser
humano que se despe da colonialidade e se consolida como alguém que
assume sua negritude sem deixar de ser pentecostal. Genice me contou que
outro dia, ao chegar no culto dos jovens, a reunião já havia começado. No
púlpito, uma jovem afinada cantava um dos hinos de abertura do encontro
religioso. Gritos elevados de “Glória a Deus!” e “Aleluia!” eram dados por
diversas pessoas claramente emocionadas. Apesar do culto já ter começado,
muitos ainda iam chegando, entravam com roupas que misturavam jeans e
social bem passados, sapatos engraxados, tênis limpos, sapatos altos e
brincos discretos combinando com a roupa.
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A líder dos jovens olhava contente, pois os jovens chegavam “bem


arrumados” – Genice me disse que naquele dia o culto parecia que ia ser
“poder de Deus”. À tarde, a líder havia pedido aos jovens que fossem
arrumados ao culto como príncipes e princesas que ali todos eram, pois
tinham por pai o “Rei dos reis e Senhor dos senhores”, o “Rei da Glória” e,
portanto, deveriam se vestir como tal: “príncipes e princesas do Senhor”.

Foi então que a felicidade deu lugar ao espanto. Genice, que é uma
jovem mulher negra acabava de passar pela porta atraindo olhares e
cochichos, ela estava vestida com uma longa saia de cor forte e estampas em
estilo africano, sua blusa, também de cor forte e quente, contrastava com a
saia. E não apenas isso, Genice usava um turbante em sua cabeça ladeado
por argolas penduradas em suas orelhas. Sem delongas, a líder desceu do
altar e foi ao encontro da jovem Genice que foi interrogada acerca de que
roupas eram aquelas e por qual motivo ela havia ido à igreja assim vestida.

Genice respondeu a sua líder: “não foi a senhora que disse para
virmos pro culto vestidos como príncipes e princesas? Então... Eu vim
vestida de princesa africana!”. Ao me contar o episódio que ora apresento
aqui, Genice me fez a seguinte observação:

“ela não disse [a líder], mas sei que ficou espantada, como muita gente
que tava no culto, por causa do racismo. Pensam que só tem princesas
igual àquelas dos contos de fadas da Disney ou como as da Inglaterra
[referindo-se aos dias atuais] e acham que ser príncipe e princesa do
Senhor é ser igual os europeus”.

A jovem me revelou que nem sempre pensou assim, disse-me que há


dois anos ela não percebia que suas roupas e os cabelos que sempre fazia
questão de deixar alisado (sendo eles naturalmente crespos) faziam
diferença no que diz respeito à forma como era vista em sua igreja. De fato,
dois anos antes, nunca a obrigaram, através de imposição direta, o uso de
certas roupas, acessórios de beleza ou o alisamento do cabelo. Tudo foi
praticado por sua própria vontade na crença de que o Espírito Santo a
compungia à adoção do modus vivendi do grupo religioso em que estava
inserida, o estranhamento que a jovem passou a ter e que a levou a cena por
nós anteriormente narrada só passou a existir depois de seu ingresso em um
curso universitário – foi na universidade que Genice se descobriu mulher
negra, a partir de então, ela decidiu assumir sua negritude.

Esses exemplos mostram uma mudança pela qual vem passando a


percepção que muitos pentecostais possuem sobre relações raciais e itens
culturais de origem africana. Movido pelas respostas desses jovens,
conversei com outros jovens e adolescentes da igreja sobre o tema e as
respostas que tive foram próximas. A tomada da consciência da existência
do racismo na religião pela via de uma educação antirracista tem provocado
mudança no ser negro pentecostal, esta consciência, entretanto, não é
homogênea em todas as faixas etárias, existe um recorte geracional, na qual
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13
Lei que institui a a consciência do racismo se dá de maneira mais abrangente entre a
obrigatoriedade da his- juventude.
tória e cultura dos povos
indígenas na Educação Os dados coletados até o presente momento indicam que há uma
Básica. relação direta entre idade, escolarização, negritude e religião motivada pelo
próprio cenário de alteração da legislação educacional brasileira: enquanto
as gerações adultas passaram pela Educação Básica entre as décadas de
1970 e 1990 – momento em que as questões étnico-raciais não eram objeto
de discussão na escola – a juventude pentecostal estudou após 2001, ano da
Conferência de Durban, na África do sul, nesta conferência, as ações
afirmativas já tão reivindicadas pelos movimentos sociais passaram a ser
recomendadas pela ONU e isto teve grande impacto no meio acadêmico
provocando intensos debates sobre cotas nas universidades, além disso, a
juventude por mim entrevistada estudou após 2003, ano de promulgação da
Lei 10.639/03 que inaugurou um momento de obrigatoriedade da inserção
de conteúdos sobre as relações étnico-raciais, e a Diáspora Africana com
toda sua resultante social e cultural.

Todavia, como alguém que é professor recém formado, portanto, que


acompanhou nos últimos três anos o dia a dia de escolas, seus
planejamentos e, em particular, a disciplina de Sociologia, digo que ainda há
muito a ser feito. Ainda há muitas lacunas na implementação da Lei
10.639/03, da Lei 11.645/0813 e na discussão dos direitos das minorias
sociais no espaço escolar. Apesar disso, é grato saber que construtos
degradantes da vida humana como o racismo têm sido pouco a pouco
desconstruídos via educação.

Os dados que coletei até o presente momento sugerem uma mudança


no pentecostalismo como resultado de forças sociais externas oriundas da
educação antirracista, via escola e universidade. A compreensão deste
processo não é difícil, a religião é o retrato do ethos de um povo (GEERTZ,
2008), por ser ela formada pelas crenças, valores e representações mais
básicas de uma sociedade (DURKHEIM, 2008), na medida em que essas
crenças, valores e representações básicas da sociedade brasileira mudem (e a
Educação Formal antirracista é uma das causas de mudança), as religiões
nela presentes tendem a mudar retratando a mudanças no ethos do povo
brasileiro.

Se esse ethos for menos racista, as religiões da sociedade brasileira


tendem a ser menos racistas. Por isso, nessas pequenas mudanças que
percebi em minha pesquisa há a sugestão de vivências e possibilidades para
além do racismo no pentecostalismo através de um movimento lento, bem
lento, mas que caminha através da educação antirracista.

Essas mudanças fazem com que pessoas como Anita, Genice, Ramom,
e quem sabe outras mulheres e outros homens continuem descobrindo e
construindo suas negritudes sendo ao mesmo tempo profundamente
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pentecostais. Como já disse anteriormente, Negritude é um conceito


polissêmico. Cada segmento da população negra tende a dar ênfase a
aspectos diferentes e a adotar posturas políticas distintas a partir de suas
próprias realidades, o que se configura em modos próprios de negritude em
cada grupo (MUNANGA, 1988). Os negros pentecostais, na medida em que
se conscientizem do racismo que embebeda o modus vivendi de sua religião
podem modelá-la, reconstruí-la e elaborar um modo próprio de ser negro e
pentecostal como Genice que além de assumir seu cabelo crespo, decidiu ir
de princesa africana para o culto, ou Anita que é feliz por achar que tem a
cor mais linda de todas, possui um cabelo bonito e que Deus simplesmente a
fez assim.

Freire (2014) nos lembra que a luta em prol de libertação por parte dos
oprimidos só tem sentido quando os oprimidos buscam recuperar sua
humanidade e essa recuperação não é nada mais que uma forma de criá-la.
Negritude é um ideal de ser negro que envolve aspectos culturais, históricos,
fenotípicos, políticos e identitários centrados na valorização dos valores
civilizatórios das culturas africanas (MUNANGA, Op. cit.) e isso não é algo
impossível aos pentecostais. Eles não são vilões do colonialismo, são apenas
oprimidos (uns mais, outros menos) que legitimam e reproduzem a lógica
colonial de forma sacralizada. Mas, dentre eles, existem aqueles que se
constroem como negras e negros pentecostais e que aponta vivências e
possibilidades para além do racismo, graças a educação antirracista via
Educação Formal, isso não pode ser negado.

4 Últimas observações
Há espaço para todas as manifestações culturais na descolonização e o
pentecostalismo é uma delas. Apresentei aqui apenas os dados coletados na
pesquisa que fiz por ocasião de minha conclusão de curso de graduação,
mas pretendo dar continuidade a mesma. Em outras visitas que fiz à
congregação, testemunhei a adoção de diversos itens culturais afrocentrados
como a estética (as jovens negras trocam entre si novidades sobre produtos e
tratamentos capilares – querem estar com os melhores cachos – e informam
umas às outras sobre lojas que vendem roupas com estampas africanas),
além da música e a e da corporeidade que se mostra em coreografias.

Mas, contra isso existe a resistência das lideranças religiosas e dos


mais velhos, posso dizer que a mudança em curso no pentecostalismo
acontece num intenso conflito de gerações e há reações, por vezes, violenta
da igreja pentecostal às ressignificações que a Educação Formal antirracista
tem engendrado na juventude negra pentecostal, isto, porém, é assunto para
outro momento.
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