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DIÁRIO DE UM CATACLISMO: LLANO Y ZAPATA E O

TERREMOTO NO PERU (1746)


Simoniely Kovalczuk

1. Introdução

Este texto reflete as relações entre tremores de terra e a


religiosidade popular no Peru colonial. Procuramos compreender o
ambiente físico e social de ocorrência dos abalos sísmicos e a
contribuição de Llano Y Zapata em torno do
fenômeno religioso e suas vinculações com a 1
comoção coletiva. A “Carta ou Diário que
escreve D. Joseph Eusébio de Llano Y Zapata, a
seu mais venerado amigo, e nomeado
correspondente, o Doutor Ignácio de Chirovara
Y Daza, cônego da Igreja de Quito”, de 1748, é
um documento que detalha aqueles
acontecimentos trágicos e nos permite
compreender como a ocorrência dos
terremotos era percebida social e Figura 1. A “Carta ou Di|rio que
emotivamente. (Figura 1). escreve D Joseph Eusébio de Llano
Y Zapata.

O estudioso limenho aborda, de maneira


impar, os desdobramentos psicológicos, econômicos e científicos na
cidade de Lima após um terremoto de grande magnitude ocorrido em
de 28 de outubro de 1746. Esses acontecimentos fatídicos não se
restringiram ao cataclismo em si, mas ao período de vários meses, em
que tremores secundários atormentavam a desvalida sociedade
limenha. O terremoto foi seguido de um maremoto que destruiu o
porto de Callao.

Os acontecimentos catastróficos e as práticas religiosas nesse


período da história peruana envolveram apenas presságios, sermões,
contendas no interior das ordens religiosas, manifestações populares,
ações administrativas e a própria reconstrução da cidade. A escrita de
Llano Y Zapata nos permite refletir sobre o espírito dessa época em
que dicotomias entre a fé e a razão se tornaram mais profundas. É
compreensível que o principal modelo de explicação para todos os
acontecimentos fosse aquele fundamentado no discurso religioso.
Entretanto, as reflexões de Llano Zapata sobre o terremoto em Lima e
Callao se inscreve na polêmica entre a ciência e os dogmas religiosos.
Neste sentido, procuramos compreender a enunciação discursiva e as
realidades e subjetividades que seu autor procurava responder. Aliás, o 2
objetivo principal da pesquisa é entender a narrativa de Llano y Zapata
no contexto desses paradigmas. Também foi o nosso intuito
demonstrar que os eventos geológicos são de interesse do historiador.
Aliás, não podemos descartá-los, pois em nossa análise suas
ocorrências abalam significativamente a estrutura de uma sociedade,
tendo desdobramentos econômicos, sociais que afetam a psique
humana. De que forma a religião católica se insere no contexto
cataclísmico de 1746? Como o discurso religioso utilizou as catástrofes
naturais para reafirmar seus preceitos? Como o terremoto em Lima foi
percebido pela população limenha?

A compreensão histórica do ambiente natural surgiu com a


segunda geração dos Annales, momento em que a história se
aproximou de outras áreas de conhecimento, tais como a geologia,
geomorfologia, vulcanologia. Neste sentido, esclarecemos que esse
conhecimento foi fecundo para a realização deste trabalho.
2. Sobre Llano y Zapata

A Carta e diário, Llano y Zapata Dirigida a Don Ignácio de


Chirovara y Daza pode ser vista como uma escrita única pelo fato de se
utilizar de explicações, distintas entre si, para o cataclismo de 1746.
Buscava descrever a situação caótica em que Lima-Callao se
encontrava e, ao mesmo tempo, olhava criticamente os acontecimentos
geológicos. Ao abordar tais problemas e as possíveis causas desses
fenômenos questionou o projeto de reconstrução da cidade. Trata-se
de uma narrativa ambígua que procura uma unidade compreensiva
entre o dogma religioso e o saber científico. Em vários momentos a
formação religiosa foi preponderante em razão de sua formação
religiosa. Aqui novamente transparece a ambiguidade, pois nesse
percurso entrou em contato com o conhecimento clássico que refletia 3
os fenômenos naturais. Aliás, ele se interessou pela botânica,
mineralogia e pelas curiosidades animais (BERQUIST: 2007, p. 124).

Ao contrário do que poderíamos pensar os terremotos são bem


registrados ao longo da história. Poemas, cânticos, tratados científicos,
preces, cartas e profecias são alguns desses documentos. No entanto,
essa massa documental foi acrescida a partir do terremoto seguido por
um maremoto que acometeu a Lisboa, no ano de 1755. Ali, também
podemos verificar uma história de fenômenos psíquicos e religiosos
amargos e um embate entre ciência e religião, na qual se sobressaiu
Françoise Mari Arouet, isto é, Voltaire.

A maioria da população limenha era cristã, embora existissem


diversas confrarias e cultos ancestrais dos povos incas. É interessante
mencionar que a correspondência encaminhada ao Conego da Igreja de
Quito, Dom Ignácio de Chirovara y Daza, caracteriza uma demarcada
rede de influências e personalismos que abrangem a vida da família e
de seu autor. Ao narrar os episódios e sofrimentos diários e mensais
expressou sensibilidade ao tratar das crenças religiosas e seu
entrelaçamento com perspectivas sociais distintas e conflitantes que
perpassavam as esferas política e econômica. Além disso, demonstrou
interesse pelas inovações, as quais já eram uma realidade entre a elite
colonial.

José Eusébio de Llano Y Zapata (1721-1780), escritor e cientista,


nasceu em Lima e morreu em Cádiz, Espanha. Era filho de Diego de
Llano Zapata e Valenzuela Rosa. Contudo, teve como pais adotivos
Diego de Llano Y Zapata e Francisca Del Cid. Seu pai o jesuíta Pedro de
Llano Y Zapata abdicou de sua tutela para que ele não caísse no
estigma do sacrilégio (PERALTA RUÍZ, 2008, p.109). Estudou no
Colégio Franciscano de Buenaventura de Guadalupe; foi aluno dos
jesuítas José Ignacio de Vargas e Alonso de la Cueva. Através de la 4
Cueva teve acesso à maior biblioteca da América hispânica na época, a
Biblioteca do Colégio Máximo de San Pablo de Lima. Para Berquist
(2007, p. 124), Llano y Zapata era um católico ilustrado.

Entre 1751 e 1755, ele viajou para o Chile, Argentina, Brasil e


Espanha com o objetivo de publicar suas obras. Em 1755, buscou,
inutilmente, a autorização das autoridades espanholas para difundir
seus pensamentos. Contudo, nesse período, publicou uma versão de
suas memórias. Entre suas obras se destacam Resolución en consulta
sobre la irregularidad de las terminaciones "exiet" y "transiet" del
capítulo 6 de Judith y 51 de Isaías, que según reglas de la latinidad
pedían ser Exibit y Transibit , Lima 1743; Respuestas a que satisface don
José Eusebio Llano Zapata a los dos reparos que a unas cartas latinas
que escribió, puso el Lic. Mariano de Alcocer, Lima 1745; tradução de
Hygiasticon o verdadero modo de conservar la salud , do jesuíta
Leonardo Lessio, sd.; Observación Diaria Crítico-Histórico-
Meteorológico, contiene todo lo acontecido en Lima, desde el 1 de marzo
de 1747 hasta el 28 del mismo, 1747 e, Respuesta dada al Rey nuestro
señor D. Fernando el Sexto, sobre una pregunta que SM hizo a un
Matemático y experimentado en las tierras de Lima, sobre el Terremoto
acaecido en el día primero de noviembre de 1755 , Sevilla,1756. Em
1761, enviou ao rei da Espanha um manuscrito detalhando os recursos
minerais da América Meridional. Tratava-se de “Memorias histórico,
físicas, critico, apologéticas de la América Meridional”, onde fez
observações “fundamentais para a compreensão dos reinos vegetal e
animal”, além de descrições das minas de sal e de vulcanismo
(BERQUIST, 2007, p. 24). Como se pode constatar, sua educação foi
bastante diferenciada, embora distanciada da formação universitária.
Segundo Peralta Ruiz, essa formação não impediu sua ascensão à alta
sociedade limenha, durante o governo do Vice-Rei Marques de
Villagarcia.
5
As redes de patriarcalismo, paternalismo e clientelismo são
marcas inerentes ao sistema adotado pelas elites coloniais hispano-
americanas. Segundo Peralta Ruiz (2008, p.108), esses três modelos
eram amplamente adotados nas estratégias visando à promoção
corporativa e individual. O estudioso Llano Y Zapata se fez presente
nessas redes de personalismo. Embora não tenha sido bem sucedido
nesse meio, era um dos autores mais prestigiados entre os clérigos. A
produção de Llano Y Zapata foi canalizada para fora dos círculos
burocráticos, embora que permanecesse sua insaciável busca por
cargos e privilégios. A influência familiar e a aproximação ao Cônego da
Igreja de Quito, Don Ignácio de Chirovara Y Daza e mesmo a chegada
de Antônio Manso Velasco ao poder lhe permitiu um acesso limitado a
esse tipo de sociabilidade transplantada e adaptada do mundo
europeu.

Em relação ao terremoto no Peru de 1746, Llano Y Zapata


exerceu um papel fundamental. A sua curiosidade científica o levou a
estudar os efeitos colaterais imediatos do grande movimento sísmico e
suas sequelas. Ele acreditava que os incêndios provocados na cidade
eram oriundos das cavidades subterrâneas. Este tipo de explicação
remonta aos filósofos gregos que associavam os fenômenos naturais à
anatomia humana. A concepção moderna de John Michell após o
terremoto de Lisboa (1755) ainda se valia daqueles princípios
(WALKER: 2004, p. 22).

Llano Y Zapata contabilizou os tremores que se sucederam ao


evento principal, além dos estragos materiais e humanos. A obra foi
pensada por Chirovara y Daza, que conseguiu junto aos governos de
Manso e Velasco, a autorização para a sua publicação, em meados de
1748 (PERALTA RUIZ: 2008, p.110). Aliás, sua obra não foi bem
recebida por Antônio Manso Velasco que o acusava de ter desprezado a
ação do Vice-Rei na reconstrução da cidade e, por ter feitos duras 6
críticas ao projeto arquitetônico de reconstrução de Lima, realizada
pelo arquiteto espanhol Luis Godin. Tal fato o levou a uma
marginalização enquanto escritor, bem como a perda de contato com
Chirovara y Daza, o que o obrigou a buscar apoio fora do Peru.

O estilo da escrita de Llano Y Zapata era requintada. Contrastava a


fluidez da filosofia, com a linguagem científica e poética. Peralta Ruíz
argumenta que nas produções de Llano Zapata era possível perceber
influências claras da escolástica jesuítica. Além dessa característica se
destaca seu humanismo. É por este motivo que concluímos que em
seus escritos prevaleceu uma escrita plural que detalhou eventos
estarrecedores.
3. O terremoto de 1746

O Peru está situado na chamada região de fogo do Pacífico


Ocidental, isto é, uma área de grande intensidade sísmica. Por
conseguinte, Lima está nas bordas da placa tectônica sul-americana, o
que a transforma em área de constante movimentação e acomodação
gerando, assim, abalos sísmicos com maior frequência nas zonas
orogenéticas (LEINZ & AMARAL: 1989, p. 282).

Os colonizadores espanhóis não tardaram em comprovar aquilo


que as populações nativas já sabiam acerca dos tremores de terra e
vulcanismo. As atividades sísmicas, vulcânicas e mesmo os maremotos
eram entendidos como manifestações das divindades incas. Estes
fenômenos não impediram a conquista espanhola, uma vez que as 7
populações ameríndias e europeias foram aprendendo a conviver com
eles. A cidade dos reis foi projetada com o intuito de ser a capital. Sua
localização se deu em razão dos abundantes recursos naturais do vale
do Rímac e da estrutura viária inca que ali desembocava. Segundo
Schmidt (1997, p.03), tal posição permitia uma ligação mais eficiente
com o mar, facilitando assim a escoação de ouro e prata.

Llano y Zapata documenta estes episódios da história natural.


Desde a chegada dos europeus à região, foram presenciados vários
terremotos. Entre eles os de 1582, 1586, 1909, 1630, 1655, 1678,
1687, 1696, 1699, 1725, 1732, 1734 e 1743. Os seis últimos não
causaram grandes estragos quando comparados aos oito primeiros.
Estes destruíram totalmente a cidade, com expressivas perdas
humanas. Entre 28 de outubro de 1746 e 28 de outubro de 1736, Llano
Y Zapata registrou 568 tremores de terra.
Segundo Pérez Mallaína (2001, p.53) o terremoto de 1746 gerou
uma destruição sem precedentes. No sábado, dia 26 de outubro, o
clima era de angústia. Os tremores permaneciam ao mesmo tempo em
que escasseavam os alimentos: "faltou primeiro o pão, porque as
oficinas e fornos foram demolidos, os instrumentos de amassar foram
aniquilados, não sendo possível produzir nos três primeiros dias
depois do terremoto [...]" (LLANO Y ZAPATA, 1748, p. 5). As primeiras
ações do Vice-rei do Peru, Don José Antonio Manso de Velasco, além de
alocar os desabrigados foi o de abastecer a população ordenando que
as províncias vizinhas encaminhassem trigo, ao mesmo tempo em que
convocava padeiros, além do fornecimento de carne fresca.

Como a quantidade de corpos era enorme, havia a ameaça de


epidemias. Estimava-se que havia 10.000 mortos em Lima, Callao e
arredores. Depois do impacto inicial "morreram nesta cidade, depois 8
do terremoto, mais de duas mil pessoas em epidemias de tifo,
inflamações pleurais, disenteria e cólicas hep|ticas [...]” (LLANO Y
ZAPATA, 1748, p. 23). O porto de Callao, por sua vez, registrou a morte
de 5000 pessoas. Apenas 200 delas se salvaram. Dois dias depois a
população de Lima soube que um maremoto atingiu o porto de Callao.
A narração de Llano y Zapata é poética e profundamente triste: "[...] as
quatro da tarde a cidade recebeu a infausta notícia de que saindo o mar
de seu centro, vinha sobre os cidadãos para inundá-los com as suas
ondas. O choro das crianças, os chorosos lamentos das mulheres, os
suspiros dos homens, e as queixas dos velhos foram tantos que,
fizeram um novo mar de lágrimas, a confusão dos gemidos" (LLANO Y
ZAPATA, 1748, p. 2-3).
A confusão e a desordem se somaram ao roubo e a pilhagem.
Soldados foram incumbidos de vigiar a cidade, dia e noite. O Vice-Rei
ordenou que até mesmo os objetos que refluíam para a praia de Callao
fossem vigiados e recolhidos para evitar a cobiça e a presença de
pessoas desonestas. Havia inclusive um decreto que previa a prisão
perpétua para estes delitos. Llano y Zapata (1748, p. 13) dizia a Ignácio
de Chirovara que abominava essas práticas: "[...] porque entendo que
este solo ha de conhecer vossa mercê, o insolente da plebe e gente
baixa da corte, que nem por medo da terra castigada, nem por temor a
um Deus ofendido, distingue o sagrado para seus furtos e roubos".

A estrutura da cidade não correspondia às necessidades sociais.


Construções mal erigidas, amontoadas e elevadas geravam um
ambiente propício à ampliação da catástrofe. As medidas de
reconstrução da cidade instauraram uma série de medidas para que a
mesma pudesse ser erigida de uma forma a garantir mais segurança.
Entre as determinações presentes no plano de
Luiz Godín, está a proibição da construção de
prédios de altura elevada (LLANO Y ZAPATA,
1748, p.10). Cogitou-se mudar o sítio da cidade, 9
elaborando novo traçado, nos quais as ruas
deveriam ser mais largas. Como essa ideia não
vingou, recomendou-se que os prédios não
tivessem mais de quatro metros, com exceção dos
muros dos conventos, os quais deveriam ser
feitos de adobe ou tijolo. As estruturas mais
Figura 2. Retrato do Conde da
elevadas deveriam ser de palha e madeira, sem
Superonda, Vice-rei do Peru, varandas ou sacadas. As torres dos templos
Don José Antonio Manso de
Velasco. Museu da Catedral também deveriam ter no máximo oito metros de
Metropolitana de Lima.
altura. O vice-rei Manso de Velasco procurou
amenizar os efeitos da catástrofe. Durante dois
anos procurou reedificar a capital e o porto de Callao, onde erigiu uma
enorme fortaleza. Por este motivo, recebeu do rei Fernando VI
(8/02/1748) o título de conde de Superunda, em memória do
maremoto de 1746. (Figura2).
A situação estratégica de Lima facilitou a ocupação dos
interiores coloniais. O interesse de Francisco Pizarro tinha esta
preocupação. O acesso ao mar facilitava contato com a metrópole. A
fundação ocorreu em 18 de janeiro de 1535, devido a sua proximidade
com o dia 06 de janeiro, dia dos três reis magos na religião católica,
Lima passou a ser conhecida como a cidade dos Reis (SCHIMIDT:1997,
p.5).

Llano y Zapata utilizou vários conceitos para explicar a existência


de terremotos. Para ele, tratava-se de grandes “movimentos de terra”.
Essas explicações, mescladas com fenômenos espirituais foram
constituídas dentro de uma pertinência empírica. Como ressalta
O’Phelan (2007), no século XVIII se propagaram os conhecimentos em
história natural, bem como discussões acerca das causas físicas e
teorias que pudessem dar suporte à compreensão da constituição da 10
terra (BLANCO: 2002, p.261).

Llano y Zapata (1748) descreveu o terremoto seguindo o modelo


de diário ou carta, oferecendo aos leitores um panorama da tragédia
humana vivenciada pela população limenha. Apesar de a narrativa ser
original e apresentar uma versão do espanhol arcaico é quase que
inteiramente compreensível. Na narração do cataclísmico mostra a
ansiedade e tentativa desesperada da população em lidar com os seus
problemas. Mostra-se também as medidas adotadas pelo clero, suas
justificativas, além de o governo procurar assistir estas pessoas e
reconstruir a cidade em meio a uma sociedade de privilégios e de
exclusão social.

Às dez e meia da noite de 28 de outubro de 1746, um terremoto


de magnitude estimada de 8,5 na escala Richter, destruiu a cidade de
Lima e Callao. A duração do abalo sísmico é controversa. Segundo
Llano Zapata (1748) o episódio sísmico teve duração de três a quatro
minutos. Foi o suficiente para destruir praticamente toda a cidade.
Llano y Zapata destacou que os principais edifícios e residências
sucumbiram nos primeiros instantes, revelando a precariedade das
construções e o completo despreparo para aquelas situações. Das três
mil edificações de Lima, somente vinte e cinco permaneceram em pé.
Ele enfatiza a dramaticidade destes acontecimentos: “parecia que
todos os elementos da natureza se uniram para destruir totalmente
Lima e seu alrededor”. (LLANO Y ZAPATA:1748, 7).

O ambiente era de desolação e medo. Vinte e quatro horas depois


do terremoto haviam se sucedido cerca de 200 tremores de terra,
colocando a cidade em estado de polvorosa (LLANO Y ZAPATA, 1748,
p.6). A praça maior passou a ser o centro econômico e religioso da
cidade de Lima. Era nesse local que as pessoas dormiam, alimentavam-
se e manifestavam sua fé. Pessoas mal vestidas, descalças, doentes, 11
apáticas compartilhavam o mesmo espaço. As ruas estavam cheias de
escombros, o que dificultava o resgate e a reconstrução. As réplicas, as
lamúrias, as penitências e as orações eram constantes. Esta situação
retardava as poucas tentativas de reconstrução.

O setor econômico foi o mais afetado. Lima estava falida


juntamente com seus habitantes. Para que o processo de reconstrução
se efetivasse era necessário muito capital, o qual somente foi angariado
ao longo de vários anos. O Vice-rei solicitou que o processo de
reconstrução se iniciasse o quanto antes, exigindo que fossem
construídas edificações capazes de resistir a força dos movimentos
sísmicos.
4. O imaginário religioso

As estruturas religiosas de Lima foram abaladas em 1746. Em


meio às ruínas da cidade os edifícios religiosos permaneciam em pé.
Entretanto, as Torres da Catedral de Lima desmoronaram (Figura 3). O
mesmo aconteceu com a s igrejas de San Agustín, la Merced e San
Pablo. Por outro lado, Llano Y Zapata, representante assumido do
racionalismo cristão, não concebia a contradição entre o saber crítico e
os dogmas religiosos (PERALTA RUÍZ, 2001). Considerou que o
terremoto era uma punição divina que servia de exemplo à sociedade.
No documento analisado ele chega a vincular o terremoto à
premonição realizada por uma monja. Tratava-se da Madre Tereza de
Jesus, que vivia reclusa no convento das Descalças de São José. Ela teria
dito a um padre de sua ordem que, em seus sonhos, via Deus irritado
com a blasfêmia e a sensualidade da população de Lima. Por isto, a 12
cidade seria castigada. Ela, por outro lado, não sofreria nada, pois
morreria antes. Ela faleceu 13 dias antes do cataclismo (LLANO Y
ZAPATA, 1748, p.29).

Dessa forma, Llano y Zapata explorou ricamente o conjunto de


desdobramentos morais e psicológicos que envolveram a população de
Lima e a região circundante após o terremoto de 1746. Conforme
destaca Scarlett O’ Phelan (2007, p.21), a época analisada ainda era
estritamente vinculada ao discurso religioso. Tudo aquilo que as
pessoas não eram capazes de explicar, atribuía-se à esfera mística ou
sobrenatural. Nesse contexto, os sermões dos padres e a atuação dos
religiosos estimularam o pensamento cristão que fazia a vinculação do
terremoto com a ira divina. Perpetuava-se, também, a crença de que
somente a religião poderia redimi-los, uma vez que as ações
pecaminosas eram as únicas causas da fúria celestial. A população
deveria buscar a redenção de seus pecados. Para contemplar essa
demanda espiritual, as procissões se tornaram frequentes, chegando a
reunir mais de 6000 pessoas (LLANO Y ZAPATA, 1748, p. 9).

Figura 3. Pintura anônima da Pinacoteca da Sacristia da Catedral


de Lima com danos visíveis do terremoto de 1687 e o roubo das
hóstias da paróquia do sacrário, em 1711.
13
E se a ocorrência recorrente de abalos sísmicos impelia
constantes réplicas, isto se dava em razão da perpetuação do clima de
terror instaurado. Por outro lado a ciência cogitava a existência desses
pequenos tremores posteriores a um grande movimento telúrico. Estes
eram explorados ao extremo pelos religiosos. Serviam também para
justificar seus discursos e o poder divino. Para os clérigos era
necessário se arrepender e mostrar publicamente tal arrependimento,
principalmente pelo autoflagelamento (LLANO Y ZAPATA, 1748, p.11).

Llano y Zapata, narrou uma procissão destinada à imagem de


Santa Maria. A imagem da Santa fora levada para a Praça Maior, após o
cataclismo. Ela foi colocada em uma capela de madeira, construída com
a finalidade protetiva. Ali se realizavam sermões, sendo que discurso
do padre F. Luis Galindo, proferido em 20 de outubro de 1687, foi ali
imortalizado: “Lima, Lima...tus pecados son tu ruyna” (LLANO ZAPATA,
1748, p.4). Criava-se, assim, a necessidade de encontrar as possíveis
causas destas catástrofes, pois somente tendo o conhecimento das
mesmas seria possível articular as ações, visando alcançar o perdão
divino. O’Phelan (2007) destaca em sua pesquisa, alguns desses
aspectos. A mentalidade da época, legitimada pelo discurso religioso,
pregava que o evento cataclísmico havia ocorrido em decorrência de
quatro ofensas principais: as injustiças cometidas em relação aos
pobres, as práticas ilícitas da usura, o pecado da luxúria, bem como a
indecência das mulheres com seus escandalosos vestidos.

Walker (2004, p.45) também ressalta o papel da vestimenta


escandalosa das mulheres, os pecados dos próprios sacerdotes, e, em
geral, a vida pecaminosa vivenciada pela sociedade limenha. Aliás, a
pouca roupa que as mulheres usavam significava uma ruptura com os
códigos morais. Na verdade estes comportamentos desregrados eram
vistos como uma afronta à religiosidade. É interessante demarcar que 14
o terremoto não foi visto como uma única punição. Ao contrário, a
crença era de que tudo aquilo era apenas um aviso de algo maior ainda
ocorreria. Três meses após o terremoto foi decretado, que “todas as
mulheres de qualquer estado, distinção ou condição usassem roupas
que chegassem até os pés e, quando montassem uma mula, os
cobrissem, da mesma maneira que deveriam ter os braços cobertos até
os punhos [...]” (WALKER, 2004, p.44).

É interessante observar que dois anos antes da ocorrência do


terremoto de 1746, padres franciscanos realizaram a reimpressão do
exemplar “Solio de Honor, et gloria Norte de pureza, y claros
desengaños, para persudiar a lãs mujeres, vayan honestas em sus
trajes y escotes”, de Juan Angustín Ramirez. A crítica contestava a
moral indumentária das mulheres. O próprio Vice-rei, Conde da
Superonda, criticou a conduta pecaminosa de Lima, principalmente a
das mulheres, as quais teriam sido a causa principal dos terremotos.
O’Phelan (2007, p.22), destaca a posição do arcebispo de Lima
quanto a questão da vestimenta. No entanto, a critica era dirigida a
homens e mulheres. Demonstra claramente a sua preocupação com a
sexualidade, buscando criar uma lei que fundamentasse e regulasse a
aparição pública, condenando aqueles que impusessem sua presença
“escandalosa” { sociedade, a excomunhão: “Que de ningúm modo usen
de lo que es traje y adorno femenino, ni que bailen em funções algunas
como lo han acostumbrado, y bajo de la misma pena proihibimos que
ninguma mujer pueda disfrazarse de tal traje varonil’ (PÉREZ
MALLAÍNA, 2001, p. 398-399).

Walker (2004, p. 31) enfatiza que as premonições tiveram um


papel emblemático no seio da religiosidade cristã. A trajetória do
franciscano Joaquim de La Parra permite vislumbrar o efeito
controlador do discurso religioso, perpetuado durante anos. O clérigo 15
rezou sua missa costumeira na Igreja Matriz de sua ordem em Lima,
em 7 de novembro de 1756, no convento São Francisco. Naquele
momento, referiu-se a oito religiosas que tinham persistentes
premonições sobre a destruição de Lima. Segundo ele, os relatos de
ambas convergiam em alguns aspectos, pois concordavam que Deus se
revoltou com a sociedade de Lima, inclusive com os clérigos. Por outro
lado, informava que a destruição de Lima também ocorreria por bolas
que fogo, provenientes do céu. A Igreja Católica condenou o discurso
de Parra. O resultado foi um processo da Inquisição contra o clérigo. A
discussão sobre a validade e a veridicidade das afirmações de Parra é
um exemplo muito interessante para compreendermos as diferenças
existentes entre os diversos setores da igreja e sua hierarquização: o
arcebispado, a inquisição, as ordens, os padres e as próprias monjas
(WALKER, 2004, p.32).

As premonições das monjas também incluíam os levantamentos


da população negra, escrava ou livre, nos arredores de Lima. Algumas
previsões acarretaram a ampliação do medo junto à população. O
capelão do mosteiro das Descalças de São José, frei Joseph González
Terranes, deu testemunho sobre as visões de Madre Tereza de Jesus.
Informava que ela se reportava a visões nas quais Lima era engolida
por um terremoto. Aliás, segundo estes relatos, ela via em seus
pesadelos a cidade totalmente destruída.

As previsões de madre Tereza de Jesus alcançaram proporções


consideráveis. No entanto, como o testemunho de uma mulher poderia
ser considerado em uma sociedade patriarcal? Walker (2004, p.35)
buscou compreender o valor atribuído às premonições femininas.
Concluiu-se que na mentalidade daquela população a mulher tinha um
poder especial para se comunicar com Deus. Por outro lado, devido a
sua fragilidade não se concebia que elas pudessem receber sinais tão
significativos. Nesse ponto, o Concílio de Trento (1545-1563), mesmo 16
limitando o papel das mulheres, ainda permitia uma prática bastante
heterodoxa. Reconheciam e difundiam a ideia de que as mulheres
tinham uma sensibilidade especial que lhes permitia receber sinais
divinos. Em todo caso, as mulheres também eram consideradas débeis
e ingênuas, o que tirava o crédito de suas visões. Esse misticismo
feminino era visto como algo falso e danoso à sociedade.

A ocorrência de procissões foi uma constante nesse período pós-


cataclismo. De acordo com Llano Zapata (1748), as procissões
alteravam totalmente a rotina da população e por vezes tinham uma
legião de mais de 6 mil fiéis. Diversos eram os santos a quem os
mesmos recorriam entre os quais se destacavam Santa Rosa, padroeira
da cidade e São Francisco Solano. Dessa forma, a igreja mantinha seu
monopólio ideológico, impedindo qualquer tipo de ameaça a sua
posição enquanto instrumento regulador da sociedade.
5. Conclusão

Llano y Zapata carregou consigo a marca da ilegitimidade. No


entanto, valeu-se das redes de personalismo para se impor
socialmente. Sua estratégia não teve os efeitos esperados.
Independentemente de seu sucesso ou fracasso profissional não seria
correto ignorar seus méritos em descrever acontecimentos tão
trágicos.

Sua narrativa envolvia ambiguamente ciência e religiosidade,


embora não desprezasse o teor político de suas críticas ressentidas aos
poderes coloniais. Tal contribuição é significativa, pois escreveu seu
nome na história, ajudando a preencher um importante capítulo da
história peruana. A sua escrita não deve ser usada somente para
compreender o evento em si, mas sim todos aqueles que possuem 17
natureza semelhante.

A obra de Llano Y Zapata nos abre muitas possibilidades de


pesquisa. A que seguimos neste trabalho foi a influência do
pensamento católico na assimilação dessa catástrofe natural. Por fim,
concluímos que a Igreja Católica demonizava a vida cotidiana, fazendo
com que, a sociedade limenha vivesse em um continuo estado de alerta
e tensão em meio a fenômenos naturais de grande repercussão social e
histórica.
Referências

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