Este texto reflete as relações entre tremores de terra e a
religiosidade popular no Peru colonial. Procuramos compreender o ambiente físico e social de ocorrência dos abalos sísmicos e a contribuição de Llano Y Zapata em torno do fenômeno religioso e suas vinculações com a 1 comoção coletiva. A “Carta ou Diário que escreve D. Joseph Eusébio de Llano Y Zapata, a seu mais venerado amigo, e nomeado correspondente, o Doutor Ignácio de Chirovara Y Daza, cônego da Igreja de Quito”, de 1748, é um documento que detalha aqueles acontecimentos trágicos e nos permite compreender como a ocorrência dos terremotos era percebida social e Figura 1. A “Carta ou Di|rio que emotivamente. (Figura 1). escreve D Joseph Eusébio de Llano Y Zapata.
O estudioso limenho aborda, de maneira
impar, os desdobramentos psicológicos, econômicos e científicos na cidade de Lima após um terremoto de grande magnitude ocorrido em de 28 de outubro de 1746. Esses acontecimentos fatídicos não se restringiram ao cataclismo em si, mas ao período de vários meses, em que tremores secundários atormentavam a desvalida sociedade limenha. O terremoto foi seguido de um maremoto que destruiu o porto de Callao.
Os acontecimentos catastróficos e as práticas religiosas nesse
período da história peruana envolveram apenas presságios, sermões, contendas no interior das ordens religiosas, manifestações populares, ações administrativas e a própria reconstrução da cidade. A escrita de Llano Y Zapata nos permite refletir sobre o espírito dessa época em que dicotomias entre a fé e a razão se tornaram mais profundas. É compreensível que o principal modelo de explicação para todos os acontecimentos fosse aquele fundamentado no discurso religioso. Entretanto, as reflexões de Llano Zapata sobre o terremoto em Lima e Callao se inscreve na polêmica entre a ciência e os dogmas religiosos. Neste sentido, procuramos compreender a enunciação discursiva e as realidades e subjetividades que seu autor procurava responder. Aliás, o 2 objetivo principal da pesquisa é entender a narrativa de Llano y Zapata no contexto desses paradigmas. Também foi o nosso intuito demonstrar que os eventos geológicos são de interesse do historiador. Aliás, não podemos descartá-los, pois em nossa análise suas ocorrências abalam significativamente a estrutura de uma sociedade, tendo desdobramentos econômicos, sociais que afetam a psique humana. De que forma a religião católica se insere no contexto cataclísmico de 1746? Como o discurso religioso utilizou as catástrofes naturais para reafirmar seus preceitos? Como o terremoto em Lima foi percebido pela população limenha?
A compreensão histórica do ambiente natural surgiu com a
segunda geração dos Annales, momento em que a história se aproximou de outras áreas de conhecimento, tais como a geologia, geomorfologia, vulcanologia. Neste sentido, esclarecemos que esse conhecimento foi fecundo para a realização deste trabalho. 2. Sobre Llano y Zapata
A Carta e diário, Llano y Zapata Dirigida a Don Ignácio de
Chirovara y Daza pode ser vista como uma escrita única pelo fato de se utilizar de explicações, distintas entre si, para o cataclismo de 1746. Buscava descrever a situação caótica em que Lima-Callao se encontrava e, ao mesmo tempo, olhava criticamente os acontecimentos geológicos. Ao abordar tais problemas e as possíveis causas desses fenômenos questionou o projeto de reconstrução da cidade. Trata-se de uma narrativa ambígua que procura uma unidade compreensiva entre o dogma religioso e o saber científico. Em vários momentos a formação religiosa foi preponderante em razão de sua formação religiosa. Aqui novamente transparece a ambiguidade, pois nesse percurso entrou em contato com o conhecimento clássico que refletia 3 os fenômenos naturais. Aliás, ele se interessou pela botânica, mineralogia e pelas curiosidades animais (BERQUIST: 2007, p. 124).
Ao contrário do que poderíamos pensar os terremotos são bem
registrados ao longo da história. Poemas, cânticos, tratados científicos, preces, cartas e profecias são alguns desses documentos. No entanto, essa massa documental foi acrescida a partir do terremoto seguido por um maremoto que acometeu a Lisboa, no ano de 1755. Ali, também podemos verificar uma história de fenômenos psíquicos e religiosos amargos e um embate entre ciência e religião, na qual se sobressaiu Françoise Mari Arouet, isto é, Voltaire.
A maioria da população limenha era cristã, embora existissem
diversas confrarias e cultos ancestrais dos povos incas. É interessante mencionar que a correspondência encaminhada ao Conego da Igreja de Quito, Dom Ignácio de Chirovara y Daza, caracteriza uma demarcada rede de influências e personalismos que abrangem a vida da família e de seu autor. Ao narrar os episódios e sofrimentos diários e mensais expressou sensibilidade ao tratar das crenças religiosas e seu entrelaçamento com perspectivas sociais distintas e conflitantes que perpassavam as esferas política e econômica. Além disso, demonstrou interesse pelas inovações, as quais já eram uma realidade entre a elite colonial.
José Eusébio de Llano Y Zapata (1721-1780), escritor e cientista,
nasceu em Lima e morreu em Cádiz, Espanha. Era filho de Diego de Llano Zapata e Valenzuela Rosa. Contudo, teve como pais adotivos Diego de Llano Y Zapata e Francisca Del Cid. Seu pai o jesuíta Pedro de Llano Y Zapata abdicou de sua tutela para que ele não caísse no estigma do sacrilégio (PERALTA RUÍZ, 2008, p.109). Estudou no Colégio Franciscano de Buenaventura de Guadalupe; foi aluno dos jesuítas José Ignacio de Vargas e Alonso de la Cueva. Através de la 4 Cueva teve acesso à maior biblioteca da América hispânica na época, a Biblioteca do Colégio Máximo de San Pablo de Lima. Para Berquist (2007, p. 124), Llano y Zapata era um católico ilustrado.
Entre 1751 e 1755, ele viajou para o Chile, Argentina, Brasil e
Espanha com o objetivo de publicar suas obras. Em 1755, buscou, inutilmente, a autorização das autoridades espanholas para difundir seus pensamentos. Contudo, nesse período, publicou uma versão de suas memórias. Entre suas obras se destacam Resolución en consulta sobre la irregularidad de las terminaciones "exiet" y "transiet" del capítulo 6 de Judith y 51 de Isaías, que según reglas de la latinidad pedían ser Exibit y Transibit , Lima 1743; Respuestas a que satisface don José Eusebio Llano Zapata a los dos reparos que a unas cartas latinas que escribió, puso el Lic. Mariano de Alcocer, Lima 1745; tradução de Hygiasticon o verdadero modo de conservar la salud , do jesuíta Leonardo Lessio, sd.; Observación Diaria Crítico-Histórico- Meteorológico, contiene todo lo acontecido en Lima, desde el 1 de marzo de 1747 hasta el 28 del mismo, 1747 e, Respuesta dada al Rey nuestro señor D. Fernando el Sexto, sobre una pregunta que SM hizo a un Matemático y experimentado en las tierras de Lima, sobre el Terremoto acaecido en el día primero de noviembre de 1755 , Sevilla,1756. Em 1761, enviou ao rei da Espanha um manuscrito detalhando os recursos minerais da América Meridional. Tratava-se de “Memorias histórico, físicas, critico, apologéticas de la América Meridional”, onde fez observações “fundamentais para a compreensão dos reinos vegetal e animal”, além de descrições das minas de sal e de vulcanismo (BERQUIST, 2007, p. 24). Como se pode constatar, sua educação foi bastante diferenciada, embora distanciada da formação universitária. Segundo Peralta Ruiz, essa formação não impediu sua ascensão à alta sociedade limenha, durante o governo do Vice-Rei Marques de Villagarcia. 5 As redes de patriarcalismo, paternalismo e clientelismo são marcas inerentes ao sistema adotado pelas elites coloniais hispano- americanas. Segundo Peralta Ruiz (2008, p.108), esses três modelos eram amplamente adotados nas estratégias visando à promoção corporativa e individual. O estudioso Llano Y Zapata se fez presente nessas redes de personalismo. Embora não tenha sido bem sucedido nesse meio, era um dos autores mais prestigiados entre os clérigos. A produção de Llano Y Zapata foi canalizada para fora dos círculos burocráticos, embora que permanecesse sua insaciável busca por cargos e privilégios. A influência familiar e a aproximação ao Cônego da Igreja de Quito, Don Ignácio de Chirovara Y Daza e mesmo a chegada de Antônio Manso Velasco ao poder lhe permitiu um acesso limitado a esse tipo de sociabilidade transplantada e adaptada do mundo europeu.
Em relação ao terremoto no Peru de 1746, Llano Y Zapata
exerceu um papel fundamental. A sua curiosidade científica o levou a estudar os efeitos colaterais imediatos do grande movimento sísmico e suas sequelas. Ele acreditava que os incêndios provocados na cidade eram oriundos das cavidades subterrâneas. Este tipo de explicação remonta aos filósofos gregos que associavam os fenômenos naturais à anatomia humana. A concepção moderna de John Michell após o terremoto de Lisboa (1755) ainda se valia daqueles princípios (WALKER: 2004, p. 22).
Llano Y Zapata contabilizou os tremores que se sucederam ao
evento principal, além dos estragos materiais e humanos. A obra foi pensada por Chirovara y Daza, que conseguiu junto aos governos de Manso e Velasco, a autorização para a sua publicação, em meados de 1748 (PERALTA RUIZ: 2008, p.110). Aliás, sua obra não foi bem recebida por Antônio Manso Velasco que o acusava de ter desprezado a ação do Vice-Rei na reconstrução da cidade e, por ter feitos duras 6 críticas ao projeto arquitetônico de reconstrução de Lima, realizada pelo arquiteto espanhol Luis Godin. Tal fato o levou a uma marginalização enquanto escritor, bem como a perda de contato com Chirovara y Daza, o que o obrigou a buscar apoio fora do Peru.
O estilo da escrita de Llano Y Zapata era requintada. Contrastava a
fluidez da filosofia, com a linguagem científica e poética. Peralta Ruíz argumenta que nas produções de Llano Zapata era possível perceber influências claras da escolástica jesuítica. Além dessa característica se destaca seu humanismo. É por este motivo que concluímos que em seus escritos prevaleceu uma escrita plural que detalhou eventos estarrecedores. 3. O terremoto de 1746
O Peru está situado na chamada região de fogo do Pacífico
Ocidental, isto é, uma área de grande intensidade sísmica. Por conseguinte, Lima está nas bordas da placa tectônica sul-americana, o que a transforma em área de constante movimentação e acomodação gerando, assim, abalos sísmicos com maior frequência nas zonas orogenéticas (LEINZ & AMARAL: 1989, p. 282).
Os colonizadores espanhóis não tardaram em comprovar aquilo
que as populações nativas já sabiam acerca dos tremores de terra e vulcanismo. As atividades sísmicas, vulcânicas e mesmo os maremotos eram entendidos como manifestações das divindades incas. Estes fenômenos não impediram a conquista espanhola, uma vez que as 7 populações ameríndias e europeias foram aprendendo a conviver com eles. A cidade dos reis foi projetada com o intuito de ser a capital. Sua localização se deu em razão dos abundantes recursos naturais do vale do Rímac e da estrutura viária inca que ali desembocava. Segundo Schmidt (1997, p.03), tal posição permitia uma ligação mais eficiente com o mar, facilitando assim a escoação de ouro e prata.
Llano y Zapata documenta estes episódios da história natural.
Desde a chegada dos europeus à região, foram presenciados vários terremotos. Entre eles os de 1582, 1586, 1909, 1630, 1655, 1678, 1687, 1696, 1699, 1725, 1732, 1734 e 1743. Os seis últimos não causaram grandes estragos quando comparados aos oito primeiros. Estes destruíram totalmente a cidade, com expressivas perdas humanas. Entre 28 de outubro de 1746 e 28 de outubro de 1736, Llano Y Zapata registrou 568 tremores de terra. Segundo Pérez Mallaína (2001, p.53) o terremoto de 1746 gerou uma destruição sem precedentes. No sábado, dia 26 de outubro, o clima era de angústia. Os tremores permaneciam ao mesmo tempo em que escasseavam os alimentos: "faltou primeiro o pão, porque as oficinas e fornos foram demolidos, os instrumentos de amassar foram aniquilados, não sendo possível produzir nos três primeiros dias depois do terremoto [...]" (LLANO Y ZAPATA, 1748, p. 5). As primeiras ações do Vice-rei do Peru, Don José Antonio Manso de Velasco, além de alocar os desabrigados foi o de abastecer a população ordenando que as províncias vizinhas encaminhassem trigo, ao mesmo tempo em que convocava padeiros, além do fornecimento de carne fresca.
Como a quantidade de corpos era enorme, havia a ameaça de
epidemias. Estimava-se que havia 10.000 mortos em Lima, Callao e arredores. Depois do impacto inicial "morreram nesta cidade, depois 8 do terremoto, mais de duas mil pessoas em epidemias de tifo, inflamações pleurais, disenteria e cólicas hep|ticas [...]” (LLANO Y ZAPATA, 1748, p. 23). O porto de Callao, por sua vez, registrou a morte de 5000 pessoas. Apenas 200 delas se salvaram. Dois dias depois a população de Lima soube que um maremoto atingiu o porto de Callao. A narração de Llano y Zapata é poética e profundamente triste: "[...] as quatro da tarde a cidade recebeu a infausta notícia de que saindo o mar de seu centro, vinha sobre os cidadãos para inundá-los com as suas ondas. O choro das crianças, os chorosos lamentos das mulheres, os suspiros dos homens, e as queixas dos velhos foram tantos que, fizeram um novo mar de lágrimas, a confusão dos gemidos" (LLANO Y ZAPATA, 1748, p. 2-3). A confusão e a desordem se somaram ao roubo e a pilhagem. Soldados foram incumbidos de vigiar a cidade, dia e noite. O Vice-Rei ordenou que até mesmo os objetos que refluíam para a praia de Callao fossem vigiados e recolhidos para evitar a cobiça e a presença de pessoas desonestas. Havia inclusive um decreto que previa a prisão perpétua para estes delitos. Llano y Zapata (1748, p. 13) dizia a Ignácio de Chirovara que abominava essas práticas: "[...] porque entendo que este solo ha de conhecer vossa mercê, o insolente da plebe e gente baixa da corte, que nem por medo da terra castigada, nem por temor a um Deus ofendido, distingue o sagrado para seus furtos e roubos".
A estrutura da cidade não correspondia às necessidades sociais.
Construções mal erigidas, amontoadas e elevadas geravam um ambiente propício à ampliação da catástrofe. As medidas de reconstrução da cidade instauraram uma série de medidas para que a mesma pudesse ser erigida de uma forma a garantir mais segurança. Entre as determinações presentes no plano de Luiz Godín, está a proibição da construção de prédios de altura elevada (LLANO Y ZAPATA, 1748, p.10). Cogitou-se mudar o sítio da cidade, 9 elaborando novo traçado, nos quais as ruas deveriam ser mais largas. Como essa ideia não vingou, recomendou-se que os prédios não tivessem mais de quatro metros, com exceção dos muros dos conventos, os quais deveriam ser feitos de adobe ou tijolo. As estruturas mais Figura 2. Retrato do Conde da elevadas deveriam ser de palha e madeira, sem Superonda, Vice-rei do Peru, varandas ou sacadas. As torres dos templos Don José Antonio Manso de Velasco. Museu da Catedral também deveriam ter no máximo oito metros de Metropolitana de Lima. altura. O vice-rei Manso de Velasco procurou amenizar os efeitos da catástrofe. Durante dois anos procurou reedificar a capital e o porto de Callao, onde erigiu uma enorme fortaleza. Por este motivo, recebeu do rei Fernando VI (8/02/1748) o título de conde de Superunda, em memória do maremoto de 1746. (Figura2). A situação estratégica de Lima facilitou a ocupação dos interiores coloniais. O interesse de Francisco Pizarro tinha esta preocupação. O acesso ao mar facilitava contato com a metrópole. A fundação ocorreu em 18 de janeiro de 1535, devido a sua proximidade com o dia 06 de janeiro, dia dos três reis magos na religião católica, Lima passou a ser conhecida como a cidade dos Reis (SCHIMIDT:1997, p.5).
Llano y Zapata utilizou vários conceitos para explicar a existência
de terremotos. Para ele, tratava-se de grandes “movimentos de terra”. Essas explicações, mescladas com fenômenos espirituais foram constituídas dentro de uma pertinência empírica. Como ressalta O’Phelan (2007), no século XVIII se propagaram os conhecimentos em história natural, bem como discussões acerca das causas físicas e teorias que pudessem dar suporte à compreensão da constituição da 10 terra (BLANCO: 2002, p.261).
Llano y Zapata (1748) descreveu o terremoto seguindo o modelo
de diário ou carta, oferecendo aos leitores um panorama da tragédia humana vivenciada pela população limenha. Apesar de a narrativa ser original e apresentar uma versão do espanhol arcaico é quase que inteiramente compreensível. Na narração do cataclísmico mostra a ansiedade e tentativa desesperada da população em lidar com os seus problemas. Mostra-se também as medidas adotadas pelo clero, suas justificativas, além de o governo procurar assistir estas pessoas e reconstruir a cidade em meio a uma sociedade de privilégios e de exclusão social.
Às dez e meia da noite de 28 de outubro de 1746, um terremoto
de magnitude estimada de 8,5 na escala Richter, destruiu a cidade de Lima e Callao. A duração do abalo sísmico é controversa. Segundo Llano Zapata (1748) o episódio sísmico teve duração de três a quatro minutos. Foi o suficiente para destruir praticamente toda a cidade. Llano y Zapata destacou que os principais edifícios e residências sucumbiram nos primeiros instantes, revelando a precariedade das construções e o completo despreparo para aquelas situações. Das três mil edificações de Lima, somente vinte e cinco permaneceram em pé. Ele enfatiza a dramaticidade destes acontecimentos: “parecia que todos os elementos da natureza se uniram para destruir totalmente Lima e seu alrededor”. (LLANO Y ZAPATA:1748, 7).
O ambiente era de desolação e medo. Vinte e quatro horas depois
do terremoto haviam se sucedido cerca de 200 tremores de terra, colocando a cidade em estado de polvorosa (LLANO Y ZAPATA, 1748, p.6). A praça maior passou a ser o centro econômico e religioso da cidade de Lima. Era nesse local que as pessoas dormiam, alimentavam- se e manifestavam sua fé. Pessoas mal vestidas, descalças, doentes, 11 apáticas compartilhavam o mesmo espaço. As ruas estavam cheias de escombros, o que dificultava o resgate e a reconstrução. As réplicas, as lamúrias, as penitências e as orações eram constantes. Esta situação retardava as poucas tentativas de reconstrução.
O setor econômico foi o mais afetado. Lima estava falida
juntamente com seus habitantes. Para que o processo de reconstrução se efetivasse era necessário muito capital, o qual somente foi angariado ao longo de vários anos. O Vice-rei solicitou que o processo de reconstrução se iniciasse o quanto antes, exigindo que fossem construídas edificações capazes de resistir a força dos movimentos sísmicos. 4. O imaginário religioso
As estruturas religiosas de Lima foram abaladas em 1746. Em
meio às ruínas da cidade os edifícios religiosos permaneciam em pé. Entretanto, as Torres da Catedral de Lima desmoronaram (Figura 3). O mesmo aconteceu com a s igrejas de San Agustín, la Merced e San Pablo. Por outro lado, Llano Y Zapata, representante assumido do racionalismo cristão, não concebia a contradição entre o saber crítico e os dogmas religiosos (PERALTA RUÍZ, 2001). Considerou que o terremoto era uma punição divina que servia de exemplo à sociedade. No documento analisado ele chega a vincular o terremoto à premonição realizada por uma monja. Tratava-se da Madre Tereza de Jesus, que vivia reclusa no convento das Descalças de São José. Ela teria dito a um padre de sua ordem que, em seus sonhos, via Deus irritado com a blasfêmia e a sensualidade da população de Lima. Por isto, a 12 cidade seria castigada. Ela, por outro lado, não sofreria nada, pois morreria antes. Ela faleceu 13 dias antes do cataclismo (LLANO Y ZAPATA, 1748, p.29).
Dessa forma, Llano y Zapata explorou ricamente o conjunto de
desdobramentos morais e psicológicos que envolveram a população de Lima e a região circundante após o terremoto de 1746. Conforme destaca Scarlett O’ Phelan (2007, p.21), a época analisada ainda era estritamente vinculada ao discurso religioso. Tudo aquilo que as pessoas não eram capazes de explicar, atribuía-se à esfera mística ou sobrenatural. Nesse contexto, os sermões dos padres e a atuação dos religiosos estimularam o pensamento cristão que fazia a vinculação do terremoto com a ira divina. Perpetuava-se, também, a crença de que somente a religião poderia redimi-los, uma vez que as ações pecaminosas eram as únicas causas da fúria celestial. A população deveria buscar a redenção de seus pecados. Para contemplar essa demanda espiritual, as procissões se tornaram frequentes, chegando a reunir mais de 6000 pessoas (LLANO Y ZAPATA, 1748, p. 9).
Figura 3. Pintura anônima da Pinacoteca da Sacristia da Catedral
de Lima com danos visíveis do terremoto de 1687 e o roubo das hóstias da paróquia do sacrário, em 1711. 13 E se a ocorrência recorrente de abalos sísmicos impelia constantes réplicas, isto se dava em razão da perpetuação do clima de terror instaurado. Por outro lado a ciência cogitava a existência desses pequenos tremores posteriores a um grande movimento telúrico. Estes eram explorados ao extremo pelos religiosos. Serviam também para justificar seus discursos e o poder divino. Para os clérigos era necessário se arrepender e mostrar publicamente tal arrependimento, principalmente pelo autoflagelamento (LLANO Y ZAPATA, 1748, p.11).
Llano y Zapata, narrou uma procissão destinada à imagem de
Santa Maria. A imagem da Santa fora levada para a Praça Maior, após o cataclismo. Ela foi colocada em uma capela de madeira, construída com a finalidade protetiva. Ali se realizavam sermões, sendo que discurso do padre F. Luis Galindo, proferido em 20 de outubro de 1687, foi ali imortalizado: “Lima, Lima...tus pecados son tu ruyna” (LLANO ZAPATA, 1748, p.4). Criava-se, assim, a necessidade de encontrar as possíveis causas destas catástrofes, pois somente tendo o conhecimento das mesmas seria possível articular as ações, visando alcançar o perdão divino. O’Phelan (2007) destaca em sua pesquisa, alguns desses aspectos. A mentalidade da época, legitimada pelo discurso religioso, pregava que o evento cataclísmico havia ocorrido em decorrência de quatro ofensas principais: as injustiças cometidas em relação aos pobres, as práticas ilícitas da usura, o pecado da luxúria, bem como a indecência das mulheres com seus escandalosos vestidos.
Walker (2004, p.45) também ressalta o papel da vestimenta
escandalosa das mulheres, os pecados dos próprios sacerdotes, e, em geral, a vida pecaminosa vivenciada pela sociedade limenha. Aliás, a pouca roupa que as mulheres usavam significava uma ruptura com os códigos morais. Na verdade estes comportamentos desregrados eram vistos como uma afronta à religiosidade. É interessante demarcar que 14 o terremoto não foi visto como uma única punição. Ao contrário, a crença era de que tudo aquilo era apenas um aviso de algo maior ainda ocorreria. Três meses após o terremoto foi decretado, que “todas as mulheres de qualquer estado, distinção ou condição usassem roupas que chegassem até os pés e, quando montassem uma mula, os cobrissem, da mesma maneira que deveriam ter os braços cobertos até os punhos [...]” (WALKER, 2004, p.44).
É interessante observar que dois anos antes da ocorrência do
terremoto de 1746, padres franciscanos realizaram a reimpressão do exemplar “Solio de Honor, et gloria Norte de pureza, y claros desengaños, para persudiar a lãs mujeres, vayan honestas em sus trajes y escotes”, de Juan Angustín Ramirez. A crítica contestava a moral indumentária das mulheres. O próprio Vice-rei, Conde da Superonda, criticou a conduta pecaminosa de Lima, principalmente a das mulheres, as quais teriam sido a causa principal dos terremotos. O’Phelan (2007, p.22), destaca a posição do arcebispo de Lima quanto a questão da vestimenta. No entanto, a critica era dirigida a homens e mulheres. Demonstra claramente a sua preocupação com a sexualidade, buscando criar uma lei que fundamentasse e regulasse a aparição pública, condenando aqueles que impusessem sua presença “escandalosa” { sociedade, a excomunhão: “Que de ningúm modo usen de lo que es traje y adorno femenino, ni que bailen em funções algunas como lo han acostumbrado, y bajo de la misma pena proihibimos que ninguma mujer pueda disfrazarse de tal traje varonil’ (PÉREZ MALLAÍNA, 2001, p. 398-399).
Walker (2004, p. 31) enfatiza que as premonições tiveram um
papel emblemático no seio da religiosidade cristã. A trajetória do franciscano Joaquim de La Parra permite vislumbrar o efeito controlador do discurso religioso, perpetuado durante anos. O clérigo 15 rezou sua missa costumeira na Igreja Matriz de sua ordem em Lima, em 7 de novembro de 1756, no convento São Francisco. Naquele momento, referiu-se a oito religiosas que tinham persistentes premonições sobre a destruição de Lima. Segundo ele, os relatos de ambas convergiam em alguns aspectos, pois concordavam que Deus se revoltou com a sociedade de Lima, inclusive com os clérigos. Por outro lado, informava que a destruição de Lima também ocorreria por bolas que fogo, provenientes do céu. A Igreja Católica condenou o discurso de Parra. O resultado foi um processo da Inquisição contra o clérigo. A discussão sobre a validade e a veridicidade das afirmações de Parra é um exemplo muito interessante para compreendermos as diferenças existentes entre os diversos setores da igreja e sua hierarquização: o arcebispado, a inquisição, as ordens, os padres e as próprias monjas (WALKER, 2004, p.32).
As premonições das monjas também incluíam os levantamentos
da população negra, escrava ou livre, nos arredores de Lima. Algumas previsões acarretaram a ampliação do medo junto à população. O capelão do mosteiro das Descalças de São José, frei Joseph González Terranes, deu testemunho sobre as visões de Madre Tereza de Jesus. Informava que ela se reportava a visões nas quais Lima era engolida por um terremoto. Aliás, segundo estes relatos, ela via em seus pesadelos a cidade totalmente destruída.
As previsões de madre Tereza de Jesus alcançaram proporções
consideráveis. No entanto, como o testemunho de uma mulher poderia ser considerado em uma sociedade patriarcal? Walker (2004, p.35) buscou compreender o valor atribuído às premonições femininas. Concluiu-se que na mentalidade daquela população a mulher tinha um poder especial para se comunicar com Deus. Por outro lado, devido a sua fragilidade não se concebia que elas pudessem receber sinais tão significativos. Nesse ponto, o Concílio de Trento (1545-1563), mesmo 16 limitando o papel das mulheres, ainda permitia uma prática bastante heterodoxa. Reconheciam e difundiam a ideia de que as mulheres tinham uma sensibilidade especial que lhes permitia receber sinais divinos. Em todo caso, as mulheres também eram consideradas débeis e ingênuas, o que tirava o crédito de suas visões. Esse misticismo feminino era visto como algo falso e danoso à sociedade.
A ocorrência de procissões foi uma constante nesse período pós-
cataclismo. De acordo com Llano Zapata (1748), as procissões alteravam totalmente a rotina da população e por vezes tinham uma legião de mais de 6 mil fiéis. Diversos eram os santos a quem os mesmos recorriam entre os quais se destacavam Santa Rosa, padroeira da cidade e São Francisco Solano. Dessa forma, a igreja mantinha seu monopólio ideológico, impedindo qualquer tipo de ameaça a sua posição enquanto instrumento regulador da sociedade. 5. Conclusão
Llano y Zapata carregou consigo a marca da ilegitimidade. No
entanto, valeu-se das redes de personalismo para se impor socialmente. Sua estratégia não teve os efeitos esperados. Independentemente de seu sucesso ou fracasso profissional não seria correto ignorar seus méritos em descrever acontecimentos tão trágicos.
Sua narrativa envolvia ambiguamente ciência e religiosidade,
embora não desprezasse o teor político de suas críticas ressentidas aos poderes coloniais. Tal contribuição é significativa, pois escreveu seu nome na história, ajudando a preencher um importante capítulo da história peruana. A sua escrita não deve ser usada somente para compreender o evento em si, mas sim todos aqueles que possuem 17 natureza semelhante.
A obra de Llano Y Zapata nos abre muitas possibilidades de
pesquisa. A que seguimos neste trabalho foi a influência do pensamento católico na assimilação dessa catástrofe natural. Por fim, concluímos que a Igreja Católica demonizava a vida cotidiana, fazendo com que, a sociedade limenha vivesse em um continuo estado de alerta e tensão em meio a fenômenos naturais de grande repercussão social e histórica. Referências
1. BERQUIST, Emily Kay. The science of a empire: Bishop Martinez
Companon and de Enlightenment in Peru. Tese de doutoramento. Austin: University of Texas, 2007. 2. LLANO Y ZAPATA, Carta ou Diário que escreve D.Joseph Eusébio de Llano Y Zapata , a seu mais venerado amigo, e nomeado correspondente , o Doutor Ignácio de Chirovara Y Daza, Cônego da Santa Igreja de Quito(1748). 3. SCHIMDT, Anthony Oliver. El terremoto de 1746 de Lima: El modelo colonial, el dessarollo urbano y los peligros naturales. La Red, Red de estúdios Sociales em Prevención de Desastres em América Latina, 1997. 4. PERALTA RUÍZ, Victor. Las redes personales em Perú y España:Pablo de Olavide y José Eusébio de Llano Y Zapata (2004). 18 Revista Complutense de História de América,vol.34, 107-128. 5. PÉREZ MALLAÍNA, P.E. Retrato de uma ciudad em crisis. La sociedade Limeña antes al movimento sísmico de 1746. Sevilla: Consejo Superior de nvestigaciones Cientif cas, 2001. 6. BLANCO, F.-Sanches. La mentalidade ilustrada. Madrid: Taurus, 2002. 7. LEINZ, V., AMARAL, S. E. do. Geologia Geral. São Paulo: Editora Nacional, 1989. 8. O’PHELAN, Scarllet. La moda Francesa y el terremoto de Lima em 1746. Boletim do instituto Francês de estudos Andinos, 2007, vol.36, p. 19-38. 9. WALKER, CHARLES. Desde El terremoto a las bolas de fuego: Premoniciones conventuales sobre lá destrucción de Lima em em siglo XVIII. Relaciones 97, vol.XXV, 2004.