Você está na página 1de 889

Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário


Literatura, Interfaces, Fronteiras

Realizado de 15 a 17 de setembro de 2010


Manaus – AM
Brasil

Universidade do Estado do Amazonas

Reitor
José Aldemir de Oliveira

Pró-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa


Maria das Graças Vale Barbosa

Comissão organizadora
Juciane Cavalheiro (Coordenadora Geral)
Universidade do Estado do Amazonas

Emerson da Cruz Inácio (Co-promoção)


Universidade de São Paulo

Roberto Vecchi (Co-promoção)


Università di Bologna

Aline Neves – UEA


Allison Leão – UEA
Carlos Renato Rosário de Jesus – UEA
Jeiviane Justiniano – UEA
Marcelo Seráfico – UFAM
Michele Brasil – UFRJ/UFAM
Otávio Rios – UEA
Renata Nobre – UEA

Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário: literatura,


interfaces, fronteiras / Allison Leão, Juciane Cavalheiro (orgs.).
Manaus: UEA Edições, 2010.

889 p.

ISBN 978-85-7883-161-5

1. Ensaios Brasileiros I. Título. II. Leão, Allison. III. Cavalheiro, Juciane.

CDD B869.4

Os conceitos, as afirmações e os erros gramaticais contidos nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores, assim como quaisquer imagens
inseridas nos textos. De igual modo, os organizadores restringiram a revisão formal dos textos apenas à formatação estabelecida nas circulares. Assim, as
incorreções quanto às normas da ABNT que extrapolam esse referencial são de inteira responsabilidade dos autores.

2
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Apresentação

É com grande prazer que a Cátedra Amazonense de Estudos Literários

saúda mais uma vez os participantes do Colóquio Poéticas do Imaginário, nesta

sua segunda edição. Outra vez nos reunimos na Universidade do Estado do

Amazonas (UEA), entre os dias 15 e 17 de setembro de 2010, para trocar ideias,

fazer circular a produção acadêmica em âmbito regional, nacional e

internacional e debater a respeito de questões pertinentes aos estudos literários

em articulação com diversos saberes.

Nesta oportunidade, temos a satisfação de trazer a público os Anais do II

Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário: literatura, interfaces, fronteiras.

O que o leitor tem em mãos é a reunião de boa parte dos trabalhos completos

apresentados durante o evento. Pelo conjunto dos trabalhos ora publicados, tem-se

a dimensão das discussões empreendidas no Colóquio, cuja proposta, desde a

primeira edição do evento, tem sido a articulação de diversas vozes e

pensamentos, tanto do campo literário quanto de áreas e saberes

convergentes/divergentes. Na atual edição, o Colóquio radicaliza esta proposta

oportunizando a seus participantes o diálogo com áreas do pensamento como a

sociologia, a linguística, a filosofia, a psicanálise, a mitologia, entre outras. O

conjunto das cominicações mostrará por si a pluralidade a que nos referimos.

Os cerca de cem trabalhos que compõem este volume foram ordenados

alfabeticamente, a partir dos nomes de seus autores. Para facilitar a localização

de um dado trabalho, há um índice de autores na página subsequente a esta.

Quando se tratar de trabalho em co-autoria, a ordem alfabética partirá do nome

do primeiro autor.

Mais do que uma quantidade razoável de trabalhos, esperamos que o leitor

tenha uma visada sobre a multiplicidade do que hoje se pensa no estudo da

literatura – em sua relação com a cultura, com a arte, com a filosofia... É com esse

caráter dialogal que esperamos cumprir-se mais uma jornada de debates neste

Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário.

Allison Leão/ Juciane Cavalheiro

Organizadores

3
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Índice de Autores

Adalberto Luiz da Silva Rocha Júnior........................06 Ingrid de Souza Sampaio..........................................368

Adriana Aguiar............................................................12 Ingrid Nayara Duarte de Jesus..................................376

Adriane Figueira Batista/ Iris de Fátima Guerreiro Bastos................................386

Ulysses Maciel de Oliveira Neto..............................22 Isaac Newton Almeida Ramos..................................396

Alai Garcia Diniz........................................................31 Isadora Desterro e S. Xavier.....................................405

Alexandre da Silva Pimentel.......................................40 Jéssica de Souza Carneiro.........................................410

Aline Cavalcante Ferreira...........................................50 José Ailson Lemos de Souza/

Aline de Souza Muniz.................................................61 Carlos Augusto Viana da Silva...............................422

Aline Magalhães Pinto................................................69 José Hildo de Oliveira Filho.....................................432

Alyni Ferreira Costa....................................................79 Juliana da Silva Morais/

Ana Cláudia Veras Santos...........................................88 Vanessia Pereira Noronha/

Andréia Jordania Moreira de Araujo..........................96 Roberto Mibielli.....................................................440

Ariana Barreto do Nascimento..................................105 Juliana Maria Silva de Sá..........................................451

Arlene Fernandes Vasconcelos.................................112 Juline Ribeiro Silva

Armando de Melo Lisboa.........................................122 Augusto Sarmento-Pantoja.....................................457

Augusto Sarmento-Pantoja.......................................149 Kamila Oliveira de Lima...........................................470

Carla Monteiro de Souza/ Karoline Fernandes Teixeira.....................................479

Patrícia Rodrigues Maravalha.................................164 Kedma Janaina Freitas Damasceno...........................485

Carmem Spotti/ Kenedi Santos Azevedo............................................494

Carla Monteiro de Souza.........................................175 Kevny Soares Porto...................................................505

Carolina de Aquino Gomes.......................................184 Kigenes Simas...........................................................514

Cátia Monteiro Wankler............................................195 Laíse H. B. Araújo....................................................524

Cristiana Mota...........................................................206 Larissa Pollari Araújo...............................................534

Débora Renata de Freitas Braga/ Linda Midori Tsuji Nishikido...................................541

Otávio Rios.............................................................213 Luciana Marino do Nascimento................................552

Dilce Pio Nascimento................................................222 Luciene Oliveira Vieira.............................................557

Dominich Pereira Cardone........................................229 Luiz Guilherme Melo de Souza................................565

Edith Santos Corrêa..................................................237 Luiz Henrique Barreto de Moura Costa....................572

Edvaldo Manoel dos Santos Almeida.......................246 Marcos Vinícius Scheffel..........................................579

Elaine Pastana Valério..............................................254 Maria das Neves Rocha de Castro............................585

Emyster Handel Vicente Gaia...................................262 Maria Elenice Costa Lima.........................................592

Enrique V. Nuesch....................................................275 Mariana Marques......................................................600

Fabricio M. Souza.....................................................286 Maria Sebastiana de Morais Guedes.........................608

Fadul Moura..............................................................294 Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto........618

Fúlvio de Oliveira Saraiva/ Mateus Epifânio Marques/

Fernanda Maria Abreu Coutinho............................302 Cláudia Regina Ferreira Santos...............................627

Giselle Brandão Jaime..............................................312 Mayara Miranda de Sena…………………..............637

Gleidys Maia.............................................................322 Mirella Miranda……………………………............645

Greiciele Rodrigues Da Costa/ Mônica do Corral Vieira...........................................654

Cláudia Regina Ferreira Santos...............................330 Patrícia Maravalha/

Harald Sá Peixoto Pinheiro.......................................341 Cátia Wankler...........................................................661

Henrique Finco..........................................................352 Patrícia Soares Lima/

Herica Maria Castro dos Santos................................360 Marcelo Bastos Seráfico de Assis Carvalho.............674

4
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Pedro Secundino de Souza Maciel............................683 Tânia Sarmento-Pantoja............................................789


Pedro Rodolfo Fernandes da Silva............................693 Thyaggo Kauwhê José Leite Mesquita.....................800
Pollyanna Furtado Lima............................................703 Tiago Barbosa Souza................................................809
Priscila Lira/ Ulysses Maciel de Oliveira Neto..............................821
Otávio Rios.............................................................714 Vanessia Pereira Noronha/
Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira.........722 Roberto Mibielli......................................................831
Roberto Mibielli........................................................730 Veridiana Valente Pinheiro/
Rodolfo Pereira da Silva...........................................741 Tânia Sarmento-Pantoja............................................841
Rosa Maria T. Fonseca..............................................752 Victor de Oliveira Pinto Coelho................................848
Sônia Maria Vasques Castro.....................................759 Victor Leandro da Silva............................................859
Suely Barros Bernardino da Silva.............................767 Wanúbya Campelo....................................................868
Suênia Kdidija Araújo Feitosa..................................776 Yasmin Serafim.........................................................875
Suzana Pinto do Espírito Santo.................................782 Zemaria Pinto............................................................881

5
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O AMOR CORTÊS NA OBRA DE BERNAL DE BONAVAL


Adalberto Luiz da Silva Rocha Júnior1 (UFAM)

Resumo: Para Duby o Amor Cortês é um jogo, e como em todo jogo, existem regras a serem
seguidas. Dessas regras duas são mais relevantes: o segredo e a distância. Nesse modelo, a mulher
ocupa um lugar central e de dominação em relação ao amante. Para a realização deste, existem
obstáculos. Para o trovador e a mulher amada, proibidos de concretizar qualquer ato carnal, amar ao
estilo cortês é uma aventura. Nesse contexto encontram-se as cantigas de amor, manifestação
literária do gênero lírico trovadoresco, que expressam outra sensibilidade poética diferente do que
havia antes. No meio de vários autores deste momento, destaca-se Bernal de Bonaval, com dez
cantigas de amor e nove de amigo. De suas dez canções de amor, utilizarei uma em especial, a qual
apresenta uma singularidade de conteúdo face às outras. Nela o eu - lírico pede a Deus para ver a
amada e também um lugar onde com ela possa falar, o que quebraria, assim, as regras da distância e
posteriormente do segredo.

Palavras chave: Trovadorismo; Cantigas; Amor cortês.

Em meio a tantas modificações vividas pelo ocidente europeu na Idade Média, um chama
mais atenção por ser um fator de extrema importância para a história da literatura. Esse
acontecimento foi o surgimento de um novo sentimento poético espalhado nas cortes pelos
trovadores, contribuindo, segundo historiadores, para o desenvolvimento da cultura medieval. Mas
antes de explorarmos esse tema, vamos situar o movimento em seu tempo e principalmente espaço.
O trovadorismo é uma manifestação literária poética que teve provável origem na região
da Occitania e se difundiu por toda a Europa no século XII. É o primeiro momento da literatura
portuguesa, iniciado quando Portugal começa a se tornar independente, por volta de 1189. Essa
manifestação se concretiza nas cantigas, poesias musicadas relacionadas à dança, teatro e
malabarismos (Moisés, 1989).
Esse tipo de poesia não tem de fato uma origem precisamente determinada. Arábica,
folclórica, latinista ou litúrgica tem sido as teorias mais prováveis entre estudiosos, porém elas não
são suficientes e deixam ainda uma lacuna difícil de ser preenchida. Apenas sabe-se que chegou a
Portugal e Galícia por influencia provençal (DřOnofrio, 2007).
O trovador era, logo, aquele que compunha as cantigas e melodias que as acompanhavam
e apresentava à corte. Contudo, esse nome designa um compositor de cantigas de origem nobre, que
compunha e executava suas canções na. Aos vilãos, que apresentavam suas cantigas como meio
profissional, era dado o nome de segrel. Existia ainda o jogral. Este era chamado de bobo da corte,

1
Estudante do 5° período de letras Ŕ língua portuguesa da Universidade Federal do Amazonas.

6
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

fazendo também malabarismos e encenações. Menestrel era o músico que acompanhava o


compositor (Moisés, 1989).
Havia, entretanto, em toda a Europa uma grande variedade de trovadores que exerciam
diversas funções com suas cantigas. Os eddas, por exemplo, noruegueses, anunciavam a mitologia
dos deuses guerreiros e louvavam dinastias reinantes. Em outras regiões européias existiam os que
se dedicavam à poesia sagrada, temos até mesmo os que se prestavam a louvar uma vida mundana,
é o caso dos goliardos(Barros, 2008), e principalmente os que cantavam o amor.
Esses músicos poetas, portadores de uma nova ciência, a que chamavam de gaia, criaram
uma irreverente forma de transformar sua vida toda em arte. Espalhando pelas cortes portuguesas,
com a influência provençal, um comportamento tão novo e controverso para sua época. O amor
cortes.
Estamos no século XII, um período em que o casamento é arranjado por interesses sociais
e pouco, ou quase nada, estava relacionado com amor (entende-se por amor o desejo carnal).
Dentro do casamento, à mulher é guardada a tarefa de procriar e guardar a honra do marido. Uma
grande responsabilidade, uma vez que qualquer deslize que ela cometer pode colocar em xeque
toda sua posição social e de seu marido. Podemos assumir então que no matrimônio não existe
nenhuma relação dos Ŗmembrosŗ com algum sentimento sublime. Tem-se então um bom motivo
para que aconteça uma relação amorosa fora dele.
Numa concepção geral, O amor cortês é um modelo de relações amorosas que apareceu
no século XII no qual havia uma conduta refinada de um homem em relação a uma mulher que
amava. Surgia na Idade Média um moderno comportamento de submissão masculina em relação às
mulheres. Um modelo inventado pela literatura da época, principalmente pelos trovadores, que
deixaram suas cantigas como uma grande fonte para o estudo dessa pratica tão inovadora para sua
época. Historiadores descrevem essa relação como sendo grandiosa, enobrecedora, um sentimento
tão sublime que alguns chamariam de ideal. Vejamos como acontece.
No modelo cortes de amor temos um jovem que se apaixona por uma mulher. Ele a vê seu
rosto rosado, imagina seu corpo por baixo do vestido luxuoso, deseja seu toque. Acometido por um
amor intenso, tudo que ele pensa é em possuí-la. Não obstante ele descobre-se frustrado: o que ele
quer é proibido, pois ela é casada, de posição social acima da dele, seu marido é o senhor da casa
que ele freqüenta e haverá sempre algum olho a espera de novidades para contar ao dominus
(Duby).
Diante dessa situação, o jovem se vê obrigado a manter distância, reprimir seus desejos, e
esquecer sua amada. Por outro lado ele sabe que não conseguirá viver sem esse amor então arruma
uma forma de poder estar perto dela, declarando-se duas vezes vassalo. Primeiro porque é um servo
na corte, depois, é vassalo amoroso dessa senhora e se dá completamente a ela, prestando serviços
em troca da permissão para amá-la. Ela agora ocupa uma posição dominante na relação, tendo o
poder de aceitar ou não os galanteios do rapaz. É nesse momento que Duby fala que o Amor Cortês
é um jogo, regido por duas regras primordiais: o segredo e a distância. Nesse jogo, como em

7
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

qualquer outro, os participantes desejam ganhar. O prêmio: continuar amando na segurança da


discrição.
Essa relação descrita é o principal tema da manifestação precursora da literatura
portuguesa: as cantigas. Em especial as cantigas de amor.
A cantiga, estilo de poesia que dava forma ao trovadorismo, é a primeira manifestação
poética em língua vernacular. É uma forma de poesia ligada à música, teatro e dança cuja
apresentação era feita nas cortes medievais européias. Em sua estrutura, os poemas recebiam
refrões, rimas e estrutura sintática semelhantes em todas as palavras (versos), o que as tornava fácil
de memorizar, já que era no princípio uma tradição oral. Quando ela não possui esse sistema
paralelístico ou de refrão, dá-se o nome de cantiga de maestria. No conteúdo, o mesmo sentimento
perpassa todo o poema de modo que não deixe ambigüidade no seu tema e objetivo. O sujeito das
cobras (estrofes) é diferente, em sua maioria, do sujeito do refrão, o que gera um diálogo de eu -
líricos deixando mais claro o tipo e tema da canção e atribuindo a ela um aspecto trágico.
Podem ser divididas em canções de escárnio ou maldizer, de amigo ou de amor. Esta
ultima é a que mais deixa claro sua relação com o Amor Cortês (DřOnofrio, 2007).
A cantiga de amigo é de origem galega e portuguesa. Esse tipo de cantiga é anterior a
qualquer influência estrangeira. Nela encontra-se um eu - lírico feminino, em geral uma
camponesa, que se queixa a alguém, sua mãe ou amigas, por seu amado que foi embora, ou porque
foi para a guerra ou porque morreu nela. O espaço onde se dá essa confissão é o campo ou algum
outro lugar da natureza, e, é de acordo com esse espaço que se determina o tipo de cantiga de
amigo: barcarola (mar ou praia), alvorada (ao amanhecer), bailada (em uma festa) ou romaria (em
um santuário religioso).
A cantiga de amor é a cantiga que sofreu influência da escola provençal. Nela o trovador
não fala mais pela mulher, mas em seu próprio nome. Trata-se de uma confissão amorosa de um
homem - camponês - por uma mulher. O amor em questão é proibido, pois ela é casada, em geral
com o dono da casa que o rapaz freqüenta. Ele então se declara seu vassalo amoroso, prestando seus
serviços somente a ela.
Vejamos agora alguns exemplo de cantigas de amor e sua relação com o Amor Cortes.

Cantiga I

Em gran coita, senhor


Que peior que mortřé
Vivo per boa fé, e pñlo vossřamor
Essa coita sofrřeu por vñs, senhor, que
Pólo meu gran mal vi, e mais mi Val morrer
Ca tal coita sofrřeu
Pois por meu mal assi
Esta coita sofrřeu
Por vós, senhor, que eu
Vi por gran mal de mi
Pois tan coitadřandřeu
(D. Dinis)

8
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O discurso empregado na cantiga de amor de D. Dinis demonstra que o trovador age de


acordo com as regras do jogo mencionado por Duby. Nele o poeta deixa claro que está longe,
sofrendo sua coita, solitário, cumprindo as regras da distância. Logo podemos perceber também a
obediência a regra do segredo. Ele jamais irá mencionar seu nome. Apenas dirigi-se a alguém que
chama de sua senhor (senhora). Nota-se também que ele não pode viver sem ela já que diz que mais
lhe vale morrer do que sofrer por esse amor não concretizado e apenas vive por causa dela. Dessa
forma o homem se põe em posição de dominado já que sua vida depende dela. Visível presença do
Amor Cortês.

Cantiga II

Senhor, vivo tan coitada


Vida dês quando non vós vi
Mais, pois vós queredes assi
Por Deus senhor, bem talhada
Querede-vos de min doer
Ou ar leixarde mřir morrer
Por Deus mha senhor fremosa
Vós sodes tan poderosa de mi
Que meu mal e meu bem
Em vós é todo; e porem`
Querede-vos de mim doer
Ou ar leixarde mřir morrer
E vivo por vós tal vida
que nunca estes olhos meus
dormem senhor; e por Deus,
que vos fez de bem comprida
Querede-vos de mim doer
Ou ar leixarde mřir morrer
Ca mia senhor, todo mřé de prazer
Quantři vos quiserdes fazer
(D. Dinis)

Nesta outra cantiga de amor, encontra se o mesmo sentimento. O sofrimento do rapaz que
se dirige a sua amada declarando sua coita de amor proibido. Ele diz que ela lhe é um mal, pois ele
sofre por ela, por outro lado isso o faz bem. Dessa forma temos aqui um fato típico do amor cortês:
o prazer do amante encontra-se não na satisfação dessa relação, mas na dor da espera e da distância.
Por isso ele decide manter a distância. Vejamos outra cantiga que segue o mesmo modelo.

Cantiga III

Ai eu coitad! E por que vi


a dona que por meu mal vi!
Ca Deus lo sabe, poila vi,
nunca já mais prazer ar vi;
ca de quantas donas eu vi,
tam bõa dona nunca vi.

Tam comprida de todo bem,


per boa fé, esto sei bem,
se Nostro Senhor me dê bem
dela! Que eu quero gram bem,
per boa fé, nom por meu bem!
Ca pero que lhřeu quero bem,
9
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

non sabe ca lhe quero bem.

Ca lho nego pola veer,


pero nona posso veer!
Mais Deus, que mi a fezo veer,
roguřeu que mi a faça veer;
e se mi a non fazer veer.
sei bem que non posso veer
prazer nunca sem a veer.

Ca lhe quero melhor ca mim,


pero non o sabe per mim,
a que eu vi por mal de mi[m].

Nem outre já, mentrř eu o sem


houver; mais s perder o sem,
dire[i]-o com mingua de sem;

Ca vedes que ouço dizer


que mingua de sem faz dizer
a home o que non quer dizer!
(Pero Garcia Burgalês)

As cantigas acima seguiram, no geral, o mesmo modelo. O homem se dirige a mulher ou a


Deus para queixar-se de seu sofrimento, de sua coita de amor. Que ao mesmo tempo, o faz sofrer, e
o faz feliz, satisfeito em amá-la de longe, mantendo distância. No discurso, não emprega seu nome,
obedecendo ao segredo, seguindo as regras do jogo. Mas uma cantiga em especial chama a atenção
para a quebra a possibilidade da quebra dessas regras, pensando na cantiga como a manifestação
dos desejos do trovar.

Cantiga IV
A dona que eu amře tenho por senhor
Amostrade-me-a se vos em prazer for
Se non dade-me-a morte.
A que tenhřeu por lume dos olhos meus
E por que choram sempre amostrade-me a Deus,
Se non dade-me-a morte.
Essa que Vós fizestes melhor parecer
De quantas sei, ai Deus, Fazede-me-a veer
Se non dade-me-a morte
Ai Deus, que me-a fizeste mais Ca mim amar
Mostrade-me u possa com ela falar
Se non dade-me morte
(Bernal de Bonaval)

Na primeira cobla temos o eu Ŕ lírico pedindo a Deus para ver sua amada, se não prefere a
morte. Depois segue dizendo que ela é a luz de seus olhos, uma sensibilidade masculina inovadora
para a época. Na quarta, diz a Deus que Ele a fez mais bela que todas as mulheres que conhece, e
segue dizendo que quer vê-la ou então morrer. Para terminar, diz que a ama mais que a si próprio e
pede um lugar para falar com a amada. Nessa análise os princípios do segredo e distância exigidos
no modelo de Amor Cortês podem estar sendo colocados em xeque pelo jovem amante. Quebrando
essas regras, teríamos o final do jogo. Ele não quer a distância, e deseja concretizar esse sentimento
10
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O Amor cortes então pode ser visto não como uma relação que não se concretiza por ser
proibido, mas quando o amador descobre os prazeres que a espera e distância lhe dão ele prefere
seguir amando desta forma. Mas ou menos como no modelo de amor proposto por Platão que
defendia que o Verdadeiro Amor nunca deveria ser concretizado, pois quando se ama tende-se a
cultuar a pessoa amada com as virtudes do que é perfeito. Quando esse amor é concretizado, não
raro aparecem os nativos defeitos de caráter da pessoa amada. É nesse ponto de vista que pode-se
confundir o Amor Cortês com Platônico, mas não se deve esquecer que, no primeiro existe todo um
contexto de repressões que o ajuda a manter a distância, o que não acontece no segundo.

Referências bibliográficas

AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Historia da literatura portuguesa: a poesia dos trovadores
galego-portugueses. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro; Maceió: EDUFAL, 1983.

BARROS, José DřAssunção. O Amor Cortês: quatro ensaios sobre os trovadores medievais.
Vassouras: LESC. 2002.

DřONOFRIO, Salvatore. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007.

DUBY, Georges. O modelo cortês. In: KLAPISH-ZUBER, Christiane (org.). História das mulheres
no ocidente. Vol. 2.

LE GOFF, Jaques. Dicionário temático da Idade Média.

________. Idade Media contada aos meus filhos.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 18 ed. São Paulo: Cultrix, 1989.

RAMOS, Feliciano. História da literatura portuguesa. Braga: Livraria Cruz, 1960.

SARAIVA, Antonio José. Iniciação na literatura portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.

11
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

TENTAÇÕES DE RIOBALDO NO SERTÃO: DA NARRATIVA JUDAICO-CRISTÃ À CULTURA


POPULAR DO NORDESTE
Adriana Aguiar (UEA)1

Há um quadro de Hyeronymus Bosch intitulado ŖTentações de Santo Antônioŗ , em que o


artista, inspirado na figura do ermitão que teria se dedicado à meditação durante vinte anos no
deserto egípcio, recria o tema das tentações. Na tela, Ŗa malícia diabñlica coloca diante do santo
todos os recursos de sua arte mágica, tentando aterrorizar e desviar o ermitão da fé católica em troca
das delícias do mundoŗ (Nogueira, 1986, p. 75). Dividida em três painéis, o central e o esquerdo
reconstituem, através de símbolos, a imagem do inferno e do sofrimento de Cristo, enquanto no
direito aparece o santo, firme e sereno diante das ilusões diabólicas.
Aproveitando-se também da temática das tentações, Nikos Kazantzakis, em 1951 publica o
romance A última tentação de Cristo, em que Jesus, ao partir para o deserto para tornar-se monge, é
tentado de maneira tão persuasiva pelo diabo, que não percebe os artifícios do inimigo e desiste de
seguir sua missão divina na terra, descobrindo somente no final da narrativa que tudo não passou de
uma tentação.
A temática religiosa explorada por Bosch e Kazantizakis é de grande recorrência na
iconografia e na literatura, e revela o tom do que aqui almejamos: analisar os elementos da narrativa
judaico-cristã Ŕ As tentações de Jesus no deserto Ŕ aproveitadas por João Guimarães Rosa, no
romance Grande sertão: veredas (1956), como elemento de pastiche que se depreende da cultura
popular do nordeste.
Ao estudar a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin faz referência à
utilização de narrativas sacras pelo universo profano, destacando que existiam Ŗnumerosas liturgias
paródicas [...], das leituras evangélicas, [...], dos salmos, assim como de diferentes sentenças do
Evangelhoŗ (1987, p. 12). Para o teñrico, certas formas carnavalescas da Idade Média, Ŗsão uma
verdadeira parñdia do culto religiosoŗ (1987, p. 6), e afirma que nesse período havia Ŗuma
quantidade considerável de manuscritos nos quais toda a ideologia oficial da igreja, todos os seus
ritos são descritos do ponto de vista cômicoŗ (1987, p. 12). Assim sendo, a literatura popular tinha
como subsídio o elemento paródico para a criação de um mundo ao revés da estrutura oficial.
Embora estejamos citando a paródia como artifício da cultura popular utilizado durante a
Idade Média para subverter o sagrado, neste estudo, como mencionamos, utilizaremos o conceito de
pastiche como elemento aliado da literatura. Artifício presente nas culturas modernas do ocidente, o
pastiche, segundo Ildeber Avelar, caracteriza-se por ser uma repetição diferencial, e, portanto, ao
contrário de uma relação de identidade com o texto original, implica algo singular (2003, p. 168). O
autor diferencia ainda o pastiche da paródia, porque, enquanto a ironia usada por essa distancia o
passado com condescendência, o pastiche permite ao presente reconhecer-se no passado (2003, p.
178). Como corrobora Leonardo Arroyo, Ŗa arte contemporânea não pode ser apenas uma expressão

12
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

intelectual de efeitos. Ela assenta sobre as grandes linhas de criação popular, prñxima ou remotaŗ
(1984, p. 13), e ao estudar a presença dřA cultura popular em Grande sertão: veredas, o teórico
afirma: Ŗa João Guimarães Rosa não passou despercebido o problema da importância da
colaboração da cultura popular nas artes em todos os temposŗ (1984, p. 10).

A invenção do diabo como personagem tentador

Antes de invadir e tomar seu espaço na cultura da Idade Média, prefigurações da tentação
diabólica aparecem no Antigo Testamento. Na primeira tentação do texto bíblico, uma serpente
convence Eva da possibilidade e do desejo de ser independente de Deus e construir um mundo
autônomo, modificando a história do homem na terra. Também por rebelar-se contra Deus, um anjo
de Luz Ŕ Lúcifer Ŕ havia sido expulso dos céus e condenado a habitar os submundos, de forma que
sua missão seria tentar os homens a terem a mesma atitude que causou a sua exclusão do projeto
divino.
A primeira vez em que o Diabo defronta-se com Jesus dá-se na passagem da tentação de
Cristo no deserto. A figura diabólica que se revela neste ponto da narrativa bíblica é do demônio
como prosador, aquele que, pelo uso da palavra, tenta persuadir o filho de Deus a desistir de sua
missão celeste em troca do poder terreno. O núcleo de toda a tentação é substituir a figura divina e
passar a ordenar, construindo o mundo de modo independente. Vivenciando um período de
penitência, Jesus sofre seguidamente três investidas do tentador: após ter jejuado quarenta dias,
sente fome, e a partir de sua necessidade imediata, é que se realiza a primeira tentação; a segunda,
refere-se à prova da identidade divina de Jesus como filho de Deus; e a terceira, diz respeito ao
poder, a ter o domínio do mundo físico em detrimento de um mundo sobre-humano.
Não obstante o esforço judaico em manter o monoteísmo, como destaca Roberto Nogueira
(1986), vale ressaltar que a nível popular coexistiam culturas pagãs nas quais o mal e o bem eram
representados em divindades diversas. De acordo com Luís da Câmara Cascudo Ŗo demônio no
politeísmo grego era entidade protetora ou maléfica: um bom diabo [...] ou um mal demônio,
ficando nesta acepção entre os cristãosŗ (2001, p. 190). Ao inscrever-se como contrário às culturas
politeístas, o judaísmo refaz a ideia dualista de bem e mal, reunindo-as na figura de Javé. O mal,
nesse sentido, não era representado em nenhuma criatura, mas tido como consequência dos atos
desobedientes do homem. Representações desse Deus, que pune pelo mal cometido, também se
acham presentes em Grande sertão: veredas. Lembremos dos causos contados no interior da
narrativa: Deus castiga o mal em Aleixo deixando cegos seus quatro filhos, quando então o pai
passa a servir ao divino; Valtei também vive a sua quaresma, pagando o mal que teria cometido em
outras vidas com as surras que leva dos pais.
É sobre culturas arcaicas que o Cristianismo constitui-se, estabelecendo Ŗcompromissos com
as crenças que o precedem. De modo consciente ou não, incorpora divindades, ritos e festas

1
Aluna do curso de graduação em Letras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Integra o Programa de
Apoio à Iniciação Científica da Universidade do Estado do Amazonas para o período 2010/211.
13
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

religiosas já institucionalizados pela tradição, dotando-os de um outro discurso, de uma nova


roupagem, que, a princípio, mal conseguem ocultar sua origem pagãŗ (Nogueira, 1986, p. 30). A
partir do século XI, por exemplo, dá-se início a uma iconografia sobre o diabo, contudo, a fonte de
constituição da imagem é de origem pagã: os chifres, o rabo e os pêlos, viriam do Deus Pã;
enquanto o tridente viria de Netuno (Cf. Nogueira, 1986). É, destarte, sobre a ruína das culturas
não-sacras da antiguidade clássica que o cristianismo constroi a imagem do diabo, identificando-o
com a ideia daquilo que é diferente, com o outro: o mal.

O diabo atravessa o Atlântico

Enriquecido nas manifestações populares portuguesas, cultura forjada na tradição cristã, o


diabo atravessa o atlântico a bordo das caravelas lusitanas e dessa forma chega às terras brasileiras.
Como afirma Câmara Cascudo, Ŗas estñrias do diabo, tentações e logros são, na maior parte,
oriundos de Portugalŗ (2001, p.195), e Leonardo Arroyo completa afirmando que a tradição do
Diabo já veio deste país Ŗenriquecida no mecanismo do pacto, inclusive pela contribuição da cultura
popular: encruzilhada, preferência pela meia-noite, a exigência de uma árvore, o apelo ao Diabo em
voz alta e a presença do ventoŗ (1984, p. 232). Esse legado demonolñgico que chegou ao Brasil
incrementa-se a partir das missões religiosas, quando as ideias portuguesas e cristãs serão
adicionadas às crenças autóctones, sofrendo um processo de enriquecimento.
Na carta de descobrimento do Brasil, Pero Vaz reencena o Éden nas novas terras, transpondo
elementos bíblicos para o nascimento da história brasileira. Além dela, outros relatos deixados por
viajantes que aqui estiveram dão conta de um tom ora edênico (a natureza) ora demoníaco (os povos
e suas crenças), como evidencia a pesquisa de Laura de Mello e Souza (1986). A autora afirma que
a descoberta das novas terras oscila no imaginário europeu entre a representação do Éden e do
inferno. Souza lembra ainda que povoar a colônia para os portugueses significava também purgar a
metrópole de seus demônios, degradando os representantes do diabo (bruxas, feiticeiros e réus).
Nesse sentido, a colônia não seria apenas céu ou inferno, mas também espaço purgador, onde os
pecadores poderiam pagar penitências por suas dívidas.
A infernalização da colônia acompanha, por conseguinte, sua inserção no conjunto dos mitos
sobre o diabo elaborados pelos europeus. Na Terra de Santa Cruz, as manifestações religiosas são as
mais diversas possíveis. À chegada dos portugueses ao nordeste dá-se a entrada de elementos da
tradição cristã na cultura autóctone. Esse projeto português fazia-se necessário, por um lado, para
forjar o medo e garantir a obediência, incutindo no homem da terra o desejo de servir ao Deus
cristão, levando-o a reconhecê-Lo com poderes superiores aos do demônio; por outro, para
demonizar as explicações e manifestações das divindades indígenas e, posteriormente, africanas.
Vale ressaltar que segundo Leonardo Arroyo, a

enorme soma de complexos religiosos, [...] no fundo, restos de cultos politeístas, que a
Igreja condenou, e que por isso adquiriram o caráter mágico, encontraram em terras
brasileiras, [...] atmosfera propícia para sua sobrevivência e desenvolvimento. [...] O

14
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

encontro de duas correntes culturais, a que se juntaria, como observamos, a negra, oriunda
da África supersticiosa e castigada, formariam substancialmente a estrutura mental do novo
mundo brasílico em que tradições populares, ao invés de serem perturbadas no seu processo
vital, seriam até enriquecidas de novos e surpreendentes elementos (1984, pp. 231-232).

Como Riobaldo afirma: Ŗquem tem mais de demo em si é índioŗ (GSV, 2001, p. 38), também os
missionários representantes da tradição cristã, relacionam as divindades indígenas e africanas, como
Jurupari, Tupã e Exu, ao demônio forjado no cristianismo.
Analisando a formação da religiosidade no Brasil dos três primeiros séculos, Laura de Melo
e Souza conclui que não existiram práticas rituais exclusivamente cristãs, africanas, indígenas ou
judaicas na Colônia. Existiram religiosidades populares sincréticas, mestiças, onde não se podiam
distinguir ou separar os elementos desta ou daquela cultura. ŖNo plano da magia e da religião, os
sincretismos acabariam por se mostrar irreprimíveis e inextinguíveis; sobre elas incidiria sempre a
marca ambígua da cultura popular, que misturava sagrado e profanoŗ (Souza, 1986, p 378). Se o
cristianismo tentou apagar, como uma escrita mítica, os traços das culturas pagãs que antecederam a
sua existência, no Brasil, pode-se dizer que os diversos elementos culturais são (re)admitidos e
acrescentados como parte da formação religiosa. A inserção de elementos da cultura portuguesa na
colônia marca, por conseguinte, a cultura e a religiosidade popular nordestina, onde o diabo é tema
corrente, atuando como fundamental na explicação de eventos, situações e comportamentos.

Das tentações em Grande sertão: veredas

Como nota o leitor da narrativa aqui estudada, em Grande sertão: veredas, João Guimarães
Rosa encena a relação de Riobaldo com o diabo, dando-lhes inclusive, posição geográfica. Mas até
a encenação do encontro com o demônio, ao romance antecede um longo percurso, construído a
partir de narrativas pagãs, judaico-cristãs, projeções do imaginário europeu fundidas a tradições
milenares de culturas do mundo antigo e das novas terras da América.
A história das culturas revela que para tecer o pacto entre a humanidade e o demônio,
permutam-se elementos da religiosidade oficial e da popular. Em Grande sertão: veredas, do
mesmo modo, devemos falar de um diabo que vive entre as fronteiras da religião e do folclore, das
culturas eruditas e populares, agregando em seu caráter contribuições de várias tradições, como
informa Riobaldo ao doutor: Ŗmuita religião, seu moço! [...] Aproveito de todas. [...] Rezo cristão,
católico [...]; e aceito as preces de meu compadre Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas
quando posso, vou no Midubim, onde um Matias é crente, metodistaŗ (GSV, 2001, p. 32).
Assim como ocorre com Santo Antônio, é no deserto Ŕ espaço mítico e místico de
aparecimento e invenção de figuras imaginárias e lendárias Ŕ que o demônio resolve colocar Jesus
Cristo em tentação. Ambiente que revela traços parecidos com o deserto, o sertão surge na narrativa
de Guimarães Rosa ora como metáfora do inferno ora como metáfora do purgatório. Na utilização
do sertão como espaço em que decorre a narrativa de Riobaldo, reside uma característica do
pastiche realizado por João Guimarães: enquanto nas tentações bíblicas observamos um espaço

15
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

delimitado e arranjado onde o diabo manifesta-se, nas tentações do narrador-personagem este


espaço é o sertão por inteiro, lugar sem fronteiras estabelecidas, como nos afiança: Ŗo sertão está em
toda a parte, ele é do tamanho do mundoŗ (GSV, 2001, p. 89).
Partindo da crença cristã, que apregoa aos desamparados uma herança celestial e a existência
de um Deus onipresente e onipotente, se a vida do sertanejo é marcada por sofrimentos e tentações,
ao menos, poderia ter a esperança compensadora do Paraíso divino. Contudo, ao contrário, Ŗno
cotidiano dos homens, lentamente torna-se maior a crença de que o Diabo está sempre presente em
toda parte e sempre alerta ao menor deslizeŗ (Nogueira, 1986, p. 39). Assim, Ŗo demônio Ŕ exclama
Riobaldo Ŕ seria: o inteiroŗ (GSV, 2001, p. 251). Deste modo, enquanto as tentações de Cristo
acontecem no espaço à parte, segregado; na narrativa rosiana as tentações são elementos do
cotidiano e, portanto, do espaço como um todo; assim como o sertão, o diabo e as suas tentações
estão em toda a parte: ŖE o demo? [...]. Arre, ele está misturado em tudoŗ (GSV, 2001, p. 27) Ŕ, é o
que conta Riobaldo.
Outro aspecto relevante quando comparamos o axioma sacro e o romance rosiano é a
palavra. Riobaldo, inicialmente, constitui sua imagem como pouco falante, como aquele que não
sabe dar ordens, que nasceu para ser mandado, homem de pouco saber, que apesar de letrado, tem
um jeito embaraçado de contar a história. Seguindo essas características do jagunço-letrado, o
romance distingue-se das tentações de Eva e de Jesus, em que o diabo inicia um diálogo, sendo por
intermédio da palavra que as tentações são realizadas. Em Grande sertão: veredas, conforme
observamos no princípio do livro, há apenas uma encenação de diálogo (Cf. Galvão, 1986, p. 69).
Riobaldo, no fundo, engendra uma confabulação com o imaginário e a consciência.
Artifício atuante nas tentações bíblicas é levar àquele que é tentado a desfazer a confiança
plena na palavra divina como a que tudo abarca. Retirando-se o domínio sagrado das palavras,
confere-se poder ao homem: se Deus é verbo, o homem igualmente poderá ser. ŖO senhor sabe:
sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!ŗ
(GSV, 2001, p. 35). Sabe-se, pela fortuna crítica dos estudos a respeito da obra de Guimarães Rosa,
a relevância que a palavra assume nas suas narrativas. Para o narrador-personagem de Grande
sertão: veredas, a palavra toma força influente, pois Riobaldo sabe que é um dos instrumentos de
poder dos chefes do sertão, meio pelo qual se manda e desmanda.
É ainda pela fala que Riobaldo elucida a recriação da tentação judaico-cristã. Se no texto
bíblico o diabo aciona a pessoa tentada, em Grande sertão: veredas, não é o demônio quem toma a
iniciativa, é Riobaldo quem, dando continuidade ao seu monólogo (Galvão, 1986, p. 70), conclama
o desafio: ŖLúcifer! Lúcifer!... Ŕ aí eu bramei, desengulindoŗ (GSV, 2001, p. 438). O protagonista
age dessa maneira dentre outros motivos, pelo desejo de comprovar uma figura mítica, prenunciada
desde a sua infância nas tradições populares e religiosas do sertão, que potencialmente explicaria o
incompreensível e resolveria a ineficácia física diante da realidade caótica e trágica.
Se a Cristo, como mencionamos, ocorrem três investidas do diabo, com Riobaldo, também
podemos pensar em três elementos que o levariam ao pacto e que se prefiguram como tentações:

16
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

resistir ou superar a paixão que sente por Diadorim; sobrepujar o medo que o acompanha desde a
infância e que se revela mais ameaçador quando se torna jagunço; e, por fim, ostentar o poder.

Primeira tentação: a paixão

Como Cristo, Riobaldo vive uma paixão, contudo, de origem humana e carnal: Diadorim.
Ainda criança, às margens do Rio São Francisco, Riobaldo ao conhecer Reinaldo, descobre o desejo
de permanecer com o menino, ficar com ele e perenizar a companhia mostrada doce e ao mesmo
tempo corajosa, em contraste com o dominante medo que sentia. É por motivo de reencontrar-se
com Reinado que Riobaldo entra para o bando de Joca Ramiro, tornando-se jagunço. Ora, como
declara o narrador: Ŗquem de si de ser jagunço se entrete, já é por alguma competência entrante do
demônioŗ (GSV, 2001, p. 26) Ŕ, e esse diabo, logo toma a forma de mulher: Ŗas vontades de minha
pessoa estavam entregues a Diadorimŗ (GSV, 2001, p. 53), revela o protagonista.
Como nas manifestações populares religiosas, Ŗas tentações mais comuns narradas ou
configuradas, acerca dos grandes anacoretas e penitentes, são mulheres que buscam induzir os
santos a traição para com Deusŗ (Arroyo, 1984, p. 227). Ao sentir intensa afeição pelo amigo, o
jagunço-letrado revela uma desconfiança acerca do que experimentava, acusando-o de governar
suas vontades:

aquela mandante amizade. [...] Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Digo ao
senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa feita. [...] E em mim a vontade de chegar todo
próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, dos braços, que às vezes
adivinhei insensatamente Ŕ tentação dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava (GSV,
2001, p. 163).

Arroyo explica o feitiço como uma série de sobrevivências mágicas, de presença onímoda e
constante no complexo cultural popular (1984, p. 149). Como a serpente que convenceu Eva,
Diadorim convence Riobaldo a vingar-se de Hermñgenes, o Judas que matou seu pai: Ŗabracei
Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava
e morriaŗ (GSV, 2001, p. 57). Paixão proclamada em diversas passagens da narrativa, na cultura
popular, é Ŗna área sentimental que o feitiço é mais empregadoŗ (Arroyo, 1984, p. 149), como se
manifesta a Riobaldo. Ao surpreender-se afeito àquela Ŗmandante amizadeŗ , o jagunço recém
iniciado no bando, logo descobre a força de sua paixão, por intermédio da qual vivencia seu desejo
maior, e sua mais longa tentação, narrada durante o percurso narrativo e culminando na morte da
pessoa amada, sem que se consuma o desejo de possuí-la como cobiçara.

Segunda tentação: o medo

Enquanto Diadorim nasceu para nunca ter medo, como evidencia a narrativa, Riobaldo, após
várias tentativas frustradas de tornar-se corajoso, necessita barganhar com o diabo a coragem de que
é desprovido: Ŗqueria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer

17
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

tantos atosŗ (GSV, 2001, p. 116). Desgovernado pelo temor de seus sentimentos, o protagonista
descobre que não há desejo sem medo: os anseios deslumbrados são carregados de dúvidas que por
sua vez provocam o temor. Sentimento constante na existência do narrador, contrário à coragem
representada, principalmente, na figura do jagunço, o medo na maioria das vezes, move as suas
atitudes.
Dividido entre as fronteiras da religião que o salvaria de seus males/medos, e da
representação do bem e do mal, o personagem desliza em provações: provar quem é para si mesmo
e para o outro; provar o que é certo e o que é errado; provar a existência de Deus a e invenção do
diabo; sem, contudo, chegar a um posicionamento maniqueísta. Apesar da ideia de Deus como o
bem dominar seus pensamentos, Ŗcabe assinalar que Riobaldo sublinha reiteradamente a ideia de
um Deus traiçoeiro, de um princípio do Bem que se retrai, fazendo-se assente e abandonando o
homem ao desamparo e ao medo Ŕ ausência esta que já é a presença virtual do demo (anagrama do
medo)ŗ (Rosenfield, 2006, p. 211). Lembremos a constante alusão ao diabo nos discursos cristãos
que tinham como objetivo incutir o medo: sem temer o mal, como poderia o homem ser temente e
obediente a Deus? Riobaldo, além de temer ao demônio, teme também a Deus, como nos revela: Ŗo
diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! [...] A força dele quando quer Ŕ moço! Ŕ me dá o medo
pavor!ŗ (GSV, 2001, p. 39). Segundo Leonardo Arroyo,

em Riobaldo, todavia, é possível constatar-se um certo respeito, ao lado do medo, pelo


Diabo. O ponto mais cruciante desse respeito estaria, justamente, em que dele não fugiu,
[...] e não fingiu ignorá-lo, como é muitas vezes do comportamento dos injustos cristãos
[...]. O próprio Cristo falou com Satã durante quarenta dias. Conclui-se, portanto, [...], que a
atitude de Riobaldo em relação ao Diabo (embora interessada como se evidencia na sua
chefia do bando de jagunços) foi uma atitude cristã (1984, p. 234).

Como nas tradições religiosas, Riobaldo teme ao diabo, contudo, não é por intermédio da fé
em Deus, como faria um cristão, que ele busca superar sua fraqueza (o medo), é, entre outras
formas, na tradição indígena. Ao lembra-se das histórias sobre comer onça e tornar-se corajoso, o
narrador decide apropriar-se de um felino, comer o coração e reverter um problema que se tornou
ainda mais grave para o homem do sertão que precisa demonstrar coragem em todo o tempo, como
observa Arroyo: era preciso Ŗganhar coragem, transformar o homem pacato e tímido em indivíduo
valente e destemido, para tanto bastava comer coração de onçaŗ (1984, p. 151). Acreditando que ao
ingerir esta parte do corpo animal absorveria sua destemida coragem, Riobaldo refere-se a essa
crença por duas vezes: Ŗo que há, que se diz e se faz Ŕ que qualquer um vira brabo corajoso, se
puder comer cru o coração de uma onça pintada. [...] Medo mais? Nenhum algum!ŗ (GSV, 2001, p.
154). Para acabar com seu medo o jagunço-narrador não recorre à oração, como Jesus recorre ao pai
diante da tentação, mas às crenças indígenas.
Apesar dos esforços, Riobaldo descobre-se entremeado cotidianamente por sensações de
medo e de coragem, e intui que esses sentimentos não são estáveis, e, portanto, não se fixam no
sujeito, mas oscilam em situações diversas: Ŗcoragem em mim era sentimento variávelŗ (GSV,
2001, p. 62). Apesar disso, sem abandonar o desejo de ser somente coragem, forja um meio de

18
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

vencer o temor e cai em tentação, mais uma vez, ao buscar no diabo a força de que necessitava para
vencer o seu maior rival, Hermógenes.

Terceira tentação: o poder

Riobaldo sente não apenas o desejo de poder sobre si, de dominar o medo, de governar-se,
mas de poder sobre o outro, de governar pela palavra e pela força. A paixão que sente e o desejo de
superar o medo empurram-no para a demonização de Hermñgenes: Ŗo Hermñgenes fez o pauto. É o
demônio rabudo quem pune por ele... Nisso todos acreditavam. Pela fraqueza de meu medo e pela
força de meu ñdio, acho que fui o primeiro que criŗ (GSV, 2001, p. 86) Ŕ declara o narrador.
Conforme Willi Bolle, Ŗsendo o pacto com o Diabo, em termos de histñria cultural, uma forma
mítica popular de codificar questões do poder e da leiŗ (Bolle, 2004, p. 144), o narrador logo atribui
a Hermógenes a condição de pactário. A demonização do líder ocorre em virtude da esperteza, da
força, da coragem que demonstrava ao enfrentar o inimigo e da eloquência com que ordenava e
guiava o grupo.
Como o anjo rebelde sem poder supremo revolta-se contra Deus, instituindo uma dualidade
bem versus mal, Riobaldo (e mais tarde também Hermógenes revolta-se contra Joca Ramiro) deseja
tomar o poder de Hermógenes. Ambicionando o domínio do líder, se Riobaldo não aceitou,
inicialmente, ser o chefe do bando foi porque sabia que lhe faltavam os requisitos, sobretudo, saber
ordenar e não temer diante do inimigo ou da batalha. Mas se não consegue ainda mandar, também
não aceita ser mandado. Recordemos que ainda professor pede emprego a Vupes, mas arrepende-se
logo em seguida: ŖSeo Vupes, o senhor não quererá me ajustar, em seu serviço? Minha bestice. [...]
Ali nem acabei de falar já estava arrependido, com toda a velocidadeŗ (GSV, 2001, p. 141) Ŕ revela
Riobaldo.
Seguindo uma atitude expressa na tradição cristã, o protagonista demoniza Hermógenes,
como os cristãos demonizaram as culturas pagãs e seus inimigos. Sem a demonização e exclusão do
rival, Riobaldo permaneceria numa escala hierárquica abaixo no poder. Por isso, transforma-o na
figura do mal e busca superá-lo para colocar-se, a partir de então, como uma figura central no
bando, recebendo os favores e serviços de todos, passando de servo a senhor.
Pela sede de poder e sem encontrar meios naturais de galgar lugar no grupo que participava,
o personagem principal embarca nos caminhos sobrenaturais de justificação do poder, engendrando
mais uma tentação. Conforme Walnice Galvão, o jagunço-narrador, apñs o pacto, Ŗtoma a chefia,
que antes recusava por saber que não possuía os requisitos para elaŗ (Galvão, 1983, p. 421).
Riobaldo compreende que para enfrentar um pactário somente outro. E totalmente transformado por
cair em todas as tentações que se lhe apresentam, declara seu projeto para o bando de jagunços:
Ŗvamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e objetos e as vantagens, de toda a valia. E
só vamos sossegar quando cada um já estiver farto, e já tiver recebido uma ou duas três mulheres,
moças sacudidas, přra o renovame de sua cama ou redeŗ (GSV, 2001, p. 462). A retórica do
jagunço-chefe revela mais uma vez traços da imitação criativa das tentações sacras, pois, enquanto
19
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Cristo permanece fiel em seu discurso de servo de Deus, Riobaldo coloca-se como senhor do sertão,
relacionando os poderes conquistados com a sua aproximação a forças maléficas.

Últimas palavras

Como foi possível notar ao longo desse estudo, apesar do aspecto místico presente na obra
de João Guimarães, pode-se apreender que não há apropriação das ideias precedentes ao romance,
tais quais elas se manifestam, mas recriação do passado que se revela na atualidade. Na medida em
que há um respeito revelado pelo místico, Grande sertão: veredas faz referência ao texto bíblico,
mas aliado a esse elemento narrativo, há uma Ŗmundanizaçãoŗ que supera os argumentos judaico-
cristãos. Se o diabo queria humanizar Jesus, Riobaldo é quem quer humanizar o diabo, afirmando-o
como aquele que habita é em nñs mesmos. Lenardo Arroyo ressalta que para o narrador Ŗa presença
do Diabo se inscreve numa tradição secular de enantiodromia a partir da responsabilidade humana
pelo seu prñprio destino [...]ŗ (1984, p. 233). Assim sendo, o diabo está no que acontece entre os
homens do sertão e não em um espaço segregado e mí(s)tico como o deserto. João Guimarães, ao
fazer o pastiche das tentações bíblicas, por um lado aumenta a humanização da história; por outro,
confere menos valor ao símbolo e atribui à narrativa aspectos populares envolvidos nas relações
humanas com o sobrenatural.
O predomínio das técnicas populares de pacto com o Diabo em Grande sertão: veredas é,
portanto, consideravelmente superior aos resíduos místicos de caráter judaico-cristão. Riobaldo,
diverso da resistência e da natureza de Cristo, cai em todas as tentações: por amor, por temor e por
desejo de poder. Diferente da narrativa bíblica, as tentações do narrador são mais terrenas e mais
cotidianas, Ŗmais conforme a fé do Diabo que acredita no destino humano vivencial, sem promessas
de vida extraterrena ou de Paraíso no além-túmulo, mas apenas Paraíso na própria terra com os
poderes que transmitiaŗ (Arroyo, 1984, p. 226). Como a personagem de Jesus em A última tentação
de Cristo, Riobaldo não é um ser infalível, é um ser humano que ainda não é, embora sendo.
Por fim, Grande sertão: veredas, especificamente o sertão, espaço onde transcorre a
narrativa, representa o retorno criativo a uma sucessão de camadas mais arcaicas, mais antigas,
pretéritas, de constituição de nosso arquivo cultural. É por intermédio do pastiche, que a narrativa
rosiana presentifica uma série de outros textos da cultura egípcia, grega, romana, ibérica e
brasileira, em que a religiosidade oficial se renova a partir da religiosidade popular e da recriação
literária moderna: Ŗlugar sertão [...] é onde [...] criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho
de autoridadeŗ (GSV, 2001, p. 24) sacra, é onde a literatura imita criativamente a história cultural de
Deus, do diabo e da humanidade.

Referências bibliográficas

ARROYO, Leonardo. A cultura popular em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Livraria
Olympio, 1984.

20
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

AVELAR, Idelber. Pastiche e repetição: a assinatura falsificada do anjo da história. In: Alegorias da
derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América latina. Tradução de Saulo Gouveia.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. pp. 159-189.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François


Rabelais. 4. ed. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1987.

BOLLE, Willi. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Ed.
34, 2004.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10. ed. São Paulo: Global, 2001.

GALVÃO, Walnice Nogueira. O certo no incerto: o Pactário. In: COUTINHO, Eduardo de Faria
(org.). Guimarães Rosa: seleção de textos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; INL, 1983. pp.
417-421.

_______. A linguagem e a fala. In: As formas do falso: um estudo sobre a ambiguidade no Grande
sertão: veredas. São Paulo: Editora perspectiva, 1986. pp. 69-74.

NOGUEIRA, Carlos Roberto. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Editora Ática, 1986.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

ROSENFIELD, Kathrin H. Desenveredando Rosa: a obra de J. G. Rosa e outros ensaios rosianos.


Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2006.

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

21
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ENTRE EROS E THANATOS: O AMOR EM SUAS MÚLTIPLAS FACETAS

Adriane Figueira Batista (UFOPA)1


Ulysses Maciel de Oliveira Neto (UFOPA)2

Resumo: Este trabalho versará sobre o paradoxo mais perturbador entre tantos outros, um tema
demasiadamente difícil, passional e traiçoeiro, e já por diversas vezes objeto de análises literárias: o
Amor. Volúpia ou devoção Ŕ ele é protagonista na vida e no sonho de muitos Ŕ, esse Ŗvelho
desconhecidoŗ passeia por entre as mentes e corações mais distintos e é motivo de inspiração
recorrente em textos literários e letras de música. O objeto desta exposição será o Amor como se
manifesta no conto ŖOs dragões não conhecem o paraísoŗ, de Caio Fernando Abreu. Sob a luz da
bibliografia consultada, teorias psicanalíticas, filosóficas e de arquétipos extraídos da literatura,
discorrer-se-á sobre as possibilidades estéticas desta forma tão peculiar de
sentimento/comportamento, demonstrando dualidades e contradições, invadindo os domínios de
Eros e Thanatos a fim de mapear, fazendo um recorte no terreno da literatura de Caio Fernando,
algumas repostas satisfatórias, sugeridas pelo autor, aos questionamentos que geraram a curiosidade
central que permeará todo este trabalho. Afinal quais são os objetivos e as dimensões que o Amor é
capaz de alcançar? De que forma essas mudanças intervêm na vida e nos valores dos indivíduos que
se deixam guiar por ele?

Palavras-chave: Paradoxo; Amor; Caio Fernando Abreu; Eros; Thanatos.

Abstract: This work will examine the most disturbing paradox among others, an issue too hard,
passionate and treacherous, and has repeatedly object of literary analysis: Love. Lust or devotion -
he is the protagonist's life and dream of many - this "old" unknown stroll in the minds and hearts is
more distinct and recurring source of inspiration in lyrics and literary works. The object of this
exhibition will love as manifested in the story "The dragons do not know the paradise", by Caio
Fernando Abreu. In light of the bibliography, psychoanalytic theories, philosophical and archetypes
from literature, will talk about the aesthetic possibilities of this peculiar way of feeling / behavior,
demonstrating dualities and contradictions, invading the domains of Eros and Thanatos in order to
map, making an indentation in the field of literature Caio Fernando, some satisfactory answers,
suggested by the author, the questions that have generated curiosity central permeate all this work.
After all what are the goals and dimensions that Love is able to achieve? How these changes are
involved in the life and values of individuals who are guided by it?

Key Words: Paradox. Love. Caio Fernando Abreu. Eros. Thanatos.

1
Acadêmica do 7º semestre do Curso de Letras da Universidade Federal do Oeste do Pará Campus de Santarém,
matrícula 07043001808, e-mail: adriane.batista@santarem.ufpa.br.
2
Professor Doutor Adjunto I da Universidade Federal do Oeste do Pará, e-mail: ulyssesodisseu@gmail.com.

22
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

“Um breve sobrevoo amoroso”

Quando falamos em amor o que nos vem de imediato à mente é uma bela fantasia, repleta de
cores e vibrações positivas: é como um sonho que todos almejam vivenciar. De acordo com os
textos estudados para a elaboração deste trabalho, estas sensações tornam-se um tanto utópicas e
necessárias para que de fato haja um Ŗobjetoŗ , nesse caso o Amor como manifestação estética na
obra literária. É lógico que além dessas impressões, existem diversas outras percepções possíveis de
serem visualizadas pelos sujeitos participantes do ato amoroso ou pelos expectadores que tiram
conclusões a partir do que acham que estão observando.
A filosofia, a literatura e a psicanálise possuem longas e antigas discussões sobre o tema
ŖAmorŗ e cada uma sob um paradigma simbñlico diferenciado, mas todas de alguma forma
interligadas por laços invisíveis, que, entretanto, a literatura pode expressar Ŕ e expressa Ŕ
poeticamente. A primeira aborda a temática como a carência, a falta que o ser humano sente diante
do que não pode ter ou do que aspira ter, sendo o desejo, portanto, a força que movimenta a busca
pelo amor. Na segunda, a temática segue uma evolução de acordo com a época, com a história e as
necessidades e comportamentos morais vigentes, claro que existiram e ainda existem aqueles
escritores que burlam as regras impostas. Na última o tema é tratado como a busca pela verdade,
pelo indizível, pelo Ŗquase impalpávelŗ sentimento do desejo, a procura pelo real, pelo sentido das
coisas, pela completude do ser. São esses alguns rasteiros conceitos a priori elencados.
Na obra literária de Caio Fernando Abreu é possível visualizar algumas extensões que o ser
é capaz de manifestar quando está Ŗamandoŗ , pois o autor traça um longo e tumultuado caminho
pelos domínios de Eros, demonstrando com exemplos de maneira bem incisiva, tipos de
relacionamentos afetivos, graus de afeição, arquétipos que fogem ao convencional etc. Procuramos
apresentar ao longo do trabalho algumas dessas manifestações no texto ŖOs dragões não conhecem
o paraísoŗ e fazendo uso também de outros textos que abordam o tema Amor do supracitado autor.
Sendo assim, essa pesquisa propende expor da maneira mais objetiva, dentro das
possibilidades, tendo em vista a complexidade do tema, por si fugidio. Serão feitas algumas
ressalvas consideradas por nós importantes do ponto de vista estético literário, dos voos que o ser
inundado pelo Amor é capaz de alçar e de que forma essas descobertas influenciam na vida e nos
valores deste ser. Dessa maneira, tentaremos unir os dois pólos opostos e coexistentes, Eros (amor)
e Thanatos (morte), de modo a verificar a dependência de um para outro.

Dimensões Do Amor: Práxis E Parodoxos

Como já foi mencionado na introdução deste trabalho, o Amor se apresenta das mais
diversas formas e protagoniza variadas situações. A filosofia desde os primórdios já discutia sobre o
sentimento mais avassalador de todos os tempos, o Amor. Platão postulava em seus escritos que o
23
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

amor era entre os deuses o mais antigo, depois do caos do mundo foi a terra e o amor que surgiram.
Por essa razão que esse sentimento tão nobre é o responsável pelos bens mais divinos. A eterna
busca do sujeito pela felicidade, pela razão de sua existência ŖAssim, pois, eu afirmo que o Amor é
dos deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e da
felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após sua morte.ŗ Platão (2000, p.11)
Para Platão o amor tem poder universal e possui muitas faces e o desejo emana da falta,
sendo que o verdadeiro objeto do amor seria a busca pelo belo, ideal. Em seu discurso na obra O
Banquete Platão cria uma alegoria a fim de demonstrar simbolicamente que Eros (o deus do amor)
não é na realidade um deus e sim um semideus, o demônio do desejo que nos ludibria por meio de
artifícios. Platão nos apresenta ainda uma possível triplicidade da alma que seria divida em: a razão;
a vontade e os desejos inferiores. Diotima, personagem de O Banquete, divide em seis as etapas do
amor: amor por belo corpo; amor por belos corpos; amor pelas belas almas; amor pelas belas ações;
amor pelas belas ciências e amor pela Ideia da beleza. Platão ainda acrescenta mais duas etapas: o
amor por todas as ideias e amor pela ideia do Bem porque o Bem é mais elevada das ideais. Desse
modo podemos dizer que a alma é em si formada por desejos, o amor torna-se na teoria de Platão
uma imensa confusão, uma busca infinita pelo ideal e pelo absoluto.
Faremos agora algumas observações na teoria postulada pelo filósofo René Descartes que
possui pontos incomuns com a teoria de Platão. Para Descartes corpo e alma são Ŗentidadesŗ
antagônicas, ou seja, são tomadas separadamente, agem uma contra a outra. Os movimentos do
corpo acompanham as paixões da alma. O Amor é nessa perspectiva uma paixão, dentre as
principais apontadas pelo filñsofo Ŗo amor é uma emoção da alma, causada pelo movimento dos
espíritos, que a incita a unir-se voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes.ŗ
Descartes (p.71) ou seja, tanto para Platão como para Descartes há uma nítida separação entre corpo
e alma, o primeiro não pode existir sem o segundo, sendo que a alma é capaz de continuar seu
percurso sem os movimentos que o corpo proporciona, algo totalmente transcendental, espiritual.
Partimos agora para análise de fragmentos das teorias psicanalíticas de Sigmund Freud e de
algumas considerações que a psicanalista brasileira Nadiá Ferreira faz sobre a obra do próprio Freud
e de Jacques Lacan . A psicanálise surgiu com Freud a partir de observações feitas por ele em sua
clínica médica. Freud postula que o princípio do prazer se manifesta em todos os eventos mentais,
ou seja, tudo que aspiramos está inevitavelmente ligado a um desejo de satisfação plena, uma busca
pela autorrealização que ele dá o nome de narcisismo primário. O impulso sexual é mola propulsora
dos estudos freudianos, quase todos os desejos humanos são de ordem sexual e constituem uma
integração conhecida como libido que eleva-se a fim de fenecer em sublimação, termo utilizado
pela psicanálise, é como se o desejo por determinado objeto se esgotasse e desse modo muda-se o
foco para outro objeto de desejo, sem que haja mudança do próprio desejo, pois só o desejo sexual é
o desejo verdadeiro. Para Freud o amor é uma idealização.

O princípio de prazer, então, é uma tendência que opera a serviço de uma função, cuja
missão é libertar inteiramente o aparelho mental de excitações, conservar a quantidade de

24
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

excitação constante nele, ou mantê-la tão baixa quanto possível (...). O princípio de prazer
parece, na realidade, servir aos instintos de morte. FREUD (V. XVIII, p. 36)

Sobre o amor Freud adverte que:

O amor deriva da capacidade do ego de satisfazer auto - eroticamente alguns dos seus
impulsos instintuais pela obtenção do prazer do órgão (...). As fases preliminares do amor
surgem como finalidades sexuais provisórias enquanto os instintos sexuais passam por seu
complicado desenvolvimento. (V. XIV, p. 72)
Mesmo em seus caprichos, o uso da linguagem permanece fiel a uma certa espécie de
realidade. Assim, ela dá o nome de Řamorř a numerosos tipos de relações emocionais que
agrupamos, também, teoricamente como amor; por outro lado, porém, sente, a seguir,
dúvidas se esse amor é amor real, verdadeiro, genuíno, e assim insinua toda uma gama de
possibilidades no âmbito dos fenômenos do amor. (V. XVIII, p.61)

Freud nos mostra três polaridades que conduzem nossa vida mental. São elas: sujeito (ego)
ŕ objeto (mundo externo), prazer ŕ desprazer e ativo ŕ passivo e essas polaridades se ligam
umas as outras de modo altamente expressivo. Dessas três polaridades ele descreve a da atividade-
passividade como a biológica, a do ego-mundo externo como a real, e por fim a do prazer-desprazer
como a polaridade econômica. Para o psicanalista o amor é uma paixão e por essa razão é
ambivalente, portanto dicotômico.
Podemos citar ainda estudos e teorias formuladas acerca da pulsão de Eros e da pulsão da
morte (Thanatos). O estudo das pulsões observadas tanto na obra de Freud como nos estudos de
Lacan são caminhos traçados pela psicanálise para discutir a sexualidade humana. Para Freud é
através do objeto que a pulsão atinge suas finalidades. Outro termo utilizado pela psicanálise é
castração, mas não no sentido que estamos acostumados a conceber. Castração é:

Ninguém castra, a si mesmo, a condição para um ser falante se constituir como sujeito é se
tornar um ser submetido às leis da linguagem, cuja estrutura, além do simbólico e do
imaginário, inclui o real, sob a forma de uma falta radical, na medida em que o real só pode
se apresentar para o ser falante como impossível de ser significado. Isto é castração para a
psicanálise. FERREIRA (2008, p.3)

Jacques Lacan no decorrer de suas análises faz referências a várias modalidades de amor e
aos diferentes mitos que se criaram em torno dele. A estudiosa Nadiá Ferreira enumera essas
modalidades: o amor dom-de-si, narcísico por excelência; o sentimento da paixão, característico de
toda neurose; o amor cortês, sublime e na mais absoluta abstinência sexual; o amor ao próximo,
suporte dos laços fraternos e homossexuais; o amor trágico; o amor de transferência, o amor como
metáfora e o amor como recusa do dom.
Sobre a teoria de Lacan a autora destaca algumas concepções que nos parecem bem
relevantes. O amor é o contrário do desejo, pois não compõe a estrutura de um falante, isso nos
torna diferentes dos outros animais, só o que é impossível é real e é por essa razão que não paramos
de imaginar, tecer impressões sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre os sentimentos. Por isso,
todo desejo é o mesmo, já que se configura na falta do objeto. Nadiá segue mostrando que para
Freud o amor se apresenta em três modalidades que correspondem a três etapas das pulsões:

25
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

1ª na segunda fase do auto-erotismo, em que o alvo da pulsão é a incorporação ou a


devoração dos objetos, temos o amor narcísico, que elimina a separação entre próprio corpo
e objetos exteriores, inaugurando, assim, a ambivalência como um dos traços do amor;
2ª na fase da organização sádico-anal, em que a relação entre sujeito e objeto se caracteriza,
segundo as palavras do próprio Freud, pela luta do sujeito em dominar o objeto, o que faz
com que o dano ou o aniquilamento do objeto seja indiferente, tem-se a equivalência entre
o amor e ódio, agenciando a relação do sujeito com o objeto;
3ª na fase fálica, o amor se apresenta como antítese do ódio, o que não implica que um
contracene com o outro. (2008, p.19)

Não vamos aqui esmiuçar cada um dos mitos e dos tipos de amor apresentados no decorrer
desta pesquisa, pois não há espaço para uma análise tão detalhada. A nossa finalidade é mostrar
como o Amor é visto pela filosofia e psicanálise e como se manifesta esteticamente na literatura.
Terminamos essa seção com uma afirmação de Nadiá Ferreira ŖEm nome de um amor
sublime e de um sintoma mal dito, a morte do sujeito do desejo se tornou o fantasma de todos os
amantes fisgados pela ficção de que o amor é o sentimento que faz Um.ŗ (2008, p.109)
Vislumbraremos essa e outras afirmativas feitas ao longo desta pesquisa na seção seguinte deste
trabalho por meio dos arquétipos existentes na literatura de Caio Fernando Abreu.

Caio Fernando Abreu: “um desenho amoroso multiforme”

Caio Fernando Abreu, escritor e jornalista gaúcho, homossexual declarado, HIV positivo.
Teve uma vida bastante tumultuada. É possível visualizar, a partir do contato com suas obras
literárias, impressões do autor acerca de relacionamentos afetivos, de morte, de respeito, resquícios
de sua vida particular, extensões muito íntimas de comportamentos e sentimentos vivenciados por
ele e compartilhados com os leitores por meio de suas publicações. A melancolia, a desilusão, a
solidão, a busca pelo amor, são algumas temáticas recorrentes em suas obras.
A obra literária de Caio Fernando Abreu é muito vasta e o tema Amor é cíclico. Sugerimos
no resumo desse artigo um recorte na literatura de Caio fazendo uso do conto previamente
escolhido ŖOs dragões não conhecem o paraísoŗ que compõe o livro que leva o mesmo nome.

(...) nesse livro CFA retoma as extremidades do pólo sujeito versus meio, utilizando a
metáfora do dragão que engendra tragédia e riso, numa estetização da dor, que volta em
alguns momentos, a dar às suas histórias o contorno do irremediável já percebido em suas
primeiras produções. GOMES (2008, p. 228)

O conto, objeto de análise, abre com uma citação do I Ching, o livro das Mutações chinês,
uma espécie de oráculo em que o consulente, após imaginar uma pergunta, traça uma resposta
simbólica através de um jogo: ele arremessa varetas ou moedas e traça, ao final, um hexagrama que
remete a uma resposta enigmática Ŕ como em geral são as respostas dos oráculos. Partindo das
deixas do texto selecionado é possível visualizar algumas possibilidades de leitura, os símbolos
estão dispostos de tal forma que surgem pontos difusos quando vamos interpretá-lo. No início o
narrador faz uma afirmativa: ŖTenho um dragão que mora comigo!ŗ . Em seguida surge a negação:
ŖNão, isso não é verdadeŗ . É assim que começa o nosso dilema e o conto objeto dessa análise.

26
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma como precisam da ilusão de Deus.
Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; Da ilusão de
Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo. (Trecho do conto Os Dragões
não conhecem o paraíso)

O afã literário de Caio Fernando imita a busca da sua personagem de escapar ao lugar
comum: o dragão é o brilho que ofusca, é a antípoda da vida banal, a impossibilidade da fuga. Mas
esse animal mítico é algo com que se deve lutar Ŕ e vencer. O amor surge então como uma fuga,
uma ilusão capaz de ludibriar a solidão, o eu narrador dialoga com o leitor de forma desesperada, é
como um desabafo capaz de amenizar a sua dor. O dragão, objeto do desejo, é invisível, irreal, mas
a falta dele é real, quase mortal. Não pode vê-lo, mas pode senti-lo, sonhar em aprisioná-lo para
assim ser feliz, ser completo e não mais um ser banal, esquecido ou rejeitado.
A personagem do conto analisado está como imerso no mar de dúvidas em que as respostas
do I Ching lançam os consulentes. Ainda mais que esta personagem narradora envolveu-se com um
dragão, o único animal mítico do horóscopo chinês. E dragões cospem fogo, gostam de festas e de
brincar, segundo a sabedoria chinesa. Segundo a sabedoria ocidental são seres perigosos ou mal-
humorados, raptores de donzelas, por isso, sempre perseguidos por heróis que empunham lanças.
Esse dragão do conto de Caio Fernando oculta-se nas entrelinhas, ou seria morto pelo
quixotesco herói narrador armado de lança e armadura. E se oculta numa simbologia de
ambiguidade, ou seria desvendado, abriria o flanco para uma interpretação banal. Isso Ŗmatariaŗ o
conto, a personagem-herói e o dragão chinês que prima por ser ambíguo: é tão simpático, mas
também perigosíssimo.
Dessa forma, Caio Fernando conduz seu dragão a fim de torná-lo, no conto, a personificação
do mito do amor, o próprio Eros da lenda mitológica greco-latina, talvez uma releitura de sua
história cheia de reviravoltas com Psiquê. Uma lenda alegórica que pode simbolizar a imortalidade
da alma tendo em vista o significado primeiro da palavra Psiquê (alma; borboleta), a borboleta que
após tantas provações, morre e renasce para desfrutar das mais belas paisagens, da verdadeira
felicidade. No caso do conto, o eu é como se fosse Psiquê, cheio de curiosidade, que só acredita
naquilo que pode ver: ŖComo uma fome, me dava. Mas uma fome de ver, não de comerŗ (p. 144),
sendo que a visão por vezes é traiçoeira. Um ser que não se tornou uma bela borboleta se encontra
no estágio das provações e é apenas uma lagarta que ainda não pode compreender o caminho, feia e
esquecida, ŖOs dragões, já disse, não suportam a feiúra...ŗ (p. 145).

O conto trata de um inevitável estado de desencanto e prostração advindos de quando a


subjetividade, ao buscar uma conformação no projeto do amor romântico, encontra o vazio
e não a felicidade prometida. Se Eros corresponde ao dragão e Psiquê à alma do
personagem, o que está sendo proposto por CFA é a disjunção entre quem ama
(personagem/alma) e a Ŗentidade amorŗ que o visita. Diante dessa disjunção, sñ resta à
alma costurar sua história amorosa a cada novo dia, como uma voz saída de As mil e uma
noites, que precisa enganar a ameaça da morte, da escuridão. GOMES (2008, p.236)

Eros é apresentado sob o signo do Ŗdragãoŗ e a partir da exposição do eu narrador são


elencadas algumas situações em que o sujeito enamorado conta sua história romântica e trágica, um
ser banal imerso na solidão e na dor, em busca de cheiros de ervas, mofando dentro de um
27
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

apartamento e repetindo sua história, a fim de cicatrizar o incicatrizável. Esse é o dragão do conto,
um dragão literariamente construído, que dorme nas cavernas do texto e somente aparece para ser
amado pela sua simpatia e odiado pela sua indiferença. O mais perfeito objeto de desejo extremado
que Caio Fernando pretende expressar como sendo o mais perfeito amor.

Fico cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma numa
espécie de modesta alegria, tarde da noite, sozinho neste apartamento no meio de uma
cidade escassa de dragões, repito e repito este meu confuso aprendizado para a criança-eu-
mesmo sentada aflita e com frio nos joelhos do sereno velho-eu-mesmo: - Dorme, só existe
o sonho. Dorme, meu filho. Que seja doce. Não, isso também não é verdade. (Trecho do
conto Os dragões não conhecem o paraíso)

Imerso numa dualidade quase tipicamente freudiana, eu narrador mal sabe de si Ŕ ego Ŕ e se
deixa levar pelas deliciosas armadilhas em que o dragão que habita seu desejante e inacessível
inconsciente o lança para desespero e delicia do amoroso narrador, provavelmente um alter ego do
próprio autor. O dragão de Caio Fernando Abreu é o elemento central do mito do amor moderno:
trágico, intenso e freudianamente implicado.
Podemos estender a temática do amor em diversas obras do autor supracitado, ele faz uso
frequente da linguagem amorosa, funde em seus textos amor e morte, não como estamos habituados
a conceber, mas sim de maneira nada convencional e por isso fantástica, em textos como
Infinitamente Pessoal, Extremos da Paixão e Em memória de Lilian pertencentes à obra Pequenas
Epifanias que compreendem textos dos anos 1986 a 1995. Caio Fernando traduz em palavras as
sensações de abandono, desprezo, dor, loucura, morte, prazer, alegria, desejo, gozo e amor. É como
uma grande roda gigante movida a paradoxos, onde ora está em alta ora em baixa, afinal esse é o
ciclo da vida, Ŗmorremosŗ diversas vezes e renascemos outras tantas, isso porque todos nñs
precisamos das boas e más experiências, saber de quantas faces o amor é feito.

Passaram-se muitos dias. A lua deu mais de uma volta completa no Zodíaco. Ultrapassou
Sagitário e caminhou até Áries, completando seu triângulo de fogo e paixão. Bati as mãos
contra o muro, procurando brechas. Não havia mais. Espatifei as unhas, gritei por uma
resposta qualquer. Nem uma veio de volta. Olhei para fora de mim e não consegui localizar
ninguém no meio das vibrações da cidade suja. Olhei para dentro de mim e só havia
sangue. Derramado, como nas cirandas.
Queria acordar, mas não era um sonho. (Trecho de texto Infinitamente Pessoal)

Entender a união das duas forças macro que são Eros e Thanatos é fundamental, por isso, o
tema foi proposto inicialmente para uma tentativa de responder aos questionamentos que geraram
essa pesquisa. Com certeza, ao nos debruçarmos sobre a obra de Caio Fernando Abreu, que é uma
fonte diríamos inesgotável de possibilidades, vislumbramos os labirintos do amor, em suas formas
mais primitivas, mais arrebatadoras. O leitor mergulha nas profundezas estéticas dessa forma de
sentimento/comportamento.

A morte e o amor. Porque o amor, como a morte, também existe ŕ e da mesma forma
dissimulada. Por trás, inaparente. Mas tão poderoso que, da mesma forma que a morte ŕ
pois o amor também é uma espécie de morte (a morte da solidão, a morte do ego trancado,
indivisível, furiosa e egoisticamente incomunicável) ŕ nos desarma. O acontecer do amor
e da morte desmascaram nossa patética fragilidade.

28
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Como amor e morte não se separam ŕ feito quem diz Ŗera uma vezŗ ... (Trecho do texto
Em Memória de Lilian)

Sobre a obra de Caio Abreu é interessante frisar uma peculiaridade, ele expõe o amor
acionando os nossos sentidos, há muitas cores, cheiros e sabores na escrita poética do autor, ficamos
imersos no mar de sinestesias. O conto Uma História de Borboletas tal como Os Dragões não
Conhecem o Paraíso fala inevitavelmente de amor, os dois textos apesar de estarem em livros
diferentes apresentam abordagens semelhantes sobre o mesmo tema. O amor sob os signos da
paixão e da loucura. No primeiro o autor utiliza as cores para simbolizar estados de alma,
demonstrando até que ponto da loucura e da dependência, os sujeitos envolvidos na ação chegam ŕ
ŖNum gesto delicado, apanhava-a pelas asas, entre o polegar e o indicador, e jogava-a pela janela.
Essa era das azuis ŕ costumava dizer, ou essa era das amarelas ou qualquer outra cor.ŗ e no
famigerado segundo conto o que é disparado é o olfato como único caminho para alcançar o objeto
do desejo ŕ ŖEle cheirava a hortelã, a alecrim, eu acreditava na sua existência por esse cheiro verde
de ervas esmagadas dentro das duas palmas das mãos.ŗ
No livro Inventário do In-remediável (1995), notamos algo bem interessante, à divisão da
obra, a primeira parte intitulada DA MORTE, a segunda DA SOLIDÃO, a terceira DO AMOR, a
quarta e última DO ESPANTO. Notamos certa regularidade nessa divisão, parece que é um
caminho, etapas que precisam ser seguidas, começa com a morte e finda com o espanto, metáforas
utilizadas pelo autor para mostrar a fragilidade do homem diante das vontades de Eros e Thanatos.

Considerações finais

Ao final desta pesquisa constatamos as ligações íntimas estabelecidas entre as teorias da


filosofia e da psicanálise. Ambas desenvolvem o tema, Amor, de modo semelhante, complementar.
Uma sob a óptica discursiva e outra sob a óptica médico/ científica, tentando as duas darem
respostas ou indicar os prováveis caminhos tortuosos e movediços de Eros.
Utilizando as referências teóricas legitimamos o que nelas constam. A partir dos arquétipos
extraídos da literatura de Caio Fernando Abreu foi possível demonstrar os tipos e manifestações de
amor e de que forma influenciam e se fazem presentes nas vidas dos sujeitos envolvidos.
As análises propostas ao longo deste trabalho nos incitam a querer mergulhar cada vez mais
profundamente nos mistérios de Eros, pois o Amor é sublime e atroz e por isso paradoxal,
impossível de aprisionar, fugaz, sensível à beleza. E Thanatos é elo indissociável de Eros, sem ele o
amor não existe, pois só o amor faz viver e morrer, sem que essa morte ocorra materialmente, o que
também é possível, morrer de não morrer. Como dizia o poeta: ŖTão bom morrer de amor e
continuar vivendo.ŗ

Referências bibliográficas

29
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ABREU. C. F. Os Dragões não Conhecem o Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

. Pequenas Epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 1996.


ŔŔŔŔŔŔ

. Pedra de Calcutá. São Paulo: Companhia das Letras, 1996


ŔŔŔŔŔŔ

. Inventário do in-remediável. Porto Alegre: Sulina, 2ª ed. 1995.


ŔŔŔŔŔŔ

BOSCH. P. van den. A Filosofia e a Felicidade. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
Martins Fontes. 1998.

BULFINCH, T. O Livro de Ouro da Mitologia: Histórias de Deuses e Heróis. Tradução David


Jardim Júnior. 28ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro. 2002.

DESCARTES. R. As Paixões da Alma. São Paulo: Escala.

FERREIRA. N. P. O Amor na Literatura e na Psicanálise. Rio de Janeiro: Dialogarts. 2008.

FREUD. S. Volumes XIV e XVIII. In: Obras Psicológicas Completas. Versão em CD-ROOM

GOMES. A. L. B.. Infinitamente Pessoal: Modulações do Amor em Caio Fernando Abreu &
Renato Russo. UFMG, 2008. 285 p. Tese (Doutorado) Ŕ Programa de Pós-graduação em Letras -
Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.

MILAN. B. O que é Amor. São Paulo: Brasiliense. 1983.

PLATÃO. O Banquete. Minas Gerais: Virtual Books Online M&M Editores Ltda. 2000/2003.

30
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

FLORESTAS DE FRONTEIRA EM REDES TRANSATLÂNTICAS

Profa. Dra. Alai Garcia Diniz (CNPq/UFSC)

Resumo: Este trabalho tenta refletir sobre o tema da floresta em duas zonas fronteiriças latino-
americanas: a região da tríplice fronteira e a Amazônia com a tentativa de estabelecer um diálogo
sobre linhagens interfronteiriças nas poéticas de imaginário entre paisagens e escrituras. E se a
selva no discurso abrange a oralidade ou a desmata. São esses produtos que se esborracham
diante de caminhos cultivados ou partem de um discurso que hidrata certas poéticas que
movimentam a cultura. Do lado de lá no Equador como se representa a floresta como imaginário
no conto indigenista ŖBarranca Grandeŗ do equatoriano Jorge Icaza? Lá de baixo, em outra zona
qual é o gesto do espanhol Rafael Barrett sobre a selva e seu corpus simbólico em Lo que son
los yerbales (1910) ? Como uma zona de fronteira no sul pode iluminar outra do norte? Pelo
livre olhar do leitor que irriga o diálogo com a obra do português com A selva(1930) de Ferreira
de Castro. Essas poéticas provêem de quais linhagens? Certamente diferem de outros gestos
como o de Alejo Carpentier que funda na metade do século outros labirintos entre a cronotopia e
o silêncio de quem fala sozinho na vertigem neobarroca do cenário. Haveria uma poética ácrata
que não impede dialogar com o indigenismo; neo-realismo ou o realismo maravilhoso? Em que
medida essa paisagem produz memória e esquecimento e se traduz em cicatriz moderna que se
inscreve em novos imaginários?

Palavras chave: Imaginários. Selva; R. Barrett; F. de Castro; J. Icaza.

Em estudo recente sobre a Amazônia, Francisco Foot Hardman em A vingança da Hileia


(2009) mostra como a região serve de cenário para o desejo de tantos que se arvoram na labuta de
escrever a Amazônia e marcam trajetórias de escritores modernos como Euclides da Cunha de um
paraíso perdido e seus ensaios. Neste trabalho a reflexão provisória parte da ousadia que cursa
uma corrente líquida entre rios de memória como esquecimento e com um tópico preciso: o contato
entre comarcas culturais do sul e do norte pelas fronteiras entre memória, cultura e paisagens, no
início do século XX, a fim de compartilhar um discurso entre passado e presente.
Quando Edgar Morin propõe a idéia de que a civilização e a barbárie são apenas duas caras
de uma mesma moeda vale a pena refletir sobre o fictício e o imaginário em que participam as
alegorias em forma de imagens e antídotos desse conflito que pode denunciar a ambivalência
implícita no território da interculturalidade.
No século XXI se reconhece a Europa como espaço que teria açambarcado para si a
imagem do homo sapiens, ocultando sua fisionomia demente e delirante das medidas
colonizadoras que, em diferentes regiões latino-americanas, conduziram políticas de exploração de
riquezas e matérias primas influindo internamente na constituição de um poder cooptado para fazer
31
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

valer seus interesses. A violência desse poder, durante três séculos de dominação ibérica reverbera
até hoje, por exemplo, no imaginário de diferentes comarcas culturais. A comarca da tríplice
fronteira; a do Prata; a andina e a caribenha ou aquela que me permito chamar de comarca
amazônica são algumas das regiões em que foi utilizada de forma complementar mas com bastante
êxito a política do monopólio de uma única religião, não só para desrespeitar como, praticamente,
para tentar extinguir crenças e cosmogonias a fim de conquistar outras culturas para uma visão
globalizada de mundo: o cristianismo. Essa barbárie religiosa deixou marcas no imaginário que a
literatura como parte dessa cultura vai desenhando ficcionalmente. Esses encontros e conflitos
forjam tramas a partir do espaço da floresta. Ver de modo inter-fronteiriço em que medida isto se
processa em diferentes legados culturais é o objetivo desse artigo. E então a formação vegetal
densa se constitui predominantemente por árvores de porte superior e tem como sinônimo a idéia
comportada de bosque, onde é que entra o correspondente bárbaro desse nome? A selva como
floresta virgem e densa a que alguns dicionários chamam de mata inculta?

Barranca grande

E para dar inicio a essa reflexão interfronteiriça sobre a Amazonia recorro ao conto
ŖBarranca Grandeŗ do escritor equatoriano Jorge Icaza que foi publicado em um conjunto Seis
relatos (1952) e que, em realidade, tem como protagonista o espaço maldito (Barranca Grande)
em que um casal de huasipungueiros vive amancebado. José Simbaña y Trinidad Callahuazo
confundem-se em uma multidão de índios escravizados que no único dia livre da semana - o
domingo -, freqüentam a mímica litúrgica da missa para ver o sacrifício simbólico comandado pelo
sacerdote que espargindo o incenso enchia o ar de receio ao falar contra o pecado do concubinato,
costume indígena:

Ŗel fuego indñmito de los volcanes...el plomo fundido en la frágua de la herrería del
tuerto Melchor, la víboras del bosque, los alacranes, las arañas...Como la Barranca
Grande com sus grietas de espanto em los muros... como la Barranca Grande com su
aliento de queja y sus dilatadas fauces rocosas! Así...Asi es el infierno! Así como la
Barranca Grande (ICAZA, 1971:9).ŗ

A potência desse tipo de sermão vai minando a mente de Trinidad que faz com que
Taitiquitu prometa:

-Defenderasme...que nu carguen a la pobre Trinidad lus diablus comu dice taita


curita...enterrando cristianamente cuandu tuerza el picu, pés...Nu comu a perro
manavali...cun misa de trapu negru em iglesia. Cun chagrishu de flur blanca. Cun
cajún pintadu. Cun responsus de a tres por sucre. Cun água bendita. Cun... (ICAZA,
1952:26)

Em uma linguagem coloquial que, sem aproximar-se da língua quéchua, procura distinguir
no discurso uma oralidade fictícia, inventada pela escritura, mas que serve para divergir do padrão
culto do castelhano. Essa fronteira lingüística artificial também pressupõe o conflito entre duas
sensibilidades, duas cosmogonias que se enfrentam em um território textual marcado pelo espaço de
Barranca Grande.
32
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A oralidade supõe indicar com o matiz diferenciado da fala a marca de uma mestiçagem que
mascara pelo sotaque um falar do outro que não corresponde à norma culta em idioma peninsular e
castelhano.
Em forma de uma enunciação extradiegética, chega-se ao clímax do conto a partir do
começo das dores de parto que significativamente se iniciam á porta da igreja, mas que vai
aumentando gradativamente com a peregrinação que o casal faz até a choça em que vivem em
Barranca Grande. Em nenhum momento no espaço Ŗurbanoŗ do povoado há acolhida para auxiliar
essa nova vida que está por surgir do corpo de Trinidad, fruto proibido. A floresta representa a
paisagem demoníaca que projeta indícios simbñlicos como: Ŗcaminos fantasmales; murciélagu;
brujeadaŗ . A única saída no campo da floresta é recorrer à curandeira para extirpar o mal. Para
impedir o feitiço, o ritual demonstra a perda da criança e a conseqüente morte da parturiente.
Entretanto, o ser da floresta revisitado pela escritura indigenista de Jorge Icaza mostra o que José
Carlos Mariátegui explica:

«La literatura indigenista no puede darnos una versión rigurosamente


verista del indio. Tiene que idealizarlo y estilizarlo. Tampoco puede
darnos su propia ánima. Es todavía una literatura de mestizos. Por eso
se llama indigenista y no indígena.»

Trinidad ou José Simbaña não estão construídos como personagens idealizados, mas
também não supõem grande penetração psicológica e se transparece algo como estilização na
escritura indigenista de Icaza, isso também faz parte da corrente que tinha por princípio explorar os
conflitos e as dicotomias entre hábitos antagônicos e a hegemonia da única religiosidade possível: o
cristianismo. O componente de barbárie implícito no poder do representante da igreja (civilização)
projetaria uma relação intrínseca entre o espaço negado da selva e do concubinato no tempo da
modernidade.
As desgraças recaem sobre o casal de indígenas, mesmo que vinda de outro mundo, acaba
tendo um único auxílio que é o de uma índia parteira ( xamã), representação sensível da
comunidade e única força a que o casal busca naquele momento crítico. Em realidade, a parteira
condena-lhes também ao dar um nome enigmático à dor que se abate nesse momento extremo e
delicado de separação entre o corpo da mãe e o de outro ser: o da magia. O feto estaria enfeitiçado
e, portanto, morre em lugar de iluminar com a vida nova aquele recinto entre ponchos e peles.
Intensifica o trágico castigo anunciado nos diálogos dos protagonistas, a do natimorto. Não pode ser
gerado o fruto daquele um amor ilegítimo. Combinam-se duas teogonias. Desse clímax, para o
desfecho trágico há um interregno em que José Simbaña sai a busca de fundos com o patrão e sua
família para cumprir sua promessa à mulher a quem deixa já exangue na tenda. Ao retornar do
périplo para dar um enterro cristão à Trinidad, de longe avista os urubus em revoada que já haviam
saciado seu apetite voraz com a carne deixada ali. O corpo dela destrinchado e em pedaços vai
alçado pelo bico dos pássaros negros encaminhando-se ao céu. Ao ver isso o indígena comete
suicídio deixando seu corpo rolar pelas pedras. Simbolicamente, os corpos se distanciam na imagem
vertical da separação que a morte traz para reforçar o desenlace que o pecado da mancebia acometia

33
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

àqueles seres descuidados do cultivo da alma, sem a benção da igreja. Dois mundos em pugna, duas
regras para a reprodução e a procriação indicam seres entre práticas antropológicas diferentes. O
padre condena a convivência marital sem a benção religiosa. Para tentar conter a bruxaria, há ritual
da velha curandeira com Trinidad de bruços e o ato de esfregar uma coelhinha da índia prenhe
que só termina com o desmaio da mulher e a morte do animal o que indicia a de Trinidad três dias
depois e aqui Trinidad não condiciona o símbolo cristão mas a temporalidade de uma agonia que
dura três sóis, a imposição ao marido do desejo de um enterro cristão.
É possível observar no conto do equatoriano indigenista que o espaço da floresta não mostra
o pertencimento, mas serve como templo ativo do rito sacrificial dos Ŗpagãosŗ em concubinato. Ao
final, constituíram-se em expiação de uma bárbara e sacrílega união carnal. A floresta com sua
fauna e flora reforça ativamente a paisagem do rito que Taita Deusito exige como alimento de seu
dogma.
Neste caso, o indigenismo de Jorge Icaza representa uma relação conjugal e familiar
vitimizada entre duas crenças que anulam os seres interculturais. O espaço da selva (Barranca
Grande) se transforma em espaço demoníaco para realizar um complô. Em lugar do Ŗbom
selvagemŗ que tem na floresta a realização cñsmica de um paraíso terreno, o conto desfia a
condição atemporal do corpo que:

Obedece al ruego ilusório de su desgraciado amor, le obligó a extender el poncho en


actitud de vuelo para dispararse entero hacia el abismo como una piedra que traga la
sima. (ICAZA, 1971:41)

Vale lembrar o que o conto se arma na memória de um discurso cifrado. Sabe-se que na
época da colônia o casamento em diferentes vice-reinados era sinônimo de status social. As posses
familiares eram medidas pela possibilidade que os casais tinham de proteger-se do pecado original,
pagando pelo casamento religioso, única forma de registrar a união civil perante a lei divina da
igreja, e disso dependia também a garantia de conseguir o registro dos filhos legítimos que até o
século XVIII também ficava a cargo da igreja.
Um dos expoentes do indigenismo andino na modernidade é o autor do conto
ŖBarranca Grandeŗ , Jorge Icaza que escreveu Huasipungo (1934), abordando a questão
social de exploração de mão-de-obra, a partir do crivo socialista, desde esse primeiro romance.
Esse recurso regional e étnico implica também um empoderamento discursivo em nome do outro,
sem, contudo, dar-lhe voz própria. Esta corrente da literatura em nome de ideais socialistas na
modernidade acaba mostrando a contradição que é a de elaborar um discurso de denúncia que
silencia o outro com a marca da proteção mestiça e configurando uma estratégia discursiva que se
na temática apóia-se em culturas excluídas, no discurso representa-se linearmente na língua do
colonizador. O meio não se afirma como busca estética. Por isso, diferente do indigenismo dos
anos 30 é a escritura em voz indígena como a de José Maria Arguedas, por exemplo, vista por
Angel Rama como modelo de transculturação.
Interessa também reforçar a idéia de que produtos culturais como o conto Ŗ Barranca
Grandeŗ , visto pela academia como modelo que operava no bojo de uma limitação estética, um tipo
34
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

de regionalismo indígena, classificado e portanto museificado no conjunto da produção literária do


ínício do século XX, criado por simpatizantes da causa possibilitam uma resignificação no âmbito
de estudos de fronteiras interculturais. O hibridismo de produtos culturais de viés artístico local
combina o incômodo com a interpelação a textualidades fundacionais em circulação em
determinados setores do campo literário de elite. Pouco a pouco circunscrito pela cultura
hegemonica em determinado nicho, assume um reconhecimento desviante ao adotar em seu bojo
um viés político que na contemporaneidade acaba motivando a discussão elaborada a partir de uma
floresta de signos como parte da discussão de poéticas do imaginário entre a Amazônia e outras
zonas como a tríplice fronteira.
Deste modo, o fato de que ŖBarranca Grandeŗ constrñi a ficção em um espaço selvático
acaba por comprometer a fecundação, pois o desenlace do relato transforma o parto em morte de
quem concebe e também do fruto, vinculando a união natural biológica a uma alegoria demoníaca
que inscreve o lócus da cultura do outro em âmbito de negatividade. Ainda que a literatura
indigenista propusesse um discurso mais ou menos fatalista, a visão trágica subjaz no esquema
binário que suspende a paisagem da experiência intersubjetiva que a prática do espaço poderia
metaforizar como habitat.

A selva

Como o próprio nome sugere, o romance do português Ferreira de Castro, publicado em


Portugal em 1930 tem também como um dos protagonistas o espaço da selva, além de Alberto, o
jovem exilado de ultramar que não vê outra alternativa que aceitar a proposta de tio Macedo em
enviá-lo a trabalhar no seringal Paraiso para sustentar-se no auge da fama da borracha (1910-1914),
uma vez que Belem não garantia trabalho nenhum no comércio. Assim do litoral tendo como
caminho o rio,o personagem se embrenha para o seringal e nessa trajetória não só se familiariza
com o mundo do trabalho rural marginalizado do extrativismo vegetal como vai se embrenhando
no mundo da floresta com sua carga de metáforas que sustentam o relato sobre um Ŗcarcamanoŗ
que, impelido a trabalhar nos seringais, combina a visão ultramarina sobre a selva, os hábitos e as
relações humanas e inumanas para além dos compêndios da ilustração.
A enunciação em terceira pessoa traz informações sobre o recrutamento dos seringueiros
realizados à base de endividamento por antecipação e as precárias condições de viagem no trajeto
rumo ao seringal na região sul do Amazonas. Ao projetar a diferença de linguagem coloquial entre
Filipe (cearense) e Alberto (lusitano) há um apelo para a discriminação dialetal entre o nativo
procedente do nordeste e o estrangeiro peninsular? A ironia do nome do seringal vai sendo marcada
passo a passo quando Alberto inicia o trabalho, percebe que os índios parintintins costumam
aparecer não só para preparar armadilhas ou levar objetos mas para decapitar seringueiros e, mesmo
vivendo esse perigo, não consegue obter uma arma para defender-se. De subversivo a pária, o
personagem vai deixando a subjetividade civilizada para sentir-se provisório (p. 39) e escravo desse
ciclo da Ŗseiva opulenta que conquistara o mundoŗ (p.11). No entanto, o público para o qual se
35
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

destina o relato é o português, o que se nota pela longa digressão diacrônica sobre as expedições
coloniais na região. João de Barros Guerra, Francisco de Melo Palheta desfilam pela obra em
consonância com a entrada em acervo documental que, pelas águas da enunciação onipotente
conhece tudo sem escrúpulos de uma corrente que mescla espaço e tempo. A natureza ganha nomes
a cada passo. De mata inculta passa a paragens incognoscíveis que se degladiam com o invasor
como se o castigassem. A selva ruge e se transforma em fera de brenhas insondáveis que projeta
Ŗum silêncio sinfônico, feito de milhões de gorjeios longínquos...em extase. (p. 65)
Da hipérbole à sinestesia; da ironia à paródia, a selva vai colorindo o cotidiano do
estrangeiro transformado em paria que pouco a pouco admite a superioridade de quem não presume
tanta vaidade, mas o auxilia a sair de complicações: Firmino é um dos exemplos de alma solidária.
Entre rentabilidades financeiras do patrão e as falcatruas para com os párias, a poética de um
realismo socialista vai surgindo como tom embrionário do relato que não pede ao leitor para pensar,
porque a harmonia discursiva mantém a crença na harmonia da modernidade mesmo que em busca
da utopia.
Há discrição ideológica no investimento narrativo em que os recursos estéticos combinam
barbárie e civilização, mas as fronteiras do relato crivam-se de flechas para um público ocidental
que levam o ciclo da borracha para fora de um tempo e de um espaço original e circunscrito. A
selva implica um lugar de fronteiras e no romance de Ferreira de Castro fixa-se no âmbito de um
olhar transatlântico, ávido de escrever a Amazônia para além da paisagem romântica ou ciliar.
Se em ŖBarranca Grandeŗ de Jorge Icaza, a selva era demoníaca pelo costume que o
concubinato indígena representava, em A selva de Ferreira de Castro a paisagem açoita, investe,
castiga e se debate na invasão descontrolada da extração da borracha que a debilita. A poética do
imaginário se diversifica entre fronteiras, mas funda o trágico da barbárie implícita na civilização
que leva a modernidade ao âmago dos veios inumanos que a floresta esconde.

O que são os ervais1

Finalmente, afastando-me do epicentro da Amazônia para perambular por outra comarca


cultural, a chamada tríplice fronteira entre países como a Argentina, o Brasil e o Paraguai e três
línguas (o guarani, o castelhano e o português e suas mesclas), a selva tem na obra de Rafael
Barrett, ŖO que são os ervaisŗ ( 1910) um ícone que um pouco distante no espaço mas não no tempo,
significa uma transgressão ao tipo de jornalismo realizado naquele momento na América Latina e
que compreende uma literatura de ação e convicção utópica.
O que são os ervais não pretende entrar pelo fictício, mas, em tom de denúncia, informa,
através de uma série de pequenos ensaios publicados em diferentes jornais do Rio da Prata, o
estado de semi-escravidão em que vivem os peões dos ervais, no início do século XX e que, desde o

1
Como minha tradução da obra se encontra no prelo, a alusão à Lo que son los yerbales já está traduzida ao português.

36
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

momento do recrutamento para a viagem, vão passando pela perda de um universo futuro até se
verem enredados num beco sem saída, em relação ao endividamento paulatino e forçado às
industrias de ervas como a Matte Laranjeira e a Industrial Paraguaya. Daí viria a semelhança com
que se pode associá-la á poética do imaginário ligada á região amazônica. O tempo é o mesmo, isto
é, o salto de modernização que impulsionam a transformação da selva em terra invadida, a ser
reconhecida como espaço de convivência humana mas com o pressuposto da guerra do ouro como
lema circunstancial de uma temporalidade moderna. Nisto pode também conectar-se a outras
comarcas culturais.

ŖÉ preciso que o mundo saiba de uma vez por todas o que acontece nos ervais. É
preciso que quando se queira citar um exemplo moderno de tudo o que pode conceber
e executar a ambição humana, não se fale somente do Congo mas do Paraguai...A
exploração da erva-mate descansa na escravidão, no tormento e no assassinato.ŗ
(BARRETT: 1910:23)

Com a intenção de que sejam reproduzidos nos países Ŗcivilizadosŗ, Barrett informa
também que os depoimentos se devem a testemunhas presenciais, confrontados entre si e
confirmados para mostrar a regra. O ensaísta explica que não espera nada do governo paraguaio que
institucionalizou as leis para que tudo ocorresse de modo a proteger o proprietário dos ervais desde
o período pós-guerra com decretos datados de 1871 de Juan B. Gil Rivarola.
Barrett discorre sobre os horrores do trabalho na selva com a convicção de que não conta
com nenhum aliado pois o contrato realizado implica que o peão:

É um escravo que vendeu a si mesmo. Não o salvará. Foi calculado de tal modo a
antecipação com relação aos salários e aos preços dos víveres e das roupas nos ervais
que o peão, ainda que se arrebente, será sempre devedor dos patrões. Se tenta fugir, é
caçado. Se não se pode trazê-lo vivo, é morto. (BARRETT, 1910, 24)

Barrett também utiliza as metáforas em seu texto que congrega ficção e verdade, dicção e
objetividade na linha do ensaio de Montaigne. Os peões transformam-se em Ŗgado da Matte
Laranjeiraŗ . E vai mostrando como o governo e a justiça trabalham em conjunto e em sintonia para
respaldar os maus tratos para com os trabalhadores ludibriados. O escritor espanhol que passou
sete anos na América do sul não deixa de ver as semelhantes condições em outras zonas ao explicar:

ŖA antecipação é a gloria dos alcagüetes da avareza milionária. Assim se recrutam os


mártires dos seringais bolivianos e brasileiros, dos engenhos do Peru. Assim se
recrutam as jovens do centro da Europa prostituidas em Buenos Aires

E exatamente um século atrás (1910), o autor apresenta que tipo de humanidade a


civilização está deixando na selva. Existe a besta assustada: o escravo e a besta feroz, proxeneta da
avareza urbana.

A selva! A milenária camada de húmus, banhada na transpiração acre da terra; o


monstro inextricável, feito de milhões de plantas atadas em um único nó infinito, a
solidão úmida onde a morte está a espreita e onde o horror goteja como nas grutas...A
selva! (BARRETT; 1910:29)

Para o escritor, a selva dos ervais seria uma prisão que torturaria mais que um cárcere pois
não há fim e confunde-se com o trabalho de um mineiro, pois o erval é uma mina tal a dificuldade

37
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

dessa labuta. Assim como no romance de Ferreira de Castro, ao seringueiro se exigia uma
quantidade mínima de trabalho semanal, para o ervateiro também seriam oito arrobas carregadas ao
ombro: ŖPesquisem sob a selva; descubrirão um fardo que caminhaŗ .(BARRETT, 1910: 31)

Esse modelo de intelectual crítico a la Emile Zola que conforma um J´acuse em meio à
celebração do Centenário argentino confirma uma tipologia da crônica na modernidade, o gênero
que, na cidade letrada, operava a formação de hábitos urbanos cujas rotas da modernização tinha no
jornal seu guia.

Cem anos sem Barrett, morto e esquecido das historiografias literárias latino-americanas
pelo seu nomadismo transatlântico e á margem da historiografia que, em geral, compreende não as
comarcas culturais, mas a nacionalidade, Barrett escapou ileso dos estudos e sua passagem de
relance pelo domínio do Rio da Prata, entre 1903 a 1910 deixa um legado em crônicas, ensaios,
contos e uma obsessão: a dor paraguaia.

ŖFardo que caminaŗ seria o gesto que Barrett encontra para criar no leitor uma empatia para
sua causa. Busca a cumplicidade do leitor e neste sentido proponho que há uma semelhança entre
esse recurso metafórico e o verso de Manuel de Barros quando nomeia o sapo como chão que pula.
Se a animização do chão desperta no leitor a alegria do lirismo com o apelo infantil do movimento;
no recurso barrettiano o fardo que caminha persegue o desespero do peso que remodela o corpo
humano descaracterizando-o em sua capacidade de ser racional. Na seqüência de ensaios que
evocam o assassinato de milhares de peões jovens nos ervais fica a reverberação de uma voz
ultramarina que escuta ecos de uma selva modernizada, em nome de uma nova guerra do outro e
que aposta na literatura como uma aventura messiânica. Esse complô interfronteiriço que arma
Rafael Barrett com sua escritura urgente deseja atingir diretamente o Estado argentino, em
enunciação que do Paraguai forma leitores transnacionais da tríplice fronteira para distribuir a
conta-gotas com os vestígios de um discurso contrario a energia de uma literatura messiânica,
prenhe de futuro, mas com a antena fincada num presente histórico. Depois de Babel ainda era
possível traduzir a dor?

Lembrando que só há sentido em traçar linhas do imaginário na discussão entre


temporalidades, passado e presente, aqui e lá, ontem e aqui e agora, emissor e receptor cabe trazer à
baila a questão do momento pós-autônomo referido por alguns dos críticos sobre a
contemporaneidade. Nestor García Canclini que em seu artigo ŖArte y fronterasŗ comenta que:

ŖEl arte trabaja ahora en las huellas de lo ingobernable... ? Ni las estéticas modernas ni
las teorías del campo artístico parecen útiles para comprender las interacciones
paradñjicas del arte con las sociedades contemporáneas.ŗ( GARCIA
CANCLINI,2009).

E o que é uma leitura sobre poéticas do imaginário senão um discurso provisório das interlocuções
que cada repertório contempla na corrente líquida dos paradoxos contemporâneos?

38
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Referências bibliográficas

BARRETT, Rafael Ŕ Obras Completas. 3 vols. Buenos Aires: Ed. Americalee, 1954.

___________ Ŕ Rafael Barrett, anarquismo y denuncia. Bs As: CEAL, 1987.

___________ - Lo que son los yerbales. Uruguay: El arte, 1910.

BARROS, Manuel Ŕ Memórias inventadas. A infância. SP: Planeta, 2003.

CASTRO, Ferreira de Ŕ A selva. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

FOOT HARDMAN, F. Ŕ A vingança da Hileia Ŕ Euclides da Cunha, a Amazónia e a literatura


moderna. São Paulo:editora UNESP, 2009.

ICAZA, Jorge Ŕ Ŗ Barranca Grandeŗ em Cuentos Ecuatorianos II. Bogotá: Instituto Colombiano de
Cultura, 1971; pag. 7 a 41.

MARIATEGUI, Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana.

http://www.alianzabolivariana.org/pdf/Centenario.pdf

GARCIA CANCLINI, N. Ŕ ―Arte y fronteras de la transgresión a la postautonomía‖. Website


Hemispheric Institute of Performance and Politics, 2009.
hemisphericinstitute.org/hemi/en/e...71/garcia-canclini

39
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

FRAUTA DE BARRO: A TRANSCULTURAÇÃO COMO RESPOSTA AO SER TARDIO

Alexandre da Silva Pimentel (UEA)

1. O ser tardio

Propor-se a pensar o ŖSer Tardioŗ é, num primeiro momento, pensar dentro de uma esfera
conceitual temporal de linearidade. É pensar o homem inserido em um momento histórico que, dentro
desta linha evolutiva do tempo, acontece depois. Esta posição de posteridade traz consigo algumas
contradições e dificuldades que podem ser vivenciadas pelo homem contemporâneo. Uma dessas
contradições reside em, de um lado, haver a noção técnica de plenitude atual em relação ao passado,
pois é possível perceber a supremacia do conhecimento científico e tecnológico do momento atual em
relação a um momento anterior. Por outro lado, é também perceptível o olhar de valorização e nostalgia
que o homem contemporâneo dirige ao passado, principalmente no campo artístico, atitude que nos
possibilita compreender que este homem atual, mesmo cercado de tecnologia, vê uma espécie de
plenitude no passado; como exemplo disso, podemos rever os grandes fluxos de renovação da arte
através da história: a renovação da arte renascentista teve como principal impulsionador o pensamento
da antiguidade clássica; é lá também que os árcades, afetadamente ou não, em recusa a uma realidade
pragmática, vão buscar refúgio. Nesses dois exemplos há uma sensível e relativa rejeição do presente
histórico. Mas em que lugar/tempo se situaria esta plenitude? E, dentro desta concepção temporal linear,
o que seria o ŖSer Tardioŗ ?

Diante de uma perturbadora dificuldade em definir com exatidão o que seria Spätzeit, Walter
Moser opta pela reunião de alguns componentes semânticos que, segundo ele, atravessam o significado
desta palavra alemã, e, a partir disso, tenta constituir uma possível compreensão do termo. Para tentar
elucidar as questões propostas acima, tomemos o componente Ŗperda de energiaŗ . Segundo esta
perspectiva, todo sistema parte de uma plenitude inicial, e à medida que este sistema evolui vai sendo
tragado pela decadência, ou seja, nasce em um apogeu e sua evolução é um caminhar para a ruína, numa
espécie de involução gradativa linear e degenerativa. Assim, se o sistema caminha inevitavelmente para
sua própria ruína, o homem moderno, digamos assim, já nasce inserido em um momento de natural
saturação e esgotamento cultural, em um momento diminuído e desprovido de energia criadora.

Ora, se todo sistema nasce em sua plenitude, e, a partir disto, todo o seu caminhar para adiante,
para o futuro em um sentido temporal linear, é um caminhar em direção à ruína, à decadência, em uma
espécie de involução, é natural que o homem que chega a este sistema tardiamente sinta os dolorosos
impactos dessa decadência, e, como resposta a tal sentimento, apegue-se fortemente à nostalgia de um
passado grandioso, heroico. Este retorno ao passado está bastante evidente em uma das grandes obras da

40
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

lírica amazonense: Frauta de barro, do poeta Luiz Bacellar, pois é o brilho de um passado e de um
imaginário rico pertencentes ao homem local, aspectos que se perderam no tempo, que canta o poeta.
Como podemos ligeiramente constatar nestes versos do poema Finis gentis meae: ŖE em tudo acorda
uma passada vida,/ um hálito sutil de tempos idos,/ de dias remançosos já vividos/ por uma glória velha
hoje exauridaŗ (Bacellar 1998, p. 75). Deste modo, é possível perceber neste homem tardio certa
desconfiança em relação à modernidade, um temor de tudo que represente uma evolução, um passo à
frente, pois isso representaria, paradoxalmente, a própria involução. Levando-se em consideração o
conceito de Ŗperda de energiaŗ , este homem revisitaria o passado, temendo, ou desprezando, de certa
forma, o vanguardismo. Mas Bacellar eleva esta forma de reação a uma espécie de sincretismo que será
uma das bem sucedidas tônicas de sua obra, pois, apesar de voltar-se ao passado, não teme nem despreza
a vanguarda (que em si é fruto direto da modernidade), mas antes a incorpora, numa assimilação
antropofágica, e a utiliza na reconstrução poética do passado.

Temporalmente falando, o Spätzeit é pura posteridade. Assim, é interessante comentar aqui o


efeito positivo que a decadência impõe ao homem que se encontra numa época de declínio e
esgotamento. Segundo Alois Riegl Ŗo ŘSpätzeitř não é apenas o declínio daquilo que o precedeu, mas
que essa posteridade cultural é marcada por sua vontade prñpria de criar, e produz suas prñprias formasŗ
(apud Moser, 1999, p. 44). Assim, são exatamente as dificuldades geradas a partir desse momento
decadente que se transformam em combustível para a produção artística do homem tardio; pois produzir
algo dentro desta saturação cultural, decadente e posterior a um presente que foi pleno, torna-se um
desafio ao gênio criativo do artista, um desafio que atiça e impulsiona a vontade de criar, e é dos
desafios que se alimentam as possibilidades de crescimento.

Deste momento em diante faz-se necessário traçar novas linhas de interpretação a respeito do
Ŗser tardioŗ, linhas que de certo modo extrapolam esta ideia de linearidade temporal e ampliam as
possibilidades de significação do termo. Ao discorrer sobre o componente Ŗsecundariedadeŗ , Moser nos
dá duas possíveis formas de definição: a primeira refere-se a Ŗum fenômeno que se repete de maneira
mais fraca e muitas vezes deformada, tardio no tempo em relação a um primeiro aparecimentoŗ (Moser,
1999, p. 40). Para referir-se à segunda possibilidade de definição o autor remete-se a um estudo de
Virgil Namoianu intitulado A Theory of Secondary; segundo este estudo, “é secundário aquilo que é
lançado à margem do sistema, porque são elementos que constituem obstáculos às tendências fortes
desse sistema, chamadas primárias, e que se situam em seu centro.ŗ (apud Moser, 1999, p. 40, grifo
nosso). É interessante chamar a atenção para esta segunda definição que vê como secundário tudo aquilo
que é lançado à margem do sistema, pois esta abole a característica temporal e atém-se a uma
característica espacial, na qual será secundário tudo aquilo que está distante do centro, portanto, à
margem. Nesta concepção é possível perceber que o Ŗser tardioŗ não está relacionado apenas a uma
linha temporal involutiva, mas também está relacionado com o lugar que ocupa dentro de um
determinado sistema. Portanto, é perfeitamente possível dois microcosmos viverem paralelamente em

41
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

um mesmo momento histórico, e ainda assim um ser considerado tardio em relação ao outro, pois aqui a
principal condição para o tardio é espacial e não temporal. Começa-se a perceber, a partir de agora, a
marginalidade como uma das características do Ŗser tardioŗ . E, para compreender com maior nitidez este
Ŗatrasoŗ entre regiões que coexistem em um mesmo momento histñrico, Walter Moser propõe um
esquema bastante simples:

O esquema mais freqüente consiste em medir o atraso deslocando-se do centro para a periferia.
Partindo do centro de uma área cultural que, tendo conhecido um desenvolvimento, conseguiu
impô-la como a norma do progresso, ou muito simplesmente, como o último lançamento da
moda, constataremos, deslocando-nos para a periferia, que o progresso não chegou ainda ali, que
a zona periférica está, pois, em atraso. É sobretudo o processo de colonização que aguçou nossa
percepção deste tipo de fenômeno, impondo este esquema de pensamento. (MOSER, 1999, p.
48)

Compreende-se, deste modo, que há uma forte noção de atraso em uma cultura periférica em
relação a uma cultura dominante. A região amazônica se enquadra neste perfil periférico principalmente
por conta do processo histórico de colonização, no qual seu distanciamento em relação ao centro provocou
profundas diferenças que a colocaram em condição de subalternidade, desvantagem e atraso diante das
culturas centrais (estas em posição de força). A marginalidade característica das regiões periféricas da
modernidade será, a partir de agora, a principal tônica do Ŗser tardioŗ a ser trabalhada nesta análise. Pois a
marginalidade é também uma das condições fundamentais para que se possa forjar o conceito de
modernidade tardia. Como diz Allison Leão, em Representações da natureza na ficção amazonense: ŖSe,
por um lado, as modernidades tardias não são necessariamente periféricas, por outro, as modernidades
periféricas são fundamentalmente tardiasŗ (2008, p. 93). Esta modernidade tardia traz consigo o atraso
tecnológico, artístico, econômico e político, dificuldades que também deverão ser enfrentadas pelo artista
local. Entre as dificuldades ocasionadas por sua condição de marginalidade, está a inserção destruidora da
modernidade que, em um processo aculturador, pode diminuir e aniquilar a cultura local, exigindo do
artista inserido neste contexto: ou a aderência ao modelo aculturador externo, ou uma resposta criativa em
forma de resistência a estes fenômenos gerados por sua condição marginal e tardia. É desta resposta
criativa que trataremos a seguir.

2. A transculturação como resposta

O distanciamento que a Amazônia mantém diante dos grandes centros de efervescência cultural,
política, tecnológica e econômica caracteriza-a, diante das reflexões expostas até aqui, como uma região
inserida no processo de modernidade tardia. Porém, é necessário frisar que este Ŗser tardioŗ, esta
marginalidade da qual a Amazônia faz parte é fruto muito mais de um processo histórico, político e
econômico do que de fatores meramente geográficos. Esta marginalidade encontra suas raízes em um
processo de exploração colonial que afetou não só a Amazônia, mas toda a América Latina.
A dicotomia entre modernidade e atraso atinge seu ponto mais significativo na história da
humanidade no ato do descobrimento da América, quando a modernidade europeia choca-se com o

42
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗarcaísmoŗ do novo mundo. A partir de então, teremos duas culturas tão díspares que, embora coexistindo
em uma mesma época, permaneciam distantes no tempo histórico, dado o grau de evolução tecnológica
europeia e o arcaico estilo de vida das terras recém-descobertas1, caracterizando, deste modo, uma espécie de
confronto entre temporalidades distintas.

É a partir desse momento que se inicia a inserção da modernidade na cultura latino-americana.


Modernidade que, como dito acima, chega de modo tardio a este lado do Atlântico, e com um propósito de
exploração. Este fato, aliado aos interesses econômicos e expansionistas dos colonizadores, determinaria
fortemente a velocidade e a espécie de desenvolvimento2 que caracterizaria o continente americano ao longo
da história. É contra esta inserção nociva da modernidade que o artista local articula sua resposta
transculturadora.

Buscando uma melhor forma para definir o intercâmbio cultural proveniente deste confronto
entre Europa e América Latina, o sociólogo cubano Fernando Ortiz, em seu estudo Contrapunteo Cubano
Del tabaco y El azúcar, cria, em 1940, o termo Ŗtransculturaçãoŗ , que, segundo Flávio Aguiar e Sandra
Guardini Vasconcelos, teria o intuito de Ŗexplicar o impacto das trocas culturais e econômicas durante o
empreendimento colonialŗ europeu na América Latina (2004, p. 87); e Ŗdescrever um processo no qual duas
culturas, em situação de encontro ou confronto, resultam modificadas, dando origem a algo novo original e
independenteŗ (2004, p. 87). Assim, o termo Ŗtransculturaçãoŗ seria, para Fernando Ortiz, Ŗesse trânsito
vital, ou jogo dialético, entre culturasŗ (apud Aguiar & Vasconcelos, 2004, p. 87).

Para trazer as reflexões ao espaço amazônico, faz-se necessário começar a pensar os influxos
desta modernidade no territñrio brasileiro. Segundo Ángel Rama, Ŗsão dois os processos de transculturação
registrados ao mesmo tempo: um entre as metrópoles externas e as cidades latino-americanas e outro entre
estas e suas regiões internasŗ (2001, p. 217). Estas pulsões externas da modernidade urbana, ao serem
inseridas em um contexto interno, desencadeiam não só um processo de submissão, mas principalmente de
absorção e desintegração da cultura local. Como o deixa bem claro Ednea Mascarenhas em A ilusão do
Fausto (1999), ao discorrer sobre os impactos da inserção do modelo cultural europeu na cidade de Manaus,
no início do século XX. O modelo escolhido pela elite local como símbolo da modernidade contemporânea
foi o francês, assim, é possível perceber que, nos anos de 1850 a 1890, vai se delineando uma tensão entre
tradição e modernidade que se projeta nos conflitos entre os antagônicos modelos de sociedades presentes na
cidade: o europeu (da elite branca) e o provinciano (com raízes indígenas). Deste modo, os esforços do
estado foram direcionados para garantir o modelo europeu de sociedade, e foi com esta perspectiva que se

1
Aqui, a palavra Ŗarcaicoŗ sñ pode ser compreendida como tal em contraposição à modernidade europeia, pois, considerando-se
as culturas destas civilizações isoladamente, isto é, antes do contato com o europeu, elas eram perfeitamente auto-suficientes, não
necessitando da tecnologia moderna para sua subsistência. Além do mais, o arcaísmo destes povos é relativo, pois, mesmo antes
de 1492 já apresentavam consideráveis avanços no campo tecno-científico; por exemplo, os incas, que se destacaram na
arquitetura com suas construções de pedra e na matemática, pois já possuíam um sistema numérico decimal; os astecas, que se
destacaram por suas noções de astronomia, de modo que já possuíam um calendário solar; e os maias, que desenvolveram a escrita
hieroglífica, deixando uma grande quantidade de escritos. (cf. Pazzinato & Senise, 1992, p. 50-51).
2
Trata-se aqui de um desenvolvimento comedido e vigiado que não visava à melhoria de vida das populações americanas, nem a
valorização de sua cultura, nem sua auto-suficiência política e econômica. Este desenvolvimento visava unicamente a geração de
riquezas para a metrópole.

43
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

formularam os projetos da cidade para serem colocados em prática a partir de então (cf. Bentes & Rolim,
2005, p. 149).

[...] a modernização em Manaus, não só substituiu a madeira pelo ferro, o barro pela alvenaria, a
palha pela telha, o igarapé pela avenida, as carroças pelos bondes elétricos, a iluminação a gás pela
luz elétrica, mas também transformou a paisagem natural, destruiu antigos costumes e
tradições, transformou o índio em trabalhador urbano, dinamizou o comércio, expandiu a
navegação, estimulando a imigração. [...] Modernidade dotada de uma visão transformadora,
arrasando tudo o que considerava atrasado e feio, construindo o que julgava ser avançado e
belo. (Bentes & Rolim, 2005, p. 158, grifo nosso)

Diante da exposição de algumas ressonâncias da inserção de influxos culturais externos na


cultura local, é interessante perceber as ideias de Ángel Rama, quando, ao tomar o conceito de
transculturação de Ortiz, começa a pensar o modo através do qual o artista local, posicionado em uma
marginalidade interna e tardia, usa estes influxos, não como forma de submissão, mas como forma de
resistência a um processo aculturador. Para Rama, Ŗtransculturaçãoŗ seria exatamente a apropriação criativa
desses elementos externos, e sua utilização para uma espécie de amálgama com a cultura local; desse
amálgama surgiria algo novo, resultado desse sincretismo cultural (Rama, 2001, p. 257-258). Neste sentido,
o artista se encontra na posição de mediador entre a cultura endogâmica local e os impulsos de modernização
externos, estabelece uma espécie de ponte entre esses dois elementos e opera uma fusão entre ambos. Assim,
segundo Marli Fantini, as obras dos artistas transculturadores pairam Ŗentre os pñlos da resistência
tradicionalista e o impulso modernizadorŗ (2004, p. 166).

Rama fala de três formas de reação ao impacto modernizador: a primeira, Ŗvulnerabilidade


culturalŗ, trata da renúncia da cultura prñpria e assimilação passiva das propostas externas, sem resistência; a
segunda, Ŗrigidez culturalŗ, é aquela que se fecha em si mesma, abominando qualquer contato com o novo.
A terceira, Ŗplasticidade culturalŗ, nas palavras do autor, é Ŗa destreza para integrar em um produto as
tradições e as novidadesŗ (2001, p. 215). Neste ponto, o processo de rigidez cultural é necessário, mas
apenas no sentido em que se configura como um Ŗvoltar-se para si mesmoŗ , proporcionando um mergulho
profundo no seio de sua própria cultura, porém não um simples mergulho hermético, mas auto-analítico,
crítico, que busca reexaminar os valores tradicionais locais para assim articulá-los com as contribuições da
modernidade, portanto, dialógico. Este diálogo, prossegue Rama, vai gerar novas perspectivas dentro da
própria cultura, perspectivas que, apesar de sincréticas, mantêm a identidade tradicional local. Esta seria em
si, a utilização da transculturação como resposta aos efeitos nocivos do ser tardio: um amálgama entre os
influxos aculturadores e os aspectos de uma cultura marginal e tardia que geraria algo novo, algo que,
mesmo sendo derivado de um sincretismo, ainda manteria um elo com as tradições locais. (Rama, 2001, p.
255-256.)

A resposta articula-se como resistência à modificação não só da arquitetura e do modo de vida,


mas principalmente contra a lenta destruição do imaginário cultural local que vai aos poucos perdendo sua
força e sendo substituído pelas novas estéticas, anseios e imaginários da modernidade. Se pensarmos que a

44
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

tradição é um dos principais fundamentos da afirmação de uma identidade cultural própria, local, regional, e
a inserção desta modernidade destrói esta mesma tradição, o ato de voltar-se para si mesmo, para sua própria
tradição como foco temático principal, faz de Frauta de barro uma obra de resistência, de reação aos efeitos
negativos gerados pela inserção desta modernidade. Aqui é que se dá a perspicácia do autor: neste processo
de reação. Voltar-se para si mesmo, reler o passado sem, no entanto, fechar-se hermeticamente para esta
mesma modernidade, mas abrindo-se a ela de modo crítico e dialñgico; Bacellar não apenas Ŗassimilaŗ a
cultura externa; ele incorpora os aspectos externos modernizantes e manipula-os como utensílios de
expressão para rearticular sua tradição local. Isto deixa transparecer o processo de transculturação, o
processo de fusão entre a estética modernizante externa e a ânsia de valorização e preservação da tradição
local, nascendo daí algo novo, que traz em sua gênese sincrética não apenas a união entre elementos
díspares, mas o estudo crítico e analítico de ambos.

3. Ressonâncias

Pensar a poesia de Bacellar como uma poesia da memória, da recordação, uma poesia que
dialoga com o passado, buscando resgatar, ou ainda, manter imaginariamente vivas as lendas, as histórias,
a língua, a arquitetura e a geografia de uma cidade que já não existe, uma cidade sufocada pelos influxos
da modernidade, já é pensar tal poesia como resistência. A Manaus cantada por Bacellar é a Manaus da
ruína, aquela que prova o amargor da decadência após um declínio vertiginoso do outrora lucrativo
mercado do látex. Tendo em mente a noção explorada na primeira seção, de perda de energia, não é
difícil empreender uma interpretação que explique esse diálogo com o passado, pois, dentro de uma
concepção de tardio, todo avançar é um caminhar para a ruína. Portanto, a plenitude de um sistema
estaria em sua gênese, isto é, em um momento inicial já pretérito. Deste modo, quanto mais próximo o
homem tardio estiver deste passado, mais próximo estará da plenitude. Assim, é possível perceber um
sentimento de recordação, de saudade que vai se estendendo por vários poemas; como podemos perceber
nestes breves trechos do poema ŖBalada da rua da Conceiçãoŗ : ŖVão derrubar vinte casas/ na rua da
Conceição/ Vão derrubar as mangueiras/ e as fachadas de azulejo/ da rua da conceiçãoŗ (Bacellar, 1998,
p. 38). É possível perceber neste poema os impactos da modernidade que, ao se impor, destrói aspectos
marcantes da cultura e do cotidiano local. Este é, talvez, um dos poemas mais significativos da obra neste
sentido. Ele está inserido em um grupo de poemas chamado ŖRomanceiro Suburbanoŗ , o que nos leva não
só à ideia de atraso, mas também à ideia de marginalidade, uma vez que se conhece como suburbano
também aquilo que está distante do centro. Deste modo, temos aqui algumas características muito
marcantes do Ŗser tardioŗ : passadismo, ruína e marginalidade. Este Ŗpassadismoŗ é perceptível em vários
momentos ao longo da obra. Assim, é interessante notar que a obra de Bacellar traz consigo, uma sensível
e nostálgica recordação do passado, uma tentativa de reconstrução do imaginário do homem local, de
resgatar uma Manaus antiga, afetiva, que só pode ser tocada e sentida através do sonho, da memória, que
foi aos poucos sendo soterrada pela modernidade, pela Manaus moderna e mecânica.
45
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ainda nesta perspectiva espacial e geográfica do ser tardio, é possível perceber que a
resposta ao processo aculturador de inserção da modernidade externa em um ambiente interno, só
poderia partir da periferia, pois esta, afastada do centro de Manaus, foi, talvez, a que mais preservou
resquícios de uma tradição em franco processo de extinção. Assim, podemos pensar Frauta de
barro como uma obra notadamente tardia, porque periférica; e periférica não apenas pelo resgate da
tradição local que se perdia, e que jazia na marginalidade, mas também pelos ambientes
caracterizados em vários poemas que se remetem a uma Manaus periférica, distante e esquecida
pelos avanços modernizantes que agiam velozmente no centro. Assim, grande parte dos ambientes
escolhidos por Bacellar para articular suas respostas são suburbanos, principalmente no
ŖRomanceiroŗ , e respondem aos impulsos modernizantes que vem do centro Ŕ impulsos que apesar
de inicialmente afetarem apenas o centro, irão lentamente inserir-se, ainda que de modo tardio, na
realidade nostálgica cantada por Bacellar. A marginalidade destes bairros que ambientalizam grande
parte da obra faz parte de uma medida estratégica e política da elite manauara da época, para
adaptar o centro da cidade aos padrões europeus em um processo que Dorinette dos Santos Bentes e
Amarildo Rodrigues Rolim assim caracterizam:

Para completar este quadro de segregação social, novos bairros foram criados para abrigar a
camada mais pobre da sociedade. Esses bairros eram isolados da parte central da cidade
pela distância ou por igarapés como era o caso dos bairros de Constantinópolis (atual
Educandos), Toco, Mocó, São Raimundo, Flores, Colônia Oliveira Machado e
Cachoeirinha. Todo este esforço era para garantir que tipos humanos indesejáveis não
atropelassem a vida da cidade da elite. (2005, p. 159, grifo nosso)

A proposta de resistência que se evidencia em Frauta de barro também se concilia com a


biografia do autor, que foi um dos fundadores do Clube da madrugada Ŕ movimento fundado em 22
de novembro de 1954 e que teve como principal objetivo atacar a Academia Amazonense de Letras,
que exercia uma espécie de hegemonia Ŗpraticada com ranços de parnasianismo e simbolismo
tardiosŗ. (KRÜGER, 2007, p. 73). O ato de resistência observado na obra articula-se com o
movimento ŖClube da Madrugadaŗ , na medida em que este engendrava forte oposição à Academia,
que representava, naquele momento, muito mais os interesses e valores externos, metropolitanos, de
uma cultura dominante, do que os interesses e possibilidades de valorização da cultura local. É
possível perceber aqui uma contradição: ao mesmo tempo em que Frauta de barro assume uma
postura de contestação, dado o contexto social e cultural de sua concepção, também será possível
detectar em sua estrutura aspectos estéticos e lingüísticos característicos dos valores metropolitanos
e dominantes contra os quais está se insurgindo. Tal contradição pode ser explicada a partir das
noções que vêm sendo trabalhadas ao longo deste artigo; o que há, nesta questão específica que está
sendo levantada, é uma fusão.

Começa-se, a partir daqui, a fazer-se necessária a percepção do trabalho mediador do


artista transculturador que se encontra situado entre a tradição local e os influxos da modernidade. É
46
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

possível a percepção desta fusão transculturadora já no primeiro poema do livro Ŕ que não tem
título e faz parte de um grupo de quatro sonetos chamados ŖVariações sobre um prñlogoŗ Ŕ na
medida em que o autor escolhe como métrica de seus versos a redondilha maior, verso
caracteristicamente adotado pela poesia popular. ŖComo se sabe, os heptassílabos caracterizam a
espontaneidade de versejadores sem qualquer sofisticação como os compositores do cordel
nordestinoŗ (KRÜGER, 2007, p. 91). O que chama a atenção neste primeiro poema é a relativa
complexidade encontrada no jogo rímico Ŕ ŖDos sete pares, apenas dois são pobres: dia / melodia e
duvidando / improvisando. Os demais são ricos e há até mesmo uma rima preciosa, de difícil
consecução: soprá-lo e gargalo‖ (KRÜGER, 2007, p. 90) Ŕ; esta complexidade rímica não condiz
com a simplicidade e o cunho popular da métrica utilizada. O que podemos depreender disto é que
existe aqui uma fusão entre a cultura popular, representada nas redondilhas maiores, e uma
linguagem mais apurada, mais culta, que exige do poeta um maior domínio e conhecimento destes
artifícios poemáticos da tradição literária universal. Pode-se contemplar esta fusão de opostos
também no fato de tratar-se de um soneto Ŕ forma clássica e tradicionalmente organizada em versos
decassílabos Ŕ posto aqui em versos de sete sílabas, Ŗreduzidosŗ assim a sonetilhos. Assim, é
possível perceber o Ŗclássicoŗ alinhando-se ao Ŗpopularŗ de um modo harmônico, que nem
despreza a influência externa, nem põe a cultura local em posição de subalternidade, mas, antes, põe
ambas em consonância, gerando assim um produto novo derivado deste amálgama.

No grupo de poemas ŖRomanceiro suburbanoŗ é possível perceber de modo bastante


acentuado o caráter marginal e popular no qual se insere Frauta de barro. Primeiro, ao pensarmos a
palavra Ŗsuburbanoŗ , suscita-se a ideia de atraso e marginalidade, dois termos que estão diretamente
ligados às noções de ser tardio desenvolvidas até aqui. Depois, ao pensarmos a palavra romanceiro,
a qual se caracteriza como um conjunto de poemas narrativos que teve sua origem na época
medieval do Século XIII; ŖŘde origem popular e tipicamente espanholř, que busca nos feitos
herñicos da pátria e do povo sua fonte de inspiraçãoŗ (MOISÉS apud SOUZA, 2010, p. 56),
podemos perceber na sutil escolha dessa palavra o ato de voltar-se para os feitos, histórias, lendas,
enfim, para a tradição do povo. Não se trata apenas de um voltar-se para o imaginário local, mas
também, dado o caráter oral como marcante característica deste subgênero lírico de poemas ao
longo da história, para os aspectos linguísticos populares. Portanto a palavra romanceiro já traz
historicamente em si o imaginário e a oralidade popular.

No ŖRomanceiro suburbanoŗ de Bacellar, tanto a oralidade quanto o imaginário popular


caminham juntos, caracterizando assim uma tentativa de não só manter a essência tradicional do
romanceiro, mas principalmente, buscar um modo de manter vivos o imaginário e o Ŗfalarŗ
tradicional do homem local. O poema ŖO caso da Necaŗ ilustra bem esta ideia de resgate e
preservação do imaginário popular. Quanto à oralidade, é interessante colocar o modo como o
investimento em uma linguagem popular, local, aliada a uma linguagem mais culta se constitui
como um elemento de resistência e de auto-valorização diante de uma cultura externa e em posição

47
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

de força. É interessante ressaltar que à luz do conceito de Ŗplasticidade culturalŗ esta linguagem
local não se apresenta fechada em si mesma, mas amalgamada com a linguagem externa dominante;
não se trata aqui de um mero sincretismo, mas de uma rearticulação da linguagem local, um
aprofundamento nos dialetos discursivos locais que mostra toda sua riqueza e possibilidade de
significados, e em momento algum é percebida de modo inferior diante das estratégias linguísticas
externas, pelo contrário, mostra-se em pé de igualdade, posto que as duas caminham lado a lado na
obra inteira.

Pelo prisma das noções de spätzeit e ser tardio, exploradas até aqui, tanto em seu âmbito
temporal linear quanto espacial, foi possível lançar, ainda que timidamente, algumas possibilidades
de interpretação sobre alguns dos múltiplos aspectos que permeiam a obra de Bacellar; entre estes, a
reconstrução poética do passado que ressoa num intenso sentimento de saudade e recordação; a
percepção da marginalidade, da periferia que, de acordo com a exposição e análise teórica
desenvolvida neste trabalho funcionam como um dos aspectos marcantes da modernidade tardia e
como um dos redutos da tradição e do imaginário local. Assim, reconhecendo-se as múltiplas
possibilidades analíticas e interpretativas do texto literário e a riqueza temática da obra em questão,
as linhas interpretativas delineadas ao longo deste artigo nos levam a constatar não só a resposta
transculturadora de Bacellar, mas principalmente seu papel mediador entre dois polos antagônicos e
em constante tensão: tradição e modernidade.

Referências bibliográficas

AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra Guardini. O conceito de transculturação na obra de


Ángel Rama. In: ABDALA JUNIOR, Benjamim (org.). Margens da cultura: mestiçagem
hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 87-97.

BENTES, Dorinethe dos Santos; ROLIM, Amarildo Rodrigues. O Amazonas no Brasil e no mundo.
Manaus: Mensřsana, 2005.

BACELLAR, Luiz. Frauta de barro. 5. ed. In: Quarteto: obra reunida. Manaus: Valer, 1998. p. 21-
104.

DIAS, Edinea, Mascarenhas. A ilusão do Fausto: Manaus (1890-1920). Manaus: Valer, 1999.

FANTINI, Marli. Águas turvas, identidades quebradas: hibridismo, heterogeneidade, mestiçagem e


outras misturas. In: ABDALA JUNIOR, Benjamim (org.). Margens da cultura: mestiçagem
hibridismo & outras misturas. Ŕ São Paulo: Boitempo, 2004. p. 159-180.

KRÜGER, Marcos Frederico. A sensibilidade dos punhais. Manaus: Edições Muiraquitã, 2007.

LEÃO, Allison. Representações da natureza na ficção amazonense. Tese (Doutorado em Letras Ŕ


Literatura Comparada). Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.
48
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

MOSER, Walter. Spätzeit. In: MIRANDA, Wander Melo (org.). Narrativas da modernidade. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999. p. 33-54.

PAZZINATO, Alceu Luiz; SENISE, Maria Helena Valente. História moderna e contemporânea.
São Paulo: Ática, 1992.

RAMA, Ángel. Literatura e cultura na América Latina: Trad. Raquel la Corte dos Santos; Elza
Gasparotto. São Paulo: Edusp, 2001. (Ensaios Latino-americanos, 6)

SOUZA, Maria Luiza Germano de. O sertão revisitado: o regionalismo literário amazônico em
Elson Farias e Milton Hatoum. Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura na Amazônia).
Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2010.

TELLES, Tenório. Tempo e poesia em Luiz Bacellar. In: BACELLAR, Luiz. Quarteto: obra
reunida. Manaus: Valer, 1998. p. 11-19.

49
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

OBSERVAÇÕES ACERCA DO RISÍVEL NOS TEXTOS DE REYES


Aline Cavalcante Ferreira (IFRR)
ŖSe o riso é um dos sinais do talento próprio do homem, se as pessoas dotadas e
geralmente normais são capazes de rir, a incapacidade de rir, às vezes, pode ser explicada
como sinal de obtusidade e de insensibilidade.ŗ (PROPP, 1992, p.33)

O riso é intrínseco ao comportamento do ser humano, sendo uma das primeiras experiências
de vida. Se o homem ri é de seus atos ou de algo que tenha deixado sua marca. Segundo Henri
Bergson (2007, p.2), não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. ŖUma paisagem
poderá ser bela e graciosa, insignificante ou feia, nunca será risívelŗ.
Os estudos sobre o riso e o risível são copiosos, devido a sua riqueza e extensão. Ele é
simples e natural no homem, entretanto, apesar de ser facilmente compreendido, defini-lo
certamente não é uma tarefa fácil, tendo em vista sua ambiguidade. Conforme advertia Cícero (apud
ALBERTI, 1999, op.cit. p. 169), Ŗquando as obras tentam dar a teoria do risível, elas correm o risco
de fazer rir por sua insipidez.ŗ
O riso torna mais fácil a interação, a comunicação, a aprendizagem, ou seja, as relações
pessoais com o grupo social no qual se está inserido. Ele vai além da gargalhada, da diversão, pois é
utilizado, também, como forma de manifestar repúdio contra as opressões, normas, situações,
instituições, poder. A ligação entre riso e crítica é estreita, como se essa quebra da seriedade fosse
um proclame à liberdade, através dele permite que se digam verdades muitas vezes mais profundas
do que ditas de Ŗforma sériaŗ .
Podemos aprofundar o estudo do riso por meio das pesquisas realizadas por Mikhail
Bakhtin, através da sua obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de
François Rabelais. A partir de Bakhtin, compreendemos a função social do riso. Ele analisa a
cultura cômica de caráter popular e folclórica na Idade Média e no Renascimento através da
compreensão, influência e interpretação de Rabelais, considerado pelo autor como o melhor porta-
voz da cultura popular no referido período. A partir desse estudo, Bakhtin mostra as possibilidades
da carnavalização e do riso como desmascaradores da cultura oficial, fixada pelo poder da Igreja e
veladora dos valores populares.
Segundo Bakhtin (1987, p. 7), ŖO carnaval é a segunda vida do povo, baseando-se no
princípio do riso. É a sua vida festiva.ŗ Para ele, o carnaval gera um tipo especial de riso festivo,
onde as pessoas se distanciam de todo e qualquer paradigma imposto Ŕ seja pela Igreja, seja pela
sociedade Ŕ, tendo em vista ser um momento festivo autorizado, propício a subversão, a gargalhada,
a chacota, além de poder expressar-se livremente, usando expressões chulas e gestos obscenos.
Tudo é permitido nestes dias festivos, para depois se retornar à ordem oficial.
Ao comparar as festas oficiais e o carnaval, diz:
Ŗ[...] A festa oficial, às vezes mesmo contra sua intenção, tendia a consagrar a instabilidade,
a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores, normas
e tabus religiosos, políticos e morais correntes. A festa era o triunfo da verdade pré-

50
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

fabricada, vitoriosa e dominante, que assumia a aparência de uma verdade eterna, imutável,
peremptória. Por isso o tom da festa oficial só podia ser o da seriedade sem falha, e o
princípio cômico lhe era estranho. Assim, a festa oficial traía a verdadeira natureza da festa
humana e a desfigurava-a. [...] Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma
espécie de liberação temporária da liberdade dominante e do regime vigente, de abolição
provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. [...] a festa oficial
tinha por finalidade e consagração da desigualdade, ao contrário do carnaval, em que todos
eram iguais e onde reinava uma forma especial de contato livre e familiar entre indivíduos
normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras intransponíveis da sua condição,
sua fortuna, seu emprego, idade e situação familiar.ŗ (BAKHTIN, 1987, p. 8-9, grifo do
autor)

O teórico russo informa que o aspecto jocoso das manifestações tinha a capacidade de
produzir uma espécie de duplicidade do real, ou ainda a existência de uma dupla visão do mundo:
uma visão séria ou oficial, que é a das autoridades, e a visão cômica, não-oficial, que é a do povo. A
visão cômica é excluída deliberadamente do domínio do sagrado e se torna a característica essencial
da cultura popular.
Informa, ainda, que

Ŗ[...] o riso e a visão carnavalesca [...] destroem a seriedade unilateral e as pretensões de


significação incondicional e intemporal e libertam a consciência, o pensamento e a
imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas
possibilidades. Daí que uma certa Ŗcarnavalizaçãoŗ da consciência precede e prepara
sempre as grandes transformações, mesmo no domínio científico.ŗ (BAKHTIN, 1987, p.
43).

Para finalizar, Bakhtin ressalta que o riso sempre foi uma das principais formas de
expressão da verdade sobre o mundo, a histñria, a sociedade. Diz que Ŗé um ponto de vista
particular e universal sobre o mundo, que percebe de forma diferente, embora não menos
importante (talvez mais) do que o sérioŗ. (BAKHTIN, 1987, p.57).
Henri Bergson, que publicou três artigos sobre o riso na Revista de Paris em 1899, reunidos
em livro sob o título O riso: ensaio sobre a significação do cômico, observando a natureza humana,
chamou a atenção para o risível e o papel social do riso. Segundo o autor, o riso é produto dos
costumes e das idéias de uma sociedade, por isso se nós não estivermos dentro do contexto, aquilo
que é risível para alguém não será para mim. ŖPara compreender o riso, é preciso colocá-lo em seu
ambiente natural, que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma
função social. [...] O riso deve ter uma significação social.ŗ (BERGSON, 2007, p.6).
Para que o riso ocorra é preciso um contexto cômico: de um lado, alguém ou algo que
provoque o riso e, de outro, alguém conhecedor da situação, que se sinta inserido e tocado. Bérgson
afirma que o riso é sempre grupal Ŕ Ŗnão saborearíamos a comicidade se nos sentíssemos isoladosŗ
(BERGSON, 2007, p. 4) Ŕ, sendo determinado por um conjunto de atitudes discriminadas e
colocadas como engraçadas perante uma comunidade. A identificação daquilo que é engraçado ou
humorístico aponta para o reconhecimento de gestos sociais que rompem com conduta ideal. Esse
desvio, expresso no comportamento físico ou moral dos seres sociais, compõe a trama das
narrativas que são contadas com irreverência e bom humor.
Outra condição fundamental para que uma situação seja risível é a anulação do sentimento,
da compaixão. Para Bergson (2007, p.3), ŖA indiferença é seu meio natural. O riso não tem maior
51
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

inimigo que a emoçãoŗ . Se há afeição por uma pessoa, para que ocorra o riso será necessário, por
alguns instantes, esquecer a afeição, calar a piedade, usar exclusivamente a inteligência e anestesiar
momentaneamente o coração. Não se pode levar em conta o estado de alma da pessoa de quem se
está rindo. O cômico é insensível e requer unicamente o uso da razão. É preciso isolar a
sensibilidade e enfatizar a criticidade.
Por último, Bergson (2007, p.146) deu ao riso uma função social, que corrige as infrações e
revela os defeitos: ŖO riso é, acima de tudo, uma correção. Feito para humilhar, deve dar impressão
penosa à pessoa que lhe serve de alvo. A sociedade vinga-se por meio dele das liberdades tomadas
com ela. Ele não atingiria o seu objetivo se não trouxesse a marca da simpatia e da bondade.ŗ
Continuando a refletir sobre o riso, Vladimir Propp, em seu livro Comicidade e riso,
realizou pesquisas sobre o riso tentando buscar uma definição do risível, seu processo e sua
tipologia e recursos, examinando textos da obra de Gogol e contos populares russos. O referido
autor, afirma que Ŗo riso ocorre em presença de duas grandezas: de um objeto ridículo e de um
sujeito que ri Ŕ ou seja, do homem.ŗ (PROPP, 1992, p. 31) Ele concorda com Bergson, com relação
ao caráter punitivo do riso, e declara que Ŗo riso é a punição que nos dá a natureza por um defeito
qualquer oculto ao homem, defeito que se nos revela repentinamenteŗ , entretanto, trata de esclarecer
que Ŗnem todos os defeitos provocam o riso, somente os mesquinhos.ŗ (PROPP, 1992, p.44).
Em seu estudo sobre o riso, Propp conclui que, do ponto de vista da lógica formal, existem
dois tipos de riso: um que contém e outro que não contém a derrisão. O primeiro, com a derrisão, é
o riso de zombaria, nele há a percepção de defeitos com ridicularização e escárnio; revela-se no riso
de zombaria também a presença do sarcasmo, sendo esse tipo de riso a base da sátira. O segundo
tipo é o riso bom, acompanhado por um sentimento de afetuosa cordialidade e simpatia na
percepção dos pequenos defeitos, nele há a presença da alegria de viver. O autor indica que o humor
é a capacidade de perceber e criar o cômico. Entretanto, N. Hartmann, (apud PROPP, 1992, p. 152),
explica que Ŗ Řcômicoř e Řhumorř estão naturalmente ligados entre si, mas não coincidem de
maneira alguma, mesmo que formalmente sejam paralelosŗ .
Propp observa que a comicidade segue algumas leis. Uma delas é o aspecto de ser resultado
de uma descoberta inesperada dos defeitos das pessoas ou das situações; outra lei é a brevidade, o
riso de zombaria surge de uma revelação repentina de defeitos, ele irrompe como uma explosão de
duração curta; uma terceira lei é o aspecto contagiante, pois as pessoas, por contágio, percebem
"aquilo que não viam" e principiam a rir.
Podemos suscitar o riso por meio de diversos recursos, entre os quais se destacam:
comicidade, humorismo, ironia, caricatura, paródia e sátira.
Cômico é a simples constatação do contraste, sem reflexão; é exatamente uma advertência
ao contrário. Propp, ao definir a arte do cômico, informa:

ŖOs defeitos estão escondidos e precisam ser desmascarados. A arte ou o talento do cômico,
do humorista e do satírico estão justamente em mostrar o objeto do riso no seu aspecto
externo, de modo a revelar sua insuficiência interior e sua inconsistência. O riso é suscitado
por certa dedução inconsciente que parte do visível para chegar ao que se esconde atrás da
aparênciaŗ . (PROPP, 1992, p.175)

52
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Compartilhando dos mesmos pressupostos, Saliba (2002) apresenta a posição do autor de


teatro Pirandello sobre o cômico.

ŖPara Pirandello o cômico nasce de uma percepção do contrário, como o famoso exemplo
de uma velha decrépita que se cobre de maquiagem, veste-se como uma moça e pinta os
cabelos. Ao perceber que a senhora velha é o oposto do que uma respeitável velha senhora
deveria ser, produz-se o riso, que nasce da ruptura das expectativas, mas sobretudo do
Řsentimento do contrárioř Ŕ quando aquele que ri procura entender as razões pelas quais a
velha se mascara na ilusão de reconquistar a juventude perdida. Neste passo, a velha da
anedota não está mais distante do sujeito que percebe, porque este último pensa que
também poderia estar no lugar da velha Ŕ seu riso se mistura com a compreensão piedosa e
se transforma num sorriso. É aqui que Pirandello começa a diferenciar o cômico do
humorístico. Para passar da atitude cômica para atitude humorística é preciso renunciar ao
distanciamento e à superioridade.ŗ (SALIBA, 2002, p. 24)

A partir do momento em que se analisa esse contraste, aprofundando-o com empatia, tem-se
o humor. Jan Bremmer (2000, p. 13) entende o humor como qualquer mensagem Ŕ expressa por
atos, palavras, escritos, imagens ou músicas Ŕ cuja intenção é a de provocar o riso. Entendemos que
o humor seja subjetivo, reflexivo e complexo. É o rir do outro e de si mesmo. Trata-se, portanto, de
uma categoria intrinsecamente enraizada na personalidade, fazendo parte dela e definindo-a até,
uma vez que trabalha com a condição humana. Por isso, que na relação com os outros, deixa
vislumbrar sua natureza benevolente e positiva, muito próxima ao riso bom, defendido por Propp.
Outro recurso para o riso é a ironia, muito utilizada para exprimir o contrário do que se
pensa ou sente, ou seja, uma simulação sutil de dizer uma coisa por outra. Como num jogo
dialético, as palavras expressam o contrário da ideia que se pretende exprimir, no entanto, embute
na mensagem vestígios da real intenção do emissor, de modo que o receptor perceba que tal recurso
foi usado propositadamente, exemplificando com um trecho da obra de Reyes: ŖAlejo (folheando o
romance): Quantos exemplares vendeu?/ Eu (com amarga ironia): Quatro exemplares em três anos,
é um best-seller.ŗ (REYS, 2004, p. 145).
Comumente, ironia é entendida como o ato de dizer ou expressar algo querendo significar
outra coisa (contrária à coisa dita), estabelecendo uma contradição, um contraste entre uma
realidade e uma aparência, ou seja, Ŗtomar o dito pelo não-ditoŗ . Segundo Bergson (2007, p. 95), a
ironia consiste na oposição do real com o ideal: do que é com o que deveria ser.
Partimos do pressuposto que a ironia é uma figura de linguagem poderosa a ser utilizada
pela literatura, já que ela Ŗdiz não dizendoŗ , Ŗmostra não mostrandoŗ algo ao leitor. Esse Ŗdizer não
dizendoŗ ou Ŗmostrar não mostrandoŗ necessita, portanto, de um leitor atento e, principalmente, a
ironia, para ser entendida, precisa de um leitor inteligente, que saiba ler as entrelinhas do texto.
Linda Hutcheon ratifica com tais palavras quando escreve que a ironia é um negócio arriscado, já
que não existe garantias ao ironista de que o leitor, nesse caso, vá Ŗfazerŗ Ŕ e não Ŗpegarŗ Ŕ a ironia
da maneira como foi intencionada. Sobre o processo da ironia, Hutcheon escreve:

ŖOs principais participantes do jogo da ironia são, é verdade, o interpretador e o ironista. O


interpretador pode ser Ŕ ou não Ŕ o destinatário visado na elocução do ironista, mas ele ou
ela (por definição) é aquele que atribui a ironia e então a interpreta: em outras palavras,
aquele que decide se a elocução é irônica (ou não) e, então, qual sentido irônico particular
53
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ela pode ter. Esse processo ocorre à revelia das intenções do ironista (e me faz me perguntar
quem deveria ser designado como o Ŗironistaŗ) ŗ (HUTCHEON, 2000, p.28).

A caricatura, segundo Bergson (2007, p. 20), Ŗtrata-se de uma arte que exageraŗ , pois
acentua, de forma ridícula e hiperbólica, a fisionomia de uma pessoa ou os detalhes de um fato,
deformando-os: ŖGaby tem pernas compridas, amplos quadris e olhos cinza, mas odeia ter uma
boca tão pequena.ŗ (REYS, 2004, p. 17). Parafraseando Bergson,

ŖPor mais regular que seja uma fisionomia, por mais harmoniosas que suponhamos serem
suas linhas, por mais graciosos os movimentos, seu equilíbrio nunca é absolutamente
perfeito. [...] A arte do caricaturista é captar esse movimento às vezes imperceptível e,
ampliando-o, torná-lo visível para todos.ŗ (BERGSON, 2007, p. 19).

Reside, justamente aí, a comicidade da caricatura.


A paródia é uma imitação burlesca que explora, sobretudo a estética e a linguagem. Segundo
Bóriev (apud PROPP, 1992, p. 84), Ŗa parñdia consiste num exagero cômico na imitação, numa
reprodução exageradamente irônica das peculiaridades características individuais da forma deste ou
daquele fenômeno que revela sua comicidade e reduz seu conteúdo.ŗ Na obra em análise, nos
capítulos "Mulher, Teoria & Prática" (encontra-se de forma divertida e humorada uma paródia das
revistas destinadas ao público feminino, que ironicamente é definida como Ŗuma revista diferente
para as mulheres de sempreŗ ) e Técnicas de masturbação entre Batman e Robim Ŕ A mais exclusiva
e variada coleção de filmes em VHS para curtir com a família, Reyes utiliza-se deste recurso para
Ŗbrincarŗ com o nome de alguns filmes: Batman and Robin, Cantando na chuva?, O nome da coisa.
Muito próximo da paródia está a sátira, que explora mais a ideologia e a ética, e apresenta-se
de forma crítica e implacável, sendo utilizada por aqueles que demonstram a sua capacidade de
indignação de forma divertida e desejam censurar ou ridicularizar defeitos ou vícios, cujo tema
principal consiste na crítica de instituições, pessoas, grupos ou hábitos sociais por meio do exemplo
moralizante e do humor. Propp (1992, p. 185) indica que nenhuma "teoria da sátira é possível fora
de uma teoria do cômico que o considere seu instrumento essencial". Exemplificando com trechos
da obra de Reyes:

Ŗ[...] Vou reclamar para quem? O presidente é falso e o Estado nulo. Os planos de
segurança são um fiasco. [...] O que me dói é estar aqui porque um filho-da-puta (com
certeza votou no presidente) destroçou a minha boca para me roubar um relógio de camelô
(com certeza achou que tudo o que reluz é ouro). [...]ŗ( REYES, 2004, pág. 145-146)

ŖA publicidade inventa um mundo fronteiriço ao nosso, um mundo luminoso e asséptico


feito com o mais doce de nossos sonhos. Seu método tem duas fases: A. Explora nossos
sentidos. B. Injeta em nós ansiedade e insônia. Objetivo: fazer-nos acreditar que é possível
vencer a sujeira. Movidos pela sua mensagem sedutora, vamos atrás do dentifrício mágico,
do alimento ideal, o limpa-bunda perfeito para o perfeito imbecil.ŗ (REYES, 2004, 144)

Os estudos sobre o riso a partir dos teóricos Bakhtin (1987), Bergson (2007) e Propp (1992)
nos ajudam a compreender melhor o riso e a matéria do risível no plano social e na literatura de
Reyes. O riso revela um movimento de transgressão e ruptura com as convenções coercitivas,
configurando-se como uma expressão de identidade na medida em que há um processo de
identificação de um ponto de vista crítico e a exposição de algo a ser considerado risível perante a
um segmento da sociedade. Sendo assim, parafraseando Verena (1999, p. 11) Ŗo riso partilha, com
54
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

entidades como o jogo, a arte, o inconsciente etc., o espaço do indizível, do impensado, necessário
para que o pensamento sério se desprenda de seus limites.ŗ

Sobre Técnicas de masturbação entre Batman e Robin

―Antes de ser um monge que levita ou uma múmia que se ilustra


prefiro ser um chimpanzé iluminado que ri.‖ (REYES, 2004, 143)

Desde a Antigüidade Clássica, são reincidentes as tentativas de ordenar o discurso literário


em gêneros. A tradição crítico-teórica vem, através dos tempos, filiando cada obra literária a uma
classe ou espécie e mostrando como certo tempo de nascimento e certa origem geram uma nova
modalidade literária. (SOARES, 1997, p. 7). Assim, a cada tempo, surgem novos gêneros, distintos
de seus antecedentes, ainda que, inevitavelmente, ligados a eles.
A delimitação de traços distintivos de um único gênero e sua consequente classificação em
Técnicas de masturbação entre Batman e Robin é uma questão polêmica. Tendo em vista, a obra ser
uma mescla de gêneros e estilos, variando de contos, novelas, manuais de auto-ajuda, paródias de
revistas femininas, tudo em um tom marcado pelo humor. Podemos dizer que a obra é um quebra-
cabeças de ideias, sentimentos, impulsos e cultura pop, onde encontram-se narrativas mais ou
menos desconexas girando em torno das inquietações sexuais, existenciais e sociais do escritor
fracassado Sergio Bocamole, rejeitando a representação linear e o desenvolvimento cronológico.
Entretanto, é uma obra singular por sua grande capacidade imagética.
Temos na referida obra um protagonista, Sergio Bocamole, que vagueia entre Cidade Imóvel
(nome fictício dado a Cartagena das Índias, cidade de origem de Reyes) e Bogotá, tentando
encontrar um sentido para sua vida, entre trabalho, excessos sexuais, festas e um cenário caótico.
Sérgio é apresentando como escritor, mas na realidade não passa de uma caricatura de Reys 1, tem
publicado um livro na Fracasso Ltda. Editores, cujas vendas não ultrapassam a mais de quatro
exemplares. Vive uma relação difícil com a mãe e com as mulheres, motivo que o leva a recorrer
aos manuais na tentativa de melhorar o seu desempenho amoroso, como por exemplo, em
"Mecânica de sedução" (um breve e prático manual que ensina a fisgar e se livrar de qualquer
mulher em nove lições simples) ou em "O aprendiz de foca" (um breve manual de exercícios e
reflexões para passar em poucos minutos de supercretino a homem interessante).
Reyes nos apresenta uma realidade hodierna e imprecisa; uma quantidade considerável de
mundos que se interpenetram, conseguindo dessa forma expressar o universo em múltiplas facetas,
como reflexo de suas observações e sentimentos Ŕ um universo fragmentado. Com trechos

1
Entrevista com o escritor colombiano Efraim Reyes, por Claudinei Vieira, do portal Cronopios: ―Tudo o que existe
em meus livros é absolutamente autobiográfico. Sou cada um de meus personagens: Rep, Sergio, Marianne... Nada foi
inventado. Saí com 800 mulheres nos últimos 25 anos, consumi todas as drogas possíveis e algumas impossíveis,
roubei... Então como você mesmo definiria seu livro? Sentia a necessidade de contar minha vida precária e suja, que
não cabia nesse pomposo ataúde chamado literatura. Venho de um país feito em pedaços, eu mesmo sou um maldito

55
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

fraseológicos aparentemente desconexos, com fragmentos sem sentido que aparecem sob forma de
estilhaços de pensamentos, ele constrói novos significados que refletem de maneira convincente a
Ŗrealidade flutuanteŗ , (ROSENTHAL, 1975, p. 153), onde a situação caótica do mundo real,
característica do mundo moderno, é refletida. Tudo acontece, aparentemente sem nexo nenhum:
relações de natureza erótica, reflexões sociopolíticas e históricas, confusões de reflexões e
observações, liame de todos os tipos. O leitor é conduzido primeiramente a organizar as sequências
simultaneamente narradas, para então tentar desterritorializar cada fragmento reportando-se ao
quebra-cabeça maior. Contudo, é justamente nesta fragmentação do mundo e dos acontecimentos
que se torna visível a unidade do conjunto.
Pelo modo com que é conduzida a narrativa, com mudanças de foco narrativo,
entrelaçamento desses focos num diálogo constante, fundindo-se, às vezes, em situações em que a
voz narrativa tanto pode ser em primeira quanto em terceira pessoa, concessão de voz a outras
personagens; uso contínuo da intertextualidade, com os narradores utilizando-se de diversos tipos
de discursos e linguagens; diálogo entre narradores e personagens (Sérgio Bocamole, Ana, Juan,
Gaby, Marianne, Fran, Rep, Flog, Alejo...), podemos considerá-la polifônica.
A linguagem fragmentada e polifônica é construída a partir de vozes que se cruzam, dos
recortes de letras de músicas, da linguagem radiofônica, publicitária e cinematográfica. O autor,
também, faz uso da função metalinguística:

Ŗ[...] o homem teve muitas linguagens, mas a palavra é mais que linguagem: a palavra é
amuleto, mito, enigma. A palavra é distância, armadilha, castigo. A palavra é limite,
lucidez, altivez. Mas principalmente a palavra é jogo. A linguagem é um dos esportes mais
complexos que o homem inventou e a palavra é a bola oficial desse esporte: o mais
sangrento de todos.ŗ (REYES, 2007, p. 142)

Por fragmentação, compreendemos um texto, cuja estrutura narrativa, sem linearidade, ou


melhor, sem começo, meio e fim delineados, oferece-nos histórias incompletas, em pedaços. Na
literatura contemporânea, a narração por partes descontínuas, que se misturam e justapõem-se,
mostra-nos uma nova forma de dispor os fatos, as percepções e as perspectivas narrativas, conforme
um mosaico de uma diferente sintaxe literária. Assim, a fragmentação configura-se na ausência de
linearidade dos fatos do cotidiano e da vida, mediante a técnica de cortes, na ordem não
cronológica.
Em Técnicas de masturbação entre Batman e Robin a comicidade explorada pelo autor
apoia-se principalmente na ironia, e serve de base para o processo de criação do cômico, podendo
percebê-la como meio de tornar risível determinada realidade. A seguir, transcrevemos um trecho
onde temos um exemplo de como Reyes torna rísivel a realidade de um casal, através da ironia.

ŖConheço uma mulher de 28 anos casada desde os 16 com um homem da mesma idade que
ela; tem três filhos e ela esta farta dele. Não é só o desgaste natural e os peidos hediondos,
ela também sente vertigem. Considera aquilo como um erro da juventude (desejava fugir,
abandonar o lar abafado, os pais azedos e envelhecidos, os irmãos que zombavam dela, e
caiu numa armadilha mil vezes pior). Ela jamais gostou dele, ela o despreza. O homem a
persegue, a vigia, a ofende por supostas traições (diz ela que são supostas), bate nela de vez

quebra-cabeças sem raça definida, sem origem nem futuro. Alguma coisa à deriva. Com esses pedaços escrevi meus
livros. Com esses pedaços trato de saber quem sou.‖
56
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

em quando: está louco por ela, ama-a mais do que ninguém no mundo, diz que se ela o
largar vai matar as crianças e depois se suicidar.
Ŕ Não é o que você quer?
Ŕ Não Ŕ diz e revira os olhos.
Ŕ O que eu quero é que se suicide e depois mate as crianças.ŗ (REYES, 2004, p. 31, grifo
nosso)

No processo irônico, percebemos que a palavra deixa de ser expressão direta do pensamento
e passa a sugerir por antítese, tornando-se o seu antônimo. Ou seja, o não dito se sobrepõe ao dito.
Hutcheon corrobora nesse sentido:

ŖA ironia é uma estratégia relacional no sentido de operar não apenas entre significados
(ditos, não ditos), mas também entre pessoas (ironistas, interpretadores, alvos). O
significado ocorre como uma consequência de uma relação, um encontro performativo,
dinâmico, de diferentes criadores de significados, mas também de diferentes significados,
primeiro, com o propósito de criar algo novo e, depois, para dotá-lo da aresta crítica do
julgamento. [...] Por certo, essa (como a maioria) não é uma relação de iguais: o poder do
não dito de desafiar o dito é a condição semântica que define a ironia.ŗ (HUTCHEON,
2000, p. 91, grifo da autora)

O estudo feito por D. C. Muecke, em Ironia e irônico (1995), enumerou quinze tipos
diferentes de ironia e demonstrou certa dificuldade em demarcá-las isoladamente em seu contexto.
Ele descreve a existência de dois tipos básicos de ironia: a) ironia instrumental que utiliza a
linguagem irônica como instrumento para afirmar algo cujo sentido literal espera ser rejeitado ; b)
ironia observável que utiliza a linguagem para apresentar algo irônico a partir de acontecimentos,
situações, conjunturas da vida cotidiana, que de algum modo são preexistentes. Entretanto, Muecke
nos explica que Ŗa velha definição de ironia Ŕ dizer uma coisa e dar a entender o contrário Ŕ é
substituída; a ironia é dizer alguma coisa de uma forma que ative não uma mas uma série infindável
de interpretações subversivas.ŗ (MUECKE, 1995, p. 48). Entendemos, portanto, que a ironia não é
apenas um jogo de palavras com inversões de sentidos, mas indica atitudes e pensamentos que
dependem da compreensão do leitor para obter um sentido, podendo variar de acordo com o
contexto da situação.
Em Técnicas de masturbação entre Batman e Robin, Reyes utiliza-se, principalmente, da
ironia instrumental para dar autonomia as suas opiniões e estabelecer um diálogo com o leitor,
revelando a sua visão crítica do mundo. É através de um texto auto-irônico, onde o próprio autor se
lança para o público, sem se preocupar que o julguem, que Reyes ironiza a sua realidade e o
contexto que a cerca, pois como vemos em Muecke, Ŗ[...] um escritor está sendo irônico quando na
realidade o que ele está fazendo é apresentado (ou criando) algo que ele considerou irônico;
[...]ŗ (MUECKE,1995, pág. 84) . Escolhemos o trecho seguinte para exemplificar o que foi dito
anteriormente:

ŖCarol foi para o norte com sua tia para conquistar Hollywood, estava decidida a ser uma
atriz famosa [...] seu nome artístico seria Carol Nigth (depois, soube-se que rodava bolsa
num obscuro povoado do Arizona). [...] Lorna teve três filhos com caras diferentes (Pensei
que cada um deles era o homem de minha vida) [...] Jake foi a namorada de todos, numa
parede de banheiro da escola descreviam seu talento: Que boca você tem, Jake! Achei que
só os peixes mexiam a boca desse jeito. Agora é uma enfermeira rechonchuda (dizem que
não perdeu o talento). Raquel começou a estudar direito e um professor a prejudicou (foi
criar o prejuízo longe de Cidade Imóvel). [...] Lucía passava o tempo lendo tratados
feministas, queria estudar filosofia (uma barriga inesperada truncou suas ilusões).ŗ
(REYES, 2004, pág. 265-266, grifos do autor).
57
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A incorporação ao texto, já fragmentário, da linguagem de livros de auto-ajuda, por


exemplo, compõe um quadro de rechaço da literatura instituída, ao mesmo tempo em que propõe,
via discurso irônico, uma aproximação com o leitor urbano de nível mediano.
De acordo com Arquilau Moreira Romão1, em entrevista ao Jornal da UNICAMP, ŖOs
livros de auto-ajuda são produtos semiculturais cujo conteúdo é invariavelmente pontuado por
frases feitas e histñrias sem profundidade que beiram o risível.ŗ ( grifo nosso).
Os críticos literários renegam os livros de auto-ajuda como literários, principalmente, por
esse Ŗgêneroŗ ser formado por manuais e fñrmulas com ensinamentos voltados ao sucesso e
realização pessoal, através da conquista de riqueza e poder, apresentando fórmulas homogêneas,
simplistas e repetitivas de superação de incômodos e felicidade. Geralmente são narrativas
inspiradas em experiências individuais bem-sucedidas, apresentadas, principalmente, por palestras,
livros, filmes, cuja temática envolve o sucesso do indivíduo, que supera os obstáculos por méritos
individuais, onde o leitor, embora vivendo em realidades diferentes, tem que seguir etapas e/ou
ensinamentos para que possa alcançar soluções para os problemas e sucesso para a vida. Uma
proposta bastante contraditória, uma vez que, os indivíduos não têm as mesmas condições de vida e
nem passam pelos mesmos problemas.
Reyes nos apresenta seus Ŗmanuaisŗ Ŕ ŘMecânica de seduçãoř (um breve e prático manual que ensina a fisgar e se
livrar de qualquer mulher em nove lições simples) e ŘO aprendiz de focař (um breve manual de exercícios e reflexões para passar em poucos minutos

de supercretino a homem interessante) Ŕ com uma dose extra de humor e ironia: ŖFica claro que o manual não
serve para que um motorista de ônibus conquiste uma rainha nacional de beleza. Mas pode ser-lhe
útil com a feliz caixa de uma rede de supermercados.ŗ (REYES, 2004, p. 117); ŖVocê não deve ser
você mesmo por nenhum motivo, se essa história de ser você mesmo tivesse servido para alguma
coisa você não estaria lendo este manual.ŗ (REYES, 2004, p. 121). Ainda sobre os manuais de
auto-ajuda:

ŖLIÇÃO 7
Sobre a ausência: outra maneira de estar.
É uma boa hora para brincar de homem invisível. Disque o número dela e cancela sem
muitas explicações o encontro marcado, ao se despedir diga que quando puder você liga.
Serão 24 horas de idéias soltas, de perguntas sem respostas, de pensamentos: O que eu fiz
de errado? 24 horas junto ao telefone, recebendo ligações decepcionantes. O objetivo aqui
é fazê-la saber que você não está a serviço dela, que você pode desaparecer por algumas
horas ou para sempre, que se ela gosta de você deve se esforçar um pouco, deve fazer a
parte dela. Ao apertar as porcas deve ter cuidado para não quebrar a máquina, trata-se
apenas de ajustá-la. Se garganta se sentir magoada demais, estaremos em dificuldades, 24
horas de duvidas é tempo suficiente, mas um regresso brusco não é aconselhável. A
estratégia prevista pelo manual inclui, cumpridas as 24 horas, enviar um envelope com o
seguinte conteúdo: uma fita cassete embrulhada em um papel vermelho com as canções
favoritas de garganta e um postal (a imagem deste deve ser algo especial para garganta)
com um texto curto escrito à mão no estilo: Alguém que você conhece, e de quem já não se
lembra mais, está ardendo. Se frango não sabe fazer frases ocas pode consultar os livros de
Vargas Llosa, revistas de amenidades ou colunas esportivas. (REYES, 2004, p. 131).

É irônico o fato do escritor Sergio Bocamole , um indivíduo predestinado ao fracasso, nos


apresentar manuais de auto-ajuda, quando o próprio não consegue ter nenhum tipo de sucesso seja

1
Arquilau Moreira Romão é filñsofo e consultor em educação, defendeu a tese de doutorado ŖFilosofia, educação e
esclarecimento: os livros de auto-ajuda para educadores e o consumo de produtos semiculturaisŗ.
58
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

em relações de cunho profissional ou pessoal. O risível da literatura de Reyes encontra-se, também,


nesta prática da auto-ironia, ou seja, o autor Ŗzombaŗ de si mesmo:

ŖO justo seria que todos nñs tivéssemos a aparência física de um galã de televisão, a
inteligência de uma velha raposa e a agressividade de um guerreiro, mas você já sabe, na
própria carne, que este mundo não é justo, que a maioria de nós tem a aparência física de
uma raposa velha, a inteligência de um galã de televisão e a agressividade de um bolo de
aniversário.ŗ (REYES, 2004, p. 121)

Ressaltamos, também, a apologia à sexualidade gratuita, que encontramos na referida obra,


que funciona como fator de escândalo, fato que reforça a veia cômica popularesca, demonstrando a
capacidade do riso de amenizar as tensões e derrubar tabus, inserindo a obra numa contra-corrente
canônica. ŖA sexualidade do homem é plana, basta-lhe esfregar-se um pouco.ŗ / ŖO homem que
queira de verdade satisfazer uma mulher deve levar para cama, além de seu estúpido e ineficaz
pênis, um bom mapa e algum folheto técnico.ŗ (REYES, 2004, p. 16-17) Contudo, neste livro, o
sexo é apenas pretexto para uma reflexão sobre os diferentes aspectos da vida, de cunho social,
sexual ou existencial.
Ao analisarmos o risível em Técnicas de masturbação entre Batman e Robin, podemos
concluir, até o presente momento, que Reyes faz uso do humor e da ironia não apenas como um
mecanismo para chamar a atenção do leitor para um determinado aspecto da obra, mas
principalmente para evidenciar comportamentos, costumes e valores da natureza humana, porém
sem a necessidade de emitir julgamentos.

Referências bibliográficas

ALBERTI, Verena. O riso e o risível: na história do pensamento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed.: FGV, 1999.

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; [Brasília]: Editora da Universidade de Brasília,1987.

_____. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997

BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 2ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007. (Coleção Tópicos)

BRAIT, Beth. Ironia em Perspectiva Polifônica. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996.
(Coleção Viagens da Voz)

BREMMER, Jan e ROODENBURG, Herman. Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro:
Record, 2000.

EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo.

GUINSBURG, J; BARBOSA, Ana Mae. (Orgs.). O Pós-Modernismo. São Paulo: Perspectiva,


2005.

HUTCHEON, Linda. Teoria e Política da Ironia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.

JORNAL DA UNICAMP, Campinas, 18 a 24 de maio de 2009 Ŕ ANO XXIII Ŕ Nº 429


59
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

KIERKEGAARD, S. A. O Conceito de Ironia: constantemente referido a Sócrates. Petrópolis:


Vozes, 1991. (Coleção Pensamentos Humanos)

MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Ed. Unesp, 2003.

MUECKE, D. C. A ironia e o irônico. São Paulo: Perspectiva, 1995. (Coleção Debates).

PROPP, Vladímir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992. (Série Fundamentos).

REYES, Efraim Medina. Técnicas de masturbação entre Batman e Robin. São Paulo: Planeta do
Brasil, 2004.

ROSENFEL, Anatol. O teatro épico. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. (Coleção Debates).

ROSENTHAL, Erwin Theodor. O universo fragmentário. São Paulo: Ed. Nacional, Ed. Da
Universidade de São Paulo,1975.

SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.

SOARES, Angélica. Gêneros literários. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1989.

60
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ŖA VERDADE SE PASSA COMO TENHO CONTADOŗ : A RECRIAÇÃO EM


O TETRANETO DEL-REI DE HAROLDO MARANHÃO

Aline de Souza Muniz (UFPA/CAPES)

Haroldo Maranhão foi um escritor múltiplo que se destacou pela produção de contos, mas
que também atingiu singularidade ao produzir romances extraordinários, embora tenha sido pouco
reconhecido pela crítica e pouco tenha sido escrito a respeito de sua obra. Mesmo assim, pode-se
falar de alguns prêmios recebidos por sua vasta produção, dentre eles destacam-se: o Prêmio da
União Brasileira de Escritores, o Vértice de Literatura, o Prêmio Instituto Nacional do Livro, o
Prêmio José Lins do Rego e o Prêmio Guimarães Rosa, entre outros. Esse último concedido em
1980 pelo romance O Tetraneto Del-Rei antes mesmo de ser publicado.
O escritor paraense nasceu em 7 de agosto de 1927. Vivendo com sua família no último
andar do prédio do jornal Folha do Norte1, o menino cresceu entre as brincadeiras com o irmão Ivan
e as impressões diárias das folhas a publicar, assim, logo se habituou às letras. Sua trajetória na
escrita foi iniciada ainda nos tempos de escola, aos treze anos ele publicou crônicas no jornal
escolar O Colegial. Com o tempo, se tornou redator na Folha do Norte¸ ainda adolescente começou
como revisor e repórter policial, passando, em pouco tempo, a chefe de redação. No período de
1946 a 1950, dirigiu o Suplemento literário, importante veículo de informação acerca de literatura e
arte em Belém. É nessa época também que funda a livraria Dom Quixote, importante ponto de
encontro de alguns intelectuais. Posteriormente, torna-se advogado e muda-se para o Rio de Janeiro
onde vive como procurador da Caixa Econômica Federal. Lá, ele vive até o final de sua vida, em 17
de julho de 2004.
Quanto à sua produção, Sérgio Alves marca três importantes fatores para a formação do
escritor Haroldo Maranhão: a atividade jornalística, a leitura e a escrita diária. De jornalista,
sobraram traços da crônica, inclusive pela observação do cotidiano da vida do povo belemense. De
sua formação na leitura, é perceptível sua característica de ávido leitor de autores nacionais e
estrangeiros ŕ tendo por preferência Machado de Assis e Antonio Vieira segundo ele ŕ , uma vez
que além da vasta biblioteca deixada, ler seus textos é um verdadeiro desafio, deparamo-nos com
uma verdadeira colcha de retalhos das palavras dos outros.
Além disso, o exercício da escrita também é reflexo de sua formação jornalística, bem como
de uma necessidade vital, por isso mesmo ŖHaroldo produziu o seu diário de escritor, um volume de
mais de duas mil páginas escritas até 1982. Em 1995, contava com cinco mil, conforme afirmou em
certa ocasiãoŗ (ALVES, 2006, p. 33-34).

1
A família de Haroldo vivia no último andar do prédio do jornal, propriedade do avô Paulo Maranhão, buscando se
proteger dos inimigos políticos do avô e do jornal.

61
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Até aqui, detivemo-nos com um breve histórico da vida do autor, não objetivando uma
leitura de caráter biográfico, mas procurando esclarecer a respeito dele e de sua formação para
prosseguirmos a leitura do romance pretendido.

1. Confluências textuais

Em O Tetraneto Del-Rei, tem-se a retomada dos escritos dos cronistas, no entanto, uma
retomada questionadora, que já começa na epígrafe do romance. A segunda epígrafe de O Tetraneto
apresenta de forma irônica a pretensão dos textos coloniais em retratar Ŗassim como melhor puderŗ
as terras recém descobertas: ŖA verdade se passa como tenho contadoŗ . Estrategicamente escolhida,
ela dá o tom de galhofa do autor no que diz respeito à forma como os textos de informação contam
a história, delineando traços da perspectiva sob a qual a obra será demarcada. O romance haroldiano
propõe-se a recontar esse momento histórico a partir da chegada de uma frota portuguesa e os
primeiros contatos dessa com os habitantes da nova terra de maneira diferente da composta pelos
textos coloniais. Nesse romance, sobrepõe-se uma perspectiva questionadora, contestando o
discurso etnocêntrico e dominador cristalizado.
O que vem a chamar maior atenção na obra é a construção feita pelo autor, iniciada pela
preocupação com a linguagem, escrita à maneira dos escritos do século XVI, bem como com a
inscrição de outros textos criando uma abertura para diversas redes intertextuais. É articulado,
assim, um verdadeiro jogo iniciado a partir de outras obras que se inscrevem e são claramente
reescritas pelo contexto do romance, as quais ecoam apenas pelas suas estruturas bem de longe
reconhecidas.

Em O Tetraneto Del-Rei, há enxertos de passagens e versos que vão desde autores


portugueses aos nossos modernistas. O próprio autor, em nota no livro, diz ter utilizado os textos de
Fr. Amador Arrais, Pero Vaz de Caminha, Camões, Bocage, Gregório de Matos, Fr. Francisco de
MontřAlverne, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Eça de Queiroz, Machado de Assis,
Francisco Otaviano, Olavo Bilac, Fernando Pessoa, João Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Mario Faustino e Lêdo Ivo.

Há também a incorporação de elementos paratextuais como títulos de obras e nomes de


autores inscritos na narrativa. Dos títulos são citados: Fogo morto, Pedra do sono, Canaã, Ubirajara,
Clã do jabuti, O cão sem plumas, Verde vago mundo, Chão dos lobos, Passagem dos inocentes,
dentre outros. Dos autores, são citados João ŖCabral amantíssimo amante de riosŗ e ŖMário: que tão
cedo te partiste! Mário fausto; Mário Faustinoŗ (MARANHÃO, 1982, p. 113).

É feita, assim, uma verdadeira justaposição de elementos e excertos que vão Ŗalém de um
mero percurso intertextualŗ 1. Os textos mostram tons diferentes ao serem pronunciados por outra
pessoa no contexto do romance. Na sexta carta de O Tetraneto Del-Rei, os versos de Fernando

1
Em seu artigo, Silvio Holanda mostra essa confluência textual fazendo um quadro comparativo entre a carta 8 de O
Tetraneto Del-Rei e o texto de Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas.

62
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Pessoa e seus heterônimos são pronunciados pelo protagonista Jerônimo de Albuquerque num tom
reflexivo e triste, o que segundo ele era resultado do cansaço.
Senhora,
estou cansado, é claro, porque, a esta altura, a gente tem que
ŖNãoŗ, Álvaro
Álvaro de estar cansado. - Um supremíssimo cansaço, / íssimo, íssimo, íssimo, /
de Campos
Campos
“Opiário”, cansaço... - Não. Cansaço por quê? - Começo a conhecer-me. Não existo.
Álvaro de Fernando
Álvaro de - Meu Deus, que fiz eu da vida? - Tenho vontade de chorar, / tenho
Campos Pessoa
Campos vontade de chorar muito de repente, de dentro. - Onde estais vós, que eu
ŖAdiamentoŗ,
ŖPassagem
Álvaro de quero chorar de qualquer maneira? - Aquele peso em mim Ŕ meu coração. das horasŗ,
Campos
F. Pessoa
ŖAquele - A espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias.
pesoŗ, F. ŖAespantosa
- Aqui neste misérrimo desterro / onde nem desterrado estou, habito, / realidade das
Pessoa
fiel, sem que queira, àquele antigo erro / pelo qual sou proscrito. - São coisasŗ,
Ricardo Alberto
Reis dias só de febre na cabeça, / não faço mais que ir ver o navio ir, / levo o Caeiro
ŖOpiárioŗ,
dia a fumar, a beber coisas, / escrevo estas linhas. / Febre! Se isto que
Álvaro de
tenho não é febre, não sei como é que se tem febre e sente. O fato Campos
essencial é que estou doente. / Sou doente e fraco. / Pertenço a um gênero
de portugueses que depois de estar a Índia descoberta ficaram sem
ŖOpiárioŗ,
trabalho. A morte é certa. Tenho pensado nisto muitas vezes. / Nasci para
Álvaro de
mandarim de condição, mas falta-me o sossego, o chá e a esteira. / Toma- Campos
ŖOde me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas. - Chamam por mim as
marítimaŗ ,
águas, / chamam por mim os mares, / o chamamento confuso das águas, /
Álvaro de
Campos a voz inédita e implícita de todas as coisas do mar, / dos naufrágios, das
viagens longínquas, das travessias perigosas. / Ah, seja como for, seja por
ŖMar onde for, partir! / Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar. /
português,
X. Mar
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, / indefinidamente, ŖMar
portuguêsŗ pelas noites misteriosas e fundas, / levado, como a poeira, plos ventos, português,
Fernando III. Padrãoŗ,
Pessoa plos vendavais! / Ir, ir, ir, ir de vez! - O mar sem fim é português. - Ó mar Fernando
Pessoa
ŖPassagem salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal! - Ó meus peludos e
das horasŗ, ŖOde
Fernando
rudes heróis da aventura e do crime! / Minhas marítimas feras, maridos da
marítimaŗ ,
Pessoa minha imaginação! - Trago dentro do meu coração como num cofre que Álvaro de
Campos
ŖEuŗ, se não pode fechar de cheio, / todos os ligares onde estive. - Meu coração
Fernando ŖAh, um
Pessoa é um almirante louco / que abandonou a profissão do mar. - Sou louco e sonetoŗ,
Álvaro de
ŖPrimeiro
tenho por memória / uma longínqua e infiel lembrança / de qualquer dita Campos
Fausto Ŕ transitória / que sonhei ter quando criança. - Tenho a loucura exatamente
Mistério ŖOraŗ ,
do mundo na cabeça. / Graças a Deus que estou doido. - Abre-me o sonho para a Álvaro de
XIXŗ, Campos
loucura a tenebrosa porta, / que a treva é menos negra que esta luz. - Vejo
Fernando
Pessoa passar os barcos pelo mar, / as velas, como asas do que vejo/trazem-me ŖPoesias
inéditasŗ,
ŖMensa- um vago e íntimo desejo / de ser quem fui, sem eu saber que foi. / Por Fernando
gemŗ, Pessoa
isso tudo lembra o meu lar, / e, porque o lembra, quanto sou me dói. - De
Fernando
Pessoa quem são as velas onde me roço? / De quem as quilhas que vejo e ouço? -
ŖAh, um
ŖBarrow- Há saudades nas pernas e nos braços. / Há saudades no cérebro por fora. / sonetoŗ,
on-furness, Álvaro de
Álvaro de Campos
Campos 63
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Há grandes raivas feitas de cansaços. - Há quanto tempo, Portugal há


quanto tempo / vivemos separados! Horror! - Não nos vemos mais!
Em toda a noite o sono não veio. Agora / raia do fundo / do
ŖEm toda
noite o horizonte, encoberta e fria, a manhã. / Com olhos tontos de febre vã, da
sono não vigília / vejo com horror / o novo dia trazer-me o mesmo dia do fim / do
veioŗ,
Fernando mundo e da dor / Ŕ um igual aos outros, da eterna família / de serem
Pessoa
assim. - Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar. / Sem nada já que
me atraia, sem nada que desejar, / farei um sonho, terei meu dia, fecharei
ŖAh, um
a vida, / e nunca terei agonia, pois dormirei de seguida. / Só, no silêncio sonetoŗ,
ŖVaga no cercado pelo som branco do mar, / quero dormir sossegado, sem nada que
Álvaro de
azul amplo
solta, vai desejar, / quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu, / tocado Campos
uma nuvem do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu. - Vaga, no azul amplo
errando...ŗ,
Fernando solta, / vai uma nuvem errando. / O meu passado não volta. / Não é o que ŖPassou
Pessoa uma nuvem
estou chorando. - Passou a nuvem; o sol volta. / A alegria girassolou. / pelo solŗ,
ŖÉ brando o Pendão latente de revolta, / que hora maligna te enrolou? - É brando o Fernando
dia, brando Pessoa
o ventoŗ, dia, é brando o vento. / É brando o sol e brando o céu. / Assim fosse meu
Fernando
Pessoa pensamento! / Assim fosse eu, assim fosse eu! - Tenho esperança? Não ŖTenho
tenho. / Tenho vontade de a ter? / Não sei. Ignoro a que venho, / quero esperança?
Não tenhoŗ,
ŖOde dormir e esquecer. - Deus tenha piedade de mim que não a tive de Fernando
marcialŗ , Pessoa
Álvaro de ninguém. - Quando a erva crescer em cima da minha sepultura, / seja esse
Campos Alberto
o sinal para me esquecerem de todo. / A Natureza nunca se recorda, e por Caeiro
isso é bela. - Que coisa curiosa estas associações de idéias!
Torno ao chão; e rogo a indulgência vossa para estes devaneios,
que é como se alto pensasse, não eu, mas outra pessoa.
Deste desterro meu vos invio muito saudar.

J. DřAlb1. (MARANHÃO, p. 46-47)

Logo após o primeiro encontro com os índios, o protagonista Jerônimo passa a ser
atormentado por pesadelos com flechadas despejadas por Ŗíndios irososŗ , o que lhe fazia se sentir
com a Ŗombridade pisadaŗ , haja vista que ele Ŗnisso muito gosto até mostrava e à feição se punha,
agachando-se e empinando a plataforma do assentoŗ (MARANHÃO, p. 32). Isso o deixa aflito e
pela persistência dos sonhos, angustiado.

A razão de maior tormento do protagonista se dava, principalmente, pela aparição do poeta


Camões em seus sonhos, o qual conhecera em Goa, fato estranho a Jerônimo, já que se dera conta
de que nunca estivera por lá ou em qualquer outra parte das Índias. Mas por que lhe parecia tão
clara a figura do poeta caolho com os poemas embaixo do braço? Ele jamais relataria tais fatos à

1
Para demonstrar os excertos de Fernando Pessoa e seus heterônimos, foram inseridos à carta dois elementos: Ŗ-ŗ , para
separação de poemas e Ŗ/ŗ , para separação de versos.

64
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

senhora que tanto desejava impressionar nas cartas anteriores, por isso, atribui a melancolia
impressa nas letras escritas ao cansaço produzido pela estada na terra a ser desbravada e para isso se
serve das palavras de Pessoa e seus heterônimos, fazendo, ao final da carta, um jogo interessante
com o nome do poeta.

2. Contestação

Os textos utilizados na obra haroldiana são reconstruídos num tom, sobretudo irônico e
crítico, revelando uma outra visão do processo de colonização. A história é reinventada e a obra faz
questão de mostrar em seu corpo as tintas do colonizador, sem deixar, contudo, de valorizar suas
próprias cores. Reside aí a riqueza do romance do autor paraense, pois ele contém em si

uma representação do texto dominante e uma resposta a esta representação no


próprio nível da fabulação, resposta esta que passa a ser um padrão de aferição
cultural da universalidade tão eficaz quanto os já conhecidos e catalogados.
(SANTIAGO, 1983, p. 23).

Se a dependência é inegável, a idéia de simples imitação do outro será transposta. Em O


Tetraneto Del-Rei, o outro é assimilado e tem seu discurso questionado tendo como base
exatamente o que ele havia pronunciado. Olhando por esse ângulo, o texto de Haroldo Maranhão
brinca com os signos do outro e projeta neles um novo significado, um significado destruidor a
partir de uma linguagem na qual predomina a ironia. Além disso, há um verdadeiro diálogo com a
literatura do século XVI pela imitação da linguagem da época, do uso de vocabulários peculiares e
da reconstrução de eventos históricos.

Por exemplo, temos na Carta de Caminha um relato acerca do primeiro encontro entre
portugueses e índios. Nessa, o escrivão relata que ao lançarem âncora, ainda um tanto distantes da
praia, avistaram-se sete ou oito homens que por ali andavam. O Capitão logo manda que um de seus
homens, Nicolau Coelho, aproxime-se. Antes mesmo de o batel aportar, os homens Ŗpardos, nusŗ
com arcos e setas nas mãos cercam-no e ele apenas sinaliza para que eles pousem os arcos para ser
imediatamente obedecido. Em seguida, Nicolau Coelho arremessa um barrete vermelho, uma
carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Reconhecendo e retribuindo o gesto,
um dos índios lança um sombreiro de penas de ave, outro lhe dá um ramal grande de continhas
brancas. Assim, é selada pronta amizade.

Episódio em parte semelhante é contado pelo narrador de O Tetraneto Del-Rei, o qual relata
que no segundo dia após a chegada da nau em terras desconhecidas, os capitaneados de Duarte
Coelho têm seu primeiro encontro com um Ŗrancho de índios de ruim cataduraŗ . Apesar de
visivelmente amedrontado, tal qual seus companheiros, Jerônimo de Albuquerque decreta-se
comandante dos demais e toma a primeira atitude interpelando o gentio que considerara principal

65
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

entre eles. ŖEsta ação meteu assombro aos acuados, que acuados eram, não os índios, mas os
portugueses. Os quais atordoaram-se vivissimamenteŗ (MARANHÃO, p. 14).

Em posição de arrogância, o protagonista retira seu chapéu e o lança em direção aos índios,
no entanto, ao ver seu tricórnio chapéu jazido em terra sem a esperada retribuição amical, o Torto
retoma-o. Após segunda tentativa, num gesto teatral Jeronimo lança uma banana no braço de um
dos índios, porém isso em nada compromete a passividade indígena, até que se ouve o grito:
ŖNããããão! Bananas, nãããão!ŗ , o qual paralisa o grupo luso. Ouve-se novo grito provindo do grupo
dos ameríndios que os assombra ainda mais e os faz correr, Ŗe até hoje haverá português alhures em
debandada. À frente do pugilo apavorado, corria justo o capitão, e em seu couce vinha obra de
oitenta ou mais portuguesesŗ (MARANHÃO, p. 16). Cotejados os episódios em que se nota
evidente semelhança, ressalta-se no primeiro a coragem do português Nicolau Coelho que sozinho
consegue estabelecer comunicação com um grupo inicialmente de sete a oito índios, posteriormente
passando a vinte que o cerca, sem manifestar qualquer alteração.

De forma irônica, o segundo episódio parodia o primeiro contestando-o. No encontro com


um moderadíssimo número de índios, em vez de um português apenas, tem-se um grupo de mais de
oitenta armados de mosquetes seguidos do seu comandante no momento improvisado. Embora em
maior número e melhor armados, eles demonstram assombro ao se depararem com os donos da
terra, os quais se mantinham calmos e mesmo curiosos em aproximarem-se dos visitantes. Mas é
depois de ouvir o enunciado tão vivissimamente deflagrado: ŖQuem, tem cuuuuuuuu tem
meeeeedo!ŗ (MARANHÃO, p. 15) que o grupo luso atinge o auge do despropósito fugindo
vergonhosamente, deixando seus rastros pelo caminho. Eles regressam ao galeão em metade do
tempo percorrido anteriormente tão assustados estavam.

Dessa forma, o comportamento português é ridicularizado pelo narrador que lança por terra
a visão de coragem e bravura portuguesa constituída nos textos canonizados, sobretudo no épico
camoniano. Os portugueses são caracterizados em seu aspecto mais vil, são todos homens sem
caráter e covardes. ŖPorcos. Selvagens. Que selvagens eram eles, eles si: selvagens. Calafurnas,
sacotos, freixos, corvinos, bacalhaos, o capitão-mor Ŕ o doido-morŗ (MARANHÃO, p. 113). Note-
se que mesmo o capitão da frota, figura exaltada em Os Lusíadas, é colocado ao nível dos outros e
qualificado de louco.

Ademais, o narrador insere comentários quanto à preocupação maior em usufruir e saltear o


melhor da terra a ser desbravada, o que evidencia a falta de caráter dos embarcados. O narrador
mostra que os portugueses estavam afogueados Ŗnem tanto do sol a pino, porém da cobiça, tão
apoderada de sua alma, salteados da febre do ouro, da prata e do âmbar que sabiam assoberbar-se
ali a odresŗ (MARANHÃO, p . 14).

Eis o argumento que motivava a empresa portuguesa. Os embarcados estavam em busca da


fortuna a qual poderiam acumular, afinal, as notícias sobre as riquezas e a conquista fácil delas
chegavam em Portugal. No entanto, para se atingir esse objetivo era necessário passar pelos
habitantes da terra, tarefa difícil de ser realizada, tendo em vista o medo que os assombrava. Apesar
66
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

disso, o outro é tratado como inferior. Segundo o capitão Duarte Coelho, Ŗgentio é gentio, mais
prñximo às feras que aos seus semelhantesŗ (MARANHÃO, p. 13).

É até risível a presunção lusa frente às derrotas sofridas, haja vista o narrador contar como
eles eram massacrados pelos aborígenes. Em apenas uma das batalhas travadas, oitenta e sete
portugueses foram derrubados em um curto espaço de tempo, então, como qualificar de bárbaro
aquele que tão habilmente derrota o seu inimigo? Talvez fosse necessário repensar o
comportamento e organização do outro, tal qual o rei Pìrro1, antes de qualificá-lo. Antes de se impor
violentamente, melhor seria tentar conhecer. ŖSe houvera esse Albuquerque usado a cabeça e não o
chapéu, e invés do traste emplumado houvesse dádivas arremessado aos naturais, pronta amizade
ter-se-ia seladoŗ (MARANHÃO, p. 16).

Conclusão

Haroldo Maranhão foi um escritor multifacetado que engendrou em sua produção uma
multiplicidade de temas, tendo a preocupação em refletir o tempo presente a partir das experiências
resgatadas do passado. Conforme afirma Maria Elisa Guimarães, nos dois últimos romances do
escritor, é feito um desafio irrecusável aos cientistas sociais e historiadores, já que enquanto textos
ficcionais, Ŗinteressam à pesquisa como Řdocumentos de épocař ou como forma de recuperação de
uma histñria de mentalidadeŗ . (GUIMARÃES, 2002, p. 81).
Aceitando o desafio, tomou-se para este trabalho O Tetraneto Del-Rei, um dos romances a que
Maria Elisa Guimarães se refere, o qual se apresenta como repetição da tradição histórico-literária
ao se apropriar dela, contudo, instaurando a diferença, resultado da reconstrução dos elementos que
dela utiliza. Para Derrida, a Ŗpura repetição, ainda que não mudasse nem uma coisa, nem um signo,
traz consigo um poder ilimitado de perversão e de subversão.ŗ (DERRIDA, 1995, p. 76). Assim,
além de subverter o código, a História é recontada; a mesma História que nos foi relatada pelo
colonizador, agora é recontada de maneira irônica por um outro viés.
No romance haroldiano transparece o discurso de um narrador que reconstrói o relato do
protagonista Jerônimo DřAlbuquerque, contudo, além de contradizê-lo, tal discurso oferece ao leitor
um outro viés da história que faz repensar a respeito da veracidade dos documentos coloniais
inseridos em nosso cânone. Se é que se pode falar dessa forma ao se tratar de literatura, haja vista
segundo Luiz Costa Lima: Ŗa literatura se pretende semelhante a um infinito caleidoscópio, tal a
capacidade de transgredir fronteiras. Ficção de segundo grau, sendo a realidade a de primeiro;
liberta da carga de declarar verdades ou indicar caminhos, a literatura seria o ponto de concentração
e convergência da ficção.ŗ (LIMA, 1980, p. 243).

1
Ao falar da imposição violenta cometida pelo colonizador aos povos latino-americanos, Silviano Santiago em ŖO
entre-lugar do discurso latino-americanoŗ utiliza uma afirmação de Montaigne extraída dos Ensaios, na qual Montaigne
demonstra seu deslumbramento ao ver a organização do exército bárbaro, que de forma nenhuma poderia ser
considerada como tal.

67
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Toda essa riqueza literária se oferece ao olhar dos leitores de maneira sedutora e instigante,
seja pela literariedade da obra, seja pela reconstrução de nossa história, ou outros aspectos que a
cada leitura se abrem. Dessa forma, torna-se imprescindível falar no universo literário de Haroldo
Maranhão.

Referências biblográficas

I. De Haroldo Maranhão

MARANHÃO, Haroldo. O Tetraneto Del-Rei: O Torto: Suas idas e venidas. Rio de Janeiro:
Francisco Alves Editora, 1982. 210 p.

II. Sobre Haroldo Maranhão

ALVES, Sérgio Afonso Gonçalves. Fios da memória, jogo textual e ficcional de Haroldo
Maranhão. Belo Horizonte: UFMG, 2006. Ŕ Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos
Literários, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.
GUIMARÃES, Maria Elisa. Trilha sem fronteiras: Haroldo Maranhão e o silêncio das cidades. Asas
da palavra. Belém: Unama, v. 6, n.13. 2002. p. 79-83.
HOLANDA, Silvio. O sertão é dentro da gente: algumas anotações de torno da carta 8 de O
tertaneto Del-Rei. Asas da palavra. Belém: Unama, v. 6, n. 13, p. 75-77, 2002.

III. Intertextos

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: O herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2007. 240
p.
CAMINHA, Pero Vaz. Carta a El Rei D. Manuel. São Paulo: Dominus, 1963. Disponível em:
<http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html> Acesso em: 25 abril 2010.
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província Santa Cruz.
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1980. Disponível em:
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/ganda1.html> Acesso em: 25 abril 2010.

IV. Textos teóricos e críticos

BOSI, Alfredo. Anchieta ou as flechas opostas do sagrado. In: Dialética da colonização. São Paulo:
Companhia das letras, 1992. p. 64-81.
BOSI, Alfredo. Literatura e situação. In: História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo:
Cultrix. p. 13-29.
CAMPOS, Haroldo. Da razão antropofágica: Diálogo e diferença na cultura brasileira. In:
Metalinguagem e outras metas. Ensaios de teoria e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,
1992. p. 231-255.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo
Horizonte: UFMG, 1996.
SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos:
ensaios de dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 9-26.
SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1983. p. 13-24.
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

68
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

MÍMESIS, IMAGINAÇÃO E TORSÃO TEMPORAL

Aline Magalhães Pinto (PUC/RIO)

A partir de certo ponto


não há mais qualquer
possibilidade de retorno.
É exatamente esse o ponto que
devemos alcançar.

Franz Kafka, Aforismos.

Em 1957, o filosofo alemão Hans Blumenberg, em um texto incrivelmente instigante,


intitulado ―Imitação da natureza. Contribuição à pré-história da idéia do homem criador‖, retoma
a ampla questão da técnica atentando para Ŗa impotência patéticaŗ de sua linguagem, assim como
para o conseqüente embaraço que acompanham as tentativas de reflexão filosófica acerca do
processo tecnológico, do ato de criação e da produtividade humana. O intuito do texto é pensar o
encadeamento de forças e idéias que permitiu a eclosão histórica do caráter de criador humano.
Nesse trabalho, o esforço reflexivo de Blumenberg visa abarcar a totalidade do campo de
possibilidades e limite do possível para a criação humana, entendendo este Ŗtodoŗ como uma
investigação minuciosa que perpassa a história da filosofia ocidental.

O estoicismo oferece, no texto de Blumenberg, a problemática lógica da estrutura que


envolve a criatividade humana e incorpora tanto o elemento da vontade quanto a cisão entre
natureza (como criação divina) e a arte (como obra humana). Cisão, mas não abismo, já que as
transformações na natureza situam-se além da capacidade humana. A obra humana supõe e efetiva
essa disposição. Por reunir a resistência lógica dos elementos que sustentam a idéia clássica de
mímesis, (articulação exemplar e a plenitude essencial da natureza) com a tensão de sua contradição
interna, a encenação, no universo da Stoa, da polêmica entre Poseidônio e Sêneca, abre o espaço em
que Blumenberg insere a peculiaridade de sua interpretação sobre a modernidade e o destino da
mímesis.

Tal cena estóica, à maneira montada pelo autor, parece logicamente privilegiada, porque
nela pode-se observar tanto a natureza teleologicamente previsora, quanto àquilo que
autopotencialização infinita de suas necessidades deixa de legado à capacidade de criação humana,
tal seja, apenas o anseio de supérfluo como fonte da vontade do trabalho técnico e produtivo.

Se assim é, cabe re-encená-la.

Em Poseidônio, a relação de identidade entre possível, real e existente atinge o ápice, na


medida em que imitar a natureza ganha dimensão de aspecto externo de um processo total e
homogêneo entre natureza e homem. O ato de criação humano aparece como realização essencial da
natureza, Ŗimitaçãoŗ que comprova a não acidentalidade das relações entre as criaturas. A perfeição

69
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

da natureza se estende à técnica e obra humana, sob o preço, explícito como nunca, de não
significar nada além do que exige e mostra a natureza.

Como a outra face da mesma moeda, com Sêneca emerge o profundo desconforto que o
alinhamento entre possível, real e existência gera para o homem. Uma natureza que
incessantemente imita a si mesma não permite nenhum ultrapasse legítimo e autenticamente
interventor. Desalento que advém desta mímesis que quase se auto-supera pela representação
circular. Aquilo que deveria servir de base e sustentação ontológica para a ação criadora, a mímesis,
em sua forma clássica, é o mesmo que retira toda possibilidade de sentido dessa ação para os
homens, uma vez que os priva de possibilidade de intervenção ontológica. (BLUMENBERG, 21-
24).

Partindo da singular pertinência da reflexão de Blumenberg, e em função mesmo da riqueza


deste texto, outro caminho, como desvio especulativo, se deixa ver a partir do pensamento de Luiz
Costa Lima. Querendo, é possível encontrar, instigando o texto aristotélico em certas possibilidades
ontológicas, a estrutura da tensão encenada na querela entre Poseidônio e Sêneca. Internamente ao
texto aristotélico, a despeito mesmo da exposição de Blumenberg, a hesitação instaurada pela
diferença entre natura naturans e natura naturata, ainda que seja incapaz de se configurar efetiva
historicamente, se estabelece como índice da mesma inquietação que se vê na cena estóica. Fazer
notar tal tangência e apontar, dentro do pensamento de Costa Lima, seus desdobramentos, é o
intuito deste comentário-comunicação.

***

Para Costa Lima, o estudo do imaginário implica, de maneira inexorável, a exploração de


sua fonte, a imaginação. Para tanto se faz imprescindível o retorno a Aristóteles com a consideração
de que, a despeito de toda uma tradição de tradução, não se confunde phantasia com o poder de
produzir imagens, o que se considera próprio da imaginação 1. Tendo isto em vista, em O controle
do imaginário e a afirmação do romance encontra-se a tentativa de se aproximar de como
Aristóteles pensa o lugar da phantasía na medida em que nesta reflexão concorrem tanto a via de
penetração para aquilo que a arte faz quanto os obstáculos em entendê-la. (Costa Lima, 2009. PP
110-113)

O ponto de inflexão fundamental encontra-se na dinamicidade do conceito de natureza em


Aristóteles. Como Blumenberg bem demonstra, embora complexifique o entendimento da mímesis,
na medida em que incorpora a diferenciação entre natura naturans e natura naturata para acolher a
essência dos processos geradores, o pensamento de Aristóteles não é capaz de engendrar um ganho
ontológico decisivo com relação a Platão. Isto quer dizer que ao apresentar os processos geradores,
condicionantes da existência, regulados por um estado eidético de permanente constância,
Aristóteles estabeleceria uma natureza (phisis) que eternamente se repete em sua autoprodução,

1
Somente no interior da segunda Sofística, no séc. III depois de Cristo estabeleceu-se a correspondência entre
phantasia e poder de produção de imagens.Cf. Costa Lima, 2009. Op. Cit. PP 111

70
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

cosmos fechado no qual não se pode atribuir nenhuma função de intervenção ontológica ao fazer
humano. (Blumenberg, 18-20 Cf. Costa Lima, 1989 Pp32 e ss)

Entretanto, o que a dinamicidade inscrita pela diferença entre natura naturans e natura
naturata opera? Em sua debilidade perante a singularidade e plenitude do cosmos grego, essa
diferença é, contudo, capaz de criar uma brecha pela qual Costa Lima procede uma investigação e
uma transgressão. O processo investigativo-criativo consiste em visitar uma série de interpretações
relevantes a cerca do pensamento aristotélico para pinçar numa delas, a de Dorothea Frede, a tese
que incide sobre dois elementos capitais: o desejo e a capacidade projetiva da imaginação.
Estabelecendo que, na epistemologia de Aristóteles, as imagens têm a função de oferecer um objeto
de conhecimento na falta da percepção direta, a interpretação de Frede oferece ao pensamento de
Costa Lima a chave que liga imaginação e movimento via desejo.

Ela [Dorothea Frede] consegue extrair do labirinto do De anima, uma função afirmativa da
phantasia: sem que seja uma faculdade própria, ela desempenha o papel suplementar de,
plasmando o desejo em imagem, mover o pensamento, ao mesmo tempo que funciona
como fusão dos elementos da percepção sensível, abrangente do passado e da expectativa
de futuro- enquanto a expectativa supõe a repetição do que já se deu. (Costa Lima, 2009.
PP 129)

Ou seja, entre potência e ato, a phantasia oscila permitindo ao pensamento humano não
encerrar-se em si mesmo, já que o impulso humano se move em função do desejável transfigurado
em imagem, ainda que não provoque impacto historicamente efetivo sobre a estrutura discursiva
que se forma em torno das reflexões aristotélicas, dado o caráter fechado do cosmos grego.

É preciso enfatizar a relação entre natura naturans e natura naturata como uma dinâmica
que pressupõe um depois. Isto é, ainda que a substância se conserve, o momento em ato é sempre
posterior ao momento potência, em que as propriedades se encontram latentes. A potência antecipa
o em ato. Se, na leitura de Blumenberg, o dinamismo em Aristóteles se configura como movimento
que atualiza um paradoxo, para Costa Lima, por torsão temporal, trata-se de desmembrar o
paradoxo oferecendo ao poder-ser o rosto de futuro.

***

Como suplemento do intelecto, a concepção de phantasia extraída dos estudos de Dorothea


Frede encaminha entre desejo, movência do intelecto e imagem, a entrada da problemática acerca
dos modos temporais e mímesis. Para acompanhar a introdução da questão temporal no pensamento
sobre imaginação e imaginário de Costa Lima recorre-se ao que se pode chamar, junto a J-L.
Chédin, de chave geral do possível, um Ŗlugarŗ em que o pensamento se constrñi como um ponto
em que é permitido discutir aquilo que, como algo que existe, está Ŗaquiŗ realizado e Ŗaliŗ apenas
potencial. (Chédin, J-L.: 1997,78-80).

Isto significa que, requisitando Aristóteles, o trabalho de Costa Lima consiste em encetar e
aguçar as possibilidades ontológicas da definição de phantasia oferecida por Frede a partir de sua
ligação com a anamnese, para em seguida dotá-la de uma significação diferenciada, a qual já não se

71
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

pode mais tributar ao pensamento aristotélico, e tampouco se deixa prender pelas amarras do
cosmos grego.

Ao contrário da percepção sensível que pode em sua ligação com o mundo prescindir da
mediação do desejo, logo, das imagens, a memória (mnese), traço fundamental do processo de
impressão que causa o transcorrer temporal, repete a ambígua localização da phantasia, entre
percepção e cognição. Lugar intermédio compartilhado com a evocação (anamnese), em que se é
sempre percorrido pelo desejo e jamais desvinculado de uma imagem. A ênfase na relação íntima
entre imagem e desejo permite o gesto interpretativo de Costa Lima que dissociará os processos
mnéticos e anamnéticos do âmbito da mnemotécnica1.

A cena em que a memória (mnese) se define por uma relação que se mantém no tempo com
a imagem-cópia (Eikon), e em que a evocação (anamnese) é a recuperação da memória, relação
indireta e secundária, que por envolver uma associação de idéias, aparece como uma espécie de
inferência associada ao passado, será atravessada pela força do gesto interpretativo imposto a
Poética por Costa Lima. Tal gesto desvia a prioridade da relação com o Eikon e condiciona mnese e
anamnese a uma operação que lança mão de algo externo à imagem-cópia. A externalidade marca
aqui, para a mnese e anamnese, o esgarçar do limite da restrição ao passado e mais que isso, este
desvio subverte a secundariedade da anamnese, transformando a memória (mnese) num caso
particular de evocação (anamnese). Tal gesto, ainda que não seja inédito na história recente da
filosofia ocidental (podemos apenas citar de relance os trabalhos de Lacan e Derrida) cumpre na
trajetória do pensamento de Costa Lima a tarefa de preparar a base conceitual em que se entrelaçam
tempo e mímesis. (Costa Lima, 2009. PP 130-134)

Tal base compõe-se, portanto, de dois elementos fundamentais:

1. Phantasia, não como produtora de imagens-cópias (Eikon), mas como aquilo que move o
desejo, algo que se vê (uma imagem que aparece, phainetai) e conduz o olhar ao movimento.
Atente-se para o destaque de Costa Lima para a ligação da phantasía com o desejo. A phantasia é
aquilo que move, prepara o desejo, e conduz ao movimento, o que lança o phantasma como um
modo de ver, uma Ŗinterpretaçãoŗ , que se situa entre a reprodução e a criação. (128,134)

2. A anamnese como modo temporal que abarcando a memória se refere a uma associação
de idéias que partindo de lacunas, ou seja não associada diretamente a uma percepção sensível mas
a um desejo que a move, não é capaz de realizar-se sem imagens. (135-136)

***

1
A arte da memória, ou mnemotécnicas, propõe um conjunto de regras para a memorização de idéias ou palavras,
constituindo uma técnica de imprimir lugares e imagens na memória. Funcionando como um alfabeto, a arte da
memória permite usar a imaginação para reavivar os fatos. Através das mnemotécnicas, um orador pode reproduzir
longos discursos com precisão infalível. No mundo antigo, o tratamento da memória era de extraordinária importância,
como mostra Frances Yates. Cf. YATES, F. The Art of Memory, Routledge and Kegan Pau Ldt. Londres, 1996.

72
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗ [E ]Se em vez de a evocação trabalhar para trás, isto é, orientar-se pelo passado que
procura reconstituir, desviar-se e passar a tematizar o que, lançando mão de elementos
provenientes do tempo adiante, parecesse plausível?ŗ (Ibidem, pp. 139)

Se o traço da escrita costalimeana deixa adivinhar algum incômodo ao destituir a cena da


cosmogonia grega como palco de entendimento dos conceitos do Estagirita, por outro lado registra
também a razão, de caráter impreterível, desta (im)postura: ŖIntroduz-se um artifício de cálculo na
construção aristotélica para que se possa pensar com a ajuda (secundária) da memória, a escrita da
história e, a partir da evocação, a mimésis.ŗ (grifo meu) (Costa Lima, 2009. PP 138.)

Deste modo, a tarefa a que se propõe o pensamento de Costa Lima pode ser entendida como
a tentativa de capacitar o pensamento contemporâneo a trabalhar o relacionamento que o par
memória-evocação mantém com a phantasía em função do extrato temporal futuro, porvir. É em
nome desta tarefa que um tratamento oblíquo do texto trabalha hesitações ontológicas potenciais, e
culmina no dispositivo denominado torsão temporal. Tal dispositivo aciona a base conceitual
delimitada a partir do pensamento aristotélico (phantasia e anamnese). Ele deixa ver como se
dispara a mimesis.

Como definido pelo autor como um artifício de cálculo, a torsão temporal não engendra
historicamente o que faz trabalhar conceitualmente. Não se deve esperar do produto da torsão uma
energia historicamente configurada. A torsão temporal permite observar um índice histórico que,
como possibilidade de configuração, deixa ver no cruzamento entre as noções de phantasía e
anamnesis algo que é sempre percorrido pelo desejo como movimento que não trabalha para trás,
ou seja, não se guia simplesmente pela reconstituição de uma percepção passada, mas por uma
tematização, um ver interpretativo do presente que tem expectativa de vir a ser algo.

De maneira que se pode definir o indício produzido pela torsão, isto é: anamnesis Ŗtorcidaŗ
se constitui como um modo de ver que interpreta gerando uma Ŗrecordaçãoŗ de algo que não
necessariamente houve (percepção sensível), e phantasía, uma vez que também sofreu a torsão, se
constitui como um movimento de desejo que gera um phantasma não necessariamente com lastro,
visto que é um querer ser1.

O phantasma, ao invés de uma imagem que fixa a relação entre eikon e a memória, passa a
oferecer duas possibilidades anamnéticas. Rompendo a necessidade do vínculo entre experiência
sensível e memória, este movimento dinâmico tem como uma das faces a evocação, que tematiza
imagéticamente a si própria; e como a outra, a lembrança, que se liga ao eikon, termo que tem seu
significado sempre preso à idéia de imagem-semelhança. (Costa Lima, 2009. Pp. 133-139)

1
Antes de tudo seria necessário marcar a trajetória metafísica da vontade de ser para em seguida diferenciá-la daquilo
que se entende como projeto teórico de costa lima, notadamente marcado pela recusa às filosofias do sujeito inscritas no
plano metafísico das reflexões sobre o Ser. Na impossibilidade de fazê-lo devido à obvias restrições de tempo e espaço
remete-se ao texto ŖQuatro fragmentos em forma de prefácioŗ in LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

73
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

***

Fruto da torsão: retirar a escrita da história da posição insignificante que a Poética lhe
concede e afastar a mímesis dos limites em que Aristóteles ainda a deixou. O duplo
propósito visará ainda a mostrar que, assumindo caminhos bastante divergentes, a escrita da
história e a obra da mímesis tem um caminho comum. (Costa Lima, 2009 141.)

Nascido como índice e desvio, o produto da torsão é agora relançado como caminho comum
para modos discursivos distintos. Tal como argumenta Costa Lima em O controle do imaginário e a
afirmação do romance, a via em comum a que se chega pela torsão gira em torno das disposições
que envolvem a anamnese Ŗtorcidaŗ . Subterrâneo ao argumento do autor mas, como foi explicitado
anteriormente1, inescapável, aparece o phantasma. O vínculo necessário entre anamnese e imagem
autoriza a reformulação do caminho comum apontado como base da mímesis costalimeana,
entrelaçando, a partir do phantasma, como teia, proposições da obra referida com os demais textos
do autor, em especial, Mímesis –Desafio ao pensamento, com destaque para o conceito de mímesis-
zero, que vem ocupando o centro das atenções do grupo de pesquisa que integro.

O phantasma emerge da combinação (ananmese + phantasia) produzida via torsão


temporal, e encontra-se, na base das mímesis estética e historiográfica, em suas modalidades que
variam da mímesis de produção à mímesis de representação. Base pensada em termos de uma
sistematicidade dinâmica e não como um fundamento no sentido clássico de uma teoria do
conhecimento, que Costa Lima denominou em Mímesis –Desafio ao pensamento como mimesis-
zero. (Costa Lima, 2000. PP. 149)

Efêmera, dotada das qualidades daquilo que apenas se deixa flagrar de relance, a mímesis-
zero tem importância capital na medida em que sinaliza aquele momento em que Ŗnecessariamente,
o desejo de ser se metamorfoseia em desejo de terŗ (Ibidem Cf. Borsch-jacobsen, 1982 ).

***

Os conceitos psicanalíticos de mímesis possuem um papel importante para o trabalho


reflexivo de Costa Lima já que, nas teorias psicanalíticas da gênese do sujeito a função central da
mímesis não deriva da imitatio, e como mediação que é, se desvia sempre da produção de imagens-
cópia. (Schwab, G. 1999. PP. 119).

Este Ŗpano-de-fundoŗ psicanalítico envolve a ligação entre phantasma e mimesis-zero e


lança ao encontro da crítica de Borch-Jacobsen à teoria freudiana, no sentido de deslocar a relação
entre desejo e interdito para a mediação mimética. Este deslocamento dá um novo sentido à
movimentação imagética pela qual os desejos se realizam: as figurações, dissimulações,
deformações não são aquilo que em função de um interdito emergem para realizar o desejo. Elas são
inscrições de identificação (mímesis) talhadas de desejo por dentro do phantasma. (Borsch-
jacobsen, 1982. PP 32-38)

74
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Tal deslocamento permite entender como o phantasma, ao combinar anamnese e phantasia,


antecede e prepara a cena em que o sujeito dramatiza. Esta antecedência não implica causalidade,
já que o próprio caráter de precipitação da anamnese dissolveria qualquer pretensão Ŗcausalistaŗ .

Como o momento em que, nos Ŗbastidoresŗ , no Ŗcamarimŗ, se aguarda, a mímesis-zero,


mímesis especificamente phantasmática, vêm a tona como léxico radicalmente deformador. O
preparo para entrar em cena, em que o movimento é errático, indica apenas que ali há algo, não um
mar de nada. A ele se acrescenta uma direção, porque a phantasia é desde sempre um ver
direcionado. Se o phantasma é uma conjugação de phantasia e anamense, ele Ŗdesde sempreŗ se
move e, ao se mover, incessantemente configura-se plasticamente. É nesse sentido que se pode
pensar uma dissimulação Ŗorigináriaŗ . O phantasma se mimetiza de maneira brutal não porque seja
um nada, a Lei, entendida como forma social é inescapável. A aparição do phantasma se dá sob
domínio da forma social. Mas sendo o phantasma sem fixidez, sem propriamente ser, é apenas e
simplesmente um jogo de Ŗamorŗ e Ŗñdioŗ , de identificação e rivalidade, amigo e inimigo.

Atente-se para a diferença entre jogo e encenação.

Se a mimesis de produção e representação, por se apresentarem em Ŗmomentosŗ em que a


subjetividade e a objetividade já estão constituídos, são processos em que a representação está, em
maior ou menor grau, sempre presente e nessa medida são mediações que se deixam entender como
encenação, como dramatizações complexas. Como é acentuado em Mímesis –Desafio ao
pensamento, nem mesmo a mímesis de produção, a mais ousada das modalidades miméticas de
Costa Lima, pode prescindir da figura do espectador e nessa medida não funda o sujeito, antes o re-
funda, por meio de suas fraturas. ŖFaz ver doutra maneiraŗ . (Costa Lima, 2000. 317-328)

Por sua vez, a mimesis-zero, assume toda sua precisão se entendida como o jogo em que o
phantasma, por potencialmente se transfigurar em Ŗtudoŗ não se apresenta (darstellung)
propriamente em nenhum lugar. Como aparição espectral, o phantasma não tem forma, apenas se
deforma. O phantasma não precede a este mimetismo lúdico da mímesis-zero, tampouco utiliza o
jogo como meio para a realização de um fim. Nesse sentido não há um sujeito-phantasma, mas um
jogo fantasmático. O que se põe em jogo cumpre as características miméticas ao ser temporalizado
à maneira anamnética e imagético phantasiosa, porém sempre tendo em vista um deixar de ser jogo
e passar à encenação.2

Este deixar-de-ser jogo e ter-que-ser encenação marca a singularidade do pensamento de


Costa Lima, na medida em que por sua maneira de propor a apreensão dos fenômenos culturais e
estéticos jamais se poderia pensar num sujeito que, uma vez constituído, se restringisse como um
ator, um jogador, simplesmente. O campo do espectador, da recepção, é fundamental para a

1
Cf. Pp5
2
No pensamento de Costa Lima seria impensável que as relações miméticas pudessem se restringir ao jogo, na medida
em que o terceiro ponto, o espectador, é fundamental para as relações que tecem. Na medida em que neste ponto, Costa
Lima se distancia de Borch-jacobsen, já no que diz respeito às mímesis de representação e produção. Cf,. costa lima,
2000 Pp 150 e ss.

75
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

constituição da mediação multi-facetada que é a mímesis costalimeana. O pensamento de Costa


Lima jamais abriu mão dos vínculos referenciais constitutivos da realidade. (Cf. Soares, 1999 Pp.
271-278)

Como experiência radical de antropogênese, a mímesis-zero acirra a função central da


mímesis, a mediação, de maneira tal que só se deixa apreender, sistematicidade dinâmica, em sua
fulgacidade. Flagrada teoricamente com dificuldade, permite contudo que se aposte que seja em
análise de certos movimentos de arte moderna, como a action painting1, onde mais perto se possa
chegar para entender, como produto e objeto instalado no mundo, o vestígio de tal passagem
mimética.

O valor analítico da mímesis-zero, em sua inexistência já que se trata de um conceito em


construção, em contraposição às demais modalidades miméticas propostas por Costa Lima, estaria
no fato de que ela permite pensar o fugidio vão instalado entre o Ŗespaço solitárioŗ fantasmático,
intransitivo e o mundo em sua conformação sócio-cultural. Como Ŗprimeiroŗ processamento
formativo das realidades, a mímesis-zero atua no sentido de codificar o difuso desejo de ser
Ŗalguma coisaŗ por meio do estabelecimento de rivalidades e identificações. A partir daí as
diferenças valorativas podem ser distribuídas entre Ŗobjetos de desejoŗ dist intos.

***

Entre ato e potência, entre natura naturans e natura naturata, Costa Lima Ŗdescobreŗ a
phantasia e a anamnese, que Ŗtorcidasŗ engendram um phantasma que se joga em mímesis, Ŗfalaŗ
por ela.

A torsão temporal, como artifício de cálculo que é, nunca aconteceu. Ela não se inscreve no
mundo como um evento, não conjura uma forma histórica que dá origem, que gera o phantasma e a
partir dele o tempo e o mundo. A torsão é antes um dispositivo que permite explorar paradoxos que
marcam de maneira crucial a trajetória de auto-interpretação humana, ou caso se prefira, a ocupação
antropológica do mundo.

É nesse sentido que a mímesis-zero não se comporta como uma temporalidade


temporalizante, tal como se pode pensar que, em Heidegger, a imaginação trabalha2. A mímesis-
zero é uma mediação que se temporaliza de forma anamnética e imagético phantasiosa, o que

1
Como seta que direciona algo aberto e por vir aponta-se a análise de G. Argan para a obra do pintor norte-americano
Mark Rothko :ŗ Rothko elimina da imagem impressionista a figuração, a mitologia naturalista do espaço, o falso ponto
de partida da sensação que liga o sujeito ao objeto. Permanece o espaço, sem pessoas nem coisas (...) espaço que se
percebe como substância comático-luminosa expandida e vibrante. (...) Um quadro de Rothko não é uma superfície, é
um ambiente.ŗ Argan, G. Arte moderna Ŕ do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Companhia das letras, São
Paulo, 2008. PP. 531
2
A filosofia heideggeriana, tal como apresenta Kamper, pensa a imaginação como uma quarta dimensão temporal Ŕ
temporalidade temporalizante fundamental que não é produzida, mas assumida pela percepção. Kamper enfatiza a
diferença entre percepção e consciência, na medida em que, via percepção, a imaginação humana pode fundar (assumir)
o tempo e se desenvolver como presença. Kampe, D. L‘ puissance de l‘imagination comme temps temporalisant.
Kamper, D. In. J. Poulain & W. Schirmacher, Penser après Heidegger. Après du colloque du centenaire (Paris, 25-27
septembre 1989), trad. A Münster, Éditions LřHarmattan, 1992, 312 pages.

76
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

somente se deixa ver, se faz notável, via torsão temporal. Mas ela não constitui uma modalidade
temporal que, sendo irrepresentável, apresenta as condições para as demais modalidades temporais.
Como jogo em que o phantasma se joga, se distorce e se deforma, a mímesis-zero se abre para
acolher o cenário que em seguida se constituí. Ela antecipa e relança, como um relâmpago, o
phantasma a ser. Ela não tem Começo porque é sempre espera, projeção, preparo.

Contudo, apesar das aparências, a mímesis-zero não compartilha a estrutura de recomeço


incessante do Eterno Retorno nietzscheano. Isto porque, a despeito da variedade de interpretações a
que a idéia de Nietzsche dá lugar, o Eterno Retorno é fundamentalmente uma experiência 1. E o
conceito de experiência torna-se embaraçoso quando se trata de abordar uma região antropológica
em que o sujeito não está ainda constituído, presente. A experiência está ligada a presença do
sujeito e/ou sua apresentação, e esta implicação jamais poderá se reduzir nela mesma. (Derrida,
2004, 74-77/345-346 Kosellleck, 2001, 43-44).

Como questão em aberto, o modo temporal da mímesis-zero certamente se liga à


interminabilidade da força plástica que configura o viver humano, e que ganha na arte seu modo
exemplar:

ŖEm quadro algum é de se ver simplesmente o que nele vê o espectador; em nenhum


poema é de se ler definitivamente o que nele se lê; e em nenhuma peça musical é bastante o
que o ouvinte escuta, para o que se dá na experiência estética. A formulação paradoxal
ressalta a indeterminabilidade do objeto estético. A experiência estética vê algo que não
pode afiançar e que, por isso , sempre e outra vez aí está. (...) Ela nunca aprende a se
compreender a si própria, o que significaria renunciar a si mesma. Está sempre exposta à
aparência (Schein)ŗ (Bubner, R.: 1989, p. 43)

Referências bibliográficas

BLUMENBERG, H. ―Imitação da natureza. Contribuição à pré-história da idéia do homem


criador‖ Do original Ŗ ŘNachahmung der Naturř. Zur Vorgeschichte der Idee des schöpferischen
Menschenŗ , originalmente publicado na revista Studium generale, 10, em 1957. Tradução de Luiz
Costa Lima, sob a supervisão de Doris Offerhaus para o alemão, e Fernando Rodrigues, para as
transcrições do grego e a tradução das passagens em latim.

BUBNER, R.: ŖÜber einige Bedingungen gegenwärtiger Ästhetikŗ , in Ästhetische Erfahrung,


Suhrkamp, Frankfurt a. M., 1989.

BORSCH-JACOBSEN, M. Le Sujet freudien, Flammarion, 1982.

CHÉDIN, J. L. La condition subjective Le sujet entre crise et renouveau. Paris: VRIN, 1997.

1
Como mostra Klossowski, em Nietzsche et le cercle vicieux, o Eterno Retorno é uma experiência vivenciada como
visão e enigma. Contudo parece extremamente promissor investigar os encontros e desencontros entre mímesis
costalimeana e Eterno retorno na medida em que este último é uma Ŗmisteriosaŗ conjugação de esquecimento e
anamnese. Cf. Klossowski, P. Nietzsche et le cercle vicieux. Mercure de France, 1969.

77
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

DERRIDA, Jacques; SCHNAIDERMAN, Miriam; RIBEIRO, Renato Janine. Gramatologia. 2. ed.,


1. reimp. São Paulo: Perspectiva, 2004.

LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

________________Controle do Imaginário & a Afirmação do Romance Companhia das


Letras.2009

_______________ O controle do imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos. 2.ed. rev.
amp. [Rio de Janeiro] : Forense Universitaria, 1989.

KAMPER, D. Lř puissance de lřimagination comme temps temporalisant. ( pedir ao Luiz)

KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche et le cercle vicieux. ed. rev. et corr. [Paris]: Mercure de France,
1978.

SCHWAB, G. ŖCriando irrealidadesŗ : a mímesis como produção da diferença. In: GUMBRECHT,


Hans Ulrich; ROCHA, João Cezar de Castro. Máscaras da mímesis a obra de Luiz Costa Lima.
Rio de Janeiro: Record, 1999.

SOARES, L. E. Luiz Costa Lima: a antropofagia e o lugar do sujeito, ou A janela iluminada e o


silêncio da cidade. In: GUMBRECHT, Hans Ulrich; ROCHA, João Cezar de Castro. Máscaras da
mímesis a obra de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Record, 1999.

78
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O RIO JOÃO CABRAL E SEUS AFLUENTES

Alyni Ferreira Costa1 (UFC)

Introdução

Conceituar literatura comparada representa uma tarefa árdua, pois, ao longo dos séculos,
muitos teóricos competentes estudaram o tema e lançaram teorias, porém apenas conseguiram
enfatizar o quão complexo é este assunto. Geralmente, quando ouvimos a expressão logo pensamos
ser Ŗuma prática de investigação de fatos através da comparação entre duas ou mais
literaturasŗ (CARVALHAL,1986). Esta classificação, contudo, é insuficiente. Conforme vamos
aprofundando os estudos nesta linha, observamos a dimensão do ecletismo metodológico adotado.

De olho na história

O surgimento da literatura comparada esta associado ao pensamento cosmopolita que


caracterizou século XIX. Antes disto, durante a Idade Média, o termo já fora utilizado, através dos
estudos de ciências naturais quando os estudiosos comparavam estruturas ou fenômenos
semelhantes, para que fossem cunhadas as leis gerais. O termo foi realmente difundido com Lições
comparadas de anatomia, escrito por Cuvier em 1800, sendo a primeira obra a levar o título e
abordar o assunto, apesar de não se tratar de estudos literários.

É na França onde os estudos de literatura comparada se firmam e passam a ser observados


pela ótica histórica. Envolvidos pelo conceito de que nada vive isolado e de que a literatura geral é
um territñrio continuado, um livro perde a feição de um objeto solitário e melancñlico, Ŗa
apreciação de um texto é feita em relação a seus antecessoresŗ (ELIOT, 1917, apud CAVALHAL,
1986). O método comparativo é usado para encontrar e conhecer o panorama histórico da literatura
mundial.

Neste contexto, em que se aumentava o interesse em observar e comparar literaturas de


diferentes países foi que surgiram as noções de evolução, de continuidade e de ruptura literária.
Atualmente, Afonso Romano de SantřAnna designa de efeito, desvio, ou aproximação de alguma(s)
obra(s) com outra(s). Ora, no momento em que comparamos obras escritas por autores distintos e
em países e datas diferentes podemos perceber certas semelhanças, traços comuns ou temas
parecidos abordados de inúmeras maneiras. Para Goethe todas as literaturas têm um fundo comum.
Isto pode ser facilmente percebido até mesmo por leitores que não realizam uma leitura crítica.

1
Mestranda em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. Integrante do grupo de pesquisa Espaços de Leituras:
Cânones e Bibliotecas, sob orientação da Prof. Dr. Odalice de Castro e Silva. alyniferreira@hotmail.com
79
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Múltiplas visões

Para o francês Paul Van Tieghem (1931), diferenciar literatura comparada de literatura geral
consiste em apresentar a primeira delas como analítica, correspondendo a estudos binários, e a
outra, representante de uma visão mais sintética e geral. Renné Wellek, em 1942, alerta que é
preciso privilegiar o texto em detrimento de relações entre autores e obras, atém-se ao
aparecimento de influências na escrita, observando a presença, importância e função destas dentro
da organização do texto. ŖŘInfluênciař é a palavra chave, tanto como instrumento teórico como
direção dos estudos.ŗ (NITRINI, 1997). O brasileiro Tasso da Silveira escreveu em 1964, Literatura
Comparada, seguindo as teorias de Van Tieghem, ocupou-se com a busca de fontes e influências
visando encontrar casos de imitação ou empréstimo. Augusto Meyer ilustrou sua pesquisa,
direcionando-a para a Obra de Machado de Assis, pesquisou as fontes utilizadas pelo autor, batizou
este processo criador como Ŗmetáfora alimentarŗ .

O peso da tradição

Juntamente com estes levantamentos e observações, entra em discussão a noção de


originalidade de uma obra. Ao admitirmos que uma obra possui trechos de outra ou de muitas
outras, ou que um escritor resolveu escrever algo a partir de outro livro, parece-nos que o resultado
será um plágio adaptado, ou uma cópia propriamente dita. Não se trata disto, pelo menos quando
esta obra resultante é fruto de um autor bem intencionado. Leyla Perrone Moisés, em seu livro
Flores na Escrivaninha, escreve ŖA criação Literáriaŗ , no qual aborda a questão do processo
criativo literário. Para ela, a idéia de que um escrito possa surgir de forma absolutamente
espontânea e sem nenhum motivo que sirva de mote inspirador, é vista como enganosa. Até mesmo
o termo Ŗcriaçãoŗ está confuso, pois, em sua opinião, poderia assemelhar-se ao termo Ŗgêneseŗ ,
remetendo-nos à noção de criação divina. Guiados por este sentido, parece que estaremos seguindo
o exemplo de Deus que criou o mundo a partir do verbo, de uma forma inesperada e espontânea, e
sabemos o quanto a criação literária distancia-se disto. Perrone diz que o poeta imita a natureza,
criando uma maneira peculiar para explorá-la na obra. Cientes disso, nós leitores, aceitamos que
tudo já foi dito, já que a natureza é milenar. Entretanto, apesar disto, tudo pode ser reescrito sob
outro ângulo. Para os russos Ŗum mesmo elemento tem funções diferentes em sistemas diferentesŗ
(TYNIANOV, apud, CARVALHAL, 1986, p. 47). O tcheco Jan Mukarovsky, em seus estudos de
semiologia, deu seu parecer de que a obra literária não está isolada, fazendo parte de um grande
sistema de correlações. Não são apenas os elementos internos ao texto que possuem o poder de
torná-lo diferente, mas o contexto no qual este será inserido também consiste num poderoso agente
modificador da obra.

Eu imito, tu imitas...

Aristóteles (séc. IV A.C.) ofereceu-nos o sentido de mimese, sendo esta a explicação mais
remota acerca deste vasto assunto. Para ele Ŗo termo Řmimesesř podia corresponder a Řimitaçãoř,

80
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Řrepresentaçãoř, Řindicaçãoř, Řsugestãoř, Řexpressãoř, todas referentes a uma única noção, a de fazer
ou criar alguma coisa que se assemelha a qualquer outra coisaŗ (ARISTOTELES, apud MOISÉS,
2004, p. 292 ). Tanto Platão quanto Aristóteles viam, na mimesis, a representação da natureza.
Porém, para Platão toda a criação era uma imitação, até mesmo a criação do mundo era uma
imitação da natureza verdadeira (o mundo das idéias). Sendo assim, a representação artística do
mundo físico seria uma imitação de segunda mão. Já Aristóteles aprofundou-se na imitação da arte.
Via o drama como sendo a imitação de uma ação, o que mudava era o objeto que seria imitado e
como o autor o faria. A comédia, numa maneira geral era a representação de pessoas inferiores,
satirizadas. A tragédia, por conseguinte, seria a imitação de pessoas superiores. Estes conceitos
comprovam a longevidade da filosofia aristotélica, que serve, na atualidade, de base para teorias
acerca do processo de criação literária.

Esta problemática oferece-nos vários argumentos para explorarmos o texto de uma forma
mais técnica, e novos conceitos foram sendo implementados e acoplados aos estudos. É de suma
importância o que Mikail Bakhtin teve a dizer acerca disto; a literatura comparada, em sua opinião,
estava ligada a historia. Contribuiu com os estudos, lançando o conceito de dialogismo, no qual
aceita que o texto é uma construção polifônica, onde várias vozes se cruzam, assim como, inúmeros
pensamentos e múltiplas ideologias. Semelhante a um mosaico. Seria uma espécie de Řcolagemř de
imitações, acopladas no papel de acordo com o sendo estético, artístico e poético de cada autor. E
de quem poderiam ser essas vozes? Decifrá-las seria o intuito do comparativista literário.

O Movimento Antropofágico de Oswald de Andrade aproximou-se da idéia de Bakhtin


através do princípio do texto como plurifacetado. Decretou a validade da prática de adequar
doutrinas e tendências literárias européias a escritos nacionais, usando-as de uma maneira que se
encontre uma identidade nacional. Depois de ser pensado que a medida exata para encontrar a
característica de nacionalidade, seria romper com o passado, criar apenas padrões literários novos e
que fossem diferentes, Oswald revolucionou ao oferecer-nos a idéia de aproveitar tudo o que já
estava escrito, em detrimento de descartar as tradições. O certo era incorporar a literatura
consagrada ao colorido local, caracterizando o movimento de independência literária do país.

Intertextualidade?!

Em 1969, cunhado por Julia Kristeva, surgiu o conceito que exploraremos mais calmamente
neste estudo: o da intertextualidade. Através dele, ficou definido que o texto é a absorção e a
transformação de outro e que o processo de escrita é resultante do processo de leitura, mas que este
processo pode ser visto de uma forma transcendente: leitura de vida, de experiências, de textos, de
pensamento etc. Estas premissas só fizeram reforçar as teorias que estão sendo efetivadas desde os
primeiros resultados de pesquisas nesta área. Neste ponto de vista, a memória aparece como uma
grande contribuinte do fazer literário.

A imitação da memória

81
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A reconstrução voluntária e/ou espontânea do passado, baseada em ocorrências e momentos


presentes na memória é uma prática milenar de escrita. Valendo-se do conceito de mimese
aristotélica, os memorialistas seriam imitadores de suas próprias vivências.

A veracidade que possam ter é menos documental que vivencial: o subjetivismo, congenial
às modalidades autobiográficas vizinhas, alcança neste caso, suma intensidade,
aproximando-se ainda mais do terreno ocupado pela narrativa ficcional ou pelo lirismo
(MOISÉS, 2004, p.280).

Marcel Proust aderiu a esta prática de tal maneira que textos de semelhantes processos são
chamados de Ŗproustianosŗ . O autor rememorava os dias perdidos de forma subjetiva e, por vezes,
idiossincrática. Chateaubriand usou desta prática em Mémoires d‘autre tombe (1848). O brasileiro
Pedro Nava, por exemplo, possui uma escrita proustiana e dá seu parecer acerca do processo,
dizendo que leitura é como alimentação: uma parte do alimento é eliminada e a outra aproveitada
como energia.

De quem é a dívida?

Depois de entender o que Kristeva quis dizer é interessante observar que alguns anos depois,
em 1973, Harold Bloom chama esta interação entre textos de dívida, para ele isto representa uma
luta entre pais e filhos num processo de apropriação. É a angústia da influência. Jorge Luis Borges,
muda o sentido desta dívida; para o autor cada escritor cria seus precursores, o devedor, em sua
opinião, seria aquele que serviu de inspiração.

Um curioso episódio ocorreu com uma estrela do Modernismo de 22, e foi documentado
por Eneida Maria de Sousa em seu livro A pedra Mágica do Discurso. O fato ocorreu com Mário de
Andrade que foi acusado por Raimundo Moraes, escritor amazonense, de ter plagiado lendas
colhidas e publicadas na obra de Koch-Grünberg, Mitos e lendas dos índios Taulipang e Arekuná.
Raimundo escreve uma carta para Mário insinuando que as formas de inspiração para a criação de
Macunaíma são duvidosas. O teñrico diz ironicamente que Ŗos maldizentes afirmam que o livro
Macunaíma do festejado escritor Mário de Andrade é todo inspirado no Vom Roraima Zum
Orinoco do sábio (Koch-Grünberg)ŗ (SOUSA, 1999.)

Mário defendeu-se, em nota pública, dizendo:

Copiei sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade, é os
maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch -
Grünberg, quando copiei todos. E até o Sr. na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei
às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos
ameríndios, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa (idem).

A partir desta polêmica, observamos em que ponto é válido e considerado lícito o exercício
de apropriação e o empréstimo. É complexo apontarmos um autor como plagiador de algo, já que,
82
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

como esclarecemos aqui, não existe o texto puro, inato. Até quando estes recursos enriquecem a
obra, e quando podem tornar-se nocivos a aceitação e a repercussão desta? A prática de Mário de
Andrade é, claramente, um exemplo de tradição literária brasileira, segundo Eneida consiste na
repetição dos já-ditos. Mário utilizou da postura que há muitos anos já era exercida desde a
civilização grega, a busca de inspiração na tradição oral.

Mário traz a tona ainda a própria História brasileira e a posse dos portugueses ao chegarem
às nossas terras. Sobre o arbitrário descobrimento de Portugal, e por terem chegado provavelmente
Ŗprimeiroŗ no Brasil, sendo, portanto, os donos do Brasil, Mário tomando para si esta premissa diz:
ŖMeu nome está na capa de Macunaíma e ninguém poderá tirarŗ (SOUSA,1999). Por este motivo,
está legitimada a conquista por parte do autor, o que Eneida chama de território nômade do texto.
Plágio, empréstimo, apropriação, entre outros, são temas comuns no processo de composição e
estão inclusos na concepção de intertextualidade, já comentada aqui.

A beira de João Cabral

Diante destas análises acerca do que vem a ser Literatura Comparada, concordamos tratar-se
de um meio e não de um fim. Através dela poderemos explorar o território literário de uma
sociedade, ou de um autor. Pela busca de fontes e influências, de diálogos entre textos, de fatos
vivenciados etc., conseguimos entender o procedimento utilizado que resultou em determinada
obra. Munidos destes conceitos apresentados ao longo de nosso trabalho, torna-se pertinente
averiguar o percurso de escrita de um escritor a fim de entender a atmosfera de sua obra através dos
fatos que resultaram na escrita desta. Para tal, escolhemos a obra do poeta brasileiro João Cabral de
Melo Neto.

O corpus utilizado para este trabalho, além da obra poética e crítica, trata-se de uma longa e
íntima entrevista concedida ao ŖCaderno de Literatura Brasileiraŗ do Instituto Moreira Sales. Nela o
autor fornece-nos algumas Řpistasř, comentando acontecimentos de sua vida, relembrando fatos e
discorrendo valiosas situações que estão presentes em seus poemas. Conhecidamente reservado e
avesso a entrevistas e comentários sobre sua obra, restou aos leitores e admiradores desta, um
debruçar minucioso e delicado para entender os elos poéticos cabralinos. Foi este o nosso objetivo.

De Nietzsche para Cabral

Primeiramente, é válido comentar sobre o seu procedimento literário e sua postura como
escritor. Para isto, achamos interessante consultar o pensamento nietzscheano, presente em A
Origem da Tragédia, com a Ŗa metafísica de artistaŗ , na qual fala que no processo de criação
existem duas forças distintas: a força apolínea, ligada ao deus Apolo, símbolo das artes plásticas
(pintura, escultura, entre outras), da medida, da rigidez das formas, do sonho; e a força dionisíaca,
emanada do deus Diónisos, representante da embriaguez, do desrespeito pelas formas e medidas,
que se realiza plenamente no espírito da música. Um autor apolíneo, portanto, preocupa-se com a
composição de sua criação, em detrimento do dionisíaco que preza pela criação baseada
83
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

exclusivamente na inspiração inexplicável. Fica assim, evidente que o conhecido poeta engenheiro
se adequou como fatídico apolíneo. A poética cabralina é resultado de vivências e de experimentos
que se unem a uma incansável prática de construção. Via o poema como algo racional, de fora pra
dentro. Semelhante a construção de uma casa. Cabral era cético extremo, desacreditava no processo
de composição milagroso, através de inspiração ou improviso.

Perfil cabralino

Sua vida foi bastante rica de motivos inspiradores em seus livros e por isto é importante
conhecê-la: Nascido a 9 de janeiro de 1920 em Recife, viveu uma infância livre, correndo pelos
engenhos pernambucanos e passeando de barco com a família pelo Rio Capibaribe. Essas duas
temáticas são bastante recorrentes em sua obra. Quando jovem freqüentava o Café Lafayette, em
Recife, ponto de encontro entre os intelectuais da cidade. Nesta época, confessa que sua pretensão
era outra: a teoria literária. João, pela seriedade, confundida com sisudez por alguns, era dado às
análises de observação, ao estudo minucioso das obras que o interessava. Esta prática o
acompanhou mesmo quando a carreira de crítico ficou para trás e é facilmente observada em sua
poesia.

Em 1942 lança o seu primeiro livro, Pedra do Sono. As vendas iniciais foram restritas aos
familiares, dentre eles o seu primo de primeiro grau, Manuel Bandeira. Um ano antes, mudou-se
para o Rio de Janeiro e conheceu Carlos Drummond de Andrade, um nome de grande influência em
sua obra. Tornou-se, além de amigo íntimo, leitor voraz de Drummond, publicando dois anos depois
na Revista do Brasil ŖOs três mal-amadosŗ , poema baseado em ŖQuadrilhaŗ do poeta. Este seria
apenas o primeiro poema de cunho intertextual com a obra drummoniana, recentemente foi
descoberto mais um escrito, direcionado ao amigo e que nunca fora publicado em vida, chama-se
ŖDifícil ser funcionárioŗ.

A carreira diplomática começa em 1945, oferecendo ao poeta uma vida de viagens e


descobertas, principalmente acerca dos aspectos arquitetônicos das cidades por onde passava.
Podemos dizer que a cada nova morada, João Cabral construía impressões, montava memórias e
pontos de vista que resultavam nos mais diversos poemas: em Barcelona escreve Psicologia da
composição, em Lisboa lança Quaderna, em Madri, Dois Parlamentos. Porém, Sevilha é o seu
posto diplomático que lhe oferece desigual inspiração. O poeta apaixona-se pelo lugar e este, junto
com Recife torna-se base de sua poesia.

A poética

Poesia, para ele, era a soma de fatos e trabalho. Para se referir a esta questão, dizia que
ŖNinguém imagina que Picasso fez os quadros que fez porque estava inspirado. O problema dele era
pegar a tela, estudar os espaços, os volumes. Eu sñ entendo o poético neste sentidoŗ .1 (op. cit. p. 21)

1
Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, 1996.ŗ
84
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O rigor, a falta de lirismo e a ausência de imagens abstratas, enquadram sua obra


inteiramente no Concretismo, sendo considerado o pai da poesia concreta. Antônio Candido vê sua
obra como surrealista. O autor, porém, discorda das duas implicações, evitando enquadrar-se em um
sñ conceito poético. Assumindo o papel de crítico da prñpria obra diz apenas Ŗminha poesia não
possui nenhuma musicalidade e está distante de cultivar versos de oratñriaŗ . (idem, p. 24) Estas
seriam as afirmações mais corretas no que remete à classificação de sua poesia.

Tudo parte de um fato, vivido ou fantasiado, mas que é amadurecido em busca de domínio e
polimento. João confessava haver poemas que demoravam anos para serem finalizados. ŖAntiodeŗ
representa de forma mais clara a temática cabralina, com teor antilírico e com a vitória da
composição sobre a inspiração. ŖCatar feijãoŗ é semelhante em sua temática.

Quando diz ―catar feijão se limita com escrever‖ o poeta expressa o seu labor literário.
Claramente baseada no real, sua poesia possui um conteúdo presencial, distante de temáticas
psicológicas, sentimentalistas. O leitor vai encontrar a temática do comum, do presente e do dia-a-
dia.

Memória seletiva

O memorialismo é um traço marcante, o processo criativo ao qual o autor mais recorre. Sua
poesia é considerada pelos críticos como proustiana. O cão sem plumas, seu último livro, traz mais
evidente os resíduos de uma experiência pessoal. João Cabral diz Ŗminha poesia é um esforço de
Řpresentificaçãoř e de Řcoisificaçãoř da memñriaŗ . (op. cit. p.31). Às influências da memória,
juntam-se as leituras do autor. Com Murilo Mendes aprendeu a importância da imagem. Em
ŖFábula de Anfionŗ João Cabral faz uma parñdia de Paul Valéry. Com Le Corbusier iniciou-se num
universo filosóficos e foi levado até Marx. O mais curioso é que o livro decisivo de sua carreira,
como ele mesmo diz, um divisor de águas dentro de sua obra foi escrito por um arquiteto: Lincoln
Pizzie.

Em ŖPsicologia da composiçãoŗ o poeta baseia-se nas idéias de Mallarmé, posicionando-se


como antiintimista. ŖMorte e Vida Severinaŗ traz idéias de Pereira da Costa, do folclore
pernambucano e do cancioneiro português. Assim como Drummond, Cabral homenageou grandes
pensadores, resultados de suas leituras, amizade ou admiração. Manuel Bandeira (ao qual dedicou o
livro Educação pela Pedra), Graciliano Ramos, Joaquim Cardozo, Vicente do Rego Monteiro, Paul
Valéry, Newton Cardozo, André Masson, Picasso, Vinicius de Moraes foram personalidades
homenageadas pelo autor. Um dos poemas inéditos era em homenagem a Vinicius: ―Corrente de
ar‖.

Marly de Oliveira, crítica literária, foi segunda esposa do poeta e compilou uma série de
entrevistas, relatos, documentos numa biografia, lançada em 1978, intitulada Intimidade com João
Cabral de Melo Neto, o poeta de Morte e Vida Severina. A teñrica aponta ŖDe Apipucos à
Madalenaŗ , trecho de ŖO Rioŗ , um dos poemas mais autobiográficos de Cabral. No poema
85
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ŖInfância‖ presente no livro A Pedra do Sono, o autor constrói uma atmosfera repleta de melancolia
e saudosismo, transmitindo nas entrelinhas as lembranças de seus dez anos.

―Num monumento à aspirina‖ é um dos poemas que julgo transpor mais claramente os
propósitos de Cabral. Não porque remeta ao processo de composição, mas devido às circunstâncias
que o fizeram escrever. O autor sofria de sérias enxaquecas, que o deixavam por longos dias,
limitado a uma cama. Descobriu no Rio de Janeiro uma receita que o curou prontamente: café com
aspirina.

Dos temas recorrentes na obra podemos citar: o rio, as lembranças dos canaviais, a pedra, a
fome, a seca, coisas que lhe saltavam aos olhos enquanto morava em Pernambuco. Bem como a
fome, o analfabetismo, a morte. A descrição de paisagens por onde passou, principalmente de
Sevilha e Recife.

A interdependência entre os textos é uma questão que deve ser exposta, quando se trata da
poesia de Cabral. Assim como José Lins do Rego, sua obra é um todo. O Rio e ŖMorte e vida
Severinaŗ são interdependentes. Assim como Quaderna e Dois Parlamentos. Raimundo,
personagem de ―Os três mal-amados‖ reaparece em O Engenheiro. Em Educação pela Pedra o
poeta retoma a problemática da pedra contida em seu primeiro livro A Pedra do Sono. Quaderna é a
ampliação de ―Paisagens com figuras‖.

Conclusão: de volta à margem

Navegar em sua obra, mesmo que de forma superficial, em decorrência de limitações


externas, evidencia a grandeza e complexidade desta e riquezas de técnicas com as quais podemos
explorar este universo poético. É verídico salientar a importância desta tradição de estudos que nos
possibilitou ferramentas para melhor observar a poesia de Cabral, mas que nos ofereceu bagagem
suficiente para analisar qualquer obra, a partir do momento em que nos concedeu fazer parte desta
problemática.

Concluímos este trabalho, enfatizando que a obra de João Cabral de Melo Neto é em grande
parte fundamentada em fatos cotidianos e reais. O poeta presenteou tanto aos leitores quanto aos
críticos, dando-nos a função de se deleitar em seus versos e descobrir os elos e de encontrar os
porquês dentro da vastidão de detalhes produzidos e lapidados de forma tão minuciosa.

Referências bibliográficas

Cadernos de Literatura Brasileira. Instituto Moreira Salles. São Paulo, 1996.

CARVALHAL,Tânia. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 2004.

86
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

PERRONE-MOISÉS, Leyla. ŖA criação do texto literário‖. In: ______. Flores da escrivaninha.


São Paulo: Companhia das Letras,1990.p.100-110.

SOUZA, Eneida Maria de, A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG: 1999.

DOIS OLHARES SOBRE A GUERRA DE CANUDOS: A POETICIDADE DA


LITERATURA DE CORDEL E OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA.
Ana Cláudia Veras Santos (UFC)

87
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Resumo: O trabalho elaborado tem a proposta de analisar os pontos de vista dos poetas populares a
partir das suas representações sobre a guerra ocorrida em Canudos, aos finais do século XIX, na
Bahia - Brasil, em folhetos de cordel. Entendemos que, através desses, temos a possibilidade de
reconstruir episódios fragmentados da nossa história. Nesta perspectiva, as intercessões entre o
popular e o erudito unem-se pela denúncia de crimes da nacionalidade, pois a outra vertente da
nossa proposta visa tecer contra-pontos entre a referida poética e as considerações de Euclides da
Cunha acerca de tal fenômeno, o qual imortalizou em sua obra Os Sertões.

Palavras-chave: Guerra de Canudos; Os sertões; Literatura de cordel.

Os sertões: “nem versos, nem romance.”

Em 1889 o Brasil e os brasileiros rompiam com a coroa portuguesa, deixavam o status


monárquico para trás, juntamente com a condição de escravidão a que negros e índios eram
submetidos dada a conjuntura colonial e feudal herdada pelo regime cortês. Abriam-se perspectivas
para um novo estado de ânimo que dominava as classes estabelecidas em busca do que acreditavam
ser avançado, civilizado e de acordo com padrões evoluídos e ditados pela Europa, especialmente
pela novíssima república francesa, que cem anos antes iniciara sua revolução.

Resguardadas as proporções, as classes menos favorecidas da população brasileira viram


uma série de transformações políticas e sociais acontecerem sob seus olhos e vislumbraram a
esperança de Ŗordem e progressoŗ estampada na bandeira da federação que prometia ser a nação do
futuro.

Ora, é diante de um cenário de certa instabilidade que se apresenta o Brasil, que nossos
homens de letras passam a problematizar o estado de espírito da nação. De José de Alencar a
Machado de Assis, passando por Rui Barbosa, Floriano Peixoto, Barão do Rio Branco e chegando a
Euclides da Cunha, todos, a sua maneira e, imbuídos por um ideal, nos conduzem a compreender
melhor o pensamento social gerado na República naqueles fins de século XIX.

O Brasil se caracterizava, nessa fase, como latifundiário e escravocrata enquanto, em vastas


zonas do interior, as relações feudais surgiam ou continuavam intactas através do tempo.
[...] Euclides acompanharia, da Abolição e da República, tudo aquilo que iria constituir o
ambiente de seu tempo. (SODRÉ, 1995, v.II, p. 15).

Destarte, o convívio com os ideais republicanos à Benjamin Constant e florianistas, aliados


com o cientificismo de Spencer e a sua teoria dos caracteres adquiridos, bem como os estudos que
Euclides fez sobre Geologia, Botânica, Etnologia associadas às leituras do cânone ocidental
projetaram-se na escritura de sua obra maior; de duas maneiras, à princípio: etnocentricamente,
com relação à visão que tivera acerca da situação que se formou em Canudos, e vingadora, após a
perda dos ideais políticos e de ter testemunhado a barbaridade que cometeu a Ŗcivilizadaŗ nação
republicana a qual dava Ŗvivasŗ menos de um decênio antes.
88
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

De tal maneira, o tradutor d`Os sertões para o alemão atesta: ŖSe o sertão é bárbaro, ele o é
mais pela ação da civilização colonialista do que pela sua ausência.ŗ (ZILLY, 2002, p. 68).

Sumariamente, foi o jovem republicano, preocupado com os rumos da civilização que parte
para a Bahia junto à Quarta Expedição - derradeira e liderada por Arthur Oscar - como
correspondente de guerra enviado pelo jornal O Estado de São Paulo. O certo é que a mão que
redigiu Os sertões publicado em 1902 não fora a mesma que cinco anos antes escrevera os artigos
ŖA nossa Vendéiaŗ .

Breve relato em analogia à Terra:

As três últimas décadas do século XIX foram marcadas por um convívio de seca e, por
conseguinte, de miséria no Nordeste do Brasil; estigmatizado desde então, ou mesmo antes, de
atrasado, improdutivo e sobre o qual o solo castigava a quem lá vivia, devido a sua aridez. Esse
fenômeno foi exaustivamente retratado por nossa literatura, de Rodolfo Teófilo e A fome (1890),
aos escritores da Geração de 30 documentaram as mazelas sofridas por ricos e pobres, todos de
certa forma vitimados pela Natureza e pelo sofrimento que essa traz.

Tomemos como observação o que Roquette Pinto diz sobre Os sertões:

Percorro toda a história literária e penso que Os sertões serão, no futuro para o Brasil, o
grande livro nacional; o que D. Quixote é para Espanha ou Os Lusíadas para Portugal; o
livro em que a raça encontra a floração das suas qualidades, o espinhal dos seus defeitos,
tudo o que em suma, é sombra ou luz na vida dos povos. (ROQUETTE PINTO, 1940, p.
136 apud SODRÉ, 1995, v. II, p. 35).

Percorramos a seguir a descrição que Euclides da Cunha fizera acerca daquela terra ignota
que um dia conhecera com a missão de informar à população urbana as afrontas de um povo dito
incivilizado. Ao fazê-la, o autor particulariza os costumes e hábitos daquela região; com a
admiração de um estrangeiro, mais ainda de um pesquisador. Leiamos:

O mais obscuro daqueles arraiais tem a sua tradição especial e sinistra. Um único, talvez, se
destaca sob outro aspecto, o de Bom Jesus da Lapa. É a Meca dos sertanejos. A sua
conformação original, ostentando-se na serra de grimpas altaneiras, que ressoam como
sinos; abrindo-se na gruta de âmbito caprichoso, semelhando a nave de uma igreja,
escassamente aclarada; tendo pendidos dos tetos grandes candelabros de estalactites;
prolongando-se em corredores cheios de velhos ossuários diluvianos... (CUNHA, 1993, p.
165).

O detalhe da escrita euclidiana revela a intimidade que o autor tem com a terra retratada, sua
cultura, costumes, tradições; tecendo ligações entre o homem e a terra. Daí, o estilo constituir-se
como fator significativo a ser pontuado na trajetória de Os sertões; à sua época, buscava-se o
desenvolvimento literário. O ideário em torno do nacionalismo era pulsante; assim rompeu esta
Ŗprosa violentaŗ , nova. Tal caráter dessa escrita evidencia-se ainda mais com relação à linguagem.
Acompanhemos a reflexão:

89
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A busca pela expressão popular, que, foi em Euclides, uma preocupação constante. Ele
sabia, reconhecia e aceitava que o povo é quem faz a língua. Inúmeras vezes colheu formas
coloquiais, nomes, expressões, guardando-as para emprego futuro, incorporando-as ao seu
vocabulário. [...] Nos grupos sociais estratificados, de que o grupo sertanejo se aproximou
tanto, a conservação atinge o idioma. [...] É de supor que Euclides tenha atendido, com uma
sensibilidade aguçada esse hábito da gente que pintou e com a qual conviveu. (SODRÉ,
1995, v.II, p. 54).

Continuamos nosso pensamento com o apoio de Gilberto Freyre, acerca das tendências
regionalistas, bem como o universalismo tangente em Os sertões:

Foi o que consegui Euclides da Cunha: traçar do sertanejo um retrato em profundidade em


que a figura do homem se integra de tal modo na paisagem que a ninguém é possível
destacar o homem assim retratado do seu meio absorventemente materno. [...] Para
Euclides da Cunha tem se voltado, da parte do estrangeiro interessado em literatura, ou nos
trópicos, ou em gentes exóticas, em geral Ŕ e não apenas no Brasil [...] por alguma coisa de
agreste ou de tapuio em sua arte e em seus motivos combinados. Por conseguinte, uma
literatura de sabor um tanto novo para o estrangeiro. [...] Em resumo: se é exato o que aqui
se diz ou se sugere, compreende-se que a obra de Euclides da Cunha pareça destinada a
missão de abrir para europeus e para outros estrangeiros caminhos à compreensão do Brasil
através da literatura brasileira. (FREYRE, 1995, v. I, p. 28, 31-32).

Uma introdução ao Homem:

Nesse contexto sertanejo é que Antônio Vicente Mendes Maciel, cearense de Quixeramobim
vive, entre uma estação de seca e a espera da chuva, com os costumes das gentes de seu tempo,
crente e fiel a um Deus provedor; não o ortodoxo, mas o que acolhe aos necessitados quase sempre
resignados.

Após alguns lendários acontecimentos envolvendo sua figura, sai a peregrinar pelo sertão,
levantando igrejas, cemitérios e pregando um evangelho cercado por premunições, e que, no
entanto, confortava aquelas almas mestiças que o seguiam. São anos difíceis os da década de 1880,
quando se houve falar do então Beato Antônio Conselheiro. Vejamos umas quadras da poesia
popular recolhidas por Sílvio Romero e cuidadosamente utilizadas por Euclides para apresentar o
Beato:

Do céu veio uma luz Quem ouvir e não aprender


Que Jesus Cristo mandou. Quem souber e não ensinar
Santo Antonio Aparecido No dia do Juízo
Dos castigos nos livrou! A sua alma penará!
(CUNHA, 1993, p.148).

A lira popular já em anos de 1879 avivava a Conselheiro e teve participação em todos os


momentos da histñria canudense, junto ao Ŗlivro vingadorŗ proporcionou que aqueles crimes
fossem registrados. Euclides volta a mencionar a trova popular, quando alude, já após a vitória

90
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

republicana, aos rústicos papéis encontrados nas casas dos conselheiristas e tidos como troféus
pelos soldados.

Ora, no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram despojos opimos
imagens mutiladas e rosários de coco, o que mais acirrava a cobiça dos vitoriosos eram as
cartas, quaisquer escritos e, principalmente os desgraciosos versos encontrados. Pobres
papéis, em que a ortografia bárbara corria parelhas com os mais ingênuos absurdos e a
escrita irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles resumiam a
psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. (CUNHA, 1993, p. 173).

O arraial do Belo Monte foi fundado sem vínculos ideológicos aparentes. Apesar disso,
passou a incomodar profundamente os senhores da situação que perdiam dia a dia mão de obra
barata para a comunidade do Ŗfanático monarquistaŗ , que dava, segundo consta nos relatos de
Euclides da Cunha, um pedaço de terra canudense para plantar, ao que toda a produção deveria ser
dividida conforme a necessidade de cada.

Eram sebastianistas, acreditavam na providência que o Santo traria. O cunho era religioso,
embora houvessem traços que enaltecessem a monarquia, como podemos verificar nos trechos dos
ABC`s Ŕ já citados Ŕ encontrados em Canudos, recolhidos por Euclides e mais tarde reunidos em
livro por José Calasans (1995). Vejamos:

Sahiu D. Pedro segundo Garantidos pela lei


Para o reyno de Lisboa Aqueles malvados estão
Acabosse a monarquia Nós temos s lei de Deus
O Brazil ficou atôa! Elles tem a lei do cão!

Bem desgraçados são elles Casamento vão fazendo


Pra fazerem a eleição Só para o povo illudir
Abatendo a lei de Deus Vão casar o povo todo
Suspendendo a lei do cão! No casamento civil!
(CUNHA, 1993, p. 154)

Continuemos seguindo a representação da poética popular acerca de nossa temática


principal:

D. Sebastião já chegou O Anti-Chisto nasceu


E traz muito regimento Para o Brazil governar
Acabando com o civil Mas ahi está o Conselheiro
E fazendo casamento Para delle nos livrar!
(idem, ibidem, p.155).

91
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Esses fatos foram deturpados pela história, ignorados pela maioria dos brasileiros e pouco
importavam ao governo. O mito formado pela lei em torno de Conselheiro e de Canudos fundou-se
a partir de injustiça e foi defendido até as últimas instâncias como verdade absoluta.

Trava-se a situação de Luta:

Antônio Conselheiro da mesma forma que somou inimigos, também conquistou aliados, ao
que muitos deles ofereciam-lhes doações para ajudar na empreita que fora construir a ŖTrñia de
taipaŗ e apñs na defesa contra às forças armadas. O terreno foi louvado em sua escolha, pois ali se
ergueria Ŗum campo santoŗ.

Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um


parêntesis; era um hiato. Era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras,
ninguém mais pecava. (CUNHA, 1993, p. 368).

Por essa razão, dá-se a primeira de muitas tiranias sofridas pelos canudenses;
acompanhemos o que nos relata Euclides da Cunha:

Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam
fornecer-lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos
representantes da autoridade daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o
recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram.
(CUNHA, 1993, p. 167).

Em outubro de 1896, a notícia que circulou fora a de que Conselheiro traria a madeira a
qualquer custo, o que serviu de estímulo para a polícia ser acionada. O confronto era iminente e
arma-se a partir daí as quatro expedições contra Canudos.

A esta altura o arraial era um fato social conhecido nacionalmente e fora do Brasil também.

A nação inteira interveio. Mas sobre as bandeiras vindas de todos os pontos, do extremo
norte e do extremo sul, do Rio Grande ao Amazonas, pairou sempre, intangível,
miraculosamente erguida pelos exegetas constitucionais, a soberania do Estado... (CUNHA,
1993, p, 180).

O narrador intencionalmente demonstra seu ponto de vista julgador, é através do documento


que construíra que intencionara vingar o povo esquecido do sertão. É o que o próprio autor revela:
ŖAquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um
crime. Denunciemo-lo.ŗ (CUNHA, 1993: 30).

92
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Os momentos finais da luta poderiam ser reproduzidos neste ensaio em sua íntegra, por
transmitir fielmente a mudança na personalidade do autor ao narrar os fatos, e mais que isso, por
pintar com as cores do horror vivido aquele cenário brutal da guerra.

Nas letras euclidianas encontramos não somente os relatos daqueles anos de finais da década
de 1890, na região Nordeste do Brasil, onde se travou uma guerra civil; deparamo-nos com
sentimentos que comovem o leitor mais distante do ocorrido no tempo e no espaço, por abranger o
sofrimento das gentes e a profanação dos valores e direitos do homem reivindicados já à época da
Revolução Francesa Ŕ Ŗe Canudos era a nossa Vendéia...ŗ - mais tarde transmitidas em carta às
nações.

Por conseguinte, voltemos ao texto:

E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de


não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e
entre eles aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara, confiante ŕ e a quem devemos
preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa História ? Caiu o arraial a 5. No
dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas.
(CUNHA, 1993, p. 392).

A tríade constituída por Euclides segue há cento e oito anos como obra que celebra o ser
nacional, apontando as falhas e as vicissitudes do povo brasileiro; onde observa-se o encontro do
Brasil do Norte com o Brasil do Sul, além do choque entre as culturas do sertão e do litoral, bem
como os confrontos que tal encontro pode gerar.

Perguntemos então: quantos Canudos a história nacional e até mundial já registrou? Quantos
já esqueceu? O que sabemos sobre Pau de Colher, Caldeirão, Pedra Bonita, Contestado? Quantos
povos tiveram seus territórios dominados, varridos do mapa, inundados pelas águas do
esquecimento por não terem subjugado-se ao poder? Pensemos nas revoluções mexicanas, cubanas,
bolivianas, nas ditaduras, nas intolerâncias religiosas; seus opressores comungam de um mesmo
sectarismo que se repete de tempos em tempos e extermina milhares de homens e mulheres no
mundo inteiro.

A guerra do fim do mundo (1981), de Vargas Llosa dá o grau de como a narrativa euclidiana
remete às maiores tragédias que homens podem cometer uns sobre os outros; por consentir
releituras e adaptações que cheguem ao resto do mundo.

Vargas Llosa refez os caminhos do peregrino e de Euclides, recolhendo elementos para sua
empreita e nos diz:

Onde era Canudos havia agora um lago artificial, e suas margens estavam coalhadas de
cartuchos e projéteis enferrujados das atrozes batalhas. (2008, p.05).

93
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Desde o aparecimento do peregrino, uma primazia deve ser dada à literatura de cordel que
em Euclides da Cunha despertara a importância de sua forma singular na representação dos fatos. É
até hoje uma das que mais reproduz versões baseadas em Os sertões, Ŗoutra face da obraŗ ,
(GUTIERREZ, 2002). Há mais de um século, Euclides buscou no artesão da palavra, elementos que
iluminaram algumas das suas concepções, que o fizeram mudar de ideia sobre a guerra, unindo o
erudito e o popular. De maneira estudada e espontânea é que o poeta parafraseia a sua maneira, as
imagens pintadas pelo autor.

Finalmente, escolhemos a referida representação para concluímos nosso trabalho;


apreciemos os versos:

Caros apreciadores No estado do Ceará


Da escrita em poesia No estado do Ceará
Quero lembrar nestes versos Região Sertão Central
Um personagem que havia Nasce Antônio Conselheiro
Que segundo meus estudos Desde sua juventude
Ficou famoso em canudos Sofrera a vicissitude
Na região da Bahia. Da situação social
(FRANÇA e RINARÉ, 2006, p.01).

Referências bibliográficas

CALASANS, José. A guerra de Canudos na poesia popular: Edição fac-similar. Salvador: UFBA:
Centro de Estudos Baianos, 1995.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. 9ª edição. São Paulo: Editora Cultrix, 1993.

FRANÇA, Antônio Queiróz de, e RINARÉ, Rouxinol do. Antonio Conselheiro e a guerra de
Canudos. 3ª edição. Fortaleza: Tupynanquin Editora, 2006.

FREYRE, Gilberto. Euclides da Cunha: Revelador da realidade brasileira. In: Obra completa: em
dois volumes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

ROQUETTE PINTO, Edgar. Ensaios brasilianos. São Paulo, 1940 apud SODRÉ, Nelson Werneck.
Revisão de Euclides da Cunha. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa: em dois volumes. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

SODRÉ, Nelson Werneck. Revisão de Euclides da Cunha. In: CUNHA, Euclides da. Obra
completa: em dois volumes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

VARGAS LLOSA, Mario.A guerra do fim do mundo. tradução Paulina Wacht e Ari Roitman.Ŕ Rio
de Janeiro: Objetiva, 2008.

94
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

XIX Jornada de Estudos Lingüísticos do Nordeste-GELNE: promovida pelo Centro de


Humanidades da UFC, [conferência] Fortaleza: 2002. GUTIÉRREZ, A. Os sertões: gênese e
apocalipse.

ZILLY, Berthold.In Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos. Org: José Leonardo do
Nascimento. Ŕ São Paulo: UNESP, 2002. p. 63-72.

95
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O STATUS DA MULHER DO SÉCULO XX NAS OBRAS: A HORA DA ESTRELA,


GRANDE SERTÃO: VEREDAS E MACUNAÍMA.
Andréia Jordania Moreira de Araujo (UFRR)1

Os estudos feministas avançaram significativamente, e ao longo da sua caminhada,


incorporaram novas teorias sobre a condição da mulher na sociedade. Desse modo, o movimento
feminista falou de sexismo, androcentrismo e patriarcalismo numa tentativa de explicar a condição
feminina na esfera social. Recentemente, o feminismo ocidental introduziu nas discussões sobre os
sexos o conceito hermenêutico de gênero. Segundo a categoria analítica de gênero, a compreensão
acerca da mulher tem que passar necessariamente pela compreensão do homem e vice-versa, uma
vez que o entendimento de um sexo não pode vir desvinculado do outro. O discurso masculino
hegemônico, que na história construiu culturas e, nessas culturas, sistemas de representação do
feminino que, por sua vez, produziram um sujeito doce e obediente, tem, na categoria gênero, seu
objeto de análise e leitura dos papéis atribuídos a homens e mulheres na sociedade.
A categoria gênero se apresenta como um dos últimos conceitos hermenêuticos introduzidos
pelas feministas ocidentais. Inicialmente, gênero era tudo aquilo que diz respeito à mulher; logo,
gênero e mulher eram equivalentes, sinônimos.
Assim sendo, a compreensão dos papéis e representações adequados a homens e mulheres
não têm tão somente na variável biológica seu fator de leitura e entendimento, posto que essa
variável não dá conta de explicar a complexa teia de relações, por vezes ambíguas e contraditórias,
vivenciadas pelos sexos na sociedade. Scott (1990, p.7) assevera que:

ŖGênero tanto é substituto para mulheres como é igualmente utilizado para sugerir que a
informação sobre o assunto Ŗmulheresŗ é necessariamente informação sobre os homens,
que um implica o estudo do outro. Esta utilização insiste sobre o fato de que o mundo das
mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado em e por este mundo. Este uso
rejeita a validade interpretativa da idéia de esferas separadas e sustenta que estudar as
mulheres de maneira isolada perpetua o mito de que uma esfera a experiência de um sexo,
tenha muito pouco, ou nada, a ver com o outro sexo. Além disso, o gênero é igualmente
utilizado para designar as relações sociais entre os sexos.ŗ

O gênero, visto nessa perspectiva, significa a organização social das diferenças sexuais, de
modo que, se o sexo pertence à esfera do biológico, o gênero encontra-se na esfera sócio-cultural,
mas, de maneira alguma, são duas categorias antagônicas e que se excluem, antes, uma implica a
outra. Dessa estreita relação entre o biológico e o cultural advém a normatização dos sexos e
determinam-se os padrões adequados a homens e mulheres em diferentes épocas e sociedades. A
invenção da masculinidade e da feminilidade não se dá por acaso, não é uma realidade fatalística,
mas resultado de um discurso sexista que é gestado na história, produzido pela cultura, socialmente
aceito e incorporado aos hábitos, costumes e comportamentos de um povo. Desse modo, os padrões

1
Jordania Moreira de Araujo é acadêmica de Letras/Inglês, pela Universidade Federal de Roraima Ŕ UFRR e bolsista
do PET Ŕ Letras. E-mail: angel.deia.bri@hotmail.com

96
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

de feminilidade e masculinidade pré-estabelecidos socialmente para homens e mulheres legitimam


as relações de poder entre os sexos, hierarquizam suas posições sociais e criam um sistema de
dominação baseado em valores, crenças, estereótipos e discursos sócioculturalmente construídos.
Nesse jogo simbólico e discursivo, os papéis sexuais são constituídos, cristalizados socialmente e
aprendidos por homens e mulheres que incorporam ao seu modo de ser no mundo os padrões
peculiares a cada sexo. Ser homem e mulher implica numa contínua construção, de modo que a
mulher não nasce mulher, mas torna-se mulher no dizer de Beauvoir (1967), nem o homem nasce
homem, ele torna-se homem.
A linguagem mantém uma relação estreita com as representações de gênero. Essa relação é
por vezes opaca, sinuosa e nem sempre percebida de maneira imediata, porque os discursos que a
pontilham assumem um caráter não transparente que dificulta, por vezes, relacionar práticas
discursivas excludentes com as desigualdades de gênero. Desse modo, a carga discriminatória de
muitas expressões, clichês e ditados populares passam despercebidos sem que identifiquemos
nesses elementos traços de excludência e marginalização da categoria sexual tida como inferior e
dominada. O pensamento feminista diz que o falo só tem significado quando referido ao pênis.
Assim sendo, pode-se afirmar que aquele que se encontra no centro do discurso e detém o poder, ou
seja, o falo, é o homem. Para Scott (1998, p.115), Ŗo discurso é um instrumento de ordenação do
mundoŗ. Mas esse mundo que o discurso falocêntrico que atravessa a sociedade organiza é um
discurso todo voltado contra as categorias sexuais desprivilegiadas, oprimidas.
O romance A hora da estrela, escrito por Clarice Lispector em 1977, representa uma
inovação estilística ao deslocar-se do universo íntimo para a realidade objetiva e tocar, desse modo,
questões sociais de maneira mais explícita e declarada. O próprio narrador-personagem, Rodrigo
S.M., afirma que se trata de história exterior e explícita (Lispector, 1998, p.33). A personagem
protagonista de cuja história Rodrigo S.M. se ocupará chama-se Macabéa, mas atende por Maca.
Nordestina oriunda do estado de Alagoas muda-se para o Rio de Janeiro, onde alimenta o sonho de
ser estrela de cinema. No romance de Clarice Lispector, Macabéa e Olímpico são representantes dos
papéis atribuídos ao longo da história a homens e mulheres e que, por sua vez, têm na baliza de
verniz sócio-cultural os parâmetros bem delimitados da sua construção. Durante a narrativa,
encontramos uma mulher e um homem que assumem o modelo socialmente proposto e encarnam
um modo de ser e viver consoante à lógica e mentalidade que circulava em meados do século XX.
Macabéa é mulher, nordestina, medíocre, solitária, submissa e virgem. Olímpico é homem,
nordestino (logo, Ŗcabra da pesteŗ ), esperto, ambicioso e dominador. Essas características não são
dadas por acaso, mas obedecem a toda uma lógica sócio-cultural-discursiva que tem origem no chão
social em que pisam os personagens. Na sua consciência adormecida, Macabéa é uma desconhecida
de si mesma. Ignorante da sua identidade, ela Ŗnão se conhece senão de ir vivendo à toaŗ (Lispector,
1998, p.35). Aprendeu a ser assim, como é. Nunca se perguntou: quem sou eu?, e, se um dia o
fizesse, Ŗcairia estatelada e em cheio no chãoŗ (Lispector, 1998, p.36). Os tijolos que compõem seu
edifício pessoal e sua feminilidade não foi ela quem os colocou, antes, foram colocados pelas
instituições sociais que a gestaram, conceberam e ensinaram a ser como é,
97
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗincompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava


conhecimento da espécie de ausência que tinha de si mesma. Se fosse criatura que se
exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim.ŗ( Lispector, 1998, p.45)

Assim sendo, Macabéa é talhada para ser ingênua, inocente, virgem e obediente. Seu mérito
está em baixar a cabeça e obedecer resolutamente. Ela torna-se mulher na medida em que se
enquadra, paulatinamente, nos padrões sociais pré-determinados para aquelas, que como ela são
mulheres. Age de modo automático, mecânico, irracional, ao ponto de Ŗesse não-saber pode parecer
ruim, mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o
rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo‖ (Lispector, 1998, p.50).
Macabéa, embora Ŗo fato de vir a ser uma mulher não pertencesse à sua vocação‖
(Lispector, 1998, p.49), aprendia, pouco a pouco, a sê-la. Ela vê desfilar nas páginas da sua vida o
discurso que a sociedade androcêntrica produz sobre a mulher e introjeta a imagem construída por
seus dominadores. A normatização e o controle social exercido sobre sua feminilidade faz com que
se revista dos símbolos socioculturais que identificam o feminino na história. Sua satisfação está em
reproduzir cotidianamente o papel imposto pelo masculino e concretizar, na sua existência rala, o
projeto identitário silenciosamente criado pela cultura.
As práticas discursivas que circulam socialmente e constroem subjetividades não estão
desvinculadas das relações intrínsecas e extrínsecas entre homens e mulheres na esfera pública e
privada. Antes, esses discursos nascem dessas relações e a elas retornam sob a forma de normas e
papéis que são incorporados pelos sujeitos e reproduzidos socialmente.
Já na construção de Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa apropria-se de alguns
elementos como o fato do sertão impor regras próprias de conduta àqueles que nele se propõem
viver, e os valores preservados nele, a constituição familiar, a distribuição geográfica das fazendas,
a vegetação e o relevo, a economia pecuária, bem como o mandonismo dos latifundiários, e os
recria construindo assim um sertão ficcional que possui um parentesco forte com o sertão real. Por
isso, é importante colocarmos em discussão os valores preservados no sertão ficcional de
Guimarães Rosa para melhor compreendermos a atuação dos grupos femininos.
Nesse sistema, é dada ênfase à constituição da família, pois ela é símbolo da estabilidade e
da adoção de padrões socialmente transmitidos. A presença da mulher é discreta, sempre
aparecendo no conjunto de cenas domésticas, ora como um ser ornamental ŕ quando está sob a
tutela do fazendeiro (como esposa ou filha) ŕ ora como serviçal, havendo uma camuflagem de seu
papel histórico. As primeiras mantêm-se puras e, através do casamento, passam à tutela do marido;
há uma mentalidade de continência e castidade para essas mulheres, para quem certas noções como
virgindade, casamento e monogamia são condutas relevantes. As segundasŕ solteiras ou casadas
ŕ ocupam-se da economia doméstica; uma vez desposadas pelos serviçais desses fazendeiros,
permanecem, marido e mulher, servindo ao mesmo patrão.

98
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Existe, portanto, uma mulher submissa sexual e materialmente, que compõe a imagem da
mulher de elite em oposição à mulher da classe subalterna que pode escolher seu parceiro e
conseguir seu sustento com seu próprio trabalho.
Há um discurso masculino sobre o uso dos corpos femininos, expresso através do elogio, do
louvor, para melhor submetê-la. É o que ocorre na fazenda de seu Orneias, quando Riobaldo
demonstra prazer em contemplar suas netas e declara:
ŖA mocinha essa de saia preta e blusinha branca, um lenço vermelho na cabeça ŕ que para
mim é a forma mais assentante de uma mulher se trajar. (...) A mocinha, eu de repente
queria, eu gostava de dar a ela muito forte proteção. (...)`Menina, tu há de ter noivo correto,
bem apessoado e trabalhador, quando for hora, conforme tu merece e eu rendo praça, que
votos faço...ŗ (Rosa, 2006, p.425-427)

Um sistema normativo que elege um modelo de mulher ideal, contida e obediente: aquela
que se dedica unicamente à família, que terá uma casa que governar, marido e filhos para educar,
esvaziando-a do uso prazeroso do corpo, estando no casamento a única forma de sexo lícito.
Há, entretanto, algumas que fogem da esfera da vida privada, desse quadro de mulheres
silenciosas e adquirem poder político assumindo a posição de administradoras do latifúndio, como é
o caso de Dona Adelaide no Campo-Redondo, e dona Próspera Blaziana no Vau-Vau. Elas
ultrapassam os limites da vida doméstica. Há ainda moças, como Rosa'uarda,filhas de pequenos
comerciantes, que não estão inseridas naquela esfera pudica em que as filhas dos fazendeiros estão
enredadas, nem se consentem à prática do amor livre como as prostitutas. Todavia, elas também se
colocam na esteira das mulheres que encontram no casamento o objetivo de sua existência.
Apesar de todo o esforço para a manutenção das regras impostas pela sociedade patriarcal e
religiosa, existe uma velada cumplicidade com os concubinatos, com um meretrício ordenado, em
função dos celibatários. É o caso de Selorico Mendes, padrinho e suposto pai de Riobaldo, que vive
com uma mulata para quem deixa uma de suas fazendas após falecer. Esse quadro de mancebia
existe entre os fazendeiros e entre os jagunços, como conta Umbelino a Riobaldo: "Já tive uma
mulher amigável só minha, na Rua-do-Alecrim, em São Romão, e outra, mais, na Rua- do-fogo...ŗ
(Id. Ibid., p.218)
O adultério é uma relação alternativa, que não é resultado da precariedade das condições
materiais de vida, pois não é um ofício; antes faz parte de um desdobramento de solidariedade ante
a necessidade do sexo e as vicissitudes da vida sertaneja, revelando os tênues laços do matrimônio
que tenta sobreviver entre o aceitar os impulsos naturais e o medo da transgressão. Nos arredores
das fazendas vivem ainda mulheres que se afastam da esfera do casamento e da sexualidade,
dedicando-se às artes de adivinhações ou às rezas, como Izina Calanga e Maria Leôncia.

Existe uma distância que separa os jagunços das "moças de família", como podemos
observar no episódio ocorrido na Fazenda Santa Catarina, em que Riobaldo se acha indigno de
Otacília, por pertencer ao universo da jagunçagem. Os contornos da ordem que predominam no
universo jagunço são traçados segundo leis bem diversas do mundo urbano ou dos arredores das
99
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

fazendas. O grupo dos jagunços ŕ população móvel ŕ mantém-se mais aberto às mudanças
sociais. A jagunçagem, em Grande Sertão: Veredas, apresenta-se como uma organização dotada de
leis próprias interiores, em oposição às leis do estado, exteriores. Essa lei jagunça é também uma
forma de poder, embora longe do padrão dele oferecido pelo estado. Nesse espaço, o homem vem e
vai, deixando apenas rastros e filhos, enquanto a mulher permanece sempre à espreita daquele que
surge.

Existe uma subversão, por parte dos jagunços, das leis que regem o sistema familiar dos
fazendeiros e dos trabalhadores, seguindo-se na jagunçagem outro esquema de condutas que, aos
olhos da sociedade patriarcal brasileira, são consideradas irregulares e/ou incomuns. No sertão dos
jagunços, a convivência conjugal é destituída, descaracterizada, no que diz respeito à sexualidade,
pois esta não se realiza somente no seio familiar. A comunidade jagunça aceita e instiga a
sexualização da mulher, todos gozam de uma absoluta licença sexual.

A relação de Riobaldo para com Diadorim é de proteção, na fase adulta, já que Diadorim
passou tranqüilidade para Riobaldo na travessia do rio, nos tempos de criança. Diadorim personifica
um homem com modos femininos, apesar de ser extremamente corajoso, como se comprova no seu
primeiro encontro com Riobaldo, como já foi dito, ao atravessar o rio:
Quieto, composto, confronte, o menino me via. ŕ ŖCarece de ter coragem...ŗ ŕ ele me
disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Doí de responder: ŕ ŖEu não sei nadar...ŗ O
menino sorriu bonito. Afiançou: ŕ ŖEu também não sei.ŗ Rosa, 2006, p.122)

Os próprios companheiros de farda zombam de Diadorim, pois este desenvolve muito bem
tarefas tipicamente femininas, como lavar roupas, cuidar dos cabelos, cuidar de crianças, admirar a
natureza: ŖEle tinha lavado minha roupa: duas camisas e um paletñ e uma calça, e outra camisa
nova de bulgariana. Às vezes eu lavava minha roupa, nossa; mas quase mais quem fazia isso era
Diadorim.ŗ ( Id. Ibid., p.51) Diadorim possui traços finos e delicados, cintura bem feita. A busca
pelo diferente, pelo que não possui, leva o interdito a procurar o que lhe falta, Diadorim possui a
delicadeza, e incorpora modos femininos. Riobaldo assim exerce as funções masculinas, ou seja, ele
pode proteger e cuidar do seu amado.
Riobaldo e Diadorim admiram os pássaros como um casal de namorados, em que o macho,
ŖRiobaldoŗ , é ensinado a admirar as belezas e delicadezas da vida pela fêmea, ŖDiadorimŗ :
Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de
enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação.
Aquilo era para pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: ŕ ŖÉ formoso
próprio...ŗ ŕ ele me ensinou. (Id. Ibid., p.159)

Segundo Octavio Paz (2001, p.97), Ŗnão há amor sem erotismo como não há erotismo sem
sexualidade.ŗ Podemos afirmar que Riobaldo amou verdadeiramente Diadorim, pois esse desejou
seu corpo, não deixando de relatar o amor e o desejo que possuía, durante toda a narrativa: ŖEu

100
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

tinha súbitas outras minhas vontades, de passar devagar a mão na pele branca do corpo de
Diadorim, que era um escondido.ŗ ( Id. Ibid., p.330).
Durante toda a narrativa, é possível perceber o maniqueísmo em que vive o narrador, se por
um lado ele ama realmente Diadorim, por outro esse amor não pode ser realizado, já que se trata de
corpos iguais. O bem e o mal se personificam em Diadorim, um ser causador de amor e de desejos
proibidos. O apelo carnal existente entre Riobaldo e Diadorim perpassa toda a obra. O narrador
deixa clara a passividade de Diadorim perante as investidas amorosas de Riobaldo, apesar de
algumas vezes o narrador tentar fugir, relutando perante tal desejo, pois ele sabe que a sociedade de
sua época reprime o amor de um homem para com outro.

Enquanto Macunaíma, obra de Mario de Andrade, é constituído pelo encontro de lendas


indígenas (sobretudo as amazônicas) e da vida brasileira cotidiana, da mistura de lendas e tradições
populares. O espaço e o tempo são arbitrários, o fantástico assume um ar de coisa corriqueira e o
lirismo da mitologia se funde a cada passo com a piada, a brincadeira, a malandragem nacional, que
Macunaíma encarna (é o Ŗherñi sem nenhum caráterŗ ).

Macunaíma é um personagem enquanto marginal, anti-herói, fora-da-lei, na medida em que


se contrapõe a uma sociedade moderna, organizada em um sistema racional, frio e tecnológico.
Assim, o tempo é totalmente subvertido na narrativa. O herói do presente entra em contato com
figuras do passado, estabelecendo-se um curioso Ŗdiálogo com os mortosŗ : Macunaíma fala com
João Ramalho (séc. XVI), com os holandeses (séc. XVII), com Hércules Florence (séc. XIX) e com
Delmiro Gouveia.

Macunaíma é individualista. Faz o que deseja e o que gosta sem preocupações sociais, não
tem regras quanto à sexualidade, até as piadinhas indecorosas bem próprias do gosto brasileiro
Macunaíma reúne. É o caso daquelas "três adivinhas" que a filha da caapora Ceiuci faz a
Macunaíma, tentando salvá-lo da gula da mãe. (Andrade, 1994, p.133-134)

No que diz respeito ao comportamento feminino, apesar desta obra ser muito diferente das
demais, em relação à forma como foi escrita, rapsódia, e ao contexto em que se passa, a visão da
mulher não muda, ainda esta é tida como objeto de satisfação pelo personagem principal.

Quando se fala da sexualidade exacerbada de Macunaíma, há uma grande tendência em


priorizar as descrições de sexo dos primeiros capítulos, ignorando as das relações que o herói
mantém durante e depois de sua permanência na cidade. Contudo, para compreender o
comportamento luxurioso do protagonista com as cunhadas, a rainha das icamiabas e demais
personagens,

ŖDeve-se Ŗpensarŗ Macunaíma, não com a razão ocidental, branca, Cristã, mas como um
herñi Ŗsem caráterŗ, isto é, Ŗdescaracterizadoŗ; uma criatura para a qual valores socialmente
aceitos, numa e noutra cultura (já que se trata de um herói em constante trânsito
intercultural), não fazem o menor sentido, desde a mais tenra idade. O mítico, em
Macunaíma, não decorre apenas da citação do nome correlato a Makunaima (a divindade
101
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

indígena amazônida), mas de suas atitudes absolutamente estranhas à qualquer cultura


humana. Macunaíma age como os mitos, sem necessitar de uma coerência que justifique
seus atos, porque as divindades míticas, especialmente as perpetuadas pelas narrativas
tradicionais ágrafas, não podem ser questionadas pela razão humana.ŗ (Mibielli, 2009, p.3)

No início da rapsñdia, ao Ŗbrincarŗ com Sofará e Iriqui, o herñi demonstra estar alheio ao
conceito de fidelidade. Estar com as cunhadas é para o menino Macunaíma apenas uma grande
diversão. A traição e a libertinagem não podem ser entendidas como a postura de um homem
primitivo, uma vez que, nas mesmas circunstâncias, o comportamento de Jiguê é diametralmente
oposto. Na Ŗforça do homemŗ (Andrade, 1994, p.7), Jiguê não sñ é fiel nos relacionamentos com as
esposas, mas também no relacionamento com os irmãos. O mesmo se aplica a Maanape, Ŗjá
velhinhoŗ (Op. Cit.). A fidelidade aos irmãos, talvez, seja a característica mais latente nesta
personagem, que não chega a se envolver com mulheres na história.

Mesmo que desenvolva corpo de homem adulto por encantamento, as atitudes de


Macunaíma quanto a sexo são ímpares e não-lineares. A personagem passa por um processo de
amadurecimento durante a narrativa, principalmente quando chega à cidade. Antes ainda, quando se
une a Ci, ele já dá sinais de uma mudança. Adota comportamento semelhante ao de Jiguê enquanto
vive com Ci um tórrido, contudo rápido relacionamento. Ele se torna imperador do mato-virgem e
pai. Não deixa de ser preguiçoso, mas essas duas mudanças lhe dão autoconfiança para as
intempéries seguintes. Abandonado pela icamiabas após a morte do bebê, Macunaíma se torna
nostálgico, melancólico. Mas empreende a viagem para São Paulo, onde Ŗbrincaŗ com as Ŗcunhãsŗ
da cidade sem compromisso, como Ŗbrincavaŗ com as da tribo.

Na cidade, contudo, Macunaíma tem que lidar com uma nova situação: pagar para Ŗbrincarŗ .
O mercado sexual parece não incomodá-lo a princípio, mas sugere uma questão paradoxal na
narrativa. Anteriormente, além de prazer para os desejos carnais, o herói buscava no sexo uma
forma de dominação. No relacionamento com Ci, por exemplo, fazer sexo era uma forma de exercer
poder sobre ela, apesar de seu comportamento peculiar em relação às demais personagens femininas
já mencionadas. Ci, não conhece o papel destinado à mulher pela sociedade, digamos, civilizada, no
que diz respeito à sexualidade, pois Ci sempre que queria Ŗbrincarŗ tomava a iniciativa utilizando-
se de métodos de sedução pouco convencionais se comparados aos usados por mulheres da cidade.

Mesmo que sirva para reforçar a idéia de que para ele, apartado da amada, há uma distinção
entre sexo e amor, o pagamento das prostitutas paulistanas sugere a fácil adaptação do herói ao
sistema.

Macunaíma envolve-se também com a esposa de Jiguê na cidade, Suzi. Mantém com ela
relacionamento semelhante ao vivido com Sofará e Iriqui. Percebe-se não só o interesse do herói
pelas três, mas o caráter dissimulado de todas nas estratégias utilizadas para camuflar o adultério.

102
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Mesmo que se adapte rapidamente a situação e formule uma idéia a respeito da dominação
dos homens pela Máquina ou pelas mulheres, ao longo da narrativa, a Ŗinteligência do herñiŗ fica
cada vez mais perturbada. Macunaíma estabelece relações semelhantes com as Ŗcunhãsŗ e com a
Máquina.

Retomando ao objetivo inicial deste trabalho, que foi o de observar em que medida houve
mudança no comportamento dos personagens centrais das obras analisadas, constatamos que, na
realidade, não há mudança nenhuma com relação às atitudes adotadas pelas personagens, ainda que
as mesmas estejam inseridas em contextos histórico-sociais distintos.

Levando em consideração as similaridades e as divergências entre as protagonistas,


concluímos que as mesmas contrapõem os perfis femininos da época de produção das obras.
Trata-se, portanto do mesmo tipo de comportamento, apesar das personagens em
questão viverem em épocas distintas, nas quais os costumes e a situação da mulher na sociedade
eram diferentes. Tal fato comprova nossa hipótese de atemporalidade e pessoalidade em atitudes
que envolvem o universo feminino.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário. Macunaíma. 2ª ed. São Paulo: Ed. Ática, 1994.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 4ªEd. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1970.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência da vida. 2ª Ed. São Paulo: Difusão Européia
do Livro, 1967.

BRAGA, Marilandes Ribeiro. Repressão Sexual. Sinomar Calmona: Colunismo Social. Disponível
em:< http://www.sinomar.com.br/cs_180405.asp>.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela.1ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MIBIELLI, R. Mito sem caráter ou Herói da Identidade Amazônica?- Texto apostilado para
Ensino de Literatura Brasileira, Boa Vista Ŕ UFRR, 2009.

PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. 4º ed. São Paulo: Siciliano, 2001.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

SCHELSKY, Helmut. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Educação e realidade, Porto
Alegre, edição especial, 1990.

____________. Entrevista com Joan Wallach Scott. Revista Estudos Feministas, n. 1, 1998.

103
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

STUDART, Heloneida. Mulher objeto de cama e mesa. 17ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1974.

SUPLICY, Marta. Condição da mulher. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

104
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O FANTÁSTICO EM TELECO, O COELHINHO DE MURILO RUBIÃO

Ariana Barreto do Nascimento1 (UFAM)

Resumo: Este trabalho propõe-se demonstrar determinadas facetas do Realismo Fantástico na


literatura brasileira, permitindo aberturas para o Maravilhoso. Esta demonstração será realizada no
conto Teleco, o Coelhinho de Murilo Rubião, e, para chegar a isto, tem-se que percorrer o
fascinante histórico do Fantástico. O conto Teleco,o Coelhinho se apresenta com uma narrativa
literária que oscila entre o verossímil e o inverossímil, sem interrupção para questionamento por
parte do narrador ou das personagens envolvidas. A fixação do leitor no texto, do início ao fim,
objetivando saber o desfecho da intriga e a sua hesitação são, para Tzvetan Todorov, algumas das
principais condições do Fantástico e abre novas perspectivas para o objeto literário.

Palavras-chave: fantástico. maravilhoso.verossímil.inverossímil.

Introdução

Ao analisar o conto de Murilo Rubião Teleco,o Coelhinho,deparamo-nos com uma narrativa


literária que oscila entre o verossímil e o inverossímil,sem interrupção para questionamento por
parte do narrador ou das personagens envolvidas.

Com o presente trabalho,propomo-nos demonstrar determinadas facetas do Fantástico na


literatura,permitindo-nos aberturas para o Maravilhoso.

Esta demonstração será realizada em Teleco,o Coelhinho,embora,para chegarmos a


isto,tenhamos que percorrer o fascinante histórico do Realismo Fantástico.

Esta escola surgiu no fim do século XVII,com Jacques Cazzote,e constitui uma forma de
romper o sistema preestabelecido tanto no interior da vida social como da própria narrativa.

A fixação do leitor no texto,do início ao fim,objetivando saber o desfecho da intriga,sua


hesitação que, para Tzvetan Todorov ,consiste em uma das principais condições do Fantástico ,abre-
nos novas perspectivas no tratamento do objeto literário.

Os significados de Realismo Fantástico e Maravilhoso,são análogos pela presença do


sobrenatural, mas com diferenças marcantes.Em seu livro Introdução à Literatura
Fantástica,Todorov apresenta tais diferenças nitidamente a fim de que haja completa assimilação
das mesmas.

O Realismo Maravilhoso,segundo ele,aceita o sobrenatural com normalidade,sem


estranhamento das personagens como se fosse parte do cotidiano,entrelaçado com a realidade.As

1
Acadêmica do 8º período do curso de Letras Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas.
E-mail:ariana.copac@hotmail.com
105
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

metamorfoses,por exemplo,ocorrem em um clima de total aceitação,em um mundo de


transcendência.Não há conflito entre o real e o irreal e,conforme os acontecimentos,os seres
sobrenaturais não são questionados dentro da narrativa,também o leitor os aceita porque aceita a
intriga ficcional e sua conjecturas.

O Realismo Fantástico possui,por sua vez,um discurso figurado,no qual o narrador cria uma
realidade cheia de símbolos oníricos e míticos com o objetivo de debater problemas tipicamente
humanos,seja existencial,social,político e até econômico.

O Fantástico é a incerteza,a hesitação do leitor diante do acontecimento narrado;assim que


este opta por uma ou outra explicação para o sobrenatural,entramos no Maravilhoso ou no
Estranho.

Existe,portanto,um leitor implícito que se identifica diretamente com a personagem e que


está evoluindo no texto juntamente com elas.

O Fantástico é a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis


naturais,diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural.
(TODOROV,Tzvetan.As estruturas narrativas.p148)

Os temas abordados são antropocêntricos- o Diabo laicizado,os sonhos que invadem a


realidade,a volta de mortos,anjos,demônios e outros.

A metamorfose também faz parte dos temas abordados no Fantástico e aparece como
castigo divino ou como desejo de ser humano.Este último pode ser observado em Teleco,O
Coelhinho,de Murilo Rubião ,e em outras obras como Metamorfose,de Kafka.

Essas definições,segundo Selma Calasans Rodrigues,em O Fantástico,são limitadoras.Para


ela,quem melhor define o Fantástico é Tomachevski,em Temática:

ŖNo verdadeiro fantástico,guarda-se sempre a possibilidade exterior formal de uma


explicação simples dos fenômenos,mas ao mesmo tempo essa explicação é completamente
privada de probabilidade interna.Todos os detalhes particulares devem ter um caráter
cotidiano,mas consideradas em seu conjunto eles devem indicar outro tipo de
causalidade.ŗ( TOMACHEVSKI,Thémastique.In:Theorie de La littérature;textes das
formalistes russes presentes par T.Todorov.Paris,Sewil,1965.p289.)

Murilo Rubião é considerado precursor do Fantástico no Brasil.O escritor,através dos seus


textos,faz com que os acontecimentos sobrenaturais sejam aceitos pelo leitor como se fossem
corriqueiros. Segundo ele,a literatura é a transformação da realidade e cabe ao escritor transfigurar o
real.

Nos contos dele, Ŗo elemento extraordinário não se limita apenas a uma experiência de
leitura prazerosa para efeitos de distração do leitor, mas assume uma função eminentemente críticaŗ
106
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

(SCHWARTZ, 1982). Rubião faz uso do sobrenatural para questionar problemas da nossa
realidade social.

Admitiu ter sua obra influenciada por Machado de Assis,Mário de Andrade e pela
Bíblia.Sua temática literária tem como base a religiosidade apreendida em sua infância ,negando
qualquer influência kafkiana em sua obra e apontando o Velho Testamento e a Mitologia Grega
como fontes geradoras do sobrenatural em sua obra.

ŖA Metamorfose e Teleco seriam reinvenções do mito de Proteu,pastor do rebanho


marinho de Netuno,que por detestar predizer o futuro,dom que lhe fora
concedido,transforma-se em animais para não o fazerŗ( RUBIÃO,1975,p3)

As metamorfoses sempre aparecem na obra de Murilo.Segundo os críticos,correspondem à


insatisfação do autor em relação ao objeto literário.

Seu primeiro livro, O Ex-Mágico,foi lançado em 1947,porém,nunca alcançou grandes


marcas de vendas,talvez pelo desconhecimento da riqueza que seus contos trazem embutidos de
críticas sociais e humanas.

O fantástico em teleco, o coelhinho de Murilo Rubião

Em Teleco,o Coelhinho,um dos contos da obra O Pirotécnico Zacarias,podemos observar a


narrativa fantástica e toda sua magia.

Wladimir Propp admite 31 ações constantes dos contos maravilhosos de origem popular em
A Morfologia do Conto(1978),a que ele denomina funções.É sob a luz dessas funções que
partiremos para a identificação de cinco esferas de ações:

1.A aspiração:Teleco quer se tornar homem;

O desejo do coelho em tronar-se homem se inicia desde o momento que este pede ao
narrador-personagem um cigarro,apresentando características tipicamente humanas,além de falar,o
animal fuma e quer contemplar o mar como qualquer pessoa normal:

ŖO importuno pedinte insistia:

- Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro?... - Está bem, moço.Não se zangue. E, por favor,
saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar.ŗ( RUBIAO,1981,p.21)

2.A viagem:Teleco passa a morar na casa do narrador-personagem;

O narrador e Teleco passam a morar juntos,como colegas de quarto.Os dois fazem


companhia um ao outro e,Teleco,faz amizade e inimizade com os vizinhos do narrador.
107
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ŖChamava-se Teleco.Depois de uma convivência maior, descobri que a mania de


metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar ao próximo.
Gostava de ser gentil com crianças e velhos, divertindo-os com hábeis malabarismos
ou prestando-lhes ajuda. O mesmo cavalo que, pela manhã, galopava com a gurizada,
à tardinha, em lento caminhar, conduzia anciãos ou inválidos às suas casas.ŗ
(RUBIAO,1981,p.22)

3.Obstáculos ou desafios:O coelhinho metamorfoseia-se em outros bichos,quer ser


visível.Há mudanças de comportamento do Teleco e do homem.Este se torna o obstáculo para o
amigo se tornar humano.

ŖO primeiro atrito grave que tive com Teleco ocorreu com um ano apñs nos
conhecermos.(...) De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam-se
uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos
se escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário.(...) Mirei com desprezo aquele
bicho mesquinho, de pêlos ralos, a denunciar subserviência e torpeza.ŗ
(RUBIAO,1981,p.22-3)

4.Mediação auxiliar:Teleco quer ser chamado de Barbosa, apaixona-se por uma


mulher,Teresa.Nesse ponto,a narrativa se desvia para a frustração,o canguru causa nojo e não existe
chance de ser reconhecido como homem pelo narrador-personagem.

ŖBarbosa tinha hábitos horríveis. Amiúde cuspia no chão e raramente tomava banho,
não obstante a extrema vaidade que o impelia a ficar horas e horas diante do espelho.
Utilizava-se do meu aparelho de barbear, de minha escova de dentes e pouco serviu
comprar-lhe esses objetos, pois continuou a usar os meus e os dele. Se me queixava
do abuso, desculpava-se, alegando distração.ŗ (RUBIAO,1981,p.24)

5.Conquista do objetivo:Teleco,após a morte,consegue finalmente alcançar seu objetivo Ŕ


tornar-se humano.

ŖNa última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela
longa vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se
transformara no meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem
dentes. Morta.ŗ( RUBIAO,1981,p.26)

O conto Teleco,o Coelhinho põe-nos em contato com o estranho logo no primeiro momento
com a interpelação de Teleco pedindo um cigarro,como já foi citado.

Estranha-se,também,o narrador-personagem não se perturbar com um coelho falante.Longe


disto,passa a conviver com ele.

O foco narrativo em 1ª.pessoa ,conduz o leitor ao clima de hesitação próprio do


gênero.Hesita-se:os fatos acontecem realmente ou o narrador está delirando.

É incoerente.Teleco tem características humanas.Nesta hesitação deparamo-nos com as


metamorfoses.Teleco além de coelho,fala,sente e transforma-se.

108
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ŖDepois de uma convivência maior, descobri que a mania de metamorfosear-se em


Em termos outros bichos era nele simples desejo de agradar ao prñximo.ŗ
(RUBIAO,1981,p.22)
fantásticos,a
metamorfose pode
ser analisada como
castigo divino ou questionamento humano.No conto de Rubião,percebe-se a busca de identidade
através das metamorfoses.

Teleco aspira ser um homem e como tentativa de alcançar seu objetivo transforma-se em
canguru e procura uma companheira.

A amizade entre Teleco e o narrador ,então,desestabiliza-se.Este o repudia,sente asco não do


amigo em si ,mas da atitude do coelho querer se tornar humano.

O leitor reage da mesma forma diante das atitudes de Teleco descritas.Como o narrador,não
aceitamos um canguru,acreditando ser homem acompanhado de uma mulher.A mulher,Teresa
confirma a hipótese de Teleco-Barbosa ser homem.

Ŗ- Ele se chama Barbosa e é um homem.ŗ (RUBIAO,1981,p.24)

O narrador,então,expulsa os dois de sua casa.Como se expulsa algo desagradável da


.”(RUBIAO,1981,p.26)
mente,esquecendo tal acontecimento.

ŖIndignado, separei-os. Agarrei o canguru pela gola e, sacudindo-o com violência,


apontava-lhe o espelho da sala:

- É ou não é um animal?

- Não, sou um homem! - E soluçava, esperneando, transido de medo pela fúria que via nos
meus olhos.(...)

- Eu me decidira, porém. Joguei Barbosa no chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida,


enxotei-os.ŗ( RUBIAO,1981,p.25)

O narrador-personagem volta à sua rotina.O tempo que Teleco passou fora não é
preciso,apenas é dito que Ŗuma noiteŗ o coelho volta metamorfoseado de cachorro.

ŖEstava, uma noite, precisamente colando exemplares raros recebidos na véspera,


quando saltou, janela adentro, um cachorro. Refeito do susto, fiz menção de correr o
animal. Todavia, não cheguei a enxotá-lo.(...) - Tereza … - sem que concluísse a frase,
adquiriu as formas de um pavãoŗ (RUBIAO,1981,p.26)

109
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Teleco não consegue conter suas metamorfoses.Por fim,atinge a forma humana,contudo não
poderá vivenciar este momento tão esperado.

Conclusão

Podemos observar que há uma aceitação natural,sem questionamentos nem por parte do
narrador nem por Teresa nem pelo leitor implícito.Voltamos ao conto de fadas,ao ŖEra uma vezŗ e
aceitamos os fatos narrados como as personagens envolvidas o aceitam.

A obra acima analisada é exemplo da união entre o real e o sobrenatural,em que podemos
ver novas dimensões da realidade e nos levam à transfiguração alegórica do real.

Ultrapassando os limites que separam a realidade da fantasia,surge a literatura


fantástica.Imagens oníricas são reveladas em histñrias infantis,nos contos de ŖEra uma vezŗ através
da princesa que acordou com um beijo de um príncipe depois de ser envenenada,do príncipe que
virava sapo ou da menina que foi engolida por um lobo e depois liberta por um caçador.

Tais histórias são aceitas até hoje no universo infantil,mas, na idade adulta, fica difícil
convencer-se de tais fatos.Murilo Rubião reinventa o ŖEra uma vezŗ no Brasil ,através de seus
contos, ele entrelaça o leitor,os personagens e a intriga de maneira magistral.

Penetrar em sua obra permite conhecer novas dimensões da realidade e questionar o que seja
ela de fato.O mundo sobrenatural, fantástico,maravilhoso.

Todos nos levam a transfiguração do real.

Referências bibliográficas

CHIAMPI,Irlemar.O Realismo maravilhoso.São Paulo,Perspectiva,1980.

PROPP,Wladimir. A Morfologia do Conto Maravilhoso.São Paulo,Forense Universitária,1978.

RODRIGUES,Selma Calasans.O Fantástico.São Paulo,Ática,1988.

RUBIÃO,Murilo.O pirotécnico Zacarias.São Paulo,Ática,1981.

SCHWARTZ,Jorge.Murilo Rubião :Literatura Comentada. São Paulo, Abril Educação, 1982.

110
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

TODOROV,Tzvetan.Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara C Castello.São

Paulo:Perspectiva,1975.

---------As estruturas narrativas.São Paulo:Perspectiva,2003.

111
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

RELAÇÃO DA HISTÓRIA COM A LITERATURA EM AS MINAS DE PRATA


Arlene Fernandes Vasconcelos (UFC)

Os leitores dos grandes clássicos de Homero, Ilíada e Odisseia, penetram em um mundo de


unidade substancial mítica, cuja estrutura formal mescla poesia e história. São, na verdade, obras de
fundamental importância em relação ao registro do trajeto histórico dos valores éticos, políticos e
sociais da humanidade. Essa herança foi passada para o romance, que Lukács afirma ser Ŗa forma
da virilidade madura, em contraposição à puerilidade normativa da epopeiaŗ (LUKÁCS, 2007,
p.71).
Dando um salto para o romance histórico, consequência natural, no mundo moderno, da
epopeia (LUKÁCS, 2007, p.71), encontramos, talvez pela aproximação existente entre as formas
discursivas, o dado histórico mesclado ao artístico, desta feita, com a prosa. Surgido no decorrer do
século XIX e com origem vinculada às narrativas de Walter Scott, o romance histórico
desempenhou papel de grande importância na formação da nacionalidade, no Brasil e em outros
países da América e Europa, promovendo uma valorização do passado e dos valores culturais de
cada país. Caracterizavam-se, segundo Lukács (1983), por traçar grandes painéis históricos,
obedecendo à linha cronológica dos acontecimentos, e utilizando-se dos dados históricos para dar
veracidade à narrativa. Era também uma característica que personagens fictícios participassem,
ainda que não ativamente, dos acontecimentos históricos, e que personagens reais fossem apenas
citadas, integrando o pano de fundo da narrativa. Contudo, para Pedro Calmon, o romance histórico
Ŗconstitui, na teia imaginosa do enredo, a paisagem colorida; é o fundo panorâmico da intriga, o seu
interesse cronológico, a conexão com o vasto mundo do passado, a luz erudita que lhe destaca a
realidade fictíciaŗ (CALMON, 1967, p. X).
O século XIX, no entanto, também foi o século em que a ciência da história estava se
formando, se articulando. O século da Ŗprofissionalizaçãoŗ (WHITE, 1992, p. 147) do estudo da
história e as opiniões dos pensadores para essa fusão da ciência com a história não entraram em
consenso. Alguns defendiam que, ao escrever o romance histórico, o qual seria uma versão mais
leve da historiografia, o romancista poderia Ŗpreencher as lacunas deixadas pelo registro histñrico,
nunca, porém, afastando-se do consagradoŗ (BASTOS, 2007, p. 11). Outros entendiam o romance
histórico como arte, apenas; e como objeto ficcional, portanto, de invenção, poderia reclamar o
direito de fazer uso ilimitado da história e utilizá-la Ŗapenas como matéria-prima sobre a qual
deveria exercitar-se a imaginação do escritorŗ (BASTOS, 2007, p. 11).
José de Alencar transita entre essas duas ideias do fazer romance histórico. Em suas obras
históricas, ele pratica seu direito de preencher as lacunas deixadas pela historiografia oficial mas, ao
contrário do que lhe seria permitido, afasta-se do consagrado Ŕ principalmente porque trata de fatos
pouco relevantes para o registro histórico. Emprega com propriedade seu direito a ficcionalizar os
fatos, todavia não trata a história apenas como matéria-prima para a imaginação criadora. Ao
entrelaçar fato e ficção, o autor aproxima a história do leitor até o ponto de contato mais íntimo: faz
112
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

com que ele penetre nas emoções dos personagens históricos e participe ativamente do desenrolar
dos acontecimentos; isso sem, no entanto, perder a maestria artística, o que poderia valer-lhe um
elogio de Balzac, para quem o romancista histórico trabalha melhor do que o historiador, pois que
Ŗa histñria não tem por lei, como o romance, propender para o belo idealŗ (BALZAC apud BASTOS, 2007,
p. 20).
Hayden White, que superestima o valor da narrativa para a escrita da história, acredita que a
veracidade desta última se dará pela força da primeira, praticamente, subordinando Ŗo propriamente
histñrico, como prática discursiva, ao lingüísticoŗ (BASTOS, 2001, p.13), desfazendo a certeza da
empiria dos historiadores e colocando a força historiográfica no discurso. A força do discurso
narrativo dando veracidade ao objeto da narração foge ao pensamento do historiador que acredita
que a narrativa tenta se aproximar da verdade, pois que o discurso trabalha com a ideia de que esta é
um objeto inalcançável. Como romancista, Alencar valoriza o discurso, pois que trabalha
diretamente o artístico; e como historiador, atinge a dimensão sentimental, humana, através das
ações dos personagens que dramatizam o fato histórico, portanto, para ele, a verdade não teria um
caráter inalcançável. Como verdade, em José de Alencar, não devemos entender apenas um desejo
de provar a objetividade dos fatos, apesar de que o relato destes em suas obras é precedido de
incansáveis pesquisas, mas também como revelação do lado humano de seus personagens.
No romance histórico As minas de prata, Alencar descreve um episódio pouco conhecido da
história colonial do Brasil, passado no sertão da Bahia, em princípios do século XVII, que é a busca
pela montanha prateada que resultou na descoberta da Chapada Diamantina Ŕ fato que, segundo
Pedro Calmon, Ŗtem uma respeitável base paleográficaŗ (CALMON, 1967, p. X). No romance, as
tais minas foram encontradas por Estácio, que se decepciona ao perceber que não existe montanha
de prata, mas apenas uma ilusão da natureza, em contraste com o fato real, pois o segredo da
localização da verdadeira mina nunca foi desvendado. Porém, percebe-se no autor uma maior
preocupação com o registro da realidade histórica da época representada na obra, do que mesmo
com a elucidação de seus mistérios, não sendo essa a sua intenção. Wilson Lousada, apresentando o
romance em seu texto ŖAlencar e As Minas de Prata‖, escreve:

Aventureiros, judeus, soldados, escravos, índios, nobres, funcionários da coroa, padres, eis
o mundo da acanhada Salvador nos começos do século XVII, já então subordinada à
autoridade dos soberanos espanhóis. E é nesse mundo que José de Alencar introduz o leitor
das Minas de Prata, abrindo-o com a chegada do novo Governador Geral do Brasil, D.
Diogo de Menezes, austero fidalgo e soldado (LOUSADA, 1967, p. XVIII).

O trecho acima reflete bem a variedade de personagens do romance. As numerosas sub-


tramas se intercalam e misturam, como uma bem organizada orquestra, da qual o maestro não perde
o compasso jamais. Através de seus estudos das crônicas coloniais do período, José de Alencar
encontrou o material histórico que precisava para reconstituir fielmente o ambiente da época em que
se passa a aventura, o que proporcionou ao romance uma base histórica bastante respeitável, com
uma riqueza de detalhes referentes às vestimentas, alimentação e comportamento da sociedade

113
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

baiana do século em questão, sem perder de vista o caráter aventuroso, pois, segundo Lousada, essa
obra representa, cronologicamente, o primeiro romance brasileiro de aventura:

Do estilo retorcido do cronista para o cenário suntuoso de Alencar, ganhou tudo isso uma
importância excepcional. Elaborou-se o mito. Não lhe faltaram os elementos
complementares da dignidade rija, do nativismo claro, do idealismo provocante, da beleza
gentil das cenas, a que o escritor deu a graça erudita das evocações, numa restauração
engenhosa de costumes, ideias, crenças e tradições nacionais (CALMON, 1967, p. XIII).

Inicialmente, a história da busca pelas minas seria a continuação de O guarani, pois que
apresenta já no Rio de Janeiro D. Diogo de Mariz, filho de D. Antonio de Mariz, senhor do solar
onde se passam as aventuras de Peri em prol do amor de Ceci. D. Diogo é o portador do roteiro das
minas encontrado por Robério Dias, pai de Estácio, e intenciona devolvê-lo Ŕ fato descoberto por
Estácio ao encontrar uma carta entre os pertences de sua falecida mãe. A continuação se dá,
portanto, com a presença de um dos personagens da história das aventuras de Peri, que transitou de
um romance para o outro, mas que não toma parte ativa nas peripécias de Estácio, e pela existência
do próprio roteiro, já conhecido pelo ex-frade Loredano, em O guarani. ŖHá, portanto, um fio da
história que ata os dois romances, mas, certamente, não há leitor que veja uma relação de
continuidade entre eles, como atributo para qualificar As minas de prataŗ (DE MARCO, 1993, p.
99). D. Diogo representa o único elo entre essas duas tramas de Alencar, que se desenvolvem de
maneira diversa desde o local onde são ambientadas, uma no Rio de Janeiro e a outra em Salvador.
Além de continuar a valorização da aventura apresentada na histñria de Peri, com o Ŗmais
acentuado caráter romanesco, riquíssimo de personagens e episódios do mais palpitante
melodramaŗ (LOUSADA, 1967, p. XVII), José de Alencar descreve um mundo fascinante de
intriga, honra e amor, no qual o personagem principal existe independentemente da ação, que lhe é
servil, contudo, não ocorre proveniente de suas mudanças espirituais, pois que é estático Ŕ ou plano.
Segundo Edwin Muir, o romance de personagem, em que classificamos As minas de prata, constitui
uma das partes mais importantes da ficção em prosa. Ao identificar os personagens desse tipo de
romance como estáticos, ele diz que Ŗsuas fraquezas, suas vaidades, seus defeitos, eles o possuem
desde o início e nunca os perdem até o fim; e o que de fato se transforma não são estes, mas nosso
conhecimento delesŗ (MUIR, 1928, p. 11).
De fato, o autor aprofunda o leitor no conhecimento de Estácio à medida que as ações se
sucedem. Ele, um jovem moço apaixonado no início do romance, revelar-se-á um rapaz obstinado,
que busca de todas as formas restaurar a imagem de seu pai, Robério Dias, homem honrado que
morrera Ŗtido como falso e embusteiroŗ (ALENCAR, 1967, p. 27) por El-Rei D. Felipe II1, e que,

1
O avô de Estácio, o Moribeca, tendo encontrado as minas de prata, em 1587, traçou marcas ao logo do caminho que o
ajudariam a retornar. Sem conseguir fazê-lo, moribundo, passou ao filho Robério as informações. Este, por sua vez, foi
confirmar as informações e substituiu os sinais por outros mais duradouros e de sua escolha, fazendo também um
roteiro de sua rota. De retorno, achou toda a Salvador conhecedora do assunto das minas, talvez devido à prodigalidade
com que Moribeca havia mercado. Sem saída, Robério Dias achou por bem oferecer seu conhecimento ao rei Felipe II
em troca do título de marquês e partiu para o reino, descobrindo, ao chegar, que tinha sido roubado. Sem o roteiro, viu-
se rebaixado a administrador do local, o qual encontraria de memória, que lhe falhou, por fim. Desacreditado perante o
rei, que confiscou-lhe os bens, faleceu, deixando órfão o filho Estácio.

114
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

por isso, tivera seus bens confiscados, deixando o filho na penúria, da qual foi socorrido por um
amigo de seu próprio pai, o licenciado Vaz Caminha, que é quem lhe revela a triste história do
paterna e a existência das minas.
Vale ressaltar que ele Ŕ Estácio Ŕ não vai se transformando à proporção que os
acontecimentos ocorrem, pois é apenas a visão do leitor sobre ele que vai se fazendo mais ampla.
Estácio vai revelando novos ângulos a cada nova dificuldade Ŕ ângulos já existentes que
aguardavam, apenas, o momento certo de se apresentar ao leitor de As minas de prata. Outro
objetivo tinha também Estácio, ao buscar limpar o nome de seu pai: queria ele conquistar o amor de
Inesita, bela e rica jovem de Salvador. Ao restaurar o bom nome de seu pai, teria ele o direito à
fortuna dantes confiscada, o que lhe permitiria aproximar-se de Inesita como um igual.
Para isso, conta com o apoio e amizade de Cristóvão Garcia de Ávila, um fidalgo seu
aparentado. Cristóvão também sofrerá um amor impossível, como Estácio. No caso deste, a situação
financeira precária o impede de unir-se a uma jovem dama de boa família; no daquele, uma
promessa da mãe da jovem Elvira a compromete com a Igreja.
Ao decidir reaver o roteiro das mãos de D. Diogo de Mariz, Estácio travará conhecimento
com um formidável adversário, o padre jesuíta Gusmão de Molina, cuja história daria um romance
distinto, tantas são suas peripécias almejando postos mais altos na vida e na confraria da qual faz
parte. Ele tentará de todas as formas chegar às minas primeiro que Estácio.
A análise dessa obra literária histórica, segundo Todorov, não deve ser feita de forma a
priorizar os fatores externos, estruturas abstratas que se manifestam na mesma, nesse caso, a
histñria. ŖA literatura deve ser compreendida na sua especificidade, enquanto literatura, antes de se
procurar estabelecer sua relação com algo diferente dela mesmaŗ (TODOROV, 2006, p. 81).
Trabalhando com o romance histórico, entretanto, não poderemos deixar de estabelecer a
especificidade da literatura diretamente relacionada à história, que seria considerada por ele como
um fator externo à obra literária. Tomaremos como defesa a dialética de Antonio Candido em
relação aos elementos internos e externos da obra de arte literária. Privilegiando a estética diante de
qualquer outro aspecto e sem entrar na questão do valor da obra, Candido afirma que só podemos
entender a obra literária

fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho
ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela
convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam com momentos
necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo importa, não como
causa, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura,
tornando-se, portanto, interno (CANDIDO, 2008, p. 14).

Toda a análise do texto percorrerá caminhos pertinentes a ambas as áreas de estudo, tal qual
o caso dos personagens. Alencar trabalha com figuras reais e figuras ficcionais, como geralmente o
fazem os romancistas históricos. A relevância de cada uma vai depender do ponto de vista
abordado. Em nenhum momento as figuras históricas perdem sua importância em relação à

115
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

historicidade dos fatos, porém, entremeadas a esses fatos, surgem as intrigas da trama ficcional e
seus personagens. A narrativa, por conseguinte, alterna-se no destaque às personagens; quando a
trama transpõe o fato, as figuras ficcionais assumem a postura de respeito adequada ao cargo da
personalidade em questão, em As minas de prata. A presença de D. Diogo de Menezes e Siqueira,
como Governador-Geral do Brasil, ocupa o espaço de figura mais ilustre da trama; todavia, a
narrativa tem seu herói, Estácio Correia, o qual mostra seu respeito a essa figura ilustre da política
colonial brasileira do século XVII, sem, contudo, perder a dignidade e orgulhosa altivez:

D.Diogo de Menezes, que o esperava no fim da sala sentado à mesa de trabalho, erguendo
os olhos, dera com aquele vulto armado no instante em que ele praticava a singular ação de
trancar a porta. Desenhou-se no seu varonil e majestoso semblante uma ligeira surpresa
motivada pela estranheza do caso; abaixando rápido, e imperceptível olhar para as guardas
da espada, que descansava ao lado sobre a cadeira, esperou com a placidez e serenidade de
quem sente-se em uma esfera superior, onde não ousam penetrar as paixões más. [...] Com
um gesto cheio de nobreza e graça, o cavalheiro ergueu a viseira do elmo e descobriu a bela
e altiva fisionomia de Estácio (ALENCAR, 1967, p. 809-810).

O encontro descrito representa bem o controle que o autor tem de seus personagens. D.
Diogo, apesar de externar, de maneira conveniente, as características humanas de surpresa e
prudência Ŕ ao buscar a localização das armas com os olhos Ŕ, não perde sua postura imponente de
personalidade histórica.
A estrutura de As minas de prata, na qual o enredo se amalgama perfeitamente aos
personagens, por muitos que sejam, é grandiosa. Todavia, Alencar tem total controle dos diversos
elementos que compõem a obra, incluindo seus personagens e os acontecimentos que vão surgindo
à medida que a história ganha forma, conduzindo habilmente, assim, a narrativa:

É o que explica o fato de as cenas, em dado momento, permutarem-se, sem lhes avultar o
menor sinal de insuficiência semântica. O estilo é largo e primoroso, e o claro domínio
sobre o desenvolvimento da narrativa impede que a trama avance ou recue em demasia por
conta de suas voltas e reviravoltas (o que comprometeria o ir e vir das cenas) (PELOGGIO,
2010, p. 88).

E, como representação de uma época, sua obra também se preocupa com o imaginário
popular, espécie de pano de fundo, registrado nas lendas e tradições que faziam parte do dia-a-dia
da população. Câmara Cascudo considera o autor como Ŗum dos informantes máximos do
Folcloreŗ , pois que Ŗregistrou nos romances a normalidade da vida brasileiraŗ (CASCUDO, 1955,
p. 6).
Essa grandiosidade ficcional parte de uma base histórica, de uma situação real, para
romancear, com originalidade, os fatos e costumes da sociedade da Salvador do século XVII. E essa
era uma preocupação constante de Alencar: dar a maior veracidade possível aos fatos históricos que
ele romanceava. A criação de seu mundo ficcional está baseada, pois, solidamente, na história, Ŗ em
sua verdade severaŗ (ALENCAR, 1981, p. 110).
De início, analisando o romance As Minas de Prata, verificamos a presença de três
personalidades históricas, o Governador-Geral D. Diogo de Menezes e Siqueira, D. Diogo de Mariz

116
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

e Martim Soares Moreno (não são as únicas, porém são as de interesse para a ilustração do
momento). Alencar insere essas personalidades em meio à trama de forma que elas interajam com
os personagens ficcionais, participem de acontecimentos importantes de suas vidas e,
principalmente, que se aproximem do leitor através de suas características mais humanas Ŕ os
sentimentos.
Ao descrever uma festa popular, na Salvador do séc. XVII, o autor revela uma troca de
olhares amantes, que é interrompida pela silhueta do Governador-Geral do Estado do Brasil, D.
Diogo de Menezes e Siqueira, interpondo-se entre os dois protagonistas da cena, Estácio e Inesita.
A cena, descrição cinematográfica de movimentos, revela a contrariedade de Inesita ao perder o
contato com os olhos de Estácio. O leitor dela participa quase como se estivesse também presente,
porventura, acompanhando o governador, e percebe toda a sutileza do acontecimento, adivinhando
o clima de romance e surpreendendo-se, juntamente com D. Diogo, com a intensidade da frustração
da moça, ou frustrando-se junto com ela. Essa sensação de fazer parte da história, estar envolvido
em seus acontecimentos, permite que o leitor se identifique com recorte espaço-temporal da
narrativa histórica.

Um instante Inesita, pálida e trêmula, esteve sob a influência magnética do olhar de Estácio.
[...] Ergueu a cabeça desvanecida: o sorriso de adoração, que adejava nos lábios de Estácio,
acabava de refletir como um espelho sua beleza deslumbrante. [...] Nisto D. Diogo de
Menezes, aproximando-se pela frente do pavilhão, tomou-lhe a vista. A menina, mau grado
seu, não se pôde conter; deixou escapar um movimento de contrariedade tão vivo que fez o
governador sorrir (ALENCAR, 1967, p. 453).

O sorriso do governador revela sua diversão. Ora, os personagens históricos não se divertem,
apenas os seres humanos o fazem, pode pensar o leitor. E é exatamente o caráter humano da
personalidade histórica que Alencar deseja realçar. Divertindo-se junto com ele, o leitor começa a
criar um laço de identificação, senão de afeição. Está formado o vínculo por onde começa a tomar
forma o projeto de nacionalização do autor. Ele não se apresenta em altos brados, como o fez o
idealismo de Michelet para a França, contudo, sabemos estar presente em cada obra sua. Mais
especificamente nos romances históricos, esse plano nacionalizador busca uma identificação do
leitor com os personagens reais e ficcionais presentes na narrativa, de modo que ele se sinta parte do
acontecimento, parte da história do país, parte do país e, por fim, parte do próprio povo. Eis, então,
o surgimento de um sentimento de unidade nacional. Pessoas de diversas regiões do país, através da
literatura e seu trabalho com o fato histórico, sentem ter uma raiz comum, que os faz únicos.
Benedict Anderson (2008) afirma que o nacionalismo nasce no século XVIII, ganhando
força no século XIX e encontrando total apoio nas ideias de emancipação românticas. No Brasil, a
emancipação se dava de duas formas: política e artística. Ambas combatiam Portugal. Na literatura,
o desejo por essa emancipação intelectual e cultural desenvolveu o gosto por pintar o que era nosso,
valorizando-se o pitoresco, os mitos e lendas da terra. Com o surgimento, na Europa, dos romances
históricos de Walter Scott, percebeu-se que o passado era também uma boa ferramenta para um
projeto de nacionalização. José de Alencar traçou seu plano de nacionalidade literária em frentes

117
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

diversas: na perspectiva sincrônica, correu o país representando as diversas regiões e suas


características típicas; na diacrônica, voltou ao passado para construir esse elo do leitor com suas
raízes, Ŗexplorando, com as armas da narrativa romanesca, o passado do Brasilŗ (DE MARCO,
1993, p. 99), principalmente, através das relações entre os personagens.

Além de dar-nos a conhecer a sua gente brava, esperta, desembaraçada, desassombrada e


atuante, José de Alencar comunicou-nos a paixão de nossas coisas e de nossa gente.
É um autor propositadamente nacional, e, por isso mesmo, uma força nacionalizadora. Não
cremos que o seu Brasil fosse a fotografia do Brasil, mas, sem dúvida, uma de suas
melhores pinturas.
Via a terra e a gente com olhos de artista, dando delas a sua interpretação.
Justifica-se: fazia obra de ficção e não de ciência (CASASANTA, 1967, p. 13).

D. Diogo de Menezes e Siqueira aparece em outras cenas do mesmo romance e a descrição


de suas atitudes e sentimentos, em relação aos demais personagens ficcionais de Alencar, suaviza a
endurecida imagem do Governador-Geral que, porventura, conste nos registros. Em alguns trechos,
sua humanização fica bastante evidente. Pouco tempo depois de sua primeira aparição na trama, a
chegada de um navio põe todos que estão assistindo à missa em grande agitação, movidos pela
curiosidade. O Governador não é exceção. Mesmo sendo uma figura ilustre da história ele não foi
descrito com menos humanidade e, nesse ponto, nivela-se a todos os presentes: ŖJá se vê pois que o
Governador D. Diogo de Menezes até a última das beatas escondida em algum canto, todas as
pessoas, que se achavam na igreja, desejaram intimamente ver acabada a missaŗ (ALENCAR, 1967,
p. 16).
Inclusive querelas políticas de figuras históricas são retratadas na obra:

D. Diogo de Menezes, vendo a cadeira do provincial dos jesuítas vaga sorrira de um modo
significativo; compreendera que a ausência não motivada, no dia em que celebravam a sua
chegada, era um primeiro manifesto de guerra que lhe lançavam os aliados do Bispo D.
Constantino.
Embora fosse toda mental e íntima a reflexão, o fidalgo ergueu a cabeça com expressão de
energia, como se aceitasse o desafio e se preparasse para a luta; depois lembrando-se onde
estava inclinou diante de Deus a fronte que trazia sempre em alta em face dos
homens(ALENCAR, 1967, p. 14).

Nos três trechos salientados, Alencar apresenta a figura do Governador-Geral humanizado


pelos sentimentos. Ao encontrar-se diante de Inesita, diverte-se ao perceber o arrufo da moça
quando da interrupção de sua contemplação amorosa; diante da chegada de um navio da metrópole,
ocorrência rara para os moradores da colônia Ŕ como bem o explica o autor: Ŗeste fato que hoje não
tem muita importância pela sua frequência, naquele tempo de raras e difíceis comunicações entre o
Brasil e a metrñpole, era um acontecimento do maior interesseŗ (ALENCAR, 1967, p. 14) Ŕ, sente-
se tocado pela curiosidade, como qualquer uma das pessoas ali presentes. E, por fim, diante de
conflitos de interesses políticos, revela uma fina ironia no sorrir Ŗde modo significativoŗ e, logo
após, alterna-se entre os sentimentos de orgulho e humildade, tal qual qualquer ser humano. Desse
modo, D. Diogo desce da categoria de vulto histórico para encontrar-se no mesmo grau de
humanidade dos personagens alencarinos. Se há uma identificação dos personagens com a

118
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

personalidade história, o mesmo vai ocorrer com o leitor que, através da comoção de Inesita e da
curiosidade do próprio Governador, aproxima-se de D. Diogo, reconhecendo-o como um igual.
D. Diogo de Mariz, também personagem real, filho do nobre português D. Antônio de
Mariz, aparece em situação de profunda comoção ao falar sobre a tragédia do Paquequer, que
resultou na morte de seu pai, com o personagem ficcional Padre Molina, o principal concorrente de
Estácio pela posse do roteiro de Robério Dias: ŖŔ Se V. Paternidade soubesse que passado doloroso
acorda em mim a menor circunstância relativa à catástrofe que me enlutou o resto da existência!ŗ
(ALENCAR, 1967, p. 484).
Esse encontro, em plena busca pelas minas de prata, transporta o leitor de Alencar para O
Guarani, no qual D. Diogo e seu pai relacionam-se com Peri, outra criação do autor. O trecho
abaixo descreve o momento em que D. Antônio de Mariz pede a Peri que volte para sua tribo; não
sem antes reforçar os laços de amizade com o índio, símbolo do entrelaçamento entre história e
ficção nas obras alencarinas:

Cecília, prevendo o que se ia passar, tinha-se escondido por detrás de seu irmão D. Diogo.
Ŕ Peri, acreditas que D. Antônio de Mariz é teu amigo?, perguntou o fidalgo.
Ŕ Tanto quanto um homem branco pode ser de um homem de outra cor (ALENCAR, 1955,
p. 102).

Ainda nos romances indianistas, notamos outro envolvimento de personalidade histórica


com personagem fictícia. Dessa vez, amorosamente. Trata-se de Martim Soares Moreno em seu
relacionamento com Iracema. Mais uma vez é o sentimento que humaniza o guerreiro histórico e o
faz mais real aos olhos do leitor do romance. A alusão à mãe do guerreiro reforça essa
humanização. ŖDe primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O
moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu
mais dřalma que da feridaŗ (ALENCAR, 1952, p. 234)1. Soares Moreno também é citado em As
Minas de Prata, quando o Governador-Geral D. Diogo de Menezes oferece a Estácio um posto no
Ceará para ajudar Martim na fundação de um presídio.
A mistura de sentimentos, qualidades e fraquezas tornam os personagens históricos mais
reais aos olhos do leitor, o qual passa a se identificar mimeticamente com esses personagens e com
as figuras ficcionais e, assim, revive o passado em todo o seu drama. Em Alencar, esse processo de
mimetismo do leitor com a história se dá através da ficcionalização do fato histórico.
Sobre esse entrecruzamento da história e da ficção, Paul Ricoeur escreve que Ŗa perenidade
de certas grandes obras histñricasŗ deve-se à Ŗsua maneira de ver o passadoŗ , além de ter um caráter
apropriado de arte poética e retórica. Porque

a mesma obra pode, assim, ser um grande livro de história e um admirável romance. O
espantoso é que esse entrelaçamento da ficção à história não enfraquece o projeto de
representância desta última, mas contribui para sua realização (RCOEUR, 1977, p. 323).

1
Grifo nosso.

119
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Seguindo esse pensamento, Alencar leva o leitor a conviver com personagens reais da
história brasileira em momentos de grande sensibilidade, promovendo uma nova leitura dos
acontecimentos em conformidade com a visão idealista do passado, defendida por Benedetto Croce,
para a qual a história é contemporânea na medida em que pensamos sobre ela (CROCE, 1974, p.
277).
Partindo desse ponto, Alencar se distancia do pensamento historiográfico positivista de seu
tempo que vê o passado como algo pronto e acabado, pois, nesse período, a historiografia foi
tomada por um grande desejo de objetividade científica, como uma Ŗfilosofia a serviço das ciências
da naturezaŗ (COLLINGWOOD, 1972, p. 165), baseada na determinação e registro dos fatos
históricos, tal como estes ocorreram, e uma busca pelo estabelecimento de leis decorrentes da
generalização desses fatos.
Alencar, deste modo, revela-se um Ŗhistoriador à sua maneiraŗ , com uma visão prñpria,
preocupado com os fatos históricos e, principalmente, com a maneira como eles são apreciados por
seu leitor. Sua abordagem da história aproxima-se da abordagem de diversos historiadores da
atualidade que, pode-se dizer, era um autor bem à frente de seu tempo. Ele faz uso da Ŗverdadeŗ
para exibir algumas camadas da histñria encobertas, isto é, Ŗpara dramatizar a histñria descrevendo
a cena onde se passaram os fatos mais importantes e apresentando ao vivo1 os seus personagens e a
sua decoraçãoŗ (ALENCAR, 1981, p. 110), dispensando, assim, a pretensa verossimilhança
historiográfica. Trabalha com o fato, mas dá a ele o discurso narrativo apropriado a um escritor
romântico.

Referências bibliográficas

ALENCAR, José de. As minas de prata. Romance brasileiro. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio;
Brasília: INL, 1967.
______. Guerra dos mascates. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951, v. XIV.
______. Iracema. Lenda do Ceará. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951, v. VIII.
______. O guarani. Romance brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955. 2 v.
______. Rio de Janeiro Ŕ prólogo. In: FREIXEIRO, Fábio. Alencar: os bastidores e a posteridade.
2.ed. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, Coleção ŖEstudos e Documentosŗ , v. IV, t. 1,
1981.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do
nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BASTOS, Alcmeno. Entre o Ŗpoetaŗ e o Ŗhistoriadorŗ Ŕ a propósito da ficção histórica. Signótica, Goiânia, v.13, n.1, 2001
.
______. Introdução ao romance histórico. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007.
CALMON, Pedro. A verdade das minas de prata. In: ALENCAR, José de. As minas de prata.
Romance brasileiro. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1967.

1
Grifo nosso.

120
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul, 2008.
CASASANTA, Mario. Alencar Ŕ um formador de brasileiros. In: ALENCAR, José de. As minas de
prata. Romance brasileiro. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1967.
CASCUDO, Luís da Câmara. O folclore na obra de José de Alencar. In: ALENCAR, José de. Til.
Romance brasileiro. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, v. XI, 1955.
COLLINGWOOD, R. G. A ideia de história. Tradução de Alberto Freire. Lisboa: Editorial
Presença; São Paulo: Martins Fontes, 1972.
CROCE, Benedetto. A natureza do conhecimento histórico. In: GARDINER, Patrick. Teorias da
história. Tradução de Vitor Matos e Sá. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1974.
DE MARCO, Valéria. A perda das ilusões: o romance histórico de José de Alencar. Campinas:
Editora da Unicamp, 1993.
LOUSADA, Wilson. Alencar e As Minas de Prata. In: ALENCAR, José de. As minas de prata.
Romance brasileiro. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1967.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande
épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2007.
______. The historical novel. Translated from the german by Hannah and Stanley Mitchell.
Linconl/USA: University of Nebrasca Press, 1983.
MUIR, Edwin. A estrutura do romance. Tradução de Maria da Glória Bordini. Porto Alegre:
Editora Globo, 1928.
PELOGGIO, Marcelo. José de Alencar: um historiador à sua maneira. Alea: Estudos Neolatinos,
jan./jun. 2004.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, Tomo
III, 1997.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. 3.ed. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Perspectiva, 2006.
WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. Tradução de Jose Laurênio
de Melo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 1992.

121
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ENTRE ARTE INDÍGENA E AS REDES GLOBAIS: UMA POÉTICA COMUNAL?

Armando de Melo Lisboa (UFSC)

ŖEn la encrucijada actual, solo las utopías parecen posibles.


Lo único imposible es mantener la trayectoria convencionalŗ.
(Gustavo Esteva)

Frans van der Hoff, precursor do Comércio Justo (CJ)1 contemporâneo, explicita a face
radical que o mesmo tinha quando de sua concepção: Ŗéramos e seremos sempre anticapitalistasŗ .
Todavia, o que hoje se denomina fair trade há muito deixou de ser uma prática restrita a
organizações alternativas, tendo uma significativa amplitude no cenário econômico global. Em face
das esperanças depositadas, e da pluralidade de atores que configuram o movimento do CJ, em seu
seio inúmeros questionamentos são feitos e permanecem abertos:

a) Rompe o CJ com o paradigma econômico dominante, com o produtivismo, o consumismo e


as práticas oligopolistas?
b) Produz o CJ uma equidade maior nas relações Norte-Sul2, corrige a assimetria nos
intercâmbios entre países desenvolvidos e em desenvolvimento?
c) Supera o CJ a divisão internacional do trabalho onde o Sul fornece matérias-primas e
produtos agrícolas para exportação aos países ricos, e o Norte é produtor industrial e detém
o principal mercados de consumo de massa?
d) Permite o CJ a re-humanização dos processos comerciais (e da economia)?
e) Responde o CJ aos desafios ecológicos hoje postos?
f) Garante o CJ um outro desenvolvimento, includente, duradouro, sustentável?
g) Por se limitar Ŕ e imitar Ŕ ao comércio internacional, não estará o CJ atenuando Ŕ e não
questionando Ŕ suas conseqüências negativas?
h) É possível transformar o capitalismo, modificando-o a partir de dentro? São os mercados
fator de transformação social?

O pluralismo (saudável) do movimento impede encontrar respostas consensuais para estas


questões. Porém, algumas respostas já são evidentes, pois obviamente não há instrumento algum
que, isoladamente, seja uma panacéia corretiva de todos os males da sociedade capitalista
contemporânea. Ou seja: sobrecarregar o CJ com expectativas desmesuradas apenas gera
frustrações, sectarismos e turbulências desnecessárias.

Destacamos que há graves problemas na literatura sobre o CJ, especialmente a produzida


diretamente por suas organizações. Em geral seus atores difundem uma visão romântica, acrítica e
otimista sobre o CJ e seus efeitos, ignorando os desafios atuais desta prática comercial, os jogos e
estratégias de mercado, custos de produção, indicadores de resultado econômico. Mas,
especialmente, pouco se conhece do impacto do CJ Norte-Sul sobre as comunidades locais de
produtores; seus efeitos para o desenvolvimento local começam agora a ser investigados. Na AL em
1
Fair Trade em inglês; commerce équitable, em francês; commercio equo e solidale, italiano.
2
Norte e Sul são expressões utilizadas neste trabalho metaforicamente, designando as nações industriais mais
desenvolvidas, e os países menos industrializados e em desenvolvimento, respectivamente.

122
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

particular, praticamente não há balanços que permitam precisar a dimensão efetiva do CJ, ou
mesmo a real extensão das redes de economia solidária1.

Com freqüência faz-se a apologia do fortalecimento da autonomia e da inserção


indígena/camponesa nas redes de comercio justo, porém sem investigar empiricamente as mudanças
que o fair trade traz para estas comunidades e ao ecossistema regional. Mas, mesmo quando esta
literatura tem um grau maior de rigor e criticidade, a ausência destes dimensionamentos faz com
que ela não vá além da retórica e da exortação ética2. O nobre e bem intencionado esforço do CJ,
desprovido de compreensão sobre a materialidade do seu próprio metabolismo e do processo
histórico em que se insere, corre o risco de ser absorvido pelos free trade que ele busca corrigir e
superar.

1. Breve histórico.
ŖLa conciencia social no produce la existencia social.
Pero puede servir para cambiarla.ŗ
(Anibal Quijano)

O CJ surgiu como um movimento de solidariedade Norte-Sul para buscar diminuir os efeitos


negativos do comércio internacional. Apresentava-se como uma inovadora via de cooperação
internacional fundada numa prática comercial definida por determinados códigos de conduta.

Nos seus primórdios, o CJ configurava iniciativas assistenciais, caridosas e políticas que,


com base no comércio de produtos do Sul com o Norte em bases mais eqüitativas, buscavam
amenizar a situação de países do Sul (em geral, ex-colônias européias). Os princípios fundamentais
de todo CJ são a obtenção de um preço mais justo e de uma melhor renda para os produtores, e,
simultaneamente, fomentar um consumo responsável diferenciado do consumismo dominante.

Inicialmente objetivava criar um sistema paralelo ao mercado capitalista, e não modificar as


práticas comerciais dominantes. Porém, gradualmente o CJ deixa de ser apenas um movimento
social, para se tornar num ator no mercado global relativamente importante. Sua trajetória pode ser
sintetizada em dois períodos:

a) 1ª fase (da 1ª metade do séc. XX, até final dos 80): comércio alternativo e solidário.

1
A avaliação do CJ na região andina (Bolívia, Colômbia, Equador e Peru) feita por A. Cotera em 2009
(http://www.gresp.org.pe/recursos_publicaciones/Comercio%20justo%20sur-sur.pdf), apesar de sua amplitude, é um
exemplo destes limites.
Artisans du Monde (http://www.artisansdumonde.org/docs/etudeimpact.pdf) confirma a precariedade dos estudos de
impacto do CJ sobre as comunidades feitos até 2004, e conclui que o CJ fica restrito a produzir melhorias nas condições
de vida dos produtores, sem gerar um processo de desenvolvimento local e regional.
Trabalhos mais realistas que discutem empiricamente os efeitos do CJ sobre os camponeses na América Latina se
encontram em:

a) Fair Trade Research Group da Colorado State University


(http://www.colostate.edu/Depts/Sociology/FairTradeResearchGroup/).
b) Community Agroecology Network (CAN): http://www.canunite.org/.
c) Food First Ŕ http://www.foodfirst.org/. Destaco: ŖFair to the last drop, the corporate challenges to fair
trade coffeeŗ (2007): http://www.foodfirst.org/en/node/1794.
d) Relatório de CLAC (Bacon; Flores, 2007) faz uma síntese destes estudos anteriores.
e) A Plate-Forme Pour le Commerce Equitable Ŕ PFCE (aliança formada pelos pioneiros do CJ francês:
http://www.commercequitable.org/impact-au-sud.html) disponibiliza uma cartografia de 77 estudos de
impacto sobre o CJ no Sul produzidos entre 1998 e junho/2009.
2
É o caso de Pierre Johnson (2004).

123
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Após a segunda guerra mundial, algumas instituições de solidariedade (Igrejas e ONGs) com
os países do Sul nos Estados Unidos, Canadá e Europa (Agência Menonita de Desenvolvimento
Integral, Oxfam, ...) começam a importar artesanato e a vendê-lo em seus países. As primeiras
vendas realizam-se por catálogo ou junto a grupos de amigos.

Um marco inaugural do comércio ético foi a primeira Conferência das Nações Unidas sobre
o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), em 1964, onde surge a consigna Ŗtrade, not aid!ŗ
(comércio, não ajuda), popularizando a expressão comércio alternativo e/ou comércio solidário.

Em 1969 abre na Holanda a primeira loja de comércio solidário. Nesta primeira fase o CJ
está restrito aos circuitos alternativos e a determinadas lojas especializadas (Magasins du Monde,
World Shops ou Lojas do Mundo Ŕ LM).

b) 2ª fase (final dos anos 80 até hoje): CJ certificado e distribuído no mercado convencional.

Buscando Ŗmodificar radicalmente o esquema do ‗comércio alternativo‘ŗ (Hoff, 2004), em


1988 surge a primeira marca registrada do CJ Ŕ Max Havelaar1 Ŕ resultado de uma parceria entre a
organização holandesa Solidaridad e a UCIRI, associação de produtores de café de índios
mexicanos. Isto gera uma revolução quanto ao alcance deste tipo de comercialização, pois permitiu
que os produtos do CJ ingressassem nos grandes circuitos comerciais dos países industrializados.

A criação do selo de CJ Max Havelaar foi o grande divisor de águas. Com ele, os produtos
do CJ deixam de vendidos exclusivamente em lojas especializadas, passando a serem também
distribuídos no mercado convencional. A introdução deste programa de certificação no mercado
holandês deu início a um movimento mundial. Max Havelaar já não é um fenômeno holandês, nem
está restrito ao café, pois também se pode comprar em vinte países chá, chocolate, frutas e sucos,
mel, arroz... Algumas das maiores corporações globais ostentam parceria com a Max Havelaar,
como Nestlé, McDonaldřs, Accor...

A certificação possibilitou a distribuição de produtos da economia solidária, então


comercializados nas lojas de CJ, em larga escala. Assim, o movimento do CJ deixou de estar
circunscrito a comercialização de produtos de pequenos produtores dos países do Sul, apoiados por
consumidores solidários.

O sucesso do selo holandês (também na França, Bélgica e Suíça) fez surgir na Europa dois
outros sistemas de certificação: Fairtrade, na Inglaterra e na Irlanda; e Transfair, na Alemanha e
Itália. Porém, as particularidades de cada sistema, cada qual com suas próprias normas, geraram
sérios problemas, levando a criação da Fairtrade Labelling Organizations (FLO) em 1997, que
passou a coordenar os selos de CJ no mundo. Hoje a FLO reúne 19 iniciativas nacionais de
certificação, sendo que, após muitas pressões dos organismos do Sul, a partir do final de 2006 sua
junta diretiva inclui a participação de três redes continentais de produtores:

AFN (African Fairtrade Network);

CLAC (Coordinadora Latinoamericana y del Caribe de Comercio Justo)2;

1
Personagem da literatura holandesa, Max Havelaar é um comerciante que defendeu os pequenos produtores de café na
Indonésia, outrora colônia holandesa.
2
A CLAC se constitui em 2004, mas é originária da Coordinadora Latinoamericana y del Caribe de Pequenos
Productores de Café, e da PAUAL (Red Latinoamericana de Pequenos Apicultores), ambas fundadas em 1996. Hoje é
composta por 300 entidades de pequenos produtores de América Latina e Caribe certificados como CJ, envolvendo 200
mil famílias.

124
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

NAP (Network of Asian Producers).

As lojas e organizações de CJ também se aglutinaram, formando três federações: em 1989 a


International Federation for Alternative Trade (IFAT)1, que reúne produtores, lojas, importadores e
empresas diversas de CJ; em 1990, a European Fair Trade Association (EFTA), federação dos
importadores de comércio justo; e em 1994 a Network of European World Shops (NEWS), que
agrupa federações nacionais de lojas.

Essas quatro federações estão reunidas através da FINE (sigla formada pelas iniciais de
FLO, IFAT, NEWS, EFTA), uma rede informal que busca uma cooperação estratégica entre elas.

Episódio paradigmático ocorreu no final dos anos 90, quando a Global Exchange iniciou
uma campanha para que a Starbucks, a maior cadeia de lojas de café do planeta, oferecesse café
proveniente do CJ. Após a assembléia anual. dos acionistas de Starbucks em Seatle, em abril de
2000, a empresa passa a oferecer café certificado de CJ em sua rede. O CJ experimenta então uma
rápida expansão nos EUA: entre 2000 e 2005 suas vendas nos EUA passam de 50 milhões de
dólares, para 500 milhões.

Se opondo ao sistema de certificação da FLO, e buscando diferenciar de outras entidades


comerciais, a IFAT lançou em 2004 seu próprio selo de CJ, atestando as organizações
comprometidas com proteção do meio ambiente, com os direitos humanos e condições de trabalho
(salários adequados, combate ao trabalho infantil).

2. O CJ hoje.

ŖSi tu revolución no sabe bailar, no me invites a tu revoluciónŗ.


(Chefe indígena nas montanhas do sul do México)

Surgindo como um comércio alternativo e solidário, e estando no seu início confinado aos
atores da Economia Solidária, a partir da década de noventa, transmutado em CJ, torna-se um
cobiçado mercado emergente, gerando um interesse crescente dos atores do comércio convencional
em incluírem produtos de CJ na sua oferta. Tendo um crescimento exponencial nos últimos anos,
atualmente os produtos de CJ são comercializados em grandes cadeias de supermercados, existindo
inclusive corporações multinacionais que, com marcas próprias, inauguram o CJ corporativo.

Apenas na Europa, em 2005 os produtos de CJ estavam disponíveis em 2.800 Lojas do


Mundo, 56.700 supermercados, e em 20.000 locais de venda (organizações sociais, escolas e outros
parceiros institucionais ...).

Hoje o CJ já não tem as modestas dimensões dos anos 60/70, e se apresenta como uma rede
mundial com mais de 1 milhão e 500 mil produtores de 60 países, ou seja: mais de cinco milhões de
pessoas estão envolvidas e são indiretamente beneficiadas.

Estima-se que o gasto mundial com produtos do CJ tenha alcançado 3.4 bilhões de euros em
2009, e que na Holanda o café solidário represente 2,5% do mercado, e a banana 5%. Na Suíça
esses números elevam-se a 5% e 23%, respectivamente.

1
Em 2008 mudou seu nome para World Fair Trade Organization (WFTO). http://www.wfto.com/.

125
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ainda que, em termos globais, o café eqüitativo represente cerca de 1% das vendas
mundiais, ele tem crescido a uma taxa anual média de 16% nos últimos anos, sendo cada vez mais
aceito pelos consumidores. Ao contrário, no mercado internacional de café convencional há uma
super-oferta de café de má qualidade.

Operou-se uma mudança de escala no comércio ético, que deixa de ser um consumo
militante para se tornar um consumo massivo. Entretanto, em que pese à grandeza deste novo
patamar, o CJ consolidou-se em determinados nichos de mercado marcados por atitudes solidárias a
produtos do Sul, como os produtos tropicais e o artesanato. Apesar da recente expansão do CJ, ele
absorve apenas 0,02% do comércio internacional.

Ou seja: o CJ está circunscrito a uma dezena de produtos hortifrutícolas: café, cacau, mel,
chá, açúcar, banana, frutas e seu suco, arroz e flores. ŖOs produtos alimentares representam cerca
de 60% do volume de negócios aferente da venda no varejo de produtos provenientes do comércio
justo. Praticamente metade dessa porcentagem corresponde à venda de caféŗ (Johnson).

Não há um dado preciso de quantos produtores da América Latina participam do CJ, porém
apenas no México se calcula que abrangem 50.000 famílias. Mesmo imprecisos, os números
relativos ao CJ são expressivos. Porém, eles não traduzem o significado profundo do mesmo e os
dilemas hoje postos a ele.

3. Limites e debates conceituais.

ŖPor que optar se quero as duas coisas? Por que, me diga?ŗ


(Dona Flor, em Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado)

O conceito hegemônico de CJ, rigorosamente, reflete intercâmbios globais entre o Sul e o


Norte. Na definição consensuada por FINE em dezembro de 2001,

ŖComércio justo consiste em uma parceria comercial, baseada no diálogo, transparência e


respeito, que busca maior eqüidade no comércio internacional. Sua contribuição ao
desenvolvimento sustentável se dá pelo oferecimento de melhores condições de troca e
garantias dos direitos a produtores e trabalhadores marginalizados, particularmente no Sul,
estando orientado para a solidariedade dos consumidores do Norte com os produtores do
Sulŗ (IFAT, 2001).

Aqui a idéia nuclear é reduzir a pobreza do Sul através do acesso aos mercados do Norte por
parte dos produtores marginalizados. Apesar desta hegemonia, há mais de uma modalidade de CJ.
Isto se constata no forte debate entre seus atores sobre o que vem a ser fair trade, uma vez que nem
todas as práticas comerciais fundadas numa ética solidária estão englobadas neste conceito,
inclusive muitas tampouco são identificadas como de CJ.

A melhor compreensão da complexidade, da extensão e das contradições do que é o CJ hoje


exige algumas distinções:

a) Entre organizações de CJ e organizações que vendem CJ.

Nem todos os empreendimentos que estão no CJ são organismos plenamente orientados por
relações econômicas justas e solidárias, nem estão envolvidos mais profundamente na cadeia
126
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

produtiva solidária ou nas redes do movimento da economia solidária. Do commerce equitable


também participam parceiros comerciais que, com fins lucrativos, se associam ao sistema de CJ
especializados exclusivamente na ponta final do ciclo econômico solidário.

b) Entre comércio justo local Ŕ ou seja, intercâmbio de produtos em mercados ou redes de


economia solidária locais, no Norte ou no Sul Ŕ e comércio justo internacional, do sul ao norte e
vice-versa, para os produtos não produzidos localmente.

Nesta perspectiva, para diferenciar da forma canônica de CJ, que requer certificação FLO,
algumas redes, que operam no mercado de produtos da economia solidária através de feiras e outras
formas de intercâmbio comercial, trabalham com categorias que ampliam a conceituação Ŗoficialŗ .

É o caso das expressões Comércio Solidário, Comércio com Justiça, Comercialização


Comunitária, Comércio Responsável, ou mesmo Comércio Sadio. Não se trata de irrelevantes
sutilezas semânticas, mas de noções que definem um tipo de CJ que geralmente se exerce em
mercados que não são de exportação e nos quais não se aplica obrigatoriamente a certificação de
fair trade. São práticas comerciais exercidas através de relações respeitosas e mutuamente benéficas
entre os produtores e os compradores, seguindo critérios de preços, qualidade, intermediação
mínima, transparência nas contas, compromisso de longo prazo. Elas não se identificam tanto pelo
tipo de produto, mas pela relação direta que se estabelece entre produtor e consumidor. Ás vezes
estas relações não são formalizadas, dificultando a identificação do setor.

É importante distinguir práticas e organizações que se diferenciam do fair trade dominante,


e que, utilizando-se de outras denominações similares, complementam a concepção do que é CJ,
buscando tornar justo o CJ.

A RELACC (Rede Latino-americana de Comercialização Comunitária), por exemplo, é uma


forma de agir comercial com ênfase nos valores, e bastante diversa do enfoque que enfatiza o
negócio.

ŖA RELACC guía su accionar en un conjunto de valores y principios de la economía y la


comercialización solidarias, con el objetivo de provocar compromiso y mística con el
pueblo marginado y reforzar la práctica de la solidaridad en el comercioŗ (RELACC, 2006).

Os princípios da RELACC são:

1. Trabalhamos com mística, solidariedade e espírito comunitário;


2. Estamos inspirados por uma fé libertadora e a espiritualidade ancestral de nossos povos;
3. Buscamos que exista justiça, equidade e fraternidade;
4. Atuamos com transparência e honra;
5. Praticamos a não-violência ativa, a defesa dos direitos humanos e cidadãos;
6. Fomentamos a dignidade e a autoestima de cada pessoa;
7. Respeitamos as diversas identidades culturais, crenças religiosas e políticas;
8. Fomentamos uma participação ativa, consciente e organizada, com igualdade de
oportunidades para homens e mulheres;
9. Respeitamos a vida e o meio ambiente;
10. Nosso trabalho é político, porém não partidário;
11. Fomentamos a qualidade de nossos produtos e serviços.

127
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Visando congregar redes de organizações camponesas e urbanas desprovidas de recursos, a


RELACC surge em 1991, por ocasião de um encontro continental convocado pelo MCCH (Maquita
Cushunchic Comercializando como Hermanos), que surgiu em 1985 promovendo a comercialização
direta entre pequenos produtores e consumidores no Equador. Atualmente, existem coordenações
nacionais da Rede nos diversos países da América Latina e Caribe. A RELACC participa da
coordenação latino-americana da IFAT.

Ou seja: a depender do enfoque de CJ utilizado, se com ênfase no Ŗcomércioŗ , ou com


ênfase no Ŗjustoŗ e no movimento social, encontramos redes distintas, cada qual com suas próprias
categorias, instâncias de coordenação e núcleo duro decisório, e com suas estratégias de
comercialização. Não há, em verdade, uma polaridade rígida e estática, mas uma polarização
dinâmica e pragmática: organizações com concepções distintas interagem e estabelecem parcerias
tanto operacionais, quanto políticas, ainda que muitas vezes pontuais. Enfim, não se trata de
diferenças que geram um irreconciliável antagonismo, mas um sinal de pluralidade e
complementaridade, pois todos, ainda que por caminhos diferentes, se reconhecem parte do
movimento por um comércio ético e solidário.

4. Tensões e dilemas.

ŖEl problema que crea contradicciones no es la comercialización per se,


sino que ésta deba llevarse a cabo en una sociedad regida por el capitalismo,
la lógica del máximo beneficio y el consecuente consumismo.ŗ
(Carraro; Verdú; Fernándes)

Diante das suas dimensões contemporâneas, o CJ é impulsionado para continuar a crescer e


ampliar sua participação no mercado, o que dramatiza também sua encruzilhada, pois isto
compromete sua missão de transformar estruturalmente as relações de comércio. Discutiremos este
grande dilema nos últimos tópicos deste trabalho.

Muitas são as objeções ao fair trade, como caricaturalizá-lo de Ŗconsumismo de


solidariedadeŗ ; acusá-lo de gerar Ŗdesculturalização da produçãoŗ ; de Ŗnos desviar do essencialŗ :
re-localizar a economia; de ser uma Ŗforma de neo-colonialismoŗ; e Ŗser um triunfo da globalização
neoliberal, além de nos condenar à globalizaçãoŗ . Focaremos apenas nos dois tensionamentos mais
debatidos.

4.1. Certificação.

Forte divisor de águas no âmago do movimento do CJ é quanto a participar no grande


mercado através de um selo de certificação de origem.

a) Os que defendem esta participação pragmaticamente entendem que, no contexto duma


economia globalizada, não se deve desperdiçar oportunidades econômicas postas neste cenário.
Para a maior parte das organizações do CJ, um certo realismo aos poucos se impõe, pois vivemos
numa sociedade de marcas. Nela, é imprescindível a necessidade de uma etiqueta de fair trade na
qual os consumidores possam confiar.

Para F. van der Hoff (2004: 77),

128
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗo CJ demonstrou que podem reformar-se as regras do mercado em favor de produtores e


consumidores. (...) Os produtores pobres já não são os perdedores e mendicantes, e os
consumidores não assumem um papel paternalistaŗ.

Argumentos favoráveis à grande distribuição dos produtos da economia solidária nas


grandes organizações do comércio convencional são:

i) atingir consumidores que desconhecem o CJ e que dificilmente deslocar-se-iam a uma loja


de CJ;
ii) viabilizar a produção alternativa. A maioria dos produtores tem uma capacidade de produção
muito superior àquela que vende ao CJ, e de fato vendem uma parte significativa da mesma no
mercado convencional. A ampliação dos mercados proporciona volume de comercialização e
permite atingir a escala necessária para consolidar este outro paradigma produtivo;
iii) o CJ é muito mais do que vender produtos. Sua missão é mudar as regras do comércio
internacional, e isto se alcança quando suas redes tiverem peso significativo no mesmo.

O Informe anual de SETEM (2008: 26) sintetiza este entendimento do CJ como um


paradigma de atuação que

Ŗse centra en mejorar las condiciones de vida de las comunidades productoras del Sur,
intentando garantizar unos salarios y unas condiciones dignas, una relación comercial a
largo plazo, el pago de una parte del precio por adelantado, ofreciendo soluciones técnicas a
los problemas que surjan, etc. Por lo tanto, nos encontramos delante de un paradigma que
prioriza el desarrollo de las comunidades del Sur y deja en segundo término el cambio de
las estructuras económicas, sociales y políticas. Este paradigma engloba una manera de
mirar el Comercio Justo conciliadora con el modelo económico en el que vivimos, donde
uno de los principales horizontes es vender la mayor cantidad de productos posible y
beneficiar así al mayor número de comunidades. Una vez comenzada esta dinámica, suele
arrastrar otras prácticas de manera inmediata: la necesidad de una certificación de mercado,
la necesidad de elegir comunidades de productores eficientes, la necesidad de centrarse en
productos comerciales que tengan una clara salida en el exigente mercado del Norteŗ.

b) Os contrários à certificação argumentam que para os maiores compradores de café, o


fair trade constitui uma pequena parte de suas compras de café Ŕ menos de dois por cento. Para
estas empresas, avaliam, o CJ não é um movimento social ou um comércio ético, mas uma
oportunidade de melhorar sua imagem pública e um nicho rentável. Se aproveitam do Ŗefeito haloŗ
Ŕ a confiança em um único produto repercute sobre toda a marca.

ŖUn producto de comercio justo puede hacer que la marca entera parezca socialmente
responsable, aunque la corporación continúa comprando la gran mayoría de su café en el
mercado convencionalŗ.

Censuram que as certificadoras apenas estão tomando o lugar dos pequenos intermediários
locais, substituindo-os. ŖO 0,06 de euro que os ―coyotes‖ (intermediários) recebiam no preço de
um pacote de café foi substituído pelo 0,05 euro exigido pela Max Havelaarŗ (Jacquiau).

Os críticos denunciam que o CJ foi tragado pela onda neoliberal, transformando-se em


comércio do justo. O próprio co-fundador da Max Havelaar, Frans van der Hoff, lamenta que, de
um movimento anti-capitalista, a dimensão política do CJ Ŗfoi aos poucos edulcorada e apagadaŗ .
129
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Para SETEM estes críticos configuram um segundo paradigma de atuação no CJ pois o


entendem

Ŗcomo una herramienta de transformación social; una pieza más de una lucha global que
apunta a los fundamentos del sistema capitalista. Este paradigma engloba una manera de
mirar el Comercio Justo más política, que pretende cambiar el sistema generador de
pobreza, injusticia, ilegitimidad e insostenibilidadŗ.

Os atores do CJ que defendem um enfoque alternativo e um espaço próprio de


comercialização, diferenciado do mercado dominante, denunciam que há uma fragilidade no
controle que fiscalize o que é verdadeiramente justo, pois não há regulamentação e garantias
públicas. Para Jacquiau

Ŗno estado atual, nenhum selo, nenhuma regulamentação trazem garantias oficiais aos
consumidores de eqüitativo, que devem confiar nos atores do setor. O termo Ŗseloŗ pode ser
utilizado apenas sob a condição de atender a uma exigência tripla: dispor de um caderno de
encargos sujeito a controles independentes, certificados por um organismo que seja ele
próprio independente e aceito pelos poderes públicos. Nenhuma organização do CJ atende a
essas exigências atualmenteŗ.

Para esta perspectiva, os maiores beneficiários do CJ são

Ŗas estruturas de auditoria e os intermediários da certificação, junto com as transnacionais


de agroalimentos. Para estas últimas, sem nenhum custo de fato, dado que se contentam em
pagar um pouco mais caro uma quantidade ínfima de matérias-primas supostamente
eqüitativas, que elas logo repassam superfaturadas a consumidores em busca de eqüidadeŗ
(ibid.).

Denunciam que a ênfase do CJ em commodities de exportação prejudica os cultivos


domésticos e a soberania alimentar das populações locais. Mesmo Johnson, que não está ao lado
dos críticos que condenam o CJ certificado, informa que

ŖEl resultado de esta apertura del mercado de países del Norte al quinoa provocñ al parecer
un cierto nivel de escasez en algunas regiones de los Andes y precios elevados en el
mercado local. Ello se debe a que los productores prefieren exportar, dificultando el acceso
de la poblaciñn local al cereal para mejorar su régimen alimenticioŗ.

Para Esther Vivas1,

Ŗla certificaciñn solo es útil para las grandes cadenas de distribuciñn quienes necesitan del
sello para justificar la Ŗjusticiaŗ en origen de los productos que venden. El sello reduce la
complejidad del comercio justo al producto, sin tener en cuenta al resto de actores que
participan en la cadena comercial. Multinacionales como Nestlé, Mc Donalds, Starbucks...

1
¿Comercio justo en el súper? Rebelión 20-11-2007 ¿Un sello para vender más?
130
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

han empezado a sacar productos y marcas propias de comercio justo con el sello FLO.
Vincular estas empresas al comercio justo gracias a uno de sus productos está produciendo
una pérdida de credibilidad y de claridad del mensaje que ninguna ampliación prevista del
mercado del comercio justo podrá compensar.ŗ

Por outro lado, os que se opõem à certificação FLO acentuam que apenas grandes
organizações conseguem obtê-lo, havendo pequenos produtores de ecosol que de fato são justos,
porém não podem aceder ao selo, pois não podem pagar para obtê-lo.

"FLO se acerca a grandes corporaciones nacionales o multinacionales para involucrarlas en


el comercio justo. Ese acercamiento y el alto costo para obtener un certificado empuja a los
productores de café mexicanos otra vez hacia los coyotes, los intermediarios que trabajan
para las grandes empresas internacionales" 1.

Caso simbólico foi quando a Transfair firmou um contrato com a rede de supermercados
alemães Lidl, ao mesmo tempo em que ocorria uma campanha contra ela2, acusada de violar os
direitos de seus próprios trabalhadores. A Attac (Associação para a Taxação das Transações
Financeiras e Ajuda aos Cidadãos) qualificou de "meramente cosmético" o acordo entre Transfair e
Lidl.

4.2. O desafio ecológico.

Outro forte tensionamento no debate sobre o fair trade é sobre seus limites para enfrentar os
graves problemas ambientais contemporâneos. Muitos criticam o CJ por, ao fomentar os circuitos
comerciais, não levar em conta os custos ecológicos e favorecer o empobrecimento da
biodiversidade.

Ora, nem todos os efeitos negativos das trocas internacionais, especialmente os que incidem
sobre o meio ambiente, podem ser superados pelo CJ, pois do ponto de vista ambiental cabe buscar
o Ŗjusto comércioŗ , mais que ampliar o comércio, mesmo que justo.

ŖAs embalagens e os transportes internacionais constituem importantes fatores de poluição.


No atual contexto, eles deverão ser obrigatoriamente utilizados? Será razoável, por
exemplo, incentivar a criação de uma marca registrada de flores para a exportação, nos
moldes do comércio justo, quando se sabe que elas são transportadas por avião?ŗ (Johnson,
69/70).

Nesta perspectiva, um comércio verdadeiramente ecológico deveria incrementar circuitos


mais curtos de comercialização (Ŗde proximidadeŗ ) propícios ao desenvolvimento de novos espaços
de solidariedade. A essência do argumento ecológico é de natureza anti-comercial, pois visa reduzir
o comércio ao mínimo, proclamando as virtudes energéticas da máxima auto-suficiência possível.
Todavia, apesar de vibrarem teoricamente em freqüências diferentes, na prática observa-se um
entrelaçamento do CJ com os mercados orgânicos, resultando numa espécie de Ŗconsumismo
verdeŗ .

1
El comercio justo está de moda. Rebelión, 01-12-2008.
2
Com base no revelador livro ŖSchwarz-Buch Lidlŗ (ŖLivro negro da Lidlŗ) .

131
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Questiona-se o fomento comercial de produtos tropicais que tenham substitutos nos países
do Norte, como é o caso do azeite, açúcar e sucos.

Também há uma grande controvérsia se a introdução dos produtos agrícolas nos circuitos de
CJ contribui para a proteção da biodiversidade nas regiões produtoras, ou se produz efeitos
contrários.

O produto símbolo do CJ e orgânico, o café de sombra, é considerado como um Ŗcafé


amigável com as avesŗ (Anta Fonseca, 2006:7), se diferenciando em muito da monocultura de café
produzida em grandes propriedades e sob o sol que necessita de agroquímicos.

ŖGeneralmente los productores de pequeða escala han mantenido formas de producción de


cultivo café de sombra (…). Estos árboles en conjunto con las practicas de manejo de los
productores de pequeña escala ayudan a sostener los servicios del ecosistema tales como
biodiversidad, suelo, y conservación del agua (Mendez and Bacon, 2005; Moguel and
Toledo, 1999; Perfecto 1996).ŗ

ŖSegún informes del Centro de Aves Migratorias del Smithsonian Institution y otros
estudios generales de avifauna, en México y Colombia, se encontró una disminución del
94-97% de especies de aves en las plantaciones de café con sol en comparación con
aquellas con sombra (SMBC 2007). Los mismos documentos de la pagina de web
Smithsonian Institution, indican que en el Ŗeste de Chiapas, México, los biñlogos han
concluido que las plantaciones de café y cacao manejadas en forma tradicional le ofrecen
sustento a mas de 150 especies de aves; una cifra muy superior a la encontrada en otras
zonas agrícolas y superada unicamente por la encontrada en los bosques tropicales sin
agricultura intensivaŗ (SMBC 2007). Se estiman que en algunos partes del continente mas
utilizada por las aves migratorias Ŕ Mesoamerica, las islas del Caribe y Colombia Ŕ"los
bosques" de las plantaciones de cafe bajo sombra cubren 2.7 millones de hectáreas (SMBC
2007)ŗ.

Entretanto, Evodia Silva Rivera1, pesquisando sobre os efeitos da produção de café


alternativo (tanto o orgânico quanto o de CJ) por organizações indígenas em Chiapas (México) em
áreas ainda cobertas por uma floresta primária, aponta que vem ocorrendo a substituição dos
bosques e da agricultura de subsistência por um ou dois cultivos, havendo uma forte tendência de
expandir as áreas de cultivo de café.

ŖMotivados por los altos ingresos generados por la exportaciñn de café, un número
considerable de entrevistados de ISMAM cambiaron de producir vegetales o frutas a
cultivar sñlo café y uno o dos cultivosŗ.

Este processo de perda da biodiversidade decorre da entrada destas organizações nas redes
de comércio alternativo. Entre as várias causas de desflorestamento na região, constatou Evodia que
Ŗla pobreza y el deseo de producir más café son razones de peso para contribuir a la utilización de
los bosquesŗ (ibid.).

1
Silva, 2006. Revista Iberoamericana de Economía Ecológica Vol. 3: 49-62. http://www.redibec.org/IVO/rev3_04.pdf.

132
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ŖEn las últimas dos décadas su actividad principal ha sido el café, y su contacto principal
con el exterior ha sido a través del comercio alternativo. Ahora que el comercio alternativo
ha creado las condiciones económicas para estabilizarse, se sintieron motivados a
transformar sus actividades productivas de la agricultura de subsistencia a la producción de
café alternativoŗ.

5. México: berço e túmulo do comércio justo?


Corte de café

Aquél siembra café con sus manos rugosas


Éste poda el café con sus ásperas manos
Otro corta el café con manos rudas
Manos iguales despulpan el café
Alguien lava el café y se hiere las manos
Otro cuida el café mientras se seca y se secan sus manos
Alguien dora el café y se quema las manos
Otro más va a molerlo y a molerse las manos
Después lo beberemos amargo.
(Efraín Bartolomé)

O México é a nação do Sul onde o comércio ético está mais avançado. Historicamente, é em
torno do café mexicano que se constituiu o mecanismo do CJ mundialmente dominante. Face ao
pioneirismo, a importância sócio-econômica e ser um produto emblemático do fair trade, examinar
o caso do café mexicano ajuda a desvendar a dinâmica e os impasses do CJ.

Além de ter sido o primeiro produto do CJ, o café tem sido sua principal mercadoria. É um
produto que simboliza todos os dramas e a injustiça do comércio internacional, pois é produzido por
uma multidão de trabalhadores no Sul, e seus preços são fixados por uns poucos compradores no
Norte, para onde a maior parte da sua produção é exportada. O preço duma taça de café numa
cafeteria de primeira classe equivale ao ganho diário de um agricultor. Cinco empresas
transnacionais compram metade dos grãos de café consumidos no mundo e controlam sua cadeia de
valor, enquanto que 25 milhões de famílias de pequenos produtores no Sul padecem as
conseqüências destas relações comerciais (E. Vivas). Em nível mundial, o café representa a segunda
matéria-prima (legal) em importância nos mercados internacionais, só superado pelo petróleo,
ocupando o primeiro lugar entre os produtos agrícolas de exportação.

5.1. A batalha no México rural.

ŖLa batalla por el campo mexicano ha sido larga, cruenta y difícil.


Está lejos de haber terminado, y de su desenlace no solo depende el destino de los campesinos mismos, sino el de la
nación enteraŗ
(Gustavo Esteva)

500 anos de história de infinita violência rural fizeram dos camponeses protagonistas chave
da construção nacional do México. Em 1910, 100 anos após terem feito possível a independência,
camponeses pobres derrubam a ditadura de Porfírio Díaz e fazem a primeira revolução social do
século XX. ŖTierra y libertadŗ . Com este lema fortemente anarquista, Emiliano Zapata aglutinou
seu exército revolucionário que liquidou o porfiriato e plasmou o moderno Estado mexicano. Mas, a
hegemonia militar de Zapata e Villa não se traduziu em poder político, e os camponeses tiveram de
aguardar a reforma agrária do governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940) para que a revolução
camponesa se pusesse em marcha novamente.

133
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Entretanto, se Ŗo movimento agrarista conseguia destruir ou desarticular as antigas


unidades produtivas, vinculadas à fazenda porfiriana, poucas vezes lograva construir outras que as
substituíssem através da organização coletiva camponesaŗ (Esteva, 46). Nesta situação, o domínio
absoluto ao longo de décadas do Partido Revolucionário Institucional (PRI), presente amplamente
nas organizações estatais que regulavam fortemente todos os grupos sociais, cobrou alto preço,
passando a sujeitar os camponeses promovendo organizações implantadas desde cima e externas à
própria vida dos mesmos.

Progressivamente, passa a ter decisivo papel na estrutura de poder local e regional o


Cacique, operando como intermediário entre os camponeses e as autoridades nacionais, levando as
contradições sociais mexicanas a um Ŗcallejñn sin salidaŗ . A partir dos anos 70, buscando saídas
para a Ŗditadura perfeitaŗ do PRI, recobram força organizações camponesas e indígenas
independentes do Estado, o que, face às contradições e à estrutura coronelística de poder dominante,
incrementa a violência no campo.

Varridos por ventos neoliberais, os anos 80 foram de forte crise econômica para o México.
Coincidindo com o desaparecimento da regulação internacional dos preços do café, as novas
políticas de diminuição da intervenção estatal levaram em 1989 ao processo de liquidação do
INMECAFE, órgão federal de apoio e controle deste setor. Somado a queda brutal dos preços
mundiais, decorrente da ruptura dos acordos da Organização Internacional do Café, que colapsa
com a pressão desregulamentadora, os produtores de café, abandonados à sua própria sorte,
partiram em busca de alternativas e organizações independentes. Porém, muitos migraram ...

ŖPobre México, tão longe de Deus, tão perto dos Estados Unidosŗ . Ainda que os problemas
no relacionamento com os EUA sejam antigos, a avalanche migratória se agrava com a entrada em
vigor em 1994 do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), e com a maior queda
de preços da histñria do café. Com três mil quilômetros de fronteira com a Ŗterra prometidaŗ , o
México é o país de maior imigração do mundo: 25 milhões de cidadãos no exterior, equivalente a
22% dos que permaneceram no país, confirma os mexicanos como um povo plurinacional (pois se
somam aos 12% de presença indígena na população, com 56 etnias1).

O NAFTA levou a comprometer parte substancial do mercado interno de grãos básicos,


afetando a soberania alimentar mexicana. De auto-suficiente e exportador de alimentos básicos, o
México passou a importar 40% dos grãos e oleaginosas que consome. A população que permaneceu
no campo, se já era pobre, ficou ainda mais miserável. As políticas neoliberais trouxeram a ruína do
México rural.

Neste longo processo, merece destaque a permanente presença no meio rural de


organizações comunitárias, o que em parte se explica pela proteção jurídica dos ejidos advinda da
Constituição de 1917; e pelos limites legais a que o capital tivesse acesso direto à agricultura, pois
estava proibido que empresas mercantis explorassem a terra. As reformas agrárias ao longo do séc.
XX e os processos de resistência e de organização social geraram uma progressiva recuperação da
posse da terra pelas populações indígenas e camponesas, levando a reconhecer a propriedade
coletiva em 103 milhões de hectares pertencentes a 30.000 ejidos com 3,1 milhões de famílias.
Assim, índios e Ŗíndios desindianizadosŗ possuem mais da metade do território nacional.

Ou seja, a comunidade rural, ao invés de dissolver-se como classicamente ocorre com o


avanço do capitalismo, permaneceu como opção concreta com potencial para alavancar alternativas
de desenvolvimento que porventura apresentarem-se no processo histórico.

1
Conf. Gilberto Lñpez y Rivas. ŖMéxico: las autonomías de los pueblos indios en el ámbito nacionalŗ, p. 53. In: L.
Gabriel; G. Lópes y R. (coord.). Autonomías indígenas en América Latina. Plaza y Valdes ed., 2005.

134
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

5.2. O sistema camponês-indígena de produção de café.

ŖNo se trata de demostrar que como productores de ciertas mercancías somos tan eficientes como el que más; se trata
de demostrar que además de estas mercancías producimos bienes sociales, ambientales y culturales absolutamente
irrenunciables, y que en esta tarea somos mucho más eficientes que los empresarios agrícolas y las agriculturas
primermundistas (…). Los campesinos no sólo cosechan maíz, fríjol, chile o café; también cosechan aire limpio, agua
pura y tierra fértil; diversidad biológica, societaria y cultural; pluralidad de paisajes, olores, texturas y sabores;
variedad de guisos, peinados e indumentarias; sin fin de rezos, sones, cantos y bailes … Los campesinos cosechan la
inagotable muchedumbre de usos y costumbres que los mexicanos somosŗ.

(Armando Bartra)

A presença contemporânea duma agricultura e silvicultura de base indígena produtora de


destacados artigos básicos para o sustento da população é uma conquista deste México profundo e
persistente.

México, quinto produtor mundial de café, pratica um cultivo minifundista em geral sob
sombra e acompanhado de outras espécies (normalmente destinadas para o auto-consumo), com 280
mil produtores, dos quais 92% tem menos de 5 hectares, sendo 65% destes pequenos cafeicultores
membros de grupos indígenas.

Os baixos custos de produção no Brasil e Vietnam tornam difícil aos cafeicultores do


México competir no mercado a não ser com algum grau de diferenciação. É a qualidade que
determina o segmento de mercado no qual participará. Isto é: um café de baixa qualidade
permanecerá no segmento de baixos preços, mesmo tendo uma distinção de origem, social ou
ambiental, enquanto que um de alta qualidade obterá melhores preços.

A produção de café se concentra nas zonas mais pobres do sul do México, representando
uma das poucas oportunidades de obter uma renda monetária para a população rural destas regiões.

ŖEl café es un grano básico y su cultivo de primera necesidad, no por que su consumo
resulte indispensable ni por haber sido por décadas la mayor exportación agropecuaria, sino
porque de el dependen alrededor de 3 millones de personas. Una población de bajos
ingresos y pocas alternativas distintas del café Ŕ que no sea el narcocultivo Ŕ ubicada en las
regiones más pobres en economía y a la vez más ricas en biodiversidad; zonas donde
radican también la mayor parte de los pueblos autóctonos y donde han operado y operan
todas las guerrillas libertarias. Por si fuera poco, después de los granos básicos, el café es la
actividad unitaria más empleadora en la región sur-sureste de México y en el conjunto de
los países centroamericanosŗ.

Após sobreviver às inúmeras políticas anticamponesas do Estado mexicano e às profundas e


devastadoras crises da economia cafetaleira, as famílias de pequenos produtores de café hoje
mostram que seu sistema de produção é viável e configura uma resposta social criativa e
independente. Isto leva Josefina Aranda1 a afirmar que o café mexicano é um autêntico sistema
campesino-indígena de produção, pois:

1. Grande parte da área cultivada com café no México corresponde a produtores indígenas que
trabalham com menos de cinco hectares.
2. A produção de café ocorre no contexto de uma economia doméstica camponesa.
1
Para poder vivir: la experiencia de la CEPCO IISUABJO. La Jornada Ecológica 30.08.2004.

135
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

3. A produção de café se dá basicamente em comunidades e regiões que possuem severas


carências na dotação e funcionamento de todo tipo de serviços e infra-estrutura básica.
4. Os produtores de café possuem um forte espírito comunitário para o trabalho e para a
organização.

Enfrentando o cenário desolador formado pelas políticas neoliberais nos anos 80/90, os
agrupamentos cafeicultores passam de simples representações clientelares unidas ao Estado e ao
PRI e fortemente explorados por coyotes, para construírem organizações independentes e uma
estratégia produtiva autogestionária.

Os cafeicultores são o ator do setor social mais organizado do país. A partir de 1988, para
controlar o processo de produção e comercialização e solucionar seus problemas, várias
organizações regionais de pequenos cafeicultores fundaram a Coordinadora Nacional de
Organizaciones Cafetaleras (CNOC)1, uma rede nacional autônoma formada por 125 organizações
que agrupam 75 mil pequenos produtores de café.

Até 2006 o México era o principal produtor de café (e mel) orgânico Ŕ e com selo de
garantia de CJ Ŕ no mundo, tendo sido superado pelo Peru que vem ampliando rapidamente sua
produção. 10% das plantações de café do país e 33% da superfície cultivada mexicana são com
métodos orgânicos. 2/3 do seu cultivo ocorre em regiões com selvas e bosques, havendo nas regiões
cafeicultoras uma grande diversidade de fauna e flora.

Operando com eficiência no nicho do circuito da agricultura orgânica e do CJ, diferenciam


sua produção, agregando aquilo que os camponeses mexicanos têm maior vantagem comparativa,
que são os valores sociais e ambientais, dando visibilidade internacional para a cafeicultura
mexicana. Chiapas e Oaxaca, não por acaso os estados com maior concentração de população índia,
maior diversidade biológica e maiores níveis de pobreza do México, detinham em 2005, de acordo
com Certimex, 58% e 31% da área orgânica cultivada com café, totalizando mais de 70 mil hectares
distribuídos entre 34 mil produtores.

O desaparecimento da Organização Internacional do Café gerou imensas flutuações nos


preços e grandes tormentas no mercado mundial de café. Com os preços extremamente baixos, o
CJ, ao assegurar um preço mínimo e um nicho estável de mercado, não apenas impediu um
empobrecimento ainda maior dos pequenos produtores, como também garantiu um Ŗsalário
mínimoŗ ou um Ŗseguroŗ aos mesmos, lhes propiciando uma relativa estabilidade econômico-
social. Podendo contar com um preço fixo pela colheita, e até mesmo com pagamento antecipado de
parte da produção (crédito), os cultivadores de café registrados no CJ planificam melhor suas
necessidades familiares, enquanto quem está no mercado convencional tem de esperar pela venda
de seu café para saber quanto irá obter.

5.3. O movimento orgânico e de CJ do México.

ŖSon cosas chiquitas.


No acaban con la pobreza, no nos sacan del subdesarrollo,
no socializan los medios de producción y de cambio,
no expropian las cuevas de Alí Babá.
Pero quizá desencadenen la alegría de hacer, y la traduzcan en actos.
Y al fin y al cabo, actuar sobre la realidad y cambiarla aunque sea un poquito,
es la única manera de probar que la realidad es transformableŗ
(Eduardo Galeano, Bajo el Mismo Techo)

1
http://conoc.org.mx/index.html.

136
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O CJ mundial, na forma como amplamente hoje é conhecido, surgiu há pouco mais de 20


anos através da aliança entre a organização indígena UCIRI1(que nasce a partir da igreja da
teologia da liberação, com apoio de Alberto Lona, bispo de Tehuantepec) e Solidaridad, agência de
cooperação com o Terceiro Mundo da Igreja Católica holandesa2.

A Unión de Comunidades Indígenas de la Región del Istmo (UCIRI) é a experiência


pioneira na organização dos pequenos produtores de café e no seu relacionamento com o
movimento de CJ na Europa. Fundada em 1983, UCIRI aglutina 2.300 famílias sócias distribuídas
em 53 comunidades na região do Istmo de Tehuantepec, em Oaxaca.

UCIRI se dedica a produção de café orgânico desde sua origem. Graças ao seu fundador, o
padre de origem holandesa Frans van der Hoff, ela já surgiu em contato com o movimento europeu
de CJ. Desde 1986, com seu aliado holandês, UCIRI analisa a factibilidade de um sistema que
permitisse a distribuição massiva dos produtos das cooperativas de cafeicultores, garantindo um
preço mínimo, independente do mercado.

Além de UCIRI, existem no México mais de 30 organizações pequenos cafeicultores que


praticam o CJ, entre as quais destacamos:

 Coordinadora Estatal de Productores de Café de Oaxaca Ŕ CEPCO (agrupa 34 organizações,


com 23 mil sócios): http://www.cepco.org.mx/;
 Sociedad de Solidaridad Social Indígenas de la Sierra Madre de Motozintla Ŕ ISMAM (em
Chiapas, com 1500 produtores indígenas);
 Unión de Ejidos de la Selva (com 1300 produtores indígenas de Chiapas, sócio da rede de
cafeteria ŖLa Selvaŗ : 22 lojas sob franquia em cidades mexicanas e em Amsterdã, Barcelona e
Paris);
 Unión de Ejidos y Comunidades del Beneficio Majomut (Chiapas: 1700 famílias produtoras
indígenas de café em 32 comunidades): www.majomut.org/;
 Sociedad de Solidaridad Social Tiemelonlá Nich K'lum (Chiapas: 580 produtores
indígenas);
 Unión de Ejidos San Fernando (mais de 1000 produtores em Chiapas):
http://www.biocafe.org.mx/;
 Cooperativa Tosepan Titataniske (Ŗunidos venceremosŗ em nahuatl. 5.800 sócios indígenas
de 60 comunidades em Puebla: http://www.tosepan.com/).

O caso mexicano também é muito rico por ter logrado constituir com sucesso um importante
mercado interno de CJ, sendo o único país do Sul que estabeleceu, em 2001, um selo próprio de
1
http://www.uciri.org/.
2
Assim como em toda AL, também no México o protagonismo social dos cristãos, que se lançaram para o meio popular
a partir dos anos 60, teve um decisivo papel para o avanço contemporâneo da organização indígena. A força da Igreja
dos pobres também está presente especialmente em Chiapas (com D. Samuel Ruiz); Morelos (D. Sergio Méndez
Arceo); e Guanajuato (D. Rogelio Orozco).

137
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

âmbito nacional1. A Comercio Justo México (CJM)2 nasceu em 1999 a partir da iniciativa de
organizações de pequenos produtores agrícolas, principalmente cafeicultores, visando promover a
venda de produtos no interior do país. Os demais países do Sul praticamente se limitam a exportar
seus produtos de melhor qualidade para o Norte.

Uma importante diferença para com o fair trade da FLO, é que o CJM apenas reconhece as
organizações de pequenos produtores. O selo mexicano de CJ possibilita diferenciar os produtos dos
pequenos produtores mexicanos no mercado de consumo, bem como valoriza mercadorias não
apreciadas nos países do Norte (mesmo pelo CJ), mas que no México tem forte demanda, até
porque são centrais para a subsistência da população. Isto proporciona um desenvolvimento
territorial mais integral, pois fortalece os circuitos econômico-solidários ao permiti-los expandir
cultivos básicos para a segurança e soberania alimentar, como nopal (e tuna)3, amaranto4, e as
inúmeras espécies de milho crioulo, por exemplo.

Além disto, contribui para quebrar as relações coloniais presentes quando o Sul meramente
se adapta a produzir aquilo que agrada apenas aos gostos dos consumidores do Norte, ainda que
pautado por padrões éticos. Entretanto, mesmo dentro do México a presença do fair trade ainda é
marginal.

Jerónimo Pruyn, diretor executivo da CJM, esclarece que

"Tenemos una red dual: redes alternativas de consumo y distribución, pero también de los
grandes supermercados. No es porque estemos en favor de ellos o no, sino que la mayoría

1
No Sul do Brasil há um sistema alternativo mais adequado aos pequenos produtores familiares que cultivam produtos
destinados ao mercado local e regional. É o sistema de Certificação Participativa da Rede Ecovida, onde participam
das auditorias os próprios grupos de produtores, organizações da sociedade civil e consumidores. Ele supera os limites
da certificação por terceiros, que são os sistemas de certificação dominantes no CJ, que operam através de uma
auditoria feita por uma terceira parte que não possui vínculos com o produtor a ser certificado, tendo, portanto, elevados
custos. Trata-se de um selo agro-ecológico, não é reconhecido pela FLO.
A rede Ecovida de Agroecologia (http://www.ecovida.org.br/) surgiu em 1998 e é formada por grupos de agricultores
familiares, ONGs de assessoria e pequenas unidades de transformação de produtos ecológicos no Sul do Brasil.
Esta experiência dos Ŗsistemas participativos de garantiaŗ tem sido replicada pelo movimento agroecológico latino-
americano e difundindo-se mundialmente, com destaque para o México (adotado na Red Mexicana de Tianguis y
Mercados Orgânicos: http://www.mercadosorganicos.org.mx/), Costa Rica, Cuba, Peru, Uruguai, Estados Unidos e
outros países.
2
http://www.comerciojusto.com.mx/.
3
Tuna é a Flor do nopal, uma espécie de cactus. Entre as organizações populares produtoras de Nopal realço:
Asociación de Productores de Tuna Orgánica del Valle de Teotihuacan (tunaeco@yahoo.com.mx); Nopalvida
(cooperativa sediada em Tlalnepantla, e que tem um ponto de vendas na Central de Abastos (DF).
4
Merece destaque o grupo cooperativo Quali, uma rede produtora e comercializadora de Amaranto, com 1.100
produtores em 80 povoados: http://www.quali.com.mx/.

138
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

de la gente compra ahí. El éxito del comercio justo fue estar al alcance de un público más
grande. Puede haber una contradicción, pero es precisamente parte del éxito, porque eso ha
permitido que haya volúmenes relevantes. Si nos limitamos al mercado con conciencia no
vamos a generar impacto en las comunidades de productores" (grifo nosso).

Operando de forma similar à FLO, mas numa escala nacional e sob controle dos produtores,
a CJM insere-se no Ŗmovimento orgânico e de CJ do Méxicoŗ , o qual é também composto pela
Coordinadora Mexicana de Pequeños Productores de Comercio Justo (ou ŖCoordinadora Mexicana,
CM)1; pela empresa Agromercados2 (que presta serviços de comercialização e distribuição); pela
certificadora Certimex3 (inspeciona e certifica organizações e produtos orgânicos e de comércio
justo); e pela SERJUSTO Ŕ Servicios integrales para el CJ4 (uma agência de assessoria, assistência
técnica, investigação e capacitação). Estas cinco organizações formam hoje o sistema de comércio
justo mexicano.

A CM é uma plataforma organizativa que agrupa as entidades de pequenos produtores


envolvidas no CJ, surgindo em 2007 da Coordinadora Mexicana de Productores de Café de CJ (que
por sua vez nasce em 2001 no processo de construção da CJM). Ela é a instância de coordenação e
representação de todas as organizações mexicanas de pequenos produtores do movimento orgânico
e de CJ, agrupando mais de 40 mil famílias. A CM faz parte da Coordinadora Latinoamericana y
del Caribe de Pequeños Productores de Comercio Justo (CLAC)5.

5.4 Impacto do CJ de Café sobre os produtores: uma grande transformação agrária?


ŖSin embargo los alcances aun son insuficientes. En las diferentes investigaciones se ha encontrado que la vía
del Comercio Justo ha, generalmente indicado una propuesta esperanzadora para los productores pero lenta,
costosa y de toma de conciencia de los riesgos que asumen. Las intenciones y la visión del Comercio Justo
siguen siendo validas y aplicables en el contexto de América Latina y el Caribe sin embargo las
organizaciones de productores a pequeña escala también hacen una llamado al cumplimiento de los
estándares, al volverse a la visión original de Comercio Justo a no permitir la competencia desigual con las
trasnacionales y grandes compañíasŗ.
(Bacon; Flores, 2007)

A princípio, a estratégia mexicana de CJ é bem sucedida comercialmente. Não há dúvida de


que o café mexicano de CJ é um exemplo paradigmático do processo de construção social dos
mercados, confirmando o papel protagônico dos consumidores e produtores organizados, e
desmentindo as teorias econômicas que afirmam serem estes indivíduos atomizados que apenas
maximizam seu bem estar no mercado (Gonzáles, 106). O fair trade possibilita retirar a
comercialização e transformação do café das mãos dos grandes produtores e transformar o frágil
campesinato em um importante ator do jogo econômico. O comércio eqüitativo beneficia as
populações indígenas, fortalecendo sua autoestima, identidade, impulsionando uma maior equidade
de gênero6, e gerando dinâmicas de desenvolvimento endógeno.

O amplo, e raro, estudo do impacto do sistema de café de CJ na AL e Caribe promovido pela


CLAC (Bacon; Flores, 2007), fez um balanço global do efeito sobre os produtores através da
geração de indicadores de impacto organizacional, de impacto nas moradias dos produtores, e de
1
http://www.coordinadoramexicana.org/.
2
http://www.agromercados.net/.
3
http://www.certimexsc.com/.
4
http://www.serjusto.com/.
5
http://www.clac-comerciojusto.org/. 195 associações de pequenos produtores de café certificados como CJ, de 14
países de América Latina e Caribe, estão inscritas na CLAC.
6
Sobre a perspectiva de gênero no CJ ver Charlier e Del Castillo (2009).

139
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

impacto comunitário. Mesmo reconhecendo que os resultados comunitários foram medidos em


menor escala que os outros dois níveis de impactos, informa que

ŖEn México, Guatemala, El salvador, Nicaragua encontramos que las cooperativas también
han invertido en la construcción de pozos para acceder a sistemas de agua eficientes y a
mejorar las calidad de la misma usando filtros. Otro beneficio directo para las comunidades
son las reparaciones de caminos hacia las zonas cafetaleras, el fortalecimiento de las redes
de apoyo social y servicios en la atención a salud, cooperativas como SOPEXCA en
Nicaragua coordinan programas para que las comunidades reciban atención medica.ŗ

Entre os impactos positivos do café de CJ, o relatório da CLAC ainda destaca

Ŗelevar el nivel educativo en principio de las y los hijos de los miembros de las
cooperativas (…), el acceso y conocimiento en ventas de café a mejores precios por las
organizaciones, el desarrollo empresarial, la trazabilidad, el mejoramiento de la calidad del
café, el incremento de los ingresos adicionales a las organizaciones de PP y el contribuir
mediante las organizaciones a la lucha de las familias en el acceso y conservación de la
tenencia de sus tierras y en la inversión en su desarrollo social y productiva. Sin embargo
los ingresos siguen siendo insuficientes, desiguales e injustosŗ (grifo nosso).

Apenas de 20 à 25% do café produzido pelos produtores certificados é vendido nas redes de
1
CJ . O retorno obtido nas redes alternativas é insuficiente para cobrir todos os custos da produção
ecológico-solidária. Assim, os cafeicultores permanecem vinculados ao mercado convencional, pois
tanto nele vendem o restante da produção, quanto com ele negociam quando os preços dele forem
atrativos, enfraquecendo suas cooperativas e debilitando-os se os preços voltarem a cair.
Efetivamente, se os preços do fair trade deixarem de ser atrativos por um longo período, os
produtores repensarão seu vínculo com o mesmo.

Portanto, é bom ter cautela antes de proclamar os resultados, pois o sistema camponês-
indígena de café não existe em estado de pureza, mas coexiste entranhadamente com o dominante; e
seus participantes, mesmo quando integrados ao fair trade, continuam lutando pela sobrevivência e
contra a pobreza.

Ao contrário dos que afirmam que o fair trade reduz a imigração, um estudo em Oaxaca
(Lewis e Runsten, 2005) mostrou que os membros das cooperativas de CJ mais prósperas na
realidade imigravam mais que as demais pessoas da comunidade. O irônico está em que a imigração
se faz possível porque os ingressos relativamente superiores que agora obtinham lhes permitia pagar
as caras comissões dos coyotes para cruzar a fronteira estadunidense. (Lewis, 2005).

Cabe ter cuidado com afirmações generalizadas e conclusivas tanto sobre os impactos do CJ
(pois seus efeitos práticos sobre as populações produtoras variam conforme a visão e as estratégias
adotadas por cada organização de base, as quais são muito diversas); quanto a respeito de quanto
ganham os campesinos, pois estamos falando populações em situações muito difíceis. Hoff 2 já
esclareceu que com o café as famílias aumentaram sua renda de um dólar por dia, para dois
dólares…

1
Bacon; Flores, 2007: 6.
2
ŖCon el café han aumentado su ingreso en un 100%: antes era un dólar por dia, ahora son dos dólares. Es un paso de
una miseria a una pobreza más digna y decorosa. Pero hay un largo camino por andarŗ. In: SETEM. El Comercio
Justo en España 2006.
140
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Se levarmos em conta o preço pago pelos intermediários locais nas épocas de crise do café,
os sócios das cooperativas obtêm o dobro e até o triplo do mesmo. Quando os preços flutuantes do
mercado internacional estavam baixos, o cultivo certificado (orgânico e social) recebeu em média
1/3 acima, evitando a perda nas épocas mais difíceis de aproximadamente 750 dólares anuais por
família (considerando uma produção média familiar de café de 1.000 libras, e que 25% dela é
vendida no CJ). Ainda que a certificação proteja o produtor dos caprichos do mercado e mitigue
parcialmente as penosas condições de vida dos trabalhadores rurais, ela não é suficiente retirar as
suas famílias da situação de pobreza em que se encontram (Bacon; Flores, 2007: 26).

Em verdade, a comparação com o café convencional é indevida pois os custos da produção


alternativa também são maiores. Além disto, como o café certificado compete no mercado de café
de café de alta qualidade, cujo preço internacional é mais elevado, a diferença de preço é mínima,
pulverizando o prêmio (valor pago acima do preço mínimo certificado) social e ambiental que a
organização recebe do CJ.

A CLAC demonstrou que, com o preço do mercado justo de café fixo por mais de 10 anos, o
preço real baixou significativamente face à inflação, havendo simultaneamente um aumento dos
custos da produção sustentável e participativa (bem maiores que a tradicional). Isto impediu que as
comunidades vinculadas ao CJ tivessem um processo de desenvolvimento mais amplo. Decorrente
deste estudo e das pressões da CLAC, bem como da recuperação dos preços internacionais do café,
em 2007 a FLO reajustou seus preços para o café.

É bom não esquecer que, diante do cenário de crise profunda da economia cafeicultora, as
cooperativas de café contribuíram decisivamente para que a propriedade da terra se conservasse nas
mãos dos pequenos produtores. Perante os preços do mercado convencional, estima-se que, até
2006, o CJ tenha agregado mais de 200 milhões de dólares às cooperativas com produção
certificada (social e ambiental) de café vinculadas à CLAC.

Para Bartra (83) esta conversão produtiva para um Ŗcafé social e sustentávelŗ de regiões
cafeicultoras empreendida por um conjunto de pequenos e médios produtores organizados é uma
Ŗgrande transformação agráriaŗ . Mas, o sucesso comercial, político e cultural resume-se a ser uma
fonte de renda regular e dar estabilidade para o pequeno produtor rural, propiciando-lhe uma rede
de segurança frente à queda de preços e reduzindo sua histórica vulnerabilidade. Isto não é pouco.
Até que ponto este aparente Ŗtriunfoŗ da cafeicultura social indica a construção de um outro
mercado mais justo, solidário e ecológico? Isto também significa que CJ está a mudar as regras do
jogo comercial, correspondendo às expectativas de sua gênese?

5.5. Alternativo?

ŖMás que una muestra de respeto a los gustos naturalmente heterogéneos del consumidor, la diversificación de la
oferta impulsada por las transnacionales es una estrategia mercantil orientada a la creación de necesidades
específicas y particulares que viene a sustituir la creación de necesidades homogéneas y masivas, predominante hasta
mediados del siglo pasado. Se trata de una construcción social del gusto, inducida por la publicidad y basada en
modelos culturales que empiezan por la higiene para seguir con la salud, la estética, la ecología, la autenticidad, la
solidaridad, y una vertiente que va del exotismo a la etnicidad y aterriza en la solidaridad con los indiosŗ.

(Armando Bartra)

Efetivamente, seu Ŗsucessoŗ é também seu maior risco, e isto não ocorre sem pesados ônus.
Além dos efeitos ambientais e econômico-comunitários já vistos, analisaremos agora as
141
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

repercussões políticas e sociais deste Ŗêxitoŗ , pois o CJ, como todo comércio de grande escala
internacional, imprime novas relações e transforma os territórios onde opera.

a) Ora, o CJ emerge num determinado momento histórico, possui uma dinâmica que não se
encontra isolada duma totalidade, e somente dentro desta poderá ser melhor compreendido.

O CJ é uma das formas pelas quais os grupos indígenas ingressam na globalização. Outras
são a migração e/ou o assalariamento, e mesmo como arrendatários.

Saber qual é a repercussão do CJ na sociedade atual exige examiná-lo no contexto mais


amplo de uma globalização perversa (globalitarismo), a qual integra fragmentando territórios e
populações, ampliando disparidades regionais e sociais que confirmam o longo processo de
desenvolvimento desigual do capitalismo. Nas últimas décadas, hegemonizadas pelo Consenso de
Washington de liberalização e desregulamentação, novos fluxos e novas mercadorias irromperam,
rearranjando os espaços de poder.

Em geral, o crescimento dos fluxos comerciais tende a aproximar territórios. Na


globalização contemporânea, cada vez mais os espaços se integram mundialmente, mas com
imensas concentrações e assimetrias.

Diante deste quadro, os novos circuitos econômicos do fair trade espacialmente significam
que agora há regiões especializadas no CJ. Isto traz novas configurações territoriais, alterando
parcialmente a hierarquia entre os espaços centrais que mandam, e os periféricos que obedecem,
pois conecta de modo mais equilibrado o campo com a cidade, o Norte com o Sul intensificando
atividades econômicas que trazem uma maior distribuição do valor gerado.

Neste sentido, navegando em direção oposta às tendências mundiais imperantes na


comercialização do café, o fair trade é uma relativa dissonância no comércio mundial. Enfrentando
poderosíssimos cartéis que controlam a indústria alimentar, especialmente a cadeia do café,
representa um contra-fluxo que permite o desenvolvimento de povos e territórios antes esquecidos
(Chiapas e Oaxaca são as regiões mais pobres e de maior presença indígena no México), uma nova
forma de relacionar o moderno com o não moderno.

Porém, ao Sul ainda cabe o fornecimento de produtos primários (commodities), e o Norte


ainda controla os termos de troca (pois são organismos destes países que detém o poder de decisão
na FLO). Ou seja, não apenas reforçam-se os papéis tradicionais da divisão internacional do
trabalho e sua matriz colonial de poder, mas gravita-se em torno da produção de mercadorias
produzidas intensivamente (monocultura) destinadas ao mercado global, aspecto fulcral do sistema
capitalista moderno.

Carraro, Verdú e Fernándes (2005: 114) acrescentam ainda que, como mais 70% dos
produtos de alimentação (principal categoria de venda) do CJ culminam seu processo produtivo nos
países do Norte, esta agregação de valor beneficia o circuito econômico do Norte e Ŗmantiene aún
hoy la tradición neocolonial de las estructuras de desigualdad en el intercambio comercial Norte-
Surŗ que desvaloriza os produtos primários e sobrevaloriza os de maior composição tecnolñgica.
Nestas circunstâncias, Ŗel pago de un precio justo mejor que el ofrecido en las bolsas mundiales,
sólo significa una forma de paliar esta situación, pero por el momento, no de transformarlaŗ
(ibid.).

É também no âmbito deste contexto que se explica a ausência de regulações políticas destes
novos fluxos comerciais que se pretendem justos. Mas, também é este quadro, de precarização das
condições trabalhistas, que permite vislumbrar adequadamente a relevância destes novos
intercâmbios respeitosos das condições de trabalho.

142
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

b) Descolamento entre as redes indígenas econômicas e políticas.

Observa-se um fortalecimento da organização indígena e suas demandas por autonomia no


México contemporâneo, fenômeno que se agudizou com o levante do Ejercito Zapatista de
Liberación Nacional (EZLN) a partir de 1994. Que relações isto teria com o crescente
fortalecimento econômico das redes camponesas de CJ no mesmo território? Até que ponto o
empoderamento econômico indígena não refletiria e transbordaria para o plano político
autonômico? Para além da coincidência espacio-temporal-étnica, ambas redes lutam
simultaneamente por uma outra globalização, questionando profundamente o projeto neoliberal
encarnado pelo NAFTA e o sistema político-econômico mexicano.

Porém, parece que o relacionamento destes vizinhos não vai bem. Fato revelador das
dificuldades ocorreu em 2007, quando entidades da sociedade civil mexicana convocaram um
boicote dos ŖCafés La Selvaŗ . Um de seus sñcios, a Unión de Ejidos de la Selva, uma exitosa
organização econômica indígena chiapateca, desalojou violentamente 31 famílias de uma
comunidade zapatista que nela viviam como refugiados da guerra civil mexicana. A UES foi então
acusada de ser uma organização paramilitar1.

Infelizmente, a literatura que discute a organização política indígena é omissa sobre as


implicações da óbvia coexistência destas redes. Tanto os trabalhos de Lópes Bárcenas, quanto de
Días-Polanco, por exemplo, descrevem muito bem (antropológica, política e juridicamente) o
fortalecimento da comunidade indígena no México contemporâneo, inclusive demonstrando que,
nestes tempos de autonomia, a comunidade indígena está se transformando aceleradamente. Porém,
não discutem a inserção das mesmas nas redes de CJ e os impactos do fair trade sobre as
comunidades.

Em verdade, esta literatura reflete o descolamento real entre as organizações políticas de


base índia e suas similares redes econômicas. Esta dissociação decorre tanto dum esquerdismo que
deprecia a importância da auto-organização econômica comunal, quanto das direções das
organizações de CJ atentas apenas às Ŗnŗ demandas de natureza comercial.2

Há aqui uma não sintonia entre a afirmação radical da autonomia das comunidades e seu
caráter alternativo, e a perspectiva do fortalecimento de uma economia não capitalista.

Alguns argutos observadores da cena zapatista alertam para a necessidade de que a condição
para o êxito político do movimento zapatista e das demandas autonômicas depende de estar
alavancado em alternativas econômicas em suas regiões3. Toledo (1999; 2001) chama de Ŗoutro
zapatismoŗ ou Ŗzapatismo silenciosoŗ as experiências comunitárias e de cooperativas de autogestão
e empoderamento social fundadas no controle dos territórios, na produção ecológica e orientadas
pelos princípios do Ŗdesenvolvimento sustentávelŗ.

O fortalecimento comunal não está fora do espaço do comércio. Uma comunidade que não
tenha controle sobre suas cadeias de comercialização é uma debilidade, assim como a seletividade
1
Ver a notícia em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=63170;
http://www.jornada.unam.mx/2007/08/05/index.php?section=politica&article=015n1pol.
2
A pesar desta apartação organizacional-política, a coexistência espacio-temporal com a luta autonomista indígena gera
graves problemas para as cooperativas. Em 1994 os militares ocuparam a escola de agricultura de UCIRI em Oaxaca,
acusando-a de ser um centro de adestramento paramilitar do EZLN, agredindo violentamente seus membros (Waridel:
49).
3
Francis Mestries Benquet. ŖEl neo-zapatismo. Entre identidad ampliada y acciñn política estratégicaŗ . El Cotidiano 21
(137), 2006.

Víctor M. Toledo. ŖEl dilema del zapatismo: ¿izquierdismo o sustentabilidad?ŗ

143
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

de CJ como uma espécie de Ŗcomercio para ricosŗ também é um problema. Porém, nenhuma
comunidade tem o controle absoluto de todas suas variáveis, pois não há comunidade que seja
plenamente autista ou totalmente autárquica.

A sustentação econômica e das relações materiais de reprodução das comunidades indígenas


é uma questão estratégica para a construção do poder local e da autonomia comunal. Ou a
autogestão econômica e a autogestão política confluem, pois ambas estão arraigadas na cultura e na
vida cotidiana, ou não lograremos construir o poder popular desde baixo e desde dentro.

Esta divisão de águas crescente entre duas redes de organizações indígenas no mesmo
território, a econômica (cafetaleira) e a política (tanto a zapatista, em Chiapas; quanto a Asamblea
Popular de los Pueblos de Oaxaca Ŕ APPO, em Oaxaca), é grave e preocupante. Se o emergente
fenômeno da organização econômica comunitária não se articula e se envolve com as lutas de
resistência e a ação cidadã, há um perigoso risco de que os inevitáveis câmbios ao interior da
comunidade derivados do Ŗenriquecimentoŗ material proveniente de CJ aprofundem diferenciações
na mesma (castrando a possibilidade de um verdadeiro desenvolvimento comunal), bem como as
cooperativas de CJ sejam absorvidas pelo especulativo mercado global.

c) Dissociação entre CJ e as redes de ecosol.

Constata-se ainda uma dissociação crescente das redes e organizações de CJ, com o
movimento de economia solidária e as organizações indígenas e camponesas que lhe deram origem.
Ao contrário, muitas das organizações camponesas/indígenas estão a comercializar com Wal Mart,
Carrefour, Sanborns, Starbocks...

Fortes redes de economia camponesa e indígena mexicanas participam do CJ. Porém, elas
não pertencem, em geral, às redes de economia social e solidária de México1. A questão é que este
1
Destaco a Red Mexicana de Economía Solidaria, melhor conhecida como Espaço EcoSol/México; a Red Mexicana de
Comercio Comunitario/REMECC (surgida em 2003); e a Red Multitrueque Tláloc.

Recentemente, em breve estância na UAM-X com o prof. David Barkin, entrevistei Frans van der Hoff
(UCIRI); Chilo Villareal (Coalición Rural); Alfonso Vietmeier (Centro de Estudios Ecumênicos); Rafael Jacobo Z.
(Fundación Kolping; Consejo Mexicano de Empresas de la Economía Solidaria); Eduardo Rojo (Comercio Justo
México); Luiz Lopezllera (Promoción del Desarrollo Popular), Vanesa Ramírez Rios (Red de Tianguis/Chapingo);
Fidel Mejía Lara (Asociación de Productores de Tuna Orgánica del Valle de Teotihuacan); José Luis Gutiérrez Lozano
(ComparTiendas: www.aahora.org/compartiendas.php); Melvin Ízael López (Orgacomin, distribuidor de café de origen
indígena: www.orgacomin.org); Jorge Santiago (DESMI/S. Cristóbal: http://desmiac.laneta.apc.org/index.html); Mª
Eugenia Santana (Univ. A. de Chiapas); Armando Bartra (Instituto Maya); Félix Cadena B. (El Colegio de Querétaro);
Héctor Díaz-Polanco (UNAM); Juan Gerardo Domínguez (Unión de Sociedades Cooperativas); Fernando Rodríguez
(U. Majomut); pe. Léo, Gerardo e Carlota Basurto (Comunidades Campesinas en Camino Ŕ CCC/Istmo de
Tehuantepec), entre outros.
Fundada em 1995 a partir da liderança do pe. Léo, a CCC (http://www.ccc-ecotierra.org/index.html) é formada
por 4 mil famílias indígenas e tem uma diversificada produção, onde se realça o azeite de gergelim. Ela também possui
um sistema financeiro próprio: as CAJIN (Cajas Indígenas de Ahorro y Crédito), presidida por Carlota Basurto A.
Participei da Ŗ10ª Feria Nacional de Productores y Consumidores ―Lucha Rivera‖. Por una Vida Digna y
Sustentableŗ, 01-02.08.2009, em Dolores Hidalgo. É o maior evento anual da economia solidária mexicana. Nela não
estavam presentes as fortes redes de CJ.
Também tive oportunidade de visitar a Red Nacional de Mujeres Rurales (http://www.renamur.org.mx/) e sua
loja ŖNáŗ em Cuernavaca; CNOC (Coordinadora Nac. de Organizaciones Cafetaleras; CEPCO (Coord. Estatal de
Productores de Café de Oaxaca); Certimex (Oaxaca); FESolidaridad (Fundación Economía Solidária:
www.fesolidaridad.org.mx/); Sindicato Mexicano de Electricistas Ŕ SME (http://www.sme.org.mx/); Oxfam México (ex
Fund. Rostros y Voces: www.oxfammexico.org/); El Poder del Consumidor; Green Córner; La Selva Café, além de
diversas outras cafeterias, lojas de produtos orgânicos e de comercio justo (como a Kitzin: www.fleonxiii.org.mx) .

144
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

outro mercado modelado pelo fair trade progressivamente se afasta e deixa de se identificar e se
incorporar às redes que militam por uma outra economia, solidária, pelo menos no México. Como o
movimento da ecosol se caracteriza por buscar um enfoque integral do processo econômico,
incorporando, por exemplo, dimensões de territorialidade e soberania alimentar, isto pode significar
que o CJ está se limitando a uma visão reducionista da comercialização.

Como explicar este desencontro?

Devido a grande maioria dos produtores estar na dura luta pela subsistência, o mais provável
é que, em parte, este divórcio advenha das cúpulas organizativas que representam e gerenciam todo
o sistema, as quais se mantêm absortas no gerenciamento comercial do mesmo.

Porém, como efetivamente há uma intrínseca participação democrática dentro do sistema


indígena de produção, e como ele é gerenciado por suas próprias lideranças, não se pode descartar a
hipótese deste distanciamento refletir algo mais profundo.

Os estudos disponíveis dos efeitos do retorno financeiro do CJ sobre as comunidades


camponesas em geral valorizam positivamente os mesmos. Porém não são conclusivos, e não
conhecemos todas as mudanças ocorridas ao interior das mesmas, não sabemos que diferenciações
podem estar a se ampliar.

Infelizmente, há poucos e qualificados estudos de impacto do CJ sobre as comunidades


produtoras. A questão não é apenas avaliar o Ŗimpactoŗ (expressão horrorosa ...) através de contas
financeiras. Se assim fosse, bastaria buscar os números disponíveis na internet. Há uma grande
lacuna de dados, tanto quantitativos, quanto qualitativos.

Há transformações que para captá-las bem há que inserir-se totalmente nas comunidades, há
que falar as línguas indígenas (o que obriga a questionar os estudos feitos por estrangeiros …). Ou
seja, não basta uma análise econômica ou sociológica para revelar o que de mais profundo está se
passando. Fazem falta aqui estudos de corte geográficos que aufiram as novas rugosidades espaciais
imprimidas pelos novos fluxos comerciais. Mas, é uma lástima que os antropólogos em geral não se
preocupam com a dimensão econômica das comunidades camponesas, pois eles, com sua
metodologia etnográfica poderiam captar melhor as mudanças que o CJ traz aos camponeses.

De todo modo, através do comércio alternativo, o mercado global exerce forte influência
sobre a economia local de maneiras muito diversas e inesperadas. E, o mercado, especialmente o
internacional, tem um forte caráter especulativo.

Em algumas comunidades envolvidas com o CJ, os camponeses priorizam a produção para


exportação, prejudicando seus cultivos básicos. Isto ocorre em conseqüência do sucesso do
comercio equo, e não de políticas que obstaculizam aos campesinos e comunidades pobres seguir
cultivando seus produtos …

Como vimos, os êxitos do fair trade se devem tanto aos esforços dos agricultores para
organizar-se localmente, como à certificação. Há uma sinergia entre o amplo trabalho político e
social efetuado pelos movimentos camponeses e os ganhos econômicos do CJ. O CJ brotou com
base nas lutas históricas pela reforma agrária, pelas organizações cooperativas, pelos direitos dos
indígenas e dos camponeses.

Além disto, estive nas ŖPrimeiras Jornadas por los Derechos Económicos, Sociales, Culturales, Ambientales e
Indígenas (DESCAI) en Chiapasŗ (16-17.07.2009, S. Cristñbal de Las Casas); na ŖFeria de Economía Solidaria da
Radio Educaciónŗ (2-5.12.09); no ŖPrimer Coloquio Internacional in Memoriam Andrés Aubryŗ (Unitierra Ŕ Un. de la
Tierra, S. Cristñbal, de 30.12.09 à 03.01.2010); no ŖNuestroamericano. Primer encuentroŗ (SITUAM, DF, 11.07.09); e
no Ŗ16º Simpósio do Consorcio Internacional para el Desarrollo Social – ICSDŗ (Monterrey, 27-31.07.09).
145
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Neste sentido, são preocupantes os inúmeros e graves problemas que o estado das artes hoje
registra entre as redes de economia solidária, de organização política de base étnica e de CJ
indígena: desarticulação, dispersão e divisão interna; progressivo distanciamento e perda de
coerência do CJ com os princípios ético-solidários que lhe deram origem; e carência de uma
estratégia político-econômica comum e clara, de curto, médio e longo prazo. Este problemático
quadro é agravado pelas promessas incumpridas do fair trade.

Provavelmente, sem o CJ as comunidades estivessem ainda mais desarticuladas, pois elas


ficariam completamente à mercê dos efeitos disruptivos do mercado neoliberal. Porém, esta é uma
hipótese heurística que, se elucida a importância dos esforços para mudar as regras do jogo
comercial (que colocam vantagens e possibilidades para aqueles que, operando em cadeias
econômicas oligopolizadas, tradicionalmente não tem opções), não minimiza as sérias dificuldades
presentes.

O fato é que o acúmulo de problemas obriga a questionar se o caminho alternativo é


alternativo. E, se estes desafios não forem devidamente enfrentados, seu futuro estará
comprometido. Assim, é natural perguntar1: será o México berço e tumba do CJ?

6. Conclusões: Fair trade na era do global free trade. O labirinto do comércio justo.
ŖLa producción orgánica de café y el mercado justo son, por ahora, excepciones; nichos de tecnología sustentable
y economía moral que confirman la depredadora inmoralidad del resto. Ojalá sean, también, paradigmas de una
utopía posibleŗ

(Armando Bartra)

A inserção nas redes globais de Comércio Justo (CJ), uma das faces do atual movimento
indígena latino-americano, é parte duma reorganização comunal dos povos indígenas, de suas
instituições de autogoverno e formas de trabalho e produção.

Este fenômeno tem dimensões continentais, com mais relevância na Bolívia, Equador,
Guatemala, México e Peru, devido a maior presença indígena nestes países. Mas, no Brasil e em
outras partes isto também se observa de forma generalizada.

A ascensão indígena e camponesa, e dos movimentos negro, das mulheres, juventude e


ambientalista, configura uma virada descolonial, rompendo com a colonialidade do poder ainda
imanada em nossas sociedades.

O surgimento dos Estados pós-coloniais (seja na AL há 200 anos, seja mais recentemente na
África), não fez emergir também sociedades descolonizadas nestes novos países. Ou seja: aqui o
Estado nacional permaneceu, estruturalmente, reproduzindo lógicas de poder colonial que
subalternam e discriminam populações por sua condição racial e de gênero. Daí que podemos até
nos industrializarmos, porém aprofundando aberrantes desigualdades e contradições.

Isto hoje está a mudar radicalmente, pois o movimento indígena, alicerçado em dinâmicas
comunais de poder que transcendem as instituições estatais, e até contra elas, obteve a proclamação
de Constituições (Bolívia, Equador) que reconhecem, pela primeira vez na história, Estados-
plurinacionais.

A emergência da economia solidária reflete esta auto-organização indígena, desafia o padrão


colonial de poder vigente na AL, pois retira da invisibilidade populações classificadas como
1
A inspiração da pergunta advém do amplo balanço que Gustavo Esteva fez sobre o campo mexicano, ŖLa batalla en el
México ruralŗ (Siglo XXI, 1980), onde mostra que o México foi Ŗcuna y tumba de la revolución verdeŗ (p. 60).

146
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

inferiores, excluídas socialmente. Os que estão no pólo de miséria do capitalismo reconquistam,


pela organização comunitária de seu trabalho, o acesso a bens e serviços, num autêntico processo de
emancipação e democratização, redefinindo e ampliando, com suas cores, línguas e tecnologias, a
sociedade vigente e seu modelo de Estado nação hegemônico.

Porém, os resultados do CJ não são tão românticos e maravilhosos como aparentam. Ainda
que se trate de produção em condições de reciprocidade, produz-se mercadorias voltadas para um
mercado globalizado. Aventurar-se nas turbulentas águas do mercado global não é algo que se passa
impune. Estamos diante duma armadilha criada pelo capitalismo global, pois, se sem o mercado
ninguém pode sobreviver, com ele uma crescente maioria também não pode viver.

Através do comércio alternativo, o mercado global exerce fortes e especulativas influências


sobre a economia local de maneiras diversas e inesperadas. Em algumas comunidades envolvidas
com o CJ, os indígenas priorizam a produção para exportação, prejudicando seus cultivos básicos.
Isto ocorre em conseqüência do sucesso do CJ, e não de políticas que obstaculizam aos camponeses
seguir cultivando seus produtos …

O CJ brotou das lutas históricas pela reforma agrária e pelos direitos dos indígenas e
camponeses. Hoje, entre as redes de economia solidária, de organização política de base étnica e de
CJ indígena encontramos desarticulação, divisões e progressivo distanciamento.

O mercado, por si, não é solução para os dramas humanos modernos. Pelo contrário. Cabe
inserir a atuação do CJ no mercado no âmbito dum projeto global e em forte articulação com as
redes camponesas, operárias e políticas que buscam mudar as regras do comércio internacional. O
desafio hoje do CJ é recuperar a agenda e as grandes consignas do movimento terceiro-mundista
dos não alinhados (donde, aliás, emergiu o movimento do CJ a partir de meados do séc. XX),
reformulando-as à luz do contexto histórico contemporâneo.

Não há uma história pura do CJ Ŕ e tampouco este movimento reivindica e busca tal
quimera. Mas, ainda que estruturalmente o CJ sinalize a emergência dum novo padrão nas relações
de produção, se ele se deixar absorver por uma agenda estritamente comercial de face
microeconômica, restringindo-se a substituir a ação política pela atuação no mercado, estará
simplesmente ajustado à nova ordem globalizada do capital e a reforçará.

Referências bibliográficas.

Akaki, Pablo Pérez. ŖLas transformaciones institucionales en la producción y comercialización

internacional del café en el siglo XX e inicios del XXIŗ . Problemas del Desarrollo, n.

150, julio 2007.

Bartra, Armando. Cosechas de ira. Itaca, 2003.

Bonfil Batalla, Guillermo. México profundo. México: Grijalbo, 1990.

CLAC (Bacon and Flores). Estudio de Impacto del Sistema de Café de Comercio Justo en

América Latina y el Caribe. Nicaragua, 2007.

Díaz-Polanco, Héctor. La diversidad cultural y la autonomía en México. Nostra Ed., 2009.

____. Elogio de la diversidad. Siglo XXI, 2005.


147
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Esteva, Gustavo. La batalla en el México rural. Siglo XXI, 1980.

Food First. Fair to the last drop, the corporate challenges to fair trade coffee. 2007.

Garibay Orozco, Claudio. Comunalismos y liberalismos campesinos. Identidad comunitaria,

empresa social forestal y poder corporado en el México contemporáneo. El Colegio de

Michoacán, 2008.

Hoff, Francisco van der. ŖUn mercado justo para el caféŗ . In: Waridel, L. et al. Un café por la

causa. Hacia un comercio justo. México-Montreal: Comisión Nacional para el Desarrollo

de los Pueblos Indígenas; Équiterre, 2004.

IFAT. The IFAT Directory 2001/2002.

Johnson, Pierre. Comércio Justo e solidário. Pólis, 2004.

Quijano, Aníbal. ŖO Řmovimento indígenař e as questões pendentes na América Latinaŗ . In:

Política Externa, 12 (4), 2004.

Rivera, Evodia Silva: "Efectos locales da la producción de café alternativo en Chiapas". In: Rev.

Iberoamericana de Econ. Ecológica. http://www.redibec.org/IVO/rev3_04.pdf.

148
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

REPRESENTAÇÕES DO TRAUMA NA LITERATURA E NO CINEMA LATINO-


AMERICANO

Augusto Sarmento-Pantoja - UFPA

Resumo: Nesse estudo desenvolvemos um conjunto de análises tomando como ponto de partida várias
representações do trauma que o inserem como categoria especialmente necessária para a análise de objetos
artísticos, produzidos em meio às atrocidades dos grandes projetos dos governos ditatoriais, como os
ocorridos na America Latina. Neste sentido analisaremos como o trauma se evidencia em obras da literatura
e do cinema latino americano, como as produções cinematográficas, ŖKamchatkaŗ e ŖLa Histñria Oficialŗ ,
respectivamente de Marcelo Pineyro e Luis Puenzo, o romance ŖBatismo de Sangueŗ de Frei Beto, e a
narrativa teatral ŖA Ilha da Iraŗ de João de Jesus Paes Loureiro.

Palavras-Chave: Trauma. Literatura. Cinema. Ditadura. América Latina.

Trataremos neste artigo de maneira geral como podem ser identificadas algumas
representações do trauma na literatura e no cinema latino-americano. Deteremos-nos
especificamente às narrativas preocupadas em revelar cenas representativas dos regimes ditatoriais,
instalados a partir de meados do século passado. No cinema optamos por discorrer sobre duas obras
em que o olhar do cineasta debruça-se sobre a problemática da infância entre militantes de
esquerda, apresentando primordiais representações dos horrores daquela época, são elas
ŖKamchatkaŗ e ŖLa Histñria Oficialŗ , ambas produções argentinas.

No caso da literatura observamos como o trauma se apresenta na narrativa de testemunho


ŖBatismo de Sangueŗ , de Frei Beto e a narrativa teatral ŖA Ilha a Iraŗ de João de Jesus Paes
Loureiro, ambos brasileiros. O primeiro escolhido pelo fato de sua narrativa trazer em si aspectos
muito claros do testemunho com diversos detalhes sobre o caso Marighela. O segundo, pela
complexidade alegórica desenvolvida na construção de uma narrativa que mistura mito e história.

Desse modo, procuramos colocar em convergência o cinema argentino e a literatura


brasileira. Muitos podem questionar o recorte metodológico, mas as seleções realizadas buscam
inscrever este estudo sob vários vieses, ou seja, observaremos as narrativas intra e inter narrativas,
faremos comparações no âmbito histórico de como as narrativas no cinema e na literatura trabalham
com tal matéria, assim como entre modalidades artísticas distintas.

Iniciaremos nossa investigação em busca de definir o que seria o trauma e suas


representações. O trauma é um evento que pode ser entendido em seu estatuto etimológico como
sendo Ŗuma lesão provocada por um agente externoŗ . (MALDONADO & CARDOSO, 2009, SN).
Esse agente externo se expressa como um extrato onipotente de poder, visto que o ser que
traumatiza é o ser detentor do poder falocêntrico definido por Freud, representante modal da
soberania e da tirania social, que pode significar um totem que prevê a subjugação como ferramenta
de imposição do ser ao evento traumático. A psicanálise seguirá esse princípio e caracterizará o
149
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

trauma psíquico, Ŗde forma geral, como um afluxo pulsional excessivo, sobrepondo-se à capacidade
do psiquismo de ligá-lo e elaborá-loŗ (MALDONADO & CARDOSO, 2009, SN). A dificuldade
vivenciada pelo ser traumatizado gera nele uma condição de impotência que o direciona a uma
condição de identificação com o ser traumatizador e com os efeitos do próprio trauma.

Desse modo, nos estudos sobre o trauma encontramos inúmeras contribuições que buscam
entender os processos que envolvem o ser traumatizado e as suas relações com os dispositivos de
memória e esquecimento, peremptoriamente presentes nos indivíduos que passaram por eventos
traumáticos. No caminho de desvendar os liames do trauma, grosso modo, podemos entendê-lo
como uma espécie de sombra (shade) que atinge o ser através da dor, manifestando-se como um
assombro que recaí continuamente sobre o ser traumatizado. Esta idéia de shade aqui apresentada
garante, para nós, uma forma de recriação da imagem da dor sofrida pelo ser traumatizado,
promovida por outro ser em condição de superioridade (e, portanto de poder). A violência com que
o ato traumático se instala no indivíduo compromete o futuro desse ser traumatizado, na medida em
que não consegue se desprender do evento traumático, posto como uma tatuagem no campo
psíquico que o acompanha por toda a vida, cujas marcas se projetam para fora do corpo mantendo
vivo o trauma. Mesmo que hipoteticamente uma cirurgia a laser fosse realizada, não seria possível
remover por completo a tatuagem, isso porque a cirurgia não seria capaz de dirimir totalmente os
fulcros interiores constituídos no corpo.

O trauma é o shade que persegue o ser traumatizado e o aprisiona em um circuito gongórico


de passado-presente, vislumbrando sempre um futuro do pretérito. A perspectiva apontada pelos
estudos do trauma nos indica que existe no ser traumatizado o que podemos chamar de infinito
circular ou circuito gongórico no qual o tempo de vivência do trauma e de recordação ou re-
elaboração do trauma será sempre o de um presente infinito, isso porque o ser traumatizado não
consegue se livrar do passado em que a ferida traumática foi instalada. Este passado será,
consequentemente, seu eterno presente. Daí decorre considerarmos o ser traumatizado envolto em
um futuro do pretérito, em que não se enxerga o futuro, somente o passado.

Em outros termos podemos caracterizar o trauma como o eixo de uma roda andante que leva
o indivíduo a dar voltas e mais voltas em torno do seu próprio eixo espiralar no qual o saliente
desejo de livrar-se do trauma subjaz a necessidade de manter o trauma presente para que o mesmo
não seja esquecido nem repetido. O processo seletivo da memória constitui o mecanismo de
repetição do evento traumático, na medida em que este se faz adjacente a situações cotidianas
consideradas despretensiosas, o que faz com que o ser traumatizado associe imagens, cheiros, cores,
sons, tons, impressões que produzem tal mecanismo espiralar gongórico. Nesse processo lembrar
significa não esquecer ao mesmo tempo e identifica o trauma como algo fundado nos estatutos do
indizível, do inarrável e do in-visível.

Neste sentido, compartilhamos da tese de que Ŗo trauma constitui um vivido que ultrapassa a
capacidade psíquica de apropriação e de recalcamentoŗ (MALDONADO & CARDOSO, 2009, SN).
150
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Tal incapacidade se dá pela extrema dificuldade do ser traumatizado de compreender o evento


traumático, isso porque o mesmo possui em si uma ambivalência anteriormente destacada, a de
simultaneamente representar um fato que deve ser lembrado para não ser esquecido e esquecido e
para não ser lembrado (ou re-vivido). Nestes termos Gagnebin assevera que as narrativas do trauma
são Ŗsimultaneamente impossíveis e necessárias, nas quais a memñria traumática, apesar de tudo,
tenta se dizerŗ (GAGNEBIN, 2006, p. 49). Isso ocorre claramente em vários eventos produzido
pelos regimes de exceção, tais como os ocorridos em meados do século passado na América Latina,
chamados resumidamente de Ditaduras, mas que devem ser entendidos em sua complexidade e
múltiplas representações, principalmente quando vemos a necessidade de relacionar trauma e
histñria. Nestes termos, para entender como se incrusta o trauma, será necessário observar que Ŗa
história como trauma coloca em questão a própria possibilidade de elaborar uma representação, pois
o trauma é, por definição, algo que evitamos reencontrar, pelo grau intolerável de dor que a ele se
associaŗ (GINZBURG, 2001, p. 131).

A dor promovida pela lembrança do trauma faz com que ela possa ser entendida como
shade, uma dor que não é mais a do evento traumático em si, mas a sobra dele, na medida em que
parece ser inseparável do corpo. Nesse sentido, a análise de objetos artísticos em que a
representação da violência se apresenta associada às repercussões de uma cena traumática se faz
necessária para compreender certos processos históricos, marcados pelo circuito gongórico próprio
do trauma, expressando intensa Ŗrecusa da possibilidade de volta, a resistência ao reencontro com a
cena traumáticaŗ (GINZBURG, 2001, p. 140).

Nos objetos que nos propomos estudar encontramos muito claramente essa dificuldade de
rememorar a cena traumática, pois a mesma causa dor, como ocorre em ŖBatismo de Sangueŗ . O
fragmento a seguir ilustra essa condição:

A pressão psicológica, a castração incessante do sono, os redemoinhos armados pela


técnica policial, tornaram-me vulnerável ao laço que não me permitiu decolar tão alto
quanto os meus propósitos. Depois da queda, recusei os magos que nos estufam o ego e fui
ao encontro de minha própria fragilidade, como quem admite a sede e corre ao posso antes
de prosseguir a difícil caminhada, ainda que atrasando o passo. (BETTO, 1982, p. 167-168)

Observamos que o trauma produz no indivíduo marcas diferentes e é a partir dessa diferença
que vão sendo construídas hipóteses de trabalho sobre os efeitos do trauma nos indivíduos. Um
deles é o esquecimento. Nessa Ŗpolítica de esquecimentoŗ o traumatizado o usa como forma de
Ŗapaziguamento da memñria, em que consiste o perdão, a última etapa de percurso do
esquecimentoŗ (RICŒUR, 2007, p. 423). Entendemos deste modo a posição de Ricœur,
encaminhando sua análise sobre o esquecimento do fato traumática através do Ŗapagamento dos
rastrosŗ , porém o Ŗperdãoŗ não é chave compulsñria do esquecimento, já que Ŗo trauma implica em
algo inassimilável do mundo (...) ainda que deixem marcas indeléveis na memória. Essas marcas

151
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

(...) compõem aquilo (...) que apropriadamente denomina Řmemñria amnésicař e cuja manifestação
se dá sob a forma de somatizações e despersonalizaçõesŗ (MALDONADO & CARDOSO, 2009,
SN). Este processo fica muito claro quando observamos Frei Tito, mesmo aparentemente feliz com
sua estada no sul da França, apresenta dificuldade de olhar para as flores no período de exílio.

Tito sorri, renasce nos rios que inundavam sua infância. Junto à água divertem-se em pescar
as moedas correm no bolso da camisa ao se agacharem para lavar as mãos. Contudo, Daniel
percebe que Tito não olha as flores, vira os olhos como se fugisse de uma maldição. Não,
não eram floridos os delírios de Frei Tito. Em francês, o perfume das flores o asfixiava
como um gás letal. Flaury, fleurir. (BETTO, 1982, p. 283-284) (grifo do autor)

Fica claro que na passagem acima vivida por Frei Tito encontramos muito explicito o trauma
do religioso em relação ao Delegado Freury, seu algoz, já que o processo de associação do nome do
torturador com o da fleur, no francês, desencadeia em si a dificuldade psíquica de lembrar o
passado, que verdadeiramente está presente como shade que não o abandona, tal qual observamos
na passagem a seguir:

O silêncio de sua quietude mística, povoada pela presença inefável do pai, rompe-se por
efeito de um pavoroso delírio: ele ouve continuamente a voz rouca e autoritária do
Delegado Fleury, hóspede intruso do cérebro, do medo e dos porões da consciência de Frei
Tito. Quer que ele confesse e diga todas as coisas que sabe e invente o que puder e dê vivas
aos generais brasileiros e delate a todos os seus amigos e acuse os dominicanos, a Igreja, o
Papa, e assine depoimentos falsos. (BETTO, 1982, p. 278)

Apesar de encontrarmos muito claramente nos textos a dificuldade de relembrar o fato


traumático, o testemunho precisa ser percebido como uma necessidade do ser traumatizado,
principalmente porque Ŗnarrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar este sentido primário de
desejo de renascerŗ . Do desejo de reconstituição da própria integridade. Este desejo de renascer
visitado pela análise de Seligmann-Silva reforça a idéia de que o testemunho torna-se atividade
elementar, Ŗno sentido de que dela depende a sobrevivência daquele que volta do Lager (campo de
concentração) ou de outra situação radical de violência que implica esta necessidade, ou seja, que
desencadeia esta carência absoluta de narrarŗ (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 66).

Precisamos entender que o testemunho possui um valor inestimável, não pela capacidade de
ser comprovado, mas sim na sua ambiguidade, ou seja, Ŗ por um lado, a necessidade de narrar o que
foi vivido, e por outro, a percepção de que a linguagem é insuficiente para dar conta do que
ocorreuŗ (GINZBURG, 2008, p. 4). Nestes termos encontramos duas obras cinematográficas
fundamentais para alicerçar essa tese da necessidade, ainda que com dificuldade, de narrar o
trauma. Primeiramente, numa cena do filme ŖKamchatkaŗ , de Marcelo Piñeyro (2002):

152
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010
I

Cena 1: Kamchatka - Tensão da Ditadura Cena 2: Kamchatka - Disfarce da História

A cena em questão nos traz uma sequência da narrativa marcada pela preocupação com
caminhos da resistência política e o disfarce em relação ao acontecimento históricos da repressão da
Ditadura militar em Buenos Aires. Isso ocorre porque a família da classe média argentina, que está
envolvida na resistência política contra o governo argentino, busca amenizar o sofrimento dos
filhos, tentando deixá-los protegidos em relação à realidade, alijando os mesmos do entendimento
do que realmente estava acontecendo, uma forma de proteger as crianças e afastar a repressão
sofrida pelos adultos do universo infantil.

Esta tentativa acaba por ser ilusória, pois as crianças na, maioria das vezes, entendem o que
se passa com a família, e mesmo sem compreender as conseqüências práticas da militância dos pais
para suas vidas, sabem que a solidão e o isolamento parecem inevitáveis, como ocorre em outras
narrativas do trauma, como em ŖA vida é belaŗ direção de Roberto Benigni (1997) e ŖO ano em que
os meus pais saíram de fériasŗ , direção de Cao Hambuger (2006) ou ainda ŖLabirinto do Faunoŗ ,
direção de Guillemo Del Toro (2006), exemplos de outras narrativas que sobrevoam a cena
histñrica sobre o Ŗolhar míopeŗ da criança (SARMENTO-PANTOJA, 2010), o qual não pode ser
entendido perfeitamente, pois não está plenamente ao alcance daquelas crianças.

Cena 3: Kamchatka Ŕ Olhar de infância

Na cena acima temos os irmão Harry (menino mais velho) e El Enano (menino mais novo)
que apresentam uma performance corporal interessante em relação a esse olhar de infância, isso
porque o menino mais novo pode ser interpretado como aquele que se encontra mais distante dos
acontecimentos históricos, determinado pela simulação, com as mãos, de um binóculo, metáfora da
busca por enxergar melhor o que ficou para traz e o que terá pela frente. O desconhecimento do
153
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

passado e do futuro faz com que o olhar esteja cada vez mais míope e obtuso. Já o menino mais
velho mostra complacência diante da realidade, conformado por saber que sua família está passando
por um mal necessário, mas inconformado por ter que mudar sua vida e precisar deixar seus amigos
e escola. Aqui se cintila o entender sem compreender, pois Harry, mesmo entendendo os processos
que o cercam não se sente capaz de compreender o porquê de tudo aquilo, pois admira o escapista
Harry Houddini e aprende com o pai a ser um escapista como o próprio pai é, mesmo sem
compreender a necessidade de ser um escapista.

Seu entendimento da realidade se clarifica ao jogar o TEG (Técnicas de Estratégias de


Guerra), no Brasil um jogo similar é o WAR, que se caracteriza pela estratégia de dominar
territórios. Na medida em que pai e filho jogam o TEG eles disputam e aprendem o que é necessário
fazer para resistir aos mandos e desmandos ditatoriais daqueles que dominam o mundo. Neste
sentido, manter um território livre dos desmandos do ditador é imprescindível para que o desejo de
liberdade esteja presente e se faça constante para todo e qualquer escapista de fato defensor do seu
território, sua Kamchatka.

O território do jogo é assim símbolo de uma resistência nata. Quando falamos de resistência,
nos remetemos à acepção de Alfredo Bosi no ensaio ŖNarrativa e Resistênciaŗ . Bosi estrutura
didaticamente o processo de apreensão e compreensão da categoria resistência, pensando-a numa
relação entre dois campos: o ético e o estético (BOSI, 2002, p. 118). Tal distinção o levará a
desenvolver um percurso árduo para re-significar Ŗresistênciaŗ , compreendida sob duas vertentes,
uma temática e outra imanente. No debate suscitado por Bosi identificamos o porquê da
preocupação inicial em determinar que, antes de tudo, precisamos compreender o valor ético que
está por trás dessa diferenciação. Há nessa distinção a evidência da dissociação entre a escrita do
narrador da resistência e suas escolhas ideológicas, seja ela uma escrita de ruptura ou de
transcendência expressada de modo imanente, ou uma escrita engajada por representar e evidenciar
um tema de resistência. Em poucas palavras Bosi demarca como pode ser entendida a produção
artística imanente, ao observar que a mesma deve:

aprofundar o campo de visão. E detectar em certas obras, escritas independentemente de


qualquer cultura política, militante, uma tensão interna que as fazem resistentes, enquanto
escrita, e não só, ou não principalmente, enquanto tema. Quem diz escrita, fala em
categorias formadoras do texto narrativo, como o ponto de vista e a estilização da
linguagem. Vejo nesses dois processos uma interiorização do trabalho do narrador. A
escrita resistente (aquela operação que escolherá afinal temas, situações, personagens)
decorre de um, a priori ético, sentimento do bem e do mal, uma intuição do verdadeiro e do
falso, que já se pôs em tensão com o estilo e a mentalidade dominantes. (BOSI, 2002, p.
128-129)

Sobre essa perspectiva de resistência imanente podemos conceber a literatura e as diversas


formas artísticas envoltas por essa lâmina de imanência, principalmente quando acreditamos que
com Walter Benjamin a autenticidade de uma obra se constitui principalmente no seu elemento ―do
154
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

aqui e do agora‖, porém ruminada num contexto sociocultural abrangente e apreensivo em relação
à história.

Nesse sentido, a narrativa teatral ŖA Ilha da Iraŗ , de João de Jesus Paes Loureiro, apresenta
uma poética concernente com a narrativa de resistência, na medida em que o texto se desenvolve
como uma pantomima amazônica, valendo-se de vastas referências aos mitos, paisagens e episódios
históricos do cenário amazônico. Nesta narrativa encontramos os ingredientes da narrativa regional
do trópico, com a Cabanagem como pano de fundo, uma Velha (Bruxa, Feiticeira, Matinta Perera),
Cobra Grande, Curupira... Todos os topos dos mitos e das lendas amazônicas, além de referências e
citações da mítica ocidental, tais como Adamastor (o navio que naufragou), Ulisseu (Ulisses e
Odisseu), entre outros. Todas essas referências servem ao mesmo tempo para encadear a história de
um grupo de atores que se tornam náufragos e consequentemente prisioneiros de uma déspota, a
Velha, em uma ilha desconhecida. Mas o que faz de ŖA Ilha da Iraŗ uma narrativa de resistência é a
metalinguagem fundada no esquecimento experimentado pelos atores que são personagens, no qual
o conflito do cárcere que faz esquecer será determinante para compreendermos como a literatura
enquanto arte é resistência imanente.

TIÃO Ŕ Sentia a falta de ti.


SÍLVIA Ŕ Eu também te procurava.
(...)
TIÃO Ŕ Tenho tanta vontade de ti.
SÍLVIA Ŕ E eu tenho medo.
TIÃO Ŕ Por que, se nós nos amamos?
SÍLVIA Ŕ Sabes da proibição do amor na vila. Se ela ao menos desconfiar, será nosso fim.
TIÃO Ŕ E por isso vamos nos odiar? Você vai ter paciência enquanto a criança, nosso filho,
não nascer, você terá que ficar escondida aqui.
SÍLVIA Ŕ Sim, até ele nascer. E depois, quando ele nascer? Ele ou Ela. Ah! Como eu
espero esse momento e como tenho medo.
TIÃO Ŕ Não se desespere. Até lá eu encontrarei uma saída. (...) Tudo é maldito, desde a
hora em que naufragamos (LOUREIRO, 2001, cena X, p.165)

O amor, sentimento humano incontrolável, é uma marca de resistência nesta narrativa de


Loureiro. Passa a ser proibido e controlado pelo governo, tudo pelo fato de que a formação de
famílias poderia fortalecer aos resistentes, já que cria vínculos e preocupação com o próximo, o que
seria inadmissível em um governo que pretende fazer esquecer o passado dos homens para que eles
vivam em um presente eterno, sem projeção de futuro. Sem chances de transformar uma realidade
marcada pelo encarceramento, o atordoamento e a incapacidade revolucionária manifestadas pelas
personagens, evidenciam uma das representações do trauma tratada por Seligmann-Silva ao
conceber o trauma como elemento que aprisiona o ser traumatizado no tempo passado, pois o futuro
desejado representa o passado traumático do qual não é possível escapar.

155
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Na passagem a seguir temos clara a relação do sofrimento no cárcere com o medo de


esquecer o passado, a partir do diálogo dos atores que sofreram o naufrágio e se encontram na ilha
perdida. Para entender melhor o que fundamenta esse diálogo, especialmente no que diz respeito à
expressão do trauma, é necessário remeter aos alicerces da história narrada em A Ilha da Ira: a
população da ilha se sustenta dos naufrágios e a Velha, alegoria do poder ditatorial, proíbe toda
forma de contestação às suas ordens e aos poucos enclausura os náufragos em si mesmos com a
estratégia do esquecimento de suas histórias.

TIÃO Ŕ Ana você lembra do dia que naufragamos?


ANA Ŕ Naufragamos, naufragamos... (Pouco caso). Não me lembro.
TIÃO Ŕ Escuta. Qual foi a última peça que nós encenamos?
ANA Ŕ Parece que foi Prometeu Acorrentado... Parece... (...)
SÌLVIA Ŕ (...) mas ninguém está conseguindo se lembrar de nada.
(...)
TIÃO Ŕ Compreendeu agora. Nós estamos focando sem nada. Estamos ficando sem
memória.
SÍLVIA Ŕ Primeiro vai a memória, depois a esperança, depois a vida. (LOUREIRO, 2001,
159-160)

O domínio da memória sempre foi um desafio para a sociedade humana, principalmente por,
como objeto de desejo e poder, ela transformar realidades, construir expectativas e desconstruir
outras, pois ficar na memória ou retirar dela significa dominar fatos e os agentes desses fatos. Desse
modo, é a perda sistemática da memória o que angustia os atores na passagem acima. Isso porque a
memória na matéria de um ator é fundamental, pois acaba sendo um dos principais instrumentos de
seu trabalho, quiçá o maior deles e sua ausência faz o artista refém das ideologias que o cercam e,
com isso, tenha medo de se tornar Ŗmáquina de registrar presenteŗ (LOUREIRO, 2001, p.167). As
relações do homem com o presente estão divididas entre o passado e o futuro, ora porque o
primeiro, objeto da memória, seria o aprendizado, a contestação e a mudança de atitude diante do
que ficou para trás e ainda possui marcas representativas do sofrimento humano; ora porque o
segundo é uma projeção no presente daquilo que desejamos, seja alicerçado na mudança ou não,
mas representam os sonhos, as esperanças, as utopias... Desse modo fica claro que virar uma
máquina de registro do presente, pressupões o fim da reflexão sobre as ações e as utopias.

Em ŖLa Histñria Oficialŗ , direção de Luis Puenzo (1985), encontramos duas características
centrais da narrativa do trauma: a literalização e a fragmentação. A primeira Ŗconsiste na
incapacidade de traduzir o vivido em imagens ou metáforasŗ . Em termos psicanalíticos podemos
entendê-la quando Ŗnos recordamos da pessoa traumatizada como alguém que porta uma recordação
exata do momento do choque é dominada por essas imagens que sempre reaparecem diante dela de
modo mecânico, involuntário.ŗ (SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 123). Vejamos como essa
incapacidade de traduzir o trauma se dá em ŖLa Histñria Oficialŗ :

156
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010
Cena 4: La Historia Oficial Ŕ Testemunho 1 Cena 5: La História Oficial Ŕ Testemunho 2

As cenas dispostas trazem à tona a dificuldade de Ana (primeiro plano), militante política
retornando do exílio, de expressar episódios de tortura sofridos nos porões da ditadura argentina.
Para Ana a imprecisão da memória relatada, reflete o que de outro modo Seligmann-Silva considera
ser a fragmentação do discurso em que encontramos Ŗa incapacidade de incorporar em uma cadeia
contínua as imagens acríbicas que também marca a memória dos traumatizados (...) momentos
encapsulados ou enterrados em uma criptaŗ . Ana expressa bem esse estágio críptico relatado por
Seligmann-Silva, isso porque devemos entender o testemunho como sendo Ŗo momento de reunir os
fragmentos dando um nexo e um com-texto aos mesmosŗ (Ibidem, 123-124), no entanto, a
dificuldade de reunir tais fragmentos faz do testemunho um shade, determinador da condição
sofrida do ser traumatizado, que possui dificuldade de relatar o evento traumático, pela dor da
violência.

O conflito se acerba mais ainda quando observamos que a arte acaba por se configurar em
boa parte desse processo como sendo um testemunho da violência, pois expressa muito claramente
um conjunto de representações dos diversos traumas coletivos vividos ao longo da sociedade.
Nestes termos, aproximar literatura, cinema e violência não seria nada difícil, principalmente
quando analisamos vários momentos da literatura, que veementemente se destacam por expelir de
sua linhas e do imaginário por elas produzidas jatos ensangüentados da mais pura violência
produzida por seres humanos, que se distanciam cada vez mais de sua humanidade e se aproximam
deveras da bestialidade, repugnante e insana violência. Isso porque as ações violentas desenvolvidas
pelas pessoas, nada mais são do que frutos das dispares relações de poder construídas pelos
detentores de alguma forma de privilégio de classe. Hannah Arendt, (1994, p.23) explica que ŖO
poder, no entendimento de Passerin dřEntreve é a força Řqualificadař ou Řinstitucionalizadaŗ .
Poderíamos desse modo, defender, tal como Arendt, que a violência é a Ŗmais flagrante
manifestação de poderŗ , deixando assim uma estreita relação com a análise de Passerin dřEntreves
sobre o entrecruzamento entre poder e violência, o qual se caracteriza como uma espécie Ŗde
violência mitigadaŗ . Para Arendt a mitigação da violência significa que Ŗo resultado é o mesmoŗ ,
pois tanto na forma institucionalizada quanto na forma mítica a violência sempre estará envolta a
manifestação do poder.

A manifestação do poder ditatorial é comumente expressa através da violência, mais


especificamente da tortura por qual passam homens e mulheres encarcerados por questionarem as
instâncias antidemocráticas que governam, censuram, proíbem e torturam, toda forma de
manifestação de insatisfação com o governo instalado. Nesse caminho encontramos no testemunho
das vozes caladas o registro das atrocidades promovidas pelo governo ditatorial, tais como ocorridas
em ŖBatismo de Sangueŗ , narradas por Frei Betto:

157
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Fernando não respondeu. Fios encapados foram ligados em seu corpo e a corrente elétrica
inoculada nos músculos, qual serpente mortífera desenrolando-se nas entranhas. As pontas
dos fios prendiam-se às extremidades das mãos e dos pés.

(...)

A uretra parecia arder em chamas, as pancadas aturdiam todas as partes do corpo (...)
Despejaram água em seu corpo e apertaram ainda maios o fio na uretra.

(...)

O fio desencapado foi introduzido no pênis do estudante. A dor explodia-lhe as vísceras, o


corpo agitava-se em torno da trave de madeira. (...) Os fios desencapados distribuíam
choques na cabeça, nos ouvidos, nas extremidades dos membros. (BETTO, 1982, p.175-
179)

Eric Hobsbawn afirmando que vivemos Ŗa era dos extremosŗ. D a mesma forma temos outras
análises que coerentemente aprofundam mais ainda essa posição de Hobsbawn, é o caso de Cathy
Caruth, que considera o século XX, não como o século de trevas, como os idos século medievais
marcados por inomináveis tragédias sociais, mas bem definido como Ŗuma era catastrñficaŗ (apud
FERNANDES, 2008, p. 3-4). Os extremos e as catástrofes mediadas por um antagonismo claro no
cotidiano das sociedades latino-americanas, o desenvolvimento técnico e científico. Coordenado a
esse desenvolvimento encontramos a instalação de inúmeros governos ditatoriais que na América
Latina promovem o acirramento de ações violentas que constroem elos quase indestrutíveis com as
culturas, como vemos em cenas do filme ŖLa Historia Oficialŗ, em que a violência familiar é
representativa do estado de extremos produzidos pelas ditaduras, neste caso a violência é aceita pela
classe média como efeito da manutenção do estado ditatorial e dos efeitos produzidos por ele, neste
particular, garantir que a história oficial das crianças de pais militantes políticos, desaparecidas pela
ditadura não sejam reveladas como parte de uma classe média que aceita do governo a adoção
insurgente.

Cena 6: ŖLa Historia Oficialŗ Ŕ Violência 1Cena 7: ŖLa Historia Oficialŗ Ŕ Violência 2

158
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Cena 8: ŖLa Historia Oficialŗ Ŕ Violência 3 Cena 9: ŖLa Historia Oficialŗ Ŕ Violência 4

Nesse sentido, as aproximações entre os eventos violentos e os instrumentos culturais da


sociedade civil direcionam nossa sociedade a viver uma era do testemunho, uma vez que cada
situação violenta será descrita segundo interesses das instâncias do poder, desencadeando a
resistência aos discursos oficiais, expressos pela proliferação de textos que narram inúmeros
eventos do sofrimento e da dor, providencialmente ocultadas das narrativas oficiais, como o eu
ocorre no desfecho de ŖLa Historia Oficialŗ, em que o teor de denúncia da violência se sobre as
crianças que foram retiradas do convívio de seus pais militantes ou de suas famílias é expresso por
uma cena que demarca a manutenção do status quo da sociedade diante da ditadura, pois para a
narrativa fílmica se instala uma Ŗterra do não me lembroŗ , que irá fazer com que todos não
esqueçam ŖLa Historia Oficialŗ .

Cena 10: ŖLa Histñria Oficialŗ Ŕ Não me Lembro

A técnica narratológica autoral desenvolvida, por boa parte desses textos, expressa um forte
debate na crítica especializada quando traz à baila as diversas experiências dolorosas presenciadas
ou sofridas na própria pele pelos narradores, ou narradas de tal maneira que parecem terem sido
vividas por eles. A discussão a que me refiro está alicerçada no questionamento do valor artístico e
literário, além do estatuto de verdade, que incomoda àqueles que buscam classificar o testemunho
como objeto do direito ou da história ou da literatura. O embate mais acertado é que ele é um
gênero novo criado para dar conta da complexidade nele presente, um misto de todos eles e ao

159
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mesmo tempo nenhum deles, pois assim como o trauma e dor parecem inomináveis pelo ser que
vive o evento, o testemunho não deve ser classificado para manter-se híbrido.

O testemunho é um instrumento interessantíssimo para objetivarmos nossas análises sobre


os acontecimentos violentos e a violência desenvolvida na sociedade, dai a necessidade de narrar o
inenarrável, como salienta Seligmann-Silva. Isso porque a recuperação de eventos traumáticos,
violentos e sofridos torna-se necessário apesar de difíceis de serem transformados em depoimento
pelo teor de dor e sofrimento produzidos pela sensação de retorno ao passado que insiste em
permanecer vivo e presente, Ŗalém de responder a uma necessidade interior e a um movimento seu
com o objetivo de evitar a repetição daquela barbárie, relatar sua vivência é uma forma de dar
notícia dos que não puderam falarŗ , analisa Valéria de Marco (2004, p. 58).

Neste sentido entendemos que aqui passamos a contribuir junto a outros autores em relação
a Ŗuma revisão do conceito de literaturaŗ . Isto porque, na medida em que encontramos no estatuto
da teoria da literatura de uma dissociação entre o real e o imaginário, pois Ŗdo ponto de vista do
testemunho ela [a literatura] passa a ser vista como indissociável da vida, a saber, como tendo um
compromisso com o real.ŗ Ocorre então um processo de significação dos principais elementos do
real diante da leitura do sistema cultural vigente. Por isso, o Ŗdiscurso dito sério é tragado e abalado
na sua arrogância quando posto diante da impossibilidade de estabelecer uma fronteira entre ela, a
imaginação e o discurso dito literárioŗ (SELIGMANN-SILVA, 2008, p.71).

A narração do trauma pode fazer desembocar vários dispositivos de controle social, tais
como: Ŗa loucura para sobreviver e nos contavam coisas incoerentes. Outros estavam fechados no
mutismo. Outros ainda andavam como fantasmas, completamente destruídosŗ (IBUDO citado por
COQUI, Apud SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 79), tal qual observado em ŖBatismo de Sangueŗ ,
quando Frei Tito, vive esse tormento promovido pelo trauma psíquico da tortura:

Saint-Paul La Palue é uma pequena cidade a cinco quilômetros de Lyon que, na mente
assombrada de Tito, ganhara outra ressonância.

Fleury viria buscar Tito no dia seguinte se ele não fosse se entregar. Se resistisse, toda a sua
família seria torturada. Impassível durante horas, sua firmeza eclodiu em gritos sobre as
árvores de LřArbresle:

― Por Favor, ele nunca fez nada, ele é inocente!

―Pelo amor de Deus não faça isso!

........................................................

Apesar dos esforços de Xavier, Tito recusava-se a entrar no convento. Confidenciou-lhe a


ordem que recebera de Fleury:

―ŗVo cê é inigno de entrar no convento dos dominicanos, de se sentar com eles à mesa, de
comer com eles. Eu te proíbo entrar!ŗ:

― Está bem você pode ficar aqui, mas deve se abrigar.

160
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Procurando seguir a lógica da loucura, Xavier a dar ordens a Tito (BETTO, 1982, p 280)

O tempo da narração do trauma se confunde com o tempo de processamento do mesmo, pois


ambos são lentos e buscam combater tal pressa, nestes termos temos Mujawayo (COQUIO apud
SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 76) considerando que:

são pessoas apressadas e, como todas as pessoas apressadas, frequentemente julgam antes
de escutar: eles querem soluções rápidas, eficazes como mecanismos de automóvel, mas
que não podem funcionar com humanos que saem do genocídio. Eles querem se livrar da
sul culpa com programas rápidos

Esse tempo de narração confuso traz a baila o que nos propomos discutir no início deste
trabalho: a ditadura promove uma série de representações do trauma. Dentre os quais destacamos as
ligadas a infância, apanhada na teia do regime de exceção, pouco assimiladas e muitas vezes pouco
perceptíveis pela criança que vive o período de repressão política, mas as lições ficam claras como
as ocorridas em ŖKamchatkaŗ e ŖLa Histñria Oficialŗ, em que a primeira traz a lição de
sobrevivência diante da repressão e diante do mundo, fazendo com que entendamos que é preciso
resistir, mesmo sendo ainda muito criança. O segundo caso é de denúncia da história que esconde
da sociedade as marcas deixadas pela ditadura, uma vez que para muitos os filhos de militantes,
podem representar uma ameaça se eles aprenderem a resistir em suas Kamchatkas, daí a
necessidade de roubar de suas famílias e esquecer esse passado, dando a essas crianças outros
percursos que não os da luta pela liberdade.

Cena 11: ŖKamchatkaŗ Ŕ o Jogo

A herança que fica delimitada no testemunho propõe uma série de reflexões, esse é o caso
dos regimes ditatoriais do Cone Sul, o que faz com que se perpetue uma imagem deturpada do
testemunho uma vez que há de se perceber que

161
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗsñ a justiça pode perdoar... Uma justiça que oferece um lugar à verdade, para que medo se
esvaia... Um dia, talvez, uma coabitação ou uma ajuda mútua voltem a existir entre famílias
dos que mataram e dos que foram mortosŗ (SYLVIE, citada por HATZFELD, apud
SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 77-78).

Nesse sentido este trabalho não deseja instalar a justiça em relação a nada, mas apresenta-se
como uma possibilidade contribuir com a revisão de uma história, de uma literatura, de uma
sociedade, que por muito tempo foram esquecidas, escondidas e esvaídas de referências.
Compreendemos que as críticas de arte, literária e histórica passam a apresentar um caminho de
reescritura do passado recente da América Latina, permeado de violência, dor e trauma, mas que
precisa ser compreendido, para que, talvez, haja espaço para presenciar cenas de conciliação como a
descrita por Sylvie.

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. Da violência. Rio de janeiro: Relume-Dumará, 1994.

BENJAMIM, Walter. ŖA obra de arte na época de suas técnicas de reproduçãoŗ in Textos de Walter
Benjamim. São Paulo, Editora Abril, 1975.

BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 118-135.

CARDOSO, M. R e MALDONADO F. G. O trauma psíquico e o paradoxo das narrativas


impossíveis, mas necessárias. Psicol. Clin. Rio de Janeiro. 2009. vol. 21, nº 1.

DE MARCO, Valéria. A literatura de testemunho e a violência de estado. Lua Nova: Nº 64, São
Paulo, 2004

FERNANDES, Fabrício Flores. A escrita da dor: testemunhos da ditadura militar. Tese de


Doutorado. Campinas: UNICAMP, 2008.

GINZBURG, Jaime. Escritas da tortura: Diálogo Latinoamericanos. Universidade de Aarthus:


Aarthus. 2001. nº 003, p.131-146.

RICOEUR, P. 2000. História, Memória, Esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008.

SARMENTO-PANTOJA, Tânia. O olhar da infância em narrativas pós-ditatoriais na América


Latina. In. IX Jornadas Andinas de Literatura Latino Americana-JALLA (Anais). Niterói: UFF,
2010.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma Ŕ a questão dos testemunhos de catástrofes


históricas. Psic. Clin., Rio de janeiro. 2008. vol.20, n.1, p.65 Ŕ 82

_________________. Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Projeto


História. 2005. nº 30, p.31-78.

_________________. Testemunho da Shoah e literatura. In: X Jornada Interdisciplinar Sobre o


Ensino da História do Holocausto, São Paulo, 2009.

162
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. 3. ed. São Paulo: Globo, 1999.

163
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A ŖESCRITA DE SIŗ COMO FONTE PARA O ESTUDO DA HISTÓRIA


DA CIDADE DE BOA VISTA/RR
Carla Monteiro de Souza (UFRR)
Patrícia Rodrigues Maravalha (UFRR)

O texto que ora apresentamos traz algumas reflexões iniciais sobre a utilização dos relatos
escritos de caráter autobiográfico como fonte no estudo da cidade de Boa Vista. Vincula-se ao
projeto Memória e História de Boa Vista na década de 1950 (apoiado pelo CNPq), que tem como
objetivo explicar e compreender as mudanças ocorridas na cidade a partir da sua elevação a capital
do Território Federal do Rio Branco, criado em 1943, fato que iniciou um período de reestruração
do espaço urbano, marcado pelo racionalismo e a modernidade, e por rearranjos nas relações sociais
e políticas. Para tanto, o projeto incorpora ao seu corpus documental relatos escritos sobre a cidade,
tendo como referencial as discussões sobre a produção e a utilização da Ŗescrita de siŗ como fonte
de pesquisa, destacando o seu potencial na configuração de uma Ŗcarga de significadosŗ sobre a
cidade situada em outro tempo, mas cuja Ŗleituraŗ repercute na atualidade. Nesse trabalho
enfocamos a obra autobiográfica 1953, Ah! Anos de minha juventude, do jornalista Laucides
Oliveira, publicada em 2007.

A chamada escrita de si

Os interesses e os estímulos que moveram o jornalista Laucides Oliveira relatar as


experiências e impressões dos seus primeiros anos na cidade de Boa Vista/RR, estão presentes por
todo lado e, de modo geral, impregnam a sociedade contemporânea. Segundo Angela de Castro
Gomes, no ensaio ŖEscrita de si, escrita da Histñria: a título de prñlogoŗ , há um bom tempo
identificamos um interesse muito grande por esse gênero de escrita, que engloba diários,
correspondências, biografias, autobiografias, independentemente de serem memórias, entrevistas de
história de vida etc, escritos que denomina Ŗescrita de siŗ ( 2004, p.7).

Nesse sentido, a autora citada acima define a escrita de si como uma manifestação exemplar
do individualismo moderno, explicando que Ŗa escrita auto-referencial ou escrita de si integra o
conjunto de modalidades do que se convencionou chamar produção de si no mundo moderno
ocidentalŗ, que pode ser entendida a partir do estabelecimento de uma série de práticas e
manifestações de certa relação entre o indivíduo e seus documentos (2004, p.10).

O individualismo moderno, que emerge no século XVIII e se consolida no XIX, é marcado


pela configuração Ŗde um cidadão moderno, dotado de direitos civis e políticosŗ e de uma
individualidade reconhecida socialmente (2004, p.11). Pode-se dizer que ao longo do século XX
esse complexo processo ainda se move dinamicamente, notadamente com as transformações
aceleradas no campo das comunicações e da interatividade.

164
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Na contemporaneidade, as práticas ligadas à produção de si envolvem um diversificado


conjunto de ações, desde aquelas ligadas à escrita de si mais densa Ŕ como as autobiografias, as
cartas e os diários Ŕ, até a constituição de uma Ŗmemñria de siŗ, que se dá através do Ŗrecolhimento
de objetos pessoais, com ou sem a intenção de resultar em coleçõesŗ . Neste aspecto, Castro Gomes
explica que o espaço privado passa a ser uma espécie de Ŗteatro da memñriaŗ , um espaço que
guarda registros Ŗque materializam a histñria do indivíduo e dos grupos a que pertenceŗ . Como em
um cenário construído, os Ŗatos biográficosŗ dotam o mundo de significados especiais (2004, p.11),
particularizam e identificam aquele(s) que ali vive(m). Assim, além dos espaços públicos, lugares
privilegiados de manifestação da memória coletiva, na modernidade os espaços privados passam a
refletir a vida de quem ali vive ou viveu, sendo observável uma personalização dos espaços, que
podem ser Ŗlidosŗ tanto na dimensão subjetiva/privada como coletiva/social.

Constituir uma identidade para si através da coletânea de documentos é, portanto, uma


prática cultural inerente à modernidade. Embora o ato de escrever sobre si e sobre outros não seja
novo, ganha um significado e um formato específicos com a emergência histórica do indivíduo nas
sociedades ocidentais e a constituição do individualismo moderno. Castro Gomes argumenta que
em contraponto ao que se convencionou chamar de sociedades tradicionais, o que caracteriza as
sociedades ocidentais modernas é o postulado da identidade singular, colocado como um valor
distinto e constitutivo do todo (2004, p.11), ou seja, a noção moderna de subjetivo e subjetividade.

O individualismo moderno é o fundamento da escrita biográfica e autobiográfica que


conhecemos, pois concebe a todos os indivíduos como livres e iguais, como partes do todo. A
autonomia e a importância conferida à vida individual, a torna Ŗdigna de ser narrada como uma
histñria que pode sobreviver na memñria de si e dos outrosŖ (2004, p.12). Assim, o Ŗanônimoŗ , o
Ŗindivíduo comumŗ passa a postular uma identidade para si e busca produzir registros da sua vida.
A exemplo do 'grande' homem, ou seja, do homem público, do herói, cuja excepcionalidade de sua
vida e seus feito sempre esteve autorizado a deixar registro de sua memória (2004, p.13), esse
anseio se torna cada vez mais legítimo e viável a medida que, historicamente, os meios para tal se
tornam mais disponíveis, eficientes e acessíveis.

Os tempos modernos são, portanto, de consagração do lugar do indivíduo na sociedade,


como unidade coerente que postula uma identidade para si e como uma multiplicidade que se
fragmenta socialmente, exprimindo e colocando em contato identidades nem sempre harmônicas.

O registro escrito da vida atende a necessidade do indivíduo moderno de identificar-se por


meio da Ŗfabricaçãoŗ de uma trajetñria contínua e harmônica, que confronta a incompletude e a
fragmentação de sua existência e vai ao encontro da Ŗilusão de linearidade e coerênciaŗ (2004, p.
13). O relato autobiográfico refere-se aquilo que Bourdieu chamou de Ŗilusão biográficaŗ , ou seja,
Ŗna preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo
retrospectiva e prospectiva, uma consistência, uma constânciaŗ (2005, p. 184), por meio do

165
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

estabelecimento de Ŗrelações intelegíveisŗ que ordena e dá sentido ao fluxo descontínuo,


inconstante e seletivo da memória.

Para Bourdieu, portanto, ao dar vazão a essa propensão de Ŗtornar-se o ideólogo de sua
prñpria vidaŗ , o narrador seleciona certos acontecimentos em função de um objetivo ou Ŗintenção
globalŗ e estabelece entre eles conexões que lhes dá coerência (2005, p. 185). Os nexos narrativos
que ligam os acontecimentos e lhes dão significados não são arbitrários ou intuitivos, antes
constituem estratégia para conferir credibilidade e confiabilidade ao que está sendo relatado, tática
para burlar a incoerência e a incompletude intrínseca ao ato de transpor para o papel a vida vivida.

Assim o tempo de vida registrado na escrita de si é a um só tempo linear e descontínuo. Se,


em boa parte dos casos, a narrativa se organiza cronologicamente, buscando configurar um todo
coerente para o leitor e para o autor, a fragmentação e a decomposição das experiências vividas é
evidente. O autor recorta, seleciona e organiza a narrativa segundo um Ŗprogramaŗ configurado
com objetivo identitário. A subjetividade, portanto, é a marca registrada desses textos, não só em
função de seus conteúdos e objetivos, mas, e principalmente, pela maneira como são construídos,
isto é, por meio da mediação entre memória e linguagem.

A relação texto/autor no relato autobiográfico, segundo Castro Gomes, poderia ser situada
em dois planos: um coloca o texto como uma Ŗrepresentação do seu autorŗ , a escrita como a busca
de materializar e consolidar uma identidade; o outro concebe o autor como uma Ŗinvenção do
prñprio textoŗ, ou seja, produto da própria narrativa. A autora defende, contudo, que o
Ŗindivíduo/autorŗ não precede nem procede do texto, mas que texto e autor se criam
simultaneamente, por meio do processo de Ŗprodução do euŗ objeto primeiro da prñpria existência
do texto (2004, p. 15).

Como referido anteriormente, a Ŗfabricaçãoŗ de uma trajetñria coerente e contínua requer


que o autor ordene e arranje o conteúdo narrado de forma que esse tenha um significado. Existiria,
digamos, uma certa sobreposição de funções Ŕ autor e personagem/protagonista Ŕ que imprimiria
uma ambiguidade latente ao texto, o quê no entanto não deve interferir no caráter sincero e
verdadeiro que deve ser a essência da escrita de si. Em última instância, são esses dois aspectos que
conferem a essas narrativas o seu caráter ético e autêntico, qualificando-as como fontes de pesquisa.

Memórias de um jovem aventureiro em Boa Vista

A obra em foco é uma edição simples, financiada em boa parte pelo autor. Este é uma figura
bem conhecida na cena cultural da cidade de Boa Vista. Notabilizou-se como jornalista em variados
veículos de comunicação e foi um dos pioneiros do rádio e da televisão local.

O livro enfocado narra um período definidor em sua vida pessoal e profissional do autor. O
relato inicia-se em 1953, ano de sua chegada à capital do antigo Território Federal do Rio Branco, e

166
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

vai até 1959, ano em que se casa com Dona Clotilde, sua amada e companheira inseparável desde
então. Nos parágrafos seguintes apresentaremos uma sinopse da obra.

No auge da juventude, em março de 1953, com apenas vinte e um anos de idade, Laucides
de Oliveira chega à Boa Vista para reencontrar seu pai. Na mala, alguns ternos; no coração
expectativas e dúvidas; e na memória, muitas lembranças.

Antes mesmo de o avião pousar na pequena capital do Território do Rio Branco, o jovem
relembra momentos de sua vida: o primeiro, dois dias atrás, quando a caminho de Boa Vista fez
uma breve escala em Manaus. O relato mostra insatisfação, uma vez que imaginou uma cidade
moderna e estruturada. Segundo ele, aquilo que viu nos anúncios de revistas como O Cruzeiro,
Manchete e Seleções, não condisse com a realidade.

A seguir, rememora parte da infância e adolescência vividas entre a pequena Estrela do Sul
no Triângulo Mineiro e a cidade do Rio de Janeiro, delimitando os espaços de tempo pela situação
financeira da família.

O avião ainda não tocou no solo, e suas lembranças continuam à solta: apesar de ter assistido
à derrota do Brasil na Copa de 50, o que deixou os brasileiros muito desolados, a situação da família
tem uma melhora com o regular envio de proventos pelo pai. Laucides recorda-se como passou a ter
notícias do Território do Rio Branco.

Enfim a aeronave pousa e a viagem chega ao fim. As aventuras do jovem carioca estão
apenas começando...

Cinquenta e quatro anos após desembarcar no pequeno aeroporto de Boa Vista Laucides
Oliveira publica seu livro ―Boa Vista 1953 uma aventura... ah dias da minha juventude...‖. Na
introdução, deixa claro seu objetivo: um relato descompromissado de suas lembranças, no período
que vai contemplar desde sua chegada à capital do Território do Rio Branco, ao seu casamento com
Clotilde, uma ―filha da terra‖, seis anos depois.

Nos capítulos iniciais Oliveira nos posiciona quanto aos motivos que o trouxeram a Boa
Vista. Apesar de breves, neles verificamos pelo menos três questões sociais relevantes: a
instabilidade financeira provocada pela atividade do garimpo exercida pelo pai, a representação da
mulher na sociedade nas décadas de 40/50 e o enquadramento da classe social carioca Ŕ classe alta
sempre à beira mar Ŕ o que perdura até os dias de hoje.

As impressões iniciais de Boa Vista e de sua gente, incluindo seus odores e objetos, são
relatadas numa descrição realista e, em alguns momentos, pormenorizada. Nos três dias que fica na
cidade antes de viajar para o garimpo ao encontro do pai, Oliveira descreve o centro da cidade Ŕ
ruas, praças, comércio, principais residências e escolas, e, também, a zona do meretrício, narrando
situações que mostram claramente a precariedade na infra-estrutura, e ainda, dá os primeiros
indícios das relações de poder que norteiam o dia a dia da capital do território.
167
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A cidade que encontra é uma cidade acanhada, localizada a beira do rio Branco e composta
por poucas ruas, apesar de ser a cidade mais antiga do estado de Roraima.

Fundada em 1890, seus primeiros habitantes foram os índios e os migrantes, principalmente


de origem nordestina, atraídos pela pecuária nas áreas de savana e campos naturais e pelo
extrativismo vegetal. A partir de 1943, ano da criação do Território Federal do Rio Branco Ŕ que
passa a se chamar TF de Roraima a partir de 1962 Ŕ torna-se capital, fato que consolida a sua
primazia como centro político-administrativo e econômico. As mudanças político-administrativas
ocorridas nesse período e a vinda de migrantes foram importantes fatores de crescimento, nas
décadas seguintes.

A criação dos territñrios federais foi mais uma das facetas da chamada Ŗmarcha para o
oesteŗ apregoada por Vargas, visando a integração do país e a institucionalização definitiva da ação
do poder em todos os rincões. As novas unidades federativas atraem pessoas como Seu Laucides e
seu pai, que como tantos outros acorrem para esses lugares que passam a constituir as fronteiras de
expansão do Brasil. A trajetória do nosso autor demonstra que a convergência entre as atividades
ancestrais, como o extrativismo, e a montagem de uma infraestrutura para o novo Território
constituem elementos importantes na configuração da ocupação dessas regiões até então
subpovoadas.

Nosso narrador conhece as duas faces desse tipo de ocupação. Frequenta pelo menos três
áreas diferentes do interior de Roraima, áreas de garimpo de diamante. Ao mesmo tempo, conhece e
se estabelece em Boa Vista nessa época em que importantes mudanças estão em curso. Dedica
vários capítulos a isso, ou seja, a esses dois modos de vida para ele inteiramente novos.

Oliveira descreve, ora de forma romântica, ora de forma realista, pessoas, hábitos,
profissões, atividades comerciais e de lazer, infra-estrutura e espaços geográficos e sociais que cada
um ocupa dentro do garimpo. Conta sobre as pessoas e seus apelidos carregados de simbologia, que
trazem à tona as múltiplas identidades dos garimpeiros. Parece bastante importante a preocupação
do autor em marcar que apesar de Ŗgarimpeiroŗ Ŕ sujeito visto como rude, violento, autônomo, sem
passado e solitário Ŕ cada um tem uma identidade própria, definida pela alcunha. A corrutela Ŕ
espaço vital dentro de um garimpo Ŕ encerra questões sociais e representações importantes. Dentro
dela se pode identificar leis, regras e normais sociais (e de poder) que definem a convivência
Ŗpacíficaŗ no local. A representação da mulher é a de Ŗprodutoŗ , uma vez que ela é prostituta, está
ali para servir e amar, algumas vezes até, para ser amada.

Conta com a ajuda de José Maria, um personagem peculiar: desde sua aparência Ŕ mantinha-
se com a pele muito alva apesar do forte sol Ŕ à forma de narrar histórias do Tepequém, ele foi o
responsável por relatar com detalhes ao jovem Laucides, episódios da descoberta do garimpo (em
1936), a chegada de garimpeiros, prostitutas, administradores, e até a vinda de seu pai (em 1949),
que trouxe o primeiro rádio à pilha para o Tepequém.

168
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O jovem de então relata alguns episódios que marcam seu lugar no garimpo e se dá conta da
imensa falta de estrutura do garimpo e da saudade que sente de seus antigos hábitos - namoro,
festas, movimento, novidades, música, leitura, notícias, e questiona: "Afinal, o que é que estou
querendo?" (p. 40). O jovem Laucides, deixa escapar em meio às descrições e comentários,
saudades de coisas simples, que faziam parte de sua vida no Rio de Janeiro: o rádio e os livros. Os
primeiros tempos em Roraima são de puro estranhamento.

A venda do garimpo, em 1954, marca uma nova etapa na vida de nosso autor. A cidade
passa a ter uma importância maior e passa a ser vivida de forma mais constante e intensa. Ele
descreve ruas, casas, bairros, infra-estrutura, pessoas, hábitos e a política. É uma narrativa
interessante, que nos remete à época romântica da nossa literatura: vida noturna, bailes, pessoas
muito bonitas, alegres e bem resolvidas, todos com posição social bem definida (p. 49).

Alguns lugares têm uma centralidade na narrativa: o Hotel Boa Vista e a Avenida Jaime
Brasil. O primeiro encanta Laucides pela infra-estrutura do estabelecimento. Ele o descreve com
riqueza de detalhes, inclusive pontua sua importância social (p. 46), que destoa da simplicidade e
certa rudeza do restante das construções da cidade. Já a ŖJaimeŗ é descrita em seus mínimos
detalhes. O lado direito e o esquerdo, o footing de fim de tarde, os dois cinemas lá localizados; lá
também estava a casa do governador do Território; era na Jaime que se discutia política; mostra
ainda, o movimento da Praça Capitão Clóvis (localizada no final da Jaime), onde tudo acontece:
encontros ingênuos de estudantes, as brincadeiras, as serestas.

A relação de amor para com a cidade está em franco desenrolar.

Oliveira faz um mapeamento do Centro, fala dos locais distantes do rio, do areal localizado
no final da Jaime (atual Praça do Centro Cívico), situa prédios, residências e construções, descreve
a cidade em formação, os Ŗdois ladosŗ da Avenida Jaime Brasil com riquezas de detalhes. No
capítulo 74, ŖViver no Rio Brancoŗ , (um dos mais longos de seu livro), faz colocações relevantes
para o entendimento do que era essa cidade. Avalia que as oportunidades eram muitas, ao dizer que
na capital do território tudo está por fazer, por crescer.

Descreve também com tintas fortes o que chamou de Ŗseparatismo políticoŗ . A princípio o
autor não percebe entre os jovens com que se relaciona o clima de animosidade, apesar de todos os
seus conhecidos comentarem a respeito: ŖO Poder separa as famílias, alertam-me. (...) Apesar disso
não sinto as pessoas separadas. Pelo menos não entre os jovens que convivo. Tampouco entre os
idosos com quem tenho me relacionado.ŗ (2007, p. 50). Mesmo a sua nova e especial amizade com
Clotilde, filha do ex-governador Aquilino Duarte, vivida intensamente nos passeios na Jaime e nas
conversas depois das aulas na Praça Capitão Clóvis, não mudam a princípio as impressões do jovem
Laucides.

O entanto, com o tempo e a sua imersão cada vez maior na vida da cidade nosso narrador
percebe que o Ŗseparatismo políticoŗ é um fato e que é preciso saber lidar com ele. Começa a
169
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

prestar mais atenção à realidade política. Registra um dado interessante: o número de eleitores
inscritos em todo território é de cerca de 4.000 Ŕ elevadíssimo em comparação com o número de
habitantes!

Nesse período Laucides está cada vez mais ocioso, e o pai o incentiva a voltar ao Rio de
Janeiro. Um ano depois de ter chegado ao Território de Boa Vista, o jovem retorna à Cidade
Maravilhosa. Ainda no avião, recorda-se de todos os momentos desde sua chegada à Roraima. No
Rio, posiciona a mãe da situação financeira do pai e de suas intenções em adquirir um novo
garimpo. Busca um emprego, indo trabalhar na área que havia estudado: desenho. É interessante
observar, que nesse período, a Educação Brasileira passava pela fase tecnicista, onde os cursos
técnicos eram oferecidos para atender a demanda da crescente industrialização.

O jovem retoma sua vida social, atualizando-se diariamente, buscando amigos do passado, e
segue contando os acontecimentos: a Copa de 1954, a vida noturna carioca, as cantoras do rádio, as
turbulências e episódios políticos, e o suicídio de Getúlio Vargas. São capítulos recheados de
informações e fatos históricos.

Sua vida seguia normalmente, mas o jovem aventureiro ainda não estava satisfeito.
Descobriu-se apaixonado por Clotilde, e ainda carregava o sonho de fazer fortuna ao lado de seu
pai, que estava determinado a comprar o garimpo do Suapi, e agora precisava de sua ajuda. Decide
voltar à capital do Território do Rio Branco, só que desta vez com total segurança: ŖBoa Vista,
agora, é a minha certeza, a minha escolhaŗ (2007, p. 65)

O capítulo intitulado ŖOutra vez Boa Vistaŗ traz uma narrativa interessante, pois o autor
consegue transmitir o sentimento de Ŗvolta para casaŗ . Recebido com jubilo pelos amigos, Laucides
hospeda-se no Hotel Boa Vista. Ao encontrar-se com o pai, fica sabendo que o negócio do Suapi foi
fechado com sucesso. Contudo, nesta nova etapa sua permanência no interior é fugaz, a cidade
passa a ocupar o centro da narrativa.

Narra episódios curtos sobre diversos assuntos, que circulam entre temas pesados, como a
construção das instalações do garimpo e suas grandes dificuldades; e outros mais leves como o
carnaval, lutas livres, aventuras de uma Ŗmulherŗ aviadora Ŕ Ada Rogato Ŕ nos céus do Território, a
presença de Juscelino Kubitscheck em Boa Vista, mergulhos de escafandros e outras tantas
peripécias. São muitas as situações interessantes que devemos observar: O Hotel Boa Vista entra
definitivamente em cena, incorporando-se a narrativa, transformando-se num de seus personagens.
Tudo acontece dentro de suas dependências, ou em suas imediações.

Outro fato relevante, é que nesse momento, Laucildes está tão solto, tão imerso em suas
lembranças, que é o centro de todas as ações, sendo o grande responsável pelos acontecimentos, que
se tornam grandes, especiais. Ele participa ativamente de tudo que acontece na capital do Território.
Desde a construção de alegorias para o carnaval, à participação ativa nos serviços de alto-falantes, a

170
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

seleção de músicas, uma pichação no avião de Ada Rogato à fotos ao lado do candidato à
presidência da república JK.

Ouço tempo depois, em maio de 1956, os negócios no garimpo não iam muito bem. O pai
sugeriu que ele ficasse em Boa Vista.

A partir daí a narrativa fica um pouco mais tensa. Laucides começa a narrar ŖO social e o
políticoŗ , avaliando que as coisas haviam mudado em Boa Vista. Ele estava notando agora, que a
camaradagem entre os jovens e famílias já não era a mesma doutros tempos, talvez porque
conhecesse melhor as pessoas quer convivia. Mudou a cidade ou mudou a relação dele com a
cidade?

A narrativa acerca dos opostos políticos continua, e ele faz reflexões sobre o assunto. Parece
que até então, apesar de estar Ŗquaseŗ namorando Clotilde Ŕ filha do então Prefeito da Capital
Aquilino Duarte Ŕ não tomou partido, ou pelo menos, reserva-se de falar a respeito. O entanto, a sua
entrada na Divisão de Obras do Governo, no cargo de desenhista industrial marca novos e
definitivos vínculos com o poder.

A partir daí, ele vai relatar em detalhes o interior de algumas repartições e do serviço
público, e como as coisas aconteciam. É bom lembrar que na estrutura dos antigos Terrítório
Federais todos os cargos eram indicados. Do governador ao amanuense, todos os postos do serviço
público estavam a mercê das flutuações políticas.

Laucides passa a ter contato mais estreito com o Ŗalinhamento político que divide as
famílias e pessoasŗ , explicitando a existência sempre de dois grupos políticos: Ŗos ocasionais
ocupantes dos cargos e empregos públicos e os desempregados eventuais, ex-funcionários do
Governo do Territñrio, alijados para dar lugar aos correligionários do novo governoŗ . Refere-se a
esse processo como uma Ŗcirandaŗ em que Ŗpraticamente uma metade da população está
empregada, a outra não; até a prñxima troca de governador, quando o quadro será invertidoŗ (2007,
p. 49).

O mercado de trabalho urbano incipiente e frágil passou a ser controlado pelo poder público,
afirmando definitivamente a presença do poder central na vida da cidade e imprimindo de forma
indelével uma marca registrada na organização do trabalho e nas atividades produtivas até os dias
de hoje. Nosso narrador constata isso na própria pele.

A partir do ano de 1957, a relação de Laucides com a cidade de Boa Vista está
definitivamente consolidada. Nos capítulos seguintes, a narração de dois eventos sociais atestam
esse fato. No primeiro, o jovem é mestre de cerimônias num concerto musical organizado pela
primeira dama do Território, e, num determinado momento divide o palco com Clotilde, que
apresentou-se cantando um linda canção. No outro, ocorrido em janeiro de 1957, ele participa da
inauguração da Usina de Força e Luz do Território Federal do Rio Branco, que conta com a

171
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

presença do então presidente da República Juscelino Kubitscheck. É inaugurada também a


Radiodifusora Roraima, da qual participa e mostra a sua vinculação cada vez mais estreita com a
área das comunicações e a vida cultural do lugar.

A tranquilidade de seu pai, agora estabelecido no Suapi, seu namoro Ŕ oficializado Ŕ com
Clotilde, tudo num clima muito calmo e romântico, é abalado em janeiro de 1958 por uma
experiência comercial mal-sucedida. Amante das artes e da música, o jovem resolve comprar o
cinema que não estava em boa situação, imaginando que poderia resgatar seu prestígio e fazer
dinheiro. Depois do negócio fechado, ele descobre que não tem condições de arcar com as despesas,
e acaba tendo grande prejuízo.

Março e Abril de 58 são datas marcantes para Laucides. Ele tem a oportunidade de conhecer
Brasília, e no retorno é nomeado para o cargo oficial de gabinete na Governadoria do Território. O
ano é político, e o jovem relata que não havia mais como Ŗfugirŗ da decisão por um Ŗladoŗ . Ele
tinha grandes relações com pessoas de poder: filho de Levindo Oliveira Ŕ grande diamantário,
futuro genro de Aquilino Duarte, Prefeito da Capital, e, agora, servidor público da situação, tinha
que declarar-se partidário.

A partir daí Laucides vai relatar com riqueza de detalhes a realidade do Ŗseparatismo
políticoŗ . A narrativa é densa, cuidadosa, realista, fugindo um pouco do modelo que vinha traçando.
Ele conta o dia-a-dia da política, a campanha eleitoral, os partidos, episódios sobre morte e muita
violência, comícios, todos os bastidores da eleição entre seu candidato ŖFelix Valoisŗ e o da
oposição, denominada ŖColigaçãoŗ , ou ainda entre Ŗratosŗ e Ŗmacacosŗ. Vale relembrar, que alguns
desses episñdios marcantes têm como palco a ŖJaimeŗ e o Hotel Boa Vista. A eleição é bastante
emocionante e seu candidato vence, dando a ele um grande alívio.

Os cinco capítulos finais são voltados à sua vida pessoal. Depois das eleições, pede a mão de
sua Clotilde em casamento, marcam a data, e felizes encaminham-se ao altar. O casamento ocorre
em 30 de maio de 1959. A lua de mel acontece no Rio de Janeiro. No retorno, mais uma vez a bordo
do avião, Laucides, nosso jovem aventureiro, cerra seus olhos e sente-se imensamente feliz, por ter
casado com Clotilde e por estar voltando para sua tão amada Boa Vista...

Laucides Oliveira relatou suas memórias de uma maneira muito peculiar. Ele transitou entre
a narrativa romântica e realista, no modelo folhetim, com capítulos curtos, que em alguns
momentos, guardavam suspense para o próximo capítulo. Comportou-se como o verdadeiro
burguês, capaz de enfrentar as situações mais adversas sem reclamar delas. Em alguns "episódios"
ele chegou até atos heróicos. Não esperávamos um final diferente. Pelo que foi a narrativa toda, o
final só poderia ocorrer depois de seu casamento com a mulher amada, como era comum nos
folhetins românticos.

172
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Considerações finais

Essa breve sinopse da obra nos ajuda a compreender aquilo que aponta Castro Gomes
quando diz que esse tipo de relato escrito é Ŗuma prática de domínio do tempoŗ (2004, p.17).
Mediada pela linguagem e pela memória constrói uma identidade que transita entre presentes,
passados e futuros significativos e significados.

O presente se coloca tanto como o momento da escrita, ativa, pungente, etapa de criação, e
como o momento da rememoração, de exercício consciente ou não da lembrança. O passado, não
menos vivo, surge como um tempo conjuntivo, que existe por si só por ter sido vivido, mas também
como invenção, mediada pela memória e pela escrita. O futuro passa a ter forma. Os fatos, os
acontecimentos, as experiências e os sentimentos registrados e perenizados na concretude do
formato livro, mais do que Ŗum objeto da cultura material de uma épocaŗ (Castro Gomes, 17)
conferem um significado ordenado e coerente à existência do seu autor.

Neste sentido, o relato se coloca em sua plenitude. Para além da busca redutora por
informações, fatos e acontecimentos, necessários ao trabalho historiográfico, o relato de Seu
Laucides nos apresenta uma cidade viva, vivida intensamente e apaixonadamente. Uma cidade que
a princípio causa estranheza ao rapaz cosmopolita nascido e criado na capital federal. Esse
sentimento inicial evolui para uma paixão, concomitante a afeição pelas pessoas, notadamente pela
amada Clotilde.

A cidade que muda em todos os aspectos se assemelha ao rapaz que se torna homem, adulto.

Laucides vive e narra vários fatos e elementos que apontam e definem o crescimento da
cidade em todos os aspectos nesse período. Faz questão de nos mostrar também seu crescimento
pessoal, por meio da organização de uma trajetória feita de escolhas, contingências, paixões e
conflitos.

Isso fica claro no tom que assume todo o relato. O autor conduz a sua narrativa ora de forma
mais sentimental e poética, ora de forma descritiva, realista. É uma narrativa que claramente busca
ser fiel à cidade que conheceu e viveu tão intensamente, a sua cidade de escolha. Ao mesmo tempo
seu texto é pontuado por suspiros por sua Clotilde...

Se, como afirma Sandra Pesavento, Ŗliteratura e histñria são narrativas que têm o real como
referente para confirmá-lo o negá-loŗ. Ressalta que embora muito diferentes entre si ambas tecem
sobre o real uma outra versão ou ainda o utltrapassam (2006, p. 14), o que nos mostra que a
incorporação da obra de Laucides Oliveira ao nosso projeto pode funcionar como um fio condutor
para uma construção de uma explicação sobre as mudanças ocorridas na cidade no período
enfocado e para a compreensão de seu significado na cidade de hoje, nosso objetivo primeiro.

173
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Referências bibliográficas:

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de M.; AMADO, Janaína
(coord.). Usos e abusos da História Oral. 6.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p.183-191.

GOMES, Angela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES,
Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p.7-
24.

JOBIM, José Luis. As formas da teoria: sentidos, conceitos, políticas e campos de força nos
estudos literários. 2. ed. Rio de Janeiro: Caetés, 2003.

OLIVEIRA, Laucides. Boa Vista 1953, uma aventura … Ah, dias de minha juventude... Boa Vista:
Gráfica Real, 2007.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e Literatura: uma velha-nova história. In: COSTA, Cléria

B., MACHADO, Maria Clara T. (orgs.) Literatura e História: identidades e fronteiras.

Uberlândia/MG: EDUFU, 2006.

174
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O CONTAR HISTÓRIAS INDIGENAS

Carmem Spotti (UERR-PPGL/UFRR)1


Carla Monteiro de Souza (PPGL/UFRR)2

RESUMO: O presente trabalho versa sobre o contador de histórias em uma comunidade indígena,
tendo como referencial a pesquisa que vem sendo desenvolvida na Comunidade Nova Esperança,
localizada na Terra Indígena Alto São Marcos/RR. O estado de Roraima tem presença marcante da
cultura indígena em sua formação populacional, haja vista os grandes conflitos gerados por
demarcação de terras indígenas e o preconceito etno-lingüístico e sócio-econômico que envolve a
sociedade regional. Destaca-se no contexto estadual a desvalorização da cultura dos povos
indígenas, quer seja na língua, suas narrativas orais, músicas, comidas, arte, danças, por outro lado,
verifica-se a existência de práticas que visam à preservação da memória da comunidade de forma
que as gerações futuras possam dela usufruir. Em uma perspectiva literária percebe-se que os
aspectos da cultura indígena são repassados de geração a geração através do personagem que
possuiu conhecimento da história de seu povo e da realidade atual e que, ao mesmo tempo, atua
como historiador e narrador dessa realidade.

Palavras-chave: cultura Ŕ índios Ŕ memória Ŕ contador de historias

Introdução

Na antiguidade o contador de historias tinha a tarefa de divertir, alegrar e emocionar os


ouvintes de forma lúdica para que pudessem perceber e interrogar a si mesmos e ao mundo de
forma que servissem de orientação para suas ações, interesses, aspirações e necessidades de auto-
afirmação e segurança ao propor objetivos, ideiais de participação social (COELHO, 1981, p 3). Era
o agente que preservava a memória de um povo e que, ao mesmo tempo, trabalhava com a realidade
e o imaginário buscando aspectos identitários da comunidade. Servia como um guardião da cultura.
Na atualidade, resume-se apenas a um profissional de entretenimento de festas infantis e/ou eventos
da área ou um professor que procura, através da palavra, encantar seus alunos e incentivá-los para a
leitura.

Como muitos povos, os índios sempre tiveram em sua cultura pessoas que desempenhavam
esse papel de forma a transmitir seu legado às gerações vindouras. Desta forma o objetivo deste

1
Carmem Véra Nunes Spotti Ŕ Professora da Universidade Estadual de Roraima e mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Estadual de Roraima
2
Carla Monteiro de Souza Ŕ Professora Drª do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de
Roraima

175
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

estudo é analisar o papel do contador de histórias tem em uma comunidade indígena. Nesse sentido,
faz-se necessário analisar a importância do índio na formação do povo brasileiro, sua cultura e sua
identidade.

Primeiramente traço um breve resumo do contador de historia ao longo dos tempos


discutindo o que é essa arte e como ela tem se desenvolvido desde os primórdios da humanidade e a
importância das historias para os povos. A seguir, discorro sobre a cultura indígena brasileira e, em
especial, a roraimense, foco do estudo em questão e finalizo com a construção identitária do
contador de historias, principalmente, o contador de historias indígena.

A relevância do presente estudo está no fato de que contar historia é uma arte milenar que
perpassa todas as comunidades mundiais em todos os tempos e que o contador de histórias, seja ele
indígena ou não, tem um papel fundamental no desenvolvimento do imaginário humano e na
preservação da cultura de um povo. E, em relação à questão indígena, é a pessoa que na
comunidade possui o domínio de entreter, repassar conhecimento e, ao mesmo tempo, aconselhar
além de possuir um carisma capaz de captar emoções e transformá-las em prazer.

O contador de histórias ao longo dos tempos

ŖContar histñrias é uma arte. Não basta apenas ler as palavras escritas num livro ou
reproduzir um texto guardado na memória. É preciso evocar um determinado período no
tempo, se apropriar das características dos personagens envolvidos e da atmosfera que dá o
tom da trama para, só então, começar a narrativa, que deve ser conduzida pela emoção do
começo ao fimŗ. (Nancy Mellon)

O ser humano conquistou sua humanização pela sensibilidade e pela preocupação com a
beleza através do instinto estético. Desta forma foi através da arte que ele foi capaz de conhecer e
mudar o mundo em função da magia que lhe é inerente, capacitando-o a identificar-se com a vida de
outros e a realizar-se como ser humano pleno.

Nesse sentido, a descoberta da arte produzida nas cavernas há aproximadamente 12 mil anos
demonstra o impulso essencial que levou o ser humano a expressar-se através de suas experiências
de vida. Desde essa época ele mostra-se superior aos outros animais, pois conquistou a palavra e
assim pode comunicar-se verbalmente. Desta feita, com o poder Řmágicoř e sagrado da palavra,
pode nominar que um ser existe através da indicação de seu nome.

E as narrativas orais foram uma das primeiras formas de como o homem recebeu a herança
da sua tradição e que, a princípio, utiliza a própria palavra como instrumento de magia, pois a arte
de contar historias é a redescoberta das origens e o contador é o guardião da cultura popular ao
despertar o amor pela cultura e ao ensinar a olhar com carinho as histórias que o povo conta. Desta

176
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

forma, o ato de contar historias se constitui numa forma de comunicação ancestral que possibilita a
preservação das tradições.

Assim, não é novidade que o homem goste de histórias, pois sem dúvida ele nasceu
cantando-as e contando-as, pois todas as formas de expressões artísticas (música, pintura, dança)
são formas de comunicação que se alimentam de histórias reais ou fictícias, integrando palavras aos
gestos, as imagens aos sons, a visão às sensações e encantando ao simbolizar a natureza, dominar a
palavra, criar histórias e narrar aventuras (GERLIN, 2009; EDUARDO, 2007). Nessa perspectiva,
o contador de histórias usa a linguagem para expressar-se, pois sem a palavra e sem o exercício da
arte de Ŗdizer e de ouvirŗ o homem não se afirmaria como ser humano e retornaria à caverna, num
retrocesso da humanidade. Assim é através da linguagem verbal que o ele expressa suas
experiências cotidianas de forma a entreter e\ou repassar informações.

Em continuidade a arte, em geral, e a literatura, em particular, possibilita experiências e


sensações que atravessam o vivido por um sujeito, porque narra-se aquilo que se viu, que viveu,
testemunhou ou imaginou, sonhou e/ou desejou. Nesse sentido ao narrar uma historia o importante é
criar um ambiente que possibilite desenvolver o fato narrado para que as habilidades do narrador
sejam bem trabalhadas, seja por aquele individuo que resguarda historias locais, por aquele que as
traz de outras terras ou aquele que apenas trabalha com a imaginação. Isto porque contar histórias é
um ato de troca e quem conta está comunicando-se, interagindo com o outro. Nesse sentido, o
contador precisa que o outro escute o que ele conta, diferente da leitura que pode, algumas vezes,
ser um ato individual.

Por isso é uma atividade que acalma, exercita a concentração e o ato de ouvir ajuda
aumentar o vocabulário e atiça a curiosidade por buscar novas histórias. Mas essa narrativa é um
dizer que precisa necessariamente provocar o imaginário e a fantasia de seus ouvintes, tanto das
crianças como dos adultos. Isso ocorre porque o homem sente prazer em mergulhar no passado em
busca dos antigos elos, tanto que mantém álbuns de família ou passa horas ao telefone
compartilhando com outros momentos particulares.

O ato de narrar, de acordo com Abramovich (1987, p. 22), é ensinar o outro a escutar, a
pensar e Ŗver com os olhos da imaginaçãoŗ . Um exemplo disso é o fato de que estamos cercados de
linguagens e narrativas como os papos de bar, os filmes, as novelas, os programas de televisão, os
romances, pois a historia alimenta a imaginação, ajuda aceitar situações desagradáveis, a resolver
conflitos e permite conhecer diferentes culturas bem como colaboram para a construção do senso
crítico.

Por outro lado a literatura oral no Brasil é considerada como causo, supertição e lenda e
muitas pessoas supõem que não mais existe. Quando temos oportunidade de estar ao lado de uma
pessoa mais velha ou apenas ao redor de uma fogueira toda essa nossa ancestralidade aflora e temos

177
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

vontade de ouvir ou contar as histórias ouvidas dos nossos avós durante nossa infancia. Isso ocorre
mesmo que seja um fato folclórico ou simplesmente uma simples situação lembrada no momento.

Mesmo diante dessa realidade nosso país ainda possui, embora de forma bastante tímida, um
diálogo entre a literatura oral e a escrita com a presença de grandes escritores como Monteiro
Lobato, Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo que valorizam o saber popular para construir
suas narrativas, pois somos uma nação com uma mistura de povos europeus, africanos, indígenas e
asiáticos. Por isso o homem necessita manter viva a oralidade e ao exercitá-la pode sonhar e
compartilhar momentos de magia ao ver brilhar nos olhos dos ouvintes a chama da imaginação, pois
todos gostam de ouvir e apreciam uma boa historia.

A cultura indígena

A população indígena na América do Sul (INSTITUTO SOCIO AMBIENTAL, 2006) está


estimada em pouco mais de 602.854 índios distribuídos em aproximadamente 222 etnias, entre as
quais estão os Aranã, Baniwa, Desana, Gavião, Kaiagang, Potyguara, Siriano, Zořé, que
compreendem quase 48 famílias lingüísticas residentes na Colômbia, Venezuela, Paraguai, Guiana,
Guiana Francesa, Argentina, Bolívia, Uruguai, Peru, Suriname e Brasil. No território brasileiro,
conforme dados do Ministério da Educação e Cultura Ŕ MEC, apenas dois estados não possuem
territórios de tribos indígenas e os demais estão com maior ou menor densidade demográfica
dependendo da região e das condições de contato, habitando em 628 terras indígenas descontínuas,
totalizando 12,54% do território nacional e que deste quantitativo mais de 60% da população
indígena está concentrada na região da Amazônia Legal (SPOTTI, 2007).
De acordo com Repetto (2008, p. 27) em Roraima vivem aproximadamente nove povos
indígenas distintos ostentando uma das maiores populações indígenas do Brasil. Em contrapartida
para Secretaria Estadual de Educação de Roraima (2006), existem 32 terras indígenas habitadas por
14 povos diferentes, como as das etnias Makuxi, Wapixana, Wai-Wai, Yekuana, Taurepang,
Ingarikó, Patamona, Waimiri-Atroari e Yanomami entre outras.

Para Ferri (1990, p. 12) Ŗpoucos são os documentos histñricos que descrevem a situação
indígena das regiões do rio Branco. As notícias são espalhadas de maneira caótica em relatos de
naturalistas, geñlogos e aventureirosŗ . Nesse sentido, para Ramos (1988, p. 7) as divisões entre os
vários países separam as comunidades indígenas e dificultam a comunicação e o acesso entre
parentes residentes nas fronteiras. Isso porque as divisões geográficas, visto aqui como conjunto de
dados naturais condicionantes e condicionado pelos grupos sociais que o habitam, podem separar
territórios que se desenvolvem e se enraízam, mas que não conseguem o mesmo com os laços
consangüíneos.

178
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Porém, a partir da conquista européia no século XVI iniciou-se um processo de diminuição


das populações indígenas, reduzindo-as a pequenas comunidades, e com tentativas de
uniformização cultural e destruição de sua organização social.

Nesse sentido, o não índio, mesmo aprendendo muito com os índios, ao avançar pelas terras
indígenas, incutiu seus costumes e produziu modificações nos padrões habitacionais, religiosos,
econômicos, entre outros, e provocou uma interferência nos conhecimentos que eram repassados via
oral através de gerações. Tal situação aliada ao tempo e desinteresse dos mais novos, está
ocasionando a perda da memória de muitos povos. Essa perda de memória para as comunidades
significa o mesmo que condená-las ao extermino, pois conforme Ramos (1988, p. 13-19) para as
sociedades indígenas a terra é mais do que meio de subsistência e representa o suporte da vida
social estando muito ligada ao sistema de crenças e conhecimento, sendo um recurso sociocultural
tão importante que, para muitos, o território grupal está ligado a uma história cultural. Como dizem
os Macuxi (SPOTTI, 2007) Ŗa terra é um lugar sagrado onde se dá o nosso desenvolvimento físico e
cultural. É lugar onde nascem novas vidas e onde enterramos nossos mortos. Onde encontramos a
força e a vida na natureza.ŗ

Como diz o índio Baniwa, Gersem dos Santos Luciano, (2006, p. 18) os povos indígenas não
são seres ou sociedades do passado. São povos de hoje, que representam uma parcela significativa
da população brasileira e que por sua diversidade e identidade cultural, territórios, conhecimentos e
valores ajudaram a construir o Brasil.

O contador de histórias indigena

Todo ser humano é um contador de histórias, haja vista que sempre estamos relembrando
fatos do passado ou imaginando algo no futuro. Assim, a memória, para Bosi (1994, p. 47), tem a
função prática de limitar a indeterminação e de levar o sujeito a reproduzir formas de
comportamento que já deram certo. Isso porque a articulação entre a memória e a linguagem é
fundamental e é o presente que solicita o passado, que é construído e reconstruído incessantemente,
motivado pela necessidade que o individuo tem de compreender a si mesmo.
Nesse sentido, uma forma que o narrador indígena encontrou para fazer esse elo entre a
memória coletiva de seu povo, a historia narrada e seu público, ao mesmo tempo que mantem sua
identidade cultural, é reunir a comunidade ao redor de uma fogueira e, no ritmo da noite,
aconchegar seus ouvintes em torno dos acontecimentos guardados na memória do narrador
tradicional.

Para Alfredo Silva, um dos líderes da Comunidade Indígena Nova Esperança, localizada na
Terra Indígena do Alto São Marcos, em Roraima, em conversa informal, as histórias contadas de
geração a geração não representam apenas algo para se aprender ou gravar, mas um conceito de
vida, uma atitude, um comportamento, um respeito pelas coisas, pelas pessoas e pela natureza que

179
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

permite criar modos próprios de conviver com seus mistérios. Nesse sentido, retrata que um dos
momentos mais utilizados é de madrugada ou quando se está fora da aldeia. Enfatiza que a parte
teórica é feita dentro de casa, a beira de uma fogueira e que é comum dormirem cedo e acordarem
por volta de duas horas para tomar caxiri e se aquecer. É nessas horas que os pais transmitem
ensinamentos, conselhos, contam experiências vividas, causos da infância, bem como planejam
atividades, caçadas, etc. Depois de conversar, geralmente por duas horas seguidas, voltam para as
redes e esperam amanhecer. Quando estão fora da comunidade essas conversas acontecem como
práticas de campo onde aproveitam para mostrar o que transmitiram em casa. Essa informação foi
ratificada pelo tuxaua da Comunidade, João Silva, ao dizer que, diariamente, levanta-se ao raiar do
sol para conversar com sua esposa e filhas. É nesse momento em que a família planeja o dia, passa
ensinamentos, conta histórias e que, muitas vezes, um vizinho e amigo vem com a família participar
desses colóquios.

Desta forma, para Alberti (2005, p. 17) Ŗos objetos transmitidos pela tradição oral não são
imutáveisŗ, pois Ŗcanções, ditos populares rezas, mitosŗ entre outros são transmitidos oralmente
Ŗpara que se atualizem e se manifestem (...), pois é o momento que determina, em grande parte,
para que e como algo é narradoŗ e para Costa (2005, p. 65) Ŗas lembranças comuns que compõem a
memória coletiva trazem até o presente esses códigos culturais, que são reinterpretados pelas
experiências de cada dia, pelo presente, incorporados à histñria passada é à memñria do grupoŗ . Por
isso o passado e o presente ocupam lugares distintos em conformidade com o momento em que a
história está sendo narrada, no qual o presente é determinante na modalidade narrativa, pois a
memñria não se dá Řpalavra por palavra, ela Ŗé elaborada segundo seus interesses, suas expectativas
e seus anseios, que residem no tempo presenteŗ .

Como retrata o livro Filhos de Makunaimi: vida, história, luta ou vai ou racha a luta
continua ... (2003, p. 9) os índios devem

redescobrir, valorizar e transmitir aos filhos de Makunaimî sua identidade com toda
riqueza cultural que foi transmitida pelos antepassados. Deles receberam a língua, a
história, os valores mais profundos, a visão do mundo, o amor e o respeito pela vida, leis
e normas, espírito comunitário e acolhedor, amor à mãe terra, aos antepassados e a Deus
pai criador de todos, o trabalho¸ os rituais e as festas, as instituições e demais expressões
culturais. Tudo isso é que identifica os makuxi como povo no meio de outros povos.ŗ

Colocado por esse viés sua função é o de Ŗser o guardião da memñria dos acontecimentos
públicosŗ ( Burke, 2000, p. 69), ou seja, o detentor da memória coletiva e transmissor da cultura e da
identidade social, pois sic Cuche ( 2002, p. 177) Ŗtodo grupo é dotado de uma identidade que
corresponde à sua definição socialŗ que permite situá-lo no conjunto social.

Desta forma, quem conta tem que estar disposto a criar uma cumplicidade entre história e
ouvinte, oferecendo espaços de locomoção de forma e envolvê-lo ao construir pausas, silêncios,
ações, gestos e expressões, de forma harmônica. Isso porque contar histórias é uma arte que precisa

180
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ser desenvolvida e que é necessário todo um envolvimento com a narrativa, com o público e até
com a própria arte de contar histórias, para se obter bons resultados.

Conclusões

O ser humano gosta de contar e ouvir historias haja vista que, desde pequenos, nos
encantamos com historias como Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel ou nos deleitamos com as
historias contadas pelos nossos avós sobre como eram suas vidas na infância. Embora os velhos
contadores tradicionais estejam desaparecendo, com o advento da televisão, ainda surgem
profissionais que se dediquem a esta arte.
Por isso, o contador de história indígena sempre foi aquele elemento da comunidade que
deteve o poder da oratória, aquele que vivencia a história de forma ardente, sugestiva, que narra
com naturalidade, que conhece bem o enredo e domina seu público. É o detentor da memória
coletiva, da cultura e da tradição seu povo. Sabe usar a palavra e, principalmente, fazer seu público
participar utilizando o tempo, o espaço, o encantamento para prender a atenção e, ao contar
historias, socializa, recrea, forma, informa, educa a atenção, enriquece a linguagem, estimula a
imaginação e a inteligencia, desperta emoções, desenvolve o pensamento lógico, o senso crítico e
ensina a ouvir.

Nesse sentido, ao contar historias ele traz a tona a identidade de seu grupo, pois para Maher
(1998, p. 117) a identidade é um construto sociohistorico por natureza, ou seja, um fenomeno
político, ideológico e em constante mutação onde o sujeito índio emerge e é revelado através do uso
da linguagem construindo e projetando sua identidade. Assim, ao manter essa arte de reunir-se com
a comunidade e a família para contar historias favorece a Ŗdescoberta da sua prñpria identidade
frente ao invasorŗ que, durante décadas, forçou-o a permanecer numa Řilhař cultural e agora emerge,
quando está ameaçado de se perder nessa cultura globalizada, ao lidar com diferenças linguisticas,
sociais, culturais e onde entram em jogo questões ligadas à identidade indígena.

Ao ouvir e se deixar levar pelo contador de historias as pessoas saboreiam, juntas, do


imaginario cultural de seu povo, revivem feitos vividos ou não, sonham, cantam, dançam, lutam
batalhas inimagináveis. No costume do povo, as fronteiras entre palco e platéia, o artista e o
publico, a criação e a recepção, são bem menores. Essa fronteira não é a territorial, mas a fronteira
do humano. Tudo é produzido para ser compartilhado e vivenciado pelo povo de forma a encantar e
estimular o senso crítico do ouvinte.

Quando se conta uma história abre-se para o pensamento mágico onde a palavra possui o
poder de evocar imagens de forma a levar o ouvinte a uma suspensão temporal, onde o que importa
é o tempo afetivo e não mais o temporal. Ao contar uma historia o ser humano Ŗfornece um auto-
retrato: uma lente lingüística através da qual podem descobrir as visões (um tanto idealizadas) das
pessoas sobre elas mesmas como localizadas em uma situação social (MOITA LOPES, 2002, p.

181
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

65). Nesse sentido, é importante que os jovens sintam desejo de preservar as histñrias Ŗparticularesŗ
da comunidade narrativa a que pertencem e a escola precisa incentivar essas ações, embora seja
muito preconceituosa com as manifestações populares.

Referências bibliográficas

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. 5ª Ed. São Paulo: Scipione.
1997

ALBERTI, Verena. Tradição oral e historia oral: proximidades e fronteiras. Rio de


Janeiro:Revista Historia Oral. V.8. n.1. p.11-28. Jan - jun 2005

BOSI. Ecléia. Memória e Sociedade. 4 ed. São Paulo: Cia das Letras. 1995

BURKE, Peter. Historia como memória social. In: Variedades da historia cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira. 2000 p. 67 - 89

CASCUDO, Luis da Câmara. História da Literatura Brasileira. Vol. VI. Literatura Oral. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora. 1952

________________________. Literatura Oral no Brasil. São Paulo: Global. 2002.

COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil. São Paulo: Quiron Ltda. 1981

COSTA E SOUZA, Jorge Manoel. Etnias indígenas das savanas de Roraima: processo histórico de
ocupação e manutenção ambiental. In: Barbosa, R. I; COSTA E SOUZA, J. M.; XAUD, H. A. M.
(orgs.) Savanas de Roraima: etnoecologia, biodiversidade e potencialidades ambientais. Boa
Vista: FEMACT. 2005

CUCHE, Denys. Cultura e Identidade. In: A noção de cultura nas ciências sociais. 2 ed. São
Paulo: EDUSC. 2002. P. 175 Ŕ 199

EDUARDO, Shirlei Gomes. A MARCA INDIVIDUAL DO CONTADOR DE HISTÓRIAS.


Monografia de conclusão de curso de Letras da Universidade de Taubaté. 2007. Disponível em
<http://www.rodadehistorias.com.br/pdf/mono%20shirlei%20para%20o%20site.pdf> acesso
em 01-07- 09

FERRI, Patrícia. Achados ou perdidos? A imigração indígena em Boa Vista. Goiânia: Editora
MLAL. 1990.

GERLIN, Meri Nadia. Leituras e diálogos sobre ações culturais. Disponível em <
http://www.rodadehistorias.com.br/escritos1.php?id=1 > acesso 01-07-09

GONÇALVES, Hortência de Abreu. Manual de artigos científicos. São Paulo: Avercamp Editora.
2004.

LUCIANO, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje. Brasília: SECAD/MEC/UNESCO. 2006

MEIRELES, Cecília. Problemas da Literatura Infantil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1984

MELLON, Nancy. A arte de contar historias. Rio de Janeiro: Rocco. 2006

182
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

PIETRO, Benita. Contadores de histórias: guardiões das culturas populares. Disponível em


<http://www.rodadehistorias.com.br/escritos1.php?id=1 > acesso 01-07-09

Publicação dos professores indígenas da Região das Serás Ŕ Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Filhos de Makunaimî: vida, história, luta - ou racha. A luta continua. Boa Vista: CIR. 2004.

REPETTO, Maxim. A educação escolar indígena em Roraima: o processo histórico e as


demandas atuais por ensino médio. In: OLIVEIRA, Rafael da Silva.Roraima em Foco: pesquisas e
apontamentos recentes. Boa Vista: Editora da UFRR. 2008

SISTO, Celso. Texto e pretextos sobre a arte de contar historias. Chapecó: Argos. 2001

SPOTTI, Carmem V.N.; MOURA, Ana Aparecida V. de; MELO, Nildete S.; MARTINS, Luzinet
R. A CULTURA INDÍGENA NAS ESCOLAS DO ESTADO DE RORAIMA. Disponível em <
www.filologia.org.br> acesso em 20.06.2010
TENÒRIO, Luciana de Mattos. O Ministério da Saúde Adverte: Contar Histórias faz muito
bem a Saúde. Disponível em <http://www.rodadehistorias.com.br/escritos1.php?id=1 > acesso 01-
07-09

Disponível em www.socioambiental.org. Ŕ acesso em 20 jan 2006 Ŕ material atualizado em


junho/2005

Disponível em www.secd.rr Ŕ acesso em 20 fev 2006

183
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O IMAGINÁRIO HÍBRIDO AFROBRASILUSO1 N‘AS PELEJAS DE OJUARA: UMA


CONSTRUÇÃO DO DIABO NA CULTURA POPULAR NORDESTINA

Carolina de Aquino Gomes (UFC)

Introdução

O Diabo é uma das personagens mais frequentes em diversas manifestações da cultura


popular do Nordeste. Ele aparece como figura dramática principal em numerosos contos, lendas,
cantigas, autos, romances, desafios e representações pictóricas; outras vezes atua como personagem
secundária ou como Ŗinvisível operador de bastidoresŗ (PONTES, 1979, p. 11), tornando-se
presença constante em narrativas que contenham traços de horror ou mistério.
Essa personagem foi trazida para a Terra de Santa Cruz na bagagem cultural dos
colonizadores portugueses, assim como também vieram outras lendas e tradições. Ao encontrar no
Brasil os indígenas, curiosos e seminus, o Diabo não desperdiçou a oportunidade de espalhar sua
maligna influência, atraindo o olhar dos membros da expedição portuguesa para a nudez acobreada
das índias. Segundo Gilberto Freyre,

o europeu saltava em terra escorregando em Índia nua. As mulheres eram as primeiras a se


entregarem aos brancos, as mais ardentes, indo esfregar-se nas pernas desses que supunham
semideuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho. (FREYRE apud
SOUTO MAIOR, 1975, p. 15)

Inicia-se, assim, a propagação do mito do Diabo no Brasil. Essa fantástica herança cultural
somou-se ao universo não menos fantástico indígena e posteriormente ao africano, construindo o
Diabo que conhecemos atualmente através da literatura popular em verso e de diversas obras
literárias consideradas eruditas, como: Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; O Sargento
Verde, de José Lins do Rêgo; Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna; Terras do Sem Fim, de
Jorge Amado, entre outras obras que retratam o mito do Diabo assim como foi construído em solo
brasileiro, um ente representante do Mal, a que pertencem características de culturas várias, um ser
tão híbrido quanto a primeira concepção de Lúcifer no imaginário medieval.
Para entender a construção desse imaginário mítico acerca do Diabo e suas manifestações
através da ótica da cultura popular nordestina, utilizaremos a obra do escritor potiguar Nei Leandro
de Castro, As Pelejas de Ojuara, em que esse imaginário mítico do sertão nordestino é
brilhantemente representado e em que o Diabo, como personagem secundária, mostra-se presente
em todo o romance, fisicamente ou simplesmente por intermédio das crenças e da linguagem
popular.
O romance é mergulhado nas narrativas populares repletas da manifestação de seres
fantásticos que povoam a mente e as crenças do povo sertanejo nordestino, os quais agem direta ou
indiretamente na vida das personagens, seja para fazer o bem ou o mal. O Diabo e alguns demônios

1
Expressão utilizada por Roberto Pontes (1999) em seu livro Literatura insubmissa afrobrasilusa.

184
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

familiares1 rondam as aventuras de Ojuara pelo sertão norte-rio-grandense. Eles se apresentam na


obra como seres compostos por elementos de culturas várias que se hibridizaram e formaram o que
hoje, na religiosidade popular, temos como a representação do Príncipe das Trevas.
Portanto, o Diabo encontrado em As Pelejas de Ojuara é um ente sobrenatural genuinamente
brasileiro, se considerarmos a formação da cultura brasileira a partir da fusão de três etnias: a
ameríndia, a africana e a lusitana. De acordo com Roberto Pontes (1999, p. 163), Ŗo cadinho em que
[essas culturas] se fundem passa a ser algo original em busca de cristalizar-se ao produzir culturaŗ ,
ou seja, é essa miscigenação de culturas que traça o perfil do que se convenciona hoje chamar de
identidade, pois, segundo Pontes (1999, p. 163), Ŗa cultura consiste numa contínua transfusão de
resíduos indispensáveis ao recorte próprio da identidade nacional, qualquer que seja estaŗ .
Partindo desse pressuposto, buscamos neste artigo verificar como esses três elementos
culturais (ameríndio, africano e lusitano) se fundem para formar o imaginário mítico popular
nordestino acerca do Diabo, no que diz respeito a sua forma, sua ação e seu uso nas crendices
populares; assim como verificar os substratos mentais remanescentes das três culturas
primordialmente formadoras da brasileira, tomando como corpus o romance de Nei Leandro de
Castro, pela primorosa representação do imaginário mítico do sertão nordestino na obra As Pelejas
de Ojuara. Também pretendemos investigar os aspectos regionais que estão presentes no romance
estudado no que diz respeito à religiosidade popular, verificando o quanto essa obra transcende os
muros do regional em busca do universal, mesmo sendo inserida numa paisagem sertaneja.
Segundo Almeida (1980, p. 47), Ŗ[...] a arte regionalista stricto sensu seria aquela que
buscaria enfatizar os elementos diferenciais que caracterizam uma região em oposição às demais ou
à totalidade nacionalŗ . Dessa forma, consideramos, no presente estudo, As Pelejas de Ojuara como
um romance de traços regionais, pois enfatiza as crenças, os usos e costumes de uma região, não só
do Rio Grande do Norte, mas de todo o Nordeste, diferenciando-se em alguns aspectos do restante
do país.
Utilizaremos como pressuposto teórico-metodológico a Teoria da Residualidade2. Segundo
Elizabeth Martins (2000, p. 265),

a residualidade se caracteriza por aquilo que resta, que remanesce de um tempo em outro,
podendo significar a presença de atitudes mentais arraigadas no passado próximo ou
distante, e também diz respeito aos resíduos indicadores de futuro. Este último é o caso de
artistas que, independente da estética à qual pertençam, incluem em suas obras uma
linguagem precursora, sendo por isso comumente considerados artistas avant la lettre. Mas
a residualidade não se restringe ao fator tempo; abrange igualmente a categoria espaço, que
nos possibilita identificar também a hibridação cultural no que toca as crenças e costumes

Dessa forma, partimos do estudo do imaginário religioso medieval, tendo como base
pesquisas empreendidas sobre a arte sacra cristã e a literatura medieval, assim como, as

1
Segundo Muchembled (2001), os demônios familiares são companheiros dos homens e não praticam o Mal para
aqueles com quem simpatizam, tornando-se uma espécie de espírito protetor.
2
A Teoria da Residualidade foi desenvolvida pelo poeta, crítico e ensaísta Roberto Pontes na Tese de Doutorado O
jogo de duplos na poesia de Sá-Carneiro (1998), em seu livro Literatura Insubimissa Afrobrasilusa (1999), além de
trabalhos publicados em revistas e em anais de congressos.
185
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

representações de Satanás na Bíblia Sagrada, para entendermos como se deu a criação e a


perpetuação do imaginário mítico diabólico no Nordeste brasileiro.

A presença demoníaca no Nordeste

Para os estudos literários brasileiros, investigar o contexto medieval é indispensável na


compreensão da gênese da cultura popular, principalmente no que diz respeito à religiosidade como
elemento formador da identidade nacional.
Apesar de não termos vivenciado a Idade Média européia, nosso país foi colonizado à luz de
uma mentalidade medieval. De acordo com Hilário Franco Júnior (1998),

para nós brasileiros, membros da chamada civilização ocidental cristã, a Idade Média
representa o enquadramento no qual nosso país foi formado e cujos traços ainda são
claramente visíveis. Ou melhor, traços algumas vezes tão presentes, que perdemos
consciência de sua medievalidade. Outras vezes, traços tão enraizados e transformados, que
não percebemos seu sentido. (FRANCO JÚNIOR, 1998, p. 3)

Assim acontece com a religiosidade popular: elementos que já estão bastante sedimentados
numa cultura híbrida, como a brasileira, nem são percebidos pelo senso comum como resíduos de
outra cultura e muitas vezes são considerados originais. Até a religiosidade sincrética característica
da Idade Média remanesce no Brasil Ŗcom sua mescla de cristianismo, xamanismo indígena,
crenças africanas, e, mais recentemente, religiões e seitas orientaisŗ (FRANCO JÚNIOR, 1998, p.
16).
Segundo Hilário Franco Júnior (1998),

assim como na Europa medieval ocorrera uma cristianização do paganismo clássico e uma
paganização do cristianismo, na colônia portuguesa houve cristianização dos negros e
africanização do cristianismo. Cristianismo que era mais medieval que pós-tridentino,
devido ao isolamento da colônia e ao caráter arcaico de sua população e suas instituições.
(FRANCO JÚNIOR, 1998, p. 16)

Observamos, então, que o imaginário mítico acerca do Diabo no Brasil assemelha-se com o
imaginário desse mesmo ente sobrenatural oriundo do medievo, pois somente nesse período
teremos uma representação da imagem de Lúcifer. Até o século IX ele se encontra praticamente
ausente das representações iconográficas cristãs, ou seja, enquanto, na arte cristã, há uma tradição
iconográfica quanto à pessoa de Jesus Cristo, da Virgem Maria e dos Santos, não se encontra
imagem alguma do Diabo, Ŗa máscara sem rostoŗ (LINK, 1998). Essa ausência de uma imagem do
Diabo é superada no período medieval, de acordo com Jérôme Baschet (2006):
Note-se que o Diabo está quase totalmente ausente das imagens cristãs até o século IX. É
somente por volta do ano 1000 que encontra uma posição digna dele, quando se desenvolve
uma representação específica enfatizando sua monstruosidade e animalidade, e
manifestando seu poder hostil de modo cada vez mais insistente. (BASCHET, 2006, p. 319)

Dessa forma, na Idade Média os artistas cristãos buscaram no mundo clássico os elementos
que iriam compor os traços iconográficos predominantes de Lúcifer.

Na hora de pintar o Diabo, os artistas tinham enorme dificuldade. Não existia tradição
literária digna do nome e, o mais exasperante, não havia tradição pictórica alguma. Nas

186
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

catacumbas e nos sarcófagos não há Diabo. Essa inexistência de tradição pictórica,


combinada a fontes literárias que confundiram o Diabo, Satã, Lúcifer e demônios, são
razões importantes para a ausência de uma imagem unificada do Diabo e da iconografia
irregular. Mas alguma coisa é sempre melhor que nada. E havia algo que o artista cristão
podia tirar das fontes clássicas e que os comentários teológicos corroboravam - Pã. (LINK,
1998, p. 53).

O antigo deus celta Pã reunia em sua imagem cinco características comuns ao Diabo:
Ŗchifres, casco, orelhas, rabo e parte inferior do couro peludaŗ (OřGRADY apud OLIVA, 2007, p.
51).
As características imagéticas de Satanás construídas na Idade Média são híbridas e
grotescas. Robert Muchembled (2001) registra relatos, como o do monge Raoul Gabler, por volta
do ano 1000, que identifica o Diabo com traços humanos, porém extremamente deformado, como
se seus defeitos morais fossem transfigurados em sua aparência física. Observa-se uma evolução
para essa figura grotesca e ridícula, atribuindo-se-lhes características de animais considerados pela
cristandade como demoníacos, por serem sagrados para as doutrinas consideradas pagãs, assim
como assumiu também características de deuses pagãos, não só de Pã. Um dos exemplos mais
recorrentes na iconografia cristã é a imagem de Satã carregando um tridente a espetar a alma dos
pecadores no inferno, imagem reproduzida por Dante Alighieri no Canto XXI da Divina Comédia, e
que nos lembra o símbolo de Poseidon, o deus supremo dos mares dos povos gregos.
De acordo com o que foi exposto até o momento, percebemos algumas convergências que
nos remetem à religiosidade popular nordestina brasileira, no que diz respeito à imagem do Príncipe
das Trevas. Observamos também que ao ser construída a imagem do Diabo através dos escombros
das religiões anteriores ao cristianismo, depois da representação de Satanás como adversário de
Deus1, o cristianismo passou a igualar o Inimigo com as expressões religiosas do Ŗoutroŗ 2. Esse
mesmo processo em que se deu a demonização das religiões pagãs através de sua representação
visual pela poderosa Igreja medieval, e que ocasionou a perseguição e a diabolização de rituais
pagãos, também levou os cristãos europeus a demonizar as religiões dos povos autóctones do Brasil,
assim como, as religiões dos negros africanos que para cá foram trazidos como escravos.
As Pelejas de Ojuara é um romance que traz para o leitor o universo mítico do sertão
nordestino através de narrativas populares encontradas nas histórias tradicionais, nos Ŗcausosŗ e na
literatura popular em verso. Empreendemos este estudo tomando por base essas manifestações da
cultura popular nordestina, retratadas na obra de Nei Leandro de Castro, por entendermos que elas

1
Segundo Jonh A. Sanford (1988, p. 37), ŖExistem, no Antigo Testamento, apenas quatro referências a Satanás como
sendo um ser sobrenatural. Todas as quatro encontram-se nos livros do pós-exílio, ou posteriores a 597 a. C. Além do
mais nenhuma dessas referências é importante na narrativa do Antigo Testamentoŗ. No livro de Jñ, Satã parece fazer
parte da família mais íntima de Deus, sem ainda mostrar-se como um adversário preciso das vontades divinas. Já no
Novo Testamento Satã é apresentado como um espírito oposto a Deus.
2
De acordo com Carlos Nogueira (1986), ŖEssa apropriação por parte do cristianismo de idéias e cerimônias
emprestadas às religiões politeístas tem a sua contrapartida no delineamento mais límpido de sua teoria demonológica.
Tudo o que ele repeliu energicamente como demasiadamente pagão, como contrário de seus dogmas, como impuro e
ímpio, refugiou-se no reino do Malŗ. Portanto, uma análise mais profunda da concepção do Diabo no período medieval
nos leva a reforçar que sua representação visual foi construída, em grande parte, devido a demonização do outro, ou
seja, das crenças dos povos pagãos.

187
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

constituem um dos núcleos fornecedores dos materiais que, sendo devidamente investigados,
servirão para revelar algumas das matrizes do que se convencionou chamar de cultura popular
brasileira.
O imaginário acerca do Diabo nessa obra é notavelmente híbrido. Encontramos na
representação do ente diabólico resíduos remanescentes das várias culturas formadoras da
brasileira, com destaque para as culturas africana, ameríndia e lusitana. Dessa forma, esse
imaginário híbrido também se revela no romance através dos nomes dados ao Diabo, como Exu e
Anhangá, dois seres míticos pertencentes a outras religiões, a africana e a indígena respectivamente,
além do já citado Diabo, entre outros apelidos a ele dedicados.
No romance estudado, o Diabo está presente em toda a narrativa, fazendo do sertão a sua
morada e a de seus ajudantes infernais. Menezes (1985), ao explicar a existência desse mito na
literatura popular em verso, reitera:

Aliás, o Deus e o Diabo da literatura de cordel foram refabricados na Europa cristã a partir
de materiais celtas, persas, judaicos, e inúmeros outros; e como antes não existiam aqui,
foram trazidos pelas caravelas coloniais quando da transformação de Pindorama em Terra
de Santa Cruz. (MENEZES, 1985, p. 100).

Sendo assim, ao se deparar com as culturas africana e indígena, semelhante ao que foi feito
na Idade Média, o português demonizou tudo aquilo que era estranho à sua cultura e durante a
dominação do território brasileiro, cristianizou o Candomblé africano e as crenças indígenas. Ou
podemos dizer que aconteceu o contrário, que foi o cristianismo que se africanizou e indigenizou?
Esse processo, segundo Peter Burke (2003), pode se configurar numa espécie de tradução
cultural. Ele exemplifica o uso dessa metáfora com a seguinte situação:

Um historiador da cultura poderia querer acrescentar a sugestão de que a metáfora descreve


algumas situações humanas melhor do que outras, especialmente situações nas quais o
encontro é entre as pessoas de culturas diferentes. (BURKE, 2003, p. 57).

O caso exemplificado pelo historiador inglês reflete diretamente a realidade do Brasil no


século XVI. Os padres jesuítas e os homens cristãos, ao entrarem em contato com a cultura
indígena, principalmente no tocante à religiosidade e às crenças, tentam traduzir, ou seja, buscar
seres mágicos equivalentes na sua cultura para compreender o universo mítico indígena, o que
também aconteceu posteriormente com a tradução cultural dos deuses do panteão africano e sua
identificação com os santos católicos, isso através de uma inegável aculturação intolerante e
violenta, como temos conhecimento através da História de nosso país.1
No entanto, o povo não absorve os ideais, as imagens e as histórias tão passivamente. De
acordo com Peter Burke (2010, p. 96),

Na verdade, elas [imagens e estórias] são modificadas ou transformadas num processo que,
de cima, parece ser distorção ou má compreensão, e de baixo, parece adaptação a
necessidades específicas. As mentes das pessoas comuns não são como uma folha de papel
em branco, mas estão abastecidas de idéias e imagens; as novas idéias, se forem
incompatíveis com as antigas, serão rejeitadas.

1
Em seu livro O povo brasileiro, Darcy Ribeiro (2006, pp. 38-44) trata da formação deste que ele denomina povo novo,
os brasileiros, através dos séculos de uma colonização violenta e intolerante.

188
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Dessa forma, os modos tradicionais de recepção e intelecção concebem uma espécie de crivo
que absorve algumas novidades e outras não. E não é diferente com a cultura popular nordestina, o
que vai ser claramente percebido na obra em análise.
NřAs pelejas de Ojuara, Satanás se apresenta de forma híbrida ao ser chamado de Exu por
um escravo alforriado que o invoca numa encruzilhada, para assim pactuar com ele a fim de obter
uma botija de ouro indicada em sonho por Ŗuma mulher branca, bonita que nem a Princesa Isabelŗ
(CASTRO, 2006, p. 236). Por não conseguir interpretar o mapa dado em sonho, pois não sabia
contar nem rezar, o Ŗpreto velhoŗ recorre a Exu, porém não cumpre o pacto e o deus do panteão
africano, então representado de forma semelhante ao Diabo medieval, atormenta o ex-escravo para
obter sua parte no trato.
Exu se apresenta materialmente de forma grotesca, caindo aos pedaços do teto do casebre,
onde habita o velho, e no qual se encontra Ojuara que pedira abrigo por uma noite ao escravo
alforriado. O Diabo/Exu pede permissão para cair e, sendo essa concedida por Ojuara, inicia-se o
espetáculo de horrores, com a queda de braços e pernas pretos e Ŗcabeludosŗ (CASTRO, 2006, p.
239), que culmina na queda dos últimos membros e a junção destes, conforme o trecho destacado:

A cabeçona afundou o barro do chão e a ela se juntaram, como ferro em azougue, pernas,
braços e um tronco mais feio que praga de mãe. O bicho ficou em pé e partiu pra briga,
cheio de mungangas. Se a valentia da Besta-fera correspondesse à sua feiúra, Ojuara não
teria ficado pra contar história. (CASTRO, 2006, p. 239).

Ojuara investe contra o ŖPapa-figoŗ (CASTRO, 2006, p.240), na qual, apesar de sair com o
dedo queimado, logra o Diabo, que se metamorfoseia em porca, e deixa de ser uma ameaça, como
ilustra o trecho destacado.

Na primeira oportunidade Ojuara enfiou o maior-de-todos no furico da assombração. Até o


eixo, chega bateu na tripa gaiteira. Aí houve uma explosão com fumaça que atirou Ojuara
contra a parede. O caboclo sentiu a vista escurecer e quando deu cobro de si, o bicho tinha
desaparecido. No lugar dele, uma imensa porca fuçava o chão. (CASTRO, 2006, p. 240)

A imagem construída de Exu, na obra, assemelha-se à do Diabo medieval. O orixá africano


aparece como um bicho preto e peludo, sob forma demoníaca. Apresenta-se de modo grotesco,
caindo em pedaços e exalando um cheiro próprio do Belzebu, revelando aspectos residuais da
mentalidade medieval na construção do imaginário mítico que envolve a iconografia do Diabo no
sertão nordestino. Esses atributos não fogem totalmente aos do Demônio cristão, preservam seus
aspectos físicos e morais. Satanás é sempre representado como preto, sujo, fedorento, incorporando
traços de animais e apegado aos prazeres mundanos, como já expomos anteriormente. A porca em
que se transformou Exu, depois de atingido em seu ponto fraco, é um animal considerado diabólico
segundo a tradição medieval.
Exu é o deus africano responsável por receber e repassar as oferendas aos outros deuses, é o
mensageiro, e também é o deus da fertilidade, representado em seus altares por objetos fálicos. Sua
ligação com Lúcifer foi a priori identificada por nós pelo caráter trickster1, comum a ambos. Ao ler

1
De acordo com Messadié (2001, p. 150), Ŗo trickster é uma personagem mítica encontrada em numerosas religiões e
que pode comparar-se a um bobo do rei, um jóquer que pode irritar o rei dos deuses, mas, contudo, não perde nunca o
189
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

as histórias narradas pela Mitologia Africana, conhecemos um Exu transformador da natureza. Ele
modifica o lugar do sol e da lua, desafia os deuses, é protagonista de aventuras obscenas, das quais
sai muitas vezes humilhado. O malicioso Exu é enganado e logo arranja sua vingança. Sendo assim,
esse caráter que contraria as regras de conduta aceitas pelo cristianismo foi o que levou o deus
mensageiro à alçada de Diabo na transmutação da religião africana para alguns cultos de religiões
afro-brasileiras.
Outro nome dado nřAs Pelejas de Ojuara ao Demônio é Anhangá. Segundo Couto
Magalhães (apud CASCUDO, 2002, p. 98), ŖAnhangá é o deus da caça do campo; Anhangá devia
proteger todos os animais terrestres contra os índios que quisessem abusar de seu pendor pela caça,
para destruí-los inutilmenteŗ . Porém há uma progressiva diabolização desse espírito indígena em
razão da catequese empreendida pela Companhia de Jesus.
Os mitos indígenas, em grande parte, foram articulados num frágil sistema religioso,
esboçado pelos cronistas do século XVI, numa catalogação primária Ŗdos pavores geraisŗ
(CASCUDO, 1984, p. 106) e não agrupados como pretendeu Couto de Magalhães, que distribuiu
deveres de proteção da fauna e da flora para cada um. No entanto, esses mitos, registrados entre os
séculos XVI e XVII, foram analisados através da ótica européia. Segundo Luís da Câmara Cascudo
(1984, p. 107),

Os registros dos séculos XVI e XVII indicam os duendes que se popularizaram no espírito
dos brasileiros, os mais prestigiosos para a indiada Tupi. Foram os tupis a massa humana
que o português plasmou e dirigiu. Decorrentemente foi a que melhor conheceu. Conheceu
olhando com olhos bem europeus, ouvindo o missionário que traduziu por demônios
infernais todos os deuses da floresta tropical.

De fato, encontra-se nas cartas dos padres José de Anchieta, Manuel da Nóbrega e Fernando
Cardim um Anhangá, ou Anhanga, descrito como Ŗum espírito malfazejo, temido pelos indígenasŗ
(CASCUDO, 2002, p. 97).
Alguns estudiosos do século XVI afirmam que Anhangá não tinha forma, atribuindo sua
existência às almas dos mortos. De acordo com Cascudo (2002), ŖO Anga, o Anhanga que sacudia
de desespero o selvagem, Anga era a alma sem pouso, o espírito errante, significando diabrura,
malefício, feitiçariaŗ (CASCUDO, 2002, p. 103). Várias culturas, como a grega, a romana, a persa e
a chinesa, também vão ter um mito semelhante: as almas dos mortos sem sepulturas se tornam
demônios atormentadores.
Já outros pesquisadores concordam com Couto de Magalhães, que registra Anhangá em
forma de um veado branco ou vermelho, com chifres cobertos de pêlos, com olhar de fogo, cruz na
testa, o que o aproxima bastante do imaginário mítico europeu criado na Idade Média no que tange
à imagem do Diabo, conforme vimos anteriormente.

seu lugar na corte. É de notar que, em todas as iconografias, até e incluindo nossos jogos de cartas, atribui-se lhe uma
aparência maligna no sentido benigno da palavra, a de um diabrete de ópera. O mais curioso nesse tipo de deus é que se
encontra em religiões sem relação aparente; no panteão dos Ioruba, grande etnia da África ocidental, é Eshu,
mensageiro de todos os deuses, comparável nessa religião a Hermes-Mercúrioŗ.

190
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Isso contribuiu para a cristalização na memória coletiva do sertanejo, que, ainda hoje,
representa Anhangá como Satanás. O trecho do romance que destacamos a seguir descreve o
espírito malfazejo indígena com características residuais do Diabo cristão:

Ŕ Deus não existe! Só Anhangá existe! Só Anhangá existe e matou minha mulher!
Bateu no tambor dos peitos.
Ŕ Agora venha me matar, baé embeguaçu. Venha brigar, cabeipora!
Mal terminou a última palavra, o vento danou-se a soprar e uivar e levantar poeira. Nuvens
de chumbo e enxofre esconderam um pedaço da lua por cima do rio. No meio o redemunho
chegou um cabeçudo de chifres, rabo terminando em seta, asas de morcego, braços de
homem cabeludo, pés de bode. Os olhos pareciam dois flachilaites, um de luz vermelha,
outro de luz amarela. Na mão direita, o Anhangá trazia um espeto de três pontas.
(CASTRO, 2006, p. 269).

A caracterização de Anhangá é semelhante à do Diabo europeu. Ele assume traços de


animais considerados malignos, como o bode e o morcego. Do deus Pã, a descrição encontrada na
obra ilustra traços, como a pelugem de bode e os cornos, além de carregar consigo um tridente,
símbolo de Poseidon, um deus pagão. Outra característica da presença de substratos do imaginário
mítico europeu na obra é o característico odor de enxofre e casca de ovo queimada.
Jeffrey Burton Russel (2003) descreve a caracterização do Diabo segundo a etnografia
medieval:
Freqüentemente, o Diabo aparece monstruoso e deformado a forma externa traindo o seu
defeito interno. Ele é manco por causa da queda do céu; os seus joelhos estão para trás; tem
uma face extra na barriga, nos joelhos ou nas nádegas; é cego; tem chifres e um rabo; não
tem narinas ou só uma; não tem nenhuma sobrancelha; seus olhos são lacrimejantes e
incandescentes ou atiram fogo; tem cascos partidos; emite um odor sulfuroso e, quando
parte, faz isso com fedor, barulho e fumaça; ele está coberto com cabelo grosso e preto;
possui disfarces, asas como de morcego. (RUSSEL, 2003, p. 65)

Após observarmos as duas descrições, percebemos a semelhança de alguns traços


iconográficos do Diabo medieval e da representação desse ser mítico num romance de cunho
regional que ressalta as crenças do sertanejo nordestino. Esse não podendo retratar Anhangá como
um veado, como condiz a tradição, adaptou o mito - já que o próprio ambiente natural não permite
que esse animal viva numa paisagem seca - e o transformou numa representação imagética mais
próxima e aceitável a suas necessidades.
O Diabo, desta forma, assim como na Idade Média, é usado também como agente
moralizante. O medo do inferno e de Satanás faz com que o sertanejo preserve uma série de
crendices populares, como o uso de amuletos para espantar maus espíritos; a prática de sacramentos
cristãos como o batismo, sendo esta uma forma de proteger a criança da ação dos demônios; as
orações feitas nas chamadas horas abertas, ao meio-dia e à meia-noite; o hábito de se benzer
quando, nessas horas, o vento sopra de forma intensa etc.
No que diz respeito ao medo de pronunciar o nome do Diabo, Mário Souto Maior (1975)
explica que essa tradição nos foi legada pelos portugueses.

Cada um respeitava e temia o Diabo conforme o uso de sua província. No entanto, era
generalizada a crendice de que se alguém pronunciasse o nome do Diabo ele poderia
aparecer e fazer das suas. E para que tal não acontecesse, os portugueses começaram a
inventar apelidos do Diabo que constituíram uma maneira para lográ-lo (SOUTO MAIOR,
1975, p. 17)

191
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Em As Pelejas de Ojuara, esses apelidos se espalham por toda a obra na boca dos mais
variados tipos sertanejos, que respeitam o Diabo e temem a sua presença. Esse é mais um traço que
confirma o caráter regional do romance ora estudado, o qual transcende e toma dimensões de uma
obra universal, pois narra além dos muros do regional, e ao lançar questões e trabalhar com os
sentimentos e emoções inerentes ao homem, como o medo de seres sobrenaturais e também a
repulsa pelo Mal e a valorização do Bem, atinge o universal.

Considerações finais

De acordo com Selma Rodrigues (1997),

Toda literatura é regional, mas nem toda literatura é regionalista. O regional interiorizado
pelo escritor (ou pintor, ou músico), independe de um projeto artístico e de uma
determinada época. É uma ressonância, é um sentir que se faz presente na criação.
(RODRIGUES, 1997, p. 368)

Nei Leandro de Castro, como escritor, internalizou os usos e costumes de sua região
conscientemente, através de pesquisas sobre a literatura popular em verso, ou inconscientemente,
refletindo em suas palavras aspectos da sua vivência em Caicó, no Rio Grande do Norte.
Através da afirmação de Luciana Stegagno-Picchio (1997), de que Ŗdevíamos, portanto,
concluir que o regional e o universal, o local e o geral se misturam numa mesma obra. Não só: que
eles se misturam em relação ao público a que se dirigemŗ (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 368), é
que chegamos à análise pretendida. No romance estudado, o universal e o local se confundem para
formar uma obra repleta de traços da cultura popular nordestina.
A peleja eterna entre o Bem e o Mal, que perpassa todo o romance, é um tema de caráter
universal. Sendo assim, concluímos, a partir da análise do misticismo e da religiosidade popular
nřAs Pelejas de Ojuara, que essa obra apinhada de traços regionais é elevada ao universal pela
temática trabalhada. De acordo com Lígia Chiappini (1995), Ŗé o espaço histñrico-geográfico
entranhado e vivenciado pela consciência das personagens que permite concretizar o universalŗ
(CHIAPPINI, 1995, p. 157), intento brilhantemente realizado no romance de Nei Leandro de
Castro.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro (1857-1945).
Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
BASCHET, Jérôme. Diabo. In.: LE GOFF, J. & SCHIMITT, J. C. Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010
______. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

192
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984.
______. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: Global, 2002.
CASTRO, Nei Leandro de. As Pelejas de Ojuara: o homem que desafiou o diabo. 4ªed. São Paulo:
Arx, 2006.
CHIAPPINI, Lígia M. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo. In.: Estudos Históricos. Rio
de Janeiro, vol. 8, nº 15, 1995, p. 153-159.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Raízes Medievais do Brasil. In.: CHAMBOULEYRON, R. Páginas de
História. vol. II, nº 1. Belém: 1998. pp. 1-23.
FREYRE. Gilberto apud SOUTO MAIOR, Mário. Território da Danação: O Diabo na Cultura
Popular do Nordeste. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1975.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1983.
LINK, Luther. O Diabo: a máscara sem rosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MARTINS, Elizabeth Dias. O caráter afrobrasiluso e residual no Auto da Compadecida. In.: XVII
Jornada de Estudos Lingüísticos. Anais. Volume II. Fortaleza: UFC/GELNE, 2000.
MENEZES, Eduardo Diatahy B. A quotidianidade do Demônio na cultura popular. In: Religião e
Sociedade, 12/2. Rio de Janeiro: Campus, 1985.
MESSADIÉ, Gerald. História Geral do Diabo. Tradução: Alda Sophie Vinga. Portugal: Edições
Europa-América, LDA.,2001.
MUCHEMBLED, Robert. Uma história do Diabo: séculos XII-XX. Rio de Janeiro: Bom Texto,
2001.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, 1986.
OLIVA, Alfredo dos S.. A História do Diabo no Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2007.
PONTES, Mário. Doce como o Diabo: demônio, utopia e liberdade na poesia de cordel nordestina.
Rio de Janeiro: Codecri, 1979.
PONTES, Roberto. Reflexões sobre a Residualidade. Entrevista com Roberto Pontes. Comunicação
apresentada na Jornada Literária ŖA Residualidade ao alcance de todosŗ. Departamento de
Literatura da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, (no prelo) julho de 2006.
______. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro Ŕ Fortaleza. Oficina do Autor- EUFC,
1999.
PRANDI, Reginaldo. Exú, de mensageiro a diabo – sincretismo católico e demonização do orixá
Exú. In: Revista USP. São Paulo, 2001.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
RODRIGUES, Selma Calasans. Nacionalismo, regionalismo e universalismo em Mário de Andrade
e Jorge Luís Borges. In.: CRISTÓVÃO, F. FERRAZ, M. CARVALHO, A. Nacionalismo e
regionalismo nas literaturas lusófonas. Lisboa: Edições Cosmos, 1997.
RUSSEL, Jeffrey Burton. Lúcifer: o Diabo na Idade Média. São Paulo: Madras, 2003.
SANFORD, John A. Mal, o lado sombrio da realidade. São Paulo: Paulus, 1988.
SOUTO MAIOR, Mário. Território da Danação: O Diabo na Cultura Popular do Nordeste. Rio de
Janeiro: Livraria São José, 1975.

193
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. Universalismo na literatura portuguesa. In.: CRISTÓVÃO, F.


FERRAZ, M. CARVALHO, A. Nacionalismo e regionalismo nas literaturas lusófonas. Lisboa:
Edições Cosmos, 1997.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

194
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

POESIA, IDEAL E RAZÃO: UMA LEITURA DE JOÃO DE DEUS E CESÁRIO VERDE

Cátia Monteiro Wankler (UFRR)

Pode, é certo, no século XIII aparecer um poeta cujo talento seja


maior que o de todos os poetas do século XIX. Mas, no entanto, o
nosso século fornece às imaginações assuntos artísticos muitíssimo
superiores aos de qualquer século precedente. Que haja quem os
execute é um ponto secundário. A questão é que eles existam.
Guerra Junqueiro

A produção poética portuguesa das primeiras décadas do século XIX acompanha os modelos
praticados nos demais países da Europa, mas com um pequeno atraso cronológico. Observa-se, nos
primeiros anos da centúria, uma prática árcade esmorecida pela falta de originalidade, apesar de
talentos como Filinto Elísio, cujo brilho, naquele contexto, acabou por originar o Ŗfilintismoŗ , estilo
inspirado na criação do autor, praticado até mesmo pelo romântico Castilho.

É com o Romantismo, no entanto, que a poesia portuguesa inicia uma busca por sua própria
imagem, sua própria voz, enfim, por sua identidade.

Carlos Alberto Vechi (1994) divide o Romantismo português em três momentos. O primeiro
deles seria de consolidação das idéias e da estética nova, marcado, sobretudo, pela experimentação,
mas ainda apegado a modelos estrangeiros, no qual se sobressaíram os nomes de Almeida Garrett,
Alexandre Herculano e António Feliciano de Castilho. O segundo é conhecido como Ultra-
Romantismo, durante o qual se observa que as condições propícias já permitiam que a estética
romântica fosse levada a cabo e, mais do que isto, exacerbada, caindo no vago e no tenebroso. É
este o momento em que a poesia portuguesa do romantismo ganha liberdade e parece se
comprometer mais com a originalidade, tendo como representante Soares de Passos. O terceiro, o
momento de transição, em que o ideário que originou o Realismo já circulava e criava um novo
gosto, cobrava maior proximidade com a realidade material, sendo João de Deus seu representante
no poético.

Na etapa da poesia do Romantismo português de transição para o Realismo, os elementos


temáticos e textuais do estilo apresentaram-se mais amadurecidos. A leitura da poesia de João de
Deus revela textos filiados à estética ultra-romântica que gradativamente vão se imbricando com as
novas tendências da segunda metade do século, com especial sensibilidade e competência.

Já o movimento realista se projetou no cenário literário português a partir das ações da


chamada ŖGeração de 70ŗ , grupo de intelectuais formado, entre outros, por Antero de Quental, Eça
de Queirós e Teófilo Braga, que deixou suas marcas na história dos movimentos culturais
portugueses através de eventos como a Questão Coimbrã e as Conferências do Casino.

195
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A Questão Coimbrã foi um embate, implementado entre Castilho e Quental, bastante


relevante para os estudos da Literatura Portuguesa oitocentista, na medida em que marca a história
de dois movimentos culturais que se criam, por princípio, oponentes, afinados com momentos
distintos do desenvolvimento de ideais de sociedade contraditórios, em que o status quo se
confrontava com o descortinar de uma nova forma de ver o mundo, o homem e, consequentemente,
de fazer literatura.

De um lado da Questão Coimbrã figurava, como uma espécie de padrinho do grupo


conservador, Antônio Feliciano de Castilho; como representante dos defensores da Ŗidéia novaŗ
estava o jovem Antero de Quental.

Também foi Quental quem promoveu as chamadas Conferências Democráticas do Casino


Lisbonense, ou, simplesmente, Conferências do Casino. Após a Questão Coimbrã, o Grupo do
Cenáculo, que veio a ser conhecido pela Histñria da Literatura como ŖGeração de 70ŗ , sentindo-se
fortalecido, decide empreender um ciclo de conferências que trouxessem a público as novas idéias
que circulavam pela Europa. As conferências abordavam temas como as mudanças sociais e
políticas pelas quais o mundo passava, questões educacionais e artísticas, de modo geral, e os novos
rumos da Literatura, em particular.

Entre os conferencistas havia nomes como Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto
Soromenho, Eça de Queirós, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, e
Teófilo Braga. No entanto, a iniciativa foi parcialmente frustrada quando um ato oficial interrompeu
o evento, proibindo sua continuidade sob a alegação de que Ŗas prelecções expõem e procuram
sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições do Estadoŗ . A proibição
gerou inúmeros atos de protesto e não conseguiu calar a combativa Geração de 70, responsável por
algumas das obras mais representativas da Literatura Portuguesa.

Este artigo se propõe a analisar o diálogo travado entre João de Deus e Cesário Verde,
através dos seus respectivos poemas Sonho e Cadências Tristes, em que fazem convergir pontos de
vista divergentes, oriundos dos movimentos romântico e realista. Vale Ressaltar que o primeiro foi
um mestre para a sua geração e a seguinte, enquanto o segundo foi um poeta marginal em relação a
seus coetâneos, o que aproximará este diálogo do Ŗprojeto perfeitoŗ , proposto por Friedrich
Schlegel, em seus Fragmentos críticos, que deve ter um caráter objetivo, unindo Ideal e Real.

João de Deus e Cesário Verde: poesia, ideal e razão

José Régio (1974) aponta a poesia de João de Deus como uma espécie de Ŗdivisor de águasŗ
entre o Ultra-Romantismo e o Realismo. O autor o coloca no grupo dos Ŗdissidentesŗ , do qual
fazem parte também Guerra Junqueiro e Antero de Quental, mas afirma-o original em sua criação: o
real não é a tônica de sua poesia, que também não é mera expressão derramada de sentimentos,
tendo alcançado certo equilíbrio neste sentido.
196
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Régio afirma que a inclusão de João de Deus como Ŗdissidenteŗ deve-se, antes de tudo, a
Ŗquestões de cronologia e camaradagemŗ (1974, p.26). Talvez pelo mesmo motivo Carlos Alberto
Vechi (1994) situe João de Deus em seu Ŗterceiro momento do Romantismoŗ, ao lado de Júlio
Dinis, o que quer dizer que o compreende num estágio intermediário, do mesmo modo que Régio.
O autor de Campo de flores compartilhou das idéias e princípios que orientaram a Geração de 70,
embora comprometido com a estética romântica, inclusive na temática.

Talvez por isso, nem mesmo os rigorosos membros da Geração de 70 tenham sido
indiferentes à força e à intensidade poética de João de Deus: célebres como críticos do Romantismo,
demonstraram admirar e respeitar o trabalho desse autor, como é o caso de Antero de Quental, Eça
de Queirós e Teófilo Braga, que atribuem a ele qualidades raras, como, por exemplo, ser Ŗa alma
poética do povo portuguêsŗ (QUEIRÓS. apud BERARDINELLI, 1967, p.94).

Segundo António José Saraiva e Óscar Lopes, Cesário Verde é um dos nomes que mais
merece destaque Ŗentre os poetas sensíveis à estética realista-parnasianaŗ (1989, p. 989), tendo
dispensado à poesia um tratamento até então inédito, pintando o espaço urbano com as cores da
miséria e da destruição, a partir de seus contrastes. A mulher, bem como a cidade, exerce sobre o eu
de seus poemas um poder de fascinação que ao mesmo tempo o repugna ŕ pelo artificialismo, pela
superficialidade, pela altivez e ostentação ŕ , sentimentos que se manifestam em textos
entremeados por doses de erotismo e agressividade que, de tão próximos, quase se confundem.

A observação da realidade por Cesário está num entrelugar: não é o aristocrata comovido,
não é o operário miserável e explorado. É o homem que trabalha, mas não é pobre nem tem patrão,
e que tem posses, mas não é aristocrata: por vezes desfruta dos privilégios do mundo dos ricos, por
vezes padece as humilhações dos pobres, seja de fato ou por empatia. Foi para o Ŗladoŗ dos pobres
que pendeu, o que demonstrou através de um Ŗradicalismo plebeuŗ impossível, por exemplo, para
um Eça de Queirós. A corrupção que Eça aborda com ironia, desdém, quase sempre em tom de
julgamento, Cesário expressa pela dor, pela angústia, pela revolta e pela compaixão.

A relação de Cesário com a Geração de 70 foi marcada pela falta de diálogo e pela negação
e pela crítica. A falta de diálogo entre Cesário e seus contemporâneos poetas não os define como
retrógrados reacionários, não desmerece suas respectivas poesias. Ela demonstra apenas que ele não
falava das mesmas coisas do mesmo jeito que eles. Cesário é dissonante em relação à literatura de
seu tempo pelo fato de buscar uma via que lhe permitisse transcender os limites do estilo coletivo
da época, para melhor expressar a poesia que compreendia como a sua verdadeira poesia, sem
contudo abrir mão dele, por apreciá-lo e compartilhar da ideologia que lhe servia de base.

Talvez por isto Cesário seja capaz de estabelecer um diálogo tão sutil, simples e direto com
um poeta romântico, como faz com João de Deus através dos poemas Sonho, deste último, com o
seu Cadências tristes. A leitura dos textos não revela nenhum embate ideológico, mas apenas um
sensível compartilhamento de idéias sobre o fazer poético, sobre a essência mesma da poesia.

197
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Cesário Verde demonstrou nutrir imensa admiração por João de Deus, dedicando-lhe o
poema Cadências tristes. Datado de 1874, faz parte das ŖPoesias dispersasŗ (VERDE, 1998), sendo,
portanto, um dos poemas excluídos dřO livro de Cesário Verde. A grande admiração de Cesário
parece ter origem, antes de tudo, na sensibilidade manifesta dos versos do Ŗlírico imortalŗ.

Cadências tristes1
A João de Deus

Ó bom João de Deus, ó lírico imortal,

Eu gosto de te ouvir falar timidamente

Num beijo, num olhar, num palácio ideal;

Eu gosto de te ver contemplativo e crente,

Ó pensador suave, ó lírico imortal!

E fico descansado, à noite, quando cismo

Que tentam proscrever a sensibilidade,

E querem denegrir o cândido lirismo;

Porque o teu rosto exprime uma serenidade,

Que vem tranqüilizar-me, à noite, quando cismo!

O enleio, a simpatia e toda a comoção

Tu mostras no sorriso ascético e perfeito;

E tens o edificante e doce amor cristão,

Num trono de bondade, a iluminar-te o peito,

Que é toda melodia e toda comoção!

Poeta da mulher! Atende, escuta, pensa,

Já que és nosso irmão, já que és o nosso mestre,

Que ela, ou doente sempre ou na convalescença,

É como a flor de estufa em solidão silvestre,

Ao tempo abandonada! Atende, escuta, pensa.

E, ó meigo visionário, ó meu devaneador,

O sentimentalismo há-de mudar de fases;

Mas só quando morrer a derradeira flor

É que não hão-de ler-se os versos que tu fazes,

1
VERDE, Cesário. O livro de Cesário Verde e poesias dispersas. Mem Martins: Europa-América, 1998. (Grandes
Clássicos da poesia)

198
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ó bom João de Deus, ó meu devaneador!

Outubro de 1874.

O poema de Cesário presta uma delicada homenagem ao autor de Campo de Flores. O


título ŕ ŖCadências tristesŗ ŕ denuncia logo a impressão acentuada que lhe causam os versos de
João de Deus. A palavra cadência admite dois caminhos de leitura neste caso: um, ligado à música,
remete ao compasso, à regularidade, à harmonia vocabular e sonora; por outro lado, percebe-se
também em seu emprego a marca da suavidade do estilo do autor. O signo da tristeza, que
acompanha a cadência no título, pode fazer referência tanto à regularidade, cuja unidade sugere
certa monotonia melancólica, quanto pode aludir ao estado de espírito freqüente ŕ embora não
absoluto ŕ dos versos de João de Deus.

Cesário inicia seu poema evocando o mestre, como que numa tentativa de despertar-lhe a
atenção para as palavras. Revela-se logo no segundo verso um Ŗeuŗ que fala do gosto por ouvir o
Ŗlírico imortalŗ Ŗfalar timidamenteŗ em sutilezas ŕ beijos, olhares ŕ típicas de um lirismo
sentimental que desvenda o mundo apreendido a partir da contemplação e da fé, ambas capazes de
transmutá-lo em Ŗpalácio idealŗ. O fato de o Ŗeuŗ apreciar a Ŗfalaŗ do poeta remete ao sentido
primordial da lírica, a poesia cantada, acompanhada pela lira, o que reforça o caráter de
originalidade e maestria de João de Deus perante os olhos daquele que o reverencia e, ao mesmo
tempo, retoma o traço sonoro implícito no título da composição.

A segunda estrofe ressalta o autor de Campo de flores como mantenedor do caráter de


sensibilidade da poesia, creditando à sua figura, cujo rosto Ŗexprime uma serenidadeŗ , a habilidade
de perpetuar o Ŗlirismo cândidoŗ, tranqüilizando o Ŗeuŗ , que o percebe ameaçado, denegrido por
aqueles que Ŗtentam proscrever a sensibilidadeŗ . Trata-se de uma referência às novas tendências,
que se afiguravam nos idos do surgimento da ŘGeração de 70ř, e sua causticidade em relação a
qualquer laivo de sentimentalidade que lhes parecesse excessivo. A produção de João de Deus, no
entanto, manteve-se praticamente imune à crítica direta dos contemporâneos de Cesário, chegando a
receber também por parte deles manifestações de admiração, ou pelo menos de respeito.

A aparência física de Jõao de Deus, já mencionada na segunda estrofe na forma de um rosto


sereno e tranqüilizador, é retomada em seu sorriso, que é Ŗascéticoŗ e Ŗperfeitoŗ e manifesta o
Ŗenleio, a simpatia e toda a comoçãoŗ . Os adjetivos atribuídos ao sorriso são reveladores.
ŖAscetismoŗ remete à Ŗasceseŗ , prática que leva à plena realização da virtude, da moral,
desvalorizando os aspectos corpñreos e a sensibilidade física do homem. ŖAscéticoŗ , portanto, é o
que está voltado para a contemplação ŕ já apontada como característica do poeta ŕ , para a
devoção e o misticismo.

A regular pelos princípios da sensibilidade romântica, o ascetismo seria o Ŗportalŗ ideal de


condução do ser à perfeição. Tais características comovem, emocionam, despertando no outro um

199
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

desejo de identificação de sentimentos, sobretudo por denunciarem Ŗo edificante e doce amor


cristão,/Num trono de bondade, a iluminar-te o peito,/Que é toda melodia e toda comoção!ŗ . A
imagem do Ŗtronoŗ conduz à idéia de nobreza: como o trono é Ŗde bondadeŗ , a nobreza, e, portanto,
a riqueza, é de espírito, revelando a superioridade do coração em relação à razão. Contudo, Ŗtronoŗ
remete também a Ŗtronosŗ , um dos coros na hierarquia dos anjos, caminho de leitura que estabelece
um vínculo coerente com os signos anteriores, acima referidos, bem como com os subseqüentes:
Ŗbondadeŗ , Ŗiluminar-teŗ , a Ŗmelodiaŗ , a Ŗcomoçãoŗ , os quais abrangeriam as qualidades humanas
e poéticas inerentes à obra de João de Deus.

No primeiro verso da segunda estrofe, revela-se, pela primeira e única vez, que o Ŗeuŗ de
ŖCadências tristesŗ é feminino  ŖE fico descansada...ŗ , fato que ganha efetiva relevância na
quarta estrofe. As virtudes do poeta, expressas ao longo do poema, tornam-no Ŗpoeta da mulherŗ ,
pois, na verdade, elas vêm sendo percebidas por um Ŗeuŗ feminino, cuja alma sua sensibilidade
toca. É com a autoridade de quem não apenas compreende, mas vivencia os sentimentos inerentes
aos poemas de João de Deus, que esse Ŗeuŗ feminino chama sua atenção para a necessidade de
cultivo de tais almas  frágeis: Ŗou doente sempre ou na convalescençaŗ , abandonadas, numa
alusão aos rumos que tomava a literatura, em que a razão se sobrepunha à emoção, concebida como
interesse e característica predominantemente femininos. A metáfora Ŗflor de estufa em solidão
silvestreŗ , aproxima a mulher dos vegetais criados em ambiente artificial, em condições ideais,
recebendo adubo e água na medida certa, sem exposição às intempéries, o que os torna tão perfeitos
e sensíveis quanto incapazes de sobreviver sozinhos, ao ar livre. Fica patente a concepção da
mulher como ser doméstico, dependente de uma mão firme que lhe guie os passos e o alimente,
tanto no sentido literal do termo quanto no metafórico, com bons sentimentos, pensamentos e
intenções.

João de Deus, de acordo com os versos de ŖCadências tristesŗ , é um Ŗvisionárioŗ , um


Ŗdevaneadorŗ capaz de nutrir a alma feminina de tudo o que Ŗnecessitaŗ . Isso fica claro na última
estrofe, que faz um elogio ao sentimentalismo, demonstrando uma compreensão bem mais ampla do
termo do que seria possível perceber na maior parte da geração de Cesário: o Ŗeuŗ (feminino)
demonstra que o sentimentalismo até pode mudar, mas a poesia do mestre sobreviverá a ele,
eternizando-o pela leitura, pois Ŗsñ quando morrer a derradeira florŗ os versos de João de Deus
deixariam de ser lidos.

É perceptível no poema de Cesário a tendência a criar estruturas binárias. Ao adjetivar,


utiliza-se com freqüência de dois termos por sujeito: João de Deus é Ŗbomŗ e Ŗimortalŗ ,
Ŗcontemplativoŗ e Ŗcrenteŗ , Ŗirmãoŗ e Ŗmestreŗ , Ŗmeigoŗ e Ŗdevaneadorŗ ; seu sorriso é Ŗascéticoŗ e
Ŗperfeitoŗ ; seus sentimentos são Ŗmelodiaŗ e Ŗcomoçãoŗ . Aparecem também diversas palavras que
no contexto do poema suscitam dois caminhos de leitura, o que, apesar de não ser um recurso
incomum em poesia, torna-se relevante quando combinado com alguma particularidade, como a da
dupla adjetivação.

200
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O duplo é aquele que é ele mesmo e é outro ao mesmo tempo, o que remete ao fato de João
de Deus ser um poeta que transitava, com relativa liberdade, entre as duas gerações conviventes de
escritores, passando ao largo das inflamadas controvérsias, que tão amiúde criavam grandes
rivalidades ou indisposições passageiras, sem, contudo, estar à margem. Assim, poderia ser
atribuído a ele um lugar de transição, uma conexão capaz de por em contato dois diferentes
elementos, revelando-lhes o caráter não excludente, mas divergente. É como se Cesário colocasse
João de Deus acima das querelas de românticos e realistas, vinculando-o ao Ŗessencialŗ da poesia,
no sentido heideggeriano: a relação entre artista e obra, na medida em que a obra se compõe a partir
e por meio da atividade do artista  a composição lírica, a simplicidade, o trabalho métrico e
fônico etc. (HEIDEGGER, 1992).
João de Deus, por seu turno, também dedicou um poema a Cesário Verde.

Sonho1
A Cesário Verde

Há muitos sonhos de imaginação,

De mera fantasia:

Outros que são a voz da profecia,

A voz da intuição,

A voz do coração.

Pões fé em sonhos tais, Maria?... Pões?

E fazes bem, que às vezes

Sonha a gente venturas e reveses

Que se tornam depois

Bem certos! Ouve pois:

Sonhei que era num vale. Anoiteceu:

E então duas estrelas

(Tão lúcidas, tão límpidas, tão belas!)

Vieram lá do céu

Alumiar-se. E eu...

Não sabia, e pergunto: ŕ Que buscais,

Oh lâmpadas celestes!

Vós, cá por este mundo... que perdestes?

Na terra não achais

1
In: DEUS, João de. Campo de flores: poesia lírica completa. Porto: Lello & Irmão, s.d.

201
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Senão prantos e ais!

Respondem-me as estrelas (como a quem

A tivesse cativas,

Tão trêmulas, as belas fugitivas!)

ŖBuscávamos alguém

Que nos quisesse bem:

É sorte nossa, é nossa condição

Dar luz, ser norte e guia;

Mas de mais boamente se alumia

Na terra um coração

Que nos tenha afeição.ŗ

ŕ Pois se vós do céu, lá onde até

Se ignora o que são dores,

Vindes à terra procurar amores...

Estrelas! Se assim é,

Tendes aqui ao pé:

Que em suma, a noite da minha alma é tal

Que eu pobre viajante

Ando... se para trás, se para diante,

Neste profundo vale,

Não sei nem bem, nem mal!

Guiai-me pois, estrelas do Senhor!

E a jura que vos faço

É que na terra não darei um passo,

Senão só por amor

Do vosso resplendor! ŕ

Elas então sorrindo-se, que eu vi,

Tão meigas e suaves!

Voaram como duas lindas aves,

Indo poisar aí...

Nesse teu rosto... em ti!

202
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O poema de João de Deus lida também com uma compreensão da poesia a partir de seu
caráter visionário. O título já dá conta de tal fato, na medida em que se compõe de uma única
palavra que carrega praticamente toda a carga semântica convencionalmente ligada à poesia,
sobretudo a romântica, Sonho: o devaneio, as idéias vagas, desvinculação da realidade, abstração,
desejo imaterial, enlevo, meditação, transcendência dos limites físicos. Além do mais, neste
contexto, sonho se refere à apreensão do espírito, esfera da realização dos desejos que a Ŗprisãoŗ da
matéria impossibilita.

Tal concepção torna-se mais evidente quando, logo no primeiro verso, a palavra
Ŗimaginaçãoŗ vem designando os Ŗsonhosŗ. O que pode, a princípio, soar como redundância, na
verdade define a faculdade daquele fenômeno de formar imagens. Então, os sonhos, e
consequentemente as imagens por eles evocadas, são distintos em dois grupos, os Ŗde mera
fantasiaŗ e os que são Ŗa voz da profeciaŗ : os primeiros seriam fruto da pura abstração intelectual,
da combinação de idéias, produto da imaginação criadora; os segundos adviriam da percepção, do
discernimento, da apreensão de objetos pelo sujeito. Em resumo, existiriam as imagens
provenientes dos sentimentos, dos desejos, do ponto mais profundo do ser, e as geradas pela mente,
pela razão, motivadas pela experiência palpável refletida pelo inconsciente, o que garantiria à
poesia certo caráter de verdade, o que fica claro na segunda estrofe.
A partir de então, o eu-poético começa a contar a uma interlocutora um sonho seu em que
duas estrelas descem do céu em busca de amor. Diante do inusitado de duas criaturas celestes
rogarem por um sentimento terreno, enquanto ele, tão próximo do que elas almejavam, sentia-se em
trevas, jura passar a viver em função do amor e da glória das estrelas, as quais, ao fim do sonho, vão
pousar no rosto de Maria, a interlocutora.

A concepção apresentada por João de Deus poderia achar suporte nos Fragmentos críticos,
de Friedrich Schlegel (In: CHIAMPI, 1991). O poeta alemão concebe a poesia como a mais elevada
das formas artísticas, na medida em que tem a capacidade captar o universal utilizando-se apenas do
discurso, essencialmente fragmentado, do qual seleciona elementos e os utiliza de acordo com a
Ŗgenialidadeŗ de um sujeito. Todo gênero seria, então, fragmentário, não havendo um totalmente
subjetivo ou totalmente objetivo.

Schlegel ridiculariza o purismo rigoroso dos gêneros clássicos, que construíam suas bases
numa separação definida entre espiritual e racional. Ele rompe, assim, com a visão do romantismo
como um estilo puramente subjetivo e dissociado da realidade. Para ele, um Ŗprojeto perfeitoŗ deve
ter um caráter objetivo e comportar o elemento real, o qual, porém, deve ser concebido pelo
espírito, o que o torna subjetivo, e, por extensão, produto da união de ideal e real. O autor parece
encarar a poesia como um universo autônomo, que Ŗpairaŗ entre os mundos subjetivo e objetivo, e
que se compõe de elementos diversos e até antagônicos.

203
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A vinculação dos princípios schlegerianos ao poema de João de Deus se daria a partir do


ponto de vista de que a poesia não apenas teria o sonho como objeto, mas sim que o sonho a que o
poema alude seria uma metáfora da própria poesia. O sonho, como a poesia, constrói imagens
abstraídas do real sensível, sem com isso Ŗimitá-loŗ . Ao dividir os sonhos em duas categorias, uma
puramente imaginativa e outra baseada na percepção objetiva, João de Deus estaria colocando a
poesia acima de qualquer discussão, como Schlegel, pois o que afirma, de fato, é que seja ela
sentimental, derramada, fruto de pura fantasia, seja ela combativa, engajada, baseada na apreensão
da realidade, é sempre poesia.

ŖSonhosŗ acaba por reafirmar o postulado schlegeriano de que a coexistência, e até certo
grau de dependência, entre o racional e o emocional são aspectos inerentes à própria natureza da
poesia. As estrelas ŕ Ŗdo Senhorŗ , primeiro verso da penúltima estrofe ŕ são Ŗlúcidasŗ , vocábulo
que remete tanto à emissão de luz quanto à lucidez, clareza, racionalidade; elas abandonam o céu,
lugar da justiça e da perfeição, para Ŗalumiar-seŗ na terra, lugar da imperfeição e da dor. O verbo
Ŗalumiarŗ significa Ŗdar luzŗ , no sentido literal, e ilustrar, ensinar, no figurado. Ao aparecer
acompanhado pelo reflexivo Ŗseŗ , fica manifesto o desejo e/ou necessidade de troca, de elas, que
sempre Ŗalumiamŗ , serem desta vez alumiadas, o que se revela, na seqüência do poema, como o
aprendizado do amor terreno, ou, pelo menos, a possibilidade de conhecê-lo.

O anseio das estrelas, elementos divinos, pelas coisas físicas é então contraposto à decisão
do eu, do homem, de se elevar através da dedicação ao cumprimento de tais desejos. Este
contraponto, longe de criar antagonismo, gera o equilíbrio, na medida em que a razão ŕ
representada pelo homem ŕ abranda seu desconhecimento e suas dores terrenas, enquanto que o
espírito ŕ representado pelas estrelas ŕ se humaniza um pouco ao conhecer o amor na sua forma
terrena. A fusão dos dois elementos se dá, efetivamente, ao pousarem as estrelas no rosto de Maria,
a mulher, que se torna a síntese de dois extremos.

Em ŖSonhosŗ , prevalece a concepção de que a poesia existe por si só, independente de como
é concebida, do tratamento que recebe da forma final que toma. O homem, que dá vida à poesia, de
certo modo alimenta-se dela. João de Deus como que tenta dizer a Cesário que o que está acima das
divergências e dos debates entre românticos e realistas não é ele, simples poeta, mas sim a poesia.
Ela sim está pronta para sobreviver às mudanças e continuar tendo voz.

Assim, os dois poetas acabam por apontar que a matéria primordial da poesia é, de certa
forma, o sonho, o devaneio, permeados pela razão, pela objetividade. É um diálogo que aponta para
o equilíbrio, sobrepujando os grandes conflitos e embates ideológicos, fazendo com que a voz mais
pronunciada seja mesmo a da poesia.

Referências bibliográficas

BERARDINELLI, Cleonice. João de Deus: poesia. Rio de Janeiro: Agir, 1967. (Nossos Clássicos;
90)

204
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

DEUS, João de. Campo de flores: poesia lírica completa. Porto: Lello & Irmão, s.d.

HEIDEGGER, Martin. Arte e poesia. Traducción y prólogo de Samuel Ramos. México: Fondo de
Cultura Económica, 1992. (Breviarios; 229)

RÉGIO, José. Pequena História da moderna poesia portuguesa. 3. ed. Porto:Brasília, 1974.

SARAIVA, António José e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 15. ed. corrigida e
ampliada. Porto: Porto, 1989.

SCHLEGEL, Friedrich. Fragmentos críticos. In: CHIAMPI, Irlemar (org). Fundadores da


modernidade. Tradução e notas de Willi Bolle. São Paulo: Ática, 1991.

VECHI, Carlos Alberto et al. A Literatura Portuguesa em perspectiva. Dir. Massaud Moisés. São
Paulo: Atlas, 1994. v. 3.

VERDE, Cesário. O livro de Cesário Verde e poesias dispersas. Mem Martins: Europa-América,
1998. (Grandes Clássicos da poesia)

205
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A AMAZÔNIA MULTIFACETADA DE MILTON HATOUM: O TRABALHO DE UM


INTELECTUAL EXILADO
Cristiana Mota (UEA)

O “Velho Mundo” e o Outro: América Latina revisitada

O processo de expansão marítimo-comercial europeu nos séculos XV e XVI levou à


descoberta de um vasto territñrio alcunhado de ŖNovo Mundoŗ. Além da necessidade de outros
mercados consumidores para os bens produzidos na Europa, havia a demanda por especiarias,
artigos de luxo e jazidas para suprir a escassez de metais preciosos. A procura descomedida por
recursos matérias promoveu um verdadeiro extermínio de muitas sociedades indígenas habitantes
da região. O europeu não se dispôs, de maneira alguma, a assimilar a alteridade e impôs de forma
violenta a sua cultura, divulgando um modelo único de costumes e tradições aos diversos povos,
cujas práticas socioeconômicas e valores eram marcados pela singularidade. Concorrendo, desse
modo, para a reconfiguração do ŖNovo Mundoŗ ŕ a América.
Nessa operação, surgiu, conforme explica Ana Cecília Olmos, em seu artigo A invenção de
uma literatura, Ŗo processo de invenção da ŘAmérica Latinař ŕ para usar a expressão de
OřGorman, [...] no século XIX [...] os processos de independência política dos países deram lugar a
ideia de uma ŘAmérica Latinař e forjaram essa denominaçãoŗ (2008, p. 10). Ainda, segundo Olmos
(2008, p. 10), embora a expressão ŘAmérica Latinař tenha começado a ganhar espaço por meio do
trabalho publicado pelo francês Michel Chevalier, foram os intelectuais latino-americanos que
firmaram a expressão por meio de seus discursos. Porém, uma região tão heterogênea, na qual
diversas vozes, manifestando exatamente essa polifonia multiétnica, solicitam a palavra, um único
termo para defini-la não consegue abarcar por completo os povos que a compõem em suas mais
complexas e múltiplas formas de expressão. A despeito, insuficiente ou não, a denominação
ŖAmérica Latinaŗ fixou-se concretamente no vocabulário mundial.
Adotaremos, para efeito de análise, o termo difundido para referir-nos a povos que vivem na
América do Sul, América Central e México. Como antes elencado, a ocupação europeia no espaço
latino-americano teve contornos impetuosos, marcada pelas conflituosas relações entre colonizador
x colonizado e metrópole x colônia:

[...] a experiência da colonização é basicamente uma operação narcísica, em que o outro é


assimilado à imagem refletidma do conquistador, confundido com ela, perdendo, portanto,
a condição única de alteridade. Ou melhor: perde a sua verdadeira alteridade (a de ser outro,
diferente) e ganha uma alteridade fictícia (a de ser imagem refletida europeu) (SANTIAGO,
1982, p 15)

A anulação da figura do Ŗoutroŗ na América Latina foi feita pela implementação de um


projeto cuja base visava à criação de uma unidade religiosa e linguistica, tornando o Ŗconhecidoŗ o
Ŗdesconhecidoŗ (SANTIAGO, 1982, p.14 ). Ao incutir seu cñdigo intelectual e moral, o europeu

206
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

projeta a América Latina no contexto da civilização ocidental. Efetivou-se uma transformação da


América em

cópia, simulacro que se quer[ia] mais e mais semelhante ao original, quando sua
originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas na sua origem, apagada
completamente pelos conquistadores. Pelo fenômeno da duplicação se estabelece[u] como a
única regra válida de civilização (SANTIAGO, 1982, p. 20 ).

A busca pela originalidade recalcada permeou a literatura latino-americana, resultando numa


série de obras que traduziram a impossibilidade de se ter uma igualdade regional. Nas palavras de
Ana Cecília Olmos, Ŗa especificidade literária latino-americana configura-se através de uma
multiplicidade de práticas e discursos sociais que, no seu pluralismo abrem espaço para a diferençaŗ
(2008, p. 18). Diferença que, embora o europeu tenha tentado calar, ressoa por meio das vozes dos
vencidos, mas vivos.

Amazônia ou a invenção de um conceito

Em meio ao mosaico latino-americano de tradições, costumes e valores diversos, uma região


chama a atenção pelo seu misticismo e hibridismo: a Amazônia. Geograficamente, o território
amazônico compreende a área coberta pela Floresta Amazônica e a bacia do rio Amazonas que
passa por nove países sul-americanos, dentre eles Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana Francesa,
Peru, Suriname e Venezuela. Contudo, em conformidade à proposta aqui explicitada, estabelece-se
como cerne a Amazônia brasileira, mais especificamente o maior estado de toda a Amazônia, o
Amazonas, e sua capital, Manaus.
Para tanto, tomemos como base o estudo do escritor e sociólogo amazonense Márcio Souza,
condensado na obra A expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. Consoante as
asserções do autor, Ŗ[...] na origem, a Amazônia não pertencia ao Brasil. [...] A Amazônia era um
conceito que fora inventado pelo Império e retomado pela Repúblicaŗ (2003, p. 10). Havia duas
extensões de terra na América do Sul que pertenciam aos portugueses: Ŗuma descoberta por Cabral
[...] [e] Grão-Pará e Rio Negro, descoberta por Vicente Yaðez, em 1498ŗ . (SOUSA, 2003, p. 10).
Ambas as regiões tinham economias díspares, o que marcou a dicotomia persistente até hoje. É o
que concluí Márcio Sousa: ŖO problema é que o Brasil é fruto de um conjunto de paradoxos entre
pobreza e riqueza, modernidade e arcaísmo, norte e sulŗ (2003, p. 10). Oposição essa que coloca à
margem a região amazônica; movimento reforçado pelas diferentes ideias e valores defendidos pelo
conservadorismo sulista, à época, contrários aos ideais liberais do Grão-Pará. ŖA anexação da
Amazônia marcou o começo de um novo processo e, provavelmente, aos olhos das elites do Rio de
Janeiro, sñ poderia ser à forçaŗ (SOUZA, 2003, p. 11). A imposição do colonizador aos povos da
América Latina procedida arbitrariamente foi reproduzida pelos grupos dominantes brasileiros
sobre uma parcela recém-incorporada ao país: Ŗcom a repressão, a Amazônia perdeu 40% de seus
207
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

habitantes. A anexação destruiu todos os focos de modernidade. Entre o Império e as oligarquias


locais, nenhum diálogo era então possívelŗ (SOUZA, 2003, p. 11). À Amazônia restou o ato de ser
relegada e sofrer, por muito tempo em sua história, um atraso em vários segmentos da vida
sociocultural e política.

A “Belle Èpoque”: o Eldorado é aqui?

Durante a colonização europeia na América Latina, propagou-se a lenda do Eldorado que


seria um lugar na América onde era possível encontrar ouro e riqueza em abundância. As últimas
décadas do século XIX criaram a falsa ilusão de que tal local poderia ser na Amazônia. Deve-se isso
ao fato da exploração econômica da borracha ter oferecido um avanço na vida cultural e urbana da
região. O deslumbramento com o progresso regional foi tão grande que a época do fausto foi
chamada de ŖBelle Èpoqueŗ , bela época em francês, uma clara referência às marcas estrangeiras
deixadas no território amazônico. De certa forma, o povo brasileiro, como um todo, arraigou em
seus valores a ideia errônea de que o conjunto de tradições, costumes e princípios do europeu/
estrangeiro sempre seria um ideal de cultura a ser alcançado. O estado do Amazonas, o qual
despontou como o maior representante dessa prosperidade, viveu por algum tempo suspenso da
realidade nacional mergulhado nessa utopia, tendo sua capital, Manaus, conhecida como ―Paris dos
trópicos‖:

o Amazonas nunca foi tão alienado quanto durante o Ŗciclo da borrachaŗ . Se ainda era
possível reconhecer uma identidade na velha ordem mercantilista, o chamado boom da
borracha jogou-a por terra. Frente ao enriquecimento rápido e às facilidades orçamentárias,
as lideranças amazonenses perderam todas as perspectivas, sobretudo as da própria região
(SOUSA, 2003, p. 97)

O Amazonas pagou sua alienação com o afastamento de sua própria identidade (SOUZA,
2003, p. 115). Isso porque ser cosmopolita significou ao estado nortista uma hibridização de vários
povos vindos das mais diversas partes em busca do capital financeiro que circulava na região;
congregar e segregar: esse foi o paradoxo estabelecido. Enquanto os ribeirinhos, caboclos e índios
eram marginalizados e os nordestinos escalados para servir de mão de obra barata nos seringais, os
coroneis da borracha, uma pequena elite dominante, via dos seus palacetes Manaus e Belém
reproduzirem o estilo de vida europeu. Os estrangeiros que a essas cidades chegavam, trabalhavam
na direção das atividades de produção de borracha, como era o caso de ingleses, franceses, alemães;
espanhóis, italianos, sírios e libaneses, que se envolviam com outras relações comerciais nessas
cidades amazônicas, engendrando assim, verdadeiros mosaicos étnicos.
Quando o declínio da borracha atingiu seu auge, a Amazônia se perdeu em si mesma,
transformando-se em Ŗum purgatñrio onde culturas inteiras se esfacela[vam] no silêncio e no
esquecimentoŗ (SOUZA, 2003, p. 31-2); nordestinos e indígenas tiveram suas vozes abafadas se

208
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

não, muitas vezes apagadas. A diversidade cultural latino-americana remanescente rendeu ao


Amazonas um dos maiores escritores da literatura brasileira, Milton Hatoum, em cujos romances
essas vozes silenciadas são enunciadas.

Intelectual e exílio: duas faces da mesma moeda

Milton Hatoum, cujos pais são de origem libanesa, nasceu em Manaus na década de 1950 em
meio à profunda crise econômica ocasionada pelo fim do ciclo da borracha. Conviveu com as mais
diversas culturas como a árabe, judaica e africana, além da cabocla amazonense. Ao analisarmos
suas narrativas, podemos observar a cidade de Manaus com um panorama configurado pela profícua
mistura étnica, intercâmbio linguístico e discursos históricos, formando uma hibridização e uma
transculturação singular. Em seus romances, Hatoum dá voz às minorias marginalizadas, Ŗaos
esquecidos do passadoŗ , citando Raymond Williams (2007, p. 164), e opera uma construção e
reconstrução de identidades fragmentadas. Nessa trajetória, o escritor amazonense assume uma das
funções do intelectual: problematizar a verdade sobre o estado dos seres e sua posição ante um meio
repressor que pretende invalidá-lo enquanto Ŗo outroŗ , inscrevendo seu nome no cenário da
literatura mundial.
Em se tratando das funções de um intelectual, não há como desvincular-nos das concepções
propostas por Edward Said em Representações do intelectual ŕ série de conferências traduzidas
por Milton Hatoum ŕ , nas quais o crítico palestino-americano analisa a carga significativa que um
intelectual exerce. Conforme Said, o intelectual é Ŗum indivíduo dotado de vocação para
representar, dar corpo e articular uma mensagem [...] para (e também por) um públicoŗ (2005, p.
26), além de evocar para si a representação de Ŗtodas as pessoas e todos os problemas que são
sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapeteŗ (2005, p. 26). Tapete que
podemos dizer ser a História Universal, na qual, muitas vezes, as classes dominantes consideram
culturas inteiras afásicas, portanto, sem matéria para exposição.
Este contexto manifesto historicamente explica o fato de Hatoum compor em suas narrativas
uma Manaus multifacetada, articulando, nesse processo, diversas vozes como a dos imigrantes,
transeuntes e nativos, cada um com suas histórias peculiares, lendas e costumes. Por conseguinte,
toma para si mais uma das funções do intelectual, segundo Said, e procura eliminar Ŗ[...] as
categorias redutoras que tanto limitam o pensamento humano e a comunicaçãoŗ (2005, p. 10), ao
criarem estereótipos, como, no caso, a falsa imagem de que a Região Norte é um lugar remoto,
absorto num tempo perdido, que, irrefutavelmente, tem moradores espantados Ŗao ver[em] que,
talvez para melhor vendê-la e explorá-la, ainda [certas classes dirigente do país] apresentam a
região como habitada essencialmente por tribos indígenas, enquanto existem há muito tempo
cidades, uma verdadeira vida urbana, e uma população [exportadora de conhecimento] [...]ŗ
(SOUZA, 2003, p. 13). Sabedoria que Hatoum expõe em seus romances ao mostrar a capital
amazonense como Ŗ[...] um espaço sociocultural e histñrico, formado por estratos humanos que se

209
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

cruzam e misturam, quase desaparecendo e deixando poucos vestígios: o estrato indígena, o do


imigrante estrangeiro, o do migrante de outras regiões do país [...]ŗ (PELLEGRINI apud CRISTO,
2007, p. 101). Não que seja excluividade de Manaus o agrupamento heterogêneo de indivíduos, mas
nos romances de Hatoum essas Ŗmúltiplas vozes são seus recursos para recuperar vozes do passadoŗ
(WILLIAMS apud CRISTO, 2007, p. 170) e reconstruir a história da cidade, divulgando-a por meio
de sua literatura, oferecendo-nos uma visão diferente da veiculada pela classes autorizadas a fazê-
lo.
Para tanto, deve o intelectual posicionar-se no que Edward Said chama de exílio intelectual,
que consiste no sentimento de desassossego e eterna falta de quietude pelo qual passa a figura do
intelectual, sendo essa condição fundamental para que ele abra discussão sobre as inquietações
sociais. ŖO exílio é um modelo para o intelectual que sente tentado, ou mesmo assediado ou
esmagado, pelas recompensas da acomodação, do conformismo, da adaptaçãoŗ (SAID, 2005, p. 70).
Um escritor que assume a representação de um intelectual, pretende fazer de sua literatura um meio
de quebrar as convenções, ou, no caso de muitos escritores latino-americanos, como Milton
Hatoum, propagar o Ŗdiscurso das minoriasŗ , como nos fala Raymond Williams (apud CRISTO,
2007, p. 162).
Tal exílio é transpassado para os narradores dos romances de Hatoum, Ŗnarradores Řdoforař,
[da] margem incontornável, [do] intervalo que é o da dupla ruptura com o tempo linear cronológico
e com o espaço social homogêneo [...], ordem que só é marco fronteiriço, na maioria das vezes
arruinado [...]ŗ (HARDMAN apud CRISTO, 2007, p. 245). Os narradores de Hatoum tentam
resgatar fragmentos de várias histórias em busca da sua própria identidade. Desses fragmentos
surgem os discursos das minorias, os marginalizados e esquecidos, discursos que Ŗtem seu prñprio
poder e autoridadeŗ (WILLIAMS apud CRISTO, 2007, p. 164), dentro do espaço social que
ocupam.
Não há fronteiras definidas para os narradores da ficção de Hatoum; há sim, um vasto
território em que lendas, mitos e costumes se abrem aos olhos de quem as quer ouvir e absorver. Os
narradores podem estar à margem, serem exilados, solitários ou expatriados, todavia, a situação em
que se encontram são condições necessárias para que tais figuras possam vislumbrar todas as
posições e conflitos sociais, uma vez que com sua visão periférica vêem o centro e ao redor dele e
problematizá-los.

Entre-lugar e exílio

Em artigo intitulado O entre-lugar do intelectual latino-americano, Silviano Santiago


defende a ideia de que a um escritor de periferia é mais oportuno fazer sua escrita ser universal,
devido ao alcance amplo que sua visão tem, ao contrário da visão limitada de um escritor do centro.
Declara-nos ainda, que Ŗa maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da
destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza [...]ŗ (SANTIAGO, 2000, p. 16). Não há
210
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

unidade, há heterogeneidade na América Latina. A pureza que propuseram os europeus foi


destituída pelos latino-americanos. Isso por que a América Latina encontra-se em uma zona de
deslocamentos culturais traduzidos nas obras dos escritores latino-americanos como um entre-lugar,
uma ação de resistência à propagação dos discursos hegemônicos. Estar no entre-lugar significa a
um intelectual latino-americano estar Ŗentre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão,
entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a
expressão, [num] lugar aparentemente vazio [...]ŗ (SANTIAGO, 2000, p. 26), onde ele possa
efetivar seu movimento antropofágico de devoração da cultura da metrópole e redesenhar a sua
própria.
O entre-lugar seria o exílio intelectual uma vez que é preciso estar numa posição irrequieta
para se querer questionar o estado das coisas e expor a verdade a um poder controlador e repressor,
Ŗ[...], sobretudo numa sociedade massificada e tão burocratizada como a nossa [...]ŗ (SAID, 2005,
p. 102). Podemos dizer que o escritor Milton Hatoum está nesse entre-lugar e a partir dele dá vida a
sua ficção, buscando compreender e analisar profundamente o processo histórico-social o qual gera
o multiculturalismo da região amazônica. Ficção, história e memória entrelaçam-se, convertendo-se
em narrativas nas quais a fragmentação, marca da pós-modernidade, é um meio que justifica a
busca dos narradores por reunião dos pedaços os quais darão a eles a sua verdadeira unidade,
quando isso for possível. Nas palavras de Stefania Chiarelli (2007, p. 47), Hatoum trabalha com a
fragmentação como Ŗpossibilidade discursivaŗ , sendo uma delas exploradas pelo mesmo ao usar a
figura do imigrante árabe em sua ficção:

as formas narrativas fragmentadas funcionam como estratégias [das quais Hatoum lança
mão] no sentido de dar conta [das] vivências, [...] no intuito de que a linguagem venha a
expressar a desagregação do imigrante, de uma história que já não é mais grandiosa, de
quem já não tem ilusão de fazer a América (CHIARELLI, 2007, p. 49)

O imigrante encontra-se numa terceira margem, desterritorizado em outra terra, procura um


novo modelo de referência o qual possa tomar para si, no meio do trânsito incessante entre língua,
culturas e tradições. A coexistência de diversos modelos levá-los-á em direção a uma nova
consciência. Não há América para se construir, e sim um novo espaço no qual ele irá ter de
encontrar lugar. Interessantemente, o emigrante árabe guarda a peculiaridade que lhe será
fundamental no seu estabelecimento no país: sempre fora ligado às relações comerciais e, diante
disso, teve de absorver rapidamente a língua portuguesa. Sendo o comércio um dos setores que mais
propicia integração das camadas sociais brasileiras, o imigrante árabe fixar-se-á em vários pontos
do Brasil e terá contato com as mais diversas redes de tradição.

Os narradores de Hatoum, não só o imigrante, como o nativo, vão estar sempre sendo
transpassados pelas influências do trânsito de múltiplos costumes, em busca de conhecer a si
próprio. A literatura de Hatoum, desse modo, se universaliza pelos sentimentos inerentes a todos os
seres humanos, o desejo de conhecermo-nos enquanto o outro e enquanto seres que temos alteridade

211
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

e o direito de defendê-la. A Manaus multifacetada do escritor amazonense pode ser qualquer cidade,
em qualquer parte do mundo seja na América, na Europa ou outro continente porque os anseios e
inquietações dos que vivem na cidade amazônica são universais.

Referências bibliográficas

CHIARELLI, Stefania. Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum. São
Paulo: Annablume, 2007.

HARDMAN, Francisco Foot. Morrer em Manaus: os avatares da memória em Milton Hatoum. In.:
CRISTO, Maria da Luz Pinheiro (Org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois
Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Manaus: Editora da
Universidade Federal do Amazonas/ UNINORTE, 2007. p. 238-247.

OLMOS, Ana Cecília. A invenção de uma literatura. Revista Cadernos Entre Livros- Literatura
latino- americana. São Paulo, n. 7, p. 6- 19, 16 de maio de 2008.

PELLEGRINI, Tânia. Milton Hatoum e o regionalismo revisitado. In.: CRISTO, Maria da Luz
Pinheiro (Org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um
Certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Manaus: Editora da Universidade Federal do
Amazonas/ UNINORTE, 2007. p. 98-118.

SAID, Edward. Representações do intelectual: as Conferências Reith de 1993. Tradução de Milton


Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In.: SANTIAGO, Silviano. Vale quanto
pesa. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1982. p. 13-24.

__________________. O entre-lugar do discurso latino-americano. In.: Uma literatura nos


trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 09-26.

SOUZA, Márcio. A expressão amazonense Ŕ do colonialismo ao neocolonialismo. 2. ed. Manaus:


Editora Valer, 2003.

WILLIAMS, Raymond L. A ficção de Milton Hatoum e a nova narrativa das minorias na América Latina.
In.: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro (Org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois
Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Manaus: Editora da Universidade
Federal do Amazonas/ UNINORTE, 2007. p. 162-170.

212
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A FARSA E EL-REI JUNOT, SUBVERSÃO E DECADÊNCIA


Débora Renata de Freitas Braga1 (UEA/FAPEAM)
Otávio Rios2 (UEA/FAPEAM)

RESUMO: Ao analisar epístolas trocadas entre Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, organizadas por Maria Emília
Marques Mano e António Mateus Vilhena, propomo-nos a mapear o percurso genético das obras A Farsa e El-Rei Junot
e, assim, explorar o teor de subversão da escrita brandoniana. Podemos pensar neste caráter de subversão, em princípio,
na concepção de romance que o escritor do Douro desfaz, e também, assumir que este tenha rompido com a própria
noção de Ŗtextoŗ como algo acabado. O texto não seria mais produto de um processo individual de criação, ao contrário:
converter-se-ia em um fio de sociabilidade tecido entre os amigos escritores, o que pode ser observado no estudo das
correspondências em questão, mesmo porque a obra acabada deixou de ser o único instrumento de investigação
literária, cedendo espaço para um processo em círculos: da criação à obra e, desta, de volta ao processo de criação.
Contudo, a narrativa de Raul Brandão ultrapassou suas próprias linhas para colocar-se como uma escrita na decadência,
tendo seu lugar garantido tanto na esfera intelectual e literária de Portugal, quanto na esfera social.

O interesse pela obra de Raul Brandão, segundo Otávio Rios (2008a), dava-se Ŗapenas por
alguns poucos nomes das letras portuguesas que se interessava por um modelo de subversão do
romance canônicoŗ (p. 48). A subversão, ou o pecado da escritura sempre foi um afrodisíaco para (o
intelecto dos) os homens. Com a literatura não seria diferente, visto que ela transgride as normas da
língua, desconstrói e faz girar os saberes, como nos ensina Barthes (2007). A obra brandoniana,
portanto, possui caráter de subversão, porque ao mesmo tempo em que desconstrói a linguagem,
edifica; sinaliza para o início do romance moderno em Portugal.
Por meio da investigação das correspondências trocadas entre Raul Brandão e o poeta
Teixeira de Pascoaes, podemos verificar que a semi-obscuridade em que reside sua produção
contrasta fortemente com a influência que o escritor possuía: são 238 epístolas, organizadas por
Maria Emília Marques Mano e António Mateus Vilhena (1994), estudadas para este projeto, entre
as quais procedemos à seleção de peças que julgamos pertinentes no intuito de mapear o percurso
genético de duas obras capitais da produção brandoniana: A Farsa e El-Rei Junot, explorando os
temas da subversão da escrita e das figurações da decadência quando ambas assomam no romance
do final do século XIX e início do XX em Portugal.
Pode-se pensar o caráter de subversão na concepção de romance que o escritor do Douro
desfaz, mas podemos ir além, assumindo que este tenha rompido com a própria noção de Řtextoř
como algo acabado. O texto, por ser tecido, passa a ser visto não mais como fruto de um processo
individual de criação; ao contrário, converter-se-ia num fio de sociabilidade construído entre os
amigos escritores, o que pode ser observado no estudo das correspondências. Desta forma, a obra
acabada deixou de ser o único instrumento de investigação literária, cedendo espaço para um
processo em círculos Ŕ da criação à obra e, desta, de volta ao processo de criação.

1. Escrita, sociabilidade, subversão

1
Graduanda do 6º período de Letras da UEA, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa no Amazonas (FAPEAM).
2
Orientador. Professor de Literatura Portuguesa da UEA.

213
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Segundo Percy Lubbock (1985), todo ato subversivo pretende desconstruir o que está
estabelecido. Entretanto, não temos a pretensão de julgar a escrita de Raul Brandão como
subversiva, mesmo porque não se pode admitir o fato apenas por base na leitura de sua
correspondência, ou tão somente nas páginas de sua literatura. Por outro lado, o caráter de
subversão é verificado de forma evidente em Húmus, e de forma latente em A Farsa, El-Rei Junot e
Os Pobres.
Se as cartas são arquivos da criação literária, a discussão epistolar entre Brandão e Teixeira
de Pascoaes permite entrever que o Ŗarquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e
de resistênciaŗ (Artières, 1998, p. 10-11 apud Vasconcellos) quando verificamos que não é apenas o
texto que possui um sentido passível de ser analisado. A noção de obra como algo acabado,
fechado, foi ultrapassada para dar lugar à investigação dos arquivos literários como fonte de
informações acerca desta obra, processo que evita o que Marília Rothier Cardoso (2003, p. 47)
denomina como esquecimento ou amnésia literária e estética. Queremos pensar A Farsa e El-Rei
Junot construindo investigação em que textos literários são inscritos no percurso inverso: em vez de
partirmos das obras, optamos pela análise de seus procedimentos de criação e do modo como se faz
a escritura num processo de sociabilidade entre os dois expoentes da virada do século.
Brandão chega a afirmar na carta 77, de 18 de abril de 1923, que o ato de escrever é Ŗlevar
uma cruz ao calvárioŗ (p. 112). Certamente, a tarefa se torna mais fácil quando realizada por duas
cabeças, sobretudo se as tais figurarem como peças influentes no cenário intelectual da época. A
escrita de um texto literário não precisa ser, necessariamente, um ato individual. Quando o discurso
do outro e o discurso próprio se entrelaçam, grandes obras podem surgir. A sociabilidade está
presente em várias obras brandonianas, seja em forma de parceria, seja em forma de difusão e
propaganda de personagens; por exemplo, destacamos a carta de 27 de abril de 1926, sobre as
protagonistas dřA Farsa (1994):

A Joana e a Candidinha são duas criações sublimes. Duas almas saídas das mãos dum Deus
diabólico, dum Deus autor do Céu e do Inferno. A Joana é de origem divina. A Candidinha
é de origem demoníaca. A Farsa é uma Divina Comédia. Toda a sua obra é a Divina
Comédia do nosso tempo (p. 141).

A sociabilidade também pode ser a parceria direta ou indireta na elaboração de textos literários. A
parceria direta entre Brandão e Pascoaes resultou na peça teatral Jesus Cristo em Lisboa; mas é a
parceria indireta que nos importa verificar, com auxílio das cartas, o processo de criação dřA Farsa
e de El-Rei Junot.
A longa amizade de Brandão e Pascoaes rendeu bons frutos. Por conseguinte, não se
abstinham em oferecer sugestões, que eram sempre solicitadas e bem-vindas. Ilustramos com a
carta 109, de 12 de outubro de 1925, em que Brandão opina sobre o título de um livro de Pascoaes,
Memórias dum pobre tolo: ŖEstou com grande curiosidade nas suas Memórias. Sobre o título
falaremos Ŕ mas parece o título duma coisa romantizadaŗ (1994, p. 136). O interessante é notar que,
de fato, a obra passou a chamar-se Livro de memórias e que os dois escritores, às vezes, até eram
criticados juntos, como na epístola de novembro de 1927: ŖViu uma descompostura que nos pregou

214
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

o nosso amigo João de Ameal? Mandaram-ma por o correio. Diz o visconde que o meu amigo não é
poeta e que eu não sei gramática. Sinto-me honrado por levar a descompostura na sua companhiaŗ
(p. 171).
Segundo Rios (2008a), Pascoaes era o principal intermediador entre Brandão e seus editores.
Lia todos os seus livros, conhecia perfeitamente o conteúdo de cada um e sempre se referia à obra
do amigo com letras maiúsculas, em sinal de respeito e admiração profundos. Raul Brandão, por sua
vez, reconhecia a importância de Pascoaes na divulgação de suas obras, dentro e fora do país, como
podemos constatar em carta de 3 de janeiro de 1921: Ŗa si é que devo este interesse repentino dos
espanhñis pelos meus livrosŗ (1994, p. 67). Nove anos depois, ainda não relutava em agradecer ao
amigo, ainda que com duvidosos resquícios de humildade: Ŗo que eu lhe agradeço o interesse por
mim e pelos meus livros! Fá-los traduzir, dá-os a ler aos seus amigos e trata esses pálidos reflexos
do meu ser como se tivessem uma grande importânciaŗ (1994, p. 235). E a humildade também
assomava a Pascoaes quando aludia à obra brandoniana: ŖNo prñximo nº da Águia sairá o meu
pobre artigo sobre o El-Rei Junot. Desculpe a sua insignificância, mas traduz fielmente o meu
pensamento acerca da sua pessoa literária, grande entre as maioresŗ (p. 48).
Como comentamos no início, é difícil compreender como um escritor com a originalidade
de Raul Brandão, reconhecida, inclusive, por grande parte do meio intelectual e acadêmico
português, pôde ficar imerso na obscuridade durante tanto tempo. Ninguém melhor que Teixeira de
Pascoaes para responder: ŖE deixe-me ter a vaidade de dizer que poucas pessoas saberão
compreendê-la e amá-la como eu. Atribuo tal cousa a uma certa sensibilidade com que Deus me
dotou, para minha desgraça. E há tão pouca gente capaz de sentir!ŗ (p. 85). Da perda da auréola à
decretação da morte por Barthes, não somente o autor, como o próprio texto dessacralizam-se, até
que deixemos de pensar as obras literárias como produto de uma inspiração divina, e o escritor
ganha o estatuto não de gênio, mas de inteligente (cf. Rios, 2008a), um artesão que não mais deseja
produzir só, à espera que lhe ajudem o engenho e a arte.
A importância da escrita não reside apenas na obra acabada. O valor que, antes, era
encontrado naquele maço de papeis intitulado A Farsa, recentemente vem sendo descoberto nos
rabiscos de seu autor, condenados às margens do livro. A feia rasura, que outrora deveria ser
extinta, tornou-se a possibilidade que temos para reaver o processo de criação. Pela obra, podemos
perceber o que está contido no texto, mas pelas cartas, como espelhos dos bastidores da escrita, o
texto desnuda-se diante de nós, e entrevemos o que ele foi, o que quase foi, o que poderia ter sido.
A Farsa revela à literatura portuguesa da época personagens intrigantes: Candidinha, seu
filho Antoninho, Sofia, a Cega e Joana, construídos no campo da desconstrução e do esfacelamento
do sujeito, cada qual com destinos que culminam no trágico. O lamento de uma experiência em
crise perpassou a obra, convertendo-se num objeto fundamental da sua análise. As figuras
constituem-se como concretizações da perda da esperança, ou seja, congregam em si, ao mesmo
tempo, a fantasmagoria e a consciência da imersão da história na catástrofe, experiência que marcou
o homem do final do século XIX e início do XX.

215
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A narrativa reflete o desencanto corrente, o descrédito ao cientificismo, incapaz de dar conta


de questões subjetivas. É marcada pelo hibridismo de gêneros, estilos e valores, por um pessimismo
e um horror da realidade, que geram imobilidade, fuga para o sonho e adoração da morte.
Candidinha, Ŗfigura amolgada pela desgraça, com o chapéu depenado e um riso postiçoŗ (Brandão,
1992, p. 19), retém por anos o ódio pela irmã, depois pelo cunhado, pela nora, pela beata Felícia e
por todos os que conseguem enriquecer, todos a quem atribui a culpa por suas desgraças. Sua luta
interna contra a hipocrisia contrasta com as circunstâncias em que é obrigada a viver, assim como a
vida com que fora acostumada a ter, nascida e criada na aristocracia. De repente, vê-se jogada para
o lado oposto, dos pobres e oprimidos. Deseja dinheiro, poder, mas projeta os sonhos em seu filho e
não admite que este tenha os seus. Após a morte de Antoninho, acalenta uma última esperança, um
sonho a ser realizado, o descanso eterno:

É de pedra e ódio. [...] Enorme, vestida de trapos, mergulha na trágica absorção, confundida
com as fragas ásperas dos montes. Todos os dias se deita a caminho da vila para o casebre
onde o filho morreu. Se lhe falam nem desvia o olhar. Com a mão afiada achega ao peito
seco o xale esfarrapado, empedernida como se fora talhada no bloco granítico da serra. Tem
os cabelos negros. Não morre (BRANDÃO, 1992, p. 121).

Há uma carta que devemos citar: 1º de dezembro de 1920, dezessete anos após a primeira
publicação da obra, uma editora de Madrid, a Casa Calpe, solicita a Teixeira de Pascoaes a melhor
novela portuguesa contemporânea para traduzi-la para o espanhol. Vejamos o que diz Pascoaes: ŖSe
o meu amigo puder dispor dalgum trabalho seu para este fim, seria magnífico. [...] Não poderia ser
A Farsa? [...] ou qualquer outro publicado ou por publicar [...]ŗ (1994, p. 64). Reparemos que
Pascoaes pede a Brandão qualquer livro, e isto denota que o poeta reconhece o valor da produção do
amigo, que não está somente na obra.
El-Rei Junot consegue ser ainda mais perturbador que A Farsa: em princípio, inquieta não
só àqueles que necessitam classificar a narrativa em um gênero, mas também pela escrita contrária
ao discurso oficial contida em suas páginas: não mais contar o passado tal qual ele foi, como
afirmado por Benjamin (1994) nas suas Teses, trata-se de expressar um caráter imemorial da
experiência histórica, e esta só pode ser rememorada através dos cacos, dos fragmentos, de todas as
micro-histórias que deixaram de ser contadas por algum motivo, sendo esquecidas no tempo. É o
que Brandão faz em El-Rei Junot: antes da transferência da corte portuguesa para o Brasil, Junot
acreditava que seria o novo rei de Portugal. Ele, como é sabido, nunca foi rei, mas não há nada que
o impeça de sê-lo nas páginas de uma obra literária (cf. Rios, 2008b). No entanto, facilmente poder-
se-ia depreender certa preocupação do narrador em conferir à narrativa um caráter de verdade, o que
vai além da simples verossimilhança, lançando mão de documentos e afirmando constantemente:
ŖEu viŗ. Ora, não há nada menos objetivo, do ponto de vista da história oficial, do que a passagem a
seguir:

Na hora fatal ninguém se entende. Dão-se ordens e contra-ordens, os diplomatas mentem,


os emigrados intrigam, Luís de Vasconcelos e Sousa e António de Araújo são pela França;
D. Rodrigo de Sousa Coutinho e seus irmãos pela Inglaterra. Apela-se para o cofre. Venha

216
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mais dinheiro, mais diamantes! [...] Mais ordens sem nexo: desguarnecem-se as fronteiras
para iludir Napoleão, e finge-se defender a costa das esquadras inglesas. Mente-se, mente-
se até ao fim (BRANDÃO, 1982, p. 81).

De acordo com Rios (2008b), El-Rei Junot articula um discurso que contesta o oficial,
mesmo porque a macro-história não abarca todas as possibilidades de interpretação dos fatos, daí a
possibilidade da literatura rearticulá-los, dando-lhes nova roupagem, visto que Ŗa histñria é dor, a
verdadeira histñria é a dos gritosŗ (Brandão, 1982, p. 19). Segundo Maria Emília Marques Mano e
António Mateus Vilhena (1994), Raul Brandão trabalha com uma perspectiva mais humana da
história, criando o Ŗprotñtipo do anti-historiador [...] para quem a história era mais a perscrutação
do humano do que a descrição e interpretação objectiva dos fatosŗ ( p. 248).
Teixeira de Pascoaes, na apresentação que faz a El-Rei Junot na revista A Águia, afirma que
Ŗé difícil encontrar, em qualquer parte do mundo, quem possua, como Raul Brandão, o segredo de
pôr, diante dos nossos olhos, violentos de realidade, os homens e as épocas desaparecidasŗ (1994, p.
30), e insere na escritura portuguesa uma narrativa em que se (con)fundem os conceitos de História
e literatura. Quanto a El-Rei Junot, há duas cartas que gostaríamos de destacar: a primeira é de
junho de 1914:

Quando acabei de ler a sua genial história da 1ª invasão, disse para comigo: Se ele
escrevesse uma História de Portugal?!...Uma História resumida ao essencial, é claro. Com
o seu estranho poder de visão íntima e dramática, o meu querido Amigo fará, certamente,
uma obra absoluta e dum divino alcance para a nossa Pátria (1994, p. 47-48).

Na segunda carta a que nos referimos, de 14 de dezembro de 1920, Teixeira de Pascoaes


afirma: ŖNão corresponde a Farsa ao seu estado de espírito actual? Mas corresponde e sempre
corresponderá ao estado de espírito dos homens que vivem a sua prñpria tragédiaŗ (p. 66). Assim,
de acordo com Álvaro Manuel Machado (1984), na obra brandoniana nos deparamos com um autor
que reflete Ŗnão sñ sobre a dor universal, genericamente, mas também, especificamente, sobre o
processo de criação, sobre a dor (e com ela o sonho) como fundamento de toda a verdadeira e
perdurável obra de arteŗ (p. 77). Sendo assim, a narrativa ultrapassa suas linhas para colocar-se
como uma escrita na decadência.

2. Escrita, decadência, romance


Se os gregos antigos concebiam o tempo como um círculo que se repetia continuamente, a
passagem do tempo, desta forma, não atemorizava os homens; sugeria renovação. Ao instaurar-se o
calendário cristão, a idéia de começo e fim dos tempos fez com que o associássemos à morte e à
decadência e surgiram, por conseguinte, temores relacionados ao fim dos tempos, sobretudo em
épocas de mudança entre séculos e/ou períodos milenares. Para Eduardo Lourenço (1993), Ŗfin de
siècle, se não significava fim do mundo, exprimia para uma parte significativa da Řintelligentsiař
européia de então Ŕ e da que a repercutia noutros continentes Ŕ um sentido de cansaço, de
frustração, de decadência e, sobretudo, de desilusãoŗ (p. 317). O fim de século deixara de ser, desde
o oitocentos, uma noção cronológica para tornar-se, também, ideológica: a virada finissecular e a
217
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Decadência estão imbricadas, e para Arnold Hauser (1998), o catastrofismo, ou melhor, a


decadência é um Ŗsentimento de fatalidade e crise, ou seja, a consciência de estar no fim de um
processo vital inevitável e na presença da dissolução de uma civilizaçãoŗ (p. 914-915).
O sentimento decadente perpassou a Europa, e em Portugal fincou raízes, sobretudo devido
ao Ultimatum inglês, episódio histórico em que os portugueses abriram mão de suas possessões
territoriais, aceitando a intervenção britânica nos assuntos nacionais. Portugal sofreu uma mutilação
econômica, política, cultural e, sobretudo, moral. Todavia, embora o termo declínio pareça
adequado ao contexto, certamente a atrofia não se estendia ao campo da produção literária,
notadamente quando pensamos em escritores como Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes, até mesmo
Mário de Sá-Carneiro. É o que podemos averiguar em carta de junho de 1914 remetida por Mário
Beirão: ŖNesta agonia de inteligência e de alma, estúpida e passiva, que é a vida nacional, como é
consolador ouvir o grito supremo e humano de Alguém que se diviniza!ŗ (1994, p. 253). Ao
contrário do que se pensa, o Decadentismo não se configura em uma estética fechada, mas como um
feixe de tendências, entre as quais surge o apreço pelo feio e o grotesco. A maior preocupação que
Brandão imprime às suas obras é com a vida, ou, poderíamos dizer, com o bem, como destacamos
na passagem do livro A Farsa, diálogo entre Sofia e a Cega: ŖŔ Vou morrer. E como Sofia
irrompesse em pranto: Ŕ Chiu, baixinho... Temos chorado tanto!... Deus ouviu, enfim, as minhas
súplicas [...]ŗ (Brandão, 1992, p. 124).
Por intermédio da carta 169, de 24 de junho de 1928, podemos definir a posição de Brandão
e Pascoaes perante a crise intelectual em que se encontrava Portugal: ŖTudo isto seria muito
engraçado e pitoresco, se não fosse profundamente desolador. Fazia rir, se não fizesse chorar ver
tanta imbecilidade e estupidez!ŗ (1994, p. 183). Como sugeriu Eça de Queirñs (1984) em ŖA
decadência do risoŗ , o que resta não é mais aquele sorriso amplo e esperançoso, mas um Ŗdesfranzir
lento e regelado de lábios, que pelo esforço com que se desfranzem, parecem mortos ou de ferroŗ
(p. 221-222). É o sorriso duro e seco, a risada casquinada que encontramos nos lábios das
personagens brandonianas.
Na literatura de Raul Brandão, a morte é desejada, como coloca Eduardo Lourenço (2001)
em ŖCultura Portuguesa e Expressionismoŗ , ela é cansada e mastigada, mas a vida é sonhada. O
grotesco e o horror tornaram-se correntes numa época de frustração, de angústia, e o Decadentismo
é a estética que a manifesta. A beleza agressiva da obra de Raul Brandão expressa um grito que não
nos dói aos ouvidos, mas aos olhos, fazendo com que a narrativa adquira contornos plásticos. Jorge
Valentim (2004), ao comparar imagens da ficção brandoniana às do pintor Columbano Bordalo
Pinheiro, afirma que

os sentimentos de profunda solidão se refletem nas cores, nos cenários e nos retratos
obscuros e depressivos. Aliás, é esta mesma natureza crepuscular, sombria e de estufa, tão
cara à estética decadentista, que estará insistentemente pontilhada e desenhada nas cenas
portuenses nebulosas, decrépitas e corroídas, plasticamente presentes na ficção e nos
quadros destes dois artistas portuenses (p. 36).

218
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A plasticidade estende-se e acaba por marcar todo o conjunto da obra de Brandão em nível de
estruturação narrativa, como afirma Teixeira de Pascoaes (1914) na Revista A Águia, sobre El-Rei
Junot:

E toda esta vertigem de dor que é a Vida, condensa-se numa forma literária doida de
movimento! As palavras vivem em sobressalto, os períodos sucedem-se em relâmpagos,
sussurros de água e de lágrimas, ora subindo em gritos e gemidos, ora descendo a funduras
de silêncio... Eis o Verbo em delírio! E eis a Tragédia, e nova tragédia profundamente
lusíada! [...] É triste que esta obra, tão intensa e profundamente dramática, tão reveladora
do nosso Povo, não possa ser compreendida, por enquanto, em Portugal, onde o gosto
literário não vai além dum certo lirismo exterior e musical... (p. 31).

É por meio da sociabilidade que A Farsa e Junot foram lapidadas. No dizer de Álvaro
Manuel Machado (1984), em Raul Brandão verifica-se Ŗuma forte tentação de ruptura da
linguagemŗ (p. 11). Raul Brandão e Sá-Carneiro inseriram na escrita lusa o que mais tarde veio a se
chamar Noveau Roman. Segundo Vergílio Ferreira (1965), o romance moderno se configura como
problema, uma vez que Ŗviolenta o espectador no seu interrogar, força-o a compartilhar da sua
procuraŗ (1965, p. 266). Álvaro Manuel Machado (1984) diz que a fusão de gêneros, marca da
escrita brandoniana, fora praticada de maneira tímida pelos primeiros românticos, o que denotava a
originalidade e ousadia do escritor do Douro. Como ressalta Vergílio Ferreira (1965): ŖQuem ignora
o clamor escandalizado deste ou daquele crítico que nos declara que isto já não é poesia, que isto já
não é teatro, que isto já não é romance? E todavia só o não é como não é a nossa face envelhecida
que nñs vemos ao espelho [....]ŗ (p. 242).
Romance, novela, drama, tragédia, o fato é que a narrativa de Brandão escapa de qualquer
rotulação que se lhe deseje impor. Sua escrita pode ser considerada moderna, pois, para Machado
(1984), Raul Brandão não está vinculado a uma estética, está ligado de alguma forma a todas elas,
as anteriores às suas obras, como o Romantismo e a Geração de 70, e as posteriores, como o Neo-
realismo e o próprio Modernismo. Foi um escritor que levou ao extremo o processo de
Ŗtransitoriedade da escritaŗ (p. 7).
Há uma passagem do livro Assim falava Zaratustra, que diz: Ŗvede os bons e os justos! A
quem odeiam mais? A quem lhes despedaça as tábuas de valores, ao infrator, ao destruidor. É este,
porém, o criador. O criador [...] procura colaboradores que inscrevam valores novos às tábuas
novasŗ (1988, p. 19). A narrativa brandoniana deixou marcas em toda a literatura posterior. Mostra
que nem sempre aquele que infringe normas, destruindo o que estava solidificado, deixa de
construir algo. Na obra brandoniana, a estrutura fragmentária do sujeito começa no próprio texto, ao
negar os nexos temporais e apresentar uma organização romanesca não linear, antagônica ao
esteticismo tradicional. Ainda assim, é possível que Raul Brandão nunca seja inserido naquilo que
chamamos cânone literário, mas felizmente cânone não é sinônimo de valor, e uma obra não precisa
estar lá para ser lida e admirada.

Referências bibliográficas

219
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007.

BENJAMIN, Walter. ŖSobre o conceito de histñriaŗ . In: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin.
7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 222- 232. (Obras escolhidas; v.1).

BRANDÃO, Raul. A Farsa. Mira-Sintra: Publicações Europa-América, 1992.

______. Correspondência / Raul Brandão, Teixeira de Pascoaes; recolha, transcrição, actualização


do texto, introdução e notas de António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano. Lisboa:
Quetzal Editores, 1994.

______. El-Rei Junot. Lisboa: Casa da Moeda, 1982.

CARDOSO, Marília Rothier. ŖArquivos em confrontoŗ . In: Gragoatá, n. 15. Niterói, RJ: EdUFF,
2003. p. 43-53.

FERREIRA, Vergílio. ŖSituação actual do romanceŗ . In: Espaço do invisível: ensaios. Lisboa:
Arcádia, 1965. v. 1. p. 225-272.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.

LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro ou imagem e miragem da lusofonia. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.

__________________. ŖDois fins de séculoŗ . In: O canto do signo: existência e literatura. Lisboa:
Presença, 1993. p. 317-328.

LUBBOCK, Percy. A Técnica da ficção. São Paulo: Cultrix, 1985.

MACHADO, Álvaro Manuel. Raul Brandão: entre o romantismo e o modernismo. Lisboa: Instituto
de Cultura e Língua Portuguesa, 1984.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Trad. José Mendes de Souza; São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.

PASCOAES, Teixeira de. ŖEl-Rei Junot por Raul Brandãoŗ . In: A Águia. Lisboa, 2. série, n. 31, p.
30-31. jul. de 1914.

QUEIRÓS, Eça de. ŖA decadência do risoŗ . In: Notas Contemporâneas. Lisboa: Livros do Brasil,
1984.

RIOS, Otávio. A experiência estética de Raul Brandão: variantes textuais e construção narrativa
em Húmus. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) Ŕ Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

___________. ŖPelos caminhos da memñria: arquivos de escritores e recepção de textosŗ. In: Todas
as Letras. São Paulo: v.k., 2008a. p. 44-50.

220
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

___________. ŖA ficção faz a histñria: Raul Brandão (re)escreve o percurso de D. João VIŗ . In: 4º
Colóquio do Pólo de Pesquisas sobre Relações Luso-Brasileiras: D. João VI e o Oitocentismo.
Atas. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 2008b.

VALENTIM, Jorge Vicente. ŖImagens crepusculares: Columbano e Raul Brandão no Portugal


finissecular oitocentistaŗ . In: Gragoatá, n. 16. Niterói, RJ: EdUFF, 2004. p. 33-49.

VASCONCELLOS, Eliane. ŖPedro Nava e sua criaçãoŗ . In: Gragoatá: Revista do Programa de
Pós-graduação em Letras. n. 15, p. 31-41. 2 semestre de 2003.

221
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O OLHAR DO OUTRO SOBRE NÓS


Dilce Pio Nascimento (CESP- UEA)

A idéia não é de fazer deste estudo uma expressão etnocentrista de uma determinada
cultura, nem de exaltar a excelência de uma cultura que, supostamente, deveria permanecer
imobilizada no tempo. Mas de discutir e contestar a idéia de uma cultura inferior e pobre ...
(PAES LOUREIRO 1995, p. 41)

A identidade nos faz diferentes dos outros. Cada indivíduo vai sendo construído
historicamente à medida que incorpora valores, crenças, padrões de comportamento de um
determinado grupo social. No encontro entre culturas há, na maioria dos casos, dois pólos que se
contrapõem: dominação e resistência. Denys Cuche (2002) nos faz refletir sobre o encontro com
outro, ao questionar se Ŗas culturas dos grupos dominados socialmente estão destinadas a
desaparecer ou a imitar as culturas dos grupos dominantes?ŗ . Paes Loureiro (1995) diz que Ŗo
Řhomem amazônicoř (...) tem se abatido as mais sutis formas de preconceitos que foram
potencializadas a partir do século XIXŗ . Portanto, é dessa forma que as narrativas dos naturalistas,
cronistas e literatos do século XIX Ŗolhamŗ para o homem amazônico . Entre esses escritores estão:
Louis Agassis (Viagem ao Brasil), Alexandre Rodrigues Ferreira (Viagem Filosófica) Henrique
João WilKens com o poema épico ŖA muhuraida ou a conversão do gentil muhraŗ , Francisco
Gomes de Amorim com o romance ŖOs Selvagensŗ. Todos os discursos dessas narrativas negam o
direito de alteridade no processo de colonização da Amazônia. Historicamente, os portugueses e os
espanhóis, imbuídos de uma visão etnocêntrica, foram os principais atores do etnocídio da
identidade cultural amazônica.
A cultura é uma das principais características humanas, pois somente o homem tem essa
capacidade de desenvolver-se culturalmente, distinguindo-se de outros seres vivos. A partir do
século XIX, com o surgimento da idéia cientifica de cultura, haverá duas principais correntes,
segundo CUCHE:

...dois caminhos vão ser explorados simultânea e correntemente pelos etnólogos: o que
privilegia a unidade e minimiza a diversidade, reduzindo-a a uma diversidade Řtemporáriař
segundo um esquema evolucionista; e o outro caminho que, ao contrário, dá toda a
importância à diversidade (...) (p.33, 2002).

Sobre esses dois caminhos, referente a noção de cultura, explorados pelos etnólogos do século
XIX, evidencia-se que a Amazônia foi colonizada sob a égide evolucionista como se pode
constatar certos discursos preconceituosos de algumas narrativas, desse período, ao difundirem
uma supremacia racial sobre o Brasil e, conseqüentemente, sobre a Amazônia. Entre esses
discursos estão os do cronista Francês Louis Agassis na obra ŖViagem ao Brasil que, conforme
LOUREIRO (p. 32, 1995) ao se referir ao Brasil, no que diz respeito a sua formação cita-o Ŗcomo
exemplo da perniciosa mistura de raçasŗ :

222
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

...que essa mistura (de raças) apaga as melhores qualidades,quer do branco, quer do negro,
quer do índio, e produz um tipo de mestiço indescritível cuja energia física e mental se
enfraqueceu (...). Essa classe híbrida, ainda mais marcada na Amazônia, por causa dos
elementos indígenas é numerosíssima.

Outro autor que serviu de porta-voz ao processo de colonização da Amazônia foi Alexandre
Rodrigues Ferreira com a obra Viagem Filosófica que, na visão de Márcio Souza (p. 79, 2003)
[ele] Ŗ...é a sabedoria científica do mercantilismo em seu imediatismo.ŗ Com idéias de dominação e
superioridade racial, este naturalista olha para o índio como um ser inocente, rude, incapaz de se
auto-sustentar ao dizer que os nativos são Ŗacostumados a pensar pouco, também falam pouco. (...)
O seu falar é tão lento como são lentas as suas cogitaçõesŗ (FERREIRA apud SOUZA p.79) .
Henrique João Wilkens representa também a voz do colonizador com o poema épico A
ŖMuhuraida ou o triunfo da fé na bem fundada esperança da inteira conversão e reconciliação da
grande e feroz nação do gentio muhuraŗ . Wilkens era um Português militar, especializado em
cartografia, viveu na região amazônica na segunda metade do século XVIII. O poema narrativo A
Muhuraida , que foi marcantemente influenciado pela épica camoniana, foi publicado em Lisboa
no ano de 1819, sendo considerado o marco inicial da literatura no amazonas. Assim como a
maioria das narrativas desse período, o poema faz apologia à pacificação, à cristianização e ao
etnocídio dos índios muras, segundo Márcio Souza, este autor seria o Ŗpoeta do genocídioŗ porque
o discurso do poema apresenta de um lado, os portugueses como pessoas boas, pacíficas e com as
melhores intenções de fazer o bem. De outro lado, os índios muras são apresentados de forma
estereotipada como seres sanguinários, desumanos, bárbaros e preguiçosos, conforme a estrofe IX:

Nas densas trevas da gentilidade,


Sem templo, culto, ou rito permanente,
Parece, da noção da Divindade,
Alheios vivem; dela independente
Abusando da mesma liberdade,
Que lhes concede esse Ente Onipotente
Por frívolos motivos, vendo a terra
Do sangue tinta, de uma injusta guerra.

O discurso do narrador é etnocêntrica, pois ele não tem sensibilidade de olhar para o índio
levando em consideração as peculiaridades culturais do autóctone. O índio é visto como um
monstro sem religião e esse é um dos motivos por estarem nas trevas. Nesse caso, foi negado ao
nativo o direito de alteridade, ou seja, o direito ser o outro, o diferente com suas peculiaridades
culturais. A estrofe X corrobora a idéia de crueldade, mostrando o olhar do narrador de A
Muhuraida sobre o homem amazônico:

Algumas nações há, que as mais excedem


No bárbaro costume, e crueldade,
Com que o esforço, e valentia medem,
Repugnante à razão, à humanidade
Da envenenada flecha, que despedem
A escolha pende da voracidade,
Com que o inerme peito acometendo,
223
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Da vida o privam, para os ir comendo.

Observa-se nesta estrofe o narrador olhando para o nativo com repugnância estranheza
porque os hábitos deste são diferentes dos hábitos do colonizador. Nota-se ainda que o narrador
exagera ao afirmar que os índios muras eram canibais, já que as pesquisas etnográficas dizem ao
contrário. Márcio Souza, na obra A expressão amazonense afirma que a descrição dos índios,
rebaixada à categoria de animais inferiores, fazia parte da estratégia de dominação. Segundo este
autor,

as culturas originárias deveriam ser erradicadas e os povos amazônicos destribalizados e


postos a serviço da empresa colonial. As crônicas dos primeiros viajantes são de uma
escrupulosa sobriedade em relação ao sofrimento dos índios. Por esses escritos instala-se a
incapacidade de reconhecer o índio em sua alteridade

Tanto Alexandre Rodrigues Ferreira quanto Wilkens, de acordo com Souza, tinham o
mesmo objetivo, Ŗos mesmos conceitos de tranqüila dominação caem sobre a terra...ŗ E vale
ressaltar que Alexandre Rodrigues era brasileiro, nascido na Bahia, já Wilkens era um militar
português a serviço da Coroa.
Outra narrativa que nega o direito de alteridade indígena é o romance ŖOs selvagensŗ de
Francisco Gomes de Amorim. Nesta obra, o protagonista, padre Félix após perder-se na mata, às
margens do rio Tapajós, é encontrado por índios mundurucus canibais que lhe fazem prisioneiro.
Não restando outra alternativa para o padre senão rezar, pois sabia que iria servir de alimentos
para aqueles bárbaros:

Preparam a minha morte?... Seja feita a vontade de Deus!... e bem-vinda a hora do martírio,
se assim conseguir que a minha alma regenerada entre no seio do Eterno! Senhor! Senhor!
Perdoa-me a perdoa também a estes infelizes, mais dignos do que eu da tua misericórdia,
porque não sabem o que fazem! (p.41)

Nesta passagem o protagonista, através de uma intertextualidade com a passagem bíblica, compara
o seu sofrimento com o de cristo nas mãos de seus algozes. Mas, ao contrário do que aconteceu com
cristo, o crucifixo que pendia no pescoço do padre salva-o da morte, já que o cacique mundurucu
deseja aquele objeto. Ali acontece a conversão dos gentios. E o padre de invasor passa a condição
de Ŗpaiŗ o rientador espiritual da tribo, dando início à estratégia de conquista e dominação:

Nesse mesmo dia se começou, à sombra das palmeiras do terreiro, um grande barracão,
destinado para futura igreja da povoação cristã. Todo o povo trabalhava com ardor igual ao
do missionário. Grandes e pequenos, homens e mulheres, mais impressionados talvez pela
novidade do que por verdadeiro zelo religioso, andavam à porfia a ver quem havia de fazer
mais e melhor! (p. 66)

Como se observa, o autñctone passa por um processo de Ŗtransculturaçãoŗ ao substituir seus


hábitos e costumes religiosos pelos do colonizador, ocorrendo, dessa forma o etnocídio, uma vez

224
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

que a cultura do grupo dominante Ŗmataŗ socialmente a cultura do grupo dominado já que o índio é
descaracterizado com a perda de sua identidade.
Para finalizar essa farta veleidade narrativa a cerca do homem amazônico, no século XIX e
inicio do século XX, cito Euclides da Cunha e Alberto Rangel que também propagaram uma
imagem dos povos da Amazônia como seres degradantes e inferiores. Neide Gondim (2002), ao se
referir ao conteúdo das principais obras de Euclides da Cunha, diz que [ele] Ŗ sequer alude ao
caboclo ou mesmo ao índio em à Margem da História(1909) ..NřOs sertões adjetiva-os de
Řselvagem broncoř, raça inferior...ŗ (p.97). No prefácio do livro Inferno Verde de Alberto Rangel,
Euclides da Cunha comenta que Ŗo crítico das cidades, que não compreende este livro, será o seu
melhor crítico. Porque o que aí é fantástico e incompreensivo, não é o autor, é a Amazôniaŗ (p. 26,
2001). A obra é incompreensível aos olhos do autor de Os sertões, porque a sua ótica é impregnada
de preconceitos sobre o habitante da região. Marcos Frederico Grüger , ao fazer um estudo crítico
de Inferno Verde nos esclarece que a prñpria Amazônia Ŗrevela sua estratégia de desenvolvimento:
(RANGEL, p.168, 2002)

...sou a terra prometida às raças superiores, tonificadoras, vigorosas, dotadas de firmeza,


inteligência e providas de dinheiro; e que um dia virão assentar no meu seio a definitiva
obra de civilização, que os primeiros imigrados, humildes e pobres pionniere do presente,
esboçam confusamente entre blasfêmia e ranger de dentes.

De acordo com KRÜGER, esta seria a ideologia da obra em questão: o nativo seria incapaz
de trazer o progresso para a Amazônia. Se os caboclos e os nordestinos foram incapazes de fazer a
Amazônia progredir, quem poderia trazer o desenvolvimento para a esta região? Rangel desvela sua
concepção ideológica, que era a mesma a do colonizador, por meio da personificação da própria
Amazônia, quando ela prñpria diz que o seu futuro estaria nas mãos das Ŗraças superiores dotadas
de firmeza, inteligência e providas de dinheiroŗ
Todos essas narrativas citadas, _ não desmerecendo seus valores etnográficos,
antropológicos e naturalista, ao descreverem a riqueza da fauna e da flora da região, que serviram e
ainda servem de ponto de partida para outros pesquisadores _ esboçam uma maneira especial de
olhar para a Amazônia, carregadas ideologicamente de um etnocentrismo às avessas como é o caso
de Ferreira, Rangel e Euclides da Cunha que, influenciados pela cultura européia, transplantaram
para
E hoje, como o amazonense se reconhece? Ou melhor, como o próprio homem amazônico
olha para si? A construção de uma identidade cabocla, na prática, vem se dando há algum tempo.
Alguns estudiosos indicam fortes tendências neste sentido em diversos campos da atuação humana
em nível local. Sobre essa problematizarão da identidade cabocla, Paes Loureiro nos diz que:

A identidade da cultura cabocla, como ocorre também em relação a outras culturas, tem a
ver com o registro de determinadas matrizes de pensamento e de comportamentos que estão
secularmente registrados na memória social dos grupos humanos e que gozam da condição
da durabilidade e de persistência no tempo; constituem-se nos elementos fundadores da
cultura e, ao mesmo tempo, dos elementos que acabam por conferir-lhe força e
peculiaridade. (2005, p. 33)

225
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A suposta crise de identidade por que passa o amazonense teria sua origem na herança
cultural que foi transplantada para cá, seriam essas Ŗmatrizes de pensamentoŗ dito, por Loureiro,
que fizeram com que o caboclo negasse suas origens? Para termos uma melhor compreensão da
formação da sociedade amazonense, é necessário recuarmos no tempo e partirmos da análise de
obras, como as já mencionadas, que tratam do assunto desde o processo de conquista e
colonização. Mas a idéia de uma identidade cultural cabocla é um fato recente e implica o
sentimento de pertencimento a uma comunidade amazônica, o Amazonas.
Com o debate, ainda recorrente, no qual a discussão gravitava em torno de uma suposta crise
de identidade do amazonense, pois, de acordo com esta constatação discursiva, o amazonense sofre
uma crise de identidade porque não se reconhece e/ou não quer se reconhecer como caboclo
descendente de índios.
É perceptível que em tal discurso a identidade é algo naturalmente dado, objetivo; tem um
caráter ontológico. De modo que se possa preservá-la, perdê-la e/ou resgatá-la. Assim sendo, o
indivíduo tem uma essência ou uma natureza determinada biologicamente. A identidade,
conseqüentemente, é natural e não cultural; biológica e não histórica. É definida pelo nascimento.
Portanto, o indivíduo tem sua identidade definida por suas características físicas e por seus traços
exteriores; não se levando em conta a sua historicidade, suas vivências e experiências.
Por outro lado, considerando que a identidade cultural fosse determinada biologicamente,
como seria possível definir uma identidade indígena para o Amazonas, onde sabemos que o
crescimento populacional se dá menos pelo índice de natalidade e mais pela migração de pessoas
vindas das mais variadas regiões do país e de outras partes do mundo? Ou ainda, partindo-se do
princípio de que as identidades estão em constante transformação, são dinâmicas, como estabelecer
uma mesmidade ou reivindicar uma continuidade para aquilo que a única coisa de permanente é a
mudança, o devir?
Segundo Ribeiro (1997), ŖContestar a identidade como naturalmente dada equivale a negar
que ela seja harmônica: implica recuperar, com todo o cuidado, as tensões que nela subsistem e a
fazem mudar constantementeŗ . Como se observa, o conceito de Ŗidentidadeŗ é ardiloso, pois, de
acordo com Hall (2000, p. 13) ŖO sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um Řeuř coerente. Dentro de nñs há identidades
contraditórias empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão
sendo continuamente deslocadasŗ .
Porém, não se deve ignorar um fato que há no Amazonas, no qual o amazonense (e talvez o
amazônida brasileiro de modo geral) não aceita, sem constrangimento, a sua ascendência indígena.
Esse fato é perceptível quando alguém, por alguma razão, Ŗchamaŗ uma pessoa, com traços
indígenas, de Ŗíndioŗ e esta última se sente ofendida. Observa-se também, nesta situação, que o
substantivo índio é utilizado com uma conotação pejorativa e o seu uso tem por finalidade
Ŗofenderŗ o outro.

226
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Por outro lado, há um movimento artístico e acadêmico, paralelo a políticas culturais do


Estado amazonense que se traduzem na forma de práticas sociais que buscam a Ŗvalorizaçãoŗ da
cultura local, dos elementos regionais, do índio e do caboclo amazônida. Esse movimento ganhou
maiores proporções por volta de 1954, na literatura, com a fundação do Clube da Madrugada.
Depois essa forma de representação da cultura local se espraiou para outras formas de
expressão artísticas como a música. Conforme a professora Eloína Monteiro dos Santos, a busca da
identidade cabocla já esteve presente nas inquietações de Álvaro Botelho Maia. E, conforme Márcio
Souza (2003, p. 15), Ŗem 1955 no ensaio A cultura amazônica, o Dr. Djalma Batista já se mostrava
preocupado com a insignificante participação do Amazonas na cultura nacional. Denunciando o
marasmo crítico de sua geração (...)ŗ . Também nesse tom de Ŗdefesaŗ da cultura local, vão surgir, a
partir do final da década de 60 aos anos 80, vários grupos musicais que cantam uma certa forma de
ser do caboclo. Entre esses grupos estão o Raízes Caboclas, Ajuri, e, além de trabalhos individuais
como os de Chico da Silva, Emerson Maia, Aníbal Beça, entre outros. Algumas músicas, desses
grupos mencionados que tematizam o homem amazônico, cito como exemplo a canção Amazônia é
Brasil interpretada pelo grupo Raízes caboclas, que, a partir de um estereótipo do caboclo cria a
imagem de um brasileiro idílico, idealizado:

Em plena selva, Brasil ao vivo, vive


uma gente
gente que é nossa, lida na roça,
gente valente
Vence a corrente Ŕ vence Ŕ do rio
bravo
e faz da selva mundo vazio, cheio
de amor
(....)
Não teme o frio. O rugir das feras-
a jararaca
extrai seringa, derruba a mata,
vence a cascata
Mata a serpente- mata
repele a fera
vive a quimera
Da selva um deus
da selva um deus...
Eis meu Brasil,
Amazônia é Brasil!

A música tem como temática a Amazônia. Em plena selva, existe de fato um lugar, um
paraíso perdido, que precisa ser conhecido pelo resto do mundo, ŖBrasil ao vivoŗ que é habitado por
uma Ŗgente valenteŗ . A letra da música lembra uma grande epopéia, pois a mesma enaltece o herói
Ŕ a Ŗgente valenteŗ de forma ufânica e também a exuberante Ŗmãeŗ natureza que, generosamente,

227
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

fornece o alimento necessário à sobrevivência dessa gente que não teme o frio e nem os animais
ferozes.

Como se pode constatar, a música, ŖAmazônia é Brasilŗ , tem o objetivo de mostrar uma
imagem do homem Amazônico, como um deus dos trópicos, e sua relação intrínseca, sem
antagonismo, em perfeita harmonia com a exuberante natureza.

Ao contrário das narrativas do século XIX, as políticas culturais vigentes procuram


enaltecer, ou melhor, desfazer o equívoco sobre o homem amazônico que ainda persistem em olhar
para si com as lentes do o outro.

Referências bibliográficas:

AMORIM, Francisco Gomes de. Os selvagens. 2ª ed. revista. Manaus: Valer, Governo do Estado
do Amazonas, 2004. Coleção Resgate II.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais/tradução de Viviane Rieiro. 2. Ed.
BAURU: EDUSC, 2002.
GONDIM, Neide. O nacional e o regional na prosa de ficção do Amazonas. In: Leituras da
amazonia. Vevista internacional de arte e cultura. Ano II, nº 2. Ed valer. 2002;
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva,
PAES LOUREIRO, João. Cultura Amazônica:uma poética do imaginário: Belém CEJUP, 1995;
RANGEL Alberto, inferno verde / Alberto Rangel. Organização Tenório Telles e estudo critico por
Marcos Frederico Kruger. 5ª ed. Revista Ŕ Manaus: Editora Valer / Governo do Estado do
Amazonas, 2001;
RIBEIRO, Renato Janine. Apresentação. In: História social da Linguagem. (orgs.) Peter Burke e
Roy Porter, tradução Álvaro Hattnhee. Ŕ São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
ROCHA, José Paula da. Muraida. São Paulo: USP, 1987 (Dissertação de Mestrado)
SANTOS, Eloína Monteiro dos. Álvaro Maia: A busca da identidade ―Cabocla‖. In: Revista
Amazonense de História da Universidade Federal do Amazonas, v.1, n.1, (2002 -). Manaus: EDUA,
2002;
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais /
Stuart Hall, Kathryn Woodward. Ŕ Petrópolis, RJ: Vozes, 2000;
SOUZA, Márcio. A expressão amazonense – do colonialismo ao neocolonialismo Ŕ Manaus:
editora Valer, 2003.

228
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

DANDISMO E FLÂNERIE EM JOÃO DO RIO E A RELAÇÃO ENTRE A BELLE ÉPOQUE


CARIOCA E MANAUARA

Dominich Pereira Cardone (UFRR)

Durante última década do século XIX até meados do XX foi concomitante em diversos
pontos do globo, sobretudo França e Inglaterra, a crença na prosperidade e no progresso material
como cura para todos os males sociais. Coroado pelos ideais do liberalismo e triunfo da sociedade
burguesa, bem como marcado pela beleza e ostentação do luxo tal momento foi convencionalmente
chamado de Belle Époque. No Brasil, a Ŗbela épocaŗ provocou intensas transformações a modificar
o espaço público, o modo de vida e a mentalidade de cidades como São Paulo, Belém e Recife. No
entanto é no Rio de Janeiro, então capital federal, e em Manaus, que esta metamorfose se apresenta
de forma mais veemente.

De acordo com Sevcenko (1989, p. 27), o Rio de Janeiro inaugura o século XX atuando em
um papel promissor dentro dos cenários nacional e internacional devido aos recursos da economia
cafeeira e a condição de centro político do país. Com o propósito de drenar para o Brasil uma
parcela da fartura e prosperidade do mundo civilizado, atraindo, assim, investimentos estrangeiros
para a capital federal, o governo republicano empenhou-se em divulgar para os países civilizados
uma imagem nobre da sociedade brasileira. Para tanto, fez-se necessário adequar os padrões da
velha urbe aos rumos do progresso europeu, de modo que tanto os hábitos e valores tradicionais,
quanto a própria estrutura urbana do Rio de Janeiro fossem modificados: através de decretos
assinados diariamente pelo então prefeito da cidade, o engenheiro Pereira de Passos, deu-se início
ao processo de reurbanização que efetuou uma verdadeira metamorfose na cidade carioca, não
apenas na sua estrutura urbanística, mas cultural.

Neste sentido, a Belle Époque foi Ŗsem dúvida a época de ouro da instituição literáriaŗ
(Sevecenko, 1989, p. 226). Isto porque, sendo a literatura a forma de expressão cultural do período,
todos buscavam nela o prestígio que somente a criação poética ou ficcional podia lhes oferecer.
Outro fator igualmente relevante foi nova condição social do escritor que, desvinculado do
patronato da nobreza, foi obrigado a sobreviver no mercado. Contudo, tendo em vista que Ŗa
literatura não é uma ferramenta inerte com que se engendre idéias fantasiosas somente para
instrução ou deleite público. [E sim] é um ritual complexo que, se devidamente bem conduzido,
tem o poder de construir e modelar simbolicamente o mundo (...)ŗ (Sevcenko, 1989, p. 233), foram
também para ela que convergiram as inquietações por parte da produção artística voltadas para
redefinição dos valores sociais e processos de mudança daquele período.

Assim, Paulo Alberto Coelho Barreto, o escritor fin-de-siècle João do Rio, transita desde as
belas avenidas cariocas até as ruas da periferia, à procura da matéria-prima de que é composta sua

229
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

obra: o universo urbano do Rio de Janeiro da Belle Époque. João do Rio, enquanto escritor
representativo das questões culturais do seu tempo, acomete a dinâmica do cosmopolitismo em
debate com os conteúdos locais, chamada por Antonio Candido (1951, p. 117) de dialética do
localismo e do cosmopolitismo. Segundo Candido, a produção literária no Brasil de 1900 pairava
entre a afirmação do nacionalismo literário e imitação consciente dos padrões europeus,
manifestada por meio da Ŗtensão entre o dado local (que se apresenta como substância da
expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como forma da
expressão)ŗ (Candido, 1951, p. 117). É a partir deste conflito entre o local e o cosmopolita que João
do Rio desfere sua crítica a tentativa, comum ao período da Belle Époque, de identificação do Brasil
com as modernas civilizações européias, esquecendo das particularidades de meio, raça e história
que compõem o país. Sendo assim, o escritor faz refletir em seus contos e crônicas, através das
figuras do dândi e do flâneur, ora a observação denunciadora dos costumes e vícios daquela
sociedade; ora encantamento com processo de modernização pelo qual passava a então capital
federal. O contexto histórico e sócio-cultural da Belle Époque carioca, bem como contradições que
se instauram neste período são evidenciadas por João do Rio por meio do dandismo e da flânerie,
ambos emblemas do Decadentismo.

Segundo Orna Messer Levin (1999, p. 31), tal movimento comparece timidamente na
história da nossa literatura em um momento no qual os escritores, atingidos pela crise da
profissionalização e pelo marasmo da tradição, identificam na estética decadentista e no espírito
cosmopolita um possível caminho que os levem à tão almejada renovação literária. ŖEmergem então
ao horizonte intelectual daquele grupo as diretrizes do pensamento nacionalista embutido no projeto
de renovação estética, e mais o cruzamento da revisão estética com as obras de reurbanização do
início deste séculoŗ ( Levin, 1999, p. 27).

Logo, é justamente de consagrados precursores do Decadentismo, tais como Baudelaire,


Wilde e D'Annunzio, que João Rio assimila os dois elementos que darão a tônica de sua obra: o
dandismo como atitude de oposição à padronização burguesa que se impunha no período da Belle
Époque, cultuando o belo pelo viés da transgressão; e o flâneur que perambula pelas ruas sem
direção definida à procura dos aspectos recônditos da realidade carioca para compor sua arte
literária. Talvez seja esta a característica mais marcante na escrita do autor: o narrador que ora é o
dândi elegante, freqüentador dos requintados salões e das largas avenidas do Rio; ora o flâneur do
submundo carioca.

Antes mesmo do Decadentismo, o dandismo já havia se manifestado na Inglaterra no


período da Regência Inglesa e na França por volta de 1820. O dândi, sinônimo de bom gosto, teve
sua figura disseminada como a imagem de um ser cuja companhia era sempre agradável, alguém
que conhecia os segredos da vida elegante. Ao longo do tempo, o dandismo adentra o território da
imprensa, da literatura e das artes como estratégia de se fazer notar: seu princípio fundamental é

230
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

evidenciar a transgressão de forma intelectualmente refinada, conforme assinala Levin (1999, p.


40):

O dândi substitui a realidade por sonhos, meditações e alucinações. Suas manifestações


aparecem invariavelmente ao lado de forças contrárias, exercidas pela atuação do meio que
lhe parece cruel. Ou seja, o dândi age atraído pelo sadismo ou pelo satanismo como que se
contrapondo ao tédio, à impotência, à esterilidade e à prostração física que o abatem como
conseqüência dos tempos em que ele vive. Nesse sentido, o dandismo chega a ser um
sinônimo de transgressão decorrente da artificialidade que o cerca. Ele é quase um
emblema da idéia de decadência divulgada pelos escritores finisseculares.

Em João do Rio, o dândi é o porta-voz da crítica aos valores burgueses, louvação aos
estrangeirismos e europeização dos costumes, tão habituais à sua época. Assim, tem-se no conto
Emoções um dos dândis mais representativos da obra do escritor: o velho Barão Belfort 1. No conto,
constata-se logo de início a elegância artificial que o dândi Belfort cultiva através de toda sua
preocupação com o figurino sempre impecável e com a exclusividade de seus objetos: ŖLevantou-
se, mirou as unhas brunidas, mirou a gravata, e saiu, deixando o jovem só naquele salão que o pleno
verão tornara deserto (...). Embaixo, no vestiário, o barão deixou que lhe enfiassem o paletó,
mandou chamar o coupé, e partimos discretamente, sob a tarde luminosa e cor de pérola. Belfort
aconchegou-se à almofada de cetim malva, acendeu uma cigarrilha do Egito com o seu monograma
em ouro (...)ŗ (Rio, 1981, p. 36).
Já em Duas Criaturas, fica claro no discurso irônico de Belfort a sua indisposição com a
tentativa exacerbada de transformar o Rio numa Paris ou Londres. Além disso, uma vez que o dândi
se nega a valorizar o dinheiro como forma de reconhecimento e status social, ele censura a
artificialidade presente nos salões por ele freqüentados, onde os novos burgueses fazem qualquer
coisa para ocupar um lugar de prestígio na sociedade:

Meu caro, o Rio tem, como Paris ou Londres ou mesmo Montevideo, a sua season. A
season começa regularmente com a chegada do primeiro mambembe estrangeiro,
mambembe naturalmente insuportável, e fecha com os calores da primavera, na abertura do
salão de pintura. É a época do luxo, da exibiçâo, do sacrifício para aparecer, da tagarelice,
em que toda a gente fala mal do próximo e entende de arte, é a época escolhida pelos que
pretendem tomar lugar na sociedade. Nós somos uma sociedade em formação ŕ a mais
atraente, a que mais tenta por consequência, não só pelas suas taras, que há vinte anos não
eram julgadas mal, como pelo nosso fundo meio ingênuo de aceitar tudo o que brilha, seja
diamantino ou seja montana. Anualmente, de envolta com os políticos, os fazendeiros, os
estrangeiros exploradores, aparecem essas figuras com um passado estranho, decididas a
dominar, a entrar nos lugares honestos, a serem respeitadas. (Rio, 1981, p. 20)

O motivo pelo qual o dândi deprecia a importância do dinheiro é a sua condição de herdeiro
que, por descender de família aristocrática, não precisa ter preocupações de caráter financeiro. Em
João do Rio, o desprezo pelo dinheiro se traduz pela condição na qual os escritores se encontravam

1
É pertinente ressaltar que o título de Baronato concedido ao dândi Belfort não é arbitrário. A figura do barão
representa a classe nobre que, com o advento da burguesia, entrava em decadência. O aparente comportamento
transgressor do dândi revela, então, um desejo nostálgico de reconquista da supremacia aristocrática, já que com a
Revolução o artista, desvinculado do patronato da nobreza, foi obrigado a sobreviver no mercado. (Levin, 1999, p.91)

231
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

naquele momento: a necessidade de conseguir subsistência diária os obrigava a utilizar as mais


diversas artimanhas para estar em evidência, como pode ser observado no seguinte trecho de Vida
Vertiginosa:

Vê o mundo. O trabalho duplicou, deduplicou, centuplicou. O esforço para a evidência,


para a personalização da grande feira humana, chupa os ossos rasga os músculos, arranca os
nervos, esgota, desvaira, enche os manicômios, mas a onda continua, impetuosa, irresistível
para além das forças concebíveis, atirando aos pícaros os vitoriosos Ŕ vitoriosos de um
instante que conseguem aparecer. (Rio apud Levin, 1999, p. 166)

Portanto, como rejeição aos princípios burgueses, o dândi se nega a qualquer atividade
produtiva e faz da ociosidade uma forma nobre de viver, já que Ŗnuma sociedade em que os
parasitas tripudiam é inútil trabalhar. O trabalho de resto é inútilŗ (Rio apud Levin, 1999, p. 166).

Por outro lado, tal ociosidade, convertida pelo dândi em atividade crítica, corre o risco de
cair no tédio, na saturação. Para fugir a esta condição, ele busca a completude nas mais diversas
sensações, Ŗquer através dos perfumes, quer por intermédio de drogas, álcool, objetos de arte,
paraísos artificiais e exotismos de qualquer espécieŗ (Levin, 1999, p. 168). Um exemplo disto é
Oscar Flores, personagem do conto A Mais Estanha Moléstia, cuja extrema sensibilidade para o
olfato revela-o um mundo de fantasia:

E tudo quanto na vida se faz, eu sinto pelo cheiro, pelos cheiros, como um Ŗsetterŗ humano,
amarrado à corrente da conveniência. É a existência de miragem olfativa, uma existência
em que os cheiros visionam ambientes, descrevem as almas dos tipos que me rodeiam, dão-
me sensações de cor, porque há odores de todas as cores; de sons, de músicas, porque cada
cheiro é como um som diverso e o cheiro da baunilha é bem uma nota abemolada diversa
do cheiro do cravo vermelho, esse sustenido de clarim; de gosto, porque os cheiros têm
gosto; de excitação, porque todos os sentidos calcados por tamanha acuidade vibram a
arcada furiosa de um desejo incompreensível, perpétuo, demoníaco, no meu pobre corpo.
(Rio, 1981, p. 74)

Ao mesmo tempo em que tenta Ŗcivilizarŗ o Rio de Janeiro, o projeto cosmopolita ignora a
miséria e as adversidades da população. Para captar tal faceta do Rio fin-de-siècle, incorporando,
assim, a periferia à literatura, João do Rio assume também a sua outra máscara: o flâneur. Em
contraponto aos requintados espaços percorridos pelo dândi, o escritor lança mão das
perambulações do flâneur. Com o objetivo de revelar os aspectos insólitos da realidade brasileira e
acusar os conflitos gerados pela modernização do país, João do Rio imprime em suas crônicas o
crime, a malandragem e a exploração, ou seja, os aspectos do cotidiano carioca ofuscados pelo
brilho da Belle Époque. Além disso, escolhendo a ociosidade como sistema de vida, a flânerie é
uma saída que o artista encontra para escapar da pressão da sociedade capitalista. ŖO espírito
vagabundo de que se reveste o escritor durante a sua flânerie identifica-se com mendigo perdido da
cidade, que vive de esmolas para não se submeter ao sistemaŗ (Levin, 1999, p. 50).

Portanto, no Brasil, é a crônica de João do Rio a responsável pela entrada deste submundo
na literatura. ŖFlanar pelas ruas é ter a mobilidade do dândi, cuja auto-referencia lhe permite passear

232
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

como voyeur do mundoŗ (Levin, 1999, p. 50). Contudo, é nas palavras do prñprio Paulo Barreto que
se tem a melhor definição para o termo flanar:

Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a
nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e
comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. (...) É vagabundagem? Talvez.
Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico.
Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis,
que podem ficar eternamente adiadas. (Rio, 1908, p. 5-6)

Assim, em Sono Calmo, a convite de um delegado com que quem conversava sobre as
feições sórdidas do Rio, o flâneur visita os Ŗcírculos infernaisŗ escondidos na noite carioca.

Não sei se o delegado quis dar-me apenas a nota mundana de visitar a miséria, ou se
realmente, como Virgílio, o seu desejo era guiar-me através de uns tantos círculos de pavor,
que fossem outros tantos ensinamentos. Lembrei-me que Oscar Wilde também visitara as
hospedarias de má fama e que Jean Lorrain se fazia passar aos olhos dos ingênuos como
tendo acompanhado os grão-duques russos nas peregrinações perigosas que Goron guiava.
(...) Eu repetiria apenas um gesto que era quase uma lei. Aceitei. (Rio, 1908, p. 150)

Este passeio pelas hospedarias permite a visualização gradativa dos níveis de miséria, até
chegar por fim a cena que de tão impactante, choca os presentes:

Foi aí então que vimos o sofrer inconsciente e o último grau da miséria. O hospedeiro torpe
dizia que por ali dormiam alguns de favor, mas pelo corredor estreito, em derredor da
sentina, no trecho do quintal, cheio de trapos e de lama, nas lajes, os mendigos, faces
escaveiradas e sujas, acordavam num clamor erguendo as mãos para o ar. E de tal forma a
treva se ligava a esses espectros da vida que o quadro parecia formar um todo homogêneo e
irreal. . (Rio, 1908, p. 152)

A crônica Os Trabalhadores de Estiva retrata justamente a paradoxalidade que permeia a


cidade carioca: do outro lado da Avenida Central, símbolo do requinte da Belle Époque, situa-se a
região do cais e dos mercados com seu Ŗvai-e-vem de carregadores, catraieiros, homens de bote e
vagabundos maldormidos à beira dos quiosquesŗ (Rio, 1908, p. 135). Aqui o flâneur, que resolvera
passar o dia com os trabalhadores da estiva, constata e lamenta a realidade adversa destes que
trabalham horas a fio, carregando sacos de sessenta quilos para receber, na melhor das hipóteses,
sessenta réis e, ademais, quando chega o momento da comida não se reúnem: Ŗos do porão ficaram
por lá mesmo, com a respiração entrecortada, resfolegando, engolindo o pão, sem vontadeŗ (Rio,
1908, p. 139).

O flâneur, notadamente interessado em expor contraposição da cena que assiste, aponta para
uma outra realidade que, mesmo vizinha, se distancia muito da anterior: ŖE a gente, olhando para
cima, via encostados cavalheiros de pijama e bonezinho, com ar de quem descansa do banho a
apreciar a faina alheiaŗ (Rio, 1908, p. 139). Numa conversa com um dos estivadores, a
inconformação com tamanha desigualdade se mostra ainda mais veemente: Ŗŕ O problema social
não tem razão de ser aqui? Os senhores não sabem que este país é rico, mas que se morre de fome?
233
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

É mais fácil estourar um trabalhador que um larápio? O capital está nas mãos de um grupo restrito e
há gente demais absolutamente sem trabalhoŗ (Rio, 1908, p. 140).

E como ápice dessa visão denunciadora, o desfecho da crônica se dá no momento em que ao


juntar-se a Ŗdamas roçagando sedas e cavalheiros estrangeiros de smoking [que], debochavam, em
inglês, as belezas da nossa baíaŗ (Rio, 1908, p. 142), o flâneur presencia a morte de um dos
estivadores: ŖUm deles, porém, rapaz, quando o meu bote passava por perto do saveiro, curvou-se,
com a fisionomia angustiada, golfando sangue ŕ Oh! diabo! fez o outro, voltando-se. O José que
não pode mais!ŗ (Rio, 1908, p. 142).

Portanto, em um momento no qual a transformação do espaço público, interferiu na vida


privada e na mentalidade carioca, de forma a modificar o modo de vida e os padrões de
comportamento, João do Rio assumiu um papel de suma importância capturando, através de seus
contos e crônicas, o grande momento da transformação social do país. Ademais, o escritor inovou a
tradição literária trazendo para suas crônicas as contradições que a modernização instaurou no Rio
de Janeiro, perpetuando, deste modo, o caráter documental e ficcional de seus escritos que se dá
exatamente pela aproximação entre o ofício do repórter e a experiência literária, uma vez que o
autor Ŗse alimenta do flagrante jornalístico e da matriz literária a um sñ tempoŗ (Levin, 1999, p.
50).

A Belle Époque amazônica, por sua vez, inclui todo o Pará e avança até o estado do Acre.
De acordo Daou (2000, p. 10), este marco histórico, tendo como pano de fundo o final do segundo
reinado e a implantação do regime republicano, traduz-se pela riqueza propiciada pela borracha e a
euforia social, haja vista que com a crescente aplicação da borracha na indústria automobilística,
Belém e Amazonas ganham notória visibilidade nacional e internacional. De acordo com Gondim
(1994, p. 228), a realidade nos seringais exportava,

Em 1910, 316.971 contos de borracha contra 385.493 contos de réis de café. E era a
responsável direta por ter colocado a Amazônia como a região mais rica do país, pois uma
população com pouco mais de 1 milhão de habitantes produzia 39% das exportações
nacionais, enquanto os 33.969.000 brasileiros de outras regiões da União concorriam com
apenas 61% do total das mesmas (...).

Contudo, Manaus, a ŖParis das selvasŗ é, muito mais que o Pará, considerada a capital da
borracha. A precariedade de suas ruas estreitas entrecortadas por igarapés, a simplicidade do casario
e o pequeno comércio foram entre os anos de 1892 e 1896, durante a administração de Eduardo
Ribeiro, inteiramente transformados. A chegada da iluminação elétrica e a implementação da rede
de transportes foram grandes indicadores desta metamorfose, no entanto, foi a abertura da Avenida
Eduardo Ribeiro o marco desta nova Manaus então concebida.

Assim como o Rio de Janeiro, Manaus passa por intervenções urbanísticas que modernizam
suas feições e a afina com o gosto europeu. Afora as obras de reurbanização, houve o afastamento
234
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

das classes pobres dos limites urbanos, a implantação de uma estética que rompe com os padrões
coloniais, revelando-se mais cosmopolita, e a tomada de medidas higienizadoras e de controle
social. É conspícua neste período, ainda, a preocupação por parte da elite de afastar do perímetro
urbano qualquer atividade que evocasse o contato com a natureza, abrandando a insegurança e
incivilidade que a selva, no entorno da cidade, pudesse representar, conforme assinala Daou (2000,
p. 38-9):

A cidade conquistada enunciava a efetiva viabilidade de civilização em tão remota


paragem: homens Ŗcivilizadosŗ vivendo numa cidade subtraída à selva circundante,
embelezada e favorecida pelas benesses do consumo e da engenharia urbana desenvolvida
por europeus e norte-americanos. A intervenção urbana promoveu, aos olhos dos que ali
viviam, a superação de um atraso histñrico. (...) Este é o cenário urbano da ŘBelle époque
manauarař por vezes denominado de ŘManaus modernař.

Logo, tocava à cidade, sobretudo, a realização dos negñcios e prazeres Ŗmundanosŗ,


associados na maioria das vezes ao consumo cultural: bailes, espetáculos, banquetes e
especialmente a ópera, constituíam-se como símbolo do gosto mais refinado, eram os Ŗrituais de
civilizaçãoŗ . O Teatro Amazonas, inaugurado em 31 de Dezembro de 1986, foi por sua vez o lugar
emblemático da elite, o grande salão da alta sociedade. O ritual da ida ao teatro oferecia aos seus
freqüentadores uma oportunidade de reconhecerem a si mesmos, haja vista que, além de apreciarem
os espetáculos, no teatro eles conferiam se o comportamento e trajes de cada um estavam
condizentes com as alterações que a cidade e a sociedade passavam. Fato este que apontava para
uma necessidade de reconhecimento mútuo e de afirmação de identidade, nutrindo assim a fantasia
da civilização.

Para alcançarem a condição de capitais Ŗcivilizadasŗ , Rio de Janeiro e Manaus recusam,


sobretudo, seu passado colonial e as características culturais e raciais de seus habitantes. Sevcenko
(1989, p. 30) sintetiza em quatro princípios fundamentais o transcurso daquela mudança:

a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a


negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem
civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares
da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das
camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a
vida parisiense.

Foi denominador comum também entre as duas mais representativas capitais da Belle
Époque um lado oculto do fastígio: enquanto no Rio de Janeiro, ao lado do embelezamento do
espaço público e da europeização de costumes, encontram-se o reduto do crime, da miséria e da
emergente favelização; em Manaus, frente à reluzente paisagem urbana e opulência, têm-se as
estradas secretas onde os seringueiros, na maior parte retirantes nordestinos que fugiam da seca, são

235
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

explorados moral e economicamente, expostos as piores condições de degradação humana. Neste


sentido, a Ŗhistñria da borracha é uma das mais negras no que diz respeito à exploração do trabalho
humanoŗ (Baum apud Gondim, 1994, p. 228)

Portanto, partindo da perspectiva de que o Rio de Janeiro e Manaus compartilham as glórias


e desprestígios da nossa Belle Époque tropical, tendo o ciclo da borracha promovido em Manaus o
desenvolvimento de uma agitada vida cultural; e que, ainda, Ŗa histñria do Amazonas é a mais
oficial, a mais deformada, encravada na mais retrógrada e superficial tradição oficializante da
historiografia brasileiraŗ (SOUZA, 1977, p.17), padecendo esta região, não obstante ser o maior
estado brasileiro, de Ŗuma completa ausência de investigação científica acerca seu processo político
e culturalŗ (SOUZA, 1977, p.17), este artigo constitui os resultados da primeira etapa da pesquisa,
ainda em andamento, que propõe-se a investigar a ocorrência de um (ou mais) correlato(s) de João
do Rio no Amazonas, no que tange a configuração estilística, estética e temática de sua produção
literária.

Referências bibliográficas

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 4ª ed., São Paulo: Nacional: 1951.

DAOU, Ana Maria. A Belle Époque Amazônica. Rio de Janeiro: Jorge Jahar, 2000.

GONDIM, Neide. A Invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.

LEVIN, Orna Messer. As figurações do dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio.
Campinas: Editora da UNICAMP, 1999.

RIO, João de. Dentro da noite. Rio de Janeiro: INELIVRO, 1908. Campinas: UNICAMP, 1999.

___________. Histórias da gente alegre. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.

___________. A alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na


Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1989.

SOUZA, Márcio. A Expressão Amazonense: Do Colonialismo ao Neocolonialismo. São Paulo:


Alfa-Omega, 1977.

___________. Breve História da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.

236
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A ESCRITA NO ENSINO-APRENDIZAGEM DO INGLÊS


COM O APOIO DA LEITURA DE TEXTOS

Edith Santos Corrêa1 (UFAM)

Resumo: Este artigo enfatiza a necessidade da aprendizagem da escrita nas aulas de inglês, considerando a
importância do uso de textos literários na mencionada língua como fonte de aquisição e enriquecimento de
vocabulário e de conhecimento da estrutura sintática, pois a escrita da palavra por desligada de um contexto
diminui sua carga semântica, enquanto que, no texto, principalmente no literário, seu significado é
potencializado, podendo ser exercitados esses variados sentidos. Além disso, quando se trata da partida de
um mundo familiar para outro desconhecido, como é o caso do aluno de línguas estrangeiras, que utiliza seu
universo lingüístico para assimilar uma nova estrutura, que evidentemente possui similaridades e diferenças
em relação ao seu conhecimento de mundo, o texto escrito favorece a construção do sentido. A confirmação
de que a escrita é uma habilidade decorrente da percepção de significado é que ela é vista como a
consolidação da aprendizagem. Porém, durante o processo ensino-aprendizagem de línguas, nos últimos
trinta anos, sob a ótica da abordagem comunicativa, a oralidade exerce prioridade em relação à escrita, sendo
esta praticada quase que exclusivamente fora da sala de aula, como homework.

Palavras-chave: ensino-aprendizagem, escrita, língua inglesa, literatura, comunicação.

Abstract

This article emphasizes learning of writing practice in the English classes, considering the importance of
using literary texts in the language mentioned as a source of enrichment and the acquisition of vocabulary
and knowledge of syntactic structure, because the written word off by a context decreases its semantic load,
whereas in the text, especially in the literary, its meaning is compounded and can be exercised such varied
ways. Moreover, when it comes from a familiar world to another unknown, as it is the case of foreign
language student, who uses his linguistic universe to assimilate a new structure, which clearly has similarities
and differences from their background knowledge the written text favors the construction of meaning.
Confirmation that writing is a skill due to the perception of meaning is that it is seen as the consolidation of
learning. However, during the last thirty years the language teaching-learning process under the perspective
of the communicative approach, has had oral practice as a priority over the writing, which has been
practiced almost entirely outside the classroom, as homework

Key-words: teaching learning, writing, English language, literature, communication

Introdução

O segmento ensino-aprendizagem de línguas envolve quatro habilidades distintas, a saber:


compreensão auditiva, expressão oral, leitura e escrita. A integração dessas habilidades contribui
para a obtenção de melhores resultados do aprendiz no que se refere ao nível de proficiência na
língua em estudo. A compreensão auditiva e a expressão oral são habilidades naturais. Já a leitura e
a escrita precisam ser ensinadas e aprendidas sistematicamente. Assim, diante dessa premissa,
pretende-se tecer considerações acerca da importância da escrita no ensino-aprendizagem da língua
inglesa a partir da compreensão de textos.

1
Mestra em Letras, técnica em assuntos educacionais, membro da equipe de coordenação pedagógica do Centro de
Estudo de Línguas (CEL)do Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras(DLLE) da UFAM.

237
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Diante do posicionamento de estudiosos que transitam na área do ensino-aprendizagem de


línguas estrangeiras, a exemplo de Harmer (2007: p.328 a 330), a escrita deve ser produto da
assimilação de diferentes procedimentos, a partir de algo já materializado na sala de aula ou de
ideias que precisam ser compartilhadas. Para tanto, a interlocução do autor com o leitor se dá
mediante o texto faz com que o texto escrito seja propriedade do leitor. O autor, por sua vez, precisa
estar motivado para escrever, ter familiaridade com o tema e obedecer às regras gramaticais.

Considerando a vivência no acompanhamento do ensino-aprendizagem de Inglês como


língua estrangeira, vê-se que o ensino da escrita não é exercido a contento na sala de aula. Ressalta-
se, na oportunidade, que esse um fato é marcado na proposta do material didático e parece ser
manifestado na própria da sala de aula, no que tange às atividades sistemáticas desenvolvidas no
âmbito das atividades estratégias desenvolvidas no dia a dia. Acredita-se que a origem dessa
manifestação se deve à metodologia utilizada na prática pedagógica da língua inglesa, nos últimos
vinte anos: a abordagem comunicativa, que efetivamente, prioriza a oralidade.

O foco na oralidade

Os cursos de língua inglesa, de um modo geral, ofertam cursos regulares de inglês com uma
carga horária de quatrocentas e oitenta horas-aula, distribuída em oito semestres de sessenta horas-
aula. Nesse contexto, devem ser considerados:

a) a proposta da escola que enfatiza a oralidade;

b) o aluno deve ser preparado para Ŗse comunicar em inglêsŗ ;

c) a prioridade do professor é enfatizar a capacidade de articulação da oralidade;

d) a expectativa do aluno é Ŗfalar inglêsŗ .

A proposta do material didático faz com que as aulas sejam direcionadas às atividades de
fala, com a participação ativa professor x alunos, alunos x alunos e aluno x aluno. A comunicação
oral está diretamente relacionada à maneira de aprender o idioma, para atingir o outro, mediante
comunicação superficial, sem o rigor da norma culta, com a utilização de recursos alusivos no ato
da interação permeável, imediata e instantânea. A finalidade dessa técnica é criar uma atmosfera
desejável na sala de aula, delimitando o papel e o lugar dos reais componentes do processo ensino-
aprendizagem: aluno, professor e material didático. A partir de então, do ponto de vista didático-
pedagógico, percebe-se que a preocupação do professor em encontrar uma forma de atingir a
necessidade de seus alunos é absolutamente salutar, no sentido de criar atividades interessantes na
sala de aula, a fim de manter viva a vontade de aprender de seus alunos.

Embora a sala de aula se constitua de um ambiente artificial para a prática dessa língua
estrangeira, ainda é esse o ambiente propício para a interlocução e conseqüente avaliação do
diagnóstico do desempenho do aluno. A expectativa do aluno, Ŗfalar inglêsŗ é o propñsito da

238
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

grande maioria dos que ingressam em determinado curso. Muitos alunos, ao iniciarem o primeiro
semestre fazem a seguinte indagação: ŖDe quanto tempo eu preciso para falar Inglês?ŗ

No que tange ao ensino da língua inglesa em Manaus, capital cabocla, ora cercada por
pontos turísticos, estrategicamente direcionados a pessoas oriundas de outros países, vê-se a prática
dessa língua em áreas adjacentes, tais como: nos hotéis de selva, nos lugares pitorescos por ocasião
de eventos. Lá existem pessoas que falam inglês sem que tenham conhecimento da escrita. Seria
essa mais uma razão para a ênfase à oralidade em detrimento da escrita?

Enquanto a atenção à oralidade é priorizada no ensino do inglês, a escrita é tida como uma
conseqüência remota, sem que haja a mesma sistematicidade dedicada à comunicação oral. Há
sempre a justificativa do professor em afirmar que para seguir o material didático, o tempo de sala
de aula é escasso para as atividades de escrita. Logo, a comunicação escrita é direcionada ao
homework. Diante desse fato, o aluno não dispõe de maiores orientações para escrever. No entanto,
a cada aula lhe são atribuídas tarefas para casa. Essas tarefas normalmente estão contidas no
caderno de exercícios ou no livro didático e, apresentam maior ou menor grau de dificuldade. O
aprendiz nem sempre tem conhecimento suficiente para a resolução da tarefa, que efetivamente
demanda explicitação do professor, a fim de que haja o engajamento do aluno com o assunto a ser
escrito. Assim, há dois fatores importantes que merecem consideração: a solicitação e a correção da
tarefa. Será que o professor corrige a tarefa de modo desejável ou assegura que o tempo também
não é suficiente para tanto?

Considerando que apenas parte dos alunos resolve os exercícios de modo satisfatório,
conforme relato de professores, aumenta cada vez mais a expectativa de buscar fatos concretos que
possam consolidar a importância da escrita no ensino-aprendizagem da língua inglesa. Esse fato
incide no questionamento de que a prioridade é a comunicação oral. No entanto, a avaliação
formal, aquela que registra e consolida o nível de proficiência do aluno, enquanto aprendiz de uma
língua estrangeira é a escrita. Esta é a habilidade que garante ao estudante maior envolvimento com
a estrutura lingüística e, conseqüentemente, maior clareza na organização e expressão do
pensamento, além de adequação do vocabulário. Dessa forma, questiona-se até que ponto é díspar o
grau de importância entre fluência (oralidade) e exatidão (escrita) no ensino da língua inglesa.

A escrita na sala de aula

Diante do consenso de que a escrita no ensino da língua inglesa figura como a habilidade
que parece não ser adequadamente trabalhada na sala de aula, vê-se a necessidade de identificar
alguns fatores que contribuem para essa vertente. Primeiro, a preocupação de criar uma atmosfera
desejável para ensinar e aprender uma língua estrangeira exige veementemente maior dedicação à
oralidade; segundo, a escola, por si só, enfatiza a oralidade; terceiro, a exigüidade do tempo para
trabalhar a escrita é um impasse para os professores, que dispõem de três horas-aula por semana.
Neste sentido, questiona-se o ensino e aprendizagem da comunicação escrita no dia-a-dia de

239
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

professores e alunos de inglês. Eis a pergunta: os professores de inglês ensinam a escrita na sala de
aula, ou simplesmente, se limitam à correção de tarefas desenvolvidas em ambiente fora da escola?
Esta e outras questões merecem atenção de profissionais da área, não só pela formalidade da
avaliação escrita, mas pelo fato de que o ato de escrever também faz parte do saber a língua.

Por que ensinar a escrita na sala de aula?

O aluno precisa da escrita como uma ferramenta necessária, para utilizar o padrão
lingüístico, desde a feitura de frases simples, em um cartão postal, um Ŗe-mailŗ, até para a
elaboração de períodos, parágrafos concatenados na construção de artigos, da mesma forma que
necessita aprender o inglês padrão para uso da expressão oral corretamente.

Na visão de Jeremy Harmer (1998: p.86) a necessidade da escrita na sala de aula é tida
como:

a) reforço na aprendizagem da língua inglesa;

b) desenvolvimento da linguagem, no sentido de exercer a expressão do pensamento de forma


adequada1;

c) atividade reflexiva que respeita o estilo de aprendizagem do aluno;

d) habilidade básica tão importante quanto o ato de falar, ouvir e ler.

O autor vê a escrita na sala de aula como uma necessidade paralela às outras habilidades, e
ainda, como a consolidação da aprendizagem da língua em questão, Penny Ur (1991) destaca a
diferença entre a língua falada e a língua escrita. A autora considera esta universalmente entendida,
uma vez que, em geral, o texto não evidencia as diversidades lingüísticas próprias da oralidade, pois
segue o aspecto formal

Na visão de Erick Lenneberg (apud Douglas Brown, 2001 p. 334) a comparação a seguir é
pertinente, no sentido de que há reciprocidade entre a forma de aprender a nadar e a aprendizagem
da escrita. ... in a discussion of Ŗspecies specificŗ human behavior that human beings universally
learn to walk and talk, but that swimming and writing are culturally specific learned behaviors 2.

Desde a década de 80 (Douglas Brown, 1994, p.334), os professores têm tido uma
preocupação maior com a fluência da língua inglesa, o que implica prioridade na expressão oral. A
exatidão contemplada pela escrita não merece relevância na sala de aula. Este fato gerou
controvérsia no âmbito de estudos lingüísticos, na década de sessenta, visto que a escrita chegou a
ser considerada uma simples representação da oralidade, sem que houvesse qualquer diferencial

1
A escrita possibilita o uso da língua com maior exatidão, preserva a estrutura gramatical em um processo de
construção sem linearidade (1998: p.86)
2
Em uma discussão sobre o comportamento humano, enquanto Ŗespécie específicaŗ , que seres humanos
universalmente aprendem a andar e a falar, mas nadar e escrever são habilidades culturalmente aprendidas...

240
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

entre o falar e o escrever. Mais tarde, o reconhecimento de que o processo da escrita demanda
competências e é fundamentalmente diferenciado da oralidade.

Escrever é o resultado da organização de idéias mediante a expressão do pensamento que se


constitui em fazer, revisar, refazer, sem qualquer reconhecimento linear. Em suma, vê-se que a
escrita exige habilidade específica, não é desenvolvida naturalmente, porque envolve um processo
assim constituído: conteúdo, organização, uso correto do vocabulário, uso das formas gramaticais,
zelo pela clareza, pela ortografia e cuidado com a pontuação. Além desses aspectos, a pessoa que
escreve deve levar em consideração o leitor e o tipo de texto, partindo do princípio de que o texto
não pertence ao autor, este escreve para o leitor.

Na verdade, Othon Garcia (2000), afirma que escrever é aprender a pensar e, segundo Tricia
Hedge (2005, p. 87) a escrita envolve seis grupos diferentes: o texto ou a escrita pessoal, o texto ou
a escrita público, o texto ou a escrita criativo, o texto ou a escrita social, o texto ou a escrita
pessoal e o texto ou a escrita institucional, conforme mostra o quadro abaixo:

Tipos de escrita
Escrita pessoal Escrita pública Escrita criativa
Anotações Carta Poemas
Diários - Pedido de informação Estories
Lista de compras (investigação) Rimas
Lembretes - Reclamação Drama
Rótulos de embalagens - Solicitação Canções
Receitas Formulários preenchidos Autobiografias
Formulário de inscrição
Escrita social Escrita acadêmica Escrita Institucional
Cartas Anotações de uma leitura Agendas
Convites Anotações de uma palestras Minutas
Notas Indíce Memorando
- de condolência Rsumo Relatórios
- de agradecimento Sinopses Revisões
- de congratulações Revisões Contratos
E-mails Relatório Cartas comerciais
Mensagens telefônicas - De experimentos Notas públicas
Instruções - Workshops Anúncios
- Para amigos - Visita Emails
- Para família Enssaios Posters
Biografias Instruções
Discursos
Formulários
Curriculum vitae
Especificações
Anotações (de médicos e outros
profissionais)
Fonte Ŕ Tricia Hedge. Ressource Books for Teachers: writing. 2nd ed.Oxford, 2005, p.87. Tradução de Edith Santos
Corrêa.

O quadro acima expressa uma manipulação da língua escrita, no sentido de que autor e leitor
tenham qualquer identificação do ponto de vista cultural, político, econômico ou social. Assim, as
anotações escolares feitas no decorrer de uma leitura são diferentes da escrita de um ensaio ou de
um poema, mesmo porque os leitores não serão os mesmos. É de suma importância o autor
conhecer o repertório do seu leitor, a fim de que a ideia daquele que escreve possa atingir o leitor,

241
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mediante a descodificação da mensagem. Diante dessas evidências afirma-se que autor e leitor
devem Ŗvestir a mesma camisaŗ . (Blikstein, 2005: p. 30,89).

No que tange aos trabalhos escritos elaborados por alunos de diversos níveis, os professores
são o público-alvo dessa produção que, na maioria das vezes, se constitui de forma indesejada. O
desconhecimento da estrutura lingüística e do vocabulário se torna obstáculo para professores e
alunos envolvidos com o ensino e aprendizagem do inglês. A falta de identificação do texto com o
repertório do leitor, ou ainda, a inadequação da linguagem com o texto produzido deve ser
observada no âmbito da gradação de formalidade. A escrita, por excelência, suscita critérios e
menos alusão, estabelece níveis de linguagem de acordo como repertório do leitor e a circunstância.

Dessa forma, seria a escrita considerada o resultado do estudo de outras habilidades?


Assim, o professor teria a inferência de que, se o aluno leu um texto em sala de aula, praticou
oralmente o diálogo com um colega, logo é capaz de escrever um pequeno texto sem que haja
qualquer direcionamento de escrita. Simplesmente, o professor diz: ŗ não temos mais tempo, façam
o writing da página seguinte e entreguem na prñxima aulaŗ . É desejável o professor não solicitar
tarefas aos aluno sem que o assunto tenha sido devidamente trabalhado e elucidado na sala de aula.
Segundo Douglas Brown (2000, p.334), a escrita não é uma habilidade natural, o ato de escrever
precisa ser ensinado. Diante de tal situação, parece que a escrita está se tornando uma subabilidade,
dentre as atividades exercidas no âmbito da sala de aula.

No início do século XX, o ensino/aprendizagem do inglês era calcado no estudo da


gramática, do vocabulário seguido de exercícios de tradução extraídos de textos literários. Logo, o
foco desse estudo era atingir o domínio da linguagem escrita. Segundo Bolognini (2007, p. 9) [...]
quem domina a gramática também domina a língua. Daí, a denominação de método de tradução foi
entendida como o ensino da gramática pela gramática que consistia no estudo da língua de forma
isolada e descontextualizada. O método, evidentemente, formalizou o ensino de línguas, mas não
surtiu o efeito desejado, talvez pelo fato de manter a língua materna como um referencial. Diante
de tantas controvérsias acerca da escrita como habilidade principal no ensino do inglês, outras
correntes de pensamento vieram a seguir. Esta continuação não será evidenciada neste estudo.

O que se evidencia neste artigo é o fato de que a escrita não tem lugar de destaque na sala
de aula. Quando se aborda o fato de que alguém se comunica em inglês, parece que a afirmação está
direcionada à oralidade. Por esta razão, penso ser importante repensar a importância da escrita no
âmbito da abordagem comunicativa, não a exemplo do que era feito no método da tradução, mas
como uma forma de estimular o aluno a reconhecer a prática do significado das palavras além do
dicionário. O real e o figurado devem ser vistos como uma forma de construção do conhecimento
lingüístico a partir de um texto escrito em prosa ou de uma poesia.

Para exemplificar essa perspectiva de busca à escrita como uma real habilidade no ensino-
aprendizagem da língua inglesa, vê-se que é necessária a criatividade do professor para estimular e

242
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

impulsionar a emoção do aluno. Quando a lição não é tão agradável, parece que as atividades não
estão adequadas para determinada situação, que exige o uso formal da língua, o que fazer?

Sabemos que uma das atualizações discursivas da linguagem é a sua configuração poética
função poética, quando o fator predominante é a mensagem, com um modo muito peculiar
de mostrar-se. O que primeiramente se mostra, podemos dizer assim, é a realidade da
palavra no ue ela tem de concreto. (Shalhub, 2000, p.32)

Com base nas ideias dos professores Christine Frank e Mario Rinvolucri (2007, p.96,97),
pretende-se demonstrar brevemente algumas atividades possíveis na sala de aula, a partir de um
contexto expresso em material didático para uma determinada aula. Para dar sustentação ao
desenvolvimento da competência linguística, quando se trata de aprender uma língua estrangeira,
vê-se a importância da compreensão da mensagem escrita. Assim, as propostas das atividades A e
B ilustram essa ideia.

Atividade A

1) Peça aos alunos uma lista de palavras que expressem emoção, a exemplo de:

joy (alegria)

jealousy (ciúme),

fear (medo)

surprise (surpresa)

anger (fúria),

reverence (reverência) .

2) Peça-os que trabalhem em grupos de quatro e troquem as palavras escritas e, em seguida,


copiem as palavras de cada colega do grupo.

3) Organize os alunos em pares e peça-os um diálogo (em inglês) enfatizando situações que
envolvam o aspecto sensorial em circunstâncias vivenciadas com emoções dessa natureza.

4) Agora, para consolidar a aprendizagem de compreensão da aula, peça aos alunos que
escrevam um texto sobre a situação que mais lhes envolveu.

5) Ao término da atividade, os textos devem ser trocados entre os alunos a fim de que todos
tenham acesso aos trabalhos escritos.

Atividade B

Ao iniciar sua aula, distribua uma cópia do poema abaixo par cada aluno:
243
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Dreams

Hold fast to dreams


For if dreams
Life is a broken-winged bird
That cannot fly.

Hold fast to dreams


For when dreams go
Life is a barren field
Frozen with snow

(Extrtaído da Obra The Dream Keeper and Other Poems by Langston Hughes, New York,1932 - in FRANK, Christine &
RINVOLUCRI Mario, 2007, p.97)

1) Escreva a palavra dream no quadro e peça aos alunos que escrevam 10 a 15 palavras que
possam ser associadas à palavra em inglês.

2) Organize os alunos em grupos de quatro e peça-os para compartilharem as palavras.

3) Peça aos alunos para devolverem o poema e organize-os em grupos de quatro e peça-os para
discutir quais as palavras da lista estão relacionadas ao conteúdo do poema.

4) Peça aos alunos uma atividade individual: escrever uma estória usando as idéias e as palavra-
chave da discussão.

5) Peça aos alunos que leiam seus textos para a turma.

A proposta mencionada na atividade A sugere a sua prática com alunos de nível iniciantes
até o nível avançado. Enquanto que a atividade B sugere sua utilização com alunos de nível
avançado.

A expressão oral, nos primórdios do ensino de uma língua estrangeira, era considerada a
única forma de comunicação entre os povos, mesmo porque era a única forma de interação e
porque, naquele tempo, havia indícios de que a aprendizagem da escrita iria interferir na oralidade
do inglês, no entanto, trata-se de um processo que envolve a organização do pensamento e, por
conseguinte, norteia a aprendizagem sistemática da língua. Assim, acredita-se que a escrita pode vir
a ser uma consequência da aprendizagem das outras habilidades lingüísticas, permeada de nuances
que devem ser apreendidas.

A título de conclusão, diante do exposto, considerando o fato de que a escrita não deve ser
relegada à subabilidade no ensino-aprendizagem da língua inglesa, pode-se concluir que a
defasagem no desenvolvimento da escrita é notada pela falta de prática no processo sistemático que
envolve a sala de aula. Lá, as atenções estão voltadas para o desempenho da oralidade. Parece que a
grande maioria dos materiais didáticos subestima as atividades de escrita na sala de aula. E durante
o curso, talvez por falta de tempo no decorrer das aulas, por falta de controle no seqüenciamento de
cada atividade, ou por falta planejamento adequado, a escrita é solicitada aos alunos como atividade
extraclasse. E agora? O que fazer para desenvolver estratégias na sala de aula com vistas à
inclusão da escrita? Vê-se que a adequação do material didático às necessidades do aluno, a melhor

244
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

distribuição do tempo em sala de aula, a expansão e a conversão de habilidades são ajustes que só o
professor é capaz de gerenciar. E para os iniciantes da prática pedagógica é desejável maior
comprometimento com a teoria, pois leituras específicas certamente poderão garantir ao docente
maior reflexão e sensibilidade acerca do gerenciamento da sala de aula, no que tange à importância
da escrita no ensino-aprendizagem da língua inglesa.

Referências bibliográficas

BOLOGNINI, Carmen Zink (org.) Discurso e ensino: A língua inglesa na escola. Campinas, SP:
Mercado das Letras, 2007.

BLIKSTEIN, Izidoro. Técnicas de Comunicação Escrita. 21ª ed. São Paulo: Ática, 2006

BROWN, H. Douglas. Teaching by principles: an interactive approach to language pedagogy.


Second edition. Longman. 2001

CHALHUB, Samira. Funções da Linguagem. 11ª. ed. São Paulo: Ática, 2000

DE LIMA, Diogenes Cândido (org.) Ensino e Aprendizagem de língua inglesa: conversa com
especialistas. São Paulo: Parábola Editorial, 2009

FRANK, Christine & RINVOLUCRI Mario. Criative Writing – Activities to help students
produce meaningful texts. Helbling Languages. 2007

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 19ª ed. FGV. Rio de Janeiro: 2000.

HARMER, Jeremy. How to teach English. Longman,1998.

_____________ The practice of English Language Teaching. Fourth Edition.Longman, 2007.

HEDGE, Tricia. Ressource book for teachers: writing. 2nd edition. Oxford University Press. 2005.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. 3a. ed. São Paulo: Cultrix, 1991

UR, Penny. A course in language teaching: practice and theory. 15th edition. Cambridge
University Press,1991.

245
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A IMAGEM DO BRASIL NO POEMA DESCOBRIMENTO, DE SOPHIA ANDRESEN

Edvaldo Manoel dos Santos Almeida (UFAM)

Resumo: Neste texto propõe-se analisar o olhar que Sophia Andresen lança para o Brasil, fazendo
uma analogia com a Carta de Pero Vaz de Caminha, onde ele escreve sobre suas primeiras
impressões na terra recém alcançada. Para isso elege-se o poema Descobrimento, do livro
Geografia, de 1967, situado na seção VI - Brasil ou do outro lado do mar, em que o Oceano
Atlântico é mostrado como um ser mitológico que religa dois povos envolvidos na história das
grandes navegações para propor que o antigo encontro entre ambos seja feito novamente sob a
forma de relação entre iguais, não mais entre colonizador e colonizado.

Palavras-chave: Sophia Andresen, poesia, literatura portuguesa

Abstract

We intend discuss the image that Sophia Andresen elaborates from the natural landscape of
the Brazil by her poem entitled Descobrimento, from the book Geografia published in 1967. In that
poem the Atlantic Ocean is imagined like a mythological entity that joins two nations involved in
the history of the navigation. With this image she proposes that the first encounter between them
must be made again, but now between two equal nations that respect each other. Besides, we
compare the poem Descobrimento with the Carta de Pero Vaz de Caminha, because this text
presents that first encounter.

Keywords: Sophia Andresen, poetry, Portuguese literature

Um descobrimento “muito novo” e “muito velho”

Sophia de Mello Breyner Andresen de Sousa Tavares nasceu no Porto, a 6 de novembro de


1919. Cursou, mas não concluiu, Filologia Clássica na Universidade de Lisboa e, nesta cidade,
casou e criou cinco filhos. Produziu poesia, antologia, teatro, ensaios, traduções, prosa e contos
infantis. Colaborou com poesia e ensaios em diversos jornais e revistas como Cadernos de Poesia,
Távola Redonda, Unicórnio, Árvore e Diário Popular. Traduziu obras de Dante, Shakespeare e
Claudel.

246
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Segundo o poeta e crítico literário português Jorge Sena em Líricas Portuguesas, Ŗa poesia
de Sophia Andresen é de uma segurança fluente e escultural muito concreta, em que o amor da vida
e da exigência moral encontra símbolos marinhos e aéreos, usados com uma força inspiradora
excepcional, para exprimir uma atenta e tensa vivência do sentido trágico da existência e do
convívio humano com as coisas naturaisŗ (1984, p. 305). Desde os poemas de seu primeiro livro,
essa poetisa alia o cuidado com a elaboração do texto com a preocupação moral, desejando mostrar
que, assim como o poema deve ser escrito com atenção para ser bem realizado, também as ações
devem ser feitas com atenção para que a vida seja bem vivida, isto é, experimentada de modo justo.

Quando faleceu em 2 de julho de 2004, já havia recebido vários prêmios de literatura como
consagração de sua obra, dentre os quais o Grande Prêmio de Poesia, em 1964, concedido pela
Sociedade Portuguesa de Escritores, pela publicação de Livro Sexto, de 1962, e o Prêmio Camões,
em 1999, concedido pelo Instituto Camões, pela publicação da antologia de poemas intitulada Obra
Poética I, Obra Poética II e Obra Poética III.

Dentre os quatorze livros de poemas foi escolhido o chamado Geografia, publicado em


1967, onde está o texto que se pretende analisar neste artigo. Formado por oito sessões que revelam
os lugares por onde a poetisa imagina viajar, seguindo pelas regiões mediterrânicas e atlânticas, até
alcançar o lugar definitivo, o poema. Nesta viagem, ela se despoja das idéias e pré-conceitos que
integram sua cultura para se relacionar com a cultura diferente. Na seção I, intitulada Igrina, a
poetisa mostra-se em contato com a natureza de Portugal, que ela diz ser seu Ŗcentroŗ , isto é, o
lugar que o identifica. Na seção II, intitulada Procelária, ela se encontra no espaço da dor, mas
também da resistência, pois nele a opressão impede a liberdade e a alegria de viver, embora, mesmo
assim, a poetisa persista em procurar modos de transformar essa situação. Na seção III, intitulada A
noite e a casa, a poetisa revela seu espaço interior, a partir do qual ela escreve ou encontra
inspiração para dizer que é preciso cada pessoa mudar o que a impede de bem viver. Na seção IV,
intitulada Dual, a poetisa mostra o jogo de forças do mundo exterior com o seu mundo interior,
formando um oxímoro, e é com a imagem de alguém dual, isto é, que busca equilibrar as forças
antagônicas presentes nele próprio, que ele escreve o poema. Na seção V, intitulada Mediterrâneo, a
poetisa visita o mundo antigo, a Grécia, que, segundo ela, é belo e justo. Na seção VI, intitulada
Brasil ou o outro lado do mar, estão os poemas Descobrimento, Manuel Bandeira, Brasília e
Poema de Helena Lanari, que revelam a maneira como Sophia Andresen considera o Brasil: sua
beleza natural, sua arte e modo de falar, sem se descuidar do trabalho com a linguagem poética. Na
seção VII, intitulada No poema, a poetisa escreve uma espécie de geografia poética, realizando um
exercício metalingüístico com a poesia. Na seção VIII, intitulada Arte poética, dois poemas em
prosa reiteram o experimento metalinguístico que foi referido anteriormente. O livro termina
quando a poetisa chega a esse lugar da poesia.

O título da seção, Brasil ou o outro lado do mar, remete-nos ao olhar do navegador europeu
para a América, especificamente ao período das descobertas marítimas e em que o homem

247
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

português chega às praias brasileiras. O primeiro poema dessa seção, nomeado Descobrimento,
lembra o primeiro encontro do navegante lusitano com a terra e o homem. Novamente, como na
Carta de Pero Vaz de Caminha, o poeta deslumbra-se com a beleza natural e com os habitantes e
mostra que estes são abertos ao conhecimento do outro. O segundo poema, chamado Manuel
Bandeira, ressalta a arte brasileira por meio da obra do poeta pernambucano, sua naturalidade, e às
vezes irreverência, ao empregar a palavra do cotidiano e transformá-la em poesia. O terceiro poema,
Brasília, contém a louvação dessa cidade brasileira, inaugurada na década de cinqüenta, e, portanto,
muito recente à época em que Sophia Andresen a visitou, e que, para a poetisa, se assemelha à
cidade de Atenas quanto à organização administrativa e à elaboração arquitetônica. Por fim, o
quarto poema, chamado Poema de Helena Lanari, sendo esta uma brasileira que a poetisa conhece
durante sua vinda ao Brasil e que mostra a beleza natural do país a Sophia Andresen. Esta poetisa
encanta-se com o modo de pronunciar as palavras e as frases em língua portuguesa falada no Brasil,
destacando a fala de uma carioca para colocá-la como o modelo dessa fala quanto à entonação e
ritmo. Em todos os quatro poemas, o poeta escreve sobre sua admiração pelo Brasil.

Transcreve-se a seguir o poema que se vai analisar:

DESCOBRIMENTO

Um oceano de músculos verdes

Um ídolo de mitos braços como um polvo

Caos incorruptível que irrompe

E tumulto ordenado

Em redor dos navios esticados

Atravessamos fileiras de cavalos

Que sacudiam suas crinas nos alísios

O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo

Para mostrar as praias

E um povo

De homens recém-criados ainda cor de barro

Ainda nus ainda deslumbrados

(Andresen, 2004, p. 77)

Neste poema o Oceano Atlântico aparece personificado numa entidade mitológica com
músculos verdes, cor que representa o equilíbrio universal entre o homem e a natureza. A partir
desse equilíbrio, o homem encontra forças e tem esperanças para continuar a lutar por novas

248
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

conquistas e, finalmente, perpetuá-las. Os muitos braços e a comparação do oceano com um polvo


nos revelam a quantidade de ligações que suas águas fazem, chegando a lugares mais longínquos e
diferenciados como a Europa, a Ásia e as Américas. Essas ligações levam-no a ser olhado de modo
privilegiado pelos portugueses e demais navegantes europeus, que passam a cultuá-lo como um
deus, isto é, um ídolo. O Ŗcaos incorruptível que irrompe e o tumulto ordenadoŗ geram os
elementos de forças contrárias que atuam em grande profusão e dos quais surge o cosmo. O oceano
possui essa energia em tensão, pois suas águas estão em equilíbrio dinâmico, ora calmas, ora
revoltas. O oceano também sugere a imagem de Ŗum bailarino contorcido em redor dos navios
esticadosŗ, com movimentos sincrônicos, movendo as águas num vai-vem que parece um balé de
pássaros entrecortando as nuvens. A poetisa constrói a imagem de quem vê o mar de cima e tem a
impressão de estar vendo fileiras de cavalos em movimentos a atravessar o oceano, pois à medida
que galopam, suas crinas balançam tais quais as ondas do mar que são levadas pelas forças dos
ventos alísios, impulsionando o vento dos trópicos para o equador. Nota-se assim toda a força de
liberdade, velocidade, imaginação e imortalidade representada na figura do cavalo, segundo informa
Chevalier e Gheerbrant. Para a poetisa, de repente, o mar torna-se Ŗmuito novoŗ , sugerindo que a
cada travessia ou viagem o homem se depara com novas descobertas, novas visões, novas
perspectivas. No entanto, o novo que nela desperta fascínio e surpresa, é Ŗmuito velhoŗ, pois a
poetisa lembra-se de que o povo luso já desvendara esse mistério durante as Grandes Navegações
no século XV realizadas por Vasco da Gama, que se lançara ao mar em busca de novos mundos e
novas riquezas. Logo, o Ŗmuito novoŗ passa a Ŗmuito velhoŗ. Mais adiante, a poetisa alcança as
praias - o litoral, no qual as caravelas de Pedro Álvaro Cabral aportaram em 1500 e vieram a
descobrir novas terras e assim reforçar as conquistas e as glórias dos navegantes portugueses. Os
Ŗhomens recém-criados, ainda cor de barro, ainda nus, ainda deslumbradosŗ significam os povos do
Novo Mundo Ŕ os Tupiniquins Ŕ ramo da etnia tupi-guarani com a qual os navegantes lusos
mantiveram contato inicial. Homens simples, puros, avermelhados e despidos de excessos de
racionalidade do Velho Mundo, que viviam sem as ambições e os excessos daqueles. Passados
todos esses acontecimentos, a poetisa vem, neste poema Descobrimento, propor um novo encontro
entre Portugal e Brasil, todavia sem aquela antiga relação de dependência, ou seja, entre
colonizador e colonizado, mas sim, entre dois países de opiniões próprias, de legados culturais
diferentes, os quais facilitam a interatividade entre ambos, fazendo prevalecer o respeito às
diferenças.

Se nesse poema Sophia Andresen constrói a imagem do Oceano Atlântico, mar que banha o
litoral brasileiro, como um ser mitológico, cheio de mistérios e fascinações e nos sugere o alcance
que as águas desse oceano têm, chegando até a Europa, Ásia e as Américas, na Carta de Caminha
sobre o descobrimento do Brasil, este oceano é apresentado de forma mais direta. Entretanto, ele é
mencionado pelas águas volumosas, ilhas, praias e o extenso litoral que banha. Esse caráter
narrativo e descritivo da mencionada Carta é característico dos relatórios burocráticos ou científicos
realizados no século XVI pelos prosadores portugueses. Neles, segundo informam Antonio Carlos

249
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Olivieri e Marco Antonio Villa (1999, p. 8), a aventura e a fantasia se misturam com as informações
sobre a nova terra e os acontecimentos locais. E a partir daí, o escrivão da armada de Pedro Álvares
Cabral começa a adentrar as terras para eles desconhecidas e a descrever tudo o que lhe chama
atenção, relatando, detalhadamente, a D. Manuel, rei de Portugal, em ordem cronológica, desde o
começo da viagem, em 9 de março, até o momento de deixar o lugar que chamaram de Terra de
Santa Cruz, em 2 de maio de 1500. Tais narrativas dão notícia do descobrimento da nova terra e do
primeiro contato com os povos do Novo Mundo, como justifica seu autor a seguir:

Posto que o capitão-mor [Pedro Álvares Cabral] desta vossa frota e assim os outros capitães
escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento dessa vossa terra nova, que se ora nesta
navegação achou, não deixarei também de dar disso conta a Vossa Alteza, assim como eu
melhor puder, ainda que para o bem contar e falar o saiba que todos fazer. (2002, p. 31).

O antagonismo existente entre o poema Descobrimento, de Sophia de Mello Breyner


Andresen e a Carta de Pero Vaz de Caminha começa a ser observado depois da introdução deste
segundo texto, que tem por objetivo conhecer o Brasil através de uma visão mercantilista, ou seja,
de um pretenso colonizador com alguém que este quer colonizar. Em contrapartida, no texto da
poetisa o objetivo é recomeçar a relação entre dois povos que já se conhecem, mas que agora deve
se dar entre iguais, sem preconceitos, desejando que prevaleça o respeito mútuo, principalmente,
pelo respeito às diferenças.

Então, a Carta de Caminha revela um estilo claro, mas não é, simplesmente, um relatório. É
mais que isso, pois Caminha não se comporta como um simples burocrata. Eis o que pensa o
professor José Aderaldo Castelo a respeito dessa carta:

É a primeira expressão do descobrimento e ao mesmo tempo dos equívocos e intenções do


colonizador português, através de uma linguagem fluente e poética, com certo senso de
humor, embora um tanto grave, de mistura com um ou outro trocadilho malicioso. É o
ponto de partida da exaltação e valorização da terra aos olhos do colonizador, a quem são
apontadas suas vantagens e possíveis riquezas, ao mesmo tempo que se pretende colocar
em primeiro plano o ideal português da propagação da cristandade, o que encontraria um
campo aberto no elemento indígena (Apud Olivieri e Villa, 1999, p. 18)

Assim essa cristandade é ressaltada por Caminha:

Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-
á nela tudo por bem das águas que tem. Mas o melhor fruto que nela se pode fazer me
parece que será salvar esta gente. E esta deva ser a principal semente que Vossa Alteza em
ela deve lançar (2002, p.34).

Se no poema de Sophia Andresen, o Oceano Atlântico é visto como um mar Řmuito novoř,
pois fora a primeira vez que ela o atravessara com o intuito de encontrar o povo brasileiro e, assim,
manter um relacionamento entre iguais, ou seja, de respeito e interatividade, na Carta de Caminha,

250
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

esse encontro tem outra visão. Os portugueses chegam à Ilha de Santa Cruz com o objetivo de
encontrar as desejadas minas de ouro, o que está de acordo com a política do mercantilismo, prática
econômica que vigora na Europa de meados do século XV a meados do século XVIII, segundo
Gilberto Cotrim. Essas práticas econômicas visam ao fortalecimento do Estado e da burguesia. Por
isso, o encontro que narra Caminha se dá com o propósito de estabelecer o poder sob os povos da
América, ou seja, do homem ocidental sobre o homem do Novo Mundo, entre colonizador e o
homem que foi considerado o colonizado, causando um massacre cultural para o nativo. E logo se
inicia o processo de colonização do lugar por parte dos portugueses no século XVI, marcado pelo
confronto com os índios, pela posse da terra, bem como pela luta contra os franceses e os espanhóis,
que também exigiam o direito a explorá-la comercialmente. O processo continua com o
estabelecimento definitivo de povoações e estruturas econômicas (agricultura e comércio) na
Colônia, além de um sistema político-administrativo em vigor.

No poema Descobrimento, a poetisa imagina: Ŗhomens recém-nascidos, ainda cor de barro,


ainda nus, ainda deslumbrados.ŗ São os povos do Novo Mundo, os indígenas, povos que
representavam Ŗde 2 a 5 milhões de índios em nossa terra, número superior a toda população
existente em Portugalŗ (Cotrim, 1997, p.208). Homens de cor avermelhada, que andavam nus e não
tinham vergonha de mostrar o corpo, pois tinham outro modo de viver. Segundo Gilberto Cotrim
eles Ŗnão acumulavam riquezas pessoais. Quase todos os bens eram de uso comum dos membros da
tribo.ŗ Na Carta de Caminha, esses homens foram citados por meio de um certo preconceito
europeu, pois o hábito de andar nu do indígena da Ilha de Santa Cruz chocava-os, afinal, era da
cultura européia considerar a nudez pública imoral e pecaminosa. Eis como Caminha descreve os
indígenas:

A feição deles é serem pardos, maneira d`avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem
feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem
mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o
rosto. (2002, p. 31)

Sophia Andresen, porém, lança seu olhar para o Brasil de forma atenta e deslumbrada, olhar
de quem soube, por meio da história, notícia da existência das praias, dos montes e dos nativos, que
confirmaram a diversidade e riqueza cultural que o descobrimento encerra. Já Pero Vaz de
Caminha, na Carta, nossa certidão de nascimento, perante a literatura brasileira, segundo o
professor Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira (1994, p. 14), lança seu olhar
observador para os habitantes da Ilha de Santa Cruz com o objetivo de investigar, de forma
ambiciosa, a nova terra. Complementando a observação de Bosi, o poeta amazonense Max
Carpentier escreve que essa Carta é Ŗtambém um pouco a constituição do futuroŗ dos povos que
vivem no Brasil daquela época (2000, p. iii). Além disso, pode-se lembrar que o Brasil não foi
descoberto por Pedro Álvares Cabral como se costuma ler em alguns livros de História, pois,
quando ocorreu a chegada dos navegantes portugueses, não ocorreu propriamente o descobrimento,
tendo em vista que o atual território brasileiro já era habitado antes dessa chegada por índios, entre
251
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

um a cinco milhões no Brasil de 1500. Logo, foram os antepassados distantes desses indígenas que,
primeiramente, descobriram o Brasil. Por outro lado, se a chegada da armada de Pedro Álvares
Cabral não tem o sentido absoluto de um descobrimento, nem por isso o fato perde importância e
significado. O 22 de abril de 1500 representa para o povo brasileiro a data oficial da posse do
território pelos portugueses e o momento de inclusão do nosso país na história. Pero Vaz de
Caminha, ao descrever a nova terra, assim o fez:

Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem nenhuma cousa de metal, nem de
ferro; nem lho vimos. A terra, porém, em si, é de muito bons ares, assim frios e temperados
como os dřEntre Doiro e Minho, porque neste tempo dřagora assim os achamos como os de
lá. (2002, p.34)

Comparando o poema de Sophia Andresen com a Carta de Pero Vaz de Caminha, entende-
se que há a proposta da poetisa para refazer aquele primeiro encontro sob condições renovadas, isto
é, em que os participantes do encontro se tratem de modo respeitoso, embora sejam culturalmente
diferentes.

A referida poetisa veio ao Brasil a convite do governo brasileiro para palestrar em


instituições como a Academia Brasileira de Letras e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Sua passagem por algumas cidades do Brasil, entre os meses de maio e junho de 1966, deu-
se quando as transformações socioeconômicas, administrativas e políticas no país estavam em
andamento, no caso, o processo de industrialização e a transferência da capital do Brasil, que era o
Rio de Janeiro para Brasília. Na ocasião, participou de reuniões com escritores brasileiros, tais
como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, bem como com a professora, crítica
literária e ensaísta Celonice Berardinelli. Tempos depois, a poetisa mostrou, por meio de alguns
poemas do livro Geografia, seu modo de pensar sobre esse país, um olhar encantado com a terra,
com as habilidades artísticas e com a convivência de homens que resultaram da miscigenação e do
sincretismo.

Referências bibliográficas

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Geografia. Edição definitiva. Editora Caminho. 2004.

CAMINHA, Pero Vaz de. Carta. In: História e antologia da Literatura Portuguesa. Século XVI, n.
23, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

CASTELO, José Aderaldo. In: Pero Vaz de Caminha. A Certidão de Nascimento do País. Cronistas
do Descobrimento. Série Bom Livro. São Paulo: Editora Ática, 1999.

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes,


gestos, formas, figuras, cores, números); tradução Vera da Costa e Silva. Ŕ 17 ed. Ŕ Rio de Janeiro:
José Olympio, 2002.

COTRIM, Gilberto. História Global. Brasil e Geral. Editora Saraiva. 1 ed. Volume Único. São
Paulo. 1997.

252
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 42 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

LETRAS, Academia Amazonense de. A carta de Pero Vaz de Caminha. Edição Comemorativa dos
500 Anos do Descobrimento do Brasil. Manaus, 2000.

OLIVIERI, Antonio Carlos e VILLA, Marco Antonio. Cronistas do Descobrimento. Série Bom
Livro. São Paulo: Editora Ática, 1999.

SENA, Jorge. Líricas Portuguesas. Volume I. Lisboa: Edições 70, 1984.

SARAIVA, Antônio José; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Porto
Editora. 17 ed. 2001.

253
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

HISTÓRIA E CULTURA NO ROMANCE ŖA SELVAŗ , DE FERREIRA DE CASTRO


Elaine Pastana Valério1 (UFPA)

Resumo: Este artigo tem por finalidade discutir sobre o tema História e Cultura presentes na obra de Ferreira
de Castro, intitulada ŖA Selvaŗ . Assim sendo, busco analisar tais temáticas, utilizando apoio teñrico e
fazendo as devidas correspondências com a obra a ser analisada. História e Cultura são aspectos importantes
e que me instigaram no momento em que tive contato com o romance, por se tratar de uma obra que
represente a realidade e a cultura do povo amazônico.

Palavras-chave: História, Cultura, Memória, Tempo.

Introdução

O romance ŖA Selvaŗ , de Ferreira de Castro, é uma obra que busca refletir sobre a realidade
sócio-cultural da selva amazônica, assim como o choque entre a realidade local e a realidade do
estrangeiro, pois Alberto, personagem central da narrativa, é um português nato que se transfere
para a Amazônia em busca de emprego, no entanto as coisas em Belém ficam cada vez mais difíceis
devido à decadência da borracha, por isso, Macedo, tio do rapaz, tem a idéia de mandá-lo para os
seringais com a promessa e ilusão de melhoria de vida, como vemos no trecho: ŖE não te aborreças,
pois aquilo, para quem tem sorte e juízo são terras onde se enriquece em pouco tempoŗ . (A Selva, p.
9).
História e cultura são temáticas que se encontram na narrativa, uma vez que: 1) há
claramente a distinção de classes sociais entre seringueiros e seringalistas; 2) há a oposição
presente/passado, sendo que o presente é o da narrativa e o passado é o histórico, aquele que está
ligado a um tempo; 3) a cultura é apresentada a partir de dois grupos sociais: a minoritária,
representada pelos cearenses que buscavam nos seringais uma condição melhor de vida Ŕ
geralmente eram pessoas sem muita instrução escolar Ŕ, e a dominante, representada pelos donos
dos seringais, na figura de Juca Tristão. No decorrer deste trabalho, defenderei a idéia de que não
existe uma única cultura, uma vez que ela está associada a um tempo e a um espaço em particular,
dessa forma, todos possuem cultura, seja ela erudita ou popular.
Sendo assim, a cultura está inserida na história e por isso elas são temáticas que se inter-
relacionam no romance a ser analisado. Ambas possuem suas particularidades, como serão vistas no
decorrer deste artigo, porém em certo momento elas se encontram e se complementam entre si, uma
auxiliando no progresso e estudo da outra.
Este trabalho será dividido em duas partes: na primeira retratarei sobre a História e na
segunda, sobre a Cultura, tendo apoio em textos teóricos que serão citados no corpo do texto, bem
como a utilização do romance ŖA Selvaŗ , para sustentar e justificar a idéia aqui defendida.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação do curso de Letras, na área de Estudos Literários, da Universidade Federal
do Pará e bolsista da CAPES.

254
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Assim, a análise do romance aparecerá no corpo do texto, à medida que a teoria for sendo
fundamentada.

1. Elementos da História no romance A Selva:

Jacques Le Goff (1996, p. 18) propõe três conceitos diferentes para falar sobre a História: no
primeiro, ele diz que ela é as ŖŘações realizadas pelos homensř (Herñdoto) que se esforça por se
constituir em ciência histñricaŗ ; no segundo conceito, ele afirma que Ŗo objeto de procura é o que os
homens realizaramŗ e no terceiro, diz que a histñria também pode ter o sentido de narração: ŖUma
histñria é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na Ŗrealidade histñricaŗ ou puramente
imaginária Ŕ pode ser uma narração histórica ou uma fábulaŗ .
Tais aspectos podem ser encontrados no romance ŖA Selvaŗ , de Ferreira de Castro, pois a
relação entre os homens da sociedade seringueira faz gerar uma série de acontecimentos, os quais
permitem que eles sejam vivenciados e rememorados pelas personagens. Essa lembrança se dá no
momento da narração de alguns episódios acontecidos com elas, uma vez que a história possui
relação com o tempo. Nesse ponto, surge um instrumento muito importante para marcar a
cronologia: o calendário, pois é ele que marca Ŗo quadro temporal do funcionamento da sociedadeŗ
(LE GOFF, 1996, p. 12) e funciona como um acelerador histórico, como afirma Walter Benjamin
(1994, p. 230): ŖAssim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relñgios. Eles
são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem
anos, o mínimo vestígioŗ .
Essa relação entre a história vivida e o tempo, faz surgir a terminologia de tempo histórico,
que está intimamente ligado ao tempo da memória. Isso é observado no romance em estudo, pois a
narrativa caminha à proporção que as personagens vivenciam a realidade na selva amazônica e
relembram episódios acontecidos em um passado recente ou longínquo, como se nota no trecho
abaixo:
Junto duma sapopema, Firmino deteve-se para anunciar:
- Foi aqui que os índios mataram o Feliciano... Esconderam-se aí dentro e quando o moço
passava...
[...]
- Logo lhe mostro, lá na barraca, as frechas que tiramos do corpo de Feliciano. Os bichos
meteram-se aí e quando ele passava deram um assobio... Feliciano já tinha visto, na outra
semana, uma árvore retorcida, que é o sinal que os parintintins deixam quando querem
espantar seringueiro. Às vezes também metem uma frecha na estrada e cobrem-na com
folha seca, que é para nós nos espetarmos e ficarmos envenenados. Feliciano decerto se
voltou para eles, mas não teve tempo de dar ao gatilho. Os parintintins lhe mandaram tanta
frecha que, quando eu vim ver, parecia que se havia depenado aqui uma arara. Depois lhe
cortaram a cabeça e a levaram. (A Selva, p. 77).

No trecho acima referido, Firmino relembra o episódio da morte de seu companheiro de


trabalho, Feliciano, e narra a Alberto. Nele, há a narração de um momento vivido pela personagem,
o qual está inserido em um tempo específico, usando a lembrança como artifício para o ato de
contar. Assim, pode-se dizer que nesse fragmento há um exemplo do tempo histórico defendido por
Le Goff.

255
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ao utilizar a memória para se narrar um fato, a personagem passa a relacionar o passado


com o presente, pois essa oposição Ŗé essencial na aquisição da consciência do tempoŗ (LE GOFF,
1996, p. 13). Dessa forma, o narrador do fato se apropria do passado para justificar certas atitudes
do presente. Walter Benjamin (1994, p. 223) assim afirma: ŖO cronista que narra os
acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que
nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a histñriaŗ . No fragmento citado, a
personagem utiliza o episódio da morte do colega para se proteger dos índios parintintins, que
perseguiam os seringueiros, no entanto há uma justificativa para tal perseguição:

- Porque os homens civilizados tomaram conta da terra deles. Isto aqui, antes de ser dos
bolivianos que deixaram o seringal a seu Juca, era dos parintintins. Eu estou aqui até pagar
a minha conta; depois, vou logo a correr para o Rio Machado. Nunca um homem está
descansado... Eu não tenho medo, mas os parintintins são traiçoeiros... (A Selva, p. 79).

O passado existe para esclarecer o presente. Os eventos atuais não acontecem


aleatoriamente, soltos. Eles sempre estão ligados a um fato acontecido anteriormente, daí a
existência da rememoração; e fazer essa articulação é algo necessário, como afirma Benjamin
(1994, p. 224): ŖArticular historicamente o passado não significa conhecê-lo Ŗcomo ele de fato foiŗ .
Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigoŗ .

O estudo da História permite adentrar em outra questão: a luta entre as classes, pois de um
lado encontra-se a classe dominante Ŕ aquela que é a proprietária, a qual defende seus interesses e
está em busca de melhores condições para si própria, nem que para isso ela escravize a classe
minoritária Ŕ de outro lado tem-se a classe combatente e oprimida que, em busca de melhores
salários, submete-se e se deixa iludir por promessas de um futuro melhor e de um possível
enriquecimento. NřA Selva essa luta de classes é claramente percebida, conforme notamos no trecho
abaixo:
- Que têm eles? Ah, seu moço, bem se vê que você é mesmo Ŗbraboŗ! Está ouvindo,
Agostinho? Que têm eles se nós não trabalhamos? Se nós não trabalhamos, seu Juca ganha
menos, porque é borracha que deixa de vender e demora mais a receber a conta que nós lhe
devemos. (p. 89).

Aqui se percebe a relação de poder, pois o burguês se apropria da força de trabalho para
gerar mais lucro: se o trabalhador não produz, o proprietário não lucra e isso é Ŗprejuízoŗ para ele.
A idéia de progresso perpassa nesse contexto por também estar associado ao tempo, contudo ele não
é homogêneo, como afirma Benjamin (1994, p. 229): ŖA histñria é objeto de uma construção cujo
lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de Řagorasřŗ . Com isso, nota-se
que a História é construída ao longo do processo evolutivo do passado, o qual é transferido para o
presente através da rememoração.
Em suma, a História tem compromisso com o passado, não com aquele individual, mas sim
com o Ŗtempo antigoŗ , pois os hábitos que acontecem no presente possuem explicações em fatos
anteriores. Voltemos ao trecho que narra o motivo dos índios parintintins perseguirem os homens
civilizados: isso só acontece porque algum tempo atrás, esses homens se apropriaram das terras
256
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

desses índios e como uma espécie de Ŗvingançaŗ eles passaram a perseguir todo e qualquer branco a
partir daquele episódio. Os fatos que ocorreram no passado podem ser (re)vividos através da
memória, a qual não reconstrói o tempo, mas também não o anula. Segundo Jean Pierre Vernant
(1990, p. 112):
O passado revelado desse modo é muito mais que o antecedente do presente: é a sua fonte.
Ascendendo até ele, a rememoração não procura situar os acontecimentos em um quadro
temporal, mas atingir o fundo do ser, descobrir o original, a realidade primordial da qual
saiu o cosmo e que permite compreender o devir em seu conjunto.

Portanto a relação entre presente/passado é percebida no romance ŖA Selvaŗ , pois a todo o


momento as personagens, seja ela na figura de Alberto, seja ela na figura de um dos seringueiros,
narram episódios e tentam justificar algumas ações do momento atual através de fatos já ocorridos.
Assim nota-se que Ŗo passado sñ se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no
momento em que é reconhecidoŗ ( BENJAMIN, 1994, p. 224).
A memória é um dos elementos importantes que ajudam a entender o conceito de cultura:
ŖCultura é informação, codificação, transmissão, memória, e conclui, de forma a não deixar lapsos:
Somente aquilo que foi traduzido num sistema de signos pode vir a ser patrimônio da memóriaŗ .
(FERREIRA, 2003, P. 74-75).

2. Cultura: Oscilação entre o Erudito e o Popular

A cultura nada mais é que as Ŗmúltiplas interações e oposições no tempo e no espaçoŗ


(BOSI, 1987, p.7). Dessa forma, não existe um único conceito, daí ela ser dividida em: cultura
erudita e cultura popular. A primeira refere-se àquela da classe social letrada, e por isso, dominante.
A segunda diz respeito à classe iletrada, Ŗque vive abaixo do limiar da escritaŗ (Idem: 10), porém
não se pode dizer que uma é superior à outra, pois ambas possuem um modo peculiar de existir,
inseridos numa temporalidade específica. Assim afirma Alfredo Bosi (1987, p. 10-11):

(...). Embora tanto uma como a outra estejam rodeadas e permeadas pelos meios maciços de
comunicação, ambas guardam certa capacidade de resistência, intencional ou não.
Resistência pressupõe, aqui, diferença: história interna específica; ritmo próprio; modo
peculiar de existir no tempo histórico e no tempo subjetivo.
A força das oposições ressalta quando se recorre ao critério da temporalidade. Nem a
cultura popular tradicional nem a cultura erudita moderna constroem-se a partir de um
regime de produção em série com linhas de montagem e horários regulados
mecanicamente.

Em ŖA Selvaŗ , percebe-se o choque entre as duas culturas. A erudita está representada pela
figura de Juca Tristão e Alberto, pois ambos, embora o primeiro seja o proprietário dos seringais e o
outro esteja na função de seringueiro, possuem um nível cultural elevado, em relação aos demais.
Juca Tristão se apropria de sua instrução para explorar os trabalhadores, conforme o seguinte
fragmento do texto:
Estavam ali as facturas, vendendo a Juca Tristão, por cinco, o que este entregava aos
seringueiros por quinze e até por vinte. Estavam as notas da borracha, que se comprava ali
por dois e que se vendia por cinco e seis na praça de Manaus.
Alberto sentia curiosidade dolorosa ao examinar toda a papelada, em confronto de
algarismos e inventário ao tempo que cada um trabalhava a mais em proveito de seu amo.
Depois, chamado pela disparidade dos destinos, quedava-se absorto sobre as cifras da
257
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mesada que Juca enviava à mulher Ŕ três contos que significavam mais do que o preço dos
muitos anos que um seringueiro necessitava para o seu resgate. Somava ainda, no devaneio,
as viagens do patrão a Belém, sempre marcadas por grandes quantias recebidas da Ŗcasa
aviadoraŗ Ŕ as maiores que se viam em todos os lançamentos. (p. 158).

Em relação a Alberto, nota-se uma oscilação entre classes e porque não de cultura? Haja
visto que Ŗo sentido de cultura tradicionalmente, sempre esteve relacionado a grupos/classes
minoritárias e dominantes, adquirindo seus adeptos/indivíduos honras e privilégios superiores,
constituindo-se uma eliteŗ (FERNANDES, 1998, P. 3), porém sabe-se que este pensamento é tolo,
pois a personagem citada anteriormente possui certo grau de escolaridade, mas pertence à classe
minoritária, pois ele freqüentou a universidade, iniciou o curso de Direito, porém não o concluiu.
Foi para Belém porque fora anistiado e por isso estava em busca de emprego. Partiu para o seringal
e ao chegar lá, sua adaptação foi meio complicada, justamente devido ao choque cultural que
sofrera. Ele fica sob o comando de Firmino, o qual tem a missão de lhe ensinar a retirar o látex da
seringueira, no entanto Alberto não consegue realizar com perfeição, o que gera certa impaciência
em Juca Tristão e principalmente em Caetano, que era responsável por examinar os seringais,
conforme se observa no trecho abaixo:
A primeira seringueira, examinada devagar e sob o desejo de encontrar acção daninha, só
acusou inexperiência e falta de segurança na mão que lhe extraía a seiva. A quinta, porém,
iluminou de triunfo os olhos do examinador. O machadinho que a ferira não tinha firmeza:
resvalara aqui, torcera acolá, fazendo saltar nacos de casca e pondo a nu a carne viva. E dali
em diante, árvore sim, árvore não, agora quatro a seguir, depois mais três, mais duas e mais
vinte, o drama intensificava-se, fazendo sorrir, de plena satisfação a Caetano. (A Selva, p.
104).

Este fato acontece porque era a primeira vez que Alberto tinha um contato maior com a
floresta amazônica então, ao mesmo tempo em que ela se mostrava cheia de encantos e lhe dava
esperança de dias melhores, ela era misteriosa, cheia de segredos, pois somente quem já possuía um
contato há muito mais tempo era capaz de perceber. E é justamente dessa forma que a cultura é
produzida dentro de uma determinada sociedade, como afirma o professor José Guilherme
Fernandes, no artigo ŖNarrativa e Cultura: Do Erudito e do Popularŗ (1999, p. 109):
Cultura, assim é o conhecimento depreendido do trabalho físico e psicológico
realizado pelo homem em dado espaço e com seus pares, mas que, pela transitoriedade do
tempo e pela multiplicidade dos espaços, é transformado e fragmentado, não obstante
guardar o passado na memória e no culto, para que exista a garantia da unidade entre os
indivíduos, a fim de realizarem o processo dialético da existência.

O próprio Firmino reconhece que a selva não era lugar para Alberto estar, devido ao nível de
instrução escolar do rapaz, conforme se observa abaixo:
- Eu tenho pena de seu Alberto. O seringal não é para um homem com a sua pele. Você
veio para enriquecer?
- Não, não! Ŕ protestou Alberto. E sentiu-se humilhado, assim de calça e de camisa, sem
gravata, sem colarinho, sem casaco e sem colete Ŕ inferior, pelo desagradável do conjunto,
à própria andaina rudimentar de Firmino. (A Selva, p. 84).

Observando que Alberto não progredia na retirada do látex, Juca Tristão deu-lhe um cargo
em seu escritório:
Com o olhar, Juca examinou Alberto, de alto a baixo, e, depois, interrogou-o:
- Que habilitações tem você?
- Habilitações...

258
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

- Que sabe de comércio?


- Eu estive a estudar Direito e tenho quase concluído o meu curso... Ŕ respondeu Alberto,
radiante pela declaração que julgou aniquiladora de novas humilhações.
Mas Juca cortou-lhe a ilusão:
- Não é de doutor que se precisa aqui. Sabe você fazer contas-correntes?
[...]
- Está bem. Você vem cá para o barracão, já que não dá nada a cortar seringa. Depois se vê
quanto pode ganhar, Traga as suas coisas lá do centro e se apresente amanhã. Ouviu? (A
Selva, PP. 140-141).

Segundo a professora Maria Ignez Novais Ayala, no artigo ŖCultura Popular e


Temporalidadeŗ (2002, p. 1) afirma que: Ŗa cultura popular tem como traço fundamental a
necessidade, pois é regida por uma lógica da necessidade, em que solidariedade, auxílio mútuo,
vida comunitária são importantes para a existência de suas diferentes manifestaçõesŗ . Assim sendo,
a cultura possui uma relação com o tempo, principalmente aquele ligado ao trabalho. Como este
artigo trata sobre a vida na selva amazônica, o homem fica muito tempo sozinho, solitário,
principalmente na época das cheias:
[...]. Nos braços do Purús, do Juruá, do Solimões e dos muitos mais de que só a corografia
ou os barcos que lhes tomavam o título podiam dar a vasta nomenclatura, a terra da fortuna
passa metade do ano isolada do Mundo. [...]. (A Selva, p. 179).

Dessa forma, o seringueiro também fica isolado do mundo, no entanto também tem sua
prñpria cultura. No romance ŖA Selvaŗ , existem alguns trechos que remontam para a cultura
popular local, tais como: a festa de São João, o Bio-Bumbá, dentre outros. Veja:
[...]. Comemorava-se o santo, com festança pitoresca, entre todos os exilados. Nessa noite
de tradição, eles saíam do mais espesso da brenha e vinham para a margem do rio folgar
com o boi-bumbá. A caricatura do bicho tinha esqueleto de madeira e panos vistosos
figuravam o coiro. Ao longo do dorso e entre os chifres aproveitados de boi real que
morrera ou fora morto, prendiam-se nacos de espelho e bugigangas que tivessem cor e
brilho. E era tanto mais famoso e discutido o boi-bumbá quanto mais se revestisse de
quinquilharia. À mesma chita que o cobria, chegava, em saia pregueada, até o chão, a
esconder a ausência das quatro patas. Lá dentro ocultava-se, adaptando a armação às costas,
um dos folgazões. À sua frente, não menos vistosas e adornadas, outras duas personagens
completavam a pantomina. Eram o ŗP ai Franciscoŗ e a ŖMãe Catarinaŗ , bons cearenses, um
que envelhecia e outro que se vestia de mulher para a circunstância Ŕ e ambos incansáveis
como o parceiro que se agitava, toda a noite, dentro do bicharoco fantástico. (A Selva, p.
185-186).

Alberto pôde observar essa manifestação cultural, pois, embora as personagens vivessem
isoladas, elas vivenciavam alguns aspectos culturais que não morriam em suas memórias. José
Guilherme Fernandes (1998, p. 2), assim afirma:
[...] não existe conhecimento absoluto, quando se considera que o conhecimento é sempre
produzido em um determinado contexto cultural, ainda mais quando esse contexto é o que
podemos considerar como o da cultura popular. E mais: na atualidade de Ŗtantas
Globalizaçõesŗ, desvela-se a única verdade Ŗabsolutaŗ, a de que a força-motriz dos
conflitos entre nações não está centrada unicamente em questões econômicas ou
geopolíticas, mas os conflitos são gerados também por diferenças culturais.

Com isso, pode-se observar que dentro de um contexto em particular Ŕ a selva Amazônica Ŕ
ambiente principal deste estudo Ŕ acontecem ainda manifestações culturais que não se perderam ao
longo do tempo e nem morreram na memória das personagens do romance. Além do mais, nota-se
que na narrativa, o erudito convive com o popular, sem que uma apague a existência da outra.
Como foi referido anteriormente, cada uma possui sua particularidade e seu contexto de produção,
contudo, elas são produções que não devem ser estudadas separadamente.
259
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Há a oscilação entre o mundo físico e o mundo simbólico sem que um interfira na existência
do outro, daí a criação de mitos, linguagem, religião, arte, no entanto, tais formas simbólicas
possuem uma finalidade para o sujeito. Sendo assim, em ŖA Selvaŗ , essas duas culturas são
representadas pelas figuras das personagens já citadas, tendo cada uma características que lhe são
peculiares.

Conclusão:
Apñs a exposição de argumentos acerca da Histñria e da Cultura, surge uma pergunta: Ŗque
relação há entre as duas temáticas que permearam o trabalho?ŗ .
Pôde-se notar que tanto a História como a Cultura estão situadas em um tempo particular.
Suas produções estão inseridas dentro de um contexto histórico, no entanto é necessário que exista
essa harmonia para que as pesquisas sobre tais conceitos avancem.
Walter Benjamin afirma que a História é também uma manifestação cultural e que a cultura
não está isenta da barbárie, tampouco seu processo de transmissão, com isso, nota-se que uma está
inserida na outra; não há como dissociá-las.
No romance analisado, são perceptíveis essas duas relações por se tratar de uma narrativa
capaz de contar a realidade da selva amazônica, tendo em vista o olhar do estrangeiro Ŕ na figura de
Alberto Ŕ e o olhar do natural Ŕ sendo representado pelas outras personagens que trabalham nos
seringais.
Assim sendo, História e Cultura possuem um elo que os une Ŕ a temporalidade Ŕ e que a
presença de uma fortalece a existência da outra, não podendo ser analisadas separadamente. Em ŖA
Selvaŗ percebe-se tal relação e por esta razão, optei por trabalhar com as duas temáticas, pois vi que
para falar sobre uma, precisaria também utilizar conceitos da outra, o que me fez crer que ambas se
complementam, por isso não podem estar dissociadas.

Referências bibliográficas

AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura Popular e Temporalidade. Gramado, 2002.


BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin. 7 ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
(Obras escolhidas; v. 1).
BOSI, Alfredo (Org.). Cultura Brasileira: Temas e situações. São Paulo: Editora Ática, 1987.
CASTRO, Ferreira de. A Selva. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1967.
FERNANDES, José Guilherme. Narrativa e cultura: Do Erudito e do Popular. In: Narrativa
oral e imaginário amazônico. Belém: UFPA, 1999.
_________________________. Cultura e Narrativa. In: Largueza e lassidão: a mitopoética do
espaço das águas (tese de mestrado). Belém: UFPA, 1998.
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória e outros ensaios. Cotia, SP: Ateliê Editorial,
2003.
260
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão... [et. al.]. 4ª Ed. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 1996.
VERNANT, Jean Pierre. Mito e Pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

261
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O APOLÍNEO E O DIONISÍACO EM ALGUMAS OBRAS LITERÁRIAS DOS PERÍODOS


MODERNISTA E PÓS-MODERNISTA

Emyster Handel Vicente Gaia (UFRR)

Resumo: O trabalho monográfico trata de encontrar características e justificar a possibilidade de reconhecer


o Apolíneo ou o Dionisíaco em algumas personagens literárias. Tem-se para isto base na teoria de Friedrich
Wilhelm Nietzsche, filólogo e filosofo que traz em seu livro O Nascimento da Tragédia uma perspectiva
teórica do Dionisíaco e do Apolíneo. Foram selecionados Angustia, de Graciliano Ramos; A Mulher que
Escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar; A Paixão Segundo G. H., de Clarice Lispector; Serafim Ponte Grande,
de Oswald de Andrade; Zero, de Inácio de Loyola Brandão; e Macunaíma, de Mario de Andrade. O interesse
neste trabalho é o de encontrar a característica apolínea ou dionisíaca nos personagens principais das obras
citadas, estas que pertencem a diferentes períodos históricos e literários.

A mitologia grega é tão interessante quanto fascinante; encanta pessoas de várias culturas
até então. Aqui se destacarão dois grandes e conhecidos deuses desta mitologia: Apolo e Dioniso.

Apolo, filho de Zeus e Leto, e irmão gémeo de Ártemis, deusa da caça, era um dos mais
importantes e multifacetados deuses do Olimpo. Apolo foi identificado como o deus da luz e do sol,
da verdade e da profecia, do pastoreio, do tiro com arco, da beleza, da medicina e da cura, da
música, da poesia e das artes. A atribuição mais importante do deus do Sol é dirigir o carro de fogo
(Sol) através do céu. Apolo também é o patrono do Oráculo de Delfos, é o deus dos adivinhos e dos
profetas e o deus dos jovens rapazes, que ajuda na transição para a idade adulta.

Apolo representa a harmonia, a moderação, a ordem, a razão, a individualidade, a beleza da


aparência e o discurso poético. A função de Apolo é a de conceder forma e limite ao mundo, visto
que é o deus da luz por excelência e governa o mundo da imaginação interior.

A representação de Apolo é a de um deus sempre jovem e imberbe, como é representado na


escultura de Apolo de Belvedere. Seus atributos são arco e flecha, lira, louros e hera. (Mitologia da
Antiguidade; 2009, p. 24-26).

Em contraste com o deus sol aparece Dioniso, deus do vinho. Ele tem duas diferentes sagas
que alinham ao seu nascimento. No primeiro mito é filho de Zeus e da mortal princesa tebana
Semele. A conselho da ciumenta Hera, Semele, grávida, deseja ver o seu amante em sua verdadeira
aparência. Zeus atende seu pedido e aparece como trovão e relâmpago. A mortal Semele é
queimada pela descarga divina. Zeus resgata o embrião e o traz na própria coxa até o nascimento.

No segundo mito é Perséfone a mãe de Dioniso. Hera atiça os titãs para que despedacem a
criança, mas o deus se recompõe e é criado pelas ninfas. Quando mais tarde é levado por piratas,
Dioniso faz crescer videiras nos remo e nos mastros, para atrapalhar a continuidade da viagem. Os

262
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

tripulantes são transformados em golfinhos. É casado com Ariadne; para os olímpicos sua
fidelidade conjugal é principalmente incomum.

Dioniso é representado principalmente como um deus juvenil, com longos cachos negros e
traços femininos. Sua estrutura corporal corresponde à de um adolescente de carnes macias e não-
atlético. É comum mostrar-se Dionísio com videiras e uma jarra cheia de vinho.

Dioniso é o deus do vinho, selvagem, da embriaguez, do prazer de viver, dos impulsos


desconhecidos da razão, do êxtase e da alegria festiva. As paixões, a arte, a criatividade, a música e
a transposição de limites do Ser são representados no dionisíaco. Os ritos de seu culto são
dissipados e não raro são uma dor de cabeça para aqueles responsáveis pela lei e pela ordem. Em
sentido mais amplo é também o deus da arboricultura e da vegetação. Segundo a lenda, ele criou a
videira e fazia vinho, leite e mel brotarem do solo. Também era festejado como deus dos teatros.
(Mitologia da antiguidade; 2009, p. 31-32).

Para o trabalho que se segue recorrerei à teoria de Friedrich Wilhelm Nietzsche, filólogo e
filosofo, que traz em seu livro O Nascimento da Tragédia uma perspectiva teórica do Dionisíaco e
do Apolíneo.

Esse livro é o primeiro dele; e é nele que Ŗnum percurso em que analisa a cultura grega e o
mito, com o fio condutor da tragédia grega e da música, contrapõe os deuses Apolo e Dioniso, o
estado de sonho e o de embriaguez, a epopeia e a lírica, a serenidade e a melancolia, o otimismo e o
pessimismo, traços da filosofia grega e da filosofia moderna e outros aspectos culturais que se
entrechocam, para concluir que Sócrates é o grande agente da decadência grega. Mais ainda, o
sonho e a embriaguez, dois estados de inconsciência, são a uma só vez propícios à verdade, à
mentira, à ilusão e ao mito. Jogando com essas categorias, interpondo as divindades gregas
contrapostas aos pilares da chamada cultura modernaŗ (Ciro Mioranza1, 2007, p. 8).

O que se pretende analisar neste trabalho monográfico são características apolíneas ou


dionisíacas no argumento do personagem principal de cada obra ou no contexto narrativo. Serão
trabalhadas as características da expressão de ambos. Assim identificando no personagem qual
expressão, qual estado prevalece no protagonista da obra em análise. E no fim, a conclusão com um
olhar sobre cada obra como um todo.

Apolíneo é a expressão do normal, da rotina, adequado à lei, que não se supera, apreciador,
individual, governado pelo mundo da imaginação interior, racional e ao que se refere às
características do deus Apolo.

Dionisíaco é a expressão contraria do apolíneo: anormal, transgressor, fora da lei, superador,


transcendente, o mundo da imaginação e do sonho transpõe para o exterior, festivo, sensual e ao que
se refere às características do deus Dioniso.

263
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

As obras a serem analisadas são Angustia, de Graciliano Ramos; A Mulher que Escreveu a
Bíblia, de Moacyr Scliar; A Paixão Segundo G. H., de Clarice Lispector; Serafim Ponte Grande, de
Oswald de Andrade; Zero, de Inácio de Loyola Brandão; e Macunaíma, de Mario de Andrade.

Em 1871, foi publicado O Nascimento da Tragédia, Ŗa respeito da qual se costuma dizer que
o verdadeiro Nietzsche fala através das figuras de Schopenhauer e de Wagner. Nessa obra,
considera Sñcrates um Ŗsedutorŗ , por ter feito triunfar junto à juventude ateniense o mundo abstrato
do pensamento. ŘA tragédia gregař, diz Nietzsche, Řdepois de ter atingido a sua perfeição pela
reconciliação da Ŗembriaguez e da formaŗ , de Dioniso e de Apolo, começou a declinar quando, aos
poucos, foi invadida pelo racionalismo, sob a influência Ŗdecadenteŗ de Sñcratesř. Assim, Nietzsche
estabeleceu uma distinção entre o apolíneo e o dionisíaco: Apolo é o deus da clareza, da harmonia e
da ordem; Dioniso, o deus da exuberância, da desordem e da música. Segundo Nietzsche, o
apolíneo e o dionisíaco, complementares entre si, foram separados pela civilizaçãoŗ . (Os
Pensadores; 2000, p. 6).

ŖPara o filñlogo Nietzsche, Apolo e Dioniso são antes de tudo deuses da religião grega
antiga, isto é, seres histñricos conhecidos por uma multiplicidade de Řmomentos escritos ou
figurados, objetos de ritos complexos e de relatos legendários às vezes contraditñriosŗ. (Lefranc;
2005, p. 88).

Nietzsche, à maneira de Schopenhauer que decompõe a alma num eu que conhece e num eu
que quer; vai também decompor o trágico num elemento dionisíaco e num elemento apolíneo.

Observemos um trecho de uma escritura póstuma, datada de 1888:

Pela palavra dionisíaco é expresso um impulso para a unidade, uma saída para fora da
pessoa, do cotidiano, da sociedade, da realidade, acima do abismo do que acontece; o
transbordamento apaixonado, doloroso, em estados mais obscuros, mais fortes e mais
flutuantes; uma afirmação extasiada da vida como totalidade enquanto ela é igual a si
mesma em toda mudança, igualmente poderosa, igualmente feliz; a grande participação
panteísta na alegria e na dor, que aprova e que santifica até os aspectos mais terríveis e mais
enigmáticos da vida; a eterna vontade de gerar, de produzir e de reproduzir; o sentimento da
unidade necessária da criação e da destruição. Pela palavra apolíneo é expresso um impulso
para um ser completo por si, uma Ŗindividualidadeŗ caracterizada, para tudo o que torna
único, que coloca em relevo, reforça, distingue, elucida, caracteriza; a liberdade na lei.
(fragmentos póstumos, tomo 14, p. 30)

O que na essência se quer extrair, aqui neste trabalho, é o que está dito no fragmento supra.
Ele comenta mais sobre o dionisíaco como se fosse algo não comum, restrito, para poucos, para
corajosos. Como se a Ŗsaída para fora da pessoaŗ fosse somente para quem se superasse, aquele que
começasse a ver por cima do comum, da rotina, do normal.

1
Apresentação de O Nascimento da Tragédia. Obra citada na referência.

264
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O apolíneo não se limita à produção de belas formas, belas imagens plásticas ou verbais; ele
constitui uma cultura completa que, em todos os domínios se esforçou por conter o impulso
dionisíaco. Há uma ética apolínea (o Ŗconhece-te a ti mesmoŗ ), em que parece se apresentar na
razão, no cotidiano, na lei, no palpável.

Nietzsche concebe Dioniso como símbolo do mundo como vontade, como um deus artista,
totalmente irresponsável, amoral e superior ao lñgico. ŖPara Dioniso, o sofrimento, a morte e o
declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta. Por isso, Řoshomens não têm
de fugir à vida como os pessimistas (em relação à idéia de Schopenhauer; parênteses meu) mas,
como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma
vez maisř, diz Nietzscheŗ (Os Pensadores; 2000, p. 12).

Em relação ao dionisíaco, observando as próprias palavras de Nietzsche citadas no parágrafo


anterior, é a aceitação das duas faces: a da alegria e a da tristeza; é o transbordamento extasiante e
até místico.

O apolíneo entra em conflito consigo mesmo quando se esbarra na Ŗoutra faceŗ , a que lhe
opõe, contraria. Ao contrário o outro, dionisíaco, enfrenta, não foge. Pois Dioniso viola a
individuação apolínea, causando constrangimento, terror ao apolíneo. O dionisíaco se permite sair
de si mesmo e conquistar a liberdade; o outro não.

A obra primeira para análise deste trabalho é Angústia de Graciliano Ramos. O livro traz a
história de Luís da Silva, narrador e personagem do romance. O fluxo narrativo se organiza por um
duplo processo de rememoração. Luís mora em Maceió, onde se fixa; é funcionário público e, nas
horas vagas e noturnas, jornalista e escritor. Num domingo de janeiro se apaixona por Marina a
primeira vista; o relacionamento amoroso não se encaminha para o final feliz. Pelo contrário.
Conduziu o apaixonado ao ciúme da amada e ao ódio do rival, Julião. Este é um jovem e petulante
milionário, conhecido estuprador de mocinhas pobres e ambiciosas. O romance se encerra com o
assassinato de Julião e a autopunição de Luís, antes da punição dos homens.

O apolíneo parece predominar em Luís da Silva, pois no decorrer do romance ele permanece
no cotidiano, na rotina. O que evolui nele é seu interior caótico, perturbado pelas suas lembranças,
em que se pode destacar do texto:

Ponho-me a vagabundear em pensamento pela vila distante, entro na igreja, escuto os


sermões e os desaforos que padre Inácio pregava aos matutos: ― ŖArreda, povo, raça de
cachorro com porco.ŗ Sento-me no paredão do açude, ouço a cantilena dos sapos. Vejo a
figura sinistra seu Evaristo enforcado e os homens que iam para a cadeia amarrados de
cordas. Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro, mas os dois
vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo. Tudo empastado, confuso. (Angústia;
2005, p. 18)

265
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Em Luís está carregado de pensamentos que órbita somente seu mundo interior; não
consegue se libertar deles e leva-os para sua vida na capital. Deixando-o confuso e transtornado.

Luís produz imagens da estética apolínea quando imagina Marina, que podemos mostrar no
trecho:

Se Marina tivesse a idéia de se banhar ali àquela hora da tarde, eu não lhe veria o corpo.
Talvez visse apenas uma sombra, como acontece no cinema quando se apresentam
mulheres nuas. Este pensamento esquisito Ŕ Marina despida, arrepiada, coberta de
carocinhos Ŕ bole comigo durante algum tempo. (Angústia; 2005, p. 17)

Por fim Luís da Silva comete o crime, pois o que vale é a sua razão, a sua justiça, o seu
mundo, o seu discurso, a sua individualidade, o seu mundo apolíneo. Interiormente se flagela por
uma justiça autopunitiva; antes da justiça dos homens, de fato:

(...). Por que não se acabava logo aquilo? Bati com a mão na mesa e isto me arrancou um
grito que abafei e se transformou em praga imunda. Por que não me vinham buscar os
miseráveis da policia? Por que faziam comigo aquela brincadeira de gato com rato? Eu os
acompanharia, mostraria a roupa rasgada, os fios da gravata no monturo, falaria no cigarro
oferecido pelo vagabundo. Por que não vinham logo?... (Angústia; 2005, p. 268)

Em A Mulher que Escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar, tem-se uma engraçada história de
uma mulher que faz uma diferença histórica, em que mulher na época de Salomão não fazia
diferença nenhuma. Ela, feia, seria só mais uma sem sorte para o matrimonio, sua sorte é outra: ser
letrada, isto aprendeu com o escriba da sua aldeia. Quando vai para o palácio de Salomão, como
esposa, faz o que não se esperava: discutir e escrever.

Observemos um trecho:

Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho letra após letra, palavra após palavra,
era algo eu me deliciava. Não era só um texto que eu estava produzindo; era beleza, a
beleza que resulta da ordem, da harmonia. Eu descobria que uma letra atrai outra, que uma
palavra atrai outra, essa afinidade organizando não apenas o texto, como a vida, o universo.
O que eu via, no pergaminho, quando terminava o trabalho, era um mapa, como os mapas
celestes que indicavam a posição das estrelas e planetas, posição essa que não resulta do
acaso, mas da composição de misteriosas forças, as mesmas que, em escala menor, guiavam
minha mão quando ela deixava seus sinais sobre o pergaminho. (Sclyar; 1999, p. 41)

266
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Com esse trecho poderíamos caracterizar Ŗa feiaŗ como uma personagem apolínea; porém o
que se percebe aqui é apenas uma atividade apolínea. O que ela produz de belo Ŗresulta da ordem,
da harmoniaŗ . Característica apolínea.

Observemos outro trecho:

Diria a ele que minha vida tinha agora um sentido, um significado: feia, eu era, contudo,
capaz de criar beleza. Não a falsa beleza que os espelhos enganosamente refletem, mas a
verdadeira e duradoura beleza dos textos que eu escrevia, dia após dias, semana após
semana Ŕ como se estivesse num estado de permanente e deliciosa embriaguez.

Sim, eu me sentia transportada para outro mundo, outra realidade. Tudo ficara
esquecido. A pedra também? Sim, a pedra também, incrédulos. Pedra? Para que pedra?
Para que fantasia, se a fantasia agora estava ao meu alcance, eu podendo criá-la a qualquer
instante? (Sclyar; 1999, p. 42).

O que ela cria de apolineamente belo provém de um estado dionisíaco, um


Ŗtransbordamentoŗ, uma Ŗvontade de gerarŗ , um Ŗestado de permanente e deliciosa embriaguezŗ .
Com essa parte do texto parece, contudo, que o que prevalece, aí por diante, na personagem é o
estado dionisíaco, a força dionisíaca. Pois afirma a embriaguez, a transportação para outro mundo,
Ŗoutra realidadeŗ ; para assim culminar na Ŗverdadeira e duradoura belezaŗ .

Mas para assegurar à afirmativa olhemos outro trecho:

Decidi corrigir tais equívocos mobilizando para isso as minhas próprias fantasias. Criados,
o primeiro homem e a primeira mulher enamora-se loucamente um do outro, e aí
transformam o Éden num cenário de arrebatadora paixão. Fodem por toda parte, na grama,
na areia, à sombra das árvores, junto aos rios. Fodem sem parar, como se a eternidade
precedendo a criação nada mais contivesse que a paixão deles sob forma de energia
tremendamente concentrada. O encontro dos dois era, portanto, uma espécie de Big-Bang
do sexo, muito Big e muito Bang. Todas as posições eram usadas, todas as variantes
experimentadas, isso sob o olhar curioso das cabras e dos ornitorrincos e, mais, sob o olhar
benévolo de Deus. (Sclyar; 1999, p. 127).

O texto mostra o impulso dionisíaco de suas próprias fantasias, a qual utiliza para produzir
um texto sagrado que será contrariado pela opinião dogmática dos anciãos. Ignora e trespassa a
barreira do dogmatismo, para colocar o que se considera inaceitável, profano, impuro, de origem
totalmente mundana, somente humana e nunca divino, sagrado: o sexo.

Acho que está perceptível o predomínio dionisíaco Ŗna feiaŗ ; Ŗpela sua afirmação extasiada
da vidaŗ que Ŗaprova e santifica até os estados mais terríveis e mais enigmáticos da vidaŗ .

267
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, fala de uma mulher, personagem narradora,
que busca, em si mesma, pela introspecção radical, sua identidade e as razões de viver, sentir e
amar; quando vê subitamente uma barata, saindo de um armário. A visão da barata é o seu momento
de iluminação após o qual já não é a mesma, já não é a criatura alienada que tomava café
distraidamente em seu apartamento.

Vejamos o que identificamos no texto:

Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada
me existe. E Ŕ e se a realidade é mesmo que nada existiu?! Quem sabe nada me aconteceu?
Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo Ŕ que sei
do resto? O resto não existiu. Quem sabe nada existiu! Quem sabe me aconteceu apenas
uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta:
a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção
à substancia amorfa Ŕ a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a
carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes Ŕ então ela não só terá mais a
perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada. (Lispector; 1998, p. 14)

O que aqui parece é um manifestação apolínea por se tratar de uma Ŗindividualidade


caracterizadaŗ ; coloca em relevo a existência, que tenta dar clareza ao que está em dúvida. No
trecho acima G. H. está em luta com seu mundo interior, no momento em que quer dar forma ao que
lhe acontece; isto em choque com a existência. Imbuída de um estado apolíneo, filosófico,
individual. Ela e seu mundo interior.

Vamos ver outra parte da obra para melhor compreensão:

O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou não
o nosso fatal: de nós depende realizarmos o nosso destino fatal. Enquanto que os seres
inumanos, como a barata, realizam o próprio ciclo completo, sem nunca errar porque eles
não escolhem. Mas de mim depende eu vir livremente a ser o que fatalmente sou. Sou dona
de minha fatalidade e, se eu decidir não cumpri-la, ficarei fora de minha natureza
especificamente viva. Mas se eu cumprir meu núcleo neutro e vivo, então, dentro de minha
espécie, estarei, sendo especificamente humana. (Lispector; 1998, p. 124)

Dentro de seu mundo e já após o encontro com a barata questiona a fatalidade humana, se
cumprindo ou não seu destino humano indaga a possibilidade de ser humana ou não. G. H. mantém
o mesmo estado, id est, o apolíneo, para fazer seus questionamentos interiores e existencialista,
como se estivesse em um momento onírico em que diversas afirmações e negações acerca da sua
identidade e a razão de viver, sentir e amar.

Percebe-se serem suficientes esses trechos para caracterizar a personagem e narradora como
apolínea.

268
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Uma das obras literárias do Brasil mais interessante é Macunaíma, de Mário de Andrade,
que fala da história do índio Macunaíma, herói sem nenhum caráter que percorre o Brasil, índio
preto que fica branco, volta a ser índio e outras metamorfoses mais de acordo com a situação.

Vamos ao texto:

Então Macunaíma quis se divertir um pouco. Falou pros manos que inda tinha muita piaba
muito jeju muito matrinchão e jatuaranas, todos esses peixes do rio, fossem bater timbó!
Maanape disse:

― Não se encontra mais timbñ.

Macunaíma disfarçando secundou:

― Junto daquela grota onde tem dinheiro enterrado enxerguei um despotismo de timbñ.

― Então venha com a gente pra mostrar onde que é.

Foram. A margem estava traiçoeira e nem se achava bem o que era terra o que era rio entre
as mamoranas copadas. Maanape e Jiguê procuravam procuravam enlameados até os
dentes, degringolando juque! Nos barreiros ocultos pela inundação. E pulapulavam se
livrando dos buracos, aos berros, com as mãos pra trás por causa dos candirus safadinhos
querendo entrar por eles. Macunaíma ria por dentro vendo as micagens dos manos
campeando timbó. Fingia campear também mas não dava passo não, bem enxutinho no
firme. Quando os manos passavam perto dele, se agachava e gemia de fadiga. (Mario de
Andrade; 1999, p. 17-18)

Pelo texto, Macunaíma começou suas Ŗcoisas de sarapantarŗ ainda pequeno, nesse trecho
fala de uma travessura um pouco antes da maturidade. Já desde a infância demonstra os traços
dionisíacos, é brincalhão, transgressor, livre de qualquer regra mundana.

Os manos Maanape e Jiguê acompanham Macunaíma em suas aventuras e mesmo que


Macunaíma os coloque em alguma travessura, eles permanecem fieis sem se importar com o
acontecido.

Olhemos outro pedaço do texto:

Macunaíma campeou campeou mas as estradas e terreiros estavam apinhados de cunhãs tão
alvinhas, tão!... Macunaíma gemia. Roçava nas cunhãs murmurejando com doçura: ŖMani!
Mani! Filhinhas da mandioca...ŗ perdido de gosto e tanta formosura. Afinal escolheu três.
Brincou com elas na rede estranha plantada no chão, numa maloca mais alta que a
Paranaguara. Depois, por causa daquela rede ser dura, dormiu de atravessado sobre os
corpos das cunhãs. E a noite custou pra ele quatrocentos bagarotes. (Mario de Andrade;
1999, p. 41-42)

269
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Macunaíma é muito voltado para sexo, para Ŗbrincarŗ . Essa parte fala de quando ele chegar
a São Paulo e encontra três mulheres brancas, Ŗalvinhasŗ , fica Ŗperdido de gosto e tanta formosuraŗ
e brinca com elas. Macunaíma participa de uma orgia, bem ao gosto de Dioniso; com um detalhe ao
herói, custa pra ele quatrocentos bagarotes.

Nietzsche faz a seguinte colocação: o homem dionisíaco é incapaz de não compreender uma
sugestão qualquer, não deixa escapar nenhum vestígio de emoção, possui no mais alto grau o
instinto compreensivo e adivinhador, como possui no mais alto grau a arte de se comunicar com os
outros. Sabe revestir todas as formas e todas as emoções: transforma-se continuamente1.

Macunaíma mostra vários estados dionisíacos no decorrer da obra: é safado, brincalhão,


falso, verdadeiro, travesso, transgressor, mutante, pois dependendo da situação se transforma em
alguma coisa ou animal. O que marca assim Macunaíma como dionisíaco.

Oswald de Andrade publica, em 1933, Serafim Ponte Grande que vai contar a aventura de
Serafim no Brasil e fora do país, também, dentro de períodos históricos como a revolução de 1924.
A narrativa se desenrola em uma literatura fina, libertária e plural.

Conheçamos um momento de Serafim:

PROPRIAÇÃO
Eu fui o maior onanista de meu tempo
Todas as mulheres
Dormiram em minha cama
Principalmente cozinheira
E cançonetista inglesa
Hoje cresci
As mulheres fugiram
Mas tu vieste
Trazendo-me todas no teu corpo
(Oswald de Andrade; 2001, p. 49)

Aí temos um momento da adolescência de Serafim, a qual ele vivencia de maneira sensual,


infiel, provador de várias; é o período que ele descobre o erotismo, como que em estado dionisíaco
dorme com todas as mulheres.

Observemos outra situação:

SERAFIM MENESTREL

Dona Branca Clara.

1
Crepúsculo dos ídolos; passatempos inatuais, § 10.

270
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Oh! Não vos recuseis. Senhora! Peço-lhe apenas um après-midi de vossa vida. Que é afinal
de contas um après-midi? Nos separaremos ao depois. Mas levareis no vosso corpo o
orgulho de teres sido amada.
O orgulho de ter sido amada por um legítimo brasileiro. A senhora sabe que um brasileiro é
geralmente diferente dos outros.
E além disso por um poeta. Os poetas Ŕ já disse Dante Ŕ são as aspirinas de loucuras e de
ferro velho! (Oswald de Andrade; 2001, p. 110)

Serafim no decorrer da narrativa permanece erótico, irônico e infiel; nessa passagem se


dirige para sua amante Branca Clara, que diz ser um Ŗorgulho ter sido amada por um legítimo
brasileiroŗ , além disso, poeta; e poetas são Ŗaspirinas de loucuras e de ferro velhoŗ. Parece que ele
parafraseia uma afirmação de Dante, no que, provavelmente, muda Ŗinspirações deŗ por Ŗaspirinas
deŗ . No mais, faz uma relação com amor, poeta e loucura. Relações estas que estão dentro do estado
dionisíaco do personagem.

Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, é um romance sarcástico, irônico que fala de José e
Rosa que se amam e brigam; Átila, homem apaixonado por modelos comerciais; da feira de
aberrações em São Paulo; da vida em um conjunto habitacional; da sociedade; do governo e dos
programas de auditório na televisão.

O personagem em foco aqui é José, para ser observado se apresenta características


dionisíacas ou apolíneas.

Analisemos uma parte do texto:

A gente pensa bobagens, o tempo todo. Eu gosto de pensar, coisas sem sentido. Porque as
coisas com sentido, não fazem sentido. (Brandão; 1980, p. 20)

Vemos uma atitude racional de José, uma característica apolínea; porém ele usa da razão
para chegar ao estado dionisíaco, o Ŗsem sentidoŗ , transpor sua vontade interior para fora da razão.

Em outra parte temos:

José reagiu. ŖEsse sujeito é um monstro de vontade de viverŗ, disse uma enfermeira,
enquanto aplicava água destilada e anotava medicamento japonês.
Viveu, se levantou. Se lembrou de uma porta se abrindo.
(Brandão; 1980, p. 35)

Depois de ser atropelado, um pessoa o socorre e passa dois dias andando com ele; o coração
ainda batia. A pessoa que o socorre chega numa clínica particular e o deixa lá, os funcionários o
atendem e depois de tudo o mais para mantê-lo vivo, uma enfermeira observa a vontade monstruosa

271
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

que José tem de se manter vivo. Parece uma vontade dionisíaca, como se estivesse escutado em
algum momento uma frase: Ŗ...dirão à vida: uma vez maisŗ .

Outra parte:

(...)
Quinta-feira:
Eu me levanto, ando, entro no escritório, trabalho.
Sexta-feira:
Levanto, ando, entro, trabalho, saio, durmo.
Sábado:
Todo sábado eu pego uma puta.
(Brandão; 1980, p. 46)

Nosso personagem em questão parece oscilar o seu estado, ora apolíneo, ora dionisíaco.
Nesse momento se comporta comumente como um funcionário recatado: paletó e gravata, sapatos
engraxados. Em estado comum, de funcionário mecânico, organizado, legalizado; mantém sua
rotina até a sexta-feira, pois no sábado sai desses dias mecânicos, regulares, apolíneos para entrar na
orgia, na luxuria com mulheres de luxuria, trocar toda a sua racionalidade pela transposição
extasiada do ser, transcender, viver dionisiacamente.

Por mais que José tenha algumas mudanças de estado, parece estar dominado pelo estado
dionisíaco, visto que o que vai vivenciando, quer culminar com o dionisismo extasiante e livre.

Considerações últimas

Em Zero, por ter uma narrativa paralela torna dificultoso uma abordagem apolínea ou
dionisíaca mais profunda e definida. É difícil mas não improvável de encontrar o que se quer
analisar. O romance apresentou mais situações dionisíacas; além do mais, a obra é de um período
triste no contexto histórico e literário do Brasil, a ditadura. E nesta época a vontade de libertar-se de
tal martírio era Ŗuma afirmação extasiada da vida como totalidade enquanto ela é igual a si mesma
em toda mudançaŗ . E José faz parte desta afirmação.

Com Serafim Ponte Grande, há também a vontade de libertação, porém uma libertação
literária, fazer da arte literária uma festa extasiante, imoral, plus ultra. Serafim, dionisíaco como
José, mas com um jeito irônico e revolucionário. Visto que, Ŗo caminho a seguir é duro, os
compromissos opostos são enormes, as taras e as hesitações maiores ainda. Seja como for. O meu
relñgio anda sempre para a frente. A Histñria tambémŗ. E Serafim a faz dionisiacamente.

Macunaíma, já nasceu dionisíaco, como se carregasse nas veias multirracial o estado


dionisíaco. Nasce índio preto retinto, o que contraria a etnia indígena; é sacana com a própria

272
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

família; é luxurioso, festivo, brincalhão. Se não fosse Ŗfilho do medo da noiteŗ e da Ŗíndia
tapanhumasŗ ; diria que era filho de Dioniso.

G. H. que pasma com uma barata e a partir desse momento se ilumina, de uma iluminação
apolínea, voltada para si, para sua existência. Ela se encontra na seguinte situação: consigo mesma e
com a barata. E tudo o ela questiona é apolineamente belo, filosófico e racional como Apolo.

Em A Mulher que Escreveu a Bíblia, a Ŗfeiaŗ que tem tudo para ser bela, apolineamente
bela, e não é. Não obstante, esta feiúra vai instigá-la a ser diferente, ter outras belezas, mas, para
isso, vai transcender, sair de si, fantasiar para fazer o que G. H. não faz: transpor para fora de si suas
fantasias concebida em estado de embriaguez. Fantasias estas que colocava nos pergaminhos,
quando sonhava com Salomão. Fantasias tão extasiantemente grande, quanto sua vontade de
realizá-la.

Luís da Silva, encantado pela beleza apolínea de Marina, vai se perdendo dentro de si e na
sua vida. Mergulhado egocentricamente não percebe uma saída do seu mundo interiormente
transtornado. Luta para ter sua felicidade e liberdade na lei, porém, acaba angustiantemente
flagelado por si, sem o que tinha de maior inspiração apolínea: Marina.

Referências bibliográficas:

NIETZSCHE. Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Ed. Escala, 2007. Tradução de
Antonio Carlos Braga. (coleção Grandes Obras do Pensamento Universal Ŕ 73).

LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2005. tradução de Lúcia M.
Endlich Orth.

GRANDE ENCICLOPÉDIA BARSA. São Paulo: Barsa Planeta Internacional Ltda., 2005. 3° Ed.,
Vol. 11.

Coleção Os Pensadores. Nietzsche. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. Tradução de Rubens
Rodrigues Torres Filho.

Mitologia da Antiguidade. São Paulo: Editora Escala, 2009. Tradução de Constantino Kouzmin-
Korovaeff. (coleção Quero Saber).

NIETZSCHE. Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Ed. Escala, 2006. Tradução de
Antonio Carlos Braga. (coleção Grandes Obras do Pensamento Universal Ŕ 28).

LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G. H. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1998.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma. São Paulo: Ed. Klick, 1999. (coleção vestibular Ŕ
ESTADÃO).

ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. 8ª ed. São Paulo: Ed. Globo, 2001. (Obras
Completas de Oswald de Andrade).

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Zero. 7ª ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1980. (coleção Edições do
Pasquim; v. 59).
273
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

SCLIAR, Moacyr. A Mulher que Escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhias das Letras, 1999.

RAMOS, Graciliano. Angústia. 61ª ed. Rio, São Paulo: Record, 2005.

274
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

PHANTASÍA E PÓIESIS: CONSIDERAÇÕES ARISTOTÉLICAS SOBRE A CRIAÇÃO


ARTÍSTICA EM MEIO DIGITAL

Enrique V. Nuesch (UFAM)

O quê Aristóteles tem a nos dizer ainda hoje sobre o processo de criação de uma obra de
arte? Bem, cremos que ele assentou o debate quando diz que o processo se inicia e termina com a
produção (poiesis) de uma imitação (mímesis). Ora, se o termo imitação, como muitos quiseram (a
começar por Platão), se refere a uma mera cópia de entes, uma tentativa bem ou mal sucedida de
copiar o mundo e os seus entes, então, realmente, o ditado aristotélico em nada contribui. Mas o
termo não diz isso, pelo menos como empregado na Poética. A imitação e seu produto (poema,
escultura, pintura, música), não mimetiza nenhum ente, mas sim uma idealidade: uma idealidade
concebida pelo autor. Sabemos que o Filósofo diz ser o poeta (no sentido de artista da palavra) um
Ŗimaginárioŗ (eikonopoios) como o pintor e o retratista. Esses Ŗimagináriosŗ têm em comum o fato
de produzirem, pois, eikones, Ŗsemelhançasŗ . Quais são os termos dessas semelhanças? Ora, num
primeiro momento, podemos dizer que, de um lado, a idealidade concebida pelo Ŗimaginárioŗ e, por
outro, a produção: a pintura, o retrato, o poema. É, assim, uma questão de gênero e espécie: no
gênero dos Ŗimagináriosŗ , existem as diversas espécies deles, aqueles que produzem as suas
imitações com palavras, aqueles que o fazem com tinta, os que o fazem com sons e assim por
diante. A Ŗsemelhançaŗ é, assim, dada entre a idealidade concebida e a sua imitação enquanto
produção de um poema, uma pintura, uma melodia, etc. O que torna um poeta ou um pintor um
Ŗartistaŗ , possuidor de uma tekhné, é o fato de ele ser capaz de fazer a passagem ou a transposição
de uma idealidade para um algo concreto. O poeta faz essa passagem por meio de palavras
(lembrando aqui o fato conhecido de que o tratado enumera os Ŗmeiosŗ , Ŗobjetosŗ e Ŗmodosŗ da
mímesis). Isto fica mais claro ainda se correlacionarmos uma passagem do Peri hermeneas (Da
Interpretação) com outra da Poética, levando ainda em conta o Peri psychés (Da alma), no que diz
respeito à faculdade da imaginação. No primeiro, o Filósofo afirma que a voz (phoné) é Ŗsímbolo
dos estados da almaŗ e que as palavras escritas são Ŗsímbolos destes símbolosŗ. Ora, o quê são
esses Ŗestados da almaŗ (Ŗpsychés pathematonŗ )? No contexto do tratado em questão, são as
impressões que as coisas causam na alma de uma pessoa. É por isso que, como diz o autor, entre
indivíduos que falam a mesma língua, os símbolos utilizados para se referir a uma coisa serão os
mesmos, pois diante de uma coisa, a impressão que esta irá causar na alma deles será a mesma; ora,
se são indivíduos falantes de línguas diferentes, a mesma impressão será simbolizada por símbolos
diferentes. Recorrendo agora ao tratado sobre a alma, no que diz respeito à definição da imaginação,
ela é, de acordo com o Filósofo, aquilo segundo o que dizemos que nos ocorre uma imagem. Ela
está envolvida tanto no sonho, como na alucinação, como na teorização por parte de um pensador,
como no dia-a-dia de uma pessoa nos seus atos de lembrança ou reconhecimento de outras pessoas

275
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ou objetos. A ocorrência de uma imagem pela atividade da faculdade da imaginação é, pois,


também um Ŗestado da almaŗ . Ao nos remetermos agora novamente à Poética, tiraremos uma
primeira conclusão. Vejamos. Nela, Aristóteles diz que a katharsis deve ter lugar mesmo se uma
pessoa não assiste a uma tragédia, bastando apenas que, por exemplo, ela tenha contato com o
mythos trágico apenas pela sua audição. Sabemos que o autor, ao enumerar os elementos (meros) da
tragédia, coloca entre eles o mito trágico e o espetáculo. Ou seja, a tragédia, como um todo, inclui a
representação cênica, pois é, justamente, uma arte dramática (de acordo, pois, com o seu Ŗmodoŗ de
mímesis). Mas esta representação é dispensável do ponto de vista da katharsis, pois esta depende
apenas da composição do mito. Chegamos, assim, à primeira conclusão: enquanto produção do
poeta, o poema é mímesis, por meio de palavras, de uma composição que é o mito trágico.
Enquanto Ŗimaginárioŗ, o poeta produz (imagina) uma idealidade, que é o mito e, como artista da
palavra (possuidor de uma Ŗtekhnéŗ ), transpõe essa idealidade em palavras. Retomando as menções
aos outros dois tratados, o poeta concebe o mito trágico graças à faculdade da imaginação e, graças
à tekhné de que dispõe, é capaz de transpô-lo a determinados símbolos, a saber, as palavras. O
ouvinte (ou, coisa que não é inverossímil dizer, o Ŗleitorŗ ) é posto em contato com esse Ŗestado da
almaŗ que é a ideação do mito, por meio dos símbolos para os quais foi transposto. Acrescentemos:
o poeta tem a capacidade de produzir uma Ŗsemelhançaŗ entre a idealidade que ele concebe pela
imaginação e a transposição em símbolos desta idealidade.

Uma observação complementar: no tratado sobre a interpretação há uma diferenciação forte


entre símbolo fônico e símbolo gráfico. De fato, estamos nos referindo aqui à abertura do tratado,
mas quem se propuser a percorrê-lo até o fim dar-se-há conta do caráter gramatical e lógico do seu
conteúdo, passando por aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos. Assim, vemos que este
tratado, ao referir-se às palavras como Ŗsímbolos dos estados da almaŗ e aos fatos de composição
destes símbolos como produção de nomes, verbos e, em seguida, de afirmações, negações etc., está
se referindo, pois, em última instância, a fatos (descritivos ou prescritivos) de combinação de
símbolos. Portanto, temos aí os rudimentos de uma semiótica que está presente, inclusive, na
Poética, concernente principalmente aos denominados meios de imitação.

Vamos agora nos aprofundar um pouco mais na relação entre a imaginação e a produção da
idealidade, produção esta que é, como vimos, o primeiro passo que o poeta e todo Ŗimaginárioŗ dá
na elaboração do seu poema. É, em primeiro lugar, no tratado sobre a alma que devemos investir,
mas também no tratado Sobre a memória e a reminiscência. Há uma questão técnica que deixamos
de apontar acima, por ser mais efetivo para a nossa exposição apontar agora. Aristóteles, no tratado
Sobre a Alma, define a imaginação (θανηαζια) como Ŗaquilo segundo o que dizemos que nos ocorre
uma imagemŗ. M as, como este tratado leva em consideração todos os seres Ŗanimadosŗ, o Estagirita
deve apontar que, além do homem, outros seres possuem imaginação; assim, o homem, além da
imaginação Ŗperceptivaŗ (αιζ ϑηηικη) Ŕque ele tem em comum com os animaisŔ possui a
imaginação Ŗraciocinativaŗ (λογιζηικη): Ŗtoda imaginação ou é raciocinativa ou é perceptiva. E
desta também compartilham todos os animaisŗ. E desta imaginação Ŗraciocinativaŗ , decorre
276
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

igualmente que o homem faz um emprego Ŗdeliberativoŗ (βουλεuηικη) da imaginação, possuindo,


pois, uma imaginação Ŗdeliberativaŗ : Ŗa imaginação perceptiva, como foi dito, subsiste também nos
outros animais, mas a deliberativa apenas nos capazes de calcularŗ . Em consonância, pois, com a
conhecida definição do homem como Ŗanimal racionalŗ , a imaginação humana vai para além dos
sentidos, sendo capaz de raciocinar com as imagens. E o pensamento, enquanto capacidade de
pensar as formas Ŕas ειδεŔ, o faz também por meio de imagens: Ŗo capaz de pensar pensa as formas,
portanto, em imagensŗ e, como também diz o Estagirita, na busca pelo que Ŗé superiorŗ , por meio
do raciocínio ou da deliberação, o homem Ŗé capaz de fazer uma imagem a partir de váriasŗ (434a
5).

Voltando à questão do poeta como Ŗimaginárioŗ, agora podemos considerá-lo em relação a


esse delineamento da imaginação Ŗraciocinativaŗ (e Ŗdeliberativaŗ ). Ora, como vimos recém, é
comum a todos os homens este tipo de imaginação; porém, como vimos na Poética, o poeta é, entre
os homens, um Ŗimaginárioŗ especial, pois a sua produção baseia-se numa relação com o verossímil
e o necessário, relação esta que não é acessível a qualquer homem e que, assim, aproxima o poeta
do filósofo, segundo ditame do Estagirita. Deve-se dar atenção ao emprego do termo εικον por parte
de Aristñteles, quando se refere aos Ŗimagináriosŗ na Poética, e a sua relação com o termo
θανηαζμ α que nñs mesmos fazemos aqui. De fato, o Estagirita não escreve Ŗphantasmapoiñsŗ na
Poética. Devemo-nos remeter aqui a um outro tratado seu, Sobre a memória e a reminiscência,
onde é estabelecida uma distinção entre o que é a imagem (θα νηαζμ α) e o que é εικον. A distinção
do simples θανηαζμ α para o εικον repousa no fato de que o segundo é necessariamente uma
remissão a algo que não ele mesmo, mas que se liga a ele por um laço identitário: algo ausente que
se faz presente através do θανηαζμ α contemplado atualmente, que se torna, então, εικον,
Ŗsemelhançaŗ . Já o mero θανηαζμ α é uma imagem que se limita a sua contemplação presente. A
importância desta distinção se faz sentir quando consideramos que aqueles Ŗimagináriosŗ da
Poética não imitam e produzem imagens que se esgotam na sua simples contemplação enquanto
meras imagens. O seu uso da θαν ηαζια λογιζηικε consistiria em que, como vimos, quando Ŗfazem
uma imagem de váriasŗ , esta não é apenas θαν ηαζμ α, mas εικον, é semelhança. O εικον produzido
é Ŗsemelhançaŗ porque remete justamente ao verossímil e necessário. Mas não, entenda-se, como
semelhança entre duas imagens, pois o verossímil e necessário não possui imagens originais a ser
imitadas: Édipo rei não é a imagem do verossímil e necessário, mas uma imagem, ou seja, guarda
semelhança para com o verossímil e necessário, assim como Antígona e outras tragédias.

Este passo é de importância máxima para a nossa proposta, e há que o articular com o
ditame do Filósofo acerca da proximidade de poesia e filosofia. Como mencionamos, o poema
guarda uma relação de semelhança com o verossímil e necessário, e é nessa relação que repousa a
proximidade entre filosofia e poesia, uma vez que é ao verossímil, mas principalmente ao
necessário, que a filosofia enquanto ciência primeira se refere. Tal proximidade diz respeito, no
contexto do corpus aristotélico, a uma escala de credibilidade dos discursos, que era em certa
medida delineável enquanto a Poética e a Retórica eram tratados como componentes do Organon,
277
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mas que perdeu a sua clareza quando estes dois tratados foram extirpados de tal obra por Andrônico
em sua ordenação do corpus, sendo agrupadas como tratados de saber técnico. Assim, se no atual
estado de coisas o Organon se compõe apenas de tratados de dialética e de lógica, este, um dia,
englobava também os de poética e retórica, perfazendo uma escala que parte do discurso poético -
aquele que se refere ao possível-, passa pelo discurso retórico -aquele que se refere ao geralmente
aceito-, em seguida pelo discurso dialético -aquele que se encarrega de debater o geralmente aceito,
fazendo uma seleção-, chegando por fim ao discurso lógico ou apodíctico -aquele que se refere ao
necessário, enfim, à verdade, ao conhecimento demonstrado. O discurso poético é, pois, o começo
de todo percurso em direção ao conhecimento, fornecendo, graças ao trabalho de imaginação do
poeta, as possibilidades, sempre visando ao universalmente necessário: o eikon, a semelhança
produzida pelo poeta, é o ponto de partida. O uso que o poeta faz da sua imaginação é, assim, como
bem o indica Aristóteles na Poética, um tanto especial.

Voltemos, pois, a tratar dos dois termos da semelhança, ou, se assim se quiser, dos dois
pólos da semelhança, a idealidade e o poema.

Dizíamos, numa primeira instância, que os dois termos do eikon eram a idealidade chamada
mythos e a sua concreção empírica que é o poema. Porém, chegamos ao momento em que a questão
pode ser exposta em sua totalidade: a mímesis, e assim a poiesis, necessitam ser estratificadas em
três níveis, a saber: mimesis I, que estabelece a relação entre o verossímil e necessário com a
idealidade do mythos, a mimesis II, que estabelece a relação entre a idealidade do mythos e o poema
em sua manifestação concreta, e a mímesis III, que estabelece a relação entre o mythos e o
espetáculo cênico. O terceiro nível, Aristóteles o exclui do trabalho do poeta; todo o peso da
questão repousa sobre os dois primeiros níveis. Em ambos o poeta faz uma transposição: do
universalmente verossímil e necessário para a composição do mythos, do mythos para os símbolos
da língua. Lembremos que, enquanto artista da palavra, o que está em jogo no trabalho do poeta é o
nível II. Mas enquanto Ŗimaginárioŗ é ao nível I que se refere o seu trabalho e -é o que acreditamos
e defenderemos aqui- diz respeito também ao trabalho do poeta digital. Deveremos nos dirigir,
tendo em mente esta estratificação, à criação e uso da metáfora e, principalmente, à estrutura da
metáfora segundo Aristóteles. Mas neste passo, necessitaremos da companhia de um intérprete que,
efetivamente, atualiza a teoria da metáfora aristotélica, dando-lhe, sem cometer qualquer violência
contra o texto do Estagirita, um sentido que muito nos interessa. Referimo-nos a Paul Ricoeur
(1974) e sua Metáfora viva.

A definição que Aristóteles nos dá é, bem ao seu estilo, clara e sintética: transferência para
uma coisa do nome de outra: ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da
espécie de uma para o gênero de outra ou por analogia. São, pois, quatro os tipos de metáfora. O
que Ricoeur nos aponta acerca dessa definição é que o estabelecimento do nome como termo
primário da metáfora selou o seu destino. Uma vez extintas as repúblicas e, assim, a importância
central do debate público, a disciplina degenerou-se e morreu literalmente, já que foi anatomizada

278
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

em meros procedimentos retóricos classificados numa taxionomia, da qual a metáfora irá fazer parte
enquanto figura de pensamento, ao lado, por exemplo, da hipérbole, da sinédoque, da catacrese e
outras. Por quê, além dos fatores políticos implicados na morte da retórica, a metáfora perde o seu
vigor? Ora, como dissemos, por conta de ser dito o nome o seu termo primário: sendo nada mais
que uma transferência de nomes, passa a ser encarada como uma opção ornamental, e o impulso
taxionômico operando sobre o cadáver da retórica poderá incluí-la na parte do discurso chamada
elocutio, que, como se sabe, está ao lado da inventio, da dispositio, da actio e da memoria. Ou seja,
a definição da metáfora dada por Aristóteles abre caminho para tal interpretação. Porém, fica
inexplorado um outro caminho, o qual é percorrido por Ricoeur. Este demonstra que não é
necessário limitar a metáfora à transferência de nomes e faz-nos ver que a construção de metáforas
é, de fato, um dos principais motivos pelos quais o discurso poético se aproxima do discurso
filosófico. Em primeiro lugar, convida-nos a conferir que a metáfora, mesmo em sua estrita
definição aristotélica, é, muito além de uma transferência de nomes, uma alteração numa relação
entre idéias e, por tanto, não é um fato limitado à palavra e sim concernente ao enunciado, ao
discurso. A diferença é grande. Pois no primeiro caso, estar-se-ia referindo a um âmbito lingüístico
inferior ao da frase, sendo, pois, nada mais que um fato de denominação. No segundo caso, é o
âmbito da frase e o seu superior, o do discurso, o que está em questão. Entenda-se: uma palavra, se
o é efetivamente, não pode ser dita com sentido ou sem sentido; o mais que pode é ter um
significado ou uma referência, que pode variar de acordo com o contexto enunciativo, ou seja,
discursivo em que está inserida. A produção de uma metáfora se faz, pois, não apenas por uma
transferência de nomes, mas sim pela reorganização de uma relação lógica entre duas idéias, relação
que nenhuma palavra poderia denominar. A questão é de uma profundidade que não se manifesta a
um primeiro olhar. Mas leve-se em conta a escala de credibilidade acima mencionada, com o
discurso poético como base de ascensão em direção do conhecimento, e tornar-se-há claro que este,
por meio da metáfora e a sua reorganização das relações lógicas entre gênero e espécie, é uma re-
descrição do mundo. O engenho do poeta, diz Aristóteles, reside na sua capacidade de metaforizar,
de ser metafórico, pois quem bem descobre as metáforas, bem se apercebe do semelhante. Esta
Ŗsemelhançaŗ , deve-se assinalar, não é, no texto do Filósofo, o eikon, mas sim to homoion. A
semelhança que aparece neste momento introduz o tipo de visão privilegiada que o poeta tem: de
fato, o texto grego diz to to homoion theorein. A descoberta da boa metáfora é uma atividade
contemplativa do mais alto calibre cognoscitivo, e a sua qualidade teorética é de tal penetração que
é capaz de aproximar o semelhante para além da lógica do gênero, da espécie e da analogia.
Entenda-se que o agrupamento dos entes em gêneros e espécies já é uma operação baseada na
semelhança: é pela convergência e divergência entre atributos que os entes são ajuntados ou
separados em seus respectivos gêneros e espécies. É, pois, a um âmbito pré-categorial que o poeta
acede em sua teorização do semelhante, ou seja, no seu metaforizar. A conclusão a que nos conduz
Ricoeur na sua interpretação, por ele mesmo dita Ŗextremaŗ , é muitíssimo interessante: o poeta re-
descreveria o mundo a partir de uma instância tão ausente de ordenação como aquela à qual o
mesmo filósofo dá ordem por meio das categorias que constrói de acordo com as semelhanças em
279
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

que se baseia para o estabelecimento de espécies e gêneros. É a partir deste âmbito que as
semelhanças seriam teorizadas ou apercebidas pelo poeta.

Que seja enunciada por Aristóteles uma apercepção como esta no contexto em que a função
da metáfora no trabalho de composição do poema está sendo estabelecida, é esclarecedor acerca da
definição do poeta como um Ŗimaginárioŗ, eikonopoios. Retomando o exposto acerca da diferença
entre phantasma e eikon, assim como da imaginação em geral e o funcionamento dos seus tipos
raciocinativo e deliberativo, será possível dar-se conta de que aquele Ŗfazer uma imagem de váriasŗ
(onde o fazer é poiein) é, no caso do poeta, o seu especialíssimo exercício enquanto Ŗfazedor de
eikonesŗ , ou seja, de imagens-semelhanças, por tanto, de se aperceber das semelhanças e plasmá-las
em metáforas. A nossa estratificação da mímesis ganha, assim, uma nova dimensão no que diz
respeito aos níveis I e II. No que tange ao primeiro, aquela idealidade que conforma o mito seria
uma imagem-semelhança, um eikon, em cujos pólos, unidos pela semelhança, estão o homoion
apercebido e o psiché pathema, o estado da alma em que ocorre uma imagem. O que faz desta
imagem algo mais que um phantasma é exatamente a sua semelhança para com o homoion. Sendo
homoion traduzido, assim como eikon, por semelhança, cabe notar que o eikon é, antes de tudo,
imagem-semelhança, imagem-com-semelhança. O homoion é, aqui, pois, o possível, que não
possui uma imagem a ser copiada: é a pura possibilidade, a partir da qual o poeta, no exercício da
sua faculdade da imaginação, irá construir uma imagem que lhe será semelhante. Por quê referir-nos
ao homoion, a essa semelhança, como o possível, a pura possibilidade? Porque, como vimos, este
funciona como princípio organizador: está funcionando na constituição da organização e descrição
do mundo feitas pelo discurso lógico, e será também a fonte onde irá beber o poeta no seu trabalho
de organização e descrição do mundo. A semelhança é nada menos que a potência organizacional, e
a metaforização começa, desde já, no plano da imaginação, construindo o eikon que fará de elo
entre as possibilidades de organização do mundo e a re-descrição do mundo levada a cabo pelo
poeta na criação do mito. No que tange ao nível II, o poeta terá que empenhar todo o seu engenho
enquanto artista da palavra para construir as boas metáforas, capazes de criar o elo entre o mito e as
palavras, capazes pois, de criar o elo entre o psyché pathema e os símbolos fônicos ou gráficos: a
apercepção da semelhança é dada agora de forma que o eikon irá assemelhar a idealidade do mito e
as palavras, e é aqui que o trabalho do poeta extrapola todos os limites que a metáfora, se entendida
como mera transferência entre nomes com estritos fins ornamentais, poderia impor. A tekhné do
Ŗimaginárioŗ chamado poeta se caracteriza justamente por lhe conferir a capacidade de produzir o
que nenhum homem despossuído da mesma é capaz de fazer: a transgressão do uso denominativo e
referencial da língua e do uso metafórico para fins ornamentais ou de necessidade expressivo-
comunicativa.

Toda a explicação que damos, desde as nossas primeiras palavras até as recém terminadas
linhas, são, de fato, nada mais que o desenvolvimento das implicações daquilo que Aristóteles
enuncia de forma tão simples ao dizer que o poeta fala daquilo que poderia ser. Foi-nos necessário
este longo rodeio para tornar explícito os passos ou momentos da criação poética, que culminam ao
280
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

plasmar em símbolos aquilo que está oculto aos olhos da empiria e da vida prática: a pura
possibilidade ou virtualidade, tudo aquilo que não se desenvolve enquanto fatos de realidade
empírica na medida em que os acontecimentos se sucedem, ou, ainda, tudo aquilo que escapa ao
discurso lógico no mesmo ato de descrição do mundo, mas que é inerente ao mesmo mundo
descrito. Eis o paradoxo que talvez seja a fonte da interpretação da mimesis enquanto tentativa de se
fazer uma cópia da realidade: o poeta nunca se desliga do Real, por mais fantasiosas que possam ser
as suas criações, com seus deuses, semi-deuses e faunos. Ulisses desce ao Hades, cega a Polifemo e
dorme com Calipso em sua ilha, mas nunca deixa de ter um caráter humano, ainda que excepcional.
É, pois, do caráter humano que Homero está a nos falar em última instância.

Vinculação ao Real mas nunca subserviência ao mesmo: é o ponto de disjunção que coloca a
mímesis aristotélica enquanto construção em um caminho completamente diferente da mímesis
platônica (e de muitas interpretações de Aristóteles) enquanto cópia. Quando o Estagirita diz que o
poeta imita ações e homens em ação, está em jogo uma relação entre o poeta e a physis, ou seja,
entre o poeta e o mundo enquanto natureza. E ainda além, entre a problemática ato-potência, a
physis e o discurso poético. ŖNaturezaŗ , deve-se dizer, num sentido um tanto diverso do que
entendemos hoje. Entre as definições de physis que temos no livro delta da Metafísica, o Filósofo
no-la apresenta como Ŗo elemento primeiro disforme e imutável desde a sua potência, a partir do
qual é ou se faz algum ente naturalŗ; e ainda, Ŗa natureza é a substância das coisas que têm o
princípio do movimento em si mesmas enquanto taisŗ. Por seu lado, no capítulo VII da Poética,
onde se trata da concepção do mito como ser vivente, se diz que a sua configuração é dada Ŗpela
natureza das coisasŗ ; apñs, no capítulo XXIV, referindo-se ao verso adequado para poemas
extensos, afirma que Ŗa natureza ensina a escolher o metro adequadoŗ . Ora, enquanto Ŗimitadorŗ de
ações, homens em ação, ou ainda, homens em ato (energountas [1448 a24]), o poeta está a fazer,
pois, o desenvolvimento do possível para o atual, da potência para o ato, ou ainda, do ato para a
potência, uma vez que o desenvolvimento poético da possibilidade para a efetividade imprime
como nota característica da ação ou ato concebido o seu ser-possível: universal, verossímil e
necessariamente possível. Há, assim, uma circularidade entre ato e potência implicada na
construção do mito enquanto re-descrição da natureza, ou seja, do mundo. A relação entre physis e
mímesis, entre natureza e discurso poético se define assim como uma re-descrição do mundo que
traz à linguagem as possibilidades deste que se mantêm à sombra do uso puramente referencial ou
mesmo teorético da linguagem. Quais sejam os momentos ou as etapas envolvidas neste trazer-à-
linguagem, são aquelas que descrevemos acima, linearmente apenas por necessidade de exposição,
em que a imaginação tem um papel primordial, mas que não se exerce em sua plenitude no trabalho
do poeta sem a sua particular arte verbal.

O quê podemos dizer, a partir de todo este percurso com Aristóteles acerca da obra de arte
em meio digital? Muito, mas só trataremos da abertura que a concepção aristotélica da poesia nos
põe por diante para pensar o meio digital. Devemos começar remetendo-nos a esta parte final da
nossa exposição acerca de Aristóteles.
281
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Muito se fala sobre o meio digital enquanto lugar do virtual, ou ainda, o meio mesmo é
referido como virtual, ambiente virtual. Não duvidamos em fazer os mesmos usos, com a ressalva
de que, obviamente, tal ambiente, meio, universo, ou como se queira nomeá-lo, tem um lastro no
Real, na realidade ou, termo que prefiro, na efetividade. Se fossemos historiar em grossos traços a
procedência e a emergência do que hoje se denomina meio digital, evidentemente vamos encontrar
as suas origens na imaginação e no raciocínio humanos. Para não voltar muito no tempo, podemos
pensar em Leibniz enquanto síntese das paixões combinatórias que sempre assolaram o homem e
que encontraram seu grande momento nas tentativas de uma mathesis universalis levadas a cabo por
este filósofo. Noções como possível, compossível e mundos possíveis, levam, se podemos fazer
essa simplificação, à idéia de que a partir do mundo circundante vivenciado pode-se remontar ao
jogo das possibilidades das quais o mesmo mundo circundante é uma atualização ou, para usar o
termo que preferimos, a efetivação. Bastaria, para tal, exercitar o raciocínio e, principalmente, a
imaginação. Quer se aceite ou não a idéia de que a matematização do mundo levada a cabo pelas
ciências físicas não é uma penetração na sua realidade íntima, mas apenas uma ficção regulativa
para poder controlá-lo precariamente, tal matematização não deixa de ser uma incorporação da
possibilidade à existência do homem, quer dizer, um novo capítulo na ancestral história em que o
homem olha para o desenrolar dos fatos diante de si e pensa que eles poderiam ser diferentes e se
pergunta como o poderiam ser. Fazemos aqui essas considerações acerca de um campo do saber
que, humilde e sinceramente, devemos dizer que não dominamos do ponto de vista teórico, mas
apenas de um precário ponto de vista histórico, porque sabemos, e é fato conhecido, que o assim
chamado meio digital tem uma das bases da sua fundamentação ontológica no cálculo, na
combinatória, em fim, na programação. A outra a tem na existência física de uma máquina capaz
de executar as rotinas (o conjunto de cálculos e sua combinatória) prescritas pelos programas.
Ambas bases (programação e máquina) são, ao fim e ao cabo, produtos do raciocínio e da
imaginação, que se tornaram efetivos, ou seja, que se efetivaram do possível para o Real.
Remetendo-nos ao exposto nas últimas linhas sobre Aristóteles, máquina, programação e meio
digital são parte da nossa physis: enquanto o meio digital tem o mencionado lastro nessa realidade,
passa a ter parte no nosso mundo circundante. Aquém do que se chama de virtual na acepção
aplicada ao meio digital, está, pois, o possível inerente ao meio digital enquanto efetividade. O
virtual assim empregado é, pois, já a efetivação da possibilidade, uma possibilidade que poderia
nunca ter sido desenvolvida enquanto determinadas situações não se tivessem apresentado ao
homem na sua existência efetiva.

Cremos, pois, que, enquanto se falar de obra de arte em meio digital, quer dizer, e mui
aristotelicamente, aquela produzida com os meios disponibilizados pelo meio digital, se estará
falando numa operação intelectual, envolvendo imaginação e raciocínio, de efetivação de
possibilidades inerentes ao meio digital. Soa-nos óbvio e redundante dizer tais coisas, mas é
daquelas obviedades que, ao tentar-se explicá-las, mostram-se bem pouco afins a simplificações.
Pois, a princípio, todo e qualquer software é uma efetivação das possibilidades do meio digital, ou

282
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

seja, é produto da imaginação e raciocínio do seu criador, que visa a certa finalidade. Este possui
uma tekhné, mas isso não o torna um artista no sentido que hoje damos à palavra, muito menos um
poeta. Por que? Porque, em primeiro lugar, uma obra de arte é autotélica, tem a sua finalidade em si
mesma, não é uma ferramenta. Evidentemente, há artes que superam este princípio, como a
arquitetura, cujas produções têm por finalidade ser ocupadas por pessoas, mas o plus que possuem
se baseiam em questões como o modo de ocupar o espaço, os desafios à gravidade, entre outras
coisas, que vão muito além da simples funcionalidade da sua ocupação. Bem diferente é o caso da
criação de softwares: a funcionalidade se sobrepõe a todos os demais critérios: por mais Ŗartísticoŗ
que se considere um software de balanços financeiros, este continuará tendo por função... realizar
balanços financeiros. O diferencial, pois, de um uso artístico ou poético da construção de softwares
está, para nós, no mesmo princípio que encontramos quando examinamos as implicações da
concepção de mímesis poética no tratado de Aristóteles: referir-se ao humano, a sua relação com o
mundo circundante de acordo com as possibilidades a este inerentes. Dizíamos que o poeta imita
homens em ato, homens em ação, e que ao referir-se a esta ação, o poeta o estava fazendo de modo
que ela se apresenta como correlata do possível: a ação se apresenta enquanto possível. Ora, se este
possível-em-ato se remete em última instância à physis, ao mundo e ao homem enquanto integrante
deste mundo, a arte em meio digital há de apresentar os seus produtos enquanto possível-em-ato do
humano em sua relação com o meio digital que passou a ser também parte do seu mundo. Note-se:
numa interpretação da mímesis enquanto cópia, isto poderia querer dizer que a arte digital
representa homens interagindo com computadores. Nada disso queremos dizer. Lembremos que,
por mais diversas que sejam as ações e personagens de comédias, tragédias e epopéias, o que elas
têm em comum é imitar homens em ação, ou seja, a gama de possibilidades inerentes à humanidade
nas mais diversas situações. Por mais diversas que sejam as obras de arte em meio digital, hão de
ser capazes de apresentar as possibilidades do humano num mundo do qual o meio digital faz parte.
O peso da questão recai, assim, sobre as possibilidades acrescidas ao mundo pelo advento do meio
digital. Se, ao ver de Aristóteles, o poeta era capaz de trazer à expressão aquilo que escapava aos
discursos encarregados de fazer a descrição do mundo, ou seja, era aquele capaz de re-descrever o
mundo de acordo com o possível não descrito por aqueles discursos, porém latente naquilo que era
descrito, o artista do mundo acrescido das possibilidades do meio digital será aquele artista capaz de
trazer à expressão aquilo que está latente ao mundo acrescido do meio digital em que lhe tocou
viver. Irá, mediante a sua imaginação, para além daquilo que se apresenta como sendo o meio
digital. Nos termos em que põe Aristñteles a questão, irá Ŗaperceber-se do semelhanteŗ , mas
entendido aqui fazendo a transposição conceitual necessária ao nosso problema: se a apercepção do
semelhante era uma operação do poeta análoga à do filósofo no ato de ordenar e descrever o mundo
de acordo com categorias lógicas, no caso da arte digital, será o ato artístico análogo aos atos dos
programadores quando estes trabalham na construção do meio digital -na verdade, cremos ser
inexato falar no singular, Ŗmeios digitaisŗ seria mais apropriado, uma vez que não há
homogeneidade entre os que se poderiam chamar de Ŗambientes digitaisŗ construídos de acordo
com as diversas linguagens de programação. Um exemplo concreto em que se pode pensar aqui é na
283
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

apropriação que faz Wilton Azevedo nos seus Loop-poemas da rotina de programação chamada
Ŗloopŗ, a qual tem por função remeter a execução de um programa da última linha de comando para
a primeira. Mas, perguntamos: lançar-se-há o artista do meio digital ao trabalho apenas munido da
sua imaginação? Não. De fato, como se depreende do exemplo mencionado, enquanto artista do
meio digital, há de adquirir a tekhné para se utilizar dos meios disponíveis. Habilidades mínimas de
programação serão adquiridas, ou associações entre artistas e programadores serão estabelecidas.
Como é de se esperar, a adquisição da teknhé provém da experiência e experimentação com o meio,
e os produtos do trabalho artístico apresentam, se não uma evolução, um desenvolvimento paralelo
ao do desenvolvimento dos próprio meio. O já clássico rosto de Einstein construído de caracteres,
que hoje parece banal, não o é de nenhuma forma se consideradas as características técnicas da
época, e a sua concepção representa uma clara visão para além da utilidade imediata de um editor
de texto, além de ser uma uma engenhosa transposição da técnica pictórica do pontilhado para o
meio digital. Hoje, para ficar com exemplos mais próximos, vemos o Palavrador, do qual temos ao
nosso lado um dos autores, que se mostra como um belo exemplo do uso artístico das
potencialidades da linguagem VRML.

Mas não é em meandros técnicos que queremos finalizar esta fala. O essencial do nosso
aristotelismo para a obra de arte em meio digital é caracterizá-la de acordo com o processo
imaginário e técnico que acreditamos ser desenvolvido nos textos do filósofo. Os meios e objetos do
trabalho do artista mudaram, mas a sua intuição ou apercepção primária, visando ao possível a
partir do real, a concepção de uma idealidade a partir da apercepção e a a sua transposição para um
produto concreto e tangível por parte de um receptor continuam a ser os passos do processo. Vale
ressaltar novamente que tais passos só são apresentados nesta ordem linear por imposição da sua
exposição descritiva. É certo que a criação, seja ela conjunta ou individual, passa por fases, em que
tanto a parte ideal como sua contraparte concreta passam por reelaborações contínuas. Mas é sem
dúvida no momento da recepção do produto artístico que se revela a permanência que alegamos
existir do processo da criação. Pois é enquanto objeto de uma experiência que a obra de arte vai
demonstrar a sua capacidade de revelar-se como o possível da experiência humana. A baliza da
medida do mito enunciada por Aristóteles ainda tem seu valor: medida não no sentido de extensão,
mas sim medida do experimentável de acordo com as capacidades humanas de experimentação. O
artista do meio digital deve ter o senso da medida, sob o risco de pôr a perder a sua obra
carregando-a de virtuosismos técnicos em termos de programação, como numa versão digital do
maneirismo, por exemplo. Que o meio digital tenha potencialidades além da capacidade receptiva e
experimental humana é fato, o senso da medida do artista é que lhe dará a baliza para trabalhar
dentro do escopo do humanamente experimentável. É esse o seu desafio, e a aptidão para assumi-lo
é o que o diferencia de uma pessoa comum dotada de grandes conhecimentos técnicos em
informática. Da apercepção do possível à concepção do eikon, da concepção do eikon a sua
concretização numa obra de arte, o poeta do meio digital está a pôr diante do receptor da sua obra
uma imagem das suas próprias possibilidades enquanto humano.

284
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. ŖOn memory and reminiscenceŗ . Translated by J. I. Beare. In: Aristotle I.


Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. pp. 690-5.

_____________. Poetica. In: Rhetorica et Poetica. Ex recensione Immanuelis Bekkeri. Berlim:


Reimer, 1831. pp.151-186.

_____________. De Anima. Apresentação, tradução e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis. São
Paulo: 34, 2006.

_____________. De anima libri tres. Ad interpretum graecorum auctoritatem et codicum fidem


recognovit commentariis illustravit Frider. Adolph. Trendelenburg. Iena: Sumtibus Walzii, 1883.

_____________. De memoria. In: Opera. Ex recencionis Immanuelis Bekkeri. Tomus III. Oxford:
Typographeo Acadêmico, 1837. pp. 276-87.

CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em nova perspectiva. Rio de Janeiro: Top Books, 1996.

AUBENQUE, Pierre. El problema del ser en Aristóteles. Madrid: Taurus, 1974.

FRÉRE, Jean. ŖFonction représentative et représentationŗ. In: DHERBEY, Gilbert R. (Dir.). Corps
et Âme. Sur le De anima dřAristote. Paris: J. Vrin, 1996. pp. 331-48.

RICOUER, Paul. A metáfora viva. Porto: Rés-Editora, 1983.

ROSS, David William. Aristotle. New York: Routledge, 1995.

285
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

TODOS OS NOMES (SR. JOSÉ/MULHER DESCONHECIDA) E SEM NOME (JOSÉ


VIANA/PROTAGONISTA AUSENTE): A ALTERIDADE COM PERSONAGENS EM FUGA
PARA A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE DOS PROTAGONISTAS

Fabricio M. Souza (UEA-Fapeam)

Resumo: Nesta análise, veremos que é ao longo dos acontecimentos que os protagonistas, ao se
verem e verem sua busca (ou in-solução) desenrolando-se, vão formando sua subjetividade: o Sr.
José, protagonista do romance de Saramago, após encontros, nem sempre presenciais, com outros
Ŗeusŗ, ao per-seguir as pistas da mulher desconhecida, vai se tornando Ŗeuŗ na narrativa, em
oposição a não-pessoa que ela - a desconhecida Ŕ é, aos outros Ŗeusŗ que vão partilhando com ele a
Ŗconcha vaziaŗ ; já José Viana, protagonista do romance de Helder Macedo, após acompanhar o
problema da ausente-presente (Martha Bernardo) em sua resolução, consegue expurgar os
fantasmas da ausente para se subjetivar ao enunciar numa carta/relatório, endereçado à Júlia de
Sousa.

Alteridade e subjetividade em Benveniste

Benveniste (2006) estabelece suas reflexões ao longo de vários anos, ancorando a


subjetividade à língua: eu, propondo-se como locutor que mobiliza, a partir de si, uma
ressignificação da língua, ao se configurar como sujeito de determinada enunciação, mas que, ao
enunciar, o instaura um interlocutor, o tu, e assim se estabelece a intersubjetividade na língua. O
mecanismo de emprego da língua afeta a língua inteira, e a subjetividade só é possível a partir da
relação do eu com o tu a propñsito dřele.
Dufour (2000) analisa cuidadosamente o que Benveniste estabeleceu no Ŗjogoŗ da
enunciação da língua. Benveniste revestiu de estatuto pessoal os pronomes eu e tu, gerando uma
relação intersubjetiva (o locutor e o interlocutor se revezando no ato de enunciar). Dufour observa
que Ŗo ele desdobra a natureza da relação triádica benvenistiana, ou seja, para haver a enunciação
(eu-tu a respeito dřele), é preciso ter eliminado o espaço da ausência, este presente no pronome ele.
Verifica ainda que Ŗa primeira díade confinava [...] com a desordem, [...] gera [...] efeitos
eminentemente versáteis do desencadeamento da forma unária [Ŗeu diz euŗ ], deixando subsistir
graves ameaças aos dois protagonistas tomados no jogoŗ (Dufour, p. 89). Em seguida, verifica que
Ŗo deslanchamento unário cria tanto um Řtempo eternamente presenteř quanto um tempo totalmente
evanescente: Ŗeuŗ e Ŗtuŗ entretêm uma dúvida constitutiva sobre a presença do presente e essa
dúvida só é superada porque os dois interlocutores, no momento em que falam, isentam-se da
ausência, atribuindo-a ao Ŗeleŗ (Dufour, p. 93)]. Dessa forma, Ŗa segunda díade [eu/tu-ele] recicla
esses elementos residuais e estabiliza as incertezas geradas pela primeiraŗ (Dufour, p. 89).
O autor aponta também para o fato de essa segunda díade desencadear novos problemas.
Esta delimitação acontece porque ele representa o que está ausente e, assim, torna possível a cena
286
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

da representação (Dufour, p. 90). É preciso Ŗexpulsarŗ o horror da morte simbolizando-o nesse


terceiro termo, que representa a presentificação daquilo que está ausente (Dufour, p. 92).
O ausente é ascender a um dado exterior à enunciação, mas simbolicamente necessário para
que possa haver enunciação. O ele ainda pode representar um Outro do outro, o limite do Ŗeleř, o
ele Ŗbarradoŗ . Este ele é a ausentificação da ausência presentificada (Dufour, p. 110, 111), um
perigo à simbolização. O ele da segunda díade é, portanto, a representação daquele que não enuncia,
uma vez que qualquer sujeito pode ser ele, ou ele pode precisamente não representar nenhum sujeito
- o ele Ŗbarradoŗ , que representa em Benveniste Ŗnenhum sujeitoŗ - e para capturá-lo seria
necessário escrevê-lo e depois barrá-lo (Dufour, p. 110).

Todos os nomes e Sem nome

Os romances, Todos os nomes [1997] e Sem nome [2006], são respectivamente, dos
escritores portugueses José Saramargo e Helder Macedo. Nome é um substantivo comum ao título
dos dois romances. Se o nome remete à questão da identidade do sujeito, como depositário de uma
consciência, de uma subjetividade, ao Ŗpercorrerŗ a leitura dos dois romances o leitor perceberá que
identidade definida é o que menos pode se esperar encontrar nas duas narrações. Os protagonistas
de ambos os romances enfrentam problemas para constituir sua subjetividade.
Um narrador onisciente conta a respeito da Conservatória Geral do Registro Civil, uma
instituição responsável por arquivar o registro de vida e morte, e nesse intervalo acrescentar
averbações do registro civil dos cidadãos, o que faz com que a Conservatória se torne um
ininterrupto depositário de papéis da vida de pessoas, emergindo nas descrições do narrador como
um imenso prédio de arquivos velhos e novos. Um incidente - um historiador que foi fazer certa
pesquisa no arquivo dos mortos Ŕ o mais distante Ŕ se perdeu no labiríntico lugar e foi encontrado
apenas uma semana depois, faminto, sedento e exausto, o que fez o chefe baixar Ŗuma ordem de
serviço que determinava, sob pena de multa e suspensão de salário, a obrigatoriedade do uso do fio
de Ariadne para quem tivesse que ir ao arquivo dos mortosŗ (TN, p. 15). A metáfora desse fio
condutor perpassa toda a obra.
Se o Sr. José, protagonista de Todos os nomes, precisa alternar-se com outros que sejam
Ŗeusŗ na narrativa para, através da intersubjetividade, constituir sua subjetividade, ele esbarra num
verdadeiro labirinto onde inevitavelmente problemas de ordem subjetiva facilmente se levantam:
num mundo cheio de nomes, ele é o único revelado:

dos quinze funcionários da Conservatória de Todos os nomes, onde se passa a maior parte
da trama, apenas distinguimos dois. Os demais encontram-se divididos e equalizados,
respeitando três categorias hierárquicas: oito auxiliares de escrita, quatro oficiais e dois
subchefes, desprovidos de qualquer alcunha que os identifique e diferencie (Matos, 2000, p.
2).

O mito do fio de Ariadne casa bem à trama que se desenrola na desconhecida e simbólica
cidade onde está a Conservatória: assim como Teseu, ao descobrir que sua cidade, Atenas, deveria

287
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

pagar tributo ao Minotauro, que vivia em um labirinto, o enfrenta; o Sr. José, ao descobrir o seu
dilema nos labirintos da Conservatória, propõe e aceita um desafio.

O Sr. José pode representar a um só tempo Ariadne e Teseu: propõe a si próprio entrar no
labirinto e, para sair dele, dá a si próprio um metafórico novelo que desenrolasse durante sua
investigação, e pudesse depois encontrar a saída. O labiríntico arquivo dos mortos não é para o Sr.
José, mas, se não enfrentasse a si mesmo, desafiando o labirinto, não haveria narrativa. A porta de
entrada para o primeiro labirinto é a passagem entre a casa em que ele vivia, junto a Conservatória,
por onde ele passava, clandestinamente, para acessar o registro de pessoas famosas e completar as
lacunas da coleção de recortes de jornais com informações que ele obtivera dos próprios arquivos
da instituição:

Ora, sendo esta mania do Sr. José manifestadamente das mais inocentes, não se
compreende porque ele usa de tantos cuidados para que ninguém possa chegar a suspeitar
que anda a fazer colecções de recortes de jornais e revistas e imagens de gente célebre (...)
(Saramago, 1997, p. 24).

O segundo labirinto é o mundo, ao qual tem acesso devido a um Ŗacidente de percursoŗ , que
ocorrerá na trama e mudará o quadro enunciativo:

Felizmente a gente famosa não é assim tanta. (...) Quando conseguiu enfim recuperar o
fôlego, baixou-se para apanhar os verbetes, um, dois, três, quatro, cinco, não havia dúvida,
seis, à medida que os recolhia, os nomes lá estavam, famosos todos, menos um. Com a
precipitação e a agitação dos nervos, o verbete intruso viera pegado ao que o precedia, de
finos que eram a diferença de espessura mal se notava. (...) É curioso, não me lembro se é
de homem ou de mulher o verbete que veio pegado. Voltou atrás, tornou a sentar-se,
demoraria assim um pouco mais a obedecer à força do que tem de ser. O verbete é de uma
mulher de trinta e seis anos, nascida naquela mesma cidade, e dele constam dois
averbamentos, um de casamento, outro do divórcio. (TN, p. 36-37).

Desta forma, na sua aventura, ao descobrir o verbete de uma mulher desconhecida, o espaço
enunciativo do protagonista se amplia, pois passa a buscá-la. Já em Sem Nome, o tempo da
enunciação do romance gira em torno da vida de um advogado português que se tornou bem
sucedido em Londres, José Viana. Nos tempos de sua juventude, quando era militante do Partido
Comunista Português-PCP, teve um romance com a também militante Marta Bernardo. O romance
dos dois, que é já passado, contudo, constitui o centro do enredo da história. O romance entre eles é
interrompido abruptamente em 1972, devido a resolução de José Viana de sair de Portugal, para não
servir o exército com o intuito de internamente subvertê-lo, em nome do Partido, mesmo que neste
não se falasse em desertar. Planeja fugir com Marta, pois para ele o amor se sobrepunha à lealdade
ao Partido:

A chance de José Viana sair do país surgiu de repente. Num cargueiro para Roterdam, a
levantar ferro na madrugada do dia seguinte, sexta-feira 2 de junho de 1972. Uma
organização da esquerda holandesa tinha tudo preparado, não havia tempo a perder. Mesmo
288
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

assim, arriscou-se na tarde de quinta-feira a ir deixar sobre a mesa da sala na Rua do Barão
o desenho da árvore. Aguardou enquanto pôde no Príncipe Real. Ainda passou pelo Jardim
das Amoreiras. Não pode esperar mais, teve de ir com os holandeses sem ao menos ter
podido dizer à Marta para onde. Escreveu-lhe de Roterdam e depois de Londres, sem
resposta. Telefone suspeitamente variado. (SN, p. 41)

A não solução dos eventos que antecedem a saída clandestina de José Viana de Portugal se
dão pelo fato de ele não ter conseguido trazer consigo à amada, por algum tipo de desencontro que
ele não alcança, e com o passar do tempo nem mais tem notícias dela. Ele contudo Ŗlevaŗ para
Londres a viva presença dela, que está ausente de sua vida.

O erro não foi só por causa disso, foi tê-la [secretária miss Lisa Costa] usado nesses seus
atordoados anos londrinos iniciais para poder continuar a viver como se a vida tivesse
continuado depois do desaparecimento de Marta Bernardo (...). Mas trazê-la para o espaço
do seu vazio só servira para os tornar ainda mais evidentes (...) (SN, p. 17)

Os rumos da história mudam quando recebe um telefonema do aeroporto de Londres, de


uma que é ao mesmo tempo, Martha Bernardo e Júlia Sousa e nenhuma das duas, detida pela
imigração porque seu rosto não correspondia à data da identidade.

A policia da imigração no aeroporto de Londres desconfiou e as coisas complicaram-se


para Marta Bernardo que não podia ser quem comprovava que era. E depois para o José
Viana, que a reencontrou na possibilidade de que ela fosse quem parecia ser. (SN, p.12)

A alteridade e a negação da unicidade do eu

Em Todos os Nomes, o Sr. José começa a se tornar sujeito quando parte em busca da mulher
desconhecida, mas é apenas a partir da descoberta de sua morte que atinge a possibilidade do uso do
índice de pessoa (a Ŗconcha vaziaŗ ), tornando-se um eu, que percorre o labirinto para enfrentar o
ŖMinotauroŗ . O Sr. José se torna o Ŗeuŗ da enunciação ao travar diálogos com as outras
personagens, em busca da mulher desconhecida. Retorna à Conservatória Ŕ por meio do Ŗfioŗ Ŕ, o
intricado jogo enunciativo onde o Sr. José é o Ŗeuŗ , e a mulher desconhecida um Ŗeleŗ , com quem o
Sr. José não pode enunciar.
A mesma fuga, a não possibilidade de o protagonista encontrar aquela que busca, aparece
em Sem Nome. Assim, José Viana, ao ver a Marta presumida desaparecida, revela-se

E que na verdade nem sequer se chamava Marta nem Bernardo, mas Maria Júlia Moraes
Teixeira de Sousa Bernardes e, como aliás honestamente declarara, é jornalista, de nome
profissional Júlia de Sousa. Portanto o policial da imigração no aeroporto de Londres deve
ter escrito Maria com um i que parecia t, transformando Maria em Marta ao presumir que
numa portuguesa Maria contava como nome e não era apenas uma espécie de hímen
baptismal, e Bernardo ou Barnardo em vez de Bernardes (...) (SN, p. 59)

Julia de Sousa, na tentativa de ajudá-lo a descobrir o que aconteceu com Martha, ajuda o
protagonista a encontrar-se a si próprio:

(...) a conversa com Carlos Ventura fê-la entender que, apesar das suas reservas iniciais, o
desaparecimento de Marta Bernardo poderia dar um novo projecto interessante de
289
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

jornalismo investigativo; e prometera a José Viana que iria usar os seus contactos
profissionais e pessoais para ajudá-lo a encontrá-la ou, pelo menos, saber o que lhe tinha
acontecido. (SN, p. 101)

Mas, ao iniciar suas investigações, ela é motivada pelo seu projeto de iniciar a escrita sempre
adiada de um romance (p. 101) e, principalmente, por parecer com aquela Martha que fora e não é
mais e agora:

Bom, encontrar Marta Bernardo depois destes anos todos, a Júlia percebera logo que o
Carlos Ventura tinha razão, não só era improvável como seria quase um anticlímax. Além
de que não lhe apetecia nada encontrar-se face a face com sua própria imagem de daqui a
trinta anos, se de facto eram tão parecidas quanto o José Viana insistira que eram. (SN, p.
101, 102)

A alteridade com personagens em fuga

Não tendo sucesso em sua busca, o protagonista de Todos os Nomes, o Sr. José, entra em
angústia, percebendo-se ele próprio igualmente fragmentado à medida que a busca se vai
configurando como malsucedida:

O imaginário e o metafísico diálogo com o tecto servira-lhe para encobrir a total


desorientação do espírito, a sensação de pânico que lhe vinha da ideia de que já não teria
mais nada para fazer na vida (...) a busca da mulher desconhecida havia terminado (...) até
que por fim as lagrimas saltavam (...) (TN, p. 158).

A angústia do protagonista será agravada pela possibilidade da mulher desconhecida ter


morrido, o que ele constatará ao ver a falta de sua ficha no arquivo dos vivos: ŖO verbete da mulher
desconhecida não estava lá. A palavra fatal relampejou imediatamente dentro da cabeça do Sr. José
(...). Morreu. Porque o Sr. José tem a obrigação de saber que a ausência de um verbete do ficheiro
significa irremissivelmente a morte do titularŗ (TN, p. 161,162).
Ele vai ao cemitério procurar o túmulo da mulher: ŖEntra-se no cemitério por um edifício
antigo cuja frente é irmã gêmea da fachada da Conservatñriaŗ (p. 213). ŖAo lado da sepultura da
mulher desconhecida, mordiscando a erva húmida, estava uma ovelha perdida (...). E um homem
idoso, com cajado na mão vinha na direcção do Sr. Joséŗ (p. 237). Sua surpresa é que o túmulo não
seja o da mulher desconhecida:

De repente, o chão pôs-se a oscilar debaixo dos pés do Sr. José, a última pedra do tabuleiro,
a sua derradeira certeza, a mulher desconhecida enfim encontrada, tinha acabado de
desaparecer, Quer dizer que esse número está enganado, perguntou a tremer, Um número é
um número, um número nunca engana, respondeu o pastor, se levassem de cá este e o
colocassem noutro sítio, mesmo que fosse no fim do mundo, continuaria a ser o número que
é (...) (Saramago, 1997, p. 239-240).

O Sr. José visita os pais da mulher desconhecida, sabendo que ela se suicidara, e descobre algo
que lhe faz mais uma vez estremecer, única chance de dialogar com a mulher desconhecida: ŖA sua filha
trabalhava, Sim, era professora de matemática, Onde, No mesmo colégio em que tinha estudado antes de
ir para a universidade. O Sr. José deitou outra vez a mão ao copo, esteve a ponto de fazê-lo cair com a

290
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

precipitaçãoŗ (p. 258). Consegue dos pais a chave da casa onde a mulher desconhecida morava. Lá, pela
primeira vez em toda a narrativa, a mulher desconhecida enuncia, mas apenas pela voz do gravador da
secretária eletrônica do telefone da casa:

O mecanismo do gravador de chamadas funcionou, uma voz feminina disse o número do


telefone, depois acrescentou, Não estou em casa, deixe o recado depois de ouvir o sinal (...)
tão perturbado o puseram as poucas palavras que ouviu. Não estou em casa, deixe o recado
depois de ouvir um sinal, sim, não está em casa, nunca mias estará em casa, ficou apenas a
sua voz, grave, velada, como que distraída, como que estivesse a pensar noutra coisa
quando fez a gravação (Saramago, 1997, p. 272, 273).

Em Sem Nome, quando Júlia Sousa pensa em tornar-se a outra, Martha Bernardo, ela vai
chegar ao limite do unário (Ŗeu é quem diz euŗ ), e essa disposição vai desencadear desdobramentos
internos no fio da narrativa, que só serão barrados quando a loucura unária for alocada para a
relação eu-tu-ele, em que, ao dizer Ŗeuŗ instala diante de si um tu a propñsito dřele: ao escrever aos
dois amantes e a José Viana, ela procura se situar como sujeito falante diferencial e expor para fora,
simbolizar aquele Ŗeuŗ ausente, Martha Bernardo, que na verdade se trata de um Ŗele barradoŗ que
não participa da enunciação:

(...) já pedira ao Carlos Ventura que a ajudasse no que continuaria a dizer-lhe que era o seu
projecto jornalístico através dos contactos que tinha no PCP. Ao Duarte tinha pedido para
averiguar se na empresa agora gerida pelo pai havia algum registro ou memória do tempo
do avô sobre a Marta Bernardo ou da família. E ao José Viana iria escrever a dizer o que
pudesse (...). (SN, p. 102)

Dufour demonstra que, ao dizer Ŗeuŗ , o seu uso sñ vale por um tempo do discurso dado,
limitado a uma só alocução Ŕ o tempo durante o qual um alocutñrio dado assume a forma Ŗeuŗ
diante de um Ŗtuŗ Ŕ e que Passado este limite, minha passagem não é mais válida: quando o outro
diz ―eu‖, não se trata (ou não se trata mais) de mim! É preciso que eu tenha, em suma, a memória
permanente da validade limitada dos índices. (Dufour, p. 75). É por esse motivo, não poder ser
Marta Bernardo, que Júlia precisa Ŗbarrarŗ aquela que não é para continuar sendo.
Na verdade, ela entra na mesma Ŗarmadilhaŗ em que entraram Édipo e Narciso. Essa relação
ajuda a explicar os desdobramentos internos no fio narrativo. Os personagens mitológicos se
encontram daquilo que eles deveriam escapar. Narciso, sendo o mortal mais belo, não poderia
olhar-se no espelho, seu reflexo, senão definharia. Ao ver sua imagem refletida no rio, se admira e
se perde em sua própria imago, pela qual se apaixona. Júlia de Sousa, ao tentar ser Marta Bernardo,
se vê na outra e se admira e procura imaginar uma história inventando para ela um passado,
costurado com recordações verdadeiras e fictícias de personagens verdadeiras e fictícias:

Mas naquela noite, depois do último desencontro, pensou Júlia, eu não voltaria logo para
casa. Só muito mais tarde, de madrugada, na esperança de que houvesse outro recado sobre
a mesa, em desespero por sentir que não ia haver.
(...) Júlia lembrou-se do que tinha pensado sobre a diferença entre imaginar e escrever,
entre contar histórias e compor as palavras de um livro (...). Mas também era legítimo
querer visualizar o penteado da Marta, que estilo de roupa usava (...). O que tinha mesmo
que escrever era uma espécie de relatório para o José Viana, como lhe prometera (...).

291
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Depois pensou também para esse propósito não estava inteiramente errada em ter querido
sentir-se como a Marta Bernardo, ter querido sentir o que a Marta sentiu. (SN, p. 109,110)

Na narração edipiana, o herói se torna amante de sua própria mãe, Jocasta, sem o saber, e
quando sabe se condena ao destino que o Oráculo de Delfos havia dito ao seu pai. José Viana, ao
ver Júlia Sousa, como a mesma Martha Bernardo, tenta imaginar ela sendo uma filha de Martha,
não com ele é claro, mas com a mesma rapidez desse pensamento ele percebe que não poderia ser,
pois Martha não poderia ter filhos, pois fora torturada e violentada pelos agentes da Pide:

Daí que o José Viana soubesse de ciência segura que a Martha Bernardo do aeroporto de
Londres não era filha da outra, como certamente teria sido a explicação mais plausível e
certamente menos fantasmática das coincidências que tanto o perturbaram: semelhança
física, nome, morada. Nas circunstâncias, teria sido plausível que a Marta que amara tivesse
podido recompor a vida na ausência dele, tido novos amores, uma filha a que desse o
mesmo nome e que tivesse crescido parecidíssima, em devido tempo recuperado o
apartamento que tinha tido ao deixar quando ele saiu de Portugal, e mais tarde passado o
apartamento à filha. Excepto que não podiam ser mãe e filha (p. 36, 37)

São as especulações do narrador que aproximam Júlia Sousa de Édipo: se fosse ela a
continuação da vida de Martha Bernardo, que não houve, seu possível envolvimento com José
Viana Ŗcumpririaŗ uma situação imbricante: Julia como Martha se tornaria não sñ amante de José
Viana, como a própria imagem da Martha nela, tomando o lugar da outra sendo a outra (assim como
Édipo ocupa o lugar do pai, mas sem o saber). Para que pudesse ser que é de fato, Julia e não
Martha Bernardo, ela precisaria Ŗeliminarŗ (simbolicamente, claro) a presença evocada daquele Ŗele
barradoŗ (Martha Bernardo), escrevendo-a para depois barrá-la, assim como Édipo elimina, sem o
saber, seu próprio pai, para depois se apaixonar e casar com sua própria mãe. A maneira como a
outra protagonista vai resolver esse problema sem necessariamente eliminar-se é passá-la para o
âmbito literário, onde cria uma Marta Bernardo, tornando-a personagem de um grande projeto, seu
romance, inventando uma história para Marta e, assim, resolver o problema de duas formas: não
definhar na reflexão/contemplação da imagem da outra em si, e nem se permitir ser a Martha
Bernardo outra para José Viana.

Não se pode matar alguém imaginando a sua morte. No entanto é o que fazem os
romancistas. Escreve-se, e aconteceu. O que não se sabe é se a Júlia quis matar a Marta ou
imaginar-se morta na interposta pessoa de Marta. Ficou, em todo caso, com uma aprazível
sensação de poder e de liberdade. Tinha-se tornado dona da memória dos outros e achava
que portanto também, pela primeira vez, senhora de si própria. Livre. Poderosa. Sem nome.
Com o nome que escolhesse conforme as circunstâncias e as necessidades das pessoas em
que se transformasse.
(...) A Marta Bernardo não foi preciso imaginar. Era ela própria, foi si própria que se sentiu
a ser ela. Não como seria num filme ou como era nos sonhos, a ver-se de fora. Ou como a
olhar-se no espelho para visualizar a Marta, no outro dia. Enquanto tinha estado a escrever
era diferente disso. Via as coisas que a Marta via sem se ver a vê-las.
(...) Mais problemático, no entanto, é que só tinha conseguido visualizar o José Viana como
ele era agora (...). Por isso é que mal entrou no relatório (SN, p. 161, 162,163)

Em ambos os casos a eliminação de um não implica a solução da relação intersubjetiva.


Édipo se condena duas vezes pelos dois atos do destino, mesmo não sabendo de antemão. Júlia de
292
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Sousa e José Viana percebem-se impossível sustentarem uma relação, e por isso não se tornam
amantes na narrativa.
É só quando consegue resolver para o protagonista (José Viana) o problema da ausente-
presente (Martha Bernardo), criando para aquela uma história onde possa desembocar sua
enunciação, conseguirá José Viana resolver o problema de sua subjetividade ao enunciar.

Começou: Prezada Júlia de Sousa. Parecia carta de negócios. Apagou Prezada e digitou
Estimada. Apagou tudo. Digitou Júlia. Ficou a olhar a ver se chegava. Não. Seco demais.
Cara? Caríssima? Querida?

Júlia, minha Amiga:


Obrigado. Recebi. Fiquei a saber o que mais receava. Que mais lhe posso dizer? Só talvez o
que estou a pensar neste momento.(...)
Podia dizer-lhe que a amo a si, que mal conheço. Talvez porque não a conheço. Teria ao
menos o mérito de a fazer rir. É o que sempre procuro conseguir nos tribunais. Um juiz que
sorri é um caso ganho. Porque rir, nunca riem os juízes (...). Mas você não queira ser meu
juiz. Ria à vontade. Não leve a mão à boca a disfarçar. Era um gesto da Marta, que lhe tinha
ficado das freiras. (...) A Marta teria quase a minha idade se estivesse viva. Agora terá
sempre a sua.
(...) Creio que o melhor é que não nos voltemos a ver. Você perguntou se quero que
continue as suas pesquisas sobre a Marta ou se prefiro que desista. No que me diz respeito,
tanto faz. Já sei mais do que precisava saber. Você já sabe mais do que é bom saber para si.
Estou a abandonar as duas, como você sugeriu? Se sim, tem de ser.
(...)
E você? Já mudou as datas de seu nascimento nos seus documentos? Faça-o o quanto antes.
Já viu que pode ser perigoso.
Desejo-lhe bem já que a não posso desejar melhor.

José Viana
(SN, p. 151, 156,157, 159, 160).

Referências bibliográficas

BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de linguística geral II.
Campinas, SP: Pontes, 1989.

DUFOUR, Dany-Robert. Os mistérios da trindade. Rio de janeiro: Companhia de Freud, 2000, 435 p.

FLORES, Valdir.; SILVA, S.; LICHTENBERG, S.; WEIGERT, T. Enunciação e gramática. São Paulo:
Contexto, 2008, 187 p.

MACEDO, Helder. Sem nome. Rio de Janeiro: Record, 2006.

MATOS, Mauricio. O verdadeiro senhor dos arquivos. In: Brasil e Portugal: 500 anos de enlaces e
desenlaces. Revista Convergência Lusíada, 17. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de leitura do RJ,
2000, p. 312-321.

SARAMARGO, José. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

293
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

DA IRONIA À CONSTRUÇÃO DO NARRAR

Fadul Moura (UFAM)

Os Deuses vendem quando dão.


Compra-se a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

(Fernando Pessoa)

Barganha: um jogo de trocas

ŖOs Deuses vendem quando dãoŗ (PESSOA, 2007, p.44). No verso de Fernando Pessoa está
a relação que servirá de fio condutor para o desenvolvimento deste trabalho: a barganha.
Caracterizada como permuta, ela exige que haja a presença de, no mínimo, duas partes envolvidas
para que se dê a sua realização. Essas, por sua vez, são: 1ª) aquela que irá oferecer algo; 2ª) a que
irá comprá-lo; logo, o que fica evidente é o comércio entre ambas 1. No verso, a disposição das
palavras demonstra como as relações humanas se dão; todos os seus elementos convergem para o
verbo vender, criando uma de cadeia de significados, a qual pode ser vista nas movimentações de
troca do conto somente a morte2, de Benjamin Sanches.

No texto são encontrados dois planos narrativos: o primeiro possui o narrador que conta uma
história; o segundo apresenta a história de jorge, contando o evento pelo qual passa com sua burra
chamada esmérdia. Nas duas partes há sutis traços de ironia que acabam por desfazer as aparências
de cada personagem, revelando não somente a condição do outro, mas também a própria. Sobre essa
forma de mostrar-se, Martin Heidegger diz que Ŗo ente pode-se mostrar por si mesmo de várias
maneiras, segundo sua via e modo de acesso. Há até a possibilidade de o ente se mostrar como
aquilo que, em si mesmo, ele não é [...] Chamamos de aparecer, parecer e aparência a esse modo
de mostrar-se.ŗ (HEIDEGGER, p.58, 1993) O que ocorre, portanto, é um jogo do texto com o
próprio texto, onde a ironia surge como elemento de troca entre a linguagem e o leitor.

Nesta análise, primeiramente será levado em consideração o narrar e, mais tarde, alguns
pontos da história de jorge serão esclarecidos. Sendo assim, eis...

Narrar...

1
Tais relações são consideradas comerciais devido ao fato de haver troca de bens, materiais ou não.
2
As citações colocadas no decorrer deste trabalho respeitam a escrita e a preferência do autor, isto é, as letras sempre
minúsculas (salvaguarda alguns casos específicos).

294
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

esta história ouvi da boca de minha avozinha malaquesa numa noite em que eu estava me
queimando de sarampo. e vou transmiti-la a você com as mesmas palavras, suprimindo
apenas o seu sotaque árabe e as maiúsculas que ela não pronunciou. antes mesmo que eu
começasse a suar após ter cumprido de minha parte o pacto de beber toda aquela tigelona
de chá de sabugueiro, ela falou assim: (SANCHES, 1998, p.83)

É assim que se inicia o conto. O narrador deixa claro que a história contada não lhe pertence,
que a ouviu de sua avó e que vai transmiti-la diretamente a seu interlocutor. Os quatro elementos
postos logo na abertura do texto, isto é, o ouvir, a idade, a transmissão e o interlocutor, evocam uma
tradição diferente da que se espera em textos escritos. Eles evocam a tradição da oralidade: o
narrar/contar histórias. De acordo com os ensinamentos dos mais velhos, é necessário ouvir aqueles
que têm a Ŗautoridade da velhiceŗ , pois em suas histñrias eles enviam algo de importante para seus
ouvintes mais jovens, reproduzindo a história da geração ou, simplesmente, uma história.

A potencialidade do contar/narrar histórias se dá pela morte que se aproxima e pelo afeto o


narrador que têm ou estabelece com o ouvinte, assim, a consciência de que a morte espreita confere
legitimidade e respeito ao mais velho. Nas palavras de Walter Benjamin, Ŗ[...] assim o inesquecível
aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela
autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer para vivos em seu redor. Na origem da
narrativa está essa autoridade.ŗ (BENJAMIN, 1994, p.207-208) Desse modo, ele pode se fazer
ouvir e, em alguns casos, compreender. O afeto que demonstra é um dos pontos mais sutis da
tradição. Ele é responsável pelo envoltório onde internamente é posto seu interlocutor, engendrado
com a finalidade de distanciá-lo da realidade em que vive, para que nessa suspensão ele possa
entender os ensinamentos contidos em cada história.

O fato de o narrador dizer que suprimirá o sotaque árabe de sua avó, aliado à ausência das
letras maiúsculas que por ela não foram pronunciadas, reforça a ideia de oralidade encontrada no
texto. Sotaque é um elemento que não pertence ao âmbito escrito, e é colocado ao lado da
contraposição que é feita às letras, não só representantes mas também responsáveis pela composição
da escrita. Geralmente, o sotaque é indício de que um indivíduo nasceu em determinado lugar,
porém, no momento em que esse indivíduo não está em sua terra natal, o sotaque também é a
declaração da sua condição de estrangeiro, é o determinante que põe em evidência a sua diferença.
Em O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, Walter Benjamin (1994) destaca
dois tipos de contadores de histórias: os camponeses, que residem em lugar fixo Ŕ logo se pensa que
carregam a tradição local Ŕ, e os marinheiros, que viajam por muitos lugares, levando histórias por
onde passam um curto período de tempo. Ao fim deste, eles retornam à viagem, carregando consigo
outras histórias para novamente poderem narrar.

Dos destaques feitos por Walter Benjamin, o que interessa para este trabalho não é
necessariamente o marinheiro, mas a condição de viajante. Independente de onde estiver, sempre
será considerado um estrangeiro. Mesmo que retorne à sua terra natal, ele não pôde acompanhar as
modificações pelas quais ela passou devido à sua ausência (as pessoas não são mais as mesmas,
295
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

envelheceram, morreram... nasceram outras), logo, nem à sua própria terra ele mais pertence.
Tornou-se um estranho. E uma vez assumida a condição de viajante, ele só pode pertencer à
viagem, isto é, ao transitar constante, que, no caso do contador/narrador, é o próprio ato de
contar/narrar. O sotaque árabe da avó do narrador, ou seja, da narradora anterior que um dia
colocou o atual na posição de seu interlocutor, evoca essa condição, todavia, ela não é uma
estrangeira qualquer, pois é árabe. Esse fato intensifica o caráter oral previsto no texto, porque faz
referência direta ao contar dřAs mil e uma noites. Destarte, a avó realiza no contar a extensão de si e
da história, enquanto, concomitantemente, difunde a tradição. Sobre isso, evoco mais uma vez as
palavras de Walter Benjamin:

[c]ontar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias
não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a
história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele
o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as várias histórias
de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em
que está guardado o dom narrativo [...]. (BENJAMIN, 1994, p.205)

Apesar da capacidade de registro das letras, o que interessa no contar histórias não é a sua
fixação em um papel, mas o carregar na memória: o lembrar. O gesto que a avó realiza ao dar para
seu neto o chá de sabugueiro, o qual agiu como remédio contra o sarampo, é o que faz com que ele
recorde e presentifique a avó no momento em que conta. ŖO narrador retira da experiência o que ele
conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à
experiência dos ouvintesŗ (BENJAMIN, 1994, p.201). Assim, ele não conta mais a histñria sozinho,
pois junto com ele, em sua memória, a voz da avó o acompanha em cada momento.

Mesmo assim, ele precisa de um interlocutor que o ouça. Eis que no momento em que diz
Ŗesta histñria ouvi...ŗ (SANCHES, 1998, p.83), o leitor torna-se um ouvinte. No fim do parágrafo,
as palavras ditas pelo narrador afirmam que Ŗ...ela falou assimŗ (SANCHES, 1998, p.83) (grifo
meu). A própria linguagem utilizada por Benjamin Sanches direciona leitor para o contar. O verbo
aqui destacado indica a liberdade que ato da fala possui, podendo-se utilizar expressões que fogem
aos padrões escritos. Isso também acontece na composição de seus textos. Raramente Benjamin
Sanches utiliza letras maiúsculas. Isso pode ser pensado como um nivelamento textual, ou seja,
como um gesto que coloca todas as palavras no mesmo plano, sem que a presença de uma
maiúscula destaque uma palavra sobre a outra (a não ser em casos especiais como no conto
intitulado as unhas). Até mesmo a escrita de Sanches, que transcende o padrão ao ser alinhada à
direita, converge para as idéias de oposição à escrita, e, consequente, um direcionamento para o
narrar/contar histórias. Isso, porém, deve ser encarado com bastante cuidado. O leitor pode ser
envolvido pelas tramas de forma que nem ele mesmo perceberá e, assim, será conduzido para onde
o texto quiser levá-lo.
296
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Uma vez explicado o primeiro parágrafo, o qual, numa primeira leitura, parece não possuir
relação com restante do conto, enceto a análise das outras movimentações do texto.

Ironia: suspensão e deslocamentos

A ironia consiste num elaborado pensamento em que o ironista lança uma mensagem para
que seu receptor a compreenda e saiba que ela não corresponde exatamente ao lançado, mas ao que
há por trás dele. Pensando dessa forma, haverá alguns elementos em destaque: a palavra dita, a não
dita e a capacidade de percepção. Esses, porém, são os elementos mais simples da ironia. Essa se
torna mais sofisticada quando, além disso, introduz a ambiguidade na mensagem, fazendo com que
o leitor fique em dúvida, pois ela gera um afastamento dos sentidos das palavras. Segundo Lélia
Parreira Duarte,

[i]ronizar será, nesse sentido, distanciar-se, poder colocar questões, transformar presença
em ausência, introduzir no saber o relevo e o escalonamento da perspectiva. Em razão disso
o mesmo já não será o mesmo, mas um outro. [...] O ironista escolhe ser um outro que não
ele mesmo [...] Diz então, à sua maneira, que a essência do ser é o devir, que não há outra
maneira de ser que dever-ser, explora assim com virtuosidade a dissociação entre ser e
parecer, o equívoco entre o parecer e o aparecer, o desacordo do pensamento com a
linguagem, do pensamento com a ação, do pensamento consigo mesmo. (DUARTE, p.33-
34, 2006)

Explico: o que o ironista realiza é uma suspensão do significado da mensagem, fazendo com
que o material suspenso seja escalonado, transferido para outro elemento pertencente à mensagem
lançada, provocando uma obnubilação por causa do jogo que se faz com a linguagem. Destarte, o
que se tem são transposições (deslocamentos) de significados, uma vez que eles deixam de ter uma
relação direta com seu significante.

Observe-se, agora, a descrição feita pelo narrador na apresentação de jorge:

jorge, seminu, rosto escavado pela colher bicôncava do cansaço, escora o corpanzil
espigado e ossudo sobre o pau da enxada e em vago movimento de frialdade cadavérica,
ergue lentamente o braço esquerdo [...] enquanto seus olhos percorrem a encosta do morro,
lançando chispas de ódio sobre a burra esmérdia, que, gostosamente, pastava no tapete de
relva que custara o seu sacrifício. [...] (SANCHES, 1998, p.83)

297
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ao observar as ações de jorge, percebe-se não somente o seu estado mórbido, mas também a
condição de trabalhador do campo. Assim, é por este ponto que é começo a revelar outras trocas
intrínsecas ao texto. A relação que a personagem estabelece com a natureza é a de um trabalhador
que retira dela o seu alimento. No excerto supracitado, o corpo do homem é descrito como um
Ŗcorpanzil espigado e ossudoŗ , transferindo características das plantas Ŕ no caso, sabugos de milho
Ŕ para a figura humana, inserindo-a no ciclo natural1. O Ŗpau da enxadaŗ aliado ao Ŗtapete de relva
que custara o seu sacrifícioŗ (grifo meu) reforça o que já foi dito sobre a condição de trabalho:
jorge necessita de ofertar algo a terra a fim de possa receber dela o que deseja, porém, o fato de
receber somente plantas rasteiras é sinal de que o esforço não foi satisfatório. É este o momento em
que esmérdia entra na história. O narrador foca no olhar que o homem lança sobre o animal,
fazendo com que o leitor acompanhe e enxergue com os olhos da personagem. Note-se o jogo que a
escrita realiza, tanto com o leitor quanto consigo. O narrador Ŗempresta os olhos da personagemŗ
para o leitor, fazendo com que este último perceba de forma sinestésica as emoções do camponês. É
com esse recurso que os sentimentos confundem-se nos parágrafos seguintes, principalmente,
quando jorge sente mais ñdio de esmérdia, ao mesmo tempo em que tece Ŗconsiderações sobre a sua
voluptuosidadeŗ (SANCHES, 1998, p.83) e a própria desgraça.

O que acontece é uma projeção de jorge em esmérdia. A partir da relação que ele estabelece
com a burra Ŕ camponês x animal que cuidaria da plantação Ŕ, o mesmo faz dela a culpada pela sua
inoperância (lembrar de que o leitor observa a história pela perspectiva dele). É por insistir em
justificar que a causa da sua desgraça é o animal que o leitor percebe, tanto na conversa que ele têm
com miguel, seu afortunado vizinho, quanto pelas outras partes do conto, que esmérdia não passa de
uma burra. E o que jorge exige dela, é o que deveria ser feito por ele.

Por esmérdia, jorge se projeta; por ela, ele também se estende. A relação de um ser o
desdobramento do outro fica clara nas seguintes passagens (refiro-me respectivamente à esmérdia e
a jorge): Ŗde quando em vez soltava as suas vozes que sacudiam o ar num desafio aos deuses e aos
céus. o som tonitruante e blasfemo rodopiava no espaço sem perder a intensidade e voltava à sua
garganta onde fazia ponto parágrafo.ŗ (SANCHES, 1998, p.85) e Ŗsentia a alegria circular no vazio
de sua felicidadeŗ (SANCHES, 1998, p.86).

A imagem do círculo tem sentido distinto nas duas passagens: na primeira, indica a
liberdade do animal por não ter consciência humana. Por mais aprisionado que estivesse à charrua
amarrada ao seu pescoço, esmérdia sempre estaria livre do peso da responsabilidade das escolhas;
na segunda, por sua vez, exprime o contrário. O Ŗvazio de sua felicidadeŗ surge como elemento
ilusório onde a alegria é inserida, aprisionando o homem na sua condição de homem. Considera-se
aqui o aprisionamento devido ao fato de o homem possuir a liberdade de escolha. A escolha faz
com que o homem seja obrigado a sustentar a responsabilidade de sua vida, uma vez que não existe
auxílio divino.

1
Lembrar de que ossos Ŕ como restos orgânicos Ŕ também servem de adubo.
298
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Há no texto outras imagens que corroboram a aproximação de ambos: a da burra sacudindo


Ŗpatadas pelos trinta e dois raios da rosa-dos-ventosŗ (SANCHES, 1998, p.83) e Ŗos crivos
escarlates deixados pelo tosco cabo da ferramenta, o qual ficara matizado com o roxo do seu sangue
coaguladoŗ (SANCHES, 1998, p.84). Patas e mão, aliadas às outras passagens em que jorge age
como animal e coloca esmérdia na posição de uma Ŗdeusa jovialŗ (SANCHES, 1998, p.83),
configuram as inversões que ocorrem entre eles. jorge possui os crivos de sua mão apresentados em
degrade, variando a tonalidade de um vermelho vivo até chegar ao roxo. Assim, em sua mão está o
controle e, ao mesmo tempo, a possibilidade de escolha que vai desde a vida até chegar à morte,
condenando-o. A burra, ao contrário, não possui dedos, mas lança suas patas em várias direções,
conferindo a ela apenas ações de um instinto que liberta.

Assim, uma vez apresentado como as imagens dessas duas personagens são suspensas e
deslocadas uma para a outra, a ironia está formada, porém, ainda não está completa. O que resta é
ambiguidade para que ela chegue ao ponto da sofisticação. Essa ambiguidade se dá quando o risível
passa a fazer parte integrante da obra.

Na conversa entre jorge e miguel, este aconselha àquele a procurar por são josé, o santo
protetor dos trabalhadores, pois ele poderia interceder por sua causa com deus. Em seu desespero,
jorge sobe ao morro para ficar Ŗmais prñximo do céuŗ (SANCHES, 1998, p.85) e lá faz suas
súplicas. O santo lhe garante que falará com deus para que o mesmo resolva da maneira mais justa.
Ao fim, esmérdia morre e jorge retorna ao morro para falar com o santo novamente. E esse lhe diz:

Ŕ paciência Ŕ disse-lhe o bom santo Ŕ esmérdia veio ao mundo para cumprir aquela missão.
trouxe no sangue aquela tendência [...] nasceu com o instinto e predestinação de viver a
vida como burra braba [...] não havia meios de a recuperar, e deus, suprema sabedoria, teve
que a matar para atender às tuas súplicas. somente a morte poderia ajustá-la. somente a
morte. (SANCHES, 1998, p.87)

A posição de deus é, então, revelada na histñria. A entidade Ŗteve que matá-laŗ para atender
às súplicas do infeliz. Neste momento, o verbo ter insere a personagem sagrada nas mesmas
relações de barganha de que o homem participa. jorge não somente as estabelece com a terra e com
esmérdia, mas também com o próprio deus. E, através delas, revela, ainda, a condição inferior da
personagem divina, pois esta tem que matar. O homicídio realizado pela divindade é mais um
ponto da ironia no texto de Benjamin Sanches, pois coloca o homem numa posição superior, sendo
responsável, mais uma vez pela sua escolha. No momento em que jorge faz o pedido, ele mesmo
está sendo responsável pela morte de esmérdia. Ele escolheu matá-la. E deus não foi nada mais que
seu instrumento. A consciência, porém, da escolha, não se sabe ao certo se ele alcançou... o que
resta no conto é o choque que ele sofre com as palavras do santo.

299
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O riso: a máscara do discurso irônico

Ao fim, o risível é intensificado, fazendo com que o leitor, no processo catártico, ria da
trágica vida de jorge. Evoco, neste momento, mais uma vez as palavras de Lélia Parreira Duarte, no
que diz respeito, agora, ao riso:

[o] riso relaciona-se, assim, com a tragicidade da vida, mas também com a capacidade de
distanciamento: o prazer de pensar, o gosto do engano e a possibilidade de subverter
provisoriamente, através do jogo, a condenação à morte e tudo aquilo que a representa. Em
geral visto como sinal de alegria, o riso pode revelar o sofrimento em toda a sua crueza.
(DUARTE, 2006, p.51)

É exatamente isto o que acontece no conto. O leitor, ao enxergar a desgraça alheia, ri. O riso
nada mais é que a máscara necessária para que o leitor não seja atingido diretamente pelas palavras
da escrita de Sanches. É aí que a ironia maior está formada. O riso é o elemento que acusa
completude do texto com seu leitor, é o elemento barganhado entre o leitor e o texto. A obra cria,
cuidadosamente, pela tradição da oralidade condensada naquele primeiro parágrafo, que Ŕ lembro Ŕ
parece não ter relação alguma com o resto do texto, as armas necessárias para que o leitor não tenha
como escapar: a troca do chá de sabugueiro pela história é o que antecipa todas as outras relações
do conto. É, portanto, a ponta do fio irônico. O riso torna-se, então, inevitável. Todavia, é preciso
que ele seja assim, a fim de que se possa suportar que todos estão num mesmo jogo. Essa é a
máscara que ilude o leitor das ações de sua própria consciência. Seria insuportável a crueldade
revelada no texto, a crueldade da responsabilidade do viver. Ao fim, sem o riso para amenizar as
dores trágicas, o que nos restaria seria somente a crueldade da existência.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Trad. de Jaime Bruna. 12. ed. São
Paulo: Cultrix, 2005.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Trad. Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad. Nathanael C. Caixeiro. 2.
ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números). Trad. de Vera da Costa e Silva e outros. 23. ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2009.
300
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; São
Paulo: Alameda, 2006.

ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. de Márcia de Sá Cavalcante. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
1993.

PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Ed. Hedra, 2007.

SANCHES, Benjamin. o outro e os outros contos. 2. ed. Manaus: Valer, 1998.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. de Rita Correia Guedes, Luiz


Roberto Salinas Forte e Bento Prado Júnior. 3 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

ZUCOLO, Nicia Petreceli. Contos de sagração: Benjamin Sanches e a experimentação estético-


formal na Literatura Brasileira. 2005. 127 f. Dissertação (Mestrado em Sociedade e Cultura na
Amazônia) Ŕ Instituto de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Amazonas, Manaus,
2005.

301
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

RELAÇÕES INTERSEMIÓTICAS ENTRE AUDIOVISUAL E LITERATURA EM


ADAPTAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Fúlvio de Oliveira Saraiva (U. F. C.)


Fernanda Maria Abreu Coutinho (orientadora)

Introdução

Este trabalho procura estabelecer relações entre algumas linguagens artísticas que interagem
nas produções por nós destacadas. Algumas serão utilizadas como ilustração para demonstrarmos os
conceitos de tradução intersemiótica modernos como uma reorganização peculiar a cada linguagem
tradutora de um texto-fonte a um texto-alvo. Tendo, aqui, o texto em um sentido amplo, ao qual se
estende às produções mesmo não-verbais como a pintura ou a música, por exemplo.
Seguiremos ainda a esteira de estudos nas linhas de intertextualidade e interdisciplinaridade
como os de Glória Maria Palma, em seu livro Literatura e cinema: a demanda do Santo Graal &
Matrix / Eurico, o presbítero & A máscara do Zorro (2004), em que a autora explora as relações
entre cinema e literatura sob uma concepção moderna de estudos. Estenderemos essa perspectiva
para os estudos culturais, estudos em literatura comparada e semiótica, os quais dão aporte teórico
para uma abordagem abrangente sobre o tema proposto.
Passaremos a pontuar nossos argumentos com breves menções de estudos de caso que
corroborem nosso pensamento. Trataremos de questões relacionadas às adaptações em quadrinhos,
audiovisual e literatura infantil sempre tentando cultivar um elemento comum entre elas: a temática
da infância. Aparelhados pelos estudos culturais, discorreremos sobre o tema e comentaremos
algumas traduções intersemióticas, fundamentando nossa visão sobre a relação entre texto-fonte e
texto-alvo.
Sobre o modo de ver a tradução intersemiótica neste trabalho, tentamos tratar o tema como
uma produção em que a compreensão só é possibilitada pelo seu entendimento como objeto com
um valor interno ao nosso sistema, no contexto simbólico e social em que é gerado. Ao tratar sobre
o assunto em nossa sociedade, devemos saber o que significa e o lugar que ele ocupa dentro da
nossa cultura.
As produções infantis no cenário contemporâneo de reposicionamento e defasagem dos
signos, em geral, sujeitam-se ao esvaziamento de sentido que atravessa a produção cultural em
massa da sociedade atual. É preocupante o fato de que a inserção da criança nesse contexto
contribui com o desenvolvimento do quadro, e, ao refletirmos sobre essa orgia sígnica (no dizer de
Baudrillard), cremos justificado nosso trabalho.
Trabalharemos com a hipótese de que o poder do audiovisual pode interferir de forma direta
na literatura a ponto de recriá-la, penetrando inclusive o currículo escolar com produtos adotados
pela escola.

302
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A importância dos recursos audiovisuais sugere apreciações que acompanhem seu


desenvolvimento. Desde estudos antropológicos pioneiros que sua utilização vem sendo observada
e ao anotar novas ferramentas para uma melhor compreensão do objeto, como por exemplo, a
internet, vemos graus de iniciativa e autonomia antes não atingidos pelas crianças. Tal acesso à
informação não era possibilitado até então, senão pelo advento dessas novas tecnologias em que o
audiovisual prepondera. Portanto, à evolução dos recursos audiovisuais podemos atrelar a
autonomia (relativa) da criança diante da informação, pois o audiovisual tem assumido papel
pedagógico cada vez maior na formação infantil e se dá de forma direta sem a necessidade de
mediadores.

Justificativa

Em um novo contexto sígnico, como foi dito antes, a produção para a infância não parece
flutuar em um mar de conjeturas e especulações filosóficas vazio, mas sim, adaptar-se a uma lógica
reinante que seleciona e dá circulação ao objeto estético. Essa lógica está presente em toda
manifestação artística contemporânea da sociedade dita urbana pós-moderna de perfil ocidental.
Portanto, como dado cultural que é, a literatura infantil é um exemplo das práticas sociais da
sociedade produtora e reprodutora dessa lógica.
Assim, além do redimensionamento do objeto literário infantil e de seus signos
preponderantes, temos em termos de análise, o problema da circunscrição do objeto científico como
objeto de análise. Já que as relações estabelecidas entre ele e a conjuntura mercadológica
extrapolam o plano artístico, em nosso entendimento, faz-se necessária uma abordagem
interdisciplinar que compreenda a obra literária infantil em sua totalidade. O que por sua vez
acarreta em outro problema, a saber, o do aparato teórico que excede a alçada da literatura.
Diversos fatores, que coadunados formam a conjuntura da contemporaneidade, trouxeram
uma visibilidade das crianças como sujeitos sociais e elas ganharam espaço e legitimidade em uma
variedade de estudos (COHN, 2005, p.10). Talvez a investigação do fator econômico como
manifestação dessa atuação social infantil e como um dos pressupostos para essa visibilidade, seja
um dos pontos-chave para a explicação desse fenômeno.
Somente nos Estados Unidos, Ŗcrianças na faixa etária dos cinco aos doze anos gastam
anualmente US$ 4,2 bilhões do seu prñprio dinheiroŗ (FISHER et al apud STEINBERG;
KINCHELOE, 2004, p. 395), e as Ŗcrianças entre 5 e 14 anos influenciam os gastos familiares
diretamente em US$ 196 bilhões e, indiretamente, em mais de US$ 400 bilhões anualmente (LINN,
2006, p. 21).
Mesmo submissa, sob vários aspectos, ao adulto, a criança tem importante relevo na
constituição das relações sociais em que se insere (tanto em âmbitos institucionais formais como
escolas e orfanatos, quanto em não formais como na rua e na família), possuindo assim, relativa
autonomia. Essa Ŗmargem de manobraŗ que é inerente ao sistema em que a criança se integra,
percorre algumas possibilidades e impossibilidades de atuação dela (COHN, 2005).
303
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Sob esse entendimento, a margem de manobra que resta às crianças em relação ao marketing
é pouco significativa. Segundo Linn (2006), diversas pesquisas mostram que o poder de influência
que o marketing exerce sobre as crianças evidencia-se na postura delas nas relações sociais com
família, escola, alimentação, consumo, violência, sexualidade, etc. Profissionais da propaganda
difundem e investem na idéia de que as crianças precisam ter poder e independência. Essa
independência infantil possibilita o contato direto entre os meios de comunicação e a criança.
É cada vez mais reforçado pelos preceitos publicitários que a redução entre as faixas-etárias
dos públicos-alvo é um quesito a ser explorado com afinco. Como resultado da aproximação entre
produtos infantis e produtos adultos, vemos um intercâmbio que confunde as delimitações e o
consumo de produtos e consumidores de destinação distintas e viabiliza uma interação nociva. Por
isso vemos animações para comercias de cerveja ou cigarros, e crianças vendendo seguros,
automóveis ou produtos de limpeza... Acreditamos que, nesse sentido de inter-relação de
linguagens, a produção publicitária pode também ser considerada como tradução intersemiótica.

Objetivos

Quando vemos a literatura infantil transfigurada em um valor fractal, que é a sua irradiação
por todas as direções possíveis, temos o sentido original de seu surgimento desligado de sua própria
existência. O objeto literário flutua aleatoriamente em uma trajetória particular (de partícula)
desprovido de sua motivação literária, erra pelo cosmo disperso da irradiação produtiva. Vaga
dentro de um sistema simbólico em que os signos, destituídos de seu significado imanente e
incorporado, já não bastam para traduzir-se efetivamente em um sentido imediato.
O que possibilita essa dispersão de sentido é justamente a abundância de produção e a
saturação valorativa e contra-valorativa que abastece a produção artística atual, fomentando ao
mesmo tempo em que corrói a razão de ser de toda produção criativa.
O que acontece quando a literatura infantil é cerceada pelo desligamento de sua origem
como texto-fonte, quando sua referência é responsável pelo seu próprio apagamento, quando sua
existência remete a uma indiferença ao fazer literário é o que nos interessa nesse estudo e configura-
se como motivo de reflexão deste trabalho. O objetivo é analisar implicações sociológicas e
filosóficas do caminho que se segue ao texto-fonte como mercadoria fetichizada, proporcionando
infinidades de traduções intersemióticas, tornando-se objeto de valor fractal; caminho da defasagem
de valores que o revestiam como objeto, a saber, o valor de uso, o de troca e o do próprio signo
fetichizado. É também objetivo deste trabalho mapear as aparições de traduções intersemióticas que
orientam a produção contemporânea e demonstrar como essa interação se dá. Junto a isso
observaremos que a prova dessa transcendência sígnica é que o prolongamento não-literário do
objeto literário ultrapassa toda a razão de ser da criação literária e reveste-a de um esgotamento de
si mesma pela proliferação desenfreada de sua própria permanência onipresente.
Um dos objetivos de refletir sobre as práticas discursivas (no dizer de Foucault) é trazer para
dentro do próprio discurso, o questionamento sobre o qual se argumenta. Se, entretanto, o discurso
304
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

se mantém imune sobre o que teoriza, a cisão entre prática e teoria se acentua e o abismo existente
se estende a cada nova assertiva. Com esse argumento, fica justificada uma remodelagem do
discurso.
Discursos, sistemas de signos e práticas significativas de todos os tipos, do cinema e
televisão à ficção e às linguagens das ciências naturais, produzem efeitos, condicionam
formas de consciência, que estão estreitamente relacionadas com a manutenção ou
transformação de nossos sistemas de poder existentes. Dessa forma, eles estão estreitamente
relacionados com o que significa ser uma pessoa. (EAGLETON, 2003, p.317)

Fundamentação teórica

Com a arte os homens se expressam, geram intercâmbio de experiências, estimulam a


empatia, emulam-se, organizam e desorganizam o mundo. E assim, surgem diversas leituras desse
mundo, e essa variedade é o que possibilita a sua renovação. Analogamente, as traduções ou
adaptações têm o poder de criar uma nova leitura para o texto-fonte e de tornarem-se, elas próprias,
um novo e autêntico objeto de arte. Nesse sentido se aproximam da concepção triádica do signo, de
Pierce.
Da mesma forma que o discurso literário não tem compromisso com a verdade científica,
ética ou moral, nem tem função utilitária e nem é passível de um julgamento pautado em uma
realidade concreta, assim também as traduções se comportam, tendo a propriedade de citar, recriar,
homenagear, afastar-se, questionar ou mesmo negar um texto-fonte. Devemos ter em mente que
uma adaptação não Ŗdeveŗ créditos a um texto-fonte. Ao apropriar-se dele em outra linguagem a
tradução está livre para atender às peculiaridades de seu próprio discurso livremente, recusando a
ideia de valoração pela fidelidade ou não a um texto-fonte.
Atentar para o que acontece com o consumo dos signos é uma tarefa obscura e exige mais
do que aparelhagem teórica, exige intuição. O que pode resultar numa análise especulativa e
subjetiva, e, ainda, contradiz seriamente os postulados da ciência (exatas) Ŕ mas como diz
Baudrillard, é uma questão de escolha.
No plano da arte isso fica ainda mais impalpável. Com exemplos do cotidiano temos melhor
visualização da teoria. Tomemos como exemplo o celular para ver o caminho que percorre o objeto
até atingir seu valor fractal. Quando surgiu era um objeto para poucos e sua tecnologia de ponta
prometia total satisfação ao usuário. Nasceu com sua função bem definida: gerar e receber
chamadas móveis com qualidade. Essa função ainda era atribuída ao objeto e ele possuía os três
estágios do valor: a) o valor de uso Ŕ em que a função, utilidade, apreço, valor de custo, enfim, uma
condição Ŗnaturalŗ dá a valoração direta ao objeto pela relação que ele estabelece com o homem (a
possibilidade de gerar e receber chamadas móveis); b) o valor de troca Ŕ a relação que se estabelece
entre um referencial coletivo e o objeto, valorando-o (o dinheiro determina qual o valor do celular,
pois seria difícil precisar a quantidade de galinhas necessárias para trocar por um celular. Também
entra o valor de custo, e o valor de uso desemboca no valor de troca); c) o valor-signo Ŕ o valor
referencial dentro de um sistema de valores, é um valor estrutural, ele corresponde a Ŗum cñdigo, e
o valor aí se desenvolve em referência a um conjunto de modelosŗ (BAUDRILLARD, 2008, p. 11).
305
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Assim, não se valora o objeto em si, mas o que ele representa dentro do conjunto, valora-se o seu
signo (o celular como signo de modernidade e status social, o carro como símbolo de poder, etc).
Aqui o valor de uso e de troca é sobrepujado pelo valor-signo. O objeto pode até não mais servir
para nada e nem mesmo ter equivalência de valor de troca, mas o valor-signo acarreta-lhe valor à
medida em que o redimensiona como signo dentro do conjunto.
Temos assim a trajetória convexa do celular toda revestida pelo processo da tecnologização,
que é a distorção do uso da tecnologia em nome de uma lógica de produção descartável visando o
giro de capital. Hoje em dia qualquer pessoa possui um celular e ele deve ser dos mais modernos,
incorporando várias funções secundárias. Quem não se rende à tal lógica pode até sofrer
preconceitos. E esse ciclo se renova, pois dentro em breve surge outro celular com outra nova
função ou simplesmente lança-se um menor e todos passam a comprar celulares menores... Aqui
temos ainda o fetiche da mercadoria. Um objeto Ŗobsoletoŗ sñ se torna obsoleto quando possuí-lo
torna-se comum a todos. Logo, é preciso que surja outro objeto para suprir a carência de
exclusividade da posse que se torna o fetiche da mercadoria e do consumo.
Concluímos que a função primeira do telefone celular, a capacidade de fazer e receber
chamadas móveis, foi deixada em segundo plano. Ele foi destituído de sua função. E aí entramos no
quarto estágio do valor, no seu valor fractal, filho do fetiche da mercadoria e irmão da
tecnologização.

Quando as coisas, os signos, as ações são liberadas de sua ideia, de seu conceito, de sua
essência, de seu valor, de sua referência, de sua origem e de sua finalidade, entram então
numa auto-reprodução ao infinito. As coisas continuam a funcionar ao passo que a idéia
delas já desapareceu há muito. Continuam a funcionar numa indiferença total a seu próprio
conteúdo. E o paradoxo é que elas funcionam melhor ainda (BAUDRILLARD, 2008, p.
12).

Assim, o valor fractal, o quarto estágio do valor, é a defasagem dos valores que antes
revestiam o objeto pela própria irradiação desenfreada do valor, que para Baudrillard, não se
deveria nem chamar de valor pela impossibilidade de qualquer avaliação nesse contexto.

No quarto estádio, o estádio fractal, ou estádio viral, ou ainda estádio irradiado do valor, já
não há nenhuma referência: o valor irradia em todas as direções, em todos os interstícios,
sem referência ao que quer que seja, por pura contigüidade. No estádio fractal, já não há
equivalência, nem natural nem geral, nem há lei do valor propriamente dita: só há uma
espécie de epidemia do valor, de metástase geral do valor, de proliferação e dispersão
aleatória. Em rigor, já não se deveria falar de valor, já que essa espécie de demultiplicação e
de reação em cadeia torna impossível qualquer avaliação (BAUDRILLARD, 2008, p. 11-
12).

Voltando para nossa argumentação, o que afirmamos com essa digressão é que esse valor
fractal se estende às produções artísticas e seus signos. Assim como os objetos, os bens culturais

306
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

artísticos também geram relações sociais, também inserem socialmente as crianças, portanto, faz-se
necessária a discussão acerca desses bens.
Há várias culturas infantis e cada cultura concebe a infância em seus próprios termos, e o
conceito aqui utilizado será generalizado pelo comportamento ocidental urbano contemporâneo,
visto que o Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE,
2000), afirma que crianças de 4 a 14 anos representam mais de 50 milhões de brasileiros, quase
30% da população do país. E também que 78% dessas crianças vivem em situação domiciliar
urbana, ou seja, mais próximas aos bens de consumo e expostas à comunicação publicitária
estrategicamente dirigida a segmentos específicos, em diversos meios (TRINDADE, 2002).

Metodologia

Como recurso audiovisual, a propaganda pode servir como um bom exemplo do poder que
as traduções podem exercer. Dona de um discurso subliminar, a retórica publicitária atua como o
discurso artístico, chegando mesmo a graus tão elevados de elaboração que podemos aproximar a
um objeto de arte audiovisual. Talvez a grande diferença esteja na função da propaganda. Por ser
utilitária, por servir a um fim (vender), ela acaba se tornando marcada negativamente nas análises
críticas.
Foi sobre esse pressuposto que ancoramos nossas reflexões acerca do discurso publicitário e
acreditamos serem válidas nossas colocações sobre o assunto, já que as produções audiovisuais que
interagem de forma decisiva na literatura têm na publicidade seu grande meio de divulgação e
apelo.
Passemos então às considerações sobre sintomas da imbricada relação entre audiovisual,
literatura e marketing. É o caso de livros da Disney na pré-escola e alfabetização com títulos como
Carros, A pequena seria, 101 dálmatas, Os incríveis e outros. O que sugere o poder de narrativa
desses produtos e nos traz questionamentos sobre até que ponto essas narrativas encontradas nos
desenhos podem moldar o conteúdo dos livros que delas derivam. O site Ŗwww.brasilescola.comŗ
traz uma lista de livros da indústria cultural que podem ser comprados on line por qualquer pessoa
em qualquer lugar do país. Esse fomento de títulos da Disney é um exemplo notável da natural
condução do mercado da literatura infantil hoje e do poder que o audiovisual exerce em várias
esferas da vida social.

A realidade da Disney Company como um poderoso império econômico e político pode ser
vista no registro dos seus lucros e no seu crescente alcance cultural corporativo. Por
exemplo, em 1994 a Disney Company faturou aproximadamente US$ 5 bilhões nas
bilheterias, US$ 3,5 bilhões nos seus parques temáticos e perto de US$ 2 bilhões nos
produtos Disney. Além disso, no verão de 1995, a Walt Disney Company fez o maior
negócio da indústria de mídia americana, investindo US$ 19 bilhões para adquirir a Capital
Cities/ABC (GIROUX apud STAINBERG; KINCHELOE, 2004, p.107).

Em um caso brasileiro, o Menino Maluquinho, temos a partir do livro uma série de


elaborações: produção fílmica (com direito a continuação), quadrinhos, tirinhas, charges, cartões
307
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

telefônicos, livro de receitas, livro de mágicas, manual de sobrevivência, selos postais, brinquedos,
CDřs, etc... No que nos cabe aprofundar, as produções estéticas intersemióticas, vemos a
mobilização de artistas como Rita Lee, Patrícia Marx, Milton Nascimento, Sandy e Júnior, Hebert
Vianna, Samuel Costa, Paulo Ricardo e Guilherme Arantes. Ou seja, pessoas habituadas às
produções musicais criam uma relação intersemiótica com o texto-fonte de Ziraldo.
O autor mostra toda sua versatilidade ao flertar com vários campos da produção artística.
Ziraldo, que é co-autor de livros no portal Ŗhttp://www.educacional.com.br/ŗ , possui vasta bagagem
no meio artístico, sendo referência para ilustração de literatura infantil. Vejamos como o site em
que Ziraldo colabora descreve sua atuação:

O Portal Educacional é um ambiente de conhecimento, ensino e aprendizagem que conta


com mais de 600 mil páginas de conteúdo organizado, voltado exclusivamente para as
escolas particulares de todo o país, que atendem desde a Educação Infantil até o Ensino
Médio.
Desenvolvido pela Positivo Informática, empresa do Grupo Positivo ŕ um dos maiores
grupos educacionais do Brasil ŕ une a mais avançada tecnologia ao know-how adquirido
em 34 anos de experiência em educação. No Educacional, há inúmeras ferramentas de
grande valor pedagógico, além de conteúdo elaborado e analisado por uma equipe de
educadores especializados, o que assegura a qualidade e adequação das informações (sic).
Sua escola contará ainda com acompanhamento constante e presencial de profissionais
habilitados, que orientarão seus educadores para o pleno uso dos recursos oferecidos pelo
portal. Entre em contato conosco e agende uma visita... 0800 644 7193 ...ou solicite uma
senha temporária, disponível somente às Escolas Particulares, para ter acesso às áreas
restritas do Portal Educacional

O poder dos personagens oriundos do audiovisual extrapola a alçada da arte. O Menino


Maluquinho, de Ziraldo, rendeu-lhe parcerias como a com o clube de futebol Corinthians Paulista e
a com a prefeitura da cidade de Londrina, na campanha ŖMaluquinho por Londrinaŗ .
Com a campanha ŖMaluquinho pelo livroŗ , em parceria com o governo federal, iniciada em
1999, o Programa Nacional do livro Didático (PNLD), executado pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE/MEC), obteve em 2002 um percentual de recuperação muito
maior do que a média anterior à campanha. A taxa de reposição variou de região para região no
País, mas a média foi de 12,7%.
Exemplo contundente do panorama da literatura infantil contemporânea é o sucesso da série
de J. K. Rowling, Harry Potter. Marisa Lajolo comenta a respeito do fenômeno de vendas

Cuidadosamente orquestrada pela mídia, a série lançada por J. K. Rowling é uma lição de
profissionalismo do hoje tão sofisticado sistema pelo qual circula a literatura infantil. Da
identidade da autora cuidadosamente esculpida ao suspense marqueteiro do lançamento de
cada volume, do latinório macarrônico às discussões sobre acertos e desacertos éticos e
pedagógicos da história, tudo é... literatura! (LAJOLO, 2007).

Lembremos mais uma vez, que esta exposição não visa a questionar o valor literário dos
autores, apenas revela um perfil de escritor privilegiado pelas relações entre marketing, literatura
infantil e audiovisual, que, através de uma hiper-realidade urde uma rede que movimenta várias
instâncias da sociedade, em conjunto, que têm como resultado final, no consumo, o lucro. Lições
que estão inclusas no livro, refletindo as práticas sociais que os bens culturais reproduzem, contêm

308
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

as Ŗpráticas e significados emergentesŗ que são reveladores de contradições e conflitos da ideologia


que não são apenas opositivos, mas também previsores, segundo Raymond Williams.

Na saga de Rowling, a vassoura é uma das principais estrelas do mundo mágico. O contexto
da Idade Média, do tempo das bruxas perseguidas pela Inquisição, surge atualizado pela
linguagem da sociedade de consumo de massas: a vassoura ganha inovações tecnológicas a
cada ano, como os automóveis e os aparelhos de televisão; ganha também preços
mirabolantes e vira objeto de desejo de crianças e adultos. Para o prosaico objeto, Rowling
inventa um catálogo de inovações; existem até agora a antiga versão da Shooting Star, o
modelo utilizado pelo amigo pobre de Harry, Rony, capaz de ser ultrapassado no vôo até
por borboletas; a Cleansweep Sevens, um pouco menos lenta, utilizada pelo time de
Corvinal; o modelo Nimbus 2000, a primeira vassoura adquirida pelo herói, com que ele
estréia no jogo de quadribol aos 11 anos; a Nimbus 2001, com a qual o inimigo Malfoy
tenta ser mais rápido do que Harry, e o fantástico exemplar da Firebolt, presente de Natal,
anônimo, que se supunha enfeitiçado e perigoso, mas que, ao final, revela-se um regalo de
Sirius, o padrinho foragido, no livro Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban.
(GUTKOSKI, 2005, p. 80)

Em Ŗempatiaŗ com a criança, a mídia sabe que atuar no espaço de independência infantil é
um filão compensador. Programas como o Disney Club TV C.R.U.J. (Comitê Revolucionário Ultra-
jovem) (Disney; 1997-2001) atestam essa autonomia em relação ao mundo adulto até no título. O
C.R.U.J. era um programa que simulava uma espécie de transmissão clandestina direcionada para
crianças, que funcionava às escondidas dos adultos. A cumplicidade estava entre a Disney e as
crianças, aliás, eles não se consideravam crianças, mas sim, Ŗultra-jovensŗ . Essa negação da
infância indica a refutação que a criança sente pela concepção adulta de infância que não reconhece
as mudanças ocorridas na pós-modernidade. É a negação da condição de dependência, fragilidade e
ingenuidade, que beira a deficiência intelectiva, na interpretação das crianças, por parte dos adultos.
Notemos que, em torno do objeto da literatura, o livro, o caminho de produção, não só no
sentido material de composição, mas também na criação, tem-se ramificado em várias direções.
Temos hoje filmes, desenhos, games e gibis, que viraram livros, enquanto anteriormente o caminho
era inverso e somente a literatura originava outras montagens.
A série Final Fantasy e Mortal Kombat saíram dos videogames para as telas de cinema e
depois para quadrinhos. É importante salientar que esses jogos contêm sim uma narrativa, muitas
vezes com início, desenvolvimento e desfecho. Daí vem seu poder como narrativa, porém, a questão
imagética é fator crucial para o formato. No caso de Mortal Kombat, as cenas em que os lutadores
arrancam a cabeça, coração ou a cervical do inimigo são de extremo realismo. A violência atrelada
ao realismo nesses suportes é extrema e ininterrupta.
Um caso interessante envolve uma categoria que geralmente é tida como destinada às
crianças: os quadrinhos. É curioso porque traz um traço de modernidade ao subverter o caminho
paradigmático da tradução em que o texto-fonte vem da literatura e transmuta-se em quadrinho.
Esse caso é justamente o contrário. Nele o quadrinho transforma-se em literatura. Neil Gaiman,
autor do quadrinho Sandman, transformou em short fiction seus originais para concorrer no World
Fantasy Award, de 1991, na categoria conto e venceu. O que resultou na reorganização do sistema
de avaliação do evento para evitar que um quadrinista ganhasse um prêmio literário.

309
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Deixando o purismo de lado, isso comprova que outras linguagens geralmente postas à
margem podem ter valor estético genuíno, mesmo quando contam com assédio ferrenho das grandes
corporações, como é o caso dos quadrinhos.
Isso demonstra que o protecionismo ao objeto literário sacralizado não pode se fundamentar,
pois nem mesmo os seus articuladores conseguem prever as imbricações e contornos que o próprio
objeto artístico reinventa. No caso de Sandman, considerado como Ŗquadrinho adultoŗ , o discurso
literário se faz de forma marcante, mas mesmo com todo seu valor estético não devemos considerá-
lo como literatura. Isso não implica em uma menor valoração como objeto de arte, mas apenas
como uma linguagem artística diferente, peculiar a seu suporte: o quadrinho.
Apesar de inúmeras aproximações, a literatura e o quadrinho diferem enquanto linguagem
criativa. No primeiro, mesmo que possa haver a questão da imagem com as ilustrações, ela apenas
pontua um segmento da ação trazendo uma interpretação do ilustrador para a obra. No caso do
quadrinho a questão imagética é parte essencial da obra. Ela é elemento estruturador da narrativa,
dependendo dela grande parte da fruição estética do objeto. Acrescentemos ainda que ela parte,
muitas vezes, do próprio criador do enredo, podendo ser componente simultâneo da estruturação
narrativa.

Considerações finais

O ciclo se completa com uma ressignificação dos signos e dos valores nas narrativas. Antes
as fábulas gritavam violência a um público rude e tosco, segundo alguns olhares. Hoje, o realismo
detalhando a violência nas histórias infantis fazem os contos dos irmãos Grimm parecerem cândidas
narrativas para crianças pré-escolares.
Por essa comparação, notamos que os signos (representações da violência) e os valores
(motivação da representação da violência, sua assimilação, etc) sofreram alteração no decorrer da
história. Quando um enredo trazia a violência para a trama tinha um objetivo visível: a doutrinação
pelo medo, ou seja, tinha uma função moral e ideológica. Quando a violência surge nas histórias
modernas, em geral, vem destituída de intencionalidade profunda e aparece apenas e gratuitamente
para uma função superficial de atração para o consumo. Isto é, vem esvaziada de sua função
primária, o choque, causar medo; pois a gratuidade de irradiação dos signos e valores já banalizou a
violência tornando-a corriqueira sem função moral. Quando se cresce em meio à violência seu
aparecimento já não causa mais impacto, num mecanismo de defesa psicológico que explica porque
crianças espancadas não aprendem com os açoites. Pior do que a violência é o medo da violência; e
quando esse medo é superado pela internalização, assimilação pela banalização da violência, ela já
não surte nenhum efeito.
O fato do redimensionamento e da irradiação dos valores e dos signos não é uma
exclusividade da literatura infantil e muito menos é o total decréscimo da qualidade do objeto
literário como arte. Ao contrário, é a assunção da qualidade como função em uma disseminação
extrema que atinge em cheio a arte literária, fazendo de sua ascendência algo que não cabe em si e é
310
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

obrigado ao retorno, a uma implosão, uma involução do valor pela total dispersão de suas
características até seu desaparecimento consumindo-se até a última gota de tinta da literatura
infantil.

Referências bibliográficas

BAUDRILARD, Jean. A Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 2007.

_________________. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Perspectiva, 2008.

COHN, Clarice . Antropologia da Criança. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

GUTKOSKI, Cris. Do pó de pirlimpimpim ao pó de flu: transportes para a fantasia em


Monteiro Lobato e J. K. Rowling. In: JACOBY, Sissa; RETTENMAIER, Miguel (Orgs.). Além
da plataforma nove e meia. Passo Fundo: UPF, 2005. p. 67-90.

JAKOBSON, Roman. Aspectos lingüísticos da tradução. Lingüística e comunicação. Trad.


Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1991.

LAJOLO, Marisa. Harry Potter: enfim... o fim! In SUPLEMENTO, Belo Horizonte, Nº. 1306,
Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, out Ŕ 2007.

LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Trad. de Caudia


Matos Seligmann. Bauru: EDUSC, 2007.

LINN, Susan. Crianças do consumo: a infância roubada. São Paulo: Instituto Alana, 2006.

PALMA, Glória Maria. Literatura e cinema: a demanda do Santo Graal & Matrix / Eurico, o
presbítero & A máscara do Zorro. Bauru: EDUSC, 2004.

PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001.

SOUZA, Eneida Maria. O não lugar da literatura. In: Crítica cult. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.

STEINBERG, S. R., KINCHELOE, J. L. (org.) Cultura infantil: a construção corporativa da


infância. Trad. George E. Japiassú Bricio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

TRINDADE, Christiane. A Influência das Ferramentas de Comunicação sobre o


Comportamento de Compra Infantil. Monografia. São Paulo: USP, 2002.

311
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

DO SÍMBOLO AO OBJETO VISTO: UMA ANÁLISE FENOMENOLÓGICA DE CHUVA


OBLÍQUA

Giselle Brandão Jaime1 (UFAM)

Resumo: A filosofia fenomenológica2 visa à reflexão do mundo como objeto de experiência e conhecimento
por meio de percepções, formando um mundo perceptual no qual o fenômeno (forma como vemos algo
perceptualmente) é o principal agente. A partir deste pensamento, o presente artigo tem como objetivo
apresentar uma análise do poema Chuva Oblíqua, do poeta Fernando Pessoa, visando os fenômenos que
compõem seu mundo perceptual, partindo do símbolo (sensação já representada) para o objeto visto (mundo
concreto).

Palavras-chave: fenômeno, análise, Chuva Oblíqua

Abstract: The phenomenological philosophy aims to reflect the world as object of knowledge through
experience and perceptions, forming a perceptual world in which the phenomenon (how we see something
perceptually) is the principal agent. From this thought, this article aims to present an analysis of the poem
Oblique Rain, the poet Fernando Pessoa, targeting the phenomena that make up their perceptual world,
starting with the symbol (feeling already represented) to the object seen (real world).

Key Words: phenomenon, analysis, Chuva Oblíqua

Fundamentação Teórica

Na análise do poema Chuva Oblíqua, como um cubo de fenômenos formado por


intersecções de imagens que representam o mundo real e imagens que representam as sensações do
poeta, serão utilizadas obras referentes à filosofia e a simbologia, além de textos a respeito do poeta
Fernando Pessoa e de sua poesia.

Para uma pequena introdução explicativa sobre a teoria filosófica aplicada ao poema será
utilizada a obra: Introdução à fenomenologia do autor Robert Sokolowsky. O que nos interessa em
sua obra é o conceito de fenômeno, de intencionalidade e da formação do mundo perceptual por
meio de objetos materiais presentes e ausentes a nossa consciência. Isso será utilizado na análise do
poema sempre com o objetivo de apresentar a visão do poeta sobre determinadas coisas que
compõem seu mundo fenomenológico, intencionadas a partir do mundo material.

1
Graduanda do curso de Letras Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas Email:
gisellebrandao.j@hotmail.com.
2
ŖDescrição daquilo que aparece ou ciência que tem como objetivo ou projeto dessa descriçãoŗ. (ABAGNAMO, 1998.
p437)

312
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A significação dos objetos vistos e imaginados ficarão por conta dos símbolos. O Dicionário
de símbolos de Jean Chevalier contribuirá para a noção do que é visto e imaginado pelo poeta,
seguindo sempre uma linha de significação relacionada ao lado do cubo o qual será analisado, com
o objetivo de apresentar a visão perceptiva do poeta em determinadas imagens.

Por último, a Obra poética de Fernando Pessoa, com organização introdução e notas de
Maria Aliete Galhoz, será usada tanto para a referência do poema quanto para o esclarecimento de
determinados pontos da obra de Pessoa a respeito de si e da forma de ver sua poesia.

Introdução

Em nossa vida cotidiana somos levados a observar várias coisas do mundo ao nosso redor,
temos vários objetos materiais manifestos para nossa percepção e identificamos cada um deles por
todos os aspectos e perfis pelos quais podem ser observados. Articulamos e falamos a respeito
desses objetos, respondemos emocionalmente a eles, seja de forma atraente ou repulsiva para nós;
reconhecemos coisas, estejam ela presentes ou ausente, podemos trazer algo ausente (ainda não
manifestado) para a presença e superar algumas ausências. Todos esses objetos os quais constituem
o nosso mundo material, todas essas coisas e a forma como as identificamos, mantém relação com
nossas intencionalidades1.

Não obtemos experiências ao intencionar apenas objetos materiais exteriores. O eu, o si


mesmo, também é objeto de experiência, pois é no eu que o mundo material é organizado; o eu é
objeto do mundo, uma parte do todo e ao mesmo tempo, o prñprio todo, subjetivo: ŖSe o mundo é o
mais amplo todo e o contexto mais abrangente, o eu é o centro em volta do qual esse todo mais
amplo, com todas as coisas nele, é organizadoŗ (SOKOLOWSKY, 2004, p. 53).

A percepção apresenta objetos apenas sob um determinado aspecto, as partes que nos são
manifestas ocultam as que ainda não se manifestaram, criando um jogo de presença e ausência.
Porém, a identidade de um objeto nunca se mostra apenas por um lado ou aspecto, além de não
percebermos apenas objetos presentes materialmente. A recordação também é um tipo de objeto a
qual faz parte da formação de nosso mundo perceptual e requer uma forma diferente de percepção:
ŖNa recordação não olhamos para um objeto que remete a outro. Simplesmente Ŗvemosŗ ou
visualizamos o objeto diretamenteŗ (SOKOLOWSKY, 2004 p. 76). É como se nos
transportássemos para o passado, desloca-se a si mesmo; recordar envolve o retorno de percepções
antigas, junto do objeto do passado traz-se também o eu do passado.

O mesmo ocorre com a imaginação. Nela há o mesmo deslocamento do si mesmo. A


diferença encontra-se no lugar para o qual somos transportados; na memória, um lugar do passado,

1
Ŗ(...) fenômenos físicos que se relacionam com o sujeito.ŗ (ABAGNAMO,1998. p577)

313
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

os objetos materiais que foram presenciados e percebidos; já na imaginação, o lugar nenhum. A


memória baseia-se na crença, no como foi realmente, e a imaginação no Řcomo seř.

Ao vivermos nesse deslocamento do eu, vivemos em caminhos paralelos: o do mundo


material, que nos é dado por meio de percepções materiais, e no si mesmo deslocado pela
imaginação e recordação:

ŖÀs vezes podemos vaguear mais e mais em um ou noutro deles: podemos estar tão
absortos com o que está imediatamente e nossa volta que perdemos todo distanciamento
imaginativo dele, ou podemos vaguear mais e mais no devaneio e na quimera, tornando-nos
praticamente, mas nunca inteiramente, desconectados do mundo circundanteŗ
(SOKOLOWSKY, 2004 p.84).

Além das manifestações de intencionalidade por meio da percepção de recordações e


imaginação, também nos pertence um nível mais sensível de perceber as coisas, por meio da
significação e da formação de imagens:

ŖNosso intercurso perceptual com o mundo espalha-se em variações em nossa vida interna,
nas quais deslocamos nós mesmos em situações recordadas, imaginadas e antecipadas, e em
variações em nosso modo de apreender as coisas do mundo: significar coisas particulares e
estados de coisas, formar imagens de coisas que não estão presentes para nós, e simbolizar
o que não pode ser pintado ou posto em palavrasŗ (SOKOLOWSKY, 2004 p.96).

Entende-se, portanto, que nossas intencionalidades vão além do objeto presente por meio do
fenômeno, uma vez que podem ser retomadas ou imaginadas; além disso, os símbolos, as imagens e
a significação das palavras possuem sua contribuição no processo de aquisição da experiência e da
atitude fenomenológica do mundo e do eu.

O que nos interessa para a análise do poema Chuva Oblíqua, proposta neste artigo, é
justamente essa relação do objeto visto, percebido, com o símbolo e as imagens, significações e a
presentificação poética da percepção das imagens as quais formam um mundo perceptual.

Desenvolvimento

É sabido que o poema Chuva Oblíqua1 é o principal representante do movimento de


vanguarda interseccionista. Pessoa nos diz que o interseccionismo é o sensacionismo que toma
consciência de cada ser na realidade, construída de diversas sensações mescladas. Ao sobrepor
essas sensações, presentificando-as poeticamente, o poeta forma imagens cubistas cheias de
símbolos e significados os quais constroem seis fragmentos de situação aparentemente distintos, os
seis fragmentos unidos formam uma espécie de cubo, são partes de seu mundo intencional.

1
Publicado pela primeira vez na revista Orpheu, nº 2, Lisboa, 1915.
314
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Relembrando, a identidade de um objeto depende de todas as formas pelas quais este objeto
pode ser percebido por nossa consciência. Por mais que não possamos percebê-lo inteiramente, pois
o jogo de ausência e presença sempre ocorre com todas as nossas percepções, ainda assim, o
identificamos após a manifestação de todos os seus lados, separadamente. Entende-se que a
identificação de objetos materiais, o que pensamos e intencionamos sobre eles, formam o nosso
mundo interior, a nossa forma de ver as coisas. O mesmo ocorre em Chuva Oblíqua, a vida
perceptual do poeta é apresentada em pedaços. Estes contém várias sensações de pensamentos e
memórias que provém da percepção material e são representadas em imagens cruzadas, formando
tudo aquilo que constrói o mundo interior de um indivíduo.

Lembremos agora do que Pessoa nos afirma a respeito dos estados de alma, os quais podem,
todos, serem representados por imagens: Ŗ(...) todo estado de alma é não sñ representável por uma
paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem.ŗ (PESSOA, 2007. p101). Partindo disso,
entendemos que em todo o poema encontraremos essas imagens-estados de alma, imagens-
sensações, sempre de algo presente materialmente com algo ausente, imaginado ou recordado.

No primeiro fragmento é retratada a visão de si. Nele o poeta sente-se, intenciona a respeito
de si mesmo. Tal fenômeno ocorre após a visão dele de uma paisagem exterior, cruza-a com sua
visão interior o que nos recorda a relação de formação perceptual, a experiência do indivíduo obtida
por meio da percepção do mundo material, nesse caso a experiência ou o conhecimento de si
mesmo, do eu.

Ao apresentar no poema a seguinte imagem: ŖAtravessa esta paisagem o meu sonho dum
porto infinitoŗ (PESSOA, 2007. p113), entende-se que ao ver uma determinada paisagem exterior,
material, o poeta sente algo que a atravessa, que cruza com sua realidade, intersecciona a paisagem
e o sonho:

Objeto visto = paisagem

Objeto sentido = porto

Mais adiante o poeta nos revela uma maior descrição da paisagem vista e da paisagem
sentida: ŖO porto que sonho é sombrio e pálido / E esta paisagem é cheia de sol deste ladoŗ
(PESSOA, 2007. p113). Ainda adiante, revela-nos que este porto sonhado faz parte de seu espírito,
é portanto, o seu estado de alma, a forma como se vê atualmente em oposição a paisagem externa:
ŖMas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrioŗ (PESSOA,2007. p113). O poeta vê-se
como um porto sombrio a partir de uma paisagem real, ensolarada. De certa forma, inteciona a
respeito de si por meio do objeto material que lhe é apresentado. Intersecciona essas paisagens a
aponto de não saber mais o que há em si, exatamente. Para tanto, usa de várias imagens e objetos
paradoxais: ver/ sonhar, sol/ sombra, árvores (estático)/ navio (móbil), cor/ ausência de cor,
embaçado/ nítido; sempre partindo do real para o sonho. A presença da dualidade entre luz/ sombra

315
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

e cor/ ausência de cor, nos revela esse não-saber-de-si, o poeta torna a si mesmo algo invisível,
transparente. O que vê e o que sente a respeito do que vê torna-se aquilo que ele é, um paradoxo.

.O eu do poeta forma-se do duplo, da junção entre aquilo que se vê e do que se intenciona a


respeito do que foi visto. Isso fica mais claro na última estrofe, na qual diz não saber o que existe
em si, mas tem consciência do que sente, do que vê e da forma como se vê no mundo e sabe que
essa profusão de imagens reais e sensações é o que o torna ele, que compõe seu eu interior: ŖE
chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, / E passa para o outro lado da minha alma...ŗ
(PESSOA,2007. p114). Ou seja, me compõe como pessoa, faz parte de mim para mim mesmo.

A própria imagem do porto já nos apresenta essa duplicação do ser; o porto é algo fixo, sem
mobilidade, porém, possui, dentro de si idas e vindas, despedidas e reencontros, o porto é um lugar
criado para ser algo fixo que recebe a movimentação sem fazer nada para tal. Ao mostrar-se como
um porto, o poeta se diz receptáculo de sensações, seu ser externo é algo fixo, imóvel e imutável,
mas com sensações móbeis, recebidas por suas intencionalidades a respeito do mundo externo,
sendo assim, jamais se reconhece inteiramente, pois por mais que seja sempre esse porto sombrio,
cada paisagem externa modifica algo dentro de si e o faz perceber-se por novas perspectivas.

Tem-se até aqui o primeiro lado do cubo, a primeira parte do que compõe o mundo
intencional do poeta, a forma como vê, percebe, ou intenciona a si mesmo.

No segundo fragmento os objetos de intersecção ausentes e presentes remetem a


espiritualidade do poeta. Representa-se um ritual católico que se torna presente por meio do objeto
real, a chuva, a qual se intersecciona com a sensação espiritual, a missa. Ao ver a chuva o poeta tem
a sensação de ver uma igreja; com isso, cria imagens da igreja, missa, coro, altar, padre, para
exprimir a sensação que a chuva lhe causa revelando mais um aspecto de seu modo de perceber o
mundo, o fenômeno religioso. Os elementos visuais remetem à espiritualidade do divino, a chuva é
símbolo de influências celestiais, Ŗ(...) tudo aquilo que desce do céu para a terra é (...) a fertilidade
do espíritoŗ (CHEVALIER, 2009. p236); a igreja vista por entre a chuva tem relação com o templo,
o qual é um reflexo do mundo divino, um mundo divino na terra.

Em todo o poema encontra-se um apelo sonoro muito forte nas silabas chiantes o que lembra
o barulho da chuva, como se o poeta quisesse materializá-la, e ao interseccionar com o coro,
também materializar suas sensações. A pontuação executa um papel rítmico muito marcado, poucas
vírgulas, o que dá uma rapidez maior ao poema, muitas reticências, o que dá uma lentidão no final
de alguns versos e no fim de todas as estrofes, como se fossem Ŗsocosŗ do vento nas gotas de
chuva. Nos dois últimos versos: ŖE apagam-se as luzes da igreja/ Na chuva que cessa...ŗ
(PESSOA,2007 p114) tem-se tanto o fim da chuva quanto o fim da missa, o fim de uma visão
material e, em conseqüência, de uma sensação.

A chuva, os montes são a representação, em paisagem, da sensação de religiosidade do


poeta. Mas como o ele percebe essa religiosidade?
316
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Encontramos resposta a essa pergunta nos outros elementos de intersecção visual: a vela
(objeto imaginado) representa a luz pessoal, o caminho do espírito é guiado pela luz após o
falecimento da matéria; o altar (objeto imaginado) é o condensamento do sagrado, do próprio altar
divino nos céus; os montes (objeto visto) representam a ascensão divina por estar associado ao
meio, ao caminho para o céu, por sua altura é considerado como a morada dos deuses, onde o
homem pretende chegar; o ouro (objeto imaginado) é a perfeição divina; o coro (objeto imaginado)
é o sopro, é o que une criatura e criador; o vento (objeto real) é a representação do influxo
espiritual; o automóvel (objeto visto) é algo que representa o pensamento técnico, a análise, o
mecanicismo, o único objeto que se opõe aos outros por não ter um significado espiritual.

No verso: ŖA missa é o automñvel que passaŗ , o poeta intersecciona sua religiosidade com
algo concreto e mecânico, diferente do que interseccionava até então; o pensamento religioso se
funde com o pensamento analítico, racional. Nos dá a entender que a visão do poeta a respeito da
espiritualidade é dupla. Ele não se deixa levar totalmente pelo pensamento religioso, mas também
não deixa que sua razão (representada pelo automñvel) tome conta das sensações espirituais: Ŗ(...)
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe / Com o som de rodas de automñvel...ŗ
(PESSOA,2007. p114).

Entende-se aqui, que esse segundo fragmento, ou segunda face do cubo, apresenta mais um
pedaço do mundo perceptual: a visão religiosa. O poeta cria a representação de sua sensação
religiosa com imagens católicas e apresenta sua visão a respeito do pensamento religioso como algo
que une a transcendência religiosa e a racionalidade.

No terceiro lado do cubo encontramos uma alusão ao destino. Objetos imaginados como
esfinge, Egito, pirâmides, Nilo, tempo e abismo ressaltam a imaginação do poeta com relação ao
seu destino. Essas imagens se cruzam com o mundo real, o mundo da escrita: papel, pena e mãos.
As coisas oníricas ultrapassam a realidade, se projetam para fora, para o real, o que nos dá a
entender que o poeta reflete a respeito de seu ato de escrever como algo que lhe foi destinado,
porém este mesmo ato ainda lhe é incerto: ŖA Grande Esfinge do Egito sonha pôr este papel
dentro...ŗ (PESSOA,2007. p114). A relação de incerteza se encontra no simbolismo da Esfinge, o
enigma inicial de um destino; o que difere homens comuns de homens universais é a decifração da
esfinge, a do poeta encontra-se no ato da escrita, escrever já é algo enigmático.

A transparência presente nos versos: ŖEscrevo Ŕ e ela parece-me através da minha mão
transparente / E ao canto do papel erguem-se pirâmides...ŗ (PESSOA,2007. p114) revela o
cruzamento, a mistura de imagens a qual faz com que a mão do poeta seja algo indefinido, sem cor
ou sem textura. A mão exprime uma ideia de poder e dominação, nesse caso, essa dominação sobre
o ato de escrever passa a não mais existir. Entende-se que ao perceber o papel esfíngico de escrever,
decifra-me ou te devoro, o poeta perde a dominação de sua escrita: ŖEscrevo Ŕ perturbo-me de ver o
bico da minha pena / Ser o perfil do rei Quéops... / De repente paro... / Escureceu tudo...ŗ

317
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

(PESSOA,2007. p114). Ao parar de escrever o poeta vê-se na escuridão, nos primórdios de si


mesmo, caindo num abismo de tempo, o que nos remete a reflexão de seu próprio destino.

A imagem do Egito (objeto imaginado) esmagando o poeta também nos traz essa noção de
destino, pois o Egito nos remete a fuga e ao retorno transformador para uma vida superior e livre. O
poeta, em seu ato de escrita enxerga todo o seu destino, confunde-se algumas vezes: ŖOuço a
Esfinge a rir por dentroŗ , duvida do que acredita que lhe foi destinado: ŖAtravessa o eu não poder
vê-la (a esfinge) uma mão enorme,ŗ (PESSOA,2007. p114) e ao final, supera a aparição do rei
Quéops: ŖJaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,ŗ (PESSOA,2007.
p115). Os olhos sempre são referentes a rituais de iniciação, reconhecimento e conhecimento,
entende-se que o poeta vence o rei, vence sua iniciação, sua esfinge e se iguala, em destino, a
grandeza de um rei: ŖE entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo/ (...) Funerais do rei
Quéops em ouro velho e Mim!...ŗ (PESSOA,2007. p115). Nesse último verso, o poeta apresenta-se
vencedor de sua esfinge, a escrita e iguala-se ao rei por usar letras maiúsculas em ŘQuéopsř e em
ŘMimř.

Nesse terceiro lado do mundo perceptual do poeta, é intencionado o destino. O futuro, por
mais incerto que possa parecer, sempre é objeto de intencionalidade humana, pensar sobre o futuro,
fazer planos, faz parte da vida perceptual do poeta, do que lhe compõe como pessoa.

No quarto fragmento encontramos o intersecção de dois espaços, o de fora, representado


pela primavera e o de dentro, representado pelo quarto em Andaluzia. A relação das pandeiretas
com o silêncio nos dá a noção de contrário: ŖQue pandeiretas do silêncio deste quarto!...ŗ
(PESSOA,2007. p115). As pandeiretas são a sonoridade percebida, imaginada e o silêncio é o real.
A questão do quarto em Andaluzia, nos dá a noção de que o poeta sente-se distante do mundo de
fora, as janelas no teto do quarto, os ramos de flores a cair, nos demonstra a consciência que o poeta
tem de que lá fora há a primavera, há uma vida para a qual ele está de olhos fechados.

Intenciona neste lado do cubo a consciência do poeta de si mesmo com relação a vida. O
poeta é recluso em seu próprio mundo, e vê-se distante da vida de fora.

O quinto fragmento é um complemento do quarto. Nele encontra-se também a relação de


dentro e fora. O poeta reflete sobre sua vida com relação as pessoas, de como são inconscientes de
sua função no mundo, pondo-se como observador da vida que passa sem participar dela. ŖLá fora
vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel.../ Árvores, pedras, montes, bailam parados
dentro de mim...ŗ (PESSOA,2007 p115). As imagens que se cruzam nesse poema são de sol e lua,
claro e escuro, dentro e fora, observador e observado: ŖNoite absoluta na feira iluminada, luar no
dia de sol lá fora,ŗ (PESSOA,2007. p115), nesse verso o poeta intersecciona a imagem que vê e a
sensação dessa imagem. A feira é muito iluminada, mas o poeta a vê como noite, e o dia é cheio de
sol, mas esse sol é sentido como lua. A presença da imagens de um local social, até então ainda não

318
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

apresentado nos outros fragmentos, torna o poeta mais próximo da vida social, uma feira é um local
pelo qual passam muitas pessoas cotidianamente.

O poeta não atreve-se a ir à feira, apenas observa as sensações causadas pela imagem dela.
Entende-se que ele não confunde-se com outras pessoas, apenas sente tudo de todas as formas e
para isso vive em sociedade como observador da realidade e de suas sensações a respeito da própria
realidade: ŖDe repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira/ E misturado, o pñ das
duas realidade cai/ Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos/ Com grandes naus que se
vão e não pensam em voltarŗ .

Agora traz de volta a imagem de si como um porto. A nau que se vai são essas sensações,
esse pñ de duas realidades que cai e não retorna mais. ŖPñ de oiro branco e negro sobre os meus
dedos.../ As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira, Sozinha e contente
com o dia de hoje...ŗ (PESSOA,2007 p116). O poeta vê-se socialmente como algo que não pode
alcançar, essa trivialidade da rapariga em sair contente da feira em um dia de sol.

Portanto, nesse fragmento é intencionada a realidade social do poeta, o qual se vê como


expectador e receptor dessas sensações. Aquilo que ele sente gira dentro dele, estaticamente, pois
ele mesmo não se mistura ao dia de sol, as pessoas da feira. Ter uma visão de sim num contexto
social, também é objeto de formação das percepções do fenômeno, do mundo perceptual.

No sexto fragmento o poeta intenciona uma memória, uma lembrança da infância trazida ao
tempo presente por meio da visão de um concerto. A sonoridade e o ritmo do poema fazem com que
este se apresente com um tom musical. A movimentação do maestro com a batuta é o que determina
o tempo e a velocidade da música, no poema é o que determina o presente e o passado. Quando o
ritmo do poema é mais rápido tem-se o presente, quando torna-se mais lento, o passado: ŖE
lânguida e triste a música rompe...Lembra-me a minha infância (...)/ Prossegue a música, e eis a
minha infânciaŗ (PESSOA,2007 p. 116)

Maestro, batuta, teatro, música são objetos presentes que se interseccionam com objetos de
lembrança: muro, quintal, bola, cão verde, jockey amarelo e cavalo azul. A música lhe causa a
sensação da infância, e o poeta traz para o presente as suas memórias em imagens, cruzando-as de
tal forma com o mundo real, que este torna-se palco de seu eu infantil: ŖTodo teatro é o meu
quintal, a minha infancia/ Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,/ (...) Todo o teatro
é um muro branco de música/ por onde um cão verde corre atrás de minha saudade/ Da minha
infância, cavalo azul com jockey amarelo...ŗ ( PESSOA, 2007. p116).

Na última estrofe, o fim da música marca também o fim da lembrança. Até então a infância
do poeta estava toda sobre o real, quando a música chega ao fim, sua lembrança cai bruscamente,
essa sensação é retratada na imagem de um muro caindo: ŖE a música cessa como um muro que
desaba,ŗ (PESSOA,2007. p116). Isso nos revela o apego ao passado, ao seu eu antigo e
inconsciente, o que determina mais uma face de nosso cubo perceptual, a intencionalidade da
319
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

memória, relembrar o passado, percebê-lo, também conta como experiência sensível de nosso
mundo perceptual.

Considerações finais

Com a junção dos seis fragmentos do poema temos a formação de um mundo de sensações.
Todos os objetos reais cruzados com as sensações desses objetos, formam um mundo perceptual,
como em um cubo, cujos lados compõem um todo individual, mas que necessita da união para ser
percebido como tal.

Cada fragmento de Chuva Oblíqua pode ser relacionado a uma dessas percepções
fundamentais para a aquisição da experiência do ser com o mundo e consigo mesmo. No poema, a
visão do eu para si mesmo (fragmento I), a visão religiosa (fragmento II), a questão do destino
(fragmento III), a visão do eu com a vida exterior (fragmento IV), a visão do eu com a sociedade
(fragmento V) e a recordação do passado (fragmento VI), formam um cubo perceptual de
intersecção.

O mundo externo também é fundamental para essas aquisições. O próprio título Chuva
Oblíqua, refere-se a algo que pode ser atravessado, mundo real e mundo imaginado se sobrepondo e
formando o oblíquo. Teoricamente, a chuva cairia na vertical, porém com o vento ela cai de forma
oblíqua, isto é, nem verticalmente, nem horizontalmente, formando uma paralela entre ambos, um
meio termo, uma junção do vertical com o horizontal:

Entende-se, portanto, que o mundo perceptual do poeta é formado por várias sensações
presentificadas em imagens. O eu do poeta é essa mistura de opostos, essa fragmentação de várias
formas de ver o mundo. O mundo real e o mundo das percepções ultrapassam as barreiras da
sensação.

320
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Referências bibliográficas

ABAGNAMO, Nicola. Dicionário de filosofia - trad:Alfredo Bosi. 2ª ed, São Paulo: Martins
Fontes,1998.

CHEVALIER, Jean... [et. al.]. Dicionário de símbolos: mitos sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números - trad: Vera Costa e Silva... [et. al.]. Ŕ 23ª ed, Rio de Janeiro: José Olympio,
2009.

PESSOA, Fernando. Obra poética. 3ª ed, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

SOKOLOWSKY, Robert. Introdução à fenomenologia - trad: Alfredo de Oliveira Moraes. São


Paulo: Loyola, 2004.

321
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

EXPERIÊNCIA E SÍMBOLO: FIGURAÇÕES DO RIO-MAR NO UNIVERSO POÉTICO


LUSÓFONO

Gleidys Maia (CESP/UEA)

Resumo: As vertentes líquidas das poéticas lusófonas marcam esse encontro. O encontro das águas vai
muito mais além do Negro e do Solimões, vagueando por oceanos e mares sempre Ŗdantes navegadosŗ. Foi
pensando nesse diapasão de ondas e vagas que encontramos a poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner
Andresen e sua obra Mar (2001).

Mar,

Metade da minha alma é feita de maresia.

(Atlântico, p.9)

Essa antologia reúne os poemas que marcam os caminhos de um sujeito poético para quem o
Mar se identifica com o seu destino e a sua vida. A reunião, também, converge para a síntese de
uma poética do espaço e da viagem pela evocação e representação constante do Mar com todos os
seus mundos, vivências, metaforizações, olhares, estranhezas e ânsias. Junto com sua obra captamos
ecos de outros tempos, outras paragens de além mar e aquém terra. O encantamento que o sujeito
sofre pela interiorização, rememorização e alegorização do mar não é um privilégio da poesia de
Sophia de Mello Breyner Andresen, mas, ousamos afirmar, uma espécie de sentimento do mundo
lusófono: sons e versos ora levados, ora deixados pelo vento, pelo tempo, pelo leitor.

A literatura e cultura portuguesas estão salpicadas de Mar, cheiram a maresia como diz o
sujeito poético. Desde o princípio, o Mar foi a nossa paisagem quotidiana, impregnando
profundamente a psicologia, as tradições, a literatura, a arte e até a gastronomia portuguesas. A
inspiração marítima é tão antiga como a nossa literatura. Curiosamente, foram os poetas
trovadorescos e palacianos (sécs. XII a XIV), que descobriram o mar, bem antes das descobertas
quinhentistas. Com efeito, já nos alvores da nacionalidade o apelo do Mar se fazia sentir no lirismo
amoroso galaico-português, com suas barcarolas ou marinhas, inspiradas na temática marítima.

É ainda um Mar costeiro, visto de terra. Tem suas ondas e marés mais ou menos
ameaçadoras, por vezes até confidentes de corações saudosos: Ondas do mar de Vigo,/ se vistes meu
amigo,/ e ai Deus se verrá cedo.// Ondas do mar levado,/ se viste meu amado,/ e ai Deus se verrá
cedo. Ou ainda: Ay ondas que eu vim ver!/ se me saberedes dizer/ porque tarda meu amigo/ sen mi?.
O Mar é o cenário do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu amado: "Quantas sabedes
amar amigo/ treides comig'a lo mar de Vigo;/ e bannar nos emos nas ondas! (Martim Codax).

Consolidada virilmente a conquista da Terra pátria e voltada de costas para Castela, a nação
portuguesa via no mar a sua porta natural ŕ Onde a terra acaba e o mar começa. Ecos de Camões,
322
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ecos de Ricardo Reis, ecos de Saramago. Chegara a hora de um país de marinheiros desbravar o
lendário Mar Tenebroso, a partir da ocidental praia lusitana. Portugal lançava-se, assim, na maior
aventura coletiva da sua História: a descoberta de novas terras e do grande oceano por achar.

Após ter se apoderado de muitas terras, vários países e atravessado repetidamente as águas
do Atlântico, o novo mundo que os navegantes lusos ajudaram a conhecer, o P. António Vieira
exclamou: os portugueses têm um berço pequeno para nascer e o mundo inteiro para morrer. As
descobertas da política expansionista dos portugueses deram, de fato, novos mundos ao mundo. O
mítico Mar Tormentoso fora domesticado no heróico Mar Português. E um desconhecido mundo
nascia, diante o espanto do homem europeu. O saber de experiência feito dos navegadores
portugueses foi proporcionado por repetidas viagens, novas rotas, explorações terrestres, relação
com outros povos e outras terras, outras línguas e outras religiões, outros climas e outras culturas. O
contato com a magestade da grande natureza mudou, decisivamente, a face do conhecimento
recebido da autoridade dos antigos (gregos, latinos, Padres da Igreja, etc.), dando origem a uma
nova mentalidade científica. Para os descobridores modernos, a experiência era, de fato, a madre de
todas as coisas na revelação de um novo mundo.

Quantos poetas, sobretudo românticos, saudosistas ou místico-nacionalistas, glosaram a


imagem de Camões como Poeta do Mar, salvando Os Lusíadas do naufrágio! Camões personifica o
gênio português do poeta-soldado, que lutou com a pena e com a espada pelo engrandecimento da
Pátria. Que é a sua epopeia senão o poema do Mar? Mar espumando oitavas, alto e fundo!/
Lusíadas — poema feito de água! Também o poeta Fernando Pessoa, ao compor os novos Lusíadas,
dedicará ao tema o celebrado poema Mar Português. Com este poema que todos sabemos de cor, o
poeta resgata o nosso subconsciente coletivo, exaltando quer a ação heróica dos que feneceram,
quer a dor dos que permaneceram em terra: Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de
Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas
noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó Mar!

Viajando por Portugal, também Miguel de Unamuno pintou a sugestiva imagem de um país
provinciano e meditabundo na figura de uma formosa camponesa. Sentada à beira-mar, de costas
para a Europa, com os pés descalços na espuma das ondas, olha fixamente o pôr-do-sol no Mar ŕ
Mar que, para Portugal, foi teatro das suas façanhas, berço e sepulcro das suas glórias. Do
desbravado mar português, fico-nos a nostalgia. Portugal é, de novo, confinado à sua dimensão
terrestre. Este regresso a casa ou ao cais, é precisamente um dos simbólicos temas que tem
inspirado muita da actual Literatura portuguesa: depois do passado marítimo e colonial, Portugal
interroga-se sobre o destino ou rumo como navio-nação. (MARTINS, 1998)

As muitas águas surgem como caminhos percorridos ou a percorrer, como motivo para o
descaminho, para a perdição das almas turvas, como elemento simbólico de uma experiência vivida,
coletiva, inconsciente e rememorada nos cantos e versos. O encontro de que falávamos
anteriormente trouxe-nos à cena muitas vozes cantoras da língua portuguesa para quem a

323
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

experiência poética passa pela poética das águas, como uma vertente necessária e essencial de
matéria poética.

De todos os cantos do mundo

Amo com um amor mais forte e mais profundo

Aquela praia extasiada e nua

Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

(Mar, p.10)

Para além das praias lusitanas, os braços e abraços da ação expansionista portuguesa
trouxeram o Mar para outros mares, para outras águas, para as profundezas da experiência
compartilhada. O Mar de Cecília Meireles encontra-se com o mar de poetas angolanos,
moçambicanos, caboverdianos, e outros braços lusitanos. Por isso não estranhamos mais ver lado a
lado, unidos pelas águas dos rios e mares, as experiências líquidas de Thiago de Mello e Fernando
Kafukeno, poeta angolano, ou as novas rotas da ortografia poética de Songare Okapi, Fechada/ toda
de agrura / alguma/ amargura/ em si trancada/ todo o amor / e mar/ é sal e lágrima/ no poema.
(OKAPI, 2006,223) jovem poeta moçambicano, e a essencialidade das formas pluviais e fluviais de
Élson Farias.

Águas do dia e da noite,

muito mais da maravilha,

mais de imaginar o mar,

as quilhas, as velas, a ilha.

(Visões: 1985, 13)

Este trabalho é o porto de partida, o primeiro cais do projeto de pesquisa Experiência e


símbolo: figurações do Rio-Mar na poética de Sophia de Mello Breyner Andresen e Élson Farias.
Neste primeiro encontro, colocaremos em cena conceitos e pensamentos que delimitam e inserem a
pesquisa numa dimensão antropológica do imaginário, além da sustentação teórica nos conceitos de
experiência e símbolo. O rio Amazonas, em sua dimensão simbólica é análogo à visão do mar
português, e sempre despertou no imaginário de seus viajantes uma relação de estranheza e espanto
diante de sua grandiosidade e exuberância. O choque e o primeiro olhar podem se transformar em
experiências profundas quando a mente viageira se fixa em uma de suas margens ou nas margens de
seus afluentes. Dessa forma, o rio exerce uma influência marcada na experiência dos poetas
ribeirinhos e faz produzir uma poética singular. Vemos, então, a poética do espaço de Élson Farias.
A visão dessa grandiosidade do rio-mar encontra eco na proporção imagética que o Mar representa

324
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

na poesia de língua portuguesa, principalmente no imaginário dos poetas portugueses modernos. O


encontro dessas poéticas das águas foi promovido a tema na a formação de uma linha de pesquisa
que se voltasse para a Literatura Comparada e para as Poéticas do Espaço. A análise das figurações
do Rio-Mar tem como suporte teórico-metodológico a Antropologia do Imaginário de Gilbert
Durand e a Poética do Espaço de Gaston Bachelard, além dos estudos sobre o simbólico em Paul
Ricouer e Northrop Frye. Tomamos de empréstimo o conceito de experiência de Walter Benjamin
porque revela o choque do sujeito com a dessacralização da arte.

Plínio Doyle, no prefácio de Ciclo das Águas, salienta as figurações dos rios na obra poética
de Élson Farias, como sendo uma condição para as vivências e experiências do homem amazônico
em sua relação intrínseca com a existência. Assim diz que (...) os seus romances mostram realmente
a vida do homem da Amazônia, sempre às voltas, sempre lutando com as águas dos seus imensos
rios, mas sempre vencendo as intempéries das águas e da vida. Ainda com essa concepção
acrescenta a engenhosidade do trabalho poético e de linguagem do poeta amazonense, bem sua
capacidade para transfigurar a experiência em matéria poética singular.

Você soube transmitir a impregnação aquosa do grande rio em todos os seus versos e em
todos os seus leitores - livrando-se, ao mesmo tempo, e com muita sabedoria, dos trejeitos
verbais tópicos e de um populismo pitoresco; sua fala, grave quase sempre, grácil quando
convém, põe o Amazonas no coração de todos os brasileiros, insinuando em seus (nossos)
corações o que há de grandeza, de mistério, de terra et aqua ignotae e de doce trivialidade
de amar o berço em que se nasce: o Amazonas faz-se, assim, o rio por excelência,
sobretudo como matéria poética. (Doyle, 1966)

A partir dessas constatações, buscamos conectar as características já veiculadas por


outros estudos com outras poéticas de língua portuguesa, cuja matéria valorizasse sobremaneira as
poéticas líquidas e com quem pudéssemos estabelecer uma relação recíproca de visão de mundo e
expressão das formas, a fim de fortalecermos o norte de nossa pesquisa. Encontramos espalhadas
por todo mundo lusófono, muitas poéticas voltadas para o encantamento dos rios e dos mares,
principalmente em poetas de países de colonização portuguesa em África, como Cabo Verde,
Moçambique e Angola, para além das poéticas em outros recantos do Brasil, como é o caso de
Cecília Meireles e o cantante Dorival Caymi. A compreensão de que a visão de mundo que
singulariza a poética das águas redimensiona a poética do espaço e, abrindo vagalhões por outras
formas de expressão artística, dialoga com o tempo e as temporalidades.

Começaremos pelo conceito de experiência: a experiência é o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca. Todos os dias assistimos o desfile contínuo de muitas coisas, porém quase
nada nos acontece. Walter Benjamin, em respeitado ensaio, acusa a pobreza das experiências que
caracterizam o mundo moderno. A televisão e outras mídias nos passam tantas coisas, mas a
experiência é cada vez mais rara. A informação não é experiência, e mais, a informação não dá
lugar para a experiência. Os adultos, para Benjamin, gabam-se de sua experiência; no entanto, a
325
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗexperiênciaŗ adulta é considerada vazia, pois se restringe a uma simples vivência individual. Como
se pode verificar aqui Benjamin (1986) já distingue a experiência (Erfahrung) da vivência
(Erlebnis).

A experiência, portanto, para que nos aconteça, requer um gesto de interrupção: definição de
um tempo e de um espaço qualitativamente distinto desse que se apresentaria ao indivíduo
moderno, do sujeito destituído de experiência. O sujeito da experiência se caracteriza por sua
receptividade, disponibilidade, abertura e passionalidade. É um sujeito que se expõe em sua
essencialidade. Nesse sentido, a experiência estética tem a tendência de aparecer dissociada da
realidade objetiva e imediata, e povoada de fantasmagorias e ilogicidades. A separação da arte da
atividade produtiva se faz acompanhar também de uma fratura do tempo na cotidianidade social. De
um lado, o tempo da rotina e do esforço; o tempo do trabalho e da produção. De outro, o tempo
lúdico e marginal do lazer e da arte. Assim, o fenômeno poético aparece em si mesmo como a
suspensão do transcorrer do tempo ordinário. O poema, mediante a fixação de imagens, quer ser a
consagração do instante que transcende a linguagem que o expressa. A imagem poética permanece
ativa para além do tempo e da sociedade na qual surgiu. A impressão mais imediata que cria é a de
alteridade em relação à realidade. Tal evento pode ser compreendido de várias formas: estranheza,
semelhança, ilusão, transparências ou autonomia.

A Ŗoutridadeŗ é, assim, uma condição da natureza da obra de arte. Sabe-se que a acepção
original de Poiesis evoca justamente de idéia de fazer, a criação dos objetos que conformam o
mundo. O que aqui se enfatiza é a natureza peculiar do conhecimento poético, suas diferenças em
relação ao conhecimento conceptual. As imagens criadas pela metáfora não são invenções irreais
fabricadas pelos poetas, mas trata dos objetos cotidianos e imediatos que definem o horizonte do
homem, sendo colocadas pela intervenção da poesia sob o foco de uma nova vivência: a
experiência. A poética constitui um campo de conhecimento dos aspectos da realidade que têm sido
abandonados pela ciência e pela filosofia. A poesia revela fenômenos inapreensíveis pelo raciocínio
lógico e que são de vital importância para o homem.

Descobrir a imagem do mundo no que emerge como fragmento e dispersão, perceber no


uno o outro, será devolver à linguagem sua virtude metafórica: dar presença aos outros. A
poesia: procura dos outros, descoberta da outridade (PAZ:1982, 319).

O poeta se refere à linguagem como um ato relacionado com a produção de


imagens. Há no exercício da palavra, elementos de ordem imaginária e cênica que são anteriores ao
simples processo de comunicação de mensagens. Falar não é só comunicar: é atuar, insinuar,
manifestar. O homem se mostra em sua fala e o discurso lhe devolve sua própria imagem. Toda
frase quer dizer algo que pode ser dito ou explicado por outra frase. Em conseqüência, o sentido ou
significado é um querer dizer (PAZ: 1982,133).

326
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O poeta, igual ao homem ordinário em seu falar cotidiano, apóia-se nos


aspectos lúdicos, rítmicos e imaginários da linguagem. A língua se apresenta como uma realidade
complexa e contraditória: sistema de símbolos que reduz, por um lado, a equivalências a
heterogeneidade de cada coisa concreta e, por outro lado, instiga o homem a servir-se de símbolos
gerais. A linguagem é então a tentativa de reduzir a distância que separa o homem das coisas
mediante a intervenção de um mediador simbólico. Nesse sentido, a experiência marinheira no
mundo lusófono transgride qualquer tentativa de uniformização e homogeneização, e se constitui
como um universo em aberto, acessível ao sujeito movido pelo desejo e pela permanência, pelo
sofrimento e pela ignorância, e pelas vivências de seus ancestrais. Aqui o que parece repetição é na
verdade a rememoração de uma experiência profunda impregnada nas formas e visões de mundo.

Leiamos Élson Farias: Rio, lavras tua gula, / comedor de terra e espuma, / trazes os teu
peixes todos,/ sol ardente sobre lâmina.(...) (O Rio Amazonas)

Leiamos Sophia de Mello Breyner: Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim./ A tua beleza
aumenta quando estamos sós.(...) (Mar sonoro)

Leiamos Sebastião Norões: Mar despovoado (...) Peixe isolado mostrando à flor do líquido/
a razão de viver./ A vastidão comendo tudo./ E o vácuo ainda maior.(...) (Mar despovoado)

O caráter mediador das palavras significa que elas são meras alusões, que não
coincidem plenamente com as coisas que querem designar. Há assim em cada frase uma pluralidade
de sentidos possíveis, dentro da qual as palavras originais são somente signos de partida. É nesse
jogo de fixação e dispersão de sentido que o trabalho do poeta se desenvolve; o escritor explora e
constrói o mundo usando como instrumento a palavra capaz de conter a surpreendente
multiplicidade do real. O uso da palavra é um exercício de constituição de sentido. Leiamos
Namibiano Ferreira, poeta angolano:

Os dedos dedilham
harpas ou kissanjes
espírito eterno e palavras.
Eu não sei realmente
quem os comanda
e a poesia navega
por entre velames de mim
e dos muitos barcos
distintos onde aportei
naveguei o mesmo mar
antigo mas de périplos
sempre distintos.(...)

(Navegar)

Para o poeta-leitor o importante é assegurar a possibilidade de reprodução. Nesse sentido, a


reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração.
327
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Nenhuma frase é a primeira. Toda frase, toda palavra é aí virtualmente citação. A tradição é a série
aberta, indefinidamente estendida, no tempo e no espaço, das manifestações variáveis de um
arquétipo. Numa arte tradicional, a criação ocorre em desempenho; é fruto da enunciação Ŕ e da
recepção que ela se assegura. A tradição, quando a memória é o seu modo e a voz seu instrumento,
é também, por natureza o domínio da mutabilidade, daquilo que Zumthor denomina movência de
textos (1993: 144).

A esfera arquetípica do Mar impõe uma multiplicidade de visões, versões, sensações,


impressões, para além de sua capacidade semântica e de suas metaforizações. O Mar arquetípico
lusitano, aqui no Amazonas, mas também no Capibaribe ou no Guaíba, é recortado
metonimicamente pela geografia fluvial, águas das alturas, do alto para baixo até voltar à sua
geografia oceânica. O Rio Amazonas e suas muitas águas lançam-se ao Mar. Com ele, são
carregados os barrancos, os náufragos, as árvores mortas, os peixes apodrecidos. A imagem do Rio-
Comedor-de-Tudo encontra eco no Mar-Devorador-Monstruoso. Inapelável Rio-Mar.

A amplitude da movência aparece de forma diferenciada de gênero poético para gênero


poético, de texto para texto, e até de século para século. Todo texto registrado pela escritura, como
o lemos, ocupou, pelo menos, um lugar preciso num conjunto de relações móveis e numa série de
produções múltiplas; uma intervocalidade, como uma intertextualidade, polifonia percebida pelos
ouvintes de uma poesia comunicada, quaisquer que sejam as modalidades e o estilo de performance,
pela voz. Para além do espaço-tempo de cada texto, desenvolve-se outro, que o engloba e no bojo
do qual ele gravita com outros textos e outros espaços-tempos; movimento perpétuo feito de
colisões, de interferências, de transformações, de trocas e de rupturas. (ZUMTHOR, 1993: 150).

O conceito de imaginário está ligado à dinâmica de representações intelectuais tais como


real/imaginário, razão/imaginação, objetividade/subjetividade. No campo da antropologia do
imaginário, Gilbert Durand articula, a partir da publicação de As Estruturas Antropológicas do
Imaginário, a obra de Gaston Bachelard com a de outros pesquisadores franceses voltados à
pesquisa sobre mito e símbolos. Para Durand, é Bachelard quem abre as portas para o estudo do
imaginário, reconhecendo e valorizando o poder da imaginação, considerada como a faculdade de
Ŗdeformarŗ imagens fornecidas pela percepção e, sobretudo, a faculdade de nos liberar das
imagens primeiras, de substituir imagens.

Bachelard e Durand põem em evidência a dimensão simbólica da imagem e o dinamismo


organizador da imaginação. O imaginário ultrapassa o campo exclusivo das representações
sensíveis. Compreende, ao mesmo tempo, as imagens percebidas, as imagens elaboradas e as ideias
abstratas estruturando essas imagens. A mitocrítica, tal como a concebe Durand, é um método que
se funda na análise dos procedimentos simbólicos como elementos determinantes da criação
artística. Ela pretende revelar o dinamismo interno das grandes imagens que se organizam nas
criações artísticas, análise decomposta em três tempos: destaque dos temas redundantes que
constituem as sincronicidades míticas de uma obra; análise das situações e combinatórias de
328
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

personagens e ambientes; apreensão dos ensinamentos do mito e correlações com outros mitos de
determinada época cultural.

O prosseguimento dessas ideias são determinantes para um estudo mais aprofundado sobre
as sincronicidades míticas das experiências simbólicas com o Mar e a movência intervocal/
intertextual das poéticas marítimas e fluviais em língua portuguesa. Nossa experiência é o
acontecimento da polifonia líquida das muitas águas.

Referências bibliográficas

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Mar. Antologia com nota introdutória de Maria Teresa
Andresen de Sousa Tavares. Lisboa, Ed. Caminho, 2001.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Poemas Escolhidos. Seleção de Vilma Arêas . São Paulo,
Companhia das Letras, 2004.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo
Rouanet. 2a.ed. São Paulo, Brasiliense, 1986.

FARIAS, Élson. Ciclo das Águas. Manaus, Governo do Estado do Amazonas, 1966.

FARIAS, Élson. Romanceiro. Manaus, Puxirum, 1985.

FERREIRA, Namibiano. Navegar. In: http://poesiangolana.blogspot.com. Documento disponível


em 27/07/2010.

LANGROUVA, Helena Conceição. Mar – Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen.


Poética do espaço e da viagem. In: http:/www.triplov.com/sophia/helena.html. Documento
disponível em 23/05/2010.

LEITE, Ana Mafalda et alii. Poesia Sempre: Angola e Moçambique. Rio de Janeiro, Ministério da
Cultura/ Fundação Biblioteca Nacional, Nº. 23/ Ano 13/ 2006.

MARTINS, J. Cândido. O mar, as descobertas e a literatura portuguesa. In.


http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/candid02.htm. Documento disponível em: 23/05/2010

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. de Olga Savary. 2a. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.

RICOUER, Paul. ŖPrincípio de prazer e princípio de realidadeŗ . In: Da interpretação: ensaio


sobre Freud. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro, Imago, 1977. pp. 219-233.

SECCO, C.L.T. (Coord) et alii. Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa.

vol. I: Angola. Rio de Janeiro: Letras, UFRJ, 1996.

TELLES, Tenório & KRUGER, Marcos Frederico (Orgs.). Poesia e Poetas do Amazonas.
Manaus, Editora Valer, 2006.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. Amalio Pinheiro & Jerusa Ferreira. São Paulo,
Companhia das Letras, 1993.

329
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

OBRAS LITERÁRIAS COMO FONTE PARA A HISTÓRIA: AS REPRESENTAÇÕES DO


AMAZONAS NO ROMANCE CORONEL DE BARRANCO

Greiciele Rodrigues Da Costa (UEA)


Cláudia Regina Ferreira Santos (UEA)

A Amazônia desde sempre ofereceu muitos elementos que contribuíram para a imaginação
da população. E isso de alguma forma despertou interesse na história das sociedades, como pode ser
percebida na literatura de vários autores. O assombro provocado pelo impacto da chegada converteu
inúmeros dos conquistadores em cronistas, o que possibilitou o testemunho de diversos episódios ao
longo do processo de colonização e ocupação.
Tais testemunhos há muito são utilizados pela história como uma riquíssima possibilidade
de fonte. Algumas obras literárias funcionam como o único registro documental dessa região,
contribuindo, assim, para a história deste povo.
Sob esta perspectiva, a proposta deste artigo é oferecer mais imagens para o debate em torno
das conexões entre Literatura e História a partir da obra Coronel de Barranco do escritor
amazonense Cláudio de Araújo Lima. O principal fator que motiva este trabalho é acreditar que a
literatura não deve ser encarada apenas como um fenômeno estético, apenas como a velha
conceituação de manifestação cultural. Devemos compreendê-la também como uma possibilidade
de registro histórico dos movimentos realizados pelo homem em sua historicidade. Assim, a
literatura permite ao historiador assumi-la como um espaço de pesquisa bastante profícuo.
O ciclo da borracha sempre foi explorado pela pesquisa histórica e pela literatura
amazonense. Lucilene Gomes Lima no artigo ŖA abordagem do ciclo da borracha na ficção
amazonenseŗ (LIMA, L. G. 2009, p. 1) faz uma rápida retrospectiva das obras que debatem o tema.
Uma das primeiras é O Paroara (1899), de Rodolfo Teófilo, onde o ciclo é abordado através da
aventura de um cearense na selva amazônica. A partir daí vieram vários como Alberto Rangel, em o
Inferno Verde (1908); Euclides da Cunha, em À margem da história (1909); Deserdados (1921),
de Carlos de Vasconcelos; A Selva (1930), de Ferreira de Castro; Amazônia que ninguém sabe
(1932), de Abguar Bastos; Terra de Ninguém (1934), de Francisco Galvão; Marupiara (1935), de
Lauro Palhano; Um punhado de vidas (1949), de Aristófanes Castro; No circo sem teto da
Amazônia (1955), de Ramayana de Chevalier; Beiradão (1958), de Álvaro Maia; Arapixi (1963),
de Adaucto de Alencar Fernandes; Dos ditos passados nos acercados de Cassianã (1969), de
Paulo Jacob; Terra Firme (1970), de Antisthenes Pinto; Regime das Águas (1985), de Francisco
de Vasconcelos; O amante das Amazonas (1992), de Rogel Samuel e Ŗtrês histñrias da terraŗ , em
o tocador de charamela (1995), de Erasmo Linhares. Além da obra em estudo, Coronel de
Barranco (1970), de Cláudio de Araújo Lima.
Através das obras citadas por Lucilene Gomes Lima, percebemos que todas elas criaram um
ambiente comum. O mundo do seringal nas obras centraliza-se na margem, pois é lá que ocorrem as

330
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

principais atividades e onde também está localizado o barracão, lugar mais importante do seringal.
Outro ambiente comum às obras é o Ŗcentroŗ , espaço onde se desenrolam as principais cenas dos
seringueiros e todos os acontecimentos ligados a eles.
Fator comum nas obras ficcionais em torno do ciclo também são as idéias construídas sobre as
figuras principais deste período histórico: o seringalista e o seringueiro.
Em Coronel de Barranco, Cláudio de Araújo Lima detalha todo o funcionamento tanto do
seringal como do processo econômico do ciclo da borracha. Os principais acontecimentos do
romance se passam na margem, mas não deixam de expor todos os âmbitos do sistema extrativista
da borracha que ocorriam por todo o seringal. Essa obra, na verdade, é escrita como que para
Ŗensinarŗ aos leitores o funcionamento econômico do ciclo. A linguagem é simples e envolvente, o
narrador-pernonagem Matias parece conversar com o leitor.
No entanto, o tema do ciclo da borracha na ficção amazonense não foi bem aceito por todos.
Mario Ypiranga Monteiro faz crítica à enorme fila de autores que abordam a questão, enfatizando
que o tema está desgastado, visto que todos abordam sempre os mesmos aspectos, apresentando um
tratamento pouco profundo do mundo do seringal. Para ele os literatos atentaram apenas para os
elementos negativos, dando ênfase aos comportamentos humanos estranhos, sem perceber o ciclo
por uma visão sociológica, que proporcionasse efetivamente um entendimento de suas engrenagens.
Monteiro destaca ainda que os temas recorrentes são a solidão dos seringueiros em meio à selva, o
relacionamento conflituoso com os índios que habitavam os arredores dos seringais e acima de tudo
o relacionamento do patrão seringalista com o seringueiro, tendo sido esse último o mais percorrido
dos temas.
O romance Coronel de Barranco, obra literária publicada pela primeira vez em 1970, pela
Civilização Brasileira, na coleção Vera Cruz, de autoria de Cláudio de Araújo Lima, constitui uma
narrativa no espaço de 50 anos (1876 a 1926) e que apresenta como personagens centrais o
amazonense Matias Cavalcanti de Lima e Albuquerque e o nordestino Joca, que pertence a uma
classe bastante numerosa, os seringueiros cearenses. Metaforicamente, ele representa os imigrantes
miseráveis e desprezados pela sociedade brasileira que saem de seus torrões, sobretudo o nordeste,
em busca de um futuro melhor para si e suas famílias. Vale ressaltar que este romance não é mais
uma história na Amazônia contendo mitos, animais e índios, modo sob o qual ainda hoje a mídia faz
questão de divulgar o Amazonas. Na obra, são retratados muitos temas também universais e
importantes para a história do Amazonas como o roubo das sementes de seringa e o primeiro corte
das árvores plantadas no ano de 1876 bem como a produção dos primeiros pneumáticos pelo
escocês John Boyd Dunlop em 1888, distanciando-se, assim, de uma obra de caráter somente
regional.
A trajetória de Matias Cavalcanti, o narrador-personagem, apresenta momentos muito
especiais não só para o enredo da narrativa, mas também para um momento histórico importante da
Amazônia. O rapaz inocente, mas estudioso, vê em um pesquisador inglês, o senhor Henry A.
Wickham, a chance de poder exercer uma profissão de prestígio e assim poder viver de uma forma
mais humana do que aqueles que ali residiam.
331
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A obra se inicia de uma forma bem curiosa e convidativa. Em um Ŗtrecho de mundo


entre a foz do Madeira e a boca do Tapajós nos meados de 1876 (...) num cair de tarde, sob o céu
avermelhadoŗ (Lima, 2002, p. 39). O narrador-personagem age como se estivesse conversando com
seus leitores, convidando-nos a tomar ciência de sua história, garantindo desde sempre que tudo que
se passara ali era de fato verdade!
O romance apresenta uma linguagem bem característica do povo que ainda hoje reside
nestes recantos, fazendo-nos imaginar como era de fato o cotidiano dos moradores que habitavam a
Amazônia no final do século XIX e início do século XX. Vejamos um exemplo: Ŗolhar perdido no
vago, os ouvidos acalentados pelo manso baticum rítmico do remo, que arrastava molemente a
canoa, na travessia do rio das águas barrentasŗ (Lima, 2002, p. 39).
Após um prolongado exílio na Inglaterra (30 anos), Matias Cavalcanti desembarca
novamente em Manaus no ano 1904, abismado e vislumbrado com tantas mudanças acontecidas
desde sua saída do colégio Anacleto onde estudou quando criança. O saudosista Matias relembra
dos igarapés que existiam em todo o município de Manaus e ainda do rio Negro que fora
parcialmente aterrado para que a Avenida Eduardo Ribeiro pudesse existir e esbanjar os dois
orgulhos arquitetônicos do povo: o Palácio da Justiça e o Teatro Amazonas. Percebe-se que no auge
do ciclo da borracha, a grande metrópole Manaus estava muito mais desenvolvida que outras
grandes cidades do país. Exemplo disso é que bondes elétricos começaram a circular em suas ruas
antes mesmo que na Capital Federal; as lojas femininas exibiam sempre as últimas novidades
provenientes de Paris; os bancos estavam sempre lotados, os prédios se apresentavam sempre à
maneira como se via na Europa e segundo Matias Ŗera o retrato fiel dos trinta milhões de quilos de
borrachaŗ (LIMA, 2002, p.92).
Em Manaus havia também alguns lugares onde os seringalistas iam para gastar fortunas
como forma de esbanjar poder. Dentre esses estavam o teatro suntuoso que atraía milhares de
pessoas para espetáculos que chegavam direto da Europa, Ŗsem passar pelo atrasado Rio de Janeiroŗ
(LIMA, 2002, p.94) e também alguns bares e cafés-concerto, que só fechavam as portas ao
amanhecer, em que a principal atração era a apresentação de belas prostitutas. Existiam também
luxuosas pensões como a Floreaux, muito citada nas falas dos personagens, situada em um jardim
da cidade e que mantinha mulheres de todas as línguas, vestidas sempre à maneira de Paris. Os
senhores que mais frequentavam esses lugares eram os seringalistas da nova classe que o apogeu do
ciclo da borracha trouxe e que há poucos anos estavam em má situação financeira. Eram homens
com pouca Ŗetiquetaŗ , mal adaptados aos hábitos e às vestimentas trazidas com essa nova fase de
suas vidas.
O romance também retrata uma das maiores decepções da história da Amazônia: o roubo das
sementes de seringa pelo inglês Henry A. Wickham. Este personagem surge no romance já nos
primeiros parágrafos, no seringal onde morava Matias, credenciado pelo Cônsul da Grã-Bretanha
em Belém, para exercer a função de cientista e fazer pequenas explorações na região. Era simpático
e bastante agitado no desejo de se fazer entender por mímicas ou pelo uso de pouquíssimas palavras
que aprendera em português. Foi nesta situação de grande desentendimento entre línguas que
332
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Matias Cavalcanti, valendo-se de um pouco de inglês que aprendeu quando estudava no Colégio
Anacleto na cidade de Manaus, decidiu ajudar Wickham em sua pesquisa pela Amazônia. Vale
ressaltar que neste mesmo colégio estudou o autor do romance, Cláudio de Araújo Lima, o que nos
faz sugerir a hipótese de que o estudioso e viajado Matias tem muito de seu autor, visto que o
escritor também morou em um seringal no alto Acre e presenciou todas as formas do
funcionamento de um seringal.
Porém, a aproximação direta com Mister Wickham fez Matias descumprir uma parte de um
dos seus rituais diários: o encontro com sua prima Rosinha, o primeiro amor deste personagem.
Rosinha, porém, apesar de também gostar muito de Matias não podia corresponder o amor de seu
primo, visto que Sandoval, um modesto seringueiro do lugar, já havia lhe pedido em casamento e
seu pai acertara o noivado sem sua permissão. Não bastando o amor não correspondido de
Sandoval, Rosinha tinha um grande segredo em sua vida e que atormentava seus pensamentos. É
que através da figura de um padre comum, calmo, simpático e Ŗfielŗ aos ensinamentos religiosos, é
tratado um tema bastante atual: a pedofilia. Este padre de aparência digna e que pregava
fervorosamente que todos deviam ser fiéis aos ensinamentos religiosos em seus sermões
dominicais, engravidou a ainda adolescente Rosinha, que após este fato lhe tinha verdadeira
aversão, mas era sempre obrigada por seus pais a fazer tudo que o padre ordenava, já que não tinha
coragem de contar todos os abusos cometidos.
No entanto, o seringueiro Sandoval, o noivo de Rosinha descobre o acontecido e durante um
domingo, em um dos sermões do padre, protagoniza uma das mais importantes cenas do romance.
Sandoval mata violentamente Rosinha e o pai de seu filho no próprio altar, escandalizando a todos
que presenciaram o fato. A partir desse fato, Matias não vê motivos para continuar a viver no
seringal chamado ŖTristezaŗ , que tinha como proprietário seu tio Amâncio. Wickham então, tenta
aprofundar sua pesquisa sobre as sementes para poder partir daquele local o mais rápido possível
para, assim, poder levar consigo Matias. Em sua pesquisa, Wickham era muito curioso, apesar da
dificuldade na comunicação entre os personagens, ele indagava Matias sobre tudo o que estava em
volta do mundo do seringal. Passava horas e horas examinado a terra, colhia Ŗbocadosŗ daqui e dali,
e as acomodava em latas de todos os tamanhos, colhia também a água dos riachos e igarapés. Além
de examinar minuciosamente raízes de plantas que arrancava com todo o cuidado possível, além de
alguns bichos da terra, borboletas, besouros, enfim tudo o que estava próximo às seringueiras tinha
muito valor para o inglês.
Após alguns acontecimentos ocorridos desde a morte de seu grande amor Rosinha, o jovem
Matias Cavalcante decide viajar com aquele estranho, mas simpático naturalista inglês. Os dois
embarcam no Amazon rumo à Inglaterra. É interessante perceber que em exatamente duas semanas
que Wickham passou no Amazonas, levou mais de setenta mil sementes de seringa à Inglaterra e
que sem saber o jovem Matias ajudou a piratear e o povo do amazonas ajudou a embarcar.
Nota-se que em todos esses fatos aqui narrados o autor deixa transparecer uma imagem de
inocência e ingenuidade. O amazonense, principalmente, é tratado como ser totalmente alienado de
seu próprio potencial e cultura. Nas passagens em que o inglês se interessa por detalhes minúsculos
333
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

da Ŗgrande selvaŗ como frutos e folhas, o povo local simplesmente não tem interesse algum por
essa parte da natureza. São totalmente desconhecedores dos benefícios e até mesmo da existência de
grande parte de animais que Wickham nunca vira pessoalmente, mas que conhecia perfeitamente
através de suas leituras na Inglaterra. No entanto, a imagem acerca dos moradores amazônicos é
também de um povo hospitaleiro e simpático e que possibilita todos os meios para que seus
hóspedes possam se acomodar da melhor maneira possível.
Como não podia ser diferente a magia da grande floresta não podia deixar de ser apresentada
na obra. A riqueza de animais como as Ŗararasŗ que funcionam como a comissão de frente do
romance, a abundância de plantas, igarapés, as mais variadas espécies da fauna e que funcionavam
como um vasto cardápio para os moradores e visitantes são muito citados. Ou seja, temos além de
outras representações acerca da Amazônia, a afirmação do mito da grande floresta tropical. Sendo
enfatizados no enredo imagens acerca da grandiosidade ligadas à sua imensa geografia, ao maior rio
do mundo e a maior bacia hidrográfica, itens que fazem da Amazônia um lugar tão conhecido e
desejado.
Assim como em outras obras, em Coronel de Barranco, seringalista e seringueiro são as
personagens centrais do romance. A relação existente entre ambos torna o enredo vivaz e atraente.
No entanto, não se pode falar dessa relação sem antes caracterizar cada uma das partes envolvidas
nesta relação.
Cipriano Maria da Conceição, nordestino bruto, chegou a Manaus em uma leva de cearenses
fugitivos da seca que abateu o Nordeste no ano de 1877, quando ainda era chamado de ŖCipriano de
talŗ . Começou a vida de seringueiro como qualquer outro. Mas Cipriano logo começou a se destacar
entre os seringueiros, valendo-se de fraudes e enganações. Começou com a fraude da defumação da
borracha, com o intuito de aumentar o peso e não o seu trabalho. Cipriano misturava ao látex tudo o
que pudesse acrescer alguns gramas a mais. Eram galhos de árvores, restos de panelas, de colher, de
terçado, machadinha, ou seja, tudo o que pudesse diminuir as horas de trabalho e aumentar o saldo
do então seringueiro. Desviava e vendia borracha às escondidas. Porém, o principal modo de
Cipriano ganhar dinheiro sem trabalhar exaustivamente era utilizando-se do caucho. O caucho
constitui-se de um trabalho em que o seringueiro apenas derruba a árvore e deixa o leite escorrer e
endurecer sozinho. Era um trabalho muito mais prático, rápido e rendoso, pois o seringueiro não
precisava cortar, sangrar a árvore e depois defumar o látex. Cipriano Maria da Conceição ganhou
muito dinheiro e logo se tornou dono do seringal onde trabalhava. O seringal antes denominado
ŖPatativaŗ tornou-se ŖFé em Deusŗ.
Agora, era um homem bem visto pelos Ŗaviadoresŗ da praça, pois, possuía um enorme
seringal onde só se poderia chegar com a cheia do rio Acre em mais ou menos quarenta dias
partindo de Manaus em um Ŗvapor modernoŗ . Era vaidoso e convicto de sua importância. Bem
vestido, sempre à mostra um dente de ouro, encarnava de fato o símbolo da fartura na época do
ciclo da borracha.
Cipriano Maria da Conceição, seringalista e proprietário do antigo seringal ŖPatativaŗ , hoje
chamado de ŖFé em Deusŗ, é a figura que dá nome ao romance. É interessante observar que a
334
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

riqueza dos proprietários dos seringais é medida de acordo com suas dívidas. É exposto em Coronel
de Barranco que quem tinha mais riqueza era quem possuía mais dívidas. As dívidas funcionavam
para provar que os Ŗcoronéisŗ possuíam muito dinheiro. ŖJulgam o sujeito pelo dinheiro que deve
(...) se o sujeito deve mil é porque tem crédito para três milŗ (LIMA, 2002, p.100). E Cipriano
possuía muito dinheiro, tanto em bancos como em propriedades e jóias e segundo já foi explicado,
devia mais de cinco mil contos na praça, significando que ele teria dinheiro para comprar muito
mais.
O Coronel, apesar de possuir muita riqueza, se comportava como um ser grotesco. Trajava-
se mal, com roupas que não se ajustavam bem, carregava em seu pulso pesados relógios de ouro, e
no dedo um enorme anel de brilhante, o chamado Ŗanel-holofoteŗ , pelo qual muitas vezes era
reconhecido de longe. Porém, além de Ŗboçalŗ era um homem de sorriso largo e mão aberta.
Além dessas características, o seringalista é identificado também por ser uma figura alienada
do contexto histórico local e mundial, acreditando ser tolice o interesse por qualquer coisa que não
fosse produzir borracha. Qualquer pessoa que tentasse lhe convencer do contrário era tido como
tolo e ingênuo, pois para ele jamais outra forma de extração da borracha ia superar aquela nativa e
que comandava todos os dias em seu seringal, o chamado ŖFé em Deusŗ . Havia, porém outro
incômodo que fazia Cipriano perder a calma e que também era o terror de todos os outros coronéis:
a presença do regatão. Este era um barco que rodeava os seringais à procura de comprar borracha
barata e vender bugigangas para os seringueiros às escondidas dos coronéis. A prática de vender
borracha para o regatão era vantajosa para os seringueiros, pois era uma maneira de conseguir
dinheiro mais rápido e poder fugir. Como representação dos homens que atuavam nos regatões,
temos o turco Ibraim que vendia e comprava mercadorias em torno do seringal ŖFé em Deusŗ
causando muitas preocupações ao Coronel Cipriano:

−Aquilo está com cara é de regatão.


−Esse turco filho duma égua... Ainda acaba levando uma pisa. E se eu me aborrecer
muito... Bom. Zeca. Vai buscar os rifles. (LIMA, 2002, p. 134-135)

Algo também notório na personalidade do ŖCoronelŗ é que ele acreditava ser necessário agir
com vilania, pois de outra forma poderia ter seu poder ameaçado perante os seringueiros. Ao saber
da morte de algum seringueiro enfurecia-se, pois assim poderia vir a ter prejuízo.

- Morreu um Coronel.
- Morreu quem?
- O Zé da Onça.
- Mas o Zé da Onça tinha um saldozinho, Coronel.
-Hummm...
- Seiscentos e trinta mil-réis.
- Está bom. Assim está bem. (LIMA, 2002, p. 127)

Também são enfatizadas na obra vilanias não só de Cipriano como de vários outros
Ŗcoronéisŗ que mandavam enforcar, castrar, queimar e até mesmo mandar o seringueiro cavar a sua
própria sepultura antes de ser executado.
335
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Em Coronel de Barranco temos também um grande contra-senso, pois apesar de Cipriano


viver cercado de grandes luxos, esbanjar requinte e fartura em Manaus, no seringal ŖFé em Deusŗ
era diferente. Sua moradia causava espanto a qualquer pessoa que viesse de outros lugares. Ele
vivia em um ŖBarracão tosco e feio, quase como uma choupana grandeŗ (LIMA, 2002, p. 129).
Suas paredes e o assoalho eram de madeira e a cobertura era feita toda de palha. Existiam alguns
cômodos em que os empregados se acomodavam mais que não poderiam ser chamados de quarto,
pois mais pareciam depósitos do que mesmo quartos. Existia um lugar onde se fazia as refeições,
mas sem muitos aspectos de cozinha, pois era quase ao ar livre e tudo preparado em um tosco fogão
de barro. Nos quartos não haviam portas. Existia também um espaço que não possuía qualquer
detalhe que lembrasse um banheiro, apenas Ŗdois urinñis grandes, descascados nas beirasŗ (LIMA,
2002, p. 130). Enfim, o lugar não possuía conforto, luxo nem aparências de lar propriamente dito.
Através destas passagens conseguimos constatar a imagem de transitoriedade dos que viviam
naquele lugar. Percebe-se que mesmo os coronéis viam o seringal como passageiro. Na verdade, o
que regia o seringal era a ânsia de sair dali. As pessoas, sobretudo os seringueiros, já chegavam
contando os segundos e todos os mil-réis de saldo para sair daquele tão sofrido local que funcionava
apenas como meio de ganhar dinheiro e nada mais. Não existia entre seringalista ou seringueiro o
desejo de permanecer ali, em meio às grandes árvores.
É neste sentido que a obra Coronel de Barranco se faz tão importante. Serve para nos
apresentar muitas imagens acerca do Amazonas no final do século XIX e início do século XX,
apresentando-se assim como um importante documento para conhecermos as minúcias não só do
ciclo da borracha como do próprio povo deste local. A representação da relação que se estabelece
entre Cipriano e os seringueiros não se finda em si mesma, pois através dela podemos compreender
muitas outras semelhantes que ocorriam à época.
É em um dos hotéis, em uma das noites animadas de Manaus que o destino de Cipriano
cruza-se com o de Matias Cavalcanti, que após uma longa temporada nos continentes europeu e
asiático decide mudar-se para o seringal ŖFé em Deusŗ, situado a muitos dias de viagem da cidade
de Manaus. No cais da capital, no Ŗgaiolaŗ Rio Pauini, recém-saído dos estaleiros britânicos, Matias
observa o embarque de muitas mercadorias de propriedade do Coronel Cipriano. Eram caixas,
frascos, latões, pacotes, ferramentas, amarrados com redes coloridas, engradados, caixotes,
garrafões, entre vários outros itens. E nessa mistura de carregamentos, como se fossem apenas um
mero acréscimo da grande carga, encontra-se uma leva de nordestinos, composta, sobretudo de
cearenses. Havia naquele barco sessenta ou setenta Ŗcabeças de gado humanoŗ para reforçar os
seringais, na medida em que os preços da borracha subiam. Os seringueiros na obra são
representados como homens fortes e decididos, que se opunham às ordens dos Ŗcoronéis de
barrancoŗ .
Ao chegar ao seringal os seringueiros eram Ŗaviadosŗ, ou seja, recebiam todo o seu material
de trabalho e comida para sobreviver por uma semana. Tigelinhas para colher o látex, material para
defumação, panela, prato, colher, garfo, jabá, feijão, arroz, café e um rifle cheio de balas para poder
se defender dos perigosos índios, tudo isso era entregue aos seringueiros e colocado na conta dos
336
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

recém-chegados ao seringal, que iriam trabalhar diariamente na extração da borracha para pagar o
que deviam e juntar algum saldo para voltar ao encontro de suas famílias.
Os nordestinos tiveram logo que se adaptar ao novo lar e aprender a caçar, a pescar, a atirar
e principalmente a retirar o látex das árvores de seringueira sem desperdiçar. Aquele leite
funcionava para eles como a abolição daquela vida escrava e sofrida. Os trabalhadores da extração
da borracha eram esquálidos e tristes, não sabiam ler, eram religiosos e a partir do momento em que
chegavam ao seringal tornavam-se verdadeiramente presos àquele local. Porém, demonstravam
através de um pequeno brilho nos olhos a esperança de voltar ao seu torrão ressequido para ajudar a
família que deixaram esperançosa de dias melhores em suas vidas magras e sofridas. Percebe-se
então que a vida dos seringueiros ali não era marcada somente pela desgraça, mas sim por lutas e
superações vividas a cada dia, sem jamais perder a essência de suas identidades.
Os seringueiros vindos do nordeste eram denominados na obra como Ŗbrabosŗ e de difícil
convivência, mas que gostavam de animação e de conversas envolvendo milagres e amores tidos
em tempos passados com um tom sempre saudosista.
Temos como principal seringueiro, José Maria Silvino, o Joca. No início do século XIX com
a expansão do ciclo da borracha cresce também a necessidade de mão de obra para a extração do
látex. Então começam a vir para o Amazonas homens marcados principalmente pelo sofrimento da
seca, consequentemente da falta de trabalho. E na esperança de melhorar sua vida, Joca vem para o
Amazonas com o intuito maior de retornar ao Ceará. Porém, após os primeiros dias, ele percebe que
sua vida em meio à selva amazônica seria mais difícil do que ele imaginara. E como se fosse uma
mera brincadeira do destino, vê na água, motivo principal de sua vinda do nordeste, a maior
dificuldade para trabalhar e assim conseguir saldo para retornar ao Ceará.

- A gente sai do Ceará por causa da seca e vem pegar pelas trombas um aguaceiro desses. É
uma desgraça mesmo a vida da gente. (LIMA, 2002, p. 207)

Joca destaca-se por ser desafiador e inteligente, mesmo sendo analfabeto. Ele era o mais
desejoso de todos a sair daquele lugar e voltar ao seu local de nascimento. Logo nos primeiros dias
em meio ao desespero de seus colegas por possuírem tamanha dívida, proferiu a frase que iria ser
ouvida durante todo o tempo em que passassem ali: ŖSaio dessa porqueira nem que seja mortoŗ .
(LIMA, 2002, p.154)
Cabe então a Joca criar meios para sobreviver em meio às dificuldades de seu dia-a-dia. Na
verdade a maior dificuldade existente para o seringueiro é ser tratado como mercadoria. E após um
logo tempo de labuto e dificuldades, enfim consegue pagar suas dívidas e sair do seringal Fé em
Deus. Porém, ele já não sabe mais viver em sociedade. Mesmo fora do seringal ele está perdido, não
sabe utilizar o pouco dinheiro que ganhou trabalhando no seringal, sendo obrigado mesmo depois
de pronunciar seu principal ditado− ŖSaio desta porqueira nem que seja mortoŗ − a voltar ao
seringal Fé em Deus onde permanece até a sua morte.

337
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O seringueiro é um homem que somente trabalha para o seringalista e tudo o que produz é
entregue ao seu patrão sem que haja circulação de dinheiro e isso faz-nos analisar o fato da
desnecessidade de dinheiro em meio à grande floresta e também do temor de fuga de seringueiros
por parte dos seringalistas.
O romance Coronel de Barranco nos dá uma boa visão do que foi a vida do homem que
trabalhava exaustivamente nos seringais. Amazonenses e nordestinos compõem uma imagem de
labuta e saudosismo.
Além de todas as outras crueldades sofridas, os seringueiros também eram obrigados a
comer somente comida enlatada, mesmo morando na Amazônia, um lugar de tão grande fartura. Os
seringalistas jamais autorizavam os seringueiros a comer outra coisa que não fosse comprada em
seu armazém. Na verdade o armazém dos seringais é que sustentava de fato o ciclo da borracha.
Vejamos:
Da jabá e do arroz ao patê de foie gras. Do simples feijão ao caviar. Latas e latas de doces
variados, da goiaba às cerejas em calda. Fazendas e sapatos. Ferramentas. Armas, munição.
Peixes secos e enlatados. Grandes frasqueiras de aguardente, ao lado das garrafas de uísque,
rum, conhaque, vermutes e de vinhos europeus, tintos e brancos. Lampiões e lamparinas.
Imagens de santos. Velas de cera, de estearina. Dos rolos de fumo baratos aos charutos
cubanos e às latas de cigarros ingleses, junto com os cachimbos de legítima procedência
britânica (LIMA, 2002, P. 156).

O sistema de aviamento era sustentado pela obrigação dada aos seringueiros de se manterem
deste tipo de comércio. O seringalista estimulava os excessos dos itens de compra. Muitas vezes os
mantimentos mandados aos seringais pelos aviadores eram absurdos e como jamais o seringalista
poderia ter prejuízo, empurrava as mercadorias desnecessárias aos seringueiros que não tinham
sequer o direito de recusá-las. Percebe-se então que a prosperidade e riqueza dos seringalistas não
se dava somente pela exportação da borracha, mas sim pelo endividamento de seus seringueiros.
Uma breve comparação com a sociedade escravocrata de fins do século XIX nos permite
encontrar muitas semelhanças, principalmente no que tange às relações entre dominantes e
dominados: em um período onde supostamente está extinto o trabalho escravo, os horrores do
cotidiano dos seringueiros nos permitem estabelecer laços com os momentos mais trágicos da
escravidão negra.
O romance também traça uma imagem de ganância dos seringueiros onde na ânsia de
conseguir saldo para sair do mundo do seringal, rouba mulheres de outros homens e cometem os
maiores abusos e crimes. Vejamos este exemplo:

O turco disse que arrumava uma viúva pra mim, que já estava...quase enviuvando...
- Viúva de marido vivo? Que é isso Paraíba?
- Mas já está quase viúva... (LIMA, 2002, p. 349).

Mas a maioria dos seringueiros tinha mesmo que conviver com a solidão. Não tinham
companhia alguma. Viviam isolados em seus centros e somente uma vez na semana encontravam
com os outros seringueiros. Alguns acreditavam que iriam ficar loucos. Outros insistiam seus

338
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

patrões para poder trazer suas esposas, que ficaram no nordeste, ou mesmo casar com alguma
cabocla. Porém, os seringalistas não admitiam de forma alguma que seus seringueiros pudessem
viver casados, pois. Acreditavam que o trabalho de corte iria diminuir e consequentemente trazer
prejuízo ao patrão. Só restava então aos seringueiros viver sozinhos e com um grande problema que
foi tema de vários outros romances amazonenses- a abstinência sexual.
É interessante observar que mesmo o romance se tratando de uma obra retratada,
principalmente, no Amazonas são escassas as passagens que retratam o homem amazonense,
principalmente em se tratando de seringueiro amazonense. Na verdade, o amazonense é visto, na
obra como homem preguiçoso e que não se interessa pela riqueza local, podendo ser observado
nesta passagem:
Mas não quer saber de seringa. O senhor vai aprender com o tempo, caboclo aqui do
Amazonas não tem tutano pra enfiar a cara na mata. Só quer viver em beira de lago e de rio,
pescando. Coisa de cabra preguiçoso (LIMA, 2002, p. 133).

Portanto, em Coronel de Barranco, seringalistas e seringueiros são as personagens centrais


da obra. No entanto, o enredo do romance não se finda apenas em seringueiro e seringalista,
existem outros personagens como o pescador amazonense e bêbado Inácio, que demonstra a
existência um povo derrotado por sua própria incapacidade; o turco Ibraim, que com seu regatão
causava grandes tormentos ao Coronel Cipriano; o guarda-livros Antoninho, que cuidava dos
aviamentos e das dívidas dos seringueiros e que no final da obra foge com Conchita, a amante do
coronel Cipriano. Esses, na verdade, são coadjuvantes na relação maior entre patrão e freguês.
A maior relação entre seringueiros e seringalista no romance se dá pela palavra exploração.
O patrão usava de todos os artifícios para que os fregueses pudessem comprar aos mais altos preços
mercadorias completamente desnecessárias às suas vidas.
Pudemos observar então as representações da Amazônia na literatura amazonense, a partir
da obra Coronel de Barranco, de Cláudio de Araújo Lima, que nos oferece um quadro bastante
interessante e complexo sobre o período conhecido como ciclo da borracha. Percebemos o registro
dos percursos destes personagens, o enfrentamento das dificuldades dos seringueiros e as condições
de vida. Nesse sentido, refletimos sobre as imagens dos espaços onde se realizou a narrativa,
fazendo-nos recriar um passado um pouco perdido ou talvez esquecido nas lembranças do povo
local, resgatando, portanto, um fragmento de um dos mais importantes períodos históricos do
Amazonas, que apesar de ser um tema vastamente discutido pela historiografia, ainda pode revelar
outras facetas através de exaustivas pesquisas realizadas junto à literatura, que se revelou como uma
fonte excepcional para o trato com a temática em questão. Dessa forma, a contribuição para história
deste povo é decisiva, permitindo observar ângulos ainda pouco explorados.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. A Arte Poética. São Paulo: Ars Poéticas, 1993.

339
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

BERND, Zila. (sem título). In: Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário. São
Paulo: Xamã, 1997.

CHALHOUB, Sidney & Pereira, Leonardo Affonso de Miranda (orgs.). A história Contada:
Capítulos de história social da literatura. Rio de Janeiro: nova fronteira, 1998.

CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1987.

CHEROBIM, Mauro. Trabalho e comércio nos seringais amazônicos. Perspectivas, São Paulo,
6:101-107, 1983.

COUTINHO, Afrânio dos Santos. A Literatura no Brasil: Era Romântica. 5 ed. São Paulo:
Global, 2001.

LIMA, Cláudio de Araújo. Coronel de Barranco. Manaus: Valer, 2002.

LIMA, G. L. A abordagem do ciclo da borracha na ficção amazonense. 2009. Disponível


em:http://lucilenegomeslima.blogspot.com/2009/01/abordagem-do-ciclo-da-borracha-na-fico.html.
Acessado em 26/02/2010.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fatos da Literatura Amazonense. Editora Universidade do


Amazonas . Manaus, 1976

MENDES, F. M. Modesto. Identidades Híbridas: O lugar das personagens ficcionais em


coronel de Barranco. Acre: Universidade Federal do Acre (UFAC):

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo, 1999.

340
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A (DES)CONSTRUÇÃO ESTÉTICA DAS CATEGORIAS POÉTICAS DE ARISTÓTELES NO


CONTEXTO DE UMA MITOPOÉTICA AMAZÔNICA1

Harald Sá Peixoto Pinheiro2 (UFAM-PUCSP-FAPEAM)

Resumo: É o impulso em imitar (mímesis) a natureza que torna o homem capaz de reinventar o seu
mundo. E, para isso, os homens fazem da arte (poiesis) uma poderosa via criadora. Os mitos e suas
narrativas são apresentados aqui como uma das formas possíveis de recriar a existência ordinária,
capaz, inclusive, de acrescentar a ela um sentido essencialmente estético. Para isso, o fabulário
mitopoético é portador de mensagens que, postas em prática, revelam a pluralidade do ser, do sentir
e do existir. Daí a variedade de valores híbridos que as narrativas míticas comportam no contexto
dos trópicos e que, diferentemente das categorias poéticas consagradas por Aristóteles, ensaiam a
simultaneidade ente o risível e o horrendo, o real e o imaginário, o bom e o mau, o individual e o
coletivo, o conhecido e o desconhecido, conduzindo-nos a outro modelo de racionalidade, mais
aberta e polifônica. Assim, o texto oscila entre homologias e dessemelhanças que tomamos como
aporte teórico da Poética grega e o que Ŕ pela lógica da audácia Ŕ confrontaremos com o que
chamamos de mitopoética amazônica. A análise nos remete a um exercício de desconstrução-
retificação de categorias estéticas clássicas e a reinvenção de novos modos de subjetividades locais.

Palavras-chave: Poética, mitopoética, racionalidade imaginativa.

Diferentemente dos mitos gregos, para os quais nos dirigimos hoje com o verbo no passado,
há ainda uma grande variedade de mitos e narrativas na Amazônia que estão vivos, entrelaçando-se
na vida (extra)ordinária das comunidades humanas, ora resistindo, ora se adaptando às novas
configurações do real. São os mitos ainda vivos que conferem sentido e singularidade à sua
existência presente e concreta.
O pensamento poético, presente nos mitos gregos e nos mitos amazônicos, rejeita toda e
qualquer forma de abstração que possa vir a existir como as dimensões de tempo e espaço. Estas
escapam a uma apreensão sensível, mesmo quando a narrativa pressupõe lançar a existência a um
tempo imemorial, longínquo e fabuloso.
Para dar conta de nosso insight, reutilizamos os conceitos de mímesis (imitação) e poiesis
(criação artística) descritos por Aristóteles em sua Poética (1993), pois entendemos que os mesmos

1
O artigo é parte da Dissertação de Mestrado em Educação, defendido em 2002, na FACED-UFAM. O texto também
sofreu modificações, correções e eventuais ajustes, bem como foi acrescido de novas referências teóricas para que
pudesse se adequar melhor as necessidades do II Colóquio Internacional de Poéticas do Imaginário.
2
Prof. do Departamento de Teoria e Fundamentos da FACED-UFAM. Pós-Graduação em Ética e Filosofia. Mestre em
Educação e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia. Atualmente é doutorando em Ciências Sociais (Antropologia)
pela PUC-SP (Bolsista FAPEAM).

341
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

correspondem ao sentido apropriado para compreendermos também a mitopoética amazônica e sua


dimensão propriamente estética. Assim, imitando a natureza e reconfigurando a realidade, aprende-
se duplamente a condição inalienável e plural da existência.
O mito, portanto, pensado aqui como dimensão poética, é produto da sensibilidade e, a esta
Ŕ mais do que a razão Ŕ, sempre a sua atenção está voltada. Assim, o mito é poiesis, à medida que
se torna arte criadora. E os seres míticos, por possuírem o dom da palavra encantada e a habilidade
de (re)inventarem ou (re)criarem o real, são filhos legítimos da poesia e tributários de sua criação.
Também o mito em Aristóteles, ainda na sua dimensão poética, torna-se mais filosófico que
a história. Esta trata do que é particular e a poesia (mito), trata do que é geral, porém ambos são
indispensáveis. Presume-se aqui que o historiador descreve a realidade e os fatos tal como
aconteceram, enquanto o poeta narra Ŕ por via da verossimilhança Ŕ o que possivelmente tivesse
acontecido. Tal é a única razão do filósofo peripatético reconhecer na Poesia (e não na História)
uma condição filosófica mais elevada.
Por outro lado, embora Aristóteles legitime e até dignifique a criação poética por meio do
mito, acrescenta a esta um forte apelo metodologicamente racional: a tragédia precisa expurgar,
pela catarse, as ações irracionais, tanto na cena performática dos atores (Teatro) quanto no convívio
concreto da experiência humana (Polis). Assim, mesmo se preocupando com as representações
artísticas, não se descuidou dos aparatos de sua mente instrumental e classificatória, erigindo a
primeira teoria literária ocidental que se tem notícia. Daí uma parte de sua Poética1 se preocupar
com a extensão, elocução, divisão de caracteres e outros elementos quantitativos do poema narrado.
No entanto, o pensamento poético Ŕ como veremos Ŕ não é apenas privilégio ou
exclusividade dos gregos antigos. Assim, não será apenas o cérebro lógico de Aristóteles o nosso
guia na constatação (ou na reinvenção) de uma mitopoética amazônica, pensada aqui sob o signo da
desconstrução estética e da retificação subjetiva, identificada ontologicamente em suas próprias
categoria autóctones. Uma poética (des)ocidentalizada, por outro lado, comporta também uma
Ŗlñgicaŗ e uma Ŗracionalidadeŗ diante do mundo, longe de qualquer domesticação e perfeitamente
inscrita sob a égide de um pensamento selvagem2. De fato, foi a mente de Aristóteles que nos
forneceu pistas imprescindíveis para pensar a poética contida nos mitos, mas foi o estômago
omnívoro de Macunaíma que nos ajudou a digeri-la, compreendê-la e contextualizá-la aos interesses
da região.
Por isso recorremos, inevitavelmente, a uma série de outros autores e suas criações que, sem
apelar para a exclusividade da razão, conseguiram captar a sensibilidade transgressora do

1
Há indícios e comentadores que afirmam que Aristóteles teria dedicado a segunda parte de sua Poética à teoria da
comédia e do riso. Esta parte significativa da obra foi misteriosamente perdida. A obra O Nome da Rosa, de Umberto
Eco dedica várias páginas a esse assunto e tem como pano de fundo a suposta parte dedicada ao riso como enredo ao
seu romance policial. A primazia da teoria da tragédia deve-se ao fato de ela engrandecer as ações humanas, enquanto o
riso sensivelmente o degrada.
2
Fazemos alusão a obra do etnólogo francês, Claude Lévi-Strauss, em sua obra O Pensamento Selvagem. São Paulo:
EDUSP, 1970.

342
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

pensamento indígena e ribeirinho, nas comunidades tradicionais na Amazônia: a Ŗrazão


espermáticaŗ e debochada de um Nunes Pereira, a Ŗutopia selvagemŗ de um Darcy Ribeiro, a
imaginação subversiva e irônica de um Mário de Andrade, entre outros.
Entre outros autores, esses particularmente, preocuparam-se em revelar uma outra
racionalidade que a própria razão desconhecia. Identificamos em suas obras o desejo de recompor a
vida social pelo lado da fantasia, o Ŗlado sombraŗ , ora esquecido e ora reprimido pela razão. Como
disse Maffesoli (1996, p. 83), parafraseando a famosa sentença de Pascal: Ŗa fantasía também tem
razões que a razão não pode compreenderŗ .
Nossos heróis Ŕ se é que precisamos de algum Ŕ não tiveram a constituição do ethos
comparado a Édipos, Teseus, Sísifos, tampouco Prometeus. Mas, com valores acentuadamente
diferentes (às vezes radicalmente opostos), temos a presença de Bahira, Poronominare, Jurupari,
Maíra, Uirá. E, se preferirmos, dispomos até de anti-herói, como é o caso do nosso Macunaíma,
herói sem nenhum caráter.
Neles, o conceito de peripécia, descrito por Aristóteles na Poética, aplica-se de maneira
diferente: não é a passagem do não sabido ao saber, do ignorado ao conhecido. Nem inversamente:
não vai de um suposto saber ao não saber. Entre essas condições do espírito, sequer há transposição
de lugares. Sabido e não sabido fundem-se numa só dimensão. Vêem no mito vivo a razão do qual
são tributários. No entanto, Aristóteles parece querer tornar a Poética um aparato a mais para
racionalidade, talvez o primeiro instrumento de colonização e controle das modalidades estéticas de
que se tem notícia, tomando como ponto de partida a teoria da tragédia e da comédia. Nós, pelo
contrário, reiteramos à razão a sua condição mitopoética, pois se vê articulada sob um inusitado
regime de categorias híbridas que se entrecruzam Ŕ simultaneamente Ŕ elementos opostos e
complementares.
Como dissemos acima, não sinalizamos apenas as homologias entre a Poética grega e a
mitopoética amazônica: se a lei da lógica é acertar, a lei da poética é, diferentemente, permitir-se o
exercício ontológico da errância e se lançar ao desconhecido, ao ignorado, para, daí, aprendermos
com Aristóteles que o Ser se manifesta por meio de linguagens estranhas e horizontes onticamente
diversificados.
No entanto, aprender não implica tomar acento no trono da verdade. Mas, antes, abdicar
todo desejo de verdade. Não nos esqueçamos de Nietzsche que afirmava que todas as verdades são
risíveis. E elas também surgiram para serem desacreditadas. Acreditar, por sua vez, não é possuir ou
apropriar-se de uma verdade. Mas, tão-somente, aproximar-se de uma suposta verdade, ainda que
seja por via da verossimilhança. No caso dos saberes tradicionais da Amazônia e seus sujeitos,
sequer existe esta pretensão a verdade objetiva dos mitos. Aqui a narratividade prescinde ao valor
da mera razão explicativa do qual a modernidade se acostumou.
Nossos deuses e seres encantados não trocaram só de nomes, mas também muraram a
carteira de identidade, o registro de CPF e a fotografia do passaporte. Mudaram também o idioma, o
sentido semântico e simbólico de muitas palavras, e ainda a forma de se organizarem no espaço da
cultura, como dimensão sócio-político-educativa. Na verdade, sequer são os mesmos deuses.
343
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Em vez de Zeus, Poséidon, Hermes, Afrodite, Apolo (e até mesmo Dionísio, nosso antigo
correligionário de nomes tão variados), ainda assim entidades transcendentes, as culturas locais da
Amazônia dividem experiências, igualmente, concretas e simbólicas, racionais e sensíveis, trágicas
e cômicas com outros deuses e seres míticos: Tupã, Maíra, Boto, Iara, Boiúna, Curupira, e uma
infinidade de elementos da natureza, como rios, matas, montanhas, vales, papagaios, araras,
formigas, tatus, onças, pássaros, etc.
Muitas narrativas estudadas (gregas e amazônicas) engendram uma variedade de temas,
sentimentos e ações acerca da existência, que surgem mediatizados pelo meio natural e pela razão
imaginativa do narrador: angústia, solidão, medo, covardia, coragem, prazer, liberdade, erotismo,
vingança, astúcia... Essas dimensões, entretanto, são comuns ao homem e independem das
categorias de tempo e espaço. São expressões universais do espírito humano e pouco ou nada se
assemelham com crises existenciais.
Nesse ensaio transdisciplinar de literatura, filosofia, antropologia e mitologia comparada não
nos limitamos apenas as homologias com a cultura grega arcaica. Apresentamos, portanto, nossa
intenção em pensar os mitos como racionalidade imaginativa à medida que ensinam não apenas a
operacionalidade do mundo cotidiano, mas também, fundamentalmente, remetem uma dada
comunidade ao aprendizado com o convívio imaginário.
Essa perspectiva deve-se também ao fato de que a Região Amazônica adquiriu importância
planetária, sobretudo nas últimas duas décadas do século XX, em razão dos processos de
homogeneização das economias de mercado sob o comando de alguns poucos países, vem
provocando Ŕ mais particularmente no plano epistemológico e cognitivo Ŕ o aparecimento de
movimentos de resistência à dominação econômica, política, social, cultural e intelectual.
Nesse sentido, vamos encontrar estudos, reflexões e discussões sobre singularidade de
elementos encontrados na sociodiversidade amazônica que parecem permitir a formulação ou
reformulação de conceitos, de paradigmas que nos leve a um maior conhecimento sobre o contexto
complexo da Amazônia: seu ambiente, seus sujeitos e seus saberes, a fim de que os mesmos possam
estar presentes na esfera acadêmica local e na comunidade científica em geral.
Nossa percepção é de que essa postura está provocando uma consciência acadêmica e social
da importância da revitalização e/ou resignificação de saberes locais, reconhecidos por nós como
alguns dos elementos diferenciadores que possibilitam a construção de nossas identidades étnicas e
culturais.
Apreender, refletir e compreender o mito como manifestação, entre outras, do imaginário
poético da nossa Região, nos incita a pensar, tendo como principal elemento de comparação a
tragédia grega - mesmo sabendo da fratura profunda que existe entre nós e os antigos a respeito do
mito - na possibilidade de uma pedagogia que leve em conta a polifonia da razão a fim de mostrar o
valor dessa dimensão do conhecer humano ao desvelar a função, o papel que os mitos
desempenham na vida individual e coletiva do homem amazônico e, ao mesmo tempo, o
desencantamento ao qual muitas culturas locais estão submetidas em conseqüência da postura
etnocêntrica a que foram submetidas.
344
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O conhecimento mítico a que nos referimos, corresponde ao que, na antigüidade, foi


assinalado como o local onde:

[...] o objeto assinalado como 'mitológico' é aquele que é dado imediatamente pela
representação; são as narrativas sobre deuses, seres divinos, heróis e viagens ao além (...)
[assim como ao pensamento de] grandes estudiosos da mitologia que atuaram no final do
século XIX e início do século XX e que reconheceram, com a inadequação do método
filológico então oficial, a necessidade de enfrentar a mitologia como um complexo de
formas per se, autonomamente significantes. (JESI, 1977, p.35).

Entre os estudiosos desse período que trabalham a noção de mito na perspectiva colocada
acima pode ser assinalado o nome de Cassirer, Malinowski e Kerényi. Segundo Cassirer, mais do
que sobre uma espécie de deficiência do espírito, o mito se apoia sobre uma força positiva de
figuração e de imaginação. O mito, bem como a arte, a linguagem, o conhecimento, é forma que
cria e faz emergir de si própria um mundo seu de significação. Nele, como nas outras formas
mencionadas, manifesta-se o auto-desenvolvimento do espírito e apenas por meio delas subsiste
para ele uma realidade, um ser determinado e orgânico.

O mito é, pois, história verdadeira, mesmo que seja na medida em que estabelece uma
relação com os elementos formais estáveis da experiência, os únicos a que é possível
atribuir a qualificação relativa de objetividade. Mais do que conseqüência de uma
deficiência de linguagem, o mito é à luz da atividade formadora que lhe é própria, milagre
do espírito e enigma". (CASSIRER, 1972, p.51)

Em 1926, o etnólogo B. Malinowski em sua obra "Myth in Primitive Psycholog" afirma que
numa sociedade primitiva, ou seja, na sua original forma de vida, o mito não é simplesmente a
narração de uma história, mas é uma realidade vivida. Não é do tipo de acontecimentos inventados
encontrados nos romances, mas uma realidade viva que se julga ter acontecido nos tempos
primordiais e que desde então continuam a influir sobre o mundo e sobre o destino dos homens.

Na mesma trilha de entendimento, K. Kerényi nos diz que a mitologia não explica nada, mas
espalha claridade sobre o que é, acontece e deve acontecer; a mitologia fundamenta. Não responde à
pergunta por quê?, mas pergunta donde? Qual a origem? Para ele, os fatos da mitologia constituem
o fundamento do mundo que assenta na totalidade sobre eles.

O mito pode oferecer um caminho para ampliar a consciência para quem não é visionário e
pode possibilitar uma visão mais intensa dos homens na sua natureza concreta - estímulo
para um humanismo mais concreto - do que a que a ciência e a filosofia nos pode oferecer.
(KERÉNYI, 1965, apud. JESI, 1977, p.112).

Lamentavelmente, apesar dos mitos serem portadores de "verdades", eles foram ocultados
ou destituídos de sentido no nosso mundo cada vez mais dominado e marcado pela lógica da
causalidade linear e pela racionalidade científica. Por isso, é de fundamental importância mostrar
que através do diálogo multicultural é possível recuperar determinados saberes confinados ao
silêncio; que é possível uma conexão cognitiva Ŕ simultaneamente oposta e complementar Ŕ entre
345
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

as formas de racionalidades contidas na Poética (razão louca), no pensamento linear (razão cínica) e
nos mitos (razão sensível e imaginativa) porque, apesar de aparentemente contraditórios ou
antagônicos, tais saberes não são excludentes, e sua intercomplementaridade é indispensável para a
construção de um novo processo educativo.
Defendemos, portanto, que empreendamos uma reflexão sobre o nosso fazer educativo em
busca de uma conscientização que leve em conta não apenas a razão técnico-científica, mas,
também, a razão sensível e imaginativa a fim de que possamos verificar se o mito, como uma visão
de mundo Ŕ seja amazônico, seja grego Ŕ pode ser utilizado como instrumento estético-cognitivo
em busca do reencantamento da educação e do mundo pois, no nosso entendimento, o que ele
pretende, cada qual a seu modo, é revelar aos homens uma certa sabedoria milenar que busca
atribuir sentido a esse mesmo mundo, sem a preocupação de desocultar os seus mistérios ou
desencantar os seus encantos e magias.
Considerando as narrativas como sistemas sócio culturais que estruturam valores, práticas e
funções simbólicas que reconhecem e valorizam os mitos e as lendas como elementos fundantes das
identidades étnicas e culturais dos povos anfíbios da Amazônia, acreditamos que através da
(re)significação das dimensões sensível e imaginativa Ŕ predominante no pensar, fazer e sentir do
Ser Amazônida Ŕ ser possível revitalizar, ora pela representação estética que comportou a tragédia e
comporta as lendas, ora pela narrativa do imaginário poético que comportou os mitos e comporta as
lendas amazônicas, o valor local das identidades étnicas e culturais em face de uma possível
desconfiguração (ou reconfiguração) global que se anuncia em tempos atuais e, através de tal
revitalização, ser possível desenvolver não apenas um processo informativo ou instrucional, mas um
processo educativo que, partindo do contexto local possa levar o educando a apreender e
compreender toda a riqueza da diversidade dos contextos e das culturas em que estão inseridos os
seres humanos, seus semelhantes e, com isso, buscar soluções para os seus problemas enquanto
cidadãos.
Com isso, não queremos fazer da visão mítica do mundo vivido uma visão puramente
redentora, capaz de (re)humanizar plenamente o homem à semelhança do que, historicamente, os
iluminados pretenderam com a razão. Nossa crença é que, a partir das narrativas míticas seja
possível resignificar a pedagogia e a educação, atualmente cimentadas numa razão monovalente a
fim de que os efeitos irrefreáveis da pós-modernidade não levem ao extermínio as tradições orais e
o sentido estético de (re)encantamento e (re)significação do cosmos, da natureza e da cultura que os
povos da floresta possuem.

Nem tudo está perdido e a nova rota civilizacional aponta novos caminhos que ao contrário
daquilo que pensava o progressismo moderno e seus diversos avatares contemporâneos, o
tempo não se acelera numa direção linear; bem ao contrário, parece encurvar-se. É o
arcaico e o tradicional retomando força. O mundo, para melhor e para pior, se reencanta. E
vemos reviver o que pensáramos estar totalmente ultrapassado.( MAFFESOLI, 1998,
p.102)

346
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Neste início de milênio, em decorrência da falência da razão instrumental, a educação está


reorientando-se através de novos fundamentos e novas pedagogias; está trilhando novos caminhos
em busca de novos e antigos saberes que possam pensar e conviver com o ecossistema, a vida social
e o próprio homem de maneira mais solidária, mais afetuosa e menos cínica.
Nesta perspectiva e para que a rica e complexa leitura de mundo que o educando possui, não
seja desconsiderada nas leituras de textos nas quais a escola o insere, é preciso que o processo
educativo na Amazônia, valorize e utilize, como fonte primeira de seu fazer, as narrativas, (mitos e
lendas) dos povos anfíbios da floresta Ŕ índios e não índios Ŕ porque uma educação que tenha por
finalidade dar ao educando alguns instrumentos para uma maior compreensão do mundo, do
homem, da vida e com isso melhor resolver os problemas com os quais vai deparar-se em seu dia a
dia, não pode deixar de pensar e desenvolver uma perspectiva pedagógica que revitalize e valorize,
como legítimas estruturas mentais, a dimensão sensível e imaginativa dessas culturas.
À semelhança dos seres vivos, sua linguagem é autopoiética. Este termo designa a poiesis
(criação), enquanto autonomia de organização de tudo que é vivo. Isto é, ela se reconfigura mesmo
diante das adversidades. No entanto o mito, como dimensão daquilo que é vivo, não se reduz a uma
explicação autopoiética. E o status mitopoético da narrativa não se reduz à linguagem mítica.
O que desejamos não é fazer uma crítica da razão que nos leve a uma posição de elogio ao
irracional, caricaturados aqui pelas narrativas mitológicas, pois estas dimensões da linguagem
humana sem dialogicidade perderiam o sentido de suas riquezas e conduziriam a infertilidade de
nossas convicções, produzindo, assim, novas formas de dogmatismos. O que pretendemos é mostrar
que a modernidade, negando os mitos, acabou produziu neomitos e que a mitopoética de muitas
culturas indígenas está se revelando como uma fonte de subsídios para a construção do
conhecimento humano; que a mesma razão que expulsa os mitos, torna a sociedade mitificada onde
o mesmo mito que encanta, constrói com esse encantamento uma forma de racionalidade; que a
razão não é, portanto, privilégio dos Ŗcivilizadosŗ e o mito não se torna exclusividade dos
Ŗprimitivosŗ.

Acreditamos e esperamos que essas reflexões possam criar inquietudes que levem à
descoberta de alternativas para a apreensão, construção e transmissão de conhecimentos que
possibilitem ao homem anfíbio da Amazônia encontrar caminhos para buscar, quando possível, a
solução para os seus problemas na sua própria cultura, no seu próprio contexto. Não convém,
entretanto, acreditarmos demasiadamente nem na astúcia da razão (cinismo) nem na astúcia da
desrazão (encantamento).
Acreditamos também que é, precisamente no anonimato, na penumbra da vida cotidiana,
banal e (extra)ordinária que esses saberes encontram o combustível necessário à sua ação
subversiva sobre a vida e sobre a educação. Mediatizado pela escrita e aprisionado racionalmente a
um veículo de comunicação ocidental, que é o livro, os saberes ditos ocidentais não possuem a
mesma vitalidade movente presente na linguagem labial e mnemônica, típica das culturas
tradicionais e ancestrais.

347
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

À semelhança da tragédia grega acreditamos que a mitopoética amazônica reconstitui-se,


também, numa concepção de dramaturgia em que a combinação de algumas narrativas e suas gestas
encenam e sugerem: como um Ŗespectadorŗ do teatro grego, os índios são arrebatados,
transfigurados de suas dimensões individuais e lançados a um cosmos afetivo como se estivessem
encantados por uma espécie de narcisismo coletivo. O espectador aqui não corresponde à
passividade. Pelo contrário, atuam no cotidiano envolvidos por um sentimento ativo e atuante,
capaz de lançá-los para fora de si mesmo, na imagem de uma comunidade cósmica.
Assim como as tragédias gregas, utilizando-se do mito como pano de fundo, inauguraram de
forma estilizada um modo particular de compreensão do mundo e de racionalização da
sensibilidade. Acreditamos que o processo educativo pode estabelecer, através de um olhar
multicultural e transdisciplinar, um diálogo entre sensibilidade, imaginação e entendimento a fim de
desenvolver um processo de conscientização que estimule novas práticas pedagógicas e humanize o
ambiente escolar e seu ensino na Amazônia e, com isso, possibilite um Ŗcontra-ataqueŗ local nas
estratégias da globalização que ameaça a nossa biodiversidade e, sobretudo, a rica e pluriétnica
sociodiversidade da Região Amazônica.
Enquanto logos grego é Razão, o sofos amazônico é Ŕ simultaneamente Ŕ razão e (des)razão:
Os velhos aedos gregos cantavam e guardam mais mistérios que o canto mágico do uirapuru da
Amazônia? A caixa de Pandora possui mais segredos e mistérios que as realizações, muitas vezes
desagradáveis, de Macunaíma? O certo é que, em vez da Hybris de Édipo, é o Inãron de Uirá que se
faz presente na cosmogonia dos índios Urubu, descrita por Darcy Ribeiro (1974), embora ambos,
Hybris e Inãron, remetam à necessidade imperiosa do isolamento ou banimento do herói.
A razão lúcida do profeta Tirésias não é páreo para a pajelança translúcida presente na
sabedoria e nas experiências extraordinárias de Bahira, relatadas por Nunes Pereira (1940). Este
último herói civilizador fala em nome de uma razão louca que se utiliza da palavra encantada.
A viagem de Ulisses marca, na literatura ocidental, o início da trajetória do desencantamento
do mundo, que iria ser Ŕ na modernidade Ŕ completada por meio do projeto iluminista. Já as viagens
de Bahira, Poronominare, Uirá e outros reintegram e reafirmam o encantamento do mundo, mesmo
na adversidade e na ameaça de sua destruição.
Assim também Ŕ e na mesma proporção Ŕ, a astúcia ardilosa de Ulisses sequer se compara à
astúcia zombeteira de nosso Jabuti descrita por Couto de Magalhães (1975) e, mais tarde, pelo
padre Tastevin (1927). Esta última é produtora de um iluminismo invertido que torna a vida
novamente encantada, revitalizando os saberes da floresta. Logo, é precisamente a astúcia Ŕ e não a
melancolia como queria Aristóteles (1998) Ŕ o principal caráter do herói e do anti-herói que habita
nossa mitopoética Razão Tupiniquim.
Enquanto Platão acusava que a invenção dos mitos era forjada pelos poetas, aqui, pelo
contrário, é a invenção de verdades que são forjadas, aleatoriamente, pela aguçada racionalidade
indígena. Assim, o mito é constituído por uma mistura vertiginosa entre verdadeiro e falso. Logo, se
pretendermos um dia Ŕ à semelhança de Platão Ŕ erigir um lugar ideal, não podemos cometer o

348
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

desatino e correr o risco de expulsar os índios (poetas da floresta) com a desculpa de serem
portadores de uma razão danificada.
Talvez um dos pré-requisitos básicos para compreender ou respeitar o pensamento
mitopoético dos índios da Amazônia fosse nos tornarmos um péssimo leitor da República de Platão.
Senão, um de seus mais ferrenhos opositores.
Os gregos inventaram a idéia ocidental de razão, no entanto, mesmo a tradição mítica
herdada de Homero e Hesíodo foi resultado de um trabalho poético-racional: esses autores, a
despeito das narrativas mais longínquas, humanizaram os deuses, divinizaram os homens,
amenizaram os aspectos monstruosos e apavorantes, isto é, atribuíram racionalidade às narrativas e
aos feitos humanos.
Já a mitopoética amazônica, como afirmamos acima, vem preservando os aspectos híbridos
das narrativas, num entrecruzamento do maligno e do cômico. Conforme analisou Clifford Geertz
(1989: 132): ŖO humorístico e o horrível nem sempre estão rigidamente separados...ŗ . Ou como
Clastres (1978: 104) novamente nos advertiu:

Quando os índios escutam essas histórias, naturalmente só pensam em rir. Mas o cômico
dos mitos nem por isso os priva de seu lado sério. No riso provocado aparece uma intenção
pedagógica: enquanto divertem aqueles que os ouvem, os mitos veiculam e transmitem ao
mesmo tempo a cultura da tribo.

Essa narrativa representa bem o dito popular: ŖO que dá pra rir dá pra chorarŗ . A narrativa
mostra bem a fusão entre o trágico e o cômico. É difícil precisar os limites de onde começa um e
termina o outro. E aqui discordamos frontalmente com Câmara Cascudo (1978: 98) que, utilizando
sempre o verbo no passado, dizia: ŖO indígena tudo explicava naturalmente dentro da vida
assombrosa em que viviaŗ . Depois, afirmava com o verbo no presente: ŖNão há senso cômicoŗ .
Acreditamos, pelo contrário, que o pensamento mitopoético parece revelar essa dificuldade Ŕ senão
a recusa Ŕ em delimitar tão precisamente as tênues fronteiras que dividem o bem e o mal, o trágico e
o cômico, o individual e o coletivo.
A essência da dramaturgia indígena, segundo Nunes Pereira, está no entrecruzamento, isto é,
na fusão do trágico com o cômico, tecido pela articulação de ingredientes fundamentais de sua
mitopoética, a saber, o canto, a dança e o coro, acrescendo a eles o som da flauta e as narrativas
fabulosas.
A partir da combinação desses condimentos, surge a mágica dimensão de policromias e
polifonias. Como diz Nunes Pereira (1947, Parte II):

Então quando esse canto se multiplica pela expressão de um coro, mimando mitos e fábulas
da tribo, bem mais difícil seria compreender o que nele era, simultaneamente, trágico e
cômico, ou a fusão desses elementos, isto é, a própria alma do drama.

Na mitotragédia grega, entretanto, Aristóteles identificava a clara ruptura entre o trágico e o


cômico. Aqui, a Poética grega pouco serviria para compreender a unidade da dramaturgia indígena

349
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

a partir da imensa diversidade de sons, falas, valores e saberes que eles articulam. Para cada
elemento vivo nas coisas, há também um correspondente mítico. O animismo fundamenta a gênese
dos mitos. Disso depende a existência indígena e sua maneira plural de diálogo entre natureza e
cultura.
Homens, animais, plantas, rios e matas, mediatizados pela carga afetiva e imaginária que
eles possuem, formam uma combinação precisa de antropomorfismo e zoomorfismo, no qual toda
mitologia é tributária. São esses elementos os responsáveis por orquestrar a polifonia dos saberes da
floresta, oferecendo sentido estético e fundamentação poética à existência daqueles que convivem
no limite de sua (trans)lucidez.
Da razão trágica dos gregos à razão imaginativa dos saberes amazônicos, funde-se o saber e
a fala encantada, o nosso Moronguetá. Constituído da policromia e polifonia dos seres da floresta,
numa combinação mágica de razão e fantasia, nasce a (dia)lógica dos saberes. Esse desejo
arrebatador de falar de coisas boas, segundo Nunes Pereira (1967, vol.I: 16), lembra-nos: Ŗ[...] a
opulência da imaginação, a multiplicidade dos símbolos, o dom da poesia, a força do sarcasmo, da
falência ou da chufa, o potencial erñtico do índio da Amazônia Brasileiraŗ .
Eis a mitopoética amazônica. As vozes polifônicas da floresta Ŕ de longe, muito longe,
lembram a uniformidade do coro trágico Ŕ personificada na imagem e no canto misterioso do
uirapuru, que entoa sua mensagem sagrada: ... e o princípio era a astúcia!

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. Ars Poética. Edição Bilíngüe Grego-Português. São Paulo, 1993.

____________. O Homem de Gênio e a Melancolia. O Problema XXX, 1. Lacerda Editores. Rio de


Janeiro, 1998.

CASCUDO, Câmara. Literatura Oral no Brasil. José Olympio/MEC. 2ª edição. Coleção


Documentos Brasileiros, Nº 186. Rio de Janeiro, 1978.

CASSIRER, Ernst. Filosofia de Las Formas Simbólicas. México: Fondo de Cultura Económica,
1972.

CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. Pesquisas de Antropologia Política. Tradução de


Theo Santiago. Francisco Alves Editora. Rio de Janeiro, 1978.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.,1989.

______________. O Saber local. Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa. Vozes. Petrópolis,


2000.

JESI, Furio. O Mito. Rio de Janeiro: Presença/Martins Fontes, 1977.

MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. Tradução de Albert Christophe Migueus


Stuckenbruck. Petrópolis: Vozes, 1998.

350
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

___________. De la Orgía: Una Aproximación Sociológica. Tradução de Manuel Mendianes. Ed.


Ariel S.A. Barcelona, 1996.

MAGALHÃES, Couto de. O Selvagem. Edição comemorativa do centenário da 1ª edição. Ed.


Itatiaia, Belo Horizonte. Ed. da USP, São Paulo, 1975.

MALINOWSKI, B. Myth in Primitive Psychology. Londres: Norton, 1926.

PEREIRA, Nunes. Bahira e suas Experiências. Etnologia Amazônica. (Edição do Autor). Composto
e impresso na Livraria Escolar e Casa Editora. Belém, 1940.

__________. Introdução à Dramaturgia Indígena. Parte I. Suplemento Folha do Norte. Nº 38.


Belém. (Publicado em 10.08.1947)

__________. Introdução à Dramaturgia Indígena. Parte II. Suplemento Folha do Norte. Nº 39.
Belém. (Publicado em 17.08.1947)

__________. Introdução à Dramaturgia Indígena. Parte III. Suplemento Folha do Norte. Nº 40.
Belém. (Publicado em 24.08.1947)

__________. Moronguetá: Um Decameron Indígena. Vol. I. Ed. Civilização Brasileira. Rio de


Janeiro, 1967.

__________. Moronguetá: Um Decameron Indígena. Vol. II. Ed. Civilização Brasileira. Rio de
Janeiro, 1967.

PINHEIRO, Harald. BRITO, Rosa Mendonça de. Da Tragédia grega à mitopoética amazônica: a
educação e a valorização de saberes esquecidos. In: Amazônida: Revista do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFAM. EDUA: Manaus, 2003.

RIBEIRO, Darcy. Uirá sai à procura de Deus. Ensaios de Etnologia e Indigenismo. Paz e Terra. Io
de Janeiro, 1974.

RICOUER, Paul. ŖO tecer da intriga Ŕ uma leitura da Poética de Aristñtelesŗ . In: Tempo e
Narrativa. Tomo I. Papirus: São Paulo, 1994.

__________. ŖUma retomada da Poética de Aristñtelesŗ . In: A Região dos Filñsofos. Loyola: São
Paulo, 1996.

__________. ŖSobre o Trágicoŗ . In: Nas Fronteiras da Filosofia. Loyola: São Paulo, 1996.

SPINA, Segismundo. Introdução à Poética Clássica. Martins Fontes: São Paulo. 1995.

TASTEVIN, Constantino Pe. A Lenda do Jabuti. Separata do Tomo XV da Revista do Museu


Paulista. Diário Oficial de São Paulo, 1927.

351
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

VOZES E IMAGINÁRIOS NOS FILMES ŖTEN THOUSAND YEARS OLDERŗ E


ŖCORUMBIARAŗ.

Henrique Finco (UFSC).

O gênero cinematográfico Ŗdocumentárioŗ abriga filmes com concepções estéticas e


temáticas muito distantes entre si. Por exemplo, filmes que reconstituem um episódio do passado,
como os que a Bristish Broad Casting produz, convivem sob esta classificação com filmes como o
ŖCabra Marcado para Morrerŗ (1984), de Eduardo Coutinho, ou o ŖHearts and Mindsŗ (1974), de
Peter Davis, ou ŖSickoŗ (2007), de Michael Moore, ŖSoy Cuba, o Mamute Siberianoŗ (2005), de
Vicente Ferraz, ŖNotícias de uma Guerra Particularŗ (1999), de João Moreira Salles, ou ainda
filmes pioneiros como ŖO homem com a câmeraŗ (1929) de Dziga Vertov, ou ŖNanook of the
Northŗ (1922), de Flaherty Ŕ sendo que estes dois últimos filmes ainda sequer eram classificados
como Ŗdocumentáriosŗ .

Por isto é necessário, mesmo provisoriamente, explicitar sobre que tipo de filme
documentário se estará falando. Ou seja: qual sua concepção e quais escolhas o documentarista
utilizou, o que envolve também aspectos extra-obra, como dimensões éticas (ou seja: intencionais) e
contextuais.

Aqui, serão tratados aspectos de dois filmes que pertencem a uma tradição documental
muito específica, que pode ter seus primórdios relacionados a quatro momentos do cinema: o neo-
realismo italiano; o cine veritè francês - também conhecido como o cinema direto francês; o
cinema direto norte-americano - incluindo todas suas Ŗfasesŗ ; e o cinema direto canadense - além
da contribuição de uma plêiade de antropólogos cineastas, entre eles Jean Rouche, que teve forte
influência na prática documental contemporânea.

Estes dois filmes documentários são ŖCorumbiaraŗ , do cineasta brasileiro Vincent Carelli, e
ŖTen Thousand Years Olderŗ , do cineasta alemão Werner Herzog. Eles têm as seguintes
características comuns: os registros de imagens e quase todos os registros de áudio são cópias
diretas de uma realidade que pertencem ao universo factual em que todos estamos mergulhados;
abordam uma temática semelhante: grupos indígenas da Rondônia1 afetados pelo avanço da
sociedade de mercado sobre seu território; ambos se pretendem Ŗisentosŗ , sendo apresentados aos
públicos receptores como fiéis à Ŗrealidadeŗ mostrada na tela, realidade esta que foi Ŗcapturadaŗ por
dispositivos eletromecânicos pretensamente neutros; em ambos há um narrador que conduz e
interpreta a história que está sendo mostrada.

1
Estado localizado na Amazônia brasileira.

352
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Uma outra característica comum a eles é a de pertencerem à tradição do cinema


documentário vinda do cinema direto Ŕ e é a partir desta filiação que colocarei os dois em
discussões aqui.

Como observam Nichols (1991), Ramos (2001) e Da-Rin (2004), entre outros, filmes
pertencentes a esta tradição sempre tiveram a preocupação de relatar o real sem subterfúgios, o que
também sempre foi (e é) problemático, a começar pelo fato de que todo o registro de um
determinado fragmento de realidade interfere nesta realidade, especialmente quando se trata de
relatar realidades de ações humanas. Além disto, na hora de captar as imagens e sons desta
determinada realidade, o realizador necessariamente tem que escolher os enquadramentos e
selecionar quais os sons ambientes terão prioridade no registro, como por exemplo: dar mais ênfase
às falas de alguém ou aos sons ambientes que, naquele momento, podem estar se sobrepondo ao
relato de um entrevistado. Mais escolhas ainda serão feitas na hora da montagem Ŕ montagem que
quase invariavelmente resulta em uma Ŗhistñriaŗ , ou por outra: em um novo relato, que é o relato
cinematográfico de quem está a produzir o filme.

Com este objetivo, o de ser o mais fiel possível à realidade, ao longo do tempo foram sendo
testadas várias estratégias, como a do candid eye1, onde o paradigma era o do realizador (e, por
conseqüência, de todo seu aparato) ficar Ŗescondidoŗ , interferindo o menos possível no que estava
acontecendo em frente à filmadora. O resultado era que, ao final, as estruturas narrativas destes
filmes resultavam por se assemelhar aos da cinematografia clássica de Hollywood; ou seja:
acabavam por disfarçar sua própria origem como peças fílmicas (ou audiovisuais). Obtinham o
resultado da Ŗtransparênciaŗ 2, como se se estivesse vendo a realidade através deles; como fossem
Ŗjanelasŗ por onde poderia ser vista a realidade tal como ela seria para qualquer observador que
estivesse lá no momento em que aquela realidade foi captada pela filmadora e aparatos de audio.
Ora, como observa Nichols (1991), este resultado colocava em xeque o próprio status do filme, já
que ele acabava por Ŗesconderŗ uma parte importante da realidade relatada, que é a que diz respeito
a como foram conseguidos aqueles resultados e sobre como o filme interferiu naquela realidade e
como a própria subjetividade dos realizadores acabou por se incorporar ao material final.

Tentando superar estes problemas, alguns realizadores acabaram por incorporar estas
questões nos filmes. Assim, tornou-se relativamente comum, em filmes que podem ser filiados a
esta tradição cinematográfica, a aparição da equipe de filmagem nas cenas, ou (às vezes em
conjunto) o diretor aparece fazendo perguntas ou colocando suas dúvidas, ou explicando como e
porque determinadas tomadas foram feitas. Ou seja: alguns realizadores trouxeram aos filmes
elementos que permitiam a quem assistisse desnudar o próprio ato da produção do filme,
desvendando os mecanismos de produção das imagens. Por outro, trouxeram elementos que
permitissem, ou que induzissem, uma reflexão por parte de quem assistisse o filme. Filmes assim

1
Para um maior aprofundamento veja-se Nichols (1991) e Da-Rin(2004).
2
Para o conceito de transparência, ver Machado (1996).

353
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

passaram a ser denominados Ŗauto-reflexivosŗ, já que permitiam uma reflexão sua prñpria condição
de Ŗfilmesŗ , e se contrapunham à Ŗtransparênciaŗ (isto é: às estratégias narrativas e de produção que
procuravam Ŗesconderŗ que o que se estava assistindo era um filme) dos filmes que tinham como
paradigma narrativo-estético os filmes hollyoodianos clássicos, da tradição de Griffith.

A trajetória desta tendência, o que também podemos pensar como o caminho à sua
consecução radical, levou à produção de filmes que mais do que auto-reflexivos, são performáticos1
Ŕ chamados assim especialmente porque o realizador se coloca no filme, expondo-se em graus
variáveis de profundidade. Ou seja: o realizador acresce ao filme dimensões de sua própria
subjetividade, como estratégia narrativa reflexiva, de forma a seguir o melhor possível a retratação
do real, o que só seria possível se aos espectadores fossem dados os elementos que os permitissem
julgar o próprio status de realidade do filme.

Este tipo de filmes, que aqui coloco como sendo uma radicalização dos filmes auto-
reflexivos, podem ser considerados, hoje, os que mais procuram ser fiéis às questões éticas que
permeiam (e compõem) os filmes documentários atuais. Assim, não seria exagero afirmar que até
hoje são os mais bem sucedidos no intento de Ŗretratar o realŗ. Sua antípoda são os filmes
documentários que pertencem ao que Nichols classifica como Ŗvoz de deusŗ, onde um narrador
onisciente conduz a narrativa, normalmente linear, de um determinado evento. Exemplo deste tipo
de filmes são quase todas as reportagens para televisão ainda feitas no mundo todo.

Estas breves considerações feitas acima permitem agora que passemos à análise dos filmes
ŖTen thousand years olderŗ e ŖCorumbiaraŗ.

ŖTen thousand years olderŗ , de Herzog, é um trecho de 10 minutos do filme ŖTen Minutes
Olderŗ , produzido por Ulrich Felsberg , onde seis cineastas foram convidados a criar livremente um
filme de 10 minutos cada um, com a única obrigatoriedade de todos terem apenas duas coisas em
comum: que falassem da passagem do tempo e que, em algum momento do filme, aparecesse um
relógio. O segmento de Herzog foi construído da seguinte forma: ele recuperou imagens tomadas
por uma equipe de cinegrafistas e antropólogos brasileiros e ingleses, feitas em 1981, que registram
o primeiro contato de índios da etnia amondawa, em Rondônia, com Ŗo homem brancoŗ . Em 2001,
Herzog foi à Rondônia, descobrir o que havia acontecido com os índios sobreviventes e como
viviam agora. A primeira terça parte do filme é construída com os planos filmados em 1981. No
restante do filme, as imagens são de 2001, onde aparecem dois dos sobreviventes: o cacique Tari e
seu irmão mais velho Wapo. Para as tomadas de 2001, Herzog utilizou Vicente Rios, o mesmo
cinegrafista que havia feito as gravações em 1981. No primeiro terço do filme, Herzog editou as
imagens de 1981, colocando sua voz em off narrando linearmente a história destes índios segundo o
ponto de vista dele próprio (Herzog), do primeiro contato até 2001, vinte anos mais tarde. Do
segundo terço em diante, aparecem Tari e Wapo narrando performaticamente feitos de quando eram

1
Para um aprofundamento deste ponto, ver Nichols (1994).

354
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mais jovens. O que estrutura toda a narrativa do filme é a passagem do tempo e a voz em Ŗoffŗ de
Herzog, que tem um tom propositadamente dramático, fala da qual transcrevo o trecho inicial,
traduzido livremente por mim, mas que espero possa mostrar seu tom:

Uma enigmática tribo nômade, os Uru Eus Wau Waus 1, defende seu território contra o
avanço de colonos.

Em 1981 foi feito contato com esta última tribo perdida na floresta. Provavelmente não
voltará a acontecer algo assim de novo na história da humanidade. Já não existem mais
povos e lugares desconhecidos sobre a face da terra.

Milhares de garimpeiros estavam a caminho do território destes índios em busca de ouro.


Naquele momento, as autoridades indigenistas brasileiras decidiram que o melhor seria
estabelecer primeiro um contato com aqueles indígenas. (Para isto) Foi enviada uma
expedição acompanhada por uma equipe de filmagem brasileiro-britânica. Depois de
semanas, encontraram um acampamento recentemente desocupado.

Corumbiara, por outro lado, é um filme documentário, com 117 minutos de duração, feito
por Vincent Carelli em vídeo entre 1986 e 2006. Trata do massacre de índios isolados, a mando de
fazendeiros, na gleba Corumbiara, em Rondônia, nas décadas de 80 e 90 do século passado, e o
filme é a narrativa da busca de provas deste massacre.

Nesta busca, os documentaristas encontram uma família de índios isolados: a mãe


(sobrevivente de outro massacre, em 1952), um filho, uma filha e uma sobrinha dela. Os
antropólogos e indigenistas (que são os documentaristas) ficam surpresos, pois não conseguem
identificar a que grupo estes índios pertencem. Com as imagens e as vozes deles, posteriormente, no
Museu Goeldi (Belém do Pará), conseguem identificá-los como pertencentes à etnia Canoê, que fala
uma língua dada como extinta, já que se conhecia até então apenas poucos anciãos, sobreviventes
ao massacre da década de 1950, que a falavam. Um destes anciãos, o Xamã Monuzinho Canoê, é
levado até Corumbiara e serve de intérprete na conversa entre a equipe de filmagem e este grupo
isolado de canoês.
Carelli é um dos idealizadores do projeto Vídeo nas Aldeias e o início das gravações se deu
quase por acaso, quando o indigenista Marcelo Santos, funcionário de campo da FUNAI, procurou
Carelli para que este filmasse vestígios de um massacre de índios ordenado por um fazendeiro no
final de 1985. Esta primeira filmagem é interrompida quando a pequena equipe de filmagem é
expulsa da Ŗpropriedadeŗ por Flausino, advogado do fazendeiro, que se faz acompanhar por um
grupo de jagunços.

Ela é retomada nove anos depois, em 1995, quando Marcelo Santos é nomeado pela FUNAI
chefe da secretaria dos índios isolados em Rondônia. Nesta segunda etapa, eles encontram
sobreviventes do massacre de 1985 (os akunsú) e vestígios de um outro sobrevivente, um índio não
identificado que a equipe passa a chamar índio do buraco. Alguns anos depois, eles conseguem
chegar até ao índio do buraco, que está em uma oca isolada no meio da selva. Ficam seis horas

1
Também conhecidos por amondauas.
355
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

tentando um contato, sem que ele emita uma palavra sequer. Sua única reação foi a de atirar uma
flecha na direção do cinegrafista. Outras pessoas estavam muito mais perto dele e muito mais
expostas, mas ele tentou acertar o homem com a câmara. Sentiu-se ameaçado pela filmadora, que Ŕ
ironicamente Ŕ era a única chance de sua sobrevivência: eram as imagens de sua existência que
faziam um juiz federal emitir sucessivos mandatos que impediam o fazendeiro de destruir aquela
única área de mata que ainda existia.

Entre interrupções e recomeços, o filme é concluído em 2006 e tem o corte final feito em
2009.

A narrativa é conduzida, em primeira pessoa, pela voz em off de Carelli, que logo no início
do filme se apresenta, fala de suas motivações e introduz algumas das personagens da narrativa que
começa a se desenvolver:

ŖMeu nome é Vincent, sou um indigenista e comecei a fazer documentários em 1986. Neste
ano tava justamente realizando a primeira experiência do Vídeo nas Aldeias, que naquela
época consistia em filmar os índios e mostrar imediatamente. Este jogo de espelho ia
gerando um entusiasmo e, com a possibilidade de se ver na telhinha, levou os Nambiquara a
delirar e a gente com eles. De repente, sob a liderança do capitão Pedro Mamendê, eles
furaram o lábio de 30 jovens numa cerimônia que eles tinham abandonado há 20 anos.
Desta experiência marcante nasceu a ŖFesta da Moçaŗ, que foi meu primeiro documentário
no norte de Mato Grosso. Foi então que o Marcelo Santos, indigenista da FUNAI, me pediu
prá registrar os vestígios de um massacre de índios isolados, na gleba Corumbiara, no sul de
Rondônia. Eu tava começando e prá mim dar ao vídeo uma função de militância mesmo era
o que importavaŗ .

Embora este início aparentemente tenha a estrutura dos documentários clássicos, tipo Ŗvoz
de Deusŗ 1, onde o narrador é onipresente, na verdade se diferencia radicalmente daqueles, pois
neles a fala do narrador, em terceira pessoa, se pretende neutra. Neste, não só é um relato em
primeira pessoa, como o narrador se posiciona claramente, o que aparece no trecho transcrito acima.
Também é importante notar que aqui ele já se coloca no meio da narrativa, como personagem em
ação. Em vários outros momentos do filme isto acontece, quando ele fala do que aconteceu em
espaços e tempos que não aparecem no filme, quando lembra de dificuldades, quando relata a morte
de sua mulher, a antropóloga Virgínia Valadão. Ele, ao narrar o filme em off, está simultaneamente
narrando a si próprio; ou por outro: narrando um período de sua vida, a partir de uma empreitada,
que é a construção do filme.

Um outro ponto importante a ser ressaltado aqui, diz respeito à ética, que filmes deste tipo
têm como quase uma convenção, e aparece na narrativa como um traço estilístico. Este traço, que
marca bem esta narrativa como pertencente a uma determinada tradição de filmes, que é a tradição
do cinema direto, é a ausência de efeitos sonoros: sons, só os do ambiente. Para esta tradição
fílmica, este é um sinal de realidade. Nenhum artifício cenográfico ou sonoro é admitido 2. Outras

1
Como se referem aos documentários tipo clássicos, da escola inglesa, os pesquisadores Da-Rin (2004), Labaki (2005),
Ramos (2001, 2005), entre outros.
2
Conforme DA-RIN (2004), Labaki (2005), Ramos (2001, 2005), (1999), Nichols (1991, 2008), Carrol (2005).
356
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

marcas características são a Ŗcâmara na mãoŗ , algumas tomadas com a medição de luz incorreta.
Todos indicadores do que Ramos (2005) chama de Ŗcicatriz da tomadaŗ , que acabam por lhe
conferir uma aura de autenticidade e, simultaneamente, é a garantia por parte do realizador de que o
filme retrata parte da realidade física e histórica em que estamos todos mergulhados - ou pelo
menos são registros de fragmentos autênticos desta realidade, capturados por um dispositivo de
gravação eletro-mecânico automático.

O filme, por outro lado, fornece todos os elementos para que se possa afirmar que, na
verdade, aquela narrativa se confunde com a própria narrativa da vida de Carelli nestes vinte anos
de gravação. Como na vida, os acontecimentos são aleatórios, fragmentados, sem um final, sem
início muito definido (ou com início nebuloso), Ŗum filme sem fimŗ , como fala Carelli em certo
momento: Lígia Galvão, a mulher de Carelli, morre. Os quatro canoês aparecem e somem, ao sabor
do fluxo da vida. Piamoi, a anciã canoê, e Oboró, sua sobrinha, morrem. Restam só dois canoês,
Temarantú, a filha mulher, e Kurá, seu irmão. Kurá quer casar com a menina akunsú Ŕ e leva anos
nesta espera, até que Konibu, chefe dos akunsú, dê sua permissão. Temarantú acaba por ter um filho
com Konibu. Um novo começo? A língua canoê, afinal, escapará da extinção e os dois irmãos terão
outros com quem conversar?

No filme, os anos passam para frente e para trás. Quando vão para trás é em busca de uma
identidade que só se esclarece no presente. Todas as personagens têm nome, exceto o índio do
buraco. O velho canoê, um dos poucos falantes conhecidos do canoê, língua dada como extinta pelo
Museu Goeldi1, se emociona ao descobrir que ainda há mais quatro canoês em Corumbiara, local
onde os seus sofreram um massacre, tendo os poucos que restaram sido retirados à força de lá na
década de cinqüenta do século vinte Ŕ e se alvoroça em busca de um fragmento perdido de sua vida.
Será que é seu irmão, do qual nunca encontraram o corpo? Os acontecimentos são aleatórios,
acontecem de forma fragmentada e a memória serve como fio ordenador. De certa forma, como a
vida acontece.

Por outro lado, embora seja a voz de Vincent a que prevaleça, neste filme há a presença de
várias vozes: a de Temarantú, a dos akunsú, a de um dos dois últimos canoês, sobreviventes de um
massacre na década de 1950, a do advogado de fazendeiros, a de representantes da FUNAI. A
narrativa dá voltas: de 1986 passa para 2006. Volta para 1995 e passa por 2000. Vai até 1952 e dá
um pulo para as décadas de 1960 e 1970, na época do regime militar. O que puxa a narrativa é a
memória e um episódio lembrado leva a outro, com uma distância no tempo de décadas entre um e
outro, criando uma narrativa tão complexa quanto a realidade que lhe serve de referente, uma
narrativa onde a linearidade da narrativa naturalista é quebrada pelo surgimento de tempos
desconexos, que só tomam sentido pela voz em off de Vincent, que é uma voz que tenta dar voz a
quem não consegue sequer falar, como é caso do índio do buraco. Mas também é uma voz que
procura dar um sentido ao caos e à babilônia Ŕ e à própria vida do enunciador.

357
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Embora, em certo sentido, o filme mimetize a vida, ele não é a vida Ŕ e Temarantú, como
quase todos os outros que aparecem no filme, tinha consciência de que estava sendo filmada: Carelli
sempre mostra a todos o resultado das filmagens, Ŗem um jogo de espelhosŗ , como diz ele. Ou seja:
provavelmente ela estava representando2, mas representando ela própria! Temarantú não é uma
ficção, embora seja uma personagem de um documentário e tivesse consciência de que estava sendo
filmada. O índio do buraco também tinha consciência da filmadora, tanto que agrediu exatamente
quem a portava. Ele não queria participar daquele relato, embora tenha participado a contragosto:
sua recusa deve ser entendida como a reivindicação de um direito à invisibilidade que,
paradoxalmente, era a única coisa que ele deveria abrir mão para poder sobreviver. Neste sentido,
seu negaceio não deixou de ser uma espécie de fala.

Vincent Carelli também não é um personagem de ficção e, no caso dele, a relação com a
forma (isto é: a personagem) como aparece no filme é mais complexa ainda, pois a personagem e o
indivíduo se confundem completamente, bem mais do que as outras personagens filmadas por ele.
Esta fronteira muito borrada, se é que existe no caso dele, entre personagem e pessoa, se deve a
vários fatores, a começar que ele não se representa no filme; ou melhor, a personagem que ele
encarna no filme coincide exatamente com a personagem que ele vive no dia-a-dia, com a
personagem que ele é. Há apenas uma cena no filme em que ele flagrantemente representa: é
quando reencontra Marcelo na casa deste último, décadas depois: a cena do abraço visivelmente foi
encenada, mas de forma tão tosca que não deixa dúvida que ela só foi colocada na narrativa como
um signo de Ŗreencontro de dois velhos companheirosŗ . É a única exceção. No restante de toda a
narrativa, embora ele apareça muito pouco corporalmente, pois é a voz dele que se faz presente
conduzindo a narrativa, o que aparece dele é exatamente o que ele é: um documentarista fazendo
seu trabalho.

Pelo que foi comentado acima dos dois filmes, fica claro que o filme de Herzog, embora
com muitos pontos comuns em relação ao filme de Carelli, se distancia bastante da reflexividade,
sem com isto necessariamente cometer algum deslize ético, pois sua concepção é quase operística: é
a ópera de um autor, que dá intencionalmente um tom dramático à narrativa: seu compromisso com
a realidade é o próprio compromisso de Herzog com a realidade: a realidade é apenas um motivo
para o discurso do cineasta sobre ela, sem a preocupação em refletir ela tal como ela é ou como
poderia ser: Herzog faz um discurso sobre a realidade, não se preocupando em desvendar como de
fato aquela realidade acontece, pois sua intenção é mostrar sua posição frente a uma realidade
abstrata, que é a passagem do tempo e a condição humana Ŕ e este objetivo ele consegue alcançar.

Já o filme de Carelli, embora seja seguro sobre como a realidade é, não tem a mesma
segurança sobre como ela se desenvolve, já que procura incorporá-la no próprio relato fílmico,
fazendo assim com que dúvidas permaneçam, os eventos fiquem em aberto e apontem para um

1
Conforme é narrado no próprio filme.
2
Sobre isto, Eduardo Coutinho diz que as personagens de filmes documentários Ŗse fabulamŗ, in Lins (2004).
358
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

futuro incerto. A força, porém, de sua narrativa é inegável e, a rigor, é mais efetiva que a de Herzog,
já que não achata todos os acontecimentos a partir de um único ponto de vista.

A ŖVozŗ do ŖTen hundred years olderŗ é facilmente identificável com a voz do prñprio
Herzog: não há outra possibilidade a não ser a convergência absoluta da voz do filme com a voz do
autor. A ŖVozŗ de ŖCorumbiaraŗ , por outro lado, não é tão facilmente identificada com a voz do
próprio realizador, pois é constituído por uma mescla de outras vozes, que acabam por construir
uma outra voz, a voz do próprio filme.

Referências bibliográficas

CARROL, Nöel. Ficção, não-ficção e o cinema de asserção pressuposta: uma análise conceitual.
In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Documentário e Narratividade Ficcional (Vol.II). São Paulo:
Editora SENAC, 2005.
DA-RIN, Sílvio. Espelho partido: tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro:
Azougue Editorial, 2004.
LABAKI, Amir. É Tudo Verdade: reflexões sobre a cultura do documentário. São Paulo: Francis,
2005.
LINS, Consuelo da Luz. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de
Janeiro: Zahar, 2004.
MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário. São Paulo: Edusp, 1996.
MOURÃO, Maria Dora e LABAKI, Amir. O Cinema do Real. São Paulo: Cosac & Naif, 2005.
NICHOLS, Bill. Representing Reality: issues and concepts in documentary. Indianapolis, EUA:
Indiana University Press, 1991.
______ Blurred Boundaries. Indianapolis, EUA: Indiana University Press, 1994.
______ A voz do documentário. In RAMOS, Fernão (org.). Teoria contemporânea do cinema. São
Paulo: Editora Senac, 2008.
RAMOS, Fernão. O Que é Documentário?. In Ramos, Fernão (org). Estudos de Cinema SOCINE.
Porto Alegre, Sulina, 2001.
______ A cicatriz da tomada: documentário, ética e imagem intensa. In: RAMOS, Fernão Pessoa
(org.). Documentário e Narratividade Ficcional (Vol.II). São Paulo: Editora SENAC, 2005.

Filmografia

Corumbiara Ŕ Direção de Vincent Carelli Ŕ Produzido por Vídeo nas Aldeias Ŕ Olinda,
Pernambuco, Brasil (2009).
Ten thousand years older Ŕ Direção de Werner Herzog Ŕ Produzido por Road Films
Filmproduktion, Los Angeles, EUA (2002).

359
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

MEMÓRIAS DE EDUCADORES: AS HISTÓRIAS INFANTIS NO ESPELHO DA INFÂNCIA.

Herica Maria Castro dos Santos1 (UFRR)

―Amemória é a vida, sempre trazida pelos grupos vivos e, por esta


razão, ela está em evolução permanente, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações
sucessivas, vulnerável a todas as utilizações e manipulações,
suscetível de longas latências e freqüentes revitalizações.‖

Pierre Nora

Introdução

O artigo aqui apresentado tem como base um projeto maior para uma futura dissertação de
mestrado que pretende traçar um diagnóstico do ensino de literatura desde a mais tenra idade, na
Educação Infantil. A proposta é fazer uma análise da memória dos educadores que atuam na
Educação Infantil, de seus primeiros contatos com as histórias infantis em suas infâncias e fazer
uma relação com sua prática atual em sala de aula. Para obter as informações aqui apresentadas
realizei uma pequena pesquisa com vários educadores atuantes nas classes de 03 a 05 anos
compreendidos hoje como Pré-Escola.

Uma etapa importante neste estudo foi o estabelecimento de critérios para escolha dos
sujeitos pesquisados. Um dos critérios foi a escolha de educadores que atuassem em algumas
escolas, cujos currículos possuíssem características de valorização da Literatura Infantil, onde
inclusive umas das escolas escolhidas possui uma das melhores bibliotecas com acervo infantil em
nosso município.

Como o campo da pesquisa é muito árduo, logo de início me deparei com as resistências de
algumas educadoras que não se mostraram muito dispostas a contribuir, dos trinta questionários
distribuídos nas duas instituições, sendo uma pública e a outra particular, apenas doze foram
respondidos. Deste universo resgato seis professores que trouxeram algumas contribuições
importantes.

Apresentando as personagens

A pesquisa foi realizada em duas escolas de educação Infantil, sendo uma da rede pública e
outra da rede particular de ensino. Foram disponibilizados 30 questionários sendo 15 em cada
instituição, procurei escolas que tivessem em seus currículos a prática de ensino de Literatura

1
Pedagoga, Pós-Graduada em Alfabetização pelo CEDUC/UFRR e Mestranda em Letras no PPGL da Universidade
Federal de Roraima/UFRR.

360
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Infantil, tendo em vista que este é o objeto de minha dissertação. Para conhecermos as personagens
desta pesquisa e melhor visualização apresento o quadro a seguir:

NOME FORMAÇÃO TEMPO NA E.I SÉRIE QUE ATUA

*Profª. Marcia Pedagogia 03 anos Maternal (03 anos)

*Profª Eliz Magistério- cursando 09 anos Maternal (03 anos)


pedagogia

*Profª Gilda Pedagogia 02 anos 1° Período (04 anos)

*ProfªBete Pedagogia 03 anos 2° Período (05 anos)

*Profª Naza Pedagogia 15 anos 2° Período (05 anos)

* Foram usados codinomes para preservar suas identidades, os nomes substituídos são de professoras que marcaram
minha vida de estudante, uso como forma de homenageá-las.

Sobre a concepção de memória

Para começarmos é importante esclarecer algumas concepções de memória, para


compreendermos o espaço que estaremos trabalhando, para isso, buscarei auxílio em algumas
concepções teóricas.

Henri Bergson procede a uma análise interna, diferencial da memória, ele ressalta que o
passado conserva-se, e além de conservar-se, ele atua no presente, mas não de forma homogênea:

De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que vale muitas vezes


automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito, memória dos
mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças independentes de quaisquer
hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do
passado. (BERGSON apud BOSI, 1994, p. 48)

Muitas vezes quando vivemos situações conflitivas, buscamos uma relação com o passado
para tentarmos solucionar esta determinada situação, recorremos ao passado constantemente em
nosso dia-a-dia, nossa memória funciona como um banco de dados, conforme acionamos os botões,
recebemos as respostas aos nossos comandos. Bachelard, relaciona a memória à temporalidade
quando faz uma relação do passado com algum estímulo recebido no presente:

Não se ensina a recordação sem um apoio dialético no presente; não se pode reviver o
passado sem o encadear num tema efetivo necessariamente presente. Antes de nos
ocuparmos da conservação das recordações, é preciso que estudemos sua fixação, pois elas
se conservam na própria localização onde se fixam. Sem fixação falada, expressa,
dramatizada, a recordação não pode relacionar-se à sua localização. É preciso que a reflexão
361
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

construa tempo ao redor de um acontecimento, no próprio instante em que o acontecimento


se produz, para que reencontremos esse acontecimento na recordação do tempo
desaparecido. Sem a razão, a memória é incompleta e ineficaz. (1994, p. 49)

Ainda com as contribuições de Henri Bergson, ele esclarece que a memória vai se
constituindo por um apanhado de imagens que vão se acumulando, onde o corpo é o coração dessas
percepções, vai reagindo conforme recebe estímulos:

Ŗ(...) não há percepções que não estejam impregnadas de lembranças. Aos dados imediatos e
presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada.
Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não
retemos então mais que algumas indicações simples Ŗsignosŗ destinados a nos trazerem à
memñria antigas imagens.ŗ (1990, p.22)

Os anos oitenta foi marcado por muitos estudos nas mais diversas áreas, e muitos destes
temas enfocavam a memória, estes estudam buscavam sempre a valorização da experiência com sua
vida prática. Um autor muito citado é Maurice Halbwacks (apud BOSI, 1994), que abriu um longo
caminho a ser percorrido para os campos da sociologia, a história e a psicologia social. Em um de
seus livros célebres, ele chamou a atenção para a chamada Ŗmemñria coletivaŗ , reforçando e
constituindo um sentimento de pertinência aos grupos, classes que tenham participado de passado
comum, ressaltando sempre que Ŗa memñria é sempre um produto social.ŗ

Sobre memória de educadores

Trabalhar com a memória de educadores dentro da perspectiva de formação pessoal e


profissional me permitiu ensaiar um Ŗembriãoŗ de um método (auto)biográfico, onde cada uma
descreveria suas lembranças de infância fazendo sempre uma relação com sua prática atual em sala
de aula.

Em seus registros as educadoras trazem a tona experiências com muitos significados


permitindo movimentar as lembranças do passado sobre os acontecimentos vividos. Relembrar o
passado é sempre um momento nostálgico, de muita saudade, que nos faz reviver acontecimentos
que nunca foram perdidos por nossa memória. Chauí (2000, p. 164) ressalta:

A memória não é um simples lembrar ou recordar, mas revela uma das formas
fundamentais de nossa existência, que é a relação com o tempo, e, no tempo, com aquilo
que está invisível, ausente e distante, isto é, o passado. A memória é o que confere sentido
ao passado como diferente do presente (mas fazendo ou podendo fazer parte dele) e do
futuro (mas podendo permitir esperá-lo e compreendê-lo).

362
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Não podemos pensar na memória como um fio condutor de nossa formação, mas que muito
contribui para construção de nossa história, seja ela profissional, pessoal, social, por isso retomo o
que disse Figueiredo (2007, p.2) quando faz importante:

Dar visibilidade aos objetos de nossas memórias, lembranças, vivências de infinitos tempos
e lugares Ŕ brinquedos, livros, velhas roupas de crianças, fotografias, objetos de estimação,
cartas escritas a bico de pena...Lugares onde moramos, vivemos, trabalhamos. Assumir a
própria vida, transformar os espaços e permitir expressar-se do seu jeito, com seus ritmos e
possibilidades. Entrar no palco virtual, um mistério a ser desvendado, reconhecido como
outras maneiras de se fazer educador e educadora.

O mundo da infância sempre nos causa saudosismos, quando nos tornamos adultos,
começamos a formar famílias, entrar no mundo do trabalho, estas realidades nos desviam das
lembranças do tempo de criança. Quando resgatamos estas lembranças de infância, principalmente
quando somos educadores que atuam especificamente com crianças, apertamos novamente nossos
Ŗbotõesŗ da memñria e relembramos como foi nossa vida como pequenos alunos na Educação
Infantil, lembramos como nossas professoras eram personagens importantes em nossas vidas, por
vezes lembranças boas, por outras ruins.

Esta pesquisa trouxe a possibilidade às educadoras de descreverem um pouco de suas


histñrias, tirarem do Ŗbaúŗ de lembranças suas experiências de escola, principalmente deste
universo fantástico que é a Literatura Infantil. Em suas escritas podemos observar a reflexão sobre
seus comportamentos, padrões, os valores e principalmente que dinâmicas as suas professoras
utilizavam, de que forma elas apresentavam as crianças os livros de histórias.

Sem dúvida nenhuma, foram muitas as impressões deixadas sobre a docência, muitos
saberes foram construídos ainda na infância, afinal quem não lembra de sua primeira professora?
Quem nunca imitou sua professora? Seu jeito de andar, falar, ou vestir?

Como apresenta Fernandes (1994), Ŗa memñria, possibilita um reviver do passado Ŗa luz de


experiências do presente, assumindo para o trabalho histñrico um papel relevanteŗ . A vivência de
contar sua história de infância, principalmente de seus primeiros contatos com a Literatura Infantil,
incorpora os elementos coletivos que realimentam nossas experiências, que até então pareciam
apenas nossas.

Era uma vez...lembranças de “histórias”

Pensando em como a infância se constituiu para essas educadoras, e historicamente que


formação propiciou desta categoria social e cultural, Sarmento (2007, p. 29) contribui:

363
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O estudo das concepções da infância deve, por isso, ter em conta os fatores de
heterogeneidade que as geram, ainda que nem todas se equivalham, havendo sempre, num
contexto espaço-temporal dado, uma (ou, por vezes, mais que uma) que se torna
dominante. O estudo dessas concepções, sob a forma de imagens sociais da infância, torna-
se indispensável para construir uma reflexividade fundante de um olhar não ofuscado pela
luz que emana das concepções implícitas e tácitas sobre a infância.

A infância das educadoras pesquisadas foi marcada por muitas experiências que envolviam
o contato com a literatura, a seguir transcrevo trechos de seus textos, onde relatam suas lembranças.

Ao serem questionadas sobre as lembranças de histórias contadas ou situações vividas, as


educadoras relatam:

Márcia:

O Pequeno Príncipe, minha professora sempre nos contava alguns trechos da história, e
sempre aguardávamos ansiosos os momentos da história. Uma parte que eu nunca
conseguia entender era a figura em que a cobra engolia o elefante, o que mais me parecia
um chapéu.

Eliz:

O Chapeuzinho Vermelho, quando o caçador tira a vovó da barriga do lobo.

Gilda:

Sim, o Patinho feio foi uma das histórias que fez parte da minha vida escolar (Educação
Infantil), e a parte do abandono da mãe e o preconceito sofrido por ele, foi bem comovente
pra mim, pois considero essas duas situações bem delicadas.

Bete:

Apesar de não ter contato com histórias na educação Infantil, me lembro de uma história
que achava linda (divertida). Marcelo, Marmelo, Martelo (Rute Rocha), agora eu sei. E
parte de uma (outra história) que dizia: ―Gabriela pra onde a rua vai?, ela respondia: A
rua não vai não, é a gente que vai nela. Tinha outra frase: Menina como se chama? Ela
respondia: Eu não me chamo, os outros é que me chamam Gabriela. Eu adorava...(não sei o
nome desta história).

Naza:

Brincava de ensinar meus irmãos e meus colegas.

Questionadas sobre as suas práticas atuais em sala de aula, indaguei sobre como elas
propiciam esse primeiro contato das crianças com a Literatura Infantil:
364
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Márcia:

Toda semana contamos uma história diferente, gosto de contar a história e fazer eles
imaginarem a cena, depois apresento o livro e fazemos juntos a leitura de imagens.

Eliz:

Eu trabalho muito com a contação de historinhas, pois sei quanto é importante a leitura
para meus alunos.

Gilda:

A leitura é algo indispensável em nossas vidas, pois é uma das oportunidades de visão de
mundo. Procuro propiciar momentos literários com as crianças através de histórias infantis
e leitura visual, percebo que são uns dos momentos que eles mais gostam e que é mais
atrativo.

Bete:

Penso que desde cedo as crianças tem que ter contato com esse mundo, pois é
essencial...Gosto muito de propiciar a hora do conto, manuseio de livros, visita a biblioteca,
leitura de parlenda, trava-língua, roda de leitura, etc.

Naza:

Trabalho contextualizando diversos tipos de textos e seguindo para a particularidade das


letras e números, rodas de conversas, histórias com cartas, histórias com repetição, leitura
de livros literários.

Procurando fazer uma relação entre as experiências vividas na infância e suas posturas na
prática atual em sala de aula, propositalmente carreguei as perguntas com certo grau de
objetividade, incorporando o esforço da análise, da contextualização, mas é impossível ignorar que
algumas respostas estão impregnadas de subjetividade.

Na última questão solicito que as educadoras façam uma reflexão sobre sua prática hoje, se
houve ou não, alguma influência de suas lembranças da infância em sua formação, ou se suas
posturas atuais são frutos de formação acadêmica:

Márcia:

Acredito que pelas duas coisas. Tive ótimos professores, e hoje me pego fazendo coisas que
eles fizeram algum dia comigo. Claro que nossa formação ajudou bastante.

Eliz:

365
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Metade sim, metade não, acredito que seja mais pela minha formação, apesar que a
influência e gosto começaram na minha infância.

Gilda:

Sim.

Bete:

Primeiro pela memória de infância, que foram poucas e eu sei que isso influência muito.
Faz falta no decorrer da nossa formação nas outras séries. Segundo pela minha formação
pedagógica, que a cada dia me leva a constatar essa falta. Apesar de tudo sempre gostei, e
gosto de ler, e para o professor sentir essa importância ele precisa ler e gostar de ler.

Naza:

Acredito estar desenvolvendo hoje o que aprendi na minha infância, tive oportunidade e
vários caminhos e muitas oportunidades para minha formação pessoal, mais também
desempenho em minha função aquilo que busquei na minha formação profissional. Na
busca de conhecimento e experiências profissionais aprimorei minha prática pedagógica.

Sem dúvida o contato com a Literatura na infância trouxe muitas memórias para a formação
profissional destas educadoras, todas ressaltam a importância que teve esse primeiro momento, e
mesmo tão pequenas as lembranças ainda parecem vivas o suficiente pra estimularem suas práticas
atuais.

Considerações finais

Ao finalizar este texto é possível afirmar que o estudo da memória e das experiências das
educadoras permitiu uma visão positiva a cerca das possibilidades no campo da Literatura Infantil.
O quanto é importante o contato com a Literatura logo na primeira idade, quando temos contato
com leituras que muitas vezes são recheadas de ensinamentos, guardamos em nosso Ŗbaúŗ de
memórias todas as emoções, sentimentos e experiências que aquela leitura nos traz.

Quando somos crianças não pensamos no dia de amanhã, não temos consciência do que virá
depois, queremos viver o hoje, cada momento, cada segundo, para brincar, criar, imaginar e se
divertir. Com a literatura infantil podemos tornar estes momentos ainda mais prazerosos, inserindo
sempre que possível boas lições, valores, sentimentos, que de forma lúdica são impregnadas em
nossas lembranças e só iremos nos recorrer a elas quando necessitarmos, e sem perceber
recorreremos aos dispositivos que acionam os Ŗarquivosŗ da memñria.

As educadoras descrevem a importância de suas memórias em suas formações, quando


enfatizam: Ŗ(...) Tive ótimos professores, e hoje me pego fazendo coisas que eles fizeram algum dia

366
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

comigoŗ , ou mesmo quando tentam negar elas Ŗafirmamŗ : ―(...)acredito que seja mais pela minha
formação, apesar que a influência e gosto começaram na minha infância‖.

Como vimos acima, além da recordação da infância, elas corroboraram para a importância
do contato com a literatura, que lhes proporcionou um gosto maior pela leitura, e que hoje
influenciam diretamente em suas práticas.

Concluindo, direi que este trabalho vem trazer um pouco de saudosismo da minha época de
infância, das professoras queridas que de alguma forma homenageei aos usar seus nomes, das
histórias que me assustavam mas que também me encantavam, dos desenhos coloridos que fazia
sempre que terminava uma história. Ai que saudade! Não posso negar que enquanto as professoras
citavam suas histórias eu também lembrava das minhas, como foram importantes para minha vida,
como profissional, mas principalmente como pessoa, como ser humano, de tristezas, surpresas e
muitos encantamentos.

Que este trabalho venha contribuir para outros educadores, que sejam contaminados pela
magia do mundo fantástico da literatura, que as memórias dos educadores que ajudaram a escrever
este material sejam uma semente para muitas outras gerações, conscientes que um dia elas também
farão parte da memória de muitas Marias, Lucas, Pedrinhos, Claras...

Referências bibliográficas

BACHELARD, G. A psicologia dos fenômenos temporais. In: A dialética da duração. São Paulo:
Editora Ática. 2ªed. 1994.

BERGSON, H. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírIto. São Paulo:
Martins Fontes, 1990.

BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembrança de velhos. 4ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.

CHAUÍ, M. Um convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

FERNANDES, Tânia. História e Memória: uma discussão atual. Trabalho apresentado no 10°
Congresso de Arquivologia (digitado), 1994.

FIGUEIREDO, M. X. B. A corporeidade na Escola: brincadeiras, jogos e desenhos. 5ª ed.


Pelotas: Editora da UFPEL, 2007.

HALBWACKS, M. La Mémoire colletive. In: BOSI E. Memória e Sociedade: Lembrança de


velhos. 4ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

367
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A SUSTENTABILIDADE DO MUNDO, O EIXO DE EXISTÊNCIAS E OS DIFÍCEIS


TRABALHOS EM ARDUENE, DE ERASMO LINHARES

Ingrid de Souza Sampaio (UFAM)

Que Arduene não morra, é nossa esperança. Talvez este conto, que está localizado no livro
O tocador de charamela de Erasmo Linhares, seja um daqueles textos que, por pura beleza não
deveríamos tocar. Mas acontece que Arduene não pode morrer, e como uma prece Ŕ uma ladainha
repetida ad infinitum Ŕ tentamos salvar-lhe a vida e, para isto, recorremos a todos os meios de que
dispomos porque não vamos permitir que Santa Arduene parta deste mundo.

Dizer que tal criança é santa não é exagero: seu povo, sua aldeia, crê nisso, vive por isso e
por isto morreria; em momento algum é posta em dúvida a sacralidade e santidade daquela que,
chegada nas mãos de estranhos, trouxe a felicidade: Ŗquando Arduene sorria, nasciam flores nas
rochas e os frutos estouravam de maduros em todas as árvores.ŗ ( LINHARES, 2005, p.85). Para que
esta menina, representante do eixo daquele universo, não morra, todos os esforços serão praticados.
Se a permanência em vida daquela que significa luz e calor está ameaçada, então todos os
sacrifícios por-se-ão em prática Ŕ porque Arduene não pode morrer. E se os sacrifícios falharem e
os esforços não surtirem efeito e caso venha a noite eterna apoderar-se de tudo... todos os trabalhos
recomeçarão; porque Arduene não morre.

Arduene (texto) pode ser compreendido de diversas maneiras: pode ser tanto o fim de um
mundo, como o renascimento do mesmo; pode tratar de morte, como também tratar do
restabelecimento de vida; diz respeito ao sagrado, mas também pertence ao profano. Como são
vários os caminhos para entendimento, comecemos por aqueles que remetem à sacralidade e os
líquidos que se fazem morte. Por primeiro utilizemos Roger Caillois que nos escreve em O homem
e o sagrado:

O ser, o objeto consagrado, pode não sofrer qualquer modificação na sua aparência. Nem
por isso deixa de ser transformado na sua totalidade. A partir desse momento, a forma como
as pessoas se comportam relativamente a ele é alvo de uma modificação paralela [...] Este
objeto sagrado suscita sentimentos de pavor e veneração. (CAILLOIS, 1988, p.20)

Junto a isto, temos destacado o seguinte trecho do conto:

Estou certa de que Arduene pode fazer milagres. Menos para ela mesma. Quando seus
pais, aqueles misteriosos estrangeiros de roupas estranhas a deixaram aqui [...] deixaram
também a felicidade. Como num santo milagre, o céu, os campos e as montanhas desse
lugar seco e cinzento, encheram-se de luzes e cores, de plantas e pássaros. (LINHARES,
2005, p.86)

368
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

No texto de Linhares, Arduene é apresentada em dois momentos: a sua chegada à aldeia,


quando surge como um presente, uma dádiva; e a sua decadência vital, quando, já estabelecida
como protetora, coloca em risco aquelas vidas que dela dependem. Neste primeiro período ocorre o
que Caillois coloca como veneração Ŕ como todos naquele local criam que aquela criança
simbolizava salvação, todos ali passam a adorá-la. Arduene surge vinda de canto algum e passa a
operar modificações nas vidas daqueles que a cercam, isto já é, por si só, o bastante para que seja
tomada por santa Ŕ e para que desperte a inveja e maldade de alguns. Por culpa desta mesma inveja
Arduene entra em seu segundo momento: aquele em que, à beira da vida, não encontra forças para
regressar Ŕ daí todos os trabalhos empreendidos pelos habitantes da aldeia:

No tempo em que Arduene sorria tudo era felicidade [...] Agora a barriguinha de Arduene
soa como os tambores da festa de São Lázaro [...] Tobias está disposto a sair à caça da índia
pintada e sua filha ramelenta, para obrigá-las a desfazer o feitiço. Porque foi a índia, com o
coração roído pela traça da inveja, quem fez esse desvio maligno nas suas tripinhas de
santa. (LINHARES, 2005, p.85)

Nesse segundo trecho, podemos observar o que Caillois aponta como sentimento de pavor.
Em nosso caso, o medo não é causado pela própria figura de Arduene e, sim, por aquilo que possa
vir a acontecer se, eventualmente, ela morrer. Tanta aflição e cuidado se devem ao fato de que, se
Arduene falecer, tudo voltará ao que era anteriormente à sua chegada: os rios secarão, as frutas
apodrecerão, o céu cor de chumbo jogará gelo sobre a terra; e, para isto, não querem aqueles
aldeões retornar. Como já exposto, a sacralidade de Arduene foi posta em contato com o profano da
aldeia Ŕ representado pela índia pintada Ŕ e, devido a este encontro, este toque, corre-se o risco da
perda do mundo como era conhecido. Se a criança representava a ordenação daquele universo e,
agora, já não consegue reger sua própria existência, é sinal de que algo foi quebrado; sinal de que
algo além dos feitiços da índia retirou aquele mundo de seu eixo. Sendo assim, com esta
desarticulação da vida, cada habitante foi afetado de modo profundo Ŕ inclusive a autora de tantos
malefícios que, haja vista suas ações, teve de sair de seu local. Sobre estas interligações do
malefício e toda a gente atingida, Caillois escreve:

Cada transgressão desconecta a ordenação na sua totalidade: a terra corre o risco de deixar
de produzir colheitas [...] a doença e a morte o de assolar a região. O culpado não põe em
risco apenas a sua própria pessoa, a perturbação que ele introduziu no mundo alastra como
uma mancha de óleo e, progredindo pouco a pouco, desarranjaria o conjunto do universo se
o mal não perdesse uma parte de sua virulência à medida que se vai fundindo, se,
sobretudo, não estivessem previstas medidas que são imediatamente postas em execução a
fim de o circunscrever ou de o reparar. (CAILLOIS, 1988, p.24)

Tais medidas reparatórias citadas por Caillois e encontradas no texto são as rezas e as
celebrações que visam o restabelecimento de Arduene. Nestes dois elementos podemos observar,

369
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mais uma vez, o contato do sagrado/profano. Encontramos o simbolismo católico-cristão na figura


do padre e suas Ŗáguas santasŗ (LINHARES, 2005, p.85); Tia Henriqueta com o Ŗraminho entre os
dedosŗ (LINHARES, 2005, p.85) e suas rezas representa crenças e sociedades primitivas que
recorriam a feitiços e ungüentos para a solução de seus males. Entretanto, é necessário ter em mente
que o primitivo e organizações sociais mais recentes estão em um constante movimento de mescla
dentro do conto: ŖOs homens estão reunidos no armazém-geral discutindo uma expedição para ir
buscar o médicoŗ (LINHARES, 2005, p.86). Sobre os ritos, que também funcionam como medidas
reparadoras, conseguimos observar que são responsáveis pelo momento de maior intensidade do
texto. Na festa de São Lázaro estão reunidas as últimas esperanças daquele povo em salvar
Arduene.

O interessante desta passagem textual é o entrelaçamento de uma celebração que leva no


nome o sinal do catolicismo e as ações postas em prática nesta mesma celebração, que possuem,
todas, origens pagãs. Para ilustrar, destacamos:

Depois que fracassaram as rezas mais fortes das velhas, as novenas e ladainhas, só me resta
uma única esperança: - a grande festa de São Lázaro, em que todo o povoado está
empenhado, porque todos sabem que Arduene não pode morrer. Vamos colocá-la no meio
do terreiro e dançaremos até que os pés rachem e as mãos dos tamboeiros sangrem por
todos os lados [...] Qualquer sacrifício para salvar Arduene será pouco. (LINHARES, 2005,
p.86)

Retornando o já dito Ŕ quando afirmamos que esta morte de Arduene poderia também
significar o renascimento do mundo Ŕ podemos olhar esta santa criança como uma oferenda, um
sacrifício mesmo, que vise à reestruturação do universo. E, lembrando da cultura grega, nada mais
conveniente que um grande festejo para a entrega desse que se propõe salvar algo. É claro que não
estamos supondo a entrega de Arduene por parte da aldeia Ŕ se assim fosse, que sentido teria tanta
devoção e esforço por salvar-lhe a vida? Como tratamos de sacralidade, não devemos esquecer a
devolução de algo (o ser) sacro à esfera suprema sagrada. Nesse sentido, não é a aldeia que entrega
Arduene para a morte, e sim a criança que está voltando Ŕ embora sem que saibam, embora sem que
saiba Ŕ para seu lugar de origem. Corroborando este pensamento e ainda tratando de ritos de
passagem, Caillois vem mais uma vez nos servir:

Os ritos [...] previnem a desordem, do mesmo modo que os diques as inundações. Mas o
tempo gasta os diques [...] O homem envelhece e morre [...] É necessário recriar o mundo,
rejuvenescer o sistema [...] Chega o momento em que é necessária uma refundição. Importa
que um ato positivo garanta uma estabilidade nova à ordem. É preciso que um simulacro de
criação restaure a natureza e sociedade. (CAILLOIS, 1988, p.93)

370
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Arduene representa este simulacro de que fala Caillois; embora seja sinônimo de tristeza e
medo para aqueles que foram tocados por seus dons, a morte da menina possui o papel de restaurar
aquele povoado. Como não lhes cabe saber o motivo desta partida, não há alternativa que não ir ao
encontro deste desfecho indesejado. Todos os preparativos da grande festa já foram pensados, agora
resta esperar o dia para a celebração. É interessante notar que, neste mesmo festejo, não será apenas
Arduene quem terá o sangue derramado; todos aqueles animais também representam a crença de
que, com a entrega de sangue inocente, a fúria desconhecida e incompreendida dos desígnios
superiores possa ser aplacada. Não há garantia de sucesso, não há maneira de saber o que poderá
acontecer; a única solução é esperar para descobrir o futuro Ŕ ainda que participando dele Ŕ e suas
artimanhas.

Caso Arduene, filha da terra, venha mesmo a morrer, o avô terá que entrar em ação. Será o
patriarca o responsável pela liberação das luzes do dia Ŕ aprisionadas em sua Ŗbilha de louçaŗ
(LINHARES, 2005, p.85) Ŕ e pela troca de vidas entre a narradora e a criança: Ŗmas Arduene não
morrerá, nem que tenha que trocar minha vida pela dela. O avô, certamente, sabe fazer isso.ŗ
(LINHARES, 2005, p.87). A aproximação desses três personagens sugere o estabelecimento de
laços sentimentais; e há para a corroboração disto, o uso de termos no diminutivo indicando, entre
outros, afeto da narradora para com a menina. Esses laços criados nos dão a idéia da constituição de
uma família, de uma trindade na qual a narradora fará o papel feminino, maternal Ŕ uma vez que é
ela a responsável por cuidar e garantir a vida da menina. Desta maneira, seria este núcleo incumbido
de manter a ordem daquelas vidas aldeãs: se Arduene não puder mais suportar, será a narradora
quem se sacrificará para tal mantimento e, para esta troca de sacrifícios, conta-se com o avô, que
detém a sabedoria dos anciãos e é o único que pode conseguir tal feito. Além de ser ele quem possa
inverter as posições, é ainda a figura do avô que possui a em seu poder as luzes do dia que
representam vida. Como existe a possibilidade da perda da criança santa e, com esta perda, o decair
da noite eterna, o avô sabe que algo deve ser feito e então, começa a guardar consigo a claridade
diurna para usá-la após a possível morte:

E se ela morrer, todos tememos que a noite caia para sempre, e o sol nunca mais apareça.
Por isso o avô está no quintal, todas as manhãs, contando as cores do dia e aprisionando-as
na bilha de louça para produzir claridade, caso Arduene venha mesmo a morrer .
(LINHARES, 2005, p.85)

Todas estas atribuições da narradora e do avô os colocam em um patamar de importância tão


importante quanto o da criança: pois nada restaria ao povo da aldeia se eles não existissem e
Arduene morresse. Estariam deste modo, fadados a aceitar resignadamente o que lhes
proporcionaria os dias posteriores.

Saindo destes caracteres sagrados, entramos nas simbologias de morte. Durante todo o
transcorrer do texto, encontramos a presença de água (seja em forma de rio, chuva ou lágrimas) e a
371
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

correlação desta ao fim da vida de Arduene. Podemos até afirmar que esta morte possui a forma
líquida: lembrar que, graças, aos feitiços da índia, a menina esvai-se em líquidos: Ŗ[...] mas Arduene
não sorri, sñ chora, e seus olhos azuis são lagos constantes desaguando pelas faces.ŗ (LINHARES,
2005, p.85); Ŗse fosse outra e não ela que estivesse ali naquela cama vazando-se como um odre
furado, bastaria um simples toque de suas mãozinhas macias para que a doença fugisse sem
demora.ŗ (LINHARES, 2005, p.86).

Dessa forma, bem como o conto pode significar o fim e o começo de um mundo, as águas
podem significar vida e morte. Vida porque é um elemento primeiro e representa, além de criação, a
regeneração das forças; entretanto, é também sinônimo de reabsorções, dissoluções, perdas.
Lembrando que é exatamente uma dissolução o que está acontecendo com Arduene, podemos
relacionar sua morte às águas. E, relacionando ainda, mas desta vez às regenerações, o outro sentido
das águas também é válido, pois que já falamos da hipótese de ser a recriação de um universo o que
ocorre naquela aldeia.

Para ilustrar e teorizar estes pensamentos acerca de mortes líquidas, recorremos à Gaston
Bachelard que vem intensificar exatamente estas proposições; temos o seguinte em A água e os
sonhos: Ŗé, enfim um elemento material que recebe a morte em sua intimidade, como uma essência,
como uma vida abafada, como uma lembrança tão total que pode viver inconscienteŗ
(BACHELARD, 1997, p. 49). Esta citação nos remete à idéia de que Arduene está partindo não
apenas pelo feitiço da índia, mas também porque ela tem que partir; como um reconhecimento, uma
lembrança inconsciente de que deva deixar este mundo Ŕ por motivos superiores, não caberá a
alguém entender estas designações.

E, como morrer pela água não representa uma morte comum, e sim um fim especial Ŕ que
não é dado a qualquer pessoa Ŕ é justo que seja essa a maneira pela qual Arduene deva ir. Uma
criatura que difere tanto daqueles que a cercam, merece também uma morte diferenciada; para estas
diversificações, servimo-nos novamente de Bachelard que diz o que se segue sobre a água:

vamos ver que ela reúne os esquemas da vida atraída pela morte, da vida que quer morrer.
Mais exatamente, vamos ver que a água fornece o símbolo de uma vida especial atraída por
uma morte especial. (BACHELARD, 1997, p.50)

Mesmo que possamos notar uma degradação dessas águas Ŕ Arduene vaza como um odre
furado Ŕ isto não basta para que a criança perca seu caráter de santa. Esta inferiorização pode ser
compreendida pela forma contrária: a menina é tão superior que, no seu fim, assemelha-se aos
mortais; desce do seu patamar e espera pela morte como um daqueles habitantes. A criança passa a
representar o infinito que escoa Ŕ infinidade pois, caso a menina não consiga restabelecer-se, há
outros dispostos a dar a própria vida pela dela. Seria então uma morte reversível, temporária, como
uma contemplação do outro lado da vida e o retorno para o já conhecido ambiente. A afirmação
372
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

dessa reversibilidade pode também ser observada na frase recorrente Arduene não pode morrer, que
funcionando como funcionaria um refrão em um poema, vem nos lembrar da imortalidade da
menina.

Não podemos passar pelo nome de São Lázaro sem fazer-lhe algumas observações:
tradicionalmente, São Lázaro é tido como o protetor dos cães e esta ligação com tais animais é
posta, textualmente, quando na festa, temos: Ŗprepararemos um grande banquete para os cachorros
vagabundosŗ (LINHARES, 2005, p. 86); o nome Lázaro também nos remete a ressurreições, a
regenerações vitais - além de lembrar-nos que os lazarentos são aqueles que consomem-se vivos,
que aos poucos vão extinguindo-se, ou, como Arduene, vão vazando-se lentamente Ŗcomo odres
furadosŗ. Adicionada aos elementos já colocados quando tratamos do contato profano/sagrado,
temos ainda no festejo, a preparação de Ŗbebidas da mandioca e do milhoŗ (LINHARES, 2005,
p.86) Ŕ sendo a bebida da mandioca um líquido de caráter alucinógeno e que traz, lembrando de
outras culturas, a figura transgressora de Baco e suas festas regadas a vinho; para o milho temos a
representação do sol, da luz da vida, que é justamente o que se busca retomar para a menina
Arduene; todos estes dados combinados vêm afirmar que, não importando a direção que tomem,
tudo aquilo que diz respeito à criança não pertence a este mundo humano.

Ainda sobre o festejo, este se vale de instrumentos rudimentares (tambores) para criar o
ritmo que embalará a dança que conduzirá ao ápice da festa. Este ritmo é colocado no texto quando
a descrição das ações festivas é feita; pode representar também os batimentos dos corações
transformados em um só, o batimento do coração da aldeia empenhado em assegurar a sua
sobrevivência:

Vamos colocá-la no meio do terreiro e dançaremos até que os pés rachem e as mãos dos
tamboeiros sangrem por todos os lados. Vamos sacrificar oitenta galinhas, vinte coelhos,
cinco carneiros, dois bodes e um novilho, porque sabemos que Arduene não pode morrer. E
prepararemos as bebidas da mandioca e do milho e vestiremos nossas melhores roupas e
prepararemos um grande banquete para os cachorros vagabundos e lavaremos as feridas dos
leprosos com águas de rosas, pentearemos seus cabelos, untaremos seus pés com os óleos
do almíscar e os receberemos em nossas casas como irmãos, porque sabemos que Arduene
não pode morrer. (LINHARES, 2005, p.86)

Afora tudo que já foi escrito, temos ainda os símbolos textuais que vêm concordar com as
hipóteses já levantadas. Alguns deles são: água, azul, sangue, cachorro e novilho. Intrinsecamente
ligados pela simbologia de morte, estes elementos são também ambíguos. A água, como já
dissemos, é criação e dissolução; é vida que começa, é vida que se encerra Ŕ bem como Arduene, a
água está escoando, vazando para um lugar desconhecido. Chevalier escreve em Dicionário de
símbolos:

Nas tradições judaica e cristã, a água simboliza, em primeiro lugar, a origem da criação [...]
ela é mão e matriz (útero). Todavia, a água, como, aliás, todos os símbolos, pode ser
encarada em dois planos rigorosamente opostos, embora de nenhum modo irredutíveis, e
essa ambivalência se situa em todos os níveis. A água é fonte de vida e fonte de morte,
criadora e destruidora. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 16)
373
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Somente com este item já conseguiríamos justificar o caráter ambíguo de Arduene (conto).
Mas, para que fique claro que não se trata de simples suposições, servem-nos os outros símbolos
como o azul. Esta cor é o Ŗcaminho do infinitoŗ (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p.107),
quando mergulhadas nela, todas as coisas se perdem; é também uma das cores (juntamente ao
branco) que representam tudo quanto seja divino. Misturado à água, o azul tem o aspecto de começo
e fim. Arduene possui olhos azuis que são Ŗlagos constantes desaguando pelas facesŗ (LINHARES,
2005, p.85) é, em si mesma, morte e vida.

Para o sangue encontramos, bem como o milho, a associação ao sol, à vida. Ele liga-se a
Ŗtudo que é belo, nobre, generoso, elevadoŗ (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p.800). É o
Ŗveículo da vidaŗ (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p.800) e está sendo derramado. A esta
perda de sangue vital temos relacionada a figura do novilho/ovelha. É esta a criatura que sacrificam
a fim da obtenção de interesses maiores; é ela quem perde o sangue para salvar um povo.

Por último dos símbolos, mas não menos importante, temos o cão, cachorro. Bem mais que
simples psicopompo Ŕ responsável por guiar as almas até o outro lado da vida Ŕ este animal
representa também proteção. Para os romanos era familiar o costume de ter, à porta de casa, uma
estátua em formato de cachorro; acreditavam que poderiam espantar maus espíritos e pessoas com
más intenções caso possuíssem aquele objeto no específico local. Os cães, além de todo aspecto
ligado à morte, possuem também a significação de uma vida nova, uma vida mais pura: Ŗcão e lobo
a uma só vez, o sábio (ou o santo) purificam-se ao devorar-se, ou seja, sacrificando-se em si
mesmo, para alcançar finalmente a etapa última de sua conquista espiritualŗ (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2009, p.182).

É interessante atentar para o fato de que, apesar de sua simbologia, à figura do cão/lobo
mantém-se um respeito temeroso. Àquelas pessoas da aldeia, recai o sentimento de medo pela noite
que virá: cheia de lobos e assombrações. Esses animais representam, simultaneamente, proteção e
perigo. Valendo-nos ainda de animais, é cabível comentarmos sobre a figura felina da índia pintada:
este personagem traz em si as características traiçoeiras e oportunistas dos gatos, além de ser a
responsável por trazer a possível morte de Arduene Ŕ lembrar que os gatos também são
considerados psicopompos e, a título de informação, um dos deuses dos reinos inferiores egípcios
possui a forma de uma gata: Bast.

Ao final desse estudo, após todas as relações estabelecidas, ainda esperamos que Arduene
não morra. Continuamos acreditando, junto à aldeia, que é possível salvar-lhe a vida, para que nossa
existência seja salva. Estamos preparados para os trabalhos a serem realizados e, que os deuses nos
auxiliem, pois os rituais já irão começar.

Referências bibliográficas
374
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Martins Fontes: São Paulo, 1997.

CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Allain. Dicionário de símbolos. 23. ed. José Olympio, Rio
de Janeiro, 2009.

LINHARES, Erasmo. O tocador de charamela. 5. ed. Editora Valer, Manaus, 2005.

375
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O PARADOXO COMO REPRESENTAÇÃO DO UNIVERSO AMAZÔNICO NAS CANÇÕES


DE NILSON CHAVES

Ingrid Nayara Duarte de Jesus (UFOPA/UNIAM)

Resumo: Nilson Chaves, cantor e compositor paraense, busca sempre retratar a paisagem amazônica em
suas canções. Na tentativa de representar o espaço amazônida, o compositor utiliza constantemente idéias
antitéticas ou paradoxais que, antes de atribuírem ambiguidade ao texto, contribuem para o entendimento da
composição. Cria-se a noção de Řduploř que conforme a concepção freudiana é encarado como duas partes
do mesmo Ŗeuŗ, embora imediatamente opostas, que causam estranhamento ao primeiro olhar. Este recurso
está representado na canção ŖCabelo Açaizalŗ (2005), da qual nos ocuparemos neste trabalho, em que o
artista utiliza idéias completamente opostas criando um efeito metalinguístico à canção, trata-se, pois, do
cidadão da Amazônia falando sobre o dilema do amazônida moderno, o autor aborda o conflito entre
preservação-desenvolvimento, tradicional-moderno. A canção é uma verdadeira analogia à situação dos
povos amazônicos ante a globalização, que confronta idéias até então antagônicas, como o tradicionalismo
amazônico e a tecnologia do mundo moderno. Nilson Chaves busca, portanto, estabelecer uma ponte ligando
estes extremos, utilizando-se de um recurso pós-moderno, de integração entre antigo/novo,
tradicional/moderno, numa verdadeira simbiose de culturas, o que coloca o artista não apenas como um
grande divulgador da cultura amazônica, mas como um grande crítico da realidade social de nossa região.

Palavras-chave: Nilson Chaves, Amazônia, duplo, paradoxo, pós-moderno.

Abstract: Nilson Chaves, singer and songwriter of Pará (Brazil), always seeks to portray the Amazon
landscape in their songs. In your attempt to represent the Amazonian area, the composer constantly uses
paradoxical or antithetical ideas that before attributing the ambiguity to the text, contribute to the
understanding of the composition. It creates the notion of 'double' that as the Freudian conception is seen as
two parts of the Ŗselfŗ , while immediately opposite, which would seem strange at first glance. This feature is
represented in the song "Cabelo Açaizal" (2005), we will deal with this work, in which the artist uses ideas
completely opposite effect by creating a metalinguistic the song, it is therefore a citizen of the Amazon by
talking about the dilemma the modern Amazonian, the author discusses the conflict between preservation
and development, traditional-modern. The song is a true analogy to the situation of Amazonian peoples in
the face of globalization confronting ideas until then antagonistic, as traditionalism Amazon's technology and
the modern world. Nilson Chaves search therefore provide a bridge linking these two extremes, using a
feature of postmodern integration between old / new, traditional / modern, in a true symbiosis of cultures,
which makes the artist not only as a great disseminator of Amazonian culture,but as amajor critic of the
social reality of our region.

Keywords: Nilson Chaves, Amazon, duplicate, paradox, postmodern.

Introdução

376
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O cantor e compositor paraense Nilson Chaves, busca sempre retratar o universo amazônico
em suas composições. A valorização da cultura dos povos da Amazônia é tema predominantemente
nas canções do autor, para tal tenta aliar informações dos costumes regionais a uma linguagem
universalizada, aliada com arranjos modernos, demonstrando ligação com o tradicionalismo da
região e com as novidades da música popular brasileira.

Esta tentativa de unir o tradicionalismo de nossa cultura com as inovações da MPB e o


caráter universal de suas composições coloca Nilson Chaves como um dos grandes nomes da pós-
modernidade na Amazônia, visto que, em suas canções, é comum observarmos elementos deste
estilo de época, pautado no paradoxo, na noção de duplo e na constante reescritura de identidades,
estimulados principalmente pelo fenômeno da globalização, que destituiu os limites das fronteiras
regionais.

Entretanto, para analisar de que forma o paradoxo auxilia na representação do universo


amazônico, torna-se, antes, necessário discutirmos algumas questões importantes como a definição
de antítese e paradoxo, o entendimento dos elementos da estética pós-moderna e a noção de duplo,
conforme concepção freudiana. Antes, porém, faremos um breve apanhado sobre a vida e carreira
do cantor. A base para este trabalho será a canção ŖCabelo Açaizalŗ, do á lbum ŖManivaŗ (2005).

1. Nilson Chaves

Nilson Chaves nasceu em Belém do Pará, onde começou sua carreira participando de
festivais de música e compondo para grupos de teatro paraenses. Por volta de 1975, mudou-se para
o Rio de Janeiro, onde canta em casas de show e compõe para espetáculos de teatro e dança.

Vencedor de vários festivais, dono de uma voz suave e sensibilidade de um compositor que
capta as saudades, lembranças e características de sua terra, Nilson Chaves ao deixar fluir essa
combinação demarcou seu lugar entre os grandes nomes da música e da cultura amazônica,
alcançando reconhecimento nacional.

O lançamento de seu primeiro disco ŖDança de Tudoŗ em 1981, buscava unir tradição da
música brasileira às raízes amazônicas. Em seguida, ao lançar o disco ŖInteriorŗ , em parceria com
Vital Lima, em 1985, foi imediatamente acolhido pelo público. Sua música ŖOlho de Botoŗ ,
transformou-se em uma espécie de Řsegundo hinoř do povo paraense. Nilson Chaves, hoje, divide
moradia entre o Rio de Janeiro e o Pará, que são os grandes pontos de partida para o
desenvolvimento de seus temas.

O compositor procura universalizar sua música, sem deixar de transparecer suas raízes
paraenses, está em dia com uma linguagem musical moderna, onde se encaixam, de forma leve e
natural, costumes, imagens e palavras da região com elementos modernos e antagônicos de outras
culturas, numa proposta, que pode-se dizer, de natureza pós-moderna.

377
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Grande observador e crítico de nossa cultura, Nilson chaves capta os conflitos dos
indivíduos da região ante o fenômeno da globalização, que gerou uma verdadeira crise de
identidade, levando o cidadão da região a vacilar entre a pressão pelo desenvolvimento e a vontade
de preservação da floresta e da cultura regional.

A canção ŖCabelo Açaizalŗ, que servirá de base para este trabalho, retrata muito bem este
conflito. Como veremos mais adiante, a canção utiliza idéias paradoxais ou antitéticas para
representar este cenário de conflito. A tentativa de unir modernidade e tradicionalismo, proposta por
Nilson Chaves, nada mais é do que a reescritura da identidade da Amazônia, que precisa conciliar a
sede pelo desenvolvimento e pela tecnologia, com proteção à cultura de povos milenares. Abaixo,
transcrevemos a letra da canção para que o leitor possa acompanhar a análise aqui proposta.

CABELO AÇAIZAL (Nilson Chaves e João Gomes)

No céu a flecha passa sideral

Em alta frequência supersônica

Contrasta com o camelo no Nepal

A áurica Interprice Amazônica

Há pouco um sujeito atonal

Compôs uma sonata pra sinfônica

Que se acoplará ao carnaval

De forma tão espírita e orgânica

Espana o céu cabelo-açaizal

Estrelas caem num rio de água tônica

As tribos se agrupam pro sarau

Diante de uma evolução atômica

Aos olhos da desordem mundial

Um boto com a sua gaita harmônica

Escreve um sirimbó universal

Em partitura de canção canônica

No céu a flecha sideral

Silêncio, pois iara está afônica

O índio faz amor com a vestal

378
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Atrás de uma cabine telefônica

Ao olho de um satélite atual

Conectado à rede estereofônica

Está aberto o site intertribal

Da verdejante órbita amazônica

2. Antítese x paradoxo

Antítese e paradoxo são dois recursos estilísticos bastante utilizados por autores da estética
pós-moderna. Muitas vezes as duas figuras são utilizadas como sinônimas, entretanto, apesar de
relacionadas, as duas apresentam uma grande diferença existencial.

Segundo Cereja e Magalhães (2003, p. 32), o paradoxo é uma figura de pensamento que
consiste numa conotação que extrapola o senso comum, a lógica natural dos fatos. Sendo assim, o
paradoxo seria caracterizado por expressões ou proposições falsas à luz do senso comum, mas que
podem encerrar verdades do ponto de vista psicológico/poético, ou seja, é uma opinião que, à
primeira vista, parece ser contraditória, mas que na realidade expressa uma verdade possível.

Na música de Nilson Chaves e João Gomes, citada acima, podemos verificar claramente a o
paradoxo em diversos momentos como ―está aberto o site intertribal‖ ou ―os índios se agrupam
pro sarau‖, onde elementos aparentemente irrelacionáveis tentam co-existir, estruturando uma
relação interna de contrários, visto que parece absurdo, pela lógica natural, abertura de um site,
ferramenta da modernidade, para ligar diversas tribos, com sua característica tradicional. Tal
premissa, somente pode ser aceita à luz da poética amazônica. Trata-se de um recurso estilístico que
busca demonstrar a crescente influência do fenômeno da globalização na rotina dos povos da
Amazônia.

Por outro lado, a antítese estaria entre as chamadas figuras de estilo, que consiste na
exposição de idéias ou sentidos opostos. Trata-se de asseverar ou destacar algo por palavras
contrárias, como tristezas e alegrias, luz e noite escura. Na canção Cabelo Açaizal aparece antítese
no verso ―de forma tão espírita e orgânica‖.

A diferença existencial entre antítese e paradoxo está no fato de que a antítese toma nota de
comparação ou justaposição de contrários, já o paradoxo estabelece uma Ŗrelação internaŗ de
contrários, chegando ao absurdo, somente aceito pelo alargamento do sentido das coisas.

Para entender a utilização de elementos paradoxais na canção Cabelo Açaizal, de Nilson


Chaves e João Gomes, faz-se necessário entender o caráter pós-moderno do cantor Nilson Chaves,
visto que antítese e paradoxo são elementos recorrentes em suas canções, valendo-se deles para
melhor caracterizar o espaço amazônico nesta época de globalização.

3. O pós-moderno: paradoxo e crise de identidade

379
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O termo pós-moderno é bastante amplo e, por isso mesmo, bastante complicado de


delimitar, tanto que, para o crítico e romancista português Helder Macedo (2006, p.269), o rótulo
pós-modernismo Ŗnada significa e que por isso pode significar tudo, um grande cesto (...) onde tudo
e nada cabeŗ . Buscando contornar esta idéia, tentaremos definir, em linhas gerais, o pñs-
modernismo tal como o concebemos para constituir este artigo, visto que o mesmo ainda é um
termo em construção. Para isso, utilizaremos, entre outros autores, as definições de Stuart Hall e
Eduardo Coutinho, por entendermos que estes autores são os que melhor se encaixam na abordagem
pós-moderna que pretendemos fazer na canção escolhida para este artigo.

Segundo Eduardo Coutinho (2005, p.160), aquilo que hoje se entende por pós-modernidade
é resultado de uma série de transformações sociais, econômicas e culturais que vêm ocorrendo nos
continentes americano e europeu desde a década de 1960. Em meio a este contexto, desenvolveu-se
nas artes em geral, o que Coutinho (2005, p. 160) definiu como um estilo de época marcado por
traços mais ou menos definíveis, que reflete estas transformações.

Para entender o pós-modernismo, é preciso, portanto, compreender esse conjunto de


transformações socioeconômicas que contextualizam sua manifestação, pois, como defendeu
Frederic Jameson (1996, p.19), é impossível analisar o pós-modernismo sem concebê-lo como uma
lógica cultural do capitalismo tardio.

Concordando com esta visão, em A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall


(1997), afirma:

Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no


final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas
identidades pessoais abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados.
Esta perda de um Ŗsentido de siŗ estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou
desconcentração do sujeito. Esse duplo deslocamento Ŕ descentração dos indivíduos tanto
de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos Ŕ constitui uma Ŗcrise de
identidadeŗ para o indivíduo (2005 p. 9).

De acordo com Stuart Hall, essa crise de identidade deve-se, principalmente, a um complexo
processo que age em escala global, interconectando comunidades e atravessando fronteiras
nacionais, diminuindo distâncias temporais e espaciais: é a chamada globalização. Isso porque, com
as trocas culturais, permitidas pela globalização, indivíduos que se encontram distantes temporal e
espacialmente, passam a partilhar identidades e, consequentemente, cresce a dificuldade de
conservarem-se intactas as identidades culturais de cada um.

Com as trocas culturais, a noção de sujeito como identidade unificada e estável fragmenta-
se, dando lugar a um sujeito composto não de uma única, mas de várias identidades, por mais
contraditórias e não resolvidas que sejam. Para Hall, é esta crise de identidade que caracteriza o
sujeito pós-moderno. Marcado pela descontinuidade, pela fragmentação e pelo deslocamento, o
380
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

sujeito pós-moderno não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente, optando pela
pluralidade, assumindo identidades diferentes para cada momento que vivencia.

Dos vários estudos que se têm sobre o pós-modernismo, os mais significativos enfatizam o
caráter contraditório de um estilo de época (Coutinho, 2005, p.161), que ao optar pelo heterogêneo
e plural, congrega valores que muitas vezes se opõem. O pós-modernismo parece conceber a arte tal
como o filósofo Edgar Morin (1988) concebe a vida e a sociedade: como um fenômeno
essencialmente complexo, que não admite a superação de contradições. Seguindo nessa mesma
linha, é necessário citar a importante contribuição dos filósofos Jean-François Lyotard e de Linda
Hutcheon. Considerado por muitos como o Ŗmais representativo porta-voz do pós-modernismoŗ
(Coutinho, 2005, p.162), Lyotard (1993), reagiu a toda forma de pensamento hegemônico ou
uniforme, privilegiando a idéia de Ŗdissensoŗ , como de autonomia, em lugar da idéia de Ŗconsensoŗ ,
considerada por ele como conservadora. Na mesma linha de raciocínio, Linda Hutcheon (1991)
defendeu o pós-modernismo como um fenômeno fundamental e deliberadamente contraditório,
Ŗque usa e abusa, instala e subverte os prñprios conceitos que desafiaŗ (p. 19). Por isso, segundo
Hutcheon, quaisquer oposições binárias devem ser questionadas, já que negam a natureza híbrida,
plural, e contraditória do pós-modernismo.

Sendo o pós-modernismo, portanto, contrário a qualquer tipo de binarismo ou dicotomia, só


poderia fazer uso de uma linguagem que privilegia a ambiguidade a ironia, a indeterminação e o
paradoxo. Exatamente porque são figuras de linguagem que permitem o coexistir de idéias que se
opõem. Evidenciando sua opção pela relatividade, o fenômeno pós-moderno defende que visões
unilaterais devem ceder espaço para discursos da pluralidade, que desafiem os limites da ciência, da
religião e, até mesmo, das artes.

Seguindo esta linha de raciocínio, podemos fazer um paralelo do fenômeno pós-moderno no


espaço amazônico com a teoria do duplo, proposta por Freud (1919). Atingido em cheio pelos
elementos da pós-modernidade (globalização, Internet, etc), o cidadão amazônida vê sua identidade,
até então intocada, ser gradativamente destituída, em virtude do imediato contato com outras
culturas, fruto da interferência da internet e da televisão, com seu grande apelo pelo
desenvolvimento industrial e cultural. Ao desconstruir a sua imagem, o amazônida vê-se diante de
um novo ser, completamente diferente e antagônico do anterior, passando a ver em si próprio
atitudes estranhas, completamente diversas da imagem que tinha de si mesmo. Esta característica,
havia sido descrita por Freud em seu ensaio O Estranho (Das Unheimliche) (1919), no qual o autor
afirma que o duplo é parte de nñs mesmo, como um outro Ŗeuŗ , apesar de imediatamente oposto,
uma antítese de si mesmo, que, segundo o autor, nos acompanhou desde os tempos primordiais do
funcionamento psíquico, estando sempre pronto a ressurgir, provocando em nós uma inquietante
sensação de estranheza.

381
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Desta forma, o duplo seria mais uma faceta do pós-modernismo, desencadeado pelo
fenômeno da globalização que destrói e reconstrói constantemente a identidade do cidadão pós-
moderno, a ponto deste não mais reconhecer-se na própria identidade cultural recriada.

4. O espaço e a identidade amazônica na canção cabelo açaizal: o pós-modernismo recriando o


universo amazônico

No capítulo dedicado a Nilson Chaves, no início deste trabalho, transcrevemos a letra da


canção Cabelo Açaizal, que possui uma temática que gira em torno da oscilação de partes
aparentemente incomunicáveis e opostas que, somente por meio da arte, podem fundir-se.

Conforme podemos observar, a canção é composta por três estrofes, com oito versos cada
uma, nas quais o eu-lírico faz uma aproximação entre dois pólos antagônicos que compõem o ser
amazônico. A canção desenvolve-se, como veremos, de forma a estabelecer a coexistência de
elementos paradoxais, que se encontram em constante tensão.

Como verificamos anteriormente, Nilson Chaves é um legítimo representante da chamada


Música Popular Paraense (MPP). Essa classificação é aplicada a um tipo de produção musical
composta por artistas que tratam de motivos e sentimentos regionais e exploram a sonoridade e os
ritmos culturais do Pará.

Para compreendermos a representação da identidade amazônica nas canções de Nilson


Chaves, faz-se necessário, antes de tudo, estabelecer em linhas o que seria uma identidade cultural
amazônica. De acordo Hall (2005, p. 8), as identidades culturais são os aspectos da identidade que
surgem do pertencimento a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, regionais, etc. Para o autor, Ŗessas
identidades não estão literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente
pensamos nela como se fossem parte de nossa natureza essencialŗ ( Hall, 2005, p.47)

Seguindo por este caminho, as mensagens e símbolos veiculados nas canções de Nilson
Chaves vão ao encontro da estruturação desta identidade regional, pois estão voltadas para a
valorização e incentivo à produção artístico-cultural regional. Trata-se da atual conjuntura sócio-
político-cultural, aqui chamada pós-modernidade, que teve suas bases estabelecidas no início da
modernidade e ganhou novos contornos em fins do século XIX e início século XX com a
globalização.

Conforme vimos anteriormente, o fenômeno da globalização acelerou o fragmentação do


indivíduo e da sociedade, gerando a chamada crise de identidade. O termo identidade é originário
do latim escolástico identitate e remete às idéias de semelhança e permanência. A primeira vista,
designa o que é idêntico, parecido, semelhante, o que existe de parecido entre dois ou mais
indivíduos capaz de identificá-los e diferenciá-los dos outros. A segunda idéia, a de permanência,
denota aquilo que permanece inalterado durante o passar do tempo, sem alterar seu caráter.

382
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Segundo Hall (2005, p. 13), o modo como a identidade é trabalhada varia de acordo com a
maneira como o sujeito é visto e representado. Desta forma, nas canções de Nilson Chaves, e na
canção Cabelo Açaizal, especialmente, fica bastante visível o desejo de delimitar o que seria a atual
identidade do ser amazônida, que, diante do avanço do pós-modernismo, abandona
progressivamente a noção de identidade genuína, fechada, para abraçar uma\identidade mais plural,
que busca conciliar elementos genuínos de nossa cultura, como a flecha do indígena. que passa
sideral no início da canção, com o satélite fruto do desenvolvimento tecnológico que interliga as
diversas culturas, sobretudo através da Internet.

Esta visão pós-moderna defendida na canção, contrasta com a imagem do ser paraense
intocado, que valoriza o contato com a natureza e a preservação de tradições, esta era a identidade
paraense e amazônica que se conservava até bem pouco tempo.

Esta visão existia, e era amplamente aceita, sobretudo, em virtude de as representações


sociais serem arquétipos mentais que naturalizam idéias em sociedades humanas. A cultura, nesse
sentido, por ter o papel de retratar ideologicamente um povo, é o maior celeiro de elaboração e
manutenção das representações sociais. E, considerando que a música seja talvez Ŗa experiência
mais pujante e expressiva das apropriações, reelaborações e montagens com que os setores
populares urbanos produzem sua identidade (Martin-Barbero, 1991,p.6) acreditamos que as
canções, compostas anteriormente, valorizando elementos da natureza intocados, projetavam um
identidade amazônica necessariamente apartada dos elementos do mundo urbano.

No mundo pós-moderno, tornou-se quase impossível manter uma cultura isolada, ou


inalterada, o avanço dos meios de comunicação, sobretudo, a invenção da Internet, lançou uma luz
sobre a questão da identidade, visto, como já dissemos, que o contato com elementos de culturas
mais desenvolvidas, gerou no amazônida uma profunda transformação em suas convicções.

Diante da gama de informações a que o amazônida, hoje, é colocado, nasce o maior dos
dilemas do cidadão amazônico, abrir-se para o desenvolvimento ou fechar-se para a preservação.
Esta duvida causa o grande paradoxo da pós-modernidade na Amazônia. É justamente sobre este
choque ideológico que se estrutura a canção Cabelo Açaizal, constituída da laboriosa luta acoplar
modernidade e tradição, desenvolvimento e preservação, no mesmo ambiente. Esta busca,
representa o eterno paradoxo da pós-modernidade, no qual o choque de identidades leva a uma arte
vacilante entre dois extremos.

Como podemos notar, as idéias não são antitéticas, mas paradoxais, uma vez que encerram
questões que extrapolam os limites do senso comum. Vejamos estes elementos representados na
canção.

A aceitação de verificar uma flecha passar sideral em alta freqüência supersônica, só pode
acontecer no limiar de uma arte pós-moderna. Assim como, aceitar que um sujeito atonal tem a
capacidade de compor uma ‗sonata pra sinfônica‘ e que, ainda por cima, esta se acoplará ao
383
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

carnaval de forma espírita e orgânica, é necessário, no mínimo, de um ambiente de congregação de


valores múltiplos, só possível em mundo que derruba os limites das artes e dos conhecimentos,
criando uma nova realidade, que busca juntar o novo e o antigo, numa nova concepção de realidade.

A utilização de elementos da natureza Espana o céu cabelo-açaizal, com uma clara alusão à
imagem do cacho de açaí balançando ao vento, concorre com a imagem de elementos modernos de
Estrelas caem num rio de água tônica, numa alusão aparente de bebidas energéticas gaseificadas
feitas a partir do açaí, em fábricas de grandes cidades do sul/sudeste do país.

De igual forma, aceita-se, no ambiente pós-moderno, Řas tribos agrupando-se para o sarau‘,
e ‗um boto compondo um sirimbó universal em partitura de canção de canônica‘. Estas imagens,
aparentemente absurdas ao primeiro olhar, justificam-se pela necessidade do autor em representar
um universo amazônico, que oscila entre a necessidade de preservar a Amazônia, e suas culturas
intocadas, e de exploração da floresta para o desenvolvimento tecnológico.

Estes elementos paradoxais, demonstrados na canção, revelam a nova concepção de


identidade amazônica, que já se mostra condensada com os valores típicos de outras culturas, prova
disso, está no absurdo de O índio faz amor com a vestal, atrás de uma cabine telefônica, na qual a
filosofia do sexo livre, atributo claramente moderno, parece ter chegado e ultrapassado os limites
das aldeias.

Conforme defendemos aqui, ao que tudo indica, todas estas transformações parecem fruto da
globalização, acelerado, principalmente, pela invenção da Internet. Este fato, não escapa aos olhos
atentos do compositor, que revela esta premissa nos quatro últimos versos da canção. Ao olho de um
satélite atual, Conectado à rede estereofônica. Esta aberto o site intertribal, Da verdejante órbita
amazônica. A imagem das tribos conectadas pela Internet parece ser a última fronteira vencida pela
pós-modernidade, que definitivamente liga todos os povos e culturas do mundo, gerando uma nova
realidade, sem que ainda possamos mensurar as conseqüências destes contatos.

5. Considerações finais

Ainda estamos distantes do momento em que deixaremos de ver o multiculturalismo como


um problema, como algo que deve ser combatido. Historicamente, as sociedades se afirmam pela
negação do outro, e o regionalismo é uma dessas formas de negação. Nilson Chaves, como
tentamos mostrar aqui, busca mostrar que não é preciso nos apegarmos aos ditos valores locais
como se fôssemos vítimas das influências que nos chegam. Também não precisamos renegar o que
nossa sociedade tem de tradicional e genuíno, seja dos nossos antepassados ou do lugar de onde
viemos.

Em nossa sociedade atual, parece não haver espaço para o fundamentalismo cultural e para o
xenofobismo, que procura repulsar tudo que é de fora, mesmo porque a identidade que formamos
hoje é fruto de toda esta influência trazida de forma acelerada pelo pós-modernismo, que busca criar

384
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

uma sociedade cada vez mais plural e que procura conviver de forma harmoniosa com os paradoxos
do homem moderno.

Referências bibliográficas

CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: Linguagens. Volume


Único. 1. ed. São Paulo: Atual, 2003.

COUTINHO, Eduardo. Revisitando o pós-moderno. In: BARBOSA, Ana Mãe; GUINSBURG, J.


org. O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva. 2005. p.159-172

FREUD, Sigmund. O Estranho. In: Obras Completas. SALOMÃO, Jayme (Trad.). vol.12. Rio de
Janeiro: Imago. 1985.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. 10ed.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: imago,
1991.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo:


Ática.1996.

LYOTARD, Jean-François.O pós-moderno explicado às crianças. Lisboa: Publicações Dom


Quixote, 1993.

MACEDO, Helder. Rótulos.In:_______. Trinta Leituras. Lisboa: Editorial Presença. 2006. p.269-
270

MORIN, Edgar. O paradigma complexo. In: _______. Culturas, signos, críticas. Quebec: Imprensa
da Universidade de Quebec, 1988.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Las Culturas en la comunicacion em América Latina. In: Seminário


Cuestiones Teóricas e Metodológicas em la interacción entre cultura de masas y cultura popular, 1.
1991, Ciudad Real.

385
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

DRUMMOND E O GAUCHE: A HISTÓRIA INSCRITA NA POÉTICA DRUMMONIANA

Iris de Fátima Guerreiro Bastos (UFPA) 1

Resumo: Drummond, poeta inscrito no modernismo brasileiro, ao mesmo tempo em que faz parte
desse movimento vanguardista pós-22, destaca-se e se diferencia de seus pares modernos. Sua
poesia, ou melhor, sua poética é repleta de lirismo, mas também apresenta um caráter documental
de uma época e de uma sociedade. Seus versos contam a Ŗhistñriaŗ de um país e de um mundo
marcado por guerras, revoluções e grandes modificações na sociedade e no próprio ser humano,
cidadão do século XX. Diante de um vasto mundo, muitas vezes incompreensível para ele, o poeta
sente-se um ser gauche, no tempo, na vida e na poesia. Situando o poeta de nosso tempo no
contexto histórico de sua época e na perspectiva do futuro (século XXI) podemos identificar que ele
está à margem, na tentativa de compreender o seu Ŗestar no mundoŗ e que a historicidade de seus
versos representariam paradoxalmente sua inscrição e exclusão do momento histórico no qual
viveu. Esse trabalho é fruto das pesquisas iniciais da dissertação a ser apresentada ao Curso de
Mestrado em Letras da UFPA, orientado pela Prof. Dr. Lilia Chaves.

Palavras-chave: Drummond, Gauche, História.

1. Introdução
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

O poeta Carlos Drummond de Andrade, mineiro nascido em 1902, com mais de 20 livros de
poesia publicados e considerado um dos maiores escritores brasileiros, cantou o mundo, o amor, o
ser humano, a própria poesia, mas, sobretudo, o desajuste do ser diante do mundo caduco. Seus
versos refletem o momento histórico no qual viveu, seja documentando os acontecimentos,
transformados em matéria poética de sua criação, seja negando-os e propondo uma nova realidade
pela poesia. Seus poemas, assim, carregam consigo o sabor de história num movimento duplo e
ambíguo de adesão e afastamento de um tempo de homens partidos.
Por essa razão, podemos concordar com o crítico Silviano Santiago na introdução à leitura
da obra completa do poeta, quando afirma que ler a poesia de Drummond é compreender que o
Ŗcaminhar conflituoso do século XX está indissoluvelmente interligado ao desenvolvimento em
ritmo de vai e vem da sua poesiaŗ (Santiago, 2008, p. III Ŕ IV). De fato, é possível encontrar nos
versos do poeta o registro, o sabor de novidade dos fatos no calor dos acontecimentos, no entanto,

1
Mestranda do Curso de Mestrado em Letras Ŕ Estudos Literários/ Linha de Pesquisa: Leitura e recepção da literatura
no Brasil da Universidade Federal do Pará.

386
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

sua marca fundamental é fazer dessa matéria bruta um motivo para a criação artística, em sua
infinita capacidade de transformar os acontecimentos em poesia, ou melhor, inscrevê-los no campo
da expressão, conforme nos aponta Antonio Candido (1977).
Sua íntima relação com o século no qual viveu e sobre o qual escreveu, é expressa pela
pesquisadora Sônia Santos nestes termos:

Nascido a 31 de outubro de 1902, Carlos Drummond de Andrade testemunhou a Semana de


Arte Moderna além de outros fatos como a ascensão e o declínio da era getulista, as duas
grandes guerras, a Poesia Concreta, a ditadura militar, a tecnologia irreprimível, assim, ler
sua poesia é estar lendo a história pensada em versos, é ir e vir entre ideologia e estética
(Santos, 2008, p. 27) (grifo nosso).

Essa Ŗhistñria pensada em versosŗ é o que pretendemos discutir neste artigo, a partir da
relação existente entre História e Literatura ou, mais especificamente, a partir da relação
estabelecida pelo poeta Carlos Drummond de Andrade e sua experiência individual e social com a
história do século XX. É válido ressaltar que não se trata apenas, como pode parecer, de verificar ou
discutir o quanto os fatos históricos interferem ou influenciam na criação artística ou ainda uma
tentativa de interpretação da poesia drummoniana sob uma perspectiva estritamente histórica. Mais
que isso, busca-se uma compreensão da trajetória poética do ser gauche do poeta Drummond, ao
mesmo tempo inserido e alheio a uma dada época, para a qual a história é sem dúvida, fundamental,
no entanto, de maneira alguma suficiente para um estudo mais apurado da obra literária. Afinal,
conforme aponta o crítico Alfredo Bosi,

contextualizar o poema não é simplesmente datá-lo: é inserir as suas imagens e


pensamentos em uma trama já em si mesma multidimensional; uma trama em que o eu
lírico vive ora experiências novas, ora lembranças de infância, ora valores tradicionais, ora
anseios de mudança, ora suspensão desoladora de crenças e esperanças. A poesia pertence à
História Geral, mas é preciso conhecer qual é a história peculiar imanente e operante em
cada poema (Bosi, 2004, p. 13).

Preso a seu tempo, como o poeta mesmo afirmou, a Ŗhistñria peculiarŗ de cada poema, ou de
maneira mais ampla a experiência poética de Drummond por vezes se confunde com a história de
um século tão instigante quanto os próprios versos do poeta. É o que tentaremos demonstrar nesta
pesquisa.

2. Vai Carlos! ser gauche na vida: o tema do eu todo retorcido em Drummond.

ŖQuando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai Carlos! ser gauche na
vida.ŗ (Andrade, 2008, p.5).
Os versos acima inauguram a obra poética de Carlos Drummond de Andrade. Eles,
entretanto, não se configuram apenas como os primeiros versos do poema inicial de seu primeiro
livro publicado em 1930, Alguma Poesia. De fato, neste primeiro livro o poeta tenta comunicar ao
leitor Ŗalguma poesiaŗ , como bem sugere o título, e o faz com maestria. Conforme o crítico Affonso
Romano de SantřAnna (2008), esses versos representam o ponto de partida de uma trajetñria
387
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

gauche do poeta, que se manterá ao longo de sua vasta produção literária. Um percurso marcado
pelo movimento do ser no espaço-tempo, que na visão do autor, representam, dentro da poética
drummoniana, um todo uníssono.
Para Antonio Candido, a trajetória poética de Drummond é marcada por inquietudes,
inquietações das quais brota a experiência poética do artista:

As inquietudes (...) manifestam o estado-de-espírito dêsse Ŗeu todo retorcidoŗ, que fôra
anunciado por um Ŗanjo tortoŗ e, sem saber estabelecer comunicação real, fica Ŗtorto no seu
cantoŗ, Ŗtorcendo-se caladoŗ, com seus Ŗpensamentos curvosŗ e o seu Ŗdesejo tortoŗ , capaz
de amar apenas de Ŗmaneira torcidaŗ . Na obra de Drummond, essa torção é um tema,
menos no sentido tradicional de assunto, do que no sentido específico da moderna
psicologia literária: um núcleo emocional a cuja volta se organiza a experiência poética
(Candido, 1977, p. 98).

O gauche poderia ser compreendido também como um leitmotiv dentro de sua poética,
afinal é uma figura recorrente em seus poemas, aparecendo desde ŖPoema de Sete Facesŗ .
Conforme o crítico Affonso Romano de SantřAnna, nestes versos estariam as marcas fundamentais
que caracterizam o gauche em seu primeiro estágio: um ser desarticulado diante da realidade,
disfarçado atrás dos óculos e do bigode, que tem poucos, raros amigos.
Este ser, que ao mando do anjo torto que vive na sombra (note-se as imagens sugestivas de
um anjo que vai completamente de encontro à usual figura de protetor, ao contrário, este anjo lança
sobre o poeta uma espécie de maldição ou carma que este precisa carregar ao longo de sua
trajetória), surge como um grande personagem da poética de Drummond que, ao longo de seus mais
de 20 livros de poesia publicados, registra o movimento deste ser desajustado em busca da
compreensão de seu Ŗestar no mundoŗ. Ainda que trate de temas os mais diversos, sua poesia
caracteriza-se principalmente por ter esse fio condutor: o conflito eu x mundo, que engendra a
Ŗlutaŗ do gauche na relação que este estabelece entre a sua realidade interior e a exterior.

Entre o gauche e a realidade existe uma disritmia. Ele rompe com a harmonia normal,
introduz seu ritmo próprio, que não coincide com o andamento comum. Essa ruptura é
resolvida, no caso do artista, em termos estéticos pela construção de uma obra de arte, que
funciona como ponte entre ele e o mundo (SantřAnna, 2008, p. 66).

A poesia surge, então, como redentora, como aglutinadora de sentido para este ser
Ŗdesajeitadoŗ e Ŗesquerdoŗ que cria pela poesia uma realidade particular, uma maneira singular de
olhar o mundo. Segundo Mendes (2001), esta poesia desprende os homens de um mundo físico,
oferecendo-os outra realidade, mais autêntica, que só a obra de arte é capaz de transmitir. Para ele, a
poesia moderna ou ainda, a poesia contemporânea, para usar, aqui, as palavras do autor, tem

alargada os seus domínios e abandonado aquela sua função clássica de deleitar e de educar
(...). Por ela começou o homem a indagar da verdade de todas as coisas, mesmo das que não
caem sob a ação dos sentidos e das que a ciência não fornece informações positivas, a pedir
o conhecimento do mundo, e até, a razão de ser da sua própria existência e a solução do
problema do seu destino. É uma poesia que está, pois subordinada a fins que a ultrapassam
(Mendes, 2001, p. 189).

388
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A recepção da obra de Drummond representa, sem dúvida, entrar em contato com esta outra
realidade, conforme propõe Mendes. Para Antonio Candido, sua poesia Ŗinstitui um objeto nôvo,
elaborado à custa da desfiguração, ou mesmo destruição ritual do ser e do mundo, para refazê-los no
plano estéticoŗ (Candido, 1977, p. 95).
A obra poética drummoniana, que se desenvolve no decorrer do século XX, uma época
marcada por grandes guerras e tantos outros acontecimentos que revolucionaram o mundo, ao
mesmo tempo em que revela uma realidade cruel, apresenta ao leitor um plano diferenciado, dentro
do qual se move o gauche. E esse movimento é expresso desde seus primeiros livros publicados,
nos quais a relação do poeta com o mundo exterior se dá timidamente, quando o poeta vê o mundo
sob uma perspectiva do Ŗcantoŗ, do que está alheio. A conquista do espaço-tempo, dada em especial
a partir de seu terceiro livro, Sentimento do Mundo (1940), constitui o desenvolvimento de sua obra
poética. É o gauche que se move e pela poesia conquista o mundo. Um mundo castigado pelas
guerras, vasto, incompreensível e triste, como demonstra o poeta nos versos de ŖOs ombros
suportam o mundoŗ :

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.


Tempo de absoluta depuração
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

(...)

Teus ombros suportam o mundo


e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Andrade, 2008, p. 79-80)

Esse modo singular de se relacionar com a realidade a sua volta compreende a inserção da
poesia de Drummond no que podemos chamar de gauchismo, que pode ser assim caracterizado:

O gauchismo seria uma maneira de se ver e de se portar no mundo, seria ainda uma maneira
de ver o mundo. O gauche sente-se desconfortável, deslocado, constantemente em causa,
constantemente em questão. É um ser despido de base fixa, que erra sem destino e sem
meta, que erra sem saber de onde veio, ou porque veio, ou o que tem que realizar ou aonde
tem que chegar. (...) O gauche não se satisfaz, não se reconhece nas essências que se
apresentam de antemão, ele vive na constante angústia da existência, encontrando-se e se
perdendo a cada passo
(Teoria do Gauchismo Ŕ Intempéries em Louvor de Drummond, 2007).

Esse jeito gauche, no entanto, poderia ser reflexo de uma época em que as esperanças foram
dissipadas pelo peso dos acontecimentos. O poema acima citado, publicado originalmente no livro

389
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Sentimento do Mundo, título que não deixa de ser sugestivo, nos anos 40 do século XX, demonstra a
incapacidade de compreensão ou sentimento de pertença a um tempo de absoluta depuração no
qual não adianta morrer, o que resta apenas é uma vida sem mistificação. A 2ª Guerra Mundial, em
voga na época, marcaria a história mundial e de igual modo a poesia de Drummond, que registrou
por meio de muitos outros poemas a triste realidade de um mundo em guerra e o desajustamento
dos seres humanos, em especial dele próprio diante dos fatos e suas consequências. Desse modo,
resta ao ser gauche transformar a poesia e a memória como opções de fuga, evasão, tomada de
posição, mais que isso, como condição da própria existência ou como afirma Candido (1977),
converter a memória numa forma de vida ou ressurreição, num movimento de redenção pela poesia.
Sob este aspecto, comenta Affonso Romano de SantřAnna que a poesia é um código de
rupturas, subverte o prosaico e o linear, matéria da qual se alimenta. Na poesia drummoniana,

o poeta como autêntico gauche ao utilizar da língua comum, na verdade está propondo uma
substituição da realidade, na medida em que altera ele mesmo a própria linguagem. Todo o
desajustamento psicológico é revelado por uma quebra de padrões lingüísticos. O poeta-
gauche transfere para a língua seus conflitos internos, de tal maneira que o estilo, como
produto final, há de revelar sempre as marcas psicológicas do autor, e os conflitos maiores
que o envolveram em sua época. (SantřAnna, 2008, p. 66-67).

Nota-se neste excerto, no mínimo dois pontos interessantes: a manifestação de um


gauchismo que não é só individual na medida em que são mencionados Ŗos conflitos maiores que o
envolveram em sua épocaŗ ao lado de um relacionamento bastante particular entre o poeta e a
linguagem.
Quanto a este segundo ponto, Drummond, considerado por muitos o poeta da sintaxe, por
sua imensa capacidade de (des)construir palavras, arranjando-as de maneira harmoniosa e rítmica, e
por sua grande habilidade produtiva, criativa e lúdica, conforme propõe Sônia Santos (2008),
acreditava que Ŗa poesia está escondida, agarrada nas palavras; o trabalho poético permitirá arranjá-
las de tal maneira que elas a libertem, pois poesia não é arte do objeto (...), mas do nome do objeto,
para construir uma realidade novaŗ (Candido, 1977, p. 117). Por esta razão, o trabalho de criação
empreende uma verdadeira luta, como nos versos do poema ŖO Lutadorŗ :

Lutar com palavras


é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.

(...)

390
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.

(...)

Luto corpo a corpo,


luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
(Andrade, 2008, p. 99-100).

Esse embate com as palavras reflete um modo particular de criação artística, talvez a
personalidade gauche do poeta o faça ser Ŗum lutadorŗ que apesar de se reconhecer incapaz de
aprisionar ou encantar as palavras, aceita o combate. O trabalho com a linguagem e a busca
incessante pela conquista da poesia, ainda que a luta seja vã, compreende outro tema recorrente em
sua poética, ou para usar a nomenclatura adotada por Antonio Candido (1977), outras de suas
Ŗinquietudesŗ . Assim, a relação do poeta com a poesia e a linguagem manifesta seu desajuste com a
realidade transposta para o domínio estético, no qual o poder e a importância das palavras possuem
papel fundamental para compreensão ou construção do próprio ser, afinal, como bem demonstra
Hênio Tavares, a poesia cria signos e realidades próprias, pois,

os significados das palavras não se referem a fatos reais. Pelo contrário, os fatos aqui
adquirem qualquer coisa de estranhamente irreal, pelo menos uma existência particular
absolutamente diversa da realidade. Os fatos ou, como quereríamos dizer, a objectualidade
(que é claro, abrange também seres, sentimentos, acontecimentos) existe somente como
realidade evocada por estas frases poéticas. As frases do poema têm a capacidade de
provocar a sua própria objectualidade (Tavares, 2002, p. 28).

Em relação ao primeiro ponto anteriormente mencionado, de que o gauchismo poderia ser


uma manifestação não somente individual, Antonio Candido (1977) vai falar que as próprias
concepções de tempo e espaço, na poética drummoniana, também se apresentam como categorias
deformadas, acompanhando a deformação daquele eu retorcido para o qual Ŗo mundo social é torto
de iniqüidade e incompreensãoŗ (Candido, 1977, p. 103). E este mundo torto dá origem a uma
visão igualmente esquerda do mundo:

O gauche é um torto, vê o mundo torto ou entorta o mundo. Revela tortura onde se mostra a
aparência de paz, revela tronchura onde normalmente se vê retidão. (...)
Drummond é um gauche. O gauche tem um pensamento não linear, pensa por paradoxos,
pensa de modo retorcido e, desse, modo liberta-se das amarras e limitações da lógica e da
linguagem. Conseqüentemente, o gauche consegue enxergar mais longe, ou mais perto,
sempre melhor, com mais agudeza!
(Teoria do Gauchismo Ŕ Intempéries em Louvor de Drummond, 2007).

Paradoxalmente, o gauche em seu desajuste consegue ver mais claramente. Talvez porque
como ele os indivíduos são igualmente deslocados e excluídos da realidade, numa espécie de
metonímia na qual Ŗo eu estrangulado é em parte conseqüência, produto das circunstâncias; se
assim fôr, o eu torto do poeta é igualmente uma espécie de subjetividade de todos, ou de muitos, no
391
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mundo tortoŗ (Candido, 1977, p. 108). Novamente se vê, aqui, o papel da histñria, do contexto no
qual e para o qual escreveu Drummond. É o peso de um tempo histórico de relações tortas e
mecânicas entre os homens, como o poeta bem tratou em diversos de seus poemas; de um sistema
político, econômico e social que aprisiona os indivíduos; da ausência de paz e de liberdade em uma
sociedade marcada por regimes totalitários e conflitos armados; enfim, sua poesia pode em parte ser
considerada revelação (ou seria reflexo?) Ŗdas camadas histñricas que se fazem penetrar no poema,
em uma obraŗ (Santos, 2008, p. 29).

3. Drummond, Drummonds: o poeta de sete faces e o movimento modernista.

O modernismo, enquanto movimento estético que englobaria diversas manifestações


artísticas, entre elas a literária, pode acarretar definições variadas e por vezes algumas confusões
conceituais. O crítico José Guilherme Merquior define o vocábulo Ŗmodernismo brasileiroŗ nos
seguintes termos:

O modernismo é a arte da vanguarda, brusca e despojada, do jovem século XX, nascida da


recusa do decadentismo e que amadureceu com a experiência excitante das mudanças e
traumas da Grande Guerra e do primeiro pós-guerra. (...) modernista foi o estilo de desafio
das primeiras vanguardas militantes (...) a instituição característica dos Ŗmodernosŗ será o
polêmico grupo de vanguarda (Merquior, 1983, p. 97).

Sob esse ponto de vista, o modernismo surge essencialmente atrelado ao movimento


vanguardista das primeiras décadas do século XX, presente não somente nas letras como também
nas artes plásticas e na música. Apesar dessa premissa marcante, a definição de Ŗmodernismoŗ,
ainda segundo Merquior (1983), acarreta um grande questionamento no que se refere
especificamente ao campo literário: o modernismo pode ser considerado uma época inteira ou
apenas uma explosão momentânea das vanguardas?
Surgem assim duas teses: a de um Ŗmodernismo-momentoŗ e a de um Ŗmodernismo-épocaŗ ,
ambos, segundo o autor, insuficientes para dar conta da complexidade e heterogeneidade nas quais
se configuraria o modernismo brasileiro. Para o crítico:

o modernismo foi, com efeito, uma constelação literária altamente heteróclita. Mesmo que
nos cinjamos aos escritores comprovadamente vinculados às vanguardas que deflagraram o
movimento, a impressão de diversidade se impõe. (...) o modernismo não apresenta uma
unidade estilística de base. Novo romantismo, ele assinalou antes a dissolução de certo
canôn de Ŗbem escreverŗ Ŕ uma profunda revolução no tom literário (Merquior, 1983, p.
100).

O modernismo, de fato, revolucionou a literatura que vinha se fazendo até o início do


século XX, no Brasil, e como a maioria das revoluções, esse processo não aconteceu sem uma certa
resistência das correntes mais tradicionais da arte literária antes que o movimento conseguisse se
consolidar no país. E como bem nos informa Merquior, esse não foi, apesar da influência das
vanguardas, de forma alguma um movimento homogêneo.
392
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O poeta Carlos Drummond de Andrade, como se sabe, inicia sua vida literária ainda na
década de 20, escrevendo para jornais. Publica seu primeiro livro em 1930. Sabe-se também que
teve grande importância para o movimento modernista mineiro, sendo um dos fundadores de A
Revista, grande veiculadora dos ideais modernos em Minas Gerais, e que se correspondeu por
longos anos com Mário de Andrade, grande expressão do movimento modernista pós-22. Sendo
assim, poderíamos considerar que Drummond é um típico poeta moderno, como fica expresso no
comentário a seguir:

Reflexivo e sentimental pelo trabalho amiúde de lidar com as palavras e os sentimentos, o


homem atrás do bigode, ora sério, ora cômico, monta e desmonta a matéria multíplice de
sua poesia de maneira surpreendente, desconcertante e lúcida; construindo mundos e
universos a serem descortinados pela reflexão e pela memória. Assim, sua poética exprime-
se e imprime-se como plenamente moderna, devido ao tom mutável e imprevisto, fugindo
do convencionalismo comum em que convivem a irreverência e o formalismo, a elegância e
o deboche (Santos, 2008, p.30) (grifo nosso).

No entanto, apesar da poética drummoniana Ŗimprimir-se e exprimir-se como plenamente


modernaŗ , Drummond, assim como o prñprio movimento modernista foi múltiplo. O poeta de sete
faces transitou entre a lírica filosófica, a poesia social, utilizando o verso livre, mas também formas
consagradas como o soneto, num Ŗpercurso que vai do cubismo literário de Alguma Poesia à escrita
classicizada de Claro Enigma, passando pelo opulento meridiano de A Rosa do Povoŗ (Merquior,
1983, p. 143). E essas diferentes faces ou fases na poesia drummoniana podem talvez explicar a
paradoxal aproximação e distanciamento dos ideais modernos pregados na Semana de 22, por
exemplo, dividindo a opinião entre críticos e estudiosos, como pode se ver em Candido, que
acredita que na poesia de Drummond, Ŗhá indicações de que lhe agradaria recuperar uma relativa
euforia modernista, perdida depois de Brejo das Almasŗ (Candido, 1977, p. 97) ou em Merquior
(1983) que classifica Drummond como Ŗnosso clássico modernoŗ . Há ainda opiniões como a de
Arnaldo Nogueira Júnior, em que se afirma que

o modernismo não chega a ser dominante nem mesmo nos primeiros livros de Drummond,
Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934), em que o poema-piada e a descontração
sintática pareceriam revelar o contrário. A dominante é a individualidade do autor, poeta da
ordem e da consolidação, ainda que sempre, e fecundamente, contraditórias. Torturado pelo
passado, assombrado com o futuro, ele se detém num presente dilacerado por este e por
aquele, testemunha lúcida de si mesmo e do transcurso dos homens, de um ponto de vista
melancólico e cético. Mas, enquanto ironiza os costumes e a sociedade, asperamente
satírico em seu amargor e desencanto, entrega-se com empenho e requinte construtivo à
comunicação estética desse modo de ser e estar (Nogueira Júnior, 2010).

A relação e a inevitável comparação entre Drummond e seus contemporâneos também é


outro ponto que merece ser destacado. Para Candido,

(...) a sua poesia difere da de outros modernistas, inclusive Mário de Andrade, que tentam
fixar o quotidiano a fim de obterem um Ŗmomento poéticoŗ suficiente em si mesmo; êle, ao
contrário, procede a uma fecundação e a uma extensão do fato, para chegar a uma espécie
de discreta epopéia da vida contemporânea (Candido, 1977, p. 109).

393
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Apesar das diferentes opiniões acerca da poesia drummoniana, podemos considerar um


aspecto comum, o qual acreditamos nessa pesquisa, o de que a relação entre o poeta e seu tempo,
isto é, a força do contexto histórico é determinante para construção de sua poética, em seu caráter
mais particular. Para a especialista em sua obra, Marlene de Castro Correia, em análise do poema
ŖNosso Tempoŗ: ŖDrummond, em rara combinação de poesia e filosofia política, teceu
considerações sobre o ser do seu tempo histórico, enfocado em sua totalidade, em sua essênciaŗ
(Correia, 2009, p.80). Assim, muitos dos temas e assuntos de sua poesia buscam compreender e
retratar a Ŗideia de impossibilidade de vida plena no regime capitalista e no período da Segunda
Guerra Mundial, obrigando-se o sujeito a recorrer a substitutivos para "continuar" e não desistir de
vez de vidaŗ (Correia, 2009, p. 74).

4. Considerações finais

Ao finalizarmos esse trabalho, de forma alguma temos a pretensão de esgotar o assunto, o


que seria definitivamente impossível, até mesmo pelo caráter limitado de um artigo. Ao contrário, o
que se pretendeu fazer aqui, foi contribuir para as pesquisas acerca da poética drummoniana e em
certa medida também para os estudos que relacionam Literatura e História, uma associação que
procurou ser demonstrada pelo exemplo desse nosso poeta, que tanto contribuiu para enriquecer as
nossas letras. Concordando com a metáfora de Silviano Santiago (na introdução à obra completa do
autor) de que Drummond e o século XX são irmãos, e de que é possível compreender a história
deste século lendo a obra poética do autor, somos levados a concluir, em conjunto com a
pesquisadora Sônia Santos, que

o itinerário histórico do poeta não deixa de ser seu próprio desenvolvimento pessoal em
uniformidade com a sua obra. Tentar compreender esse processo é tentar seguir passo a
passo o andamento de seu fazer poético dentro da construção de sua obra. Para tal, seria
necessário perscrutar a complexidade traçada nas vias sinuosas de sua lírica (Santos, 2009,
p. 33)

Esse exame minucioso e delicioso da poesia de Drummond nos revela desde grandes
acontecimentos da época em que viveu e escreveu até minúcias da vida individual e também
coletiva, afinal a história não se constrói somente com os grandes fatos, mas com o dia a dia das
pessoas. Perceber o quanto de história subsiste em seus versos foi o que se tentou discutir aqui. E o
mais interessante é que o gauche aparentemente falando de si próprio acaba por falar de todos nós,
cidadãos do presente, do passado e por que não do futuro? Num verdadeiro misto de objetividade e
subjetividade o mais importante é que pela poesia, o gauche alcança seu ideal: se comunicar ou
revelar os mistérios da vida, do homem e de um tempo singular como fora o século XX.

O poeta trabalha sobretudo com o tempo, em sua cintilação cotidiana e subjetiva, no que
destila do corrosivo. Em Sentimento do mundo (1940), em José (1942) e sobretudo em A
rosa do povo (1945), Drummond lançou-se ao encontro da história contemporânea e da
experiência coletiva, participando, solidarizando-se social e politicamente, descobrindo na
luta a explicitação de sua mais íntima apreensão para com a vida como um todo. A
394
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

surpreendente sucessão de obras-primas, nesses livros, indica a plena maturidade do poeta,


mantida sempre (Nogueira Júnior, 2010).

Essa Ŗplena maturidadeŗ de nosso tão singular poeta, Ŗmantida sempreŗ é o que faz dele um
dos mais importantes escritores brasileiros, capaz de encantar os leitores de qualquer tempo,
conforme nos escreve Merquior: ŖEm Drummond, clássico moderno, o modernismo se consuma e
se justifica numa dupla universalidade: a de falar de nós aos outros, e a de fazer um tempo histórico
emocionar o homem de qualquer tempoŗ (Merquior, 1983, p. 144).
E são justamente com as palavras desse crítico que gostaríamos de encerrar este artigo,
reforçando mais uma vez a capacidade de Drummond de nos contar história por meio de seus
versos, afinal, Ŗpela sua prñpria saga íntima, o verso de Drummond exala consciência histñricaŗ
(Merquior, 1983, p. 141).

Referências bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

BOSI, Alfredo. Poesia e Historicidade. In: O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004. p. 9-17.

CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários Escritos. 2 ed. São Paulo:
Livraria Duas Cidades, 1977. p. 93-122.

CORREIA, Marlene de Castro. Como Drummond constrói nosso tempo. In: Alea: Estudos
Neolatinos. Rio de Janeiro, v.11, n.1, jan-jun. 2009. p. 73-86. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/alea/v11n1/v11n1a07.pdf> Acesso em: 02 de ago. 2010.

MENDES, Francisco Paulo. Notas para uma conferência sobre poesia contemporânea. In: NUNES,
Benedito (org.) O amigo Chico: fazedor de poetas. Belém: SECULT, 2000. p. 189-192.

MERQUIOR, José Guilherme. O modernismo e três de seus poetas. In: O Elixir do Apocalipse.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 97-134.

______. Nosso clássico moderno. In: O Elixir do Apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983, p. 141-144.

NOGUEIRA JÚNIOR, Arnaldo. Carlos Drummond de Andrade. In: Releituras. Disponível em:
<http://www.releituras.com/drummond_bio.asp> Acesso em: 28 de jul. de 2010.

SANTřANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche no tempo. 5 ed. rev. Rio de Janeiro:
Record, 2008.

SANTOS, Sônia Maria Fernandes. Literatura e Cinema: Interfaces nřO [Caso do] Vestido. 2008.
98f. Dissertação (Mestrado em Letras Ŕ Estudos Literários) Programa de Pós-Graduação em Letras,
Universidade Federal do Pará, Belém.

TAVARES, Hênio. Literatura. In: Teoria literária. 12 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. p. 27-44.

TEORIA do Gauchismo Ŕ Intempéries em Louvor de Drummond. In: Gauche Virtual. 2007.


Disponível em: <http://gauche-virtual.blogspot.com/2007/12/teoria-do-gauchismo-intempries-
em.html> Acesso em: 17 de jun. 2010.

395
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O PROBLEMA DAS VANGUARDAS POÉTICAS VISUAIS DO SÉCULO XX

Isaac Newton Almeida Ramos (USP-UNEMAT)1

A crítica literária brasileira costuma ter uma postura de rejeição quanto à ação das
vanguardas. Foi assim com a Semana da Arte Moderna de 1922, realizada no Teatro Municipal de
São Paulo e, três décadas depois, com a Exposição Nacional da Arte Concreta, em 1956. Uma das
diferenças básicas é que a primeira aconteceu apenas em São Paulo e a segunda ocorreu nos dois
maiores centros brasileiros, a capital paulista e o Rio de Janeiro. Pode-se dizer que a aceitação da
primeira não demorou muito, sobretudo depois que os ânimos radicais da primeira fase modernista
diminuíram. Oswald de Andrade (um dos organizadores da semana paulista) até tentou chamar
Mário de Andrade de Ŗmeu poeta futuristaŗ . Sñ que o apelido carinhoso não pegou assim como a
amizade dos dois anos mais tarde foi abalada por outros motivos. Após o conhecimento dos
manifestos do futurismo, dadaísmo e surrealismo, entre outros Ŗismosŗ, os modernistas brasileiros
palmilharam por outros caminhos estéticos com o intuito de construir uma identidade nacional. Essa
preocupação, de certa forma, já havia começado no pré-modernismo com Graça Aranha e Lima
Barreto, na prosa. Na poesia, Augusto dos Anjos incorporou a estética do feio em vários poemas do
seu livro Eu. A consequência de todos esses procedimentos é que o modernismo terminou por se
solidificar enquanto movimento. No que refere à negação da Exposição Nacional de Arte Concreta,
por parte da crítica nacional, ela incorpora novo componente: a descrença na internacionalização da
poesia concreta.

As escolas literárias que precederam ao modernismo traziam no bojo do seu programa uma
re-formulação ou negação da anterior. Assim aconteceu do arcadismo com relação ao barroco; do
romantismo em relação ao arcadismo e do modernismo em relação ao parnasianismo para ficar em
alguns casos. Evidentemente há outros componentes filosóficos, estéticos, retóricos e até mesmo
políticos que explicam essa flutuação ou retorno às origens clássicas. Assim foi com o
renascimento, com o neoclassicismo e, séculos depois, com o próprio concretismo em relação ao
barroco. A mesma coisa se poderia dizer com relação à presença da modernidade na poesia. O
assunto é caro, todavia não há como negar que desde o cancioneiro geral português podem-se
encontrar elementos formais que representam um avanço estético em relação às escolas
precedentes. O próprio conceito de escola literária há algum tempo é discutível. Não se pretende
neste espaço crítico esquadrinhar a situação delicada em que se enquadram escolas e/ou
movimentos literários. É oportuno lembrar que o diálogo entretecido entre literatura, artes plásticas,
escultura, arquitetura, música não é recente na estória da cultura ocidental. Os misólogos de plantão
talvez condenem a pintura impressionista feita a partir de um poema simbolista ou o poema feito a

1
Doutorando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela FFLCH-USP. Professor Assistente de
Literatura da Universidade do Estado de Mato Grosso. Bolsista CAPES.

396
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

partir de uma tela, mesmo que essa tela esteja em branco como o fez Mallarmé em Un Coup de Dés
(Um lance de dados). Ele constrói o primeiro poema-estrutura de que se tem conhecimento, propaga
Augusto de Campos (1974, p.179), um dos três tradutores do livro Mallarmé.

Talvez um dos fatores que explique a rejeição de grande parte da crítica à poesia concreta,
neoconcreta e poema-processo sejam justamente o fato que de que em vez de diminuir, os
movimentos que se sucederam ao concretismo radicalizaram ainda mais a proposta básica. Outro
fator importante a ressaltar é que não envolveu o Ŗgênero nobreŗ do século XX: o romance.
Contemplou apenas a poesia. E no campo das experimentações poéticas há que se lembrar que na
elaboração dos poemas são utilizados diversos processos que vão desde o uso da antiga letra set
(recurso utilizado por Augusto de Campos nos poemas coloridos ŖLygia Fingeŗ ), da estilização
gráfico-matemática (recurso utilizado por Wlademir Dias-Pino em A Ave e Solida), do videopoema
(utilizado por Augusto e Haroldo, no Brasil e por Melo e Castro em Portugal), da holopoesia (por
Augusto e Melo e Castro), da poética do pixel (por Melo e Castro) até as mais variadas produções
de poética visual atualmente produzida em computador. Se a poesia simbolista, no final do século
XIX, era obscura, difícil, tortuosa e propagava inclusive a poética do feio, como em Rimbaud,
Mallarmé e Baudelaire, nessa ordem, as poéticas visuais da segunda metade do século XX
transcendem o objeto livro e, entre outras coisas, trouxeram o poema-livro, o livro-poema e o livro
de arte. A consequência disso é que parte da crítica condena dizendo que não seriam mais poesia,
nem artes plásticas, nem escultura, nem nada. O que era difícil de ler com os simbolistas franceses
passou a ser chamada de poesia apñcrifa ou Ŗbrincadeira débilŗ com as palavras. O difícil e o
ilegível passaram a ser o mesmo lado da moeda poema. Ou o poeta faz o estorno para o poema em
verso ou será expurgado do cânone como se o verso o abandonasse. Como se esse outro
procedimento não pudesse mais ser considerado literatura. Chega-se a uma situação nas histórias
das literaturas brasileira e portuguesa que, mesmo tendo passado mais de cinquenta anos, o espólio
do concretismo e dos movimentos que se sucederam não pode sequer ser distribuído entre os poetas
e leitores do século XXI.

A história da literatura mostra que até o advento do gênero romance, que surgiu no
romantismo através da publicação nos folhetins cujo público alvo era as mulheres da burguesia, a
poesia era predominante. Isso não significa, em hipótese alguma, que a narrativa não tenha
importância. Prova dela é a existência das epopéias clássicas, que eram escritas em verso. É o valor
inconteste da Divina Comédia de Dante Alighieri, que apresenta Virgílio como condutor
intratextual e intertextual entre mundos literários e paradigmáticos da raça humana de leitores. E
como não falar de A máquina do mundo repensada (2004), última obra publicada em vida de
Haroldo de Campos, na qual ele dialoga com Camões, Dante e Drummond todos construtores de
máquinas do mundo erguidas em páginas construídas com versos. Mesmo sem ser escrito em
narrativa, Pessoa em seu livro Mensagem, único publicado em língua portuguesa enquanto vivo,
também faz um épico moderno dialogando com Os Lusíadas de Camões.

397
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Diante desse contexto, concebe-se que próximo ao final do século XIX a poesia ainda tinha
certa preferência dos leitores, todavia veio o simbolismo e a lírica moderna começou a se encorpar.
Adveio a proposta de escrita de uma poesia obscura, difícil, tortuosa e, em alguns casos, explorando
a visualidade latente e até mesmo o espaço branco da folha passou a ter importância como elemento
de composição, não que isso não tenha acontecido desde o barroco. Ainda mais, o silêncio erguido
do nada malarmeleano vem substituir a casta solidão da palavra que deixa de ser apenas verbalizada
ou declamada para ocupar nova dimensão. O espaço funciona como uma espécie de pigmento
poético de luz, ainda longe do objeto fractal dos concretos ou da poética do pixel do poetas
experimentais portugueses da segunda metade do século XX. Por isso havia vida no front lôbrego
dos impressionistas que dialogavam com os poetas simbolistas. Baudelaire se deleitou no berço
esplêndido da estética do feio, Rimbaud impressionou pela impetuosidade, pela explosão e
Mallarmé pelo silêncio expletivo. Valéry, o sucessor direto de Mallarmé, soube indicar
explicitamente essa passagem nos hábitos de leitura, antevista pelo simbolismo, na qual ergueu
grande parte de sua estética. Por sinal, a prática de discutir o fazer poético e produzir sua própria
teoria não começou com os concretistas ou adeptos do poema-processo, essa postura vem desde os
simbolistas franceses. Baudelaire foi um grande crítico de arte e inovou na forma de escrever.
Valéry também produziu bastante teoria, com destaque para sua obra Variété. Nesta, destaque para
o capítulo intitulado ŖPoética e Estéticaŗ , leitura fundamental para o estudioso de poesia. No Brasil,
alguns romancistas já haviam feito o papel de críticos como José de Alencar, no romantismo e
Machado de Assis, no realismo. Em Portugal, Fernando Pessoa não só poetizou sobre estética e
filosofia, principalmente com o heterônimo Álvaro de Campos no primeiro e Alberto Caeiro no
segundo, assim como produziu farto material nessa área, reunido na sua obra em prosa.

No caso dos concretistas e no dos que vieram depois, produzir manifestos Ŕ exercícios
comuns entre as vanguardas Ŕ e teorias têm a função de explicar algo que os críticos da época não
se dispunham a fazer. Além disso, havia a intenção explícita de marcar a posição de algo produzido
pela primeira vez no Brasil e depois Ŗexportarŗ . O objetivo em parte foi conseguido, mesmo diante
da ira crítica dos que se opunham ao movimento. Alguns fatos curiosos merecem ser aludidos. O
impacto na imprensa paulista foi mínimo durante a realização da Exposição Nacional da Arte
Concreta. Já no Rio de Janeiro, houve um espaço maior dedicado ao evento. Os componentes do
grupo paulista Noigrandes começaram a colaborar no ŖSuplemento Dominicalŗ do Jornal do Brasil
(JB), por intermédio do crítico poeta Mário Faustino, ainda em 1956. Drummond, Cassiano Ricardo
e Manuel Bandeira foram alguns dos poetas da geração modernista que se interessaram pelas
experiências do grupo. A revista O Cruzeiro, de março de 1957, saudou em suas páginas o que
chamou de ŖO 'rock n roll' da poesiaŗ trazendo fotos dos principais participantes do movimento. Há
um aspecto a ser ressaltado nessa união entre paulistas e cariocas. Se por um lado a semana de 22
ficou marcada como um evento tipicamente paulista e despertava um sentimento nacionalista no
tocante à linguagem, no caso da ENAC, pretendia-se consolidar o movimento, cimentando
diferenças bairristas e sob o mesmo teto estético poderem alçar um vôo internacional. Acontece que

398
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

a exposição no Rio ocorreu em fevereiro de 1957, com repercussão nacional e em julho Ferreira
Gullar e Reynaldo Jardim rompem com o concretismo. Em 1959 sairia o Manifesto Neoconcreto e a
realização da I Exposição de Arte Neoconcreta, no Museu de Arte Moderna (MAM-RJ).

Vários fatores estavam em jogo: o domínio do movimento aqui e, sobretudo, lá fora, a


autoria dos manifestos restrita aos componentes do Noigrandes e apesar de aparentemente
Wlademir Dias-Pino não ter endossado a posição de Gullar e outros cariocas demorou um pouco
para ele perceber que também não havia espaço político para sua atuação. O ensimesmamento do
poeta vindo de Mato Grosso acabou por propiciar uma nova cisão no grupo concreto o que o levou
a criar, em 1967, juntamente com outros companheiros como Álvaro de Sá, Neide de Sá e Moacy
Cirne, o movimento poema-processo. Um detalhe curioso: não houve a participação de paulistas
entre os componentes do poema-processo. O grupo entendia que o trabalho de aglutinação realizado
pelos irmãos Campos e Décio Pignatari não permitiria a ação de pares participando com esse novo
grupo.

Alguns números interessantes para conhecer a realidade da I Exposição Nacional da Arte


Concreta (ENAC), ocorrida nas duas capitais. Dos 28 participantes, 22 eram das artes plásticas,
sendo que 3 participaram na condição de escultores, um como desenhista, uma gravadora e 15
pintores. No caso dos poetas, 6 foram os participantes. Metade por São Paulo e a outra metade pelo
Rio de Janeiro. Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari participaram como
integrantes do grupo Noigrandes. Pela então capital federal, Ferreira Gullar, Wlademir Dias Pino e
Ronaldo Azeredo. Este último, pouco tempo depois, veio a morar em São Paulo.

Antes de abordar os trabalhos dos poetas concretos, é pertinente conhecer a trajetória deles
antes da eclosão do movimento propriamente dito. Por se tratarem de poetas de vanguarda, o objeto
livro não pode ser tomado tão somente como elemento catalisador de formação de suas literaturas.
Isso significa que publicações em jornais ou revistas, assim como performances ou exposições
realizadas devem ser levadas em conta.

Wlademir Dias Pino: o voo de um designer

Um pouco antes da ENAC, pensava-se que Wlademir Dias Pino fosse mato-grossense em
virtude de ter publicado seus primeiros livros em Cuiabá. Ele nasceu na cidade do Rio de Janeiro,
em 1927; porém em 1936 acompanhou a família transferida para Mato Grosso. O pai, anarquista,
tipógrafo da Imprensa Nacional, buscou asilo na província. Cedo aprendeu a ter um completo
domínio sobre as artes gráficas e descobriu as formas geométricas de forma encantatória, ao
observar e juntar retalhos de tecidos, sobras do material de trabalho de sua mãe. Começou a
escrever muito cedo. Em 1940, publicou A fome dos lados, poema em forma de livro que se abre na
vertical. Em 1941, A máquina que ri, explorando a horizontalidade da página branca. Em 1948, Dia
da Cidade, livro-poema que espacializa as palavras e os versos que o compõe e que, segundo

399
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mencionou em entrevista a Paulo Silveira, em 1999, teria sido a obra que o ajudou a pensar o livro
A Ave, que foi impresso em 1955 e lançado em 1956.

Chega a ser surpreendente que este poeta de vanguarda tenha produzido suas principais
obras na distante Cuiabá. Um Estado que até então não produzira grandes nomes para a literatura
brasileira. Um dos contemporâneos de Wlademir, o premiado poeta Manoel de Barros só ficaria
conhecido a partir da década de 80. Como participante do grupo carioca na ENAC, Dias-Pino
apresentou-se com a primeira versão do que viria a ser uma das suas principais obras experimentais:
Solida. Ele foi o único participante da exposição que não utilizou a palavra como forma de
expressão. Na exposição da capital paulista, ele apenas enviou material. Dias-Pino, em conversa
com este pesquisador, afirmou peremptoriamente que Solida não seria propriamente uma obra de
poesia concreta.

Sobre os livros Os Corcundas (1954) e A máquina ou a coisa em si (1955), há estudos


aprofundados de Augusto de Campos, Álvaro de Sá, Neide de Sá, Antonio Sérgio Mendonça.
Posteriormente, Philadelpho Menezes, Décio Galvão, Paulo Silveira, entre outros. Provavelmente,
pelo fato dos seus livros não terem sido reeditados recentemente e a própria opção do poeta pelo
livro de artista Ŕ prática inclusive seguida por Neide de Sá e outros que começaram a mostrar seus
trabalhos no final da década de 60 Ŕ pode ser uma das justificativas para tão poucos trabalhos
acadêmicos sobre esse poeta, artista gráfico e designer.

Noigrandes: a blindagem em torno de si mesmo

O concretismo, enquanto movimento, acabou há muitos anos. O legado do grupo paulista,


representado pelo Noigrandes, à frente Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari,
ficou para a estória. No entanto, há de se fazer algumas ressalvas como a de que o grupo fez uma
blindagem em torno de si, seja para divulgar o movimento para o exterior seja para se proteger dos
ataques da crítica literária brasileira. Uma das fortalezas de resistência ao concretismo foi a USP.
Em uma rápida pesquisa na plataforma Lattes é possível saber quem são os pesquisadores que
trabalham com poéticas visuais. Basta digitar os nomes dos principais participantes da ENAC para
se constatar que os pesquisadores se concentram nas unidades da Pontifícia Universidade Católica
(PUC), sobretudo a da capital paulista. Não por acaso, esta instituição privada teve entre seus
quadros de professores (de carreira ou como convidados): Décio Pignatari, Haroldo de Campos,
Augusto de Campos, Melo e Castro, Philadelpho Menezes, entre outros. Isso, provavelmente, fez a
diferença.

Há estórias curiosas envolvendo os nomes dos integrantes do grupo paulista. Dois exemplos:
Haroldo de Campos foi assessor jurídico da Reitoria da USP, por sete anos, e não teria sido
chamado, durante o auge do concretismo, uma vez sequer para fazer fala no curso de Letras. É bom
lembrar que Haroldo foi orientando de Antonio Candido durante o doutorado, tendo defendido uma
tese que logo se tornou livro intitulada A morfologia do Macunaíma (1973) e, anos mais tarde,

400
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

publicou seu polêmico texto O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso
Gregório Matos (1989). O outro nome é Décio Pignatari. Poeta e semioticista, Décio trabalhou
durante doze anos na ECA (Escola de Comunicação e Arte) e, igualmente, não teria sido convidado.
Décio também foi, durante o doutorado em Literatura, orientado por Antonio Candido. Seria o caso
de dizer que o que aconteceu com eles trata-se de algum tipo de censura poética ou acadêmica?
Levando em conta que os dois defenderam suas teses na própria instituição que mais tarde os
ignoraram, seria temeroso assumir essa ideia.

Publicações sobre vanguarda e eventos

A importância das vanguardas poéticas no Brasil foi tema de diversas publicações durante os
últimos cinqüenta anos. As primeiras tiveram como autores os próprios participantes dos
movimentos. Nesse sentido, cabe aludir a algumas obras fundamentais: Teoria da poesia concreta:
textos críticos e manifestos 1950-1960 do grupo paulista Noigrandes (primeira edição de 1965 e a
última de 2006); Cultura posta em questão (1965) e Vanguarda e subdesenvolvimento (1969) de
Ferreira Gullar. Posteriormente, a Editora José Olypmpio reuniu os dois títulos em uma só obra (a
última edição foi de 2006). Processo: linguagem e comunicação (1973) de Wlademir Dias-Pino.
Instauração Praxis (1974) de Mário Chamie.

Em Portugal, o livro fulcral tem como título Po-ex: textos teóricos de documentos da poesia
experimental portuguesa (1981) de Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro. Um problema: cada um
deles, assim como seus seguidores, publicou outros títulos que, na maioria das vezes, não tiveram
reedições. Para ficar apenas em três casos: Vanguarda: produto de comunicação (1977) de Álvaro
de Sá; O próprio poético (1973) de Melo e Castro e A casa das musas (1995) de Ana Hatherly.

Os desdobramentos estéticos das vanguardas poéticas da segunda metade do século XX


também foram motivos de trabalhos acadêmicos publicados. Dentre eles, é pertinente citar: Poética
e visualidade: uma trajetória da poesia brasileira contemporânea (1991) de Philadelpho Menezes;
Sobre Augusto de Campos (2004), organizado por Flora Sussekind; Céu acima: para um ‗tombeau‘
de Haroldo de Campos (2005), organizado por Leda Tenório Motta; Poesia concreta brasileira: as
vanguardas na encruzilhada modernista (2005) de Gonzalo Aguilar; A página violada: da ternura
à injúria na construção do livro de artista (2001; a segunda edição saiu em 2008) de Paulo Silveira.

Dentre as publicações periódicas, o destaque fica para O Eixo e a Roda da UFMG que traz o
Dossiê 50 anos da poesia Concreta. É oportuno lembrar que no final da primeira década do século
XXI, em virtude de comprometimento com as exigências da CAPES, diversos programas de pós-
graduação passaram a editar revistas eletrônicas, dirigidas a um público alvo formado por
professores universitários e estudantes de mestrado e doutorado. Há, inclusive, espaço para a
publicação de textos literários desse seleto público. É possível que daqui a duas décadas, após a
sedimentação desta ideia e de outras que virão, surjam novos nomes de críticos literários e mesmo
de autores que se iniciaram na ficção a partir de publicações acadêmicas.

401
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

É pertinente citar poetas contemporâneos paulistas que, através de seus trabalhos, refletem
um aprimoramento conceitual desde o fim do concretismo. Dentre eles, destacam-se: Arnaldo
Antunes, Cid Campos, André Vallias, Lúcio Agra, Lenora de Barros, Walter Silveira, entre outros.
Todos eles produzem suas poéticas a partir da integração entre arte e tecnologia sendo, inclusive,
esse o título de um projeto cultural posto em prática, no Centro Cultural do Banco do Brasil, na
capital paulista durante quatro encontros, de abril a julho de 2009.

O curioso é que todos esses movimentos desencadeados no Brasil e em Portugal receberam


um número considerável de críticas desfavoráveis, na época. É pertinente o registro de uma
exposição que ocorreu de setembro a novembro de 2009, no Centro Cultural do Banco do Brasil,
em São Paulo, depois de ter passado por Brasília e Rio de Janeiro. Denominada Virada Russa: a
Vanguarda no Museu Estatal Russo de São Petersburgo, exibiu 123 obras de nomes inaugurais do
período como: Marc Chagall, Kazemir Maliévitch, Vasili Kandinski. A Virada trouxe ao país pela
primeira vez um número significativo de obras de artistas plásticos da vanguarda russa do começo
do século XX. É fato que as vanguardas russas, particularmente o futurismo, até hoje não são
suficientemente estudadas por lá. Ou seja, há uma valorização bem maior nos países ocidentais do
que na própria Rússia. Seria isso um mal das vanguardas? O destaque da mostra ficou por conta da
trilogia de Maliévitch: ŖCruz Negraŗ , ŖQuadrado Negroŗ e ŖCírculo Negroŗ , considerada uma das
maiores rupturas na história da pintura.

Após considerações sobre participantes do grupo Noigrandes, cabe o retorno ao grupo


carioca. A convivência entre os poetas durou pouco tempo. Ferreira Gullar, Ronaldo Azeredo e
Wlademir Dias-Pino tiveram destinos diferentes. O primeiro consolidou-se como poeta e um dos
principais críticos de arte no Brasil. O segundo acabou vindo para São Paulo e passou literalmente a
fazer parte da família dos Campos. O terceiro foi responsável pela edição de diversos jornais
literários desde quando morava em Cuiabá, juntamente com seu inseparável parceiro Silva Freire.
Exemplo disso é o jornal Japa (1953), lançado no Rio. Na verdade, a relação de amizade entre
Dias-Pino e Gullar já foi maior a ponto dos dois terem dividido um quarto logo que chegaram ao
Rio de Janeiro. O primeiro vindo de Mato Grosso e o segundo do Maranhão. Só que a parceria
literária que realmente permaneceu foi a dos dois que vieram de Mato Grosso. Na capital federal,
fizeram parte da diretoria de cultura da UNE (União Nacional dos Estudantes) editando por dois
anos o famoso jornal Movimento. Freire também foi diretor do Teatro Universitário Brasileiro
(TUB) da UNE. Essa parceria ainda seguiria por muitos anos.

Algumas das obras dos autores aqui apontados tiveram reedições recentes (como é o caso
dos membros do grupo paulista e do próprio Gullar), por outro lado os dois livros fundamentais de
Wlademir não foram reeditados. E quando foram editados pela primeira vez, tiveram edições
limitadas (cerca de 300 exemplares). Essa dificuldade em encontrar suas publicações em bibliotecas
públicas e particulares pode ter sido um dos motivos que contribuiu para um menor número de
estudos produzidos na academia. No entanto, na era de blogs e de twiters, isso não deveria mais ser

402
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

problema. Para tanto, aí estão as ferramentas de busca para verificar que há muito material poético e
crítico sobre esse autor disponível na internet. Há que se lembrar que, tradicionalmente, na
academia as pesquisas se pautam, predominantemente, em publicações impressas e na existência ou
não de documentos em bibliotecas públicas ou até mesmo em acervos particulares.

No caso de Wlademir, trata-se de um poeta que teve e ainda tem um comportamento


artístico e estético de vanguarda. Liderou um movimento pelo qual defendia (poema-processo) e,
insistentemente, dizia que o mesmo não precisava de líderes. Talvez temeroso de que não se
repetisse o que havia acontecido com os membros do grupo Noigrandes, tratou de promover uma
retirada estratégica de cena, em 1972, antes que se configurassem como tal. Ainda era recente o
conflito de vaidades vivenciado com os ex-colegas do concretismo. Oficialmente, o poema-
processo começou em 1967, concomitantemente no antigo Estado de Guanabara e Rio Grande do
Norte; porém tiveram, além desses estados, participantes de Mato Grosso, Minas Gerais,
Pernambuco, Bahia e Espírito Santo. Os principais teorizadores já foram apontados e o livro
Processo: linguagem e comunicação, de autoria de Wlademir Dias-Pino, é a obra que melhor
expressa o ideário de cerca de 50 poetas reunidos em um só volume.

Melo e Castro: a poesia experimental em pé

Melo e Castro nasceu em Covilhã, Portugal, em 1932. Poeta, ensaísta, professor. Formou-se
em Engenharia Têxtil e doutorou-se em Letras pela Universidade de São Paulo. Ele costuma se
assumir como autor do primeiro livro de poesia concreta editado em Portugal: Ideogramas (1962).
Publicou cerca de 30 livros de poesia, 18 de ensaio, 6 organização de antologias, dezenas de
participação em catálogos e antologias. Sobre o autor e outros participantes da poesia experimental
vale visitar o site www.po-ex.net, um dos mais completos e documentados sites português possuindo
farto material para pesquisadores, simpatizantes e leigos, com ilustrações a partir de originais. A
responsabilidade é de uma grande equipe da UFP (Universidade Fernando Pessoa), de Portugal,
coordenada por Rui Torres. Uma vez mais, como no Brasil, arquivos digitais disponibilizados na
internet vêm suprir a falta de bibliografia no mercado e nas bibliotecas públicas.

Outra coincidência, no tocante à produção textual sobre a poesia experimental de Melo e


Castro, com a realidade brasileira é que os autores além de formularem a teoria do movimento
também escrevem textos críticos dos trabalhos dos seus colegas. Nesse sentido encontram-se
análises feitas por vários escritores portugueses, tais como Ana Hatherly, Antonio Ramos Rosa,
José Alberto Marques, entre outros. Não é o propósito de este trabalho mostrar que Melo e Castro
foi mais estudado em Portugal ou no Brasil ou que tem um mercado mais favorável aqui ou acolá.
Deve-se considerar que até há pouco tempo a academia tinha certa resistência a autores
contemporâneos. E essa aceitação ainda se torna mais complicada quando além de poeta o autor
também é ensaísta e transita por outras áreas. No Brasil, isso também aconteceu com os
componentes do trio paulista do Noigrandes, com Ferreira Gullar e com Wlademir Dias-Pino, para
ficar entre os participantes da Exposição Nacional de Arte Concreta (ENAC). Outro ponto comum
403
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

entre Melo e Castro e seus colegas concretos brasileiros é que os livros de ensaio tiveram aceitação
comercial maior do que os de poesia. Isso se explica pelo fato de que o mercado editorial é mais
cruel com os poetas.

Acerca do concretismo e do poema-processo

Nos livros de história da literatura brasileira e nos livros didáticos, durante muitos anos, o
concretismo teve seu espaço assegurado. No caso das obras didáticas, o destaque para o assunto
variava de obra para obra. Algumas mais recentes têm inclusive dedicado espaço quase equivalente
para cada uma das vanguardas poéticas da segunda metade do século vinte. Isso significa que
movimentos provenientes das diversas intersecções de vozes, como é o caso do poema-processo,
não haviam recebido páginas de destaque até então. Isso também se aplica à crítica acadêmica. É
relativamente pequeno o número dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre essas outras
vanguardas. Soma-se ao fato de que grande parte das teses defendidas não são publicadas sob a
forma de livro. Na prática, o pesquisador precisa consultar a biblioteca da faculdade ou, quando
disponível, fazer um dowload do arquivo em PDF. Também é relativamente recente a chamada
biblioteca virtual, na qual conste não somente obras clássicas assim como teses acadêmicas.

Uma das atitudes estéticas e políticas do poema-processo é a produção de versões de um


poema ou de uma obra literária. Dias-Pino, por exemplo, produziu várias versões do livro A Ave e
de letras alfabéticas como ŖO elogio ao Aŗ . Estes trabalhos podem ser vistos em
http://www.wwwlambuja.blogspot.com. É considerável o número de blogs, hospedados na internet,
dedicados à poética visual. Há desde os organizados por participantes do movimento, assim como
os de pesquisadores que trabalham com o assunto. Dois dos sites mais bem organizados, do ponto
de vista acadêmico, com uma fartura de documentação e ilustrações originais, datam de dezembro
de 2009. Os responsáveis pela programação do site são Hugo Cristo Sant'Anna e o pesquisador
Rogério Camara. Nos créditos consta que o referido resulta da pesquisa ŖPoesia visual brasileira:
Dias Pino e poema processoŗ. Os mesmos podem ser conferidos em
http://www.poemaprocesso.com/introducao.php e http://www.enciclopediavisual.com/. Este último é
dedicado a obra de Wlademir Dias Pino. A realização é do grupo Place. As universidades
envolvidas são UNB (Universidade de Brasília) e UFES (Universidade Federal do Espírito Santo),
com o apoio do CNPQ. E o que garante a qualidade e autenticidade das imagens é que todas elas
foram capturadas a partir dos acervos dos principais autores. É pouco provável que alguma
biblioteca universitária, seja ela pública ou particular, contenha essa riqueza documental.

E assim chega-se a uma possível solução para o problema das vanguardas poéticas visuais
do século XX. A resposta vem, para espanto de muitos, da internet. Com a ajuda dessa ferramenta
chegam-se aos principais trabalhos e documentos produzidos ao longo desses cinquenta e poucos
anos de poética visual no Brasil e Portugal. E tão importante quanto à disponibilidade on line desse
material é conhecer o que está sendo produzido pela nova geração de pesquisadores acerca dessa
poética, que vê se aproximar o reconhecimento devido da crítica literária no Brasil e em Portugal.
404
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

PATRONIO Y LUCANOR: PERSONAJES DE UN DIALOGO INFINITO

Isadora Desterro e S. Xavier (UEA)

El presente trabajo se propone analizar la relación del dialogo entre Patronio y el Conde
Lucanor tratando de explicarlo de tres maneras: primeramente en el plano de la historia, destacando
la influencia de la edad media en la dependencia señor- vasallo; en seguida analizar el juego que
hace el autor para construir los diálogos entrelazados de forma que la infinitud de los discursos sean
permanentes en el libro, y, por último, en el plano del discurso, ver como son establecidas las
formas del dialogo en el libro de Don Juan Manuel.

Lo que tiene por finalidad don Juan Manuel, en El Conde Lucanor, es presentar, a través de
la literatura, la tradición medieval de aconsejar. No solamente hay esa obra, como también otras,
cuyo principal objetivo es mostrar un personaje - generalmente perteneciente a la nobleza - que
depende de los consejos de un Ŗservo sabioŗ. La preocupaciñn de un carácter didáctico-moral en la
obra de Don Juan Manuel es notable y, además, lo que se presenta en destaque es también la moral
política presente en el texto.

La relación entre los vasallos y sus señores, en la edad media, podría ser entendida no
solamente como una forma de dependencia, sino como una correlación personal que había entre las
dos figuras principales del periodo medieval. Es decir, una correlación en el sentido de que el señor
ordenaba tareas al vasallo así como el vasallo daba consejos a su señor. Sin embargo, en El Conde
Lucanor, la representación de esa correlación se presenta con destaque para la figura del vasallo
que se sobrepone al señor, pues Patronio es quien, a todo tiempo, con sus consejos y enseñanzas,
guía al conde.

Mismo con la práctica constante de poseer el vasallo una relevancia o, todavía, una
influencia muy notable en la vida personal y política de su señor, esa experiencia está más resaltada
en el libro de Don Juan Manuel, pues en diversos pasajes, Patronio asume una importancia
indispensable en las decisiones del conde, sobreponiéndose como modelo de personalidad.

Más allá de las representaciones históricas de la figura del vasallo, se puede percibir en
Patronio, dentro del plano literario, un destaque en su nombre, pues está fuertemente ligado a su
función en el libro: El nombre Patronio se acerca de la palabra patrono, patrón, aquel que cuida- o
mismo Řpadreř, como plantea Marta Ana Diz1. O sea, mismo Patronio poseyendo su posición de
vasallo, con sus tareas de consejero, actitudes y enseñanzas, cambia su lugar para un personaje que

1
DIZ, Marta ana, El lugar interior, sus voces. In: Patronio y Lucanor: La lectura inteligente en el tiempo que es turbio,
Potomac, 1984.

405
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

tiene una total autonomía en el texto, pues presentase no solamente como un ayudante del conde,
sino como su propia Ŗcabezaŗ , ya que cabe a él pensar de manera más sensata con la finalidad de
guiar todo lo que pasa a Lucanor.

No obstante, mismo cuando se hace la relación entre las lecciones de Patronio y los consejos
que daban los vasallos a sus gran señores en la edad media, dónde el vasallo debería ser un hombre
muy sabio, lo que debe ser destacado en el libro de don Juan Manuel en su propósito que está
explicito en el prólogo, pues cuando afirma ―ningún omne se semeja del todo en la voluntad nin en
la entención con otro‖ habla también a respecto de la influencia que se debe o no tener en la
opinión del otro, es decir, nadie debe pensar de la misma forma, el entendimiento es particularmente
distinto en cada humano y las diferencias de pensamiento deben ser, no solamente respectadas, sino
también cumplidas.

Así, el dialogo entre el Conde Lucanor y Patronio tornase infinito: siempre preguntará el
Conde a Patronio, pues la dependencia creada a partir de las opiniones de su servo es tan
fuertemente marcada en el dialogo hecho por don Juan Manuel, que se percibe una infinitud de
situaciones creadas por el conde, para seguir con total seguridad los consejos de su vasallo-patrón.

El libro tendrá la función de enseñar, pues como un fiel representante de su clase social, a
don Juan Manuel le preocupa que los demás aprendan y, por eso, escribe con esa intención. En el
prólogo de El Conde Lucanor, remarca la necesidad de entender, pero sin descartar el cuidado del
cuerpo y los bienes materiales, porque aún cuando no lo diga abiertamente, el mensaje de don Juan
Manuel se presenta a favor de los privilegios de sus iguales, pues siempre al referirse a los peligros
que acercan al hombre, se refiere a la nobleza. Los Ŗdaðosŗ que puede sufrir, relatados a Patronio,
están siempre relacionados con situaciones sociales o económicas del propio conde como una
alegoría para representar los daños que solamente puede sufrir un noble, y, de esa forma, describe a
su consejero, de forma exhaustiva, las situaciones que pueden ser amenazantes para su orden, afín
de lograr un buen consejo de Patronio.

El libro empieza, así, a desarrollar una serie de diálogos sueltos, pues, a pesar de que la
conexión hecha por el conde sea siempre una situación de su vida para que de ahí salga una
enseñanza de Patronio, lo que se percibe es que no se necesita de un orden para iniciar la lectura de
los ejemplos, pues el dialogo tiene por su principal característica la eternidad, o sea, no importa por
dónde se inicia a leer el libro, siempre habrá la situación que expone el conde a Patronio, seguida de
su respuesta con la finalidad de aclarar los caminos de su señor. Hay, entonces, un entrelace en los
ejemplos del libro por la constante insistencia que retoma el conde en hacer cuestionamientos a
Patronio, y esa conversa infinita presente en el texto se define y se sustenta debido a la construcción
del dialogo que hace don Juan Manuel en el libro.

Para se tomar en cuenta la infinitud del dialogo de los dos personajes, se puede percibir en el
libro, las mismas características formales y temáticas presentes en cada diálogo Ŕ y eso refuerza la

406
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

idea de repetición de la conversación, es decir, como se siempre pasase lo mismo durante todo el
libro, sin embargo, no se puede dejar de tener narraciones y diálogos en el libro, pues sin diálogos
no habría ningún ejemplo, puesto que todos empiezan con un diálogo entre el conde Lucanor y
Patronio.

Lo que aparece como destaque como característica presente de un diálogo, en el escrito de


don Juan Manuel, es la presencia del verbo dicendi en el inicio de la historia que cuenta el conde a
Patronio, como: El conde Lucanor fablaba un día con Patronio, su consejero, y díjole así: (…) (
DON JUAN MANUEL, Ejemplo XXVII). Esa estructura nunca ocurre de forma inversa al modelo
destacado.

La conversación posee un tiempo indeterminado, así como un espacio, pues, aunque se


pueda saber el tiempo que ocurre por las características históricas del libro- con estudios medievales
a respecto del autor y de las practicas de la época- no se presenta un tiempo correcto de cuando se
pasó al conde las situaciones que cuenta a Patronio. Eso se puede percibir y identificar por las
expresiones Ŗun díaŗ y Ŗotra vezŗ , por ejemplo.

Otra cuestión con respecto a la repetición del dialogo es la finalidad didáctica que tiene, pues
lo principal tema que se puede percibir en El Conde Lucanor es la preocupación del conde con los
daños que va a sufrir caso no decida de forma correcta el camino a seguir y, en cambio, la idea que
tiene Patronio es de advertir, cuidar y alertar al conde lo que se debe hacer para no sufrir malas
consecuencias en el plano moral y afectivo. Así, de forma repetida, siempre el planteo inicial de la
cuestión, será hecho por el conde, y la narración de la fábula, el relato enmarcado, para fines
didácticos, siempre será una tarea de Patronio.

El eje estructural del dialogo se constituye, entonces, a partir de los ejemplos, pues a partir
de una pregunta del conde Lucanor, le contesta Patronio con un relato de enseñanza y, al final de
cada ejemplo, con una moraleja sintetizada en versos. Así, la disposición de los diálogos entre los
dos personajes está marcada por la introducción que hace el conde, con el desarrollo breve y
conciso que cuenta Patronio, y el desenlace se cumple con la moraleja para el lector. De esa forma,
don Juan Manuel construye una historia en la narración de Patronio solo para poner en destaque la
moraleja, que es lo que hay de didáctico en la obra, pero con eso logra la atención y atracción del
lector en el conjunto de narraciones dialogales que siguen, mismo que no haya un hilo entre ellas.

Como afirma Gómez Redondo1, los autores medievales relacionaban el sentido de la


creación dialógica con la visión lingüística que tenían del mundo, es decir, la finalidad dialógica
estaba siempre entrelazada con la finalidad didáctica del texto. Eso se puede percibir claramente en
la obra de don Juan Manuel, ya que el diálogo solamente ocurre por la finalidad didáctica que busca
presentar Don Juan Manuel en su libro, logrando utilizar la situación de sus personajes como una
escena que, alegóricamente, puede representar la enseñanza y ejemplificar el aprendizaje que desea

1
GOMEZ REDONDO, Fernando. El diálogo en El Conde Lucanor, In: Nueva revista de enseñanzas medias.
407
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

pasar a sus lectores, es decir, la escena de lo que se puede tener como un aprendizaje en el libro está
representada a partir del dialogo de Lucanor con Patronio.

Lo que hace Goméz Redondo, desde el principio de su texto ŖEl diálogo en ‗El conde
Lucanor‘‖, es relacionar el desarrollo de la lengua vernácula con la idea de una formación de
dialogo en el sentido lingüístico dentro del periodo medieval. Hace la observación de que el marco
dialogal aparece solamente introducido con el verbo dicendi y también hace referencia a las
repeticiones de una misma intervención dialógica en el libro.

Sin embargo, se puede notar un desarrollo evolutivo en el proceso dialógico de El Conde


Lucanor. Y eso sólo es posible percibir debido a una organización estructural interna presente en el
contexto, como cuando hace el autor a utilizar expresiones repetidas al largo del texto, como:

- Señor conde Lucanor- dixo Patronio- en los grandes fechos et muy dubdosos son muy
periglosos los consejos. Ca en los más de los consejos non pueden recodir las cosas. 1

- Señor conde Ŕ dixo Patronio- un omne bueno avía una casa en la montaña, et entre
las cosas que criava en su casa, criava siempre muchas gallinas et muchos gallos (…)2

El dialogo tornase, entonces, parte fundamental del texto y, como afirma Goméz Redondo,
las ideas están encadenadas a partir de ese repeticiñn del Ŗeŗ aliado al verbo decir, como aparece al
largo del texto la expresiñn Ŗe dixole (…)ŗ . A partir de esas frases sintetizadoras el texto enmarca el
personaje que va a hablar en el momento, diferenciándole del receptor.

A través de un texto hecho a partir de diversas significaciones, presentando así, una gran
profundidad semántica y una riqueza del lenguaje en el texto, lo que se percibe también es la
calidad de la competencia artística que posee don Juan Manuel en la formulación de sus diálogos:

El cuento entero se vertebra sobre el dialogo; esto sucede en los exemplos de mayor
extensión; es curioso que se encuentren en la segunda parte del libro: don Juan Manuel
debió ir perfeccionando su técnica hasta convertirla en una posibilidad estructuradora
argumental.3

Sin embargo, más allá de la forma estructural del texto Ŕel conde plantea un problema en un

párrafo, el desarrollo ocurre con el ejemplo que cuenta Patronio, y, por fin, se presenta en el párrafo

final la enseñanza acompañada de la moraleja en verso Ŕ los cuentos de Patronio tienen un

desarrollo interno en su propia historia, es decir, los cuentos tienen una libertad en relación al

problema inicial que plantea el conde. Así Marta Ana Diz, señala la posibilidad de Patronio poseer

1
Don Juan Manuel, El conde Lucanor, Buenos Aires: Ed. Crítica,p. 63-64.
2
Don Juan Manuel, El conde Lucanor, Buenos Aires: Ed. Crítica,p. 64.
3
GOMEZ REDONDO, Fernando. El diálogo en El Conde Lucanor, In: Nueva revista de enseñanzas medias.

408
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

un doble discurso, o sea, dice que más allá de tener solamente un discurso en su dialogo con el

conde Lucanor, existe también una Ŗvoz escritaŗ actuante en el texto.

Lo que ocurre con Patronio es un aumento progresivo no solamente de su importancia como


personaje, pero también como narrador del texto, pues su papel dialógico aumenta hasta tal punto,
que tiene un papel no solamente de aquél que cuenta una historia al conde, sino de un interventor
entre la historia contada y la realidad del conde, como en el ejemplo de la raposa y del cuervo:

Et, señor conde Lucanor, parat mientes que, marguer que la entención del raposo era para
engañar al cuervo, que sienpre las sus razones fueron con verdat. Et set cierto que los
engaños et damños mortales sienpre son los que se dizen con verdat engañosa. 1

En ese ejemplo, hay un quiebre en la linealidad del ejemplo, pues Patronio hace una
moderación entre la historia contada y la realidad que intenta revelar al conde, interviniendo, a
través de una opinión personal, y anticipando la moraleja, que sería explicada en el fin del ejemplo,
al conde. Esa intervención de Patronio marca, entonces, el grado de importancia que tiene en el
libro, pues hasta ahí, solamente ha intervenido el propio autor, para decir directamente la moraleja
sintetizada en versos para el lector, al fin del texto.

Con esa capacidad evolutiva del discurso de Patronio, Don Juan Manuel lo iguala en un
mismo nivel de importancia que tiene sus intervenciones, pues el personaje hace un progreso de la
simples función de personaje para de mediador del texto.

A respecto de la infinitud del dialogo, como bien señala Marta Diz, el Conde Lucanor
plantea esa cuestión cuando dice a Patronio que en todo su vida nunca dejará de hacerle preguntas y
de escuchar a sus saberes. De esa forma, se percibe que no solamente en la estructura textual - el
dialogo como forma lingüística de comunicación - como también en el ámbito del texto literario, el
diálogo en la obra de don Juan Manuel se construye paradójicamente y de forma cíclica: entre la
escritura de Don Juan Manuel y la oralidad de Patronio, entre el silencio y el habla, la verdad y
engaño, y principalmente, entre la finitud del dialogo , pues está cerrado en la forma física del libro
y la infinitud subentendida a partir de las palabras que dice el conde a su consejero: en toda la mi
vida nunca dexaré de vos preguntar(…).

1
Don Juan Manuel, El conde Lucanor, Buenos Aires: Ed. Crítica,p.43.

409
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

COMUNIDADES INTERPRETATIVAS DE AUTORES E LEITORES DE BLOGS LITERÁRIOS

Jéssica de Souza Carneiro (UFPA)1

1) Introdução

Entramos no século XXI testemunhando uma transformação histórica nas formas de


expressão e de representação do pensamento por meio da escrita. Essa mudança está intimamente
relacionada com o surgimento de amplos contingentes populacionais providos de informática e
telefonia, conectados por Internet, via de fibras óticas, satélites, microondas e um turbilhão de
aparatos e potencialidades digitais, os quais resultam no fenômeno que conhecemos como
convergência digital, em que as ferramentas de comunicação são unificadas e rompem a tradicional
relação espaço-tempo: virtualiza-se a realidade.
A passagem da informação do papel para a tela está trazendo algumas novas configurações
para a produção de conteúdo. Estudos recentes investigam o surgimento do que seriam formatos
próprios da narrativa nos meios digitais, baseados, principalmente, na hipermídia2. A produção do
discurso literário, no espaço virtual, tem se aproveitado desses recursos, configurando novas formas
narrativas e novas linguagens, oferecendo possibilidades de um autor, por exemplo, se transformar
em personagem, interagir com outros autores e leitores como personagem e distanciar-se de suas
próprias características e da sua própria identidade. Por outro lado, oferece também a possibilidade
de que o autor seja ele mesmo e se expresse como quiser. Assim, compreendemos que, nos tempos
contemporâneos, as tecnologias digitais criam uma nova forma de interação entre autor/obra,
autor/leitor e leitor/obra.
Tendo em vista conceitos de Hans Robert Jauss (1982), um dos principais teóricos dos
estudos da recepção, percebemos que a Internet surge no momento em que ocorre uma certa
mudança no paradigma da investigação literária e discursiva, que remete o ato da leitura a um duplo
horizonte: o implicado pela obra (ou pelo autor) e o projetado pelo leitor. No caso específico do
exemplo que vamos utilizar, os blogs3 de crítica literária, os autores (blogueiros) figuram também
como leitores, que, primeiramente, recebem a literatura, conferem a ela uma determinada
significação e a ressignificam na medida em que a criticam e publicam essas críticas para livre

1 Jornalista, Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará (UFPA), 2010-2011.
(jessica@ufpa.br), sob orientação da profa. Dra. Lilia Silvestre Chaves (UFPA).
2 Hipermídia é a reunião de várias mídias em um único suporte computacional, por sua vez, suportado por sistemas
eletrônicos de comunicação. O conceito foi criado em 1960 por Ted Nelson, filósofo e sociólogo estadunidense.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hiperm%C3%ADdia>. Acessado em 7 jun. 2010.
3 Um blog é um site cuja estrutura permite a atualização rápida a partir de acréscimos dos chamados artigos ou posts.
Estes são, em geral, organizados de forma cronológica inversa e podem ser escritos por um número variável de pessoas.
Um blog típico combina texto, imagens e links para outros blogs, páginas da web e mídias relacionadas a seu tema. A
capacidade de leitores deixarem comentários de forma a interagir com o autor e outros leitores é uma característica à
parte. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Blog>. Acessado em 23 out. 2009).

410
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

acesso e interpretação de um público que pode ser particular ou muito mais amplo, e que interfere
nessa produção.
Os suportes digitais de comunicação propõem, então, uma nova configuração da escrita e da
leitura. Considerando que um texto não possui significado fora de um conjunto de pressuposições
que dizem respeito tanto ao que os caracteres significam quanto à maneira como devem ser
interpretados, conforme postula Stanley Fish (1980), temos a capacidade de interpretar porque
somos parte de uma comunidade interpretativa. Embora saibamos que o conceito de Fish seja
bastante controvertido no meio acadêmico devido estar baseado em um ponto de vista relativístico,
ele nos permite o entendimento de que os blogs estão no centro de uma relação em que há um uso
social específico de um tipo específico de mídia: a Internet.
Dessa forma, os condicionamentos e determinações sociais a que estão sujeitos os autores e
leitores de blogs refletem a complexidade e a variabilidade das respostas dessa audiência às
mensagens midiáticas que encontramos nos espaços de posts e comentários enquanto mediadores de
uma multiplicidade de leituras. Está em jogo a maneira pela qual o texto e as audiências, assim
como a interação entre eles, são assimilados no contexto crítico atual. De acordo com o modelo
Encoding/Decoding, de Stuart Hall (1980), citado em Schramm (2005)1, Ŗa recepção não é nem
aberta, nem transparente, e a cadeia comunicativa não opera de forma unilinear. Toda mensagem é
passível de inúmeras leituras possíveis, não existe um significado fixo e únicoŗ .
Ainda com Hall, entendemos que a audiência constitui a interpretação e que a recepção é o
momento em que os discursos do texto encontram os discursos do leitor, de modo que a leitura não
é uma ação puramente individual ou subjetiva, mas é compartilhada por pessoas que compartilham
práticas e formações culturais específicas. Schramm (2005, p.12), citando Fish (1980), dá o seguinte
exemplo: Ŗuma comunidade específica Ŕ a comunidade literária Ŕ produz interpretações
Řautorizadasřŗ . Nesse sentido, experiências de leituras compartilhadas tendem a interpretações
compartilhadas, do mesmo modo que leitores diferentes lêem diferentemente. Adiante veremos que,
como um dos usos possíveis da ferramenta, os blogs de crítica literária, colocam a literatura em
movimento, unindo opinião crítica à opinião do leitor, ambas compreendidas como experiências de
leitura compartilhadas.
Estando inseridos em comunidades sociais diversas, os autores e leitores de blogs de
literatura representam um segmento de navegadores da Internet que, no plano interpretativo,
reconhecem-se como partícipes de processos interdiscursivos, os quais se concretizam no encontro
entre textos e receptores mediante a tela do computador.
Para compreender a relação estabelecida entre críticos e leitores, considerando que todo
crítico é um leitor e todo leitor é, de certa forma, um crítico, partimos da ideia de que o fazer do
crítico e a recepção do leitor, nos blogs, enquanto ferramenta midiática de uso social, se mesclam,
interagem e se confundem. O que acontece é que a expressão escritural é assimilada pela

1 Disponível em: <http://www.facom.ufba.br/midiaerecepcao/textos/2005/luanda_schramm.pdf>. Acessado em: 2 jun.


2010.

411
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

comunicação mediada por computador e isso culmina na incessante troca de papéis que faz do
crítico um leitor e do leitor um crítico, expressa claramente nesses espaços de livre acesso e
veiculação de informações ofertados pela Internet.
Podemos dizer, então, que o blogueiro é um intérprete que exerce a função de crítica literária
e que o leitor pode encontrar nessa interpretação particular, uma interpretação que lhe convém, uma
vez que, nesse sentido, autor e leitor de blogs integram uma mesma comunidade interpretativa. Os
blogs são, portanto, a ponte que coloca em contato, por meio da interpretação crítica, a obra e o
leitor. O processo se dá de forma mediada por um autor que é, ao mesmo tempo, intérprete, e, pela
Internet enquanto suporte de comunicação. Essa análise entra em consonância com a hermenêutica
das interpretações múltiplas de Jauss (1982, p.24), quando este afirma que a interpretação
tradicional de um texto pode ser reconduzida aos níveis de uma ressignificação e conceber a
interpretação contínua de textos como resultante de um processo de recepção produtiva.
Um processo de recepção produtiva é aquele que pressupõe a compreensão de algo como
resposta, continua Jauss, citando Gadamer, de modo que a interpretação, dessa forma, se concretiza
na alteridade do autor com o leitor e vice-versa. Isso se manifesta na interatividade permitida pela
comunicação mediada por computador, não só do ponto de vista subjetivo, como também
tecnológico, na medida em que o leitor pode comentar de forma online os textos de um blogueiro ou
então decidir com autonomia o seu próprio percurso de leitura a partir dos links1 que configuram o
hipertexto2.

2) Da cultura impressa à cultura digital

O advento das novas tecnologias trouxe uma nova configuração para os procedimentos da
comunicação escrita. Mediadas pelo computador, as práticas de escrever, produzir sentido,
transmiti-lo e recebê-lo se adaptam, na contemporaneidade, a um método de comunicação
eletrônica. As mudanças geradas por esse processo provocam efeitos estéticos e também culturais,
que se refletem nas manifestações literárias, as quais, agora na tela, continuam demandando leitura
e interpretação, mas com características diferenciadas.
Lajolo e Zilberman (2009, p.27) afirmam que a escrita muda através do tempo, porque
mudam os suportes e as suas formas de materialidade:

Com o passar do tempo, a difusão da escrita acompanhou-se da multiplicação dos suportes


que garantiam seu registro: tabuletas de argila, madeira, pedra, pergaminho, papel, disco
rígido, CD e pendrive, a escrita experimentou possibilidades mais diferenciadas de
armazenamento, algumas mais frágeis, outras supostamente mais resistentes, capazes de
conservar seu conteúdo por séculos. Essas mutações são acompanhadas pela variedade de
formatos que a escrita assumiu pelos distintos instrumentos de fixação (o estilete, o lápis, o
teclado, o mouse), pelas diferenças ortográficas, pelas discussões sobre seus padrões (culto

1 Links são palavras que em um texto disposto na internet funcionam como pontos de conexão desse texto com outros
textos e que oferecem ao usuário diferentes trilhas de leitura.
2 O hipertexto é um bloco de texto unidos por links eletrônicos, que formam um conjunto de conexões entre palavras,
páginas, fotografias, imagens, gráficos, sequências sonoras e outras linguagens.

412
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ou popular, urbano ou rural) e sobre o modo mais correto de se expressar (LAJOLO;


ZILBERMAN, 2009, p.29).

Hoje, por exemplo, no século XXI, a informação escrita, mediada por computador, se torna
muito mais efêmera e descartável. Regulada pelos procedimentos da comunicação eletrônica, a
escrita tem as mesmas finalidades do passado, porém, já não mais os mesmos efeitos. ŖAs
mudanças por que passam os suportes da escrita determinam igualmente alterações nos modos de
leitura do textoŗ, dizem Lajolo e Zilberman (2009, p.29). As práticas de leitura, nesse momento,
estarão em constante transformação, embora guardem uma aproximação imutável com as práticas
desenvolvidas há milênios, pois dependem, sempre, do olhar de um leitor.
Assim, ao se transportar a escrita do papel para o meio digital, as formas de ler passam a
encarar as novidades resultantes das tecnologias mais sofisticadas. Na comunicação mediada por
computador, é a leitura que dará acesso ao universo virtual do ciberespaço1 (LÉVY, 1999). Uma
vez na tela, a escrita oferece novas possibilidades à interpretação mediante os códigos específicos
do suporte em questão, os quais exigem formas particulares de manipulação. Em uma leitura online,
por exemplo, os links possibilitam um percurso não-linear de acesso à informação, e, o hipertexto
associa a escrita à imagem e ao som, dentre outras linguagens.
Ainda com Lajolo e Zilberman, percebemos que Ŗa escrita, no meio digital, produziu seu
prñprio cñdigoŗ (2009, p.34). No caso do objeto de estudo em questão, os blogs são espaços em que
um autor pode tratar um leitor desconhecido com intimidade. Fica claro, portanto, que a escrita,
enquanto manifestação literária no ciberespaço, provoca alterações também no processo de
recepção, onde o receptor, com os recursos da Internet, não é mais um sujeito passivo. ŖAo
contrário do leitor da era de Gutemberg, o internauta pode captar várias mensagens
concomitantemente ao operar com janelas simultâneas, escolhidas de modo voluntárioŗ (LAJOLO;
ZILBERMAN, 2009, p.34).
Com a Internet, a experiência do ler e escrever se torna múltipla, o que dissolve a rigidez
fundamental em que se baseia a teoria literária e as práticas críticas do passado. O cenário dos links
e hipertextos chama atenção para as particularidades das relações entre autores e leitores virtuais,
uma vez que são os autores que criam os links, mas os leitores que decidem a ordem de conexões da
sua trilha de leitura. O leitor, agora, pode interferir no funcionamento da Ŗobraŗ e colaborar para sua
criação. Nesse sentido, os blogs são exemplos fundamentais, pois representam um espaço de
expressão inteiramente original, na medida em que possibilitam a manifestação do autor e o
estabelecimento de uma interatividade deste com seu leitor, podendo ambos transitarem de uma
condição à outra.

3) Blogs: um breve histórico

1 O ciberespaço é definido por Lévy (1999, pág. 92) como Ŗo espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial
dos computadores e das memñrias dos computadoresŗ.

413
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A definição clássica afirma que blog é um diário virtual mantido por um usuário na Internet.
O fenômeno dos diários eletrônicos, criados em 1999, começa a ganhar impulso a partir dos anos
2000. Concebido como um espaço em que o blogueiro pode expressar o que quiser, e gratuitamente,
por meio da atividade literária, com a escolha de imagens e de sons que podem compor o todo do
texto veiculado pela Internet, o blog possibilita a manifestação do modo narrativo em formato de
hipertexto, uma vez que os chamados posts (entrada de texto efetuada num blog) podem conter
muitos elos para acesso externo a outros blogs e outros textos através dos pontos de conexão
chamados links.
Dentre outras características, as narrativas hipertextuais publicadas em blogs são
organizadas em uma linha cronológica de tempo, de acordo com a data de publicação; estão
associadas a seções para a publicação de comentários dos leitores; e geralmente apresentam
linguagem informal e espontânea, que revelam o uso de verbos na primeira pessoa do singular.
Ferrari (2007) os define como um dos mais evidentes produtos da revolução digital:

Se no ano 2000 os primeiros blogs ainda começavam a tagarelar na web, já na primeira


metade desta década o fenômeno totalizava nada menos que 30 milhões de endereços,
reunindo mais de 700 mil atualizações diárias, o equivalente a 29 mil publicações por hora.
A cada minuto, milhares de blogs são criados na rede, num ritmo de crescimento cuja
consequência ainda é mistério para os meios de comunicação (FERRARI, 2007, p.42).

Ainda segundo Ferrari, os blogueiros, de um modo geral, têm mostrado que a grande rede é
um Ŗprato cheioŗ para a verve literária, uma vez que os blogs oferecem um interessante objeto de
estudo para uma análise que compreende o hipertexto como uma linguagem híbrida, que supera a
dicotomia dos interesses da tradição da oralidade e da escrita. Surge, então, Ŗum novo canal de
mídia capaz de criar unidade global [através da conexão via Internet], em que os membros de
qualquer unidade cultural ou linguística [comunidades interpretativas] podem se organizar e agir de
forma virtualŗ (2007, p.70), o que implica numa descentralização do sujeito escritor e do sujeito
leitor em diversas vozes e funções.

4) Um estudo de caso

Para ilustrar essa discussão, tomamos para análise dois blogs que se propõem de crítica
literária, disponíveis para livre acesso na Internet: o ŖLiberal, libertário e libertinoŗ 1 e o ŖTodo
Prosaŗ 2. Os espaços são definidos como blogs pelos próprios autores, independentemente do

1 <http://www.interney.net/blogs/lll/>
2 <http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/>

414
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

domínio que ocupam na Internet e são regularmente atualizados. Seus autores são blogueiros que,
na Ŗvida realŗ, atuam também como escritores.

Figura 1 – Blog ŖLiberal, libertário e Libertinoŗ

ŖLiberal, libertário e libertinoŗ é de autoria de Alex Castro e definido pelo próprio autor
como ŖUm blog sobre rebeldia, contemplação e sacanagem, regado a muita literatura e humorŗ . O
espaço traz posts sobre assuntos diversos, sobretudo análises de obras publicadas e comercializadas
no mercado. Uma prova da grande audiência desse blog pode ser medida pela quantidade de
comentários feitos por leitores em cada um dos posts, que variam em um número de um a 20,
dependendo do tema tratado. O autor aproveita o espaço para resenhar e apresentar trechos de livros
dele mesmo ou de suas experiências de leitura, colocando-os à venda.
Vejamos o texto que se segue, datado de 02.06.2010 e intitulado ŖNarrativas em Primeira
Pessoaŗ :

Texto 01:
02.06.10
• 7 comentários
Narrativas em Primeira Pessoa
Hoje em dia, ainda mais em um país onde quase cada pessoa
alfabetizada leu Dom Casmurro, toda narrativa em primeira
pessoa é (ou deveria ser) contra o narrador.
Então, um pedido:
Não presuma que o escritor concorda com as opiniões
emitidas por seus narradores.

(Dado o cenário literário atual, eu diria que quase sempre as


opiniões do escritor são opostas às do narrador em primeira pessoa. Aliás, quanto melhor o livro, mais opostas. Só
mesmo autores novatos ainda cometem narradores em primeira pessoa que, na verdade, são alter-egos deles mesmos.)

415
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Outro pedido, portanto, mais encarecido ainda:


Evite citar um personagem como se fosse o escritor.

(Quem disse "ser ou não ser" não foi Shakespeare, mas o personagem Hamlet, na peça homônima de Shakespeare.
Quem disse que não teve filhos e não transmitiu a nenhuma criatura o legado de nossa miséria não foi Machado de
Assis - que, por acaso ou não, também não transmitiu a nenhuma criatura o legado de nossa miséria - mas o personagem
Brás Cubas, no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Sacou?).
Em nome de todos os escritores de ficção - vivos, mortos ou ainda não-nascidos - eu agradeço.
Obra completa de Machado de Assis, de R$650 por R$521. Teatro completo de Shakespeare, de R$327 por R$245.
Comprando por aqui, você economiza, ajuda a manter seu blog preferido e acumula pontos cármicos. Além disso, o
Submarino parcela tudo em trocentas vezes sem juros no cartão.

Neste exemplo podemos claramente notar o uso de links que levam o leitor desse texto para
outros textos. Ao demonstrar uma opinião pessoal sobre a leitura que fez sobre ŖDom Casmurroŗ ,
ŖMemñrias Pñstumas de Brás Cubasŗ e ŖHamletŗ , o blogueiro se posiciona como crítico que já
passou pela condição de leitor de Machado de Assis e de Shakespeare. Ao relacionar as obras e dar
orientações (em negrito) de forma imperativa a outros leitores e autores, ele se coloca como
Ŗentendedor autorizadoŗ do assunto e interage com o público na medida em que evoca a
contrapartida de quem o lê com termos como Ŗsacou?ŗ . Destaque para a linguagem informal, a qual
demonstra que o blogueiro não adota a postura clássica de um crítico que, na história da tradição
textual, sempre se faz culto e prolixo. As variações e características apontadas são permitidas
apenas pelo ambiente virtual, que oferece livre espaço para a expressão da subjetividade e estilo do
autor.
Percebemos que Alex Castro é um escritor real, que tem sua própria produção, mas que não
deixa de buscar referências, enquanto leitor, de outras obras, desempenhando, de forma virtual, a
função de intérprete e, portanto, de crítico, na medida em que visa despertar o interesse do público
pela compra das obras que comenta em seu blog, assumindo também o papel do editor e do
empresário comercializador de livros, mas que, nesse caso, utiliza um espaço gratuito para fazer
negócios financeiros e lucrar com anúncios publicitários.
Figura 2 – Blog “Todo Prosa”

416
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Em ŖTodo Prosaŗ , ao contrário, encontramos o padrão da língua culta e uma opinião


respaldada pela descrição do perfil do autor do blog: ŖSérgio Rodrigues - Escritor, está lançando
'Sobrescritos Ŕ 40 histórias de escritores, excretores e outros insensatos'. Publicou também o
romance histórico 'Elza, a garota', além de 'O homem que matou o escritor' e 'As sementes de
Flowerville', entre outros livros. Jornalista, trabalhou como repórter, colunista e editor na maioria
das principais empresas de comunicação do paísŗ . O blog em questão é atualmente hospedado pelo
domínio do Portal Veja.com, revista da Editora Abril, o que atrai grandes quantidades de leitores.
Um único post em ŖTodo Prosaŗ já chegou a contabilizar quase 200 comentários online de leitores.
E a interatividade com o público é uma das principais atrações do blog, que apresenta seções, como
a que analisaremos a seguir: ŖComeços inesquecíveisŗ, e m que o blogueiro pede a ajuda dos leitores
para eleger os melhores parágrafos iniciais de prosa de ficção da história da literatura.
Eis o que o autor publicou em 30.08.2009:

Texto 3:
30/08/2009 - 10:04

Começos inesquecíveis: uma seleção (I)


Em quase três anos e meio de Todoprosa, foram tantos os Começos Inesquecíveis que já me esqueci de uma parte
deles. Talvez tenha chegado a hora de, como dizem em sala de aula, recapitular a matéria. Domingo que vem a seleção
continua. E quem sabe, os leitores se animando, a gente possa eleger aqui, no fórum da caixa de comentários, o mais
inesquecível entre os inesquecíveis?
Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da
língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo.
Li. Ta. (Vladimir Nabokov, ŖLolitaŗ. )

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar
aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. (Gabriel García Márquez, ŖCem anos
de solidãoŗ. )

Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ―Sua mãe faleceu.
Enterro amanhã. Sentidos pêsames‖. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem. (Albert Camus,
ŖO estrangeiroŗ. )

Era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha-mu que vinha andando pela estrada e a
vaquinha-mu que vinha andando pela estrada encontrou um garotinho engraçadinho chamado bebê tico-
taco. (James Joyce, ŖUm retrato do artista quando jovemŗ. )

Devo à conjunção de um espelho e uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar. (Jorge Luís Borges,
ŖTlön, Uqbar, Orbis Tertiusŗ. )

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e
consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem
leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. (Machado de
Assis, ŖMemñrias pñstumas de Brás Cubasŗ. )

Robert Cohn fora campeão de boxe na categoria dos pesos-médios em Princeton. Não pensem que esse
título me impressione. Mas significava muito para Cohn. (Ernest Hemingway, ŖO sol também se
levantaŗ. )

Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua
cama, numa espécie monstruosa de inseto. (Franz Kafka, ŖA metamorfoseŗ .)

Autor: Sérgio Rodrigues - Categoria(s): Sem categoria

417
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

 159 comentários

A eleição rendeu 159 votos e outros três posts sequenciais em que os leitores tinham que
escolher entre novas opções para se chegar ao resultado final. As sequências foram de 86, 100 e 188
comentários, respectivamente. Nesse caso, observamos a experiência do escritor como leitor das
obras clássicas da literatura mundial e sua Ŗautoridadeŗ como crítico ao julgar quais delas poderiam
apresentar ŖComeços Inesquecíveisŗ . Podemos dizer que o blogueiro pertence à mesma comunidade
interpretativa de seus leitores na medida em que, presume-se, autor e público compartilham as
mesmas experiências de leitura e utilizam a Internet como espaço social para o debate sobre os
efeitos que tais leituras produziram a partir de uma interpretação subjetiva.
Ao evocar a opinião e o voto do leitor, o blogueiro também concebe seu público como
desempenhante de uma função de intérprete, pois considera cada um dos comentários postados na
repercussão de seu texto para chegar à conclusão definitiva de que o começo Ŗinesquecível mais
inesquecívelŗ de todos os tempos é o do romance ŖAna Kareninaŗ , de Leon Tolstoi (tradução de
João Gaspar Simões).
Transcrevemos abaixo alguns dos Ŗvotos-comentáriosŗ postados na última seleção, datada
de 20.09.2009, que envolveu as seguintes obras ŖLolitaŗ , de Vladimir Nabokov; ŖO estrangeiroŗ , de
Albert Camus; ŖAna Kareninaŗ , de Leon Tolstoi; ŖGrande sertão: veredasŗ , de Guimarães Rosa;
ŖMoby Dickŗ , de Herman Melville; e ŖMemñrias do subterrâneoŗ , de Fiodor Dostoievski.

Tau disse:
20/09/2009 às 12:25
Ana Karenina, Tolstoi. Emocionante pela genialidade. Não era isso que Einstein queria, o todo na simplicidade? Genial,
genial, genial… Atual e futurista, psicanalítico e semente para políticas públicas, etc etc etc,…

Ronaldo disse:
20/09/2009 às 13:18
Por anos, fiquei na dúvida entre o início de ŖO estrangeiroŗ e o de ŖMetamorfoseŗ como o melhor de todos, apesar
desse de ŖLolitaŗ sempre reverberar na minha cabeça. Mas, depois de pensar bastante, fico, ainda inseguro, com o de
ŖAna Kareninaŗ .
O meu argumento para me convencer é: a frase alcançou o paraíso das obras de arte: perdeu vínculo com o seu autor e
hoje é repetida por todo mundo como se fosse um ditado popular.

Caio disse:

20/09/2009 às 15:35
O do Tolstoi é, com certeza, o mais profundo. Faz você pensar sobre as misérias que ocorrem conosco e como elas são
sempre peculiares. Mas o grande drama, desses todos, é o ŖMemñrias do Subterrâneoŗ (ou Notas do Subsolo). É um
tapa na cara de muita gente e um dos livros mais atordoantes que já li. Esse comecinho, aliás, resume bem o livro, não
precisa de mais nada. Aliás, bela escolha de repertório, todas as introduções são excelentes. Chega a ser um crime
querer compará-las entre si.

Vejamos agora trechos do post sobre o resultado:

418
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Texto 4:
07/10/2009 - 10:34

Começos inesquecíveis: Tolstoi é o campeão


Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.

A força de aforismo e o jeitão de verdade universal do início do romance ŖAna Kareninaŗ , de Leon Tolstoi (tradução de
João Gaspar Simões), conduziram o escritor russo a uma vitória incontestável na eleição do começo mais inesquecível
de todos os tempos. Como eu disse no já distante agosto de 2006, quando ele apareceu pela primeira vez aqui no
blog, esse início Ŗconseguiu virar aquilo que a maioria dos escritores sñ ousa perseguir em sonho: máxima, aforismo,
provérbio, dito popular, pérola de sabedoria que parece não ter dono, mas brotar diretamente do inconsciente coletivoŗ.
(...)
Confesso que, como torcedor, saio um pouco frustrado da disputa. Entre os seis finalistas escolhidos pelos leitores, torci
alternadamente por Camus (com a cabeça) e Nabokov (com a Ŗcarneŗ , como ele mesmo diria). Quando falo, ali em
cima, em Ŗjeitão de verdade universalŗ, é por desconfiar que a abertura campeã, vagamente enquadrável na categoria
jornalística do nariz-de-cera, tem mais forma do que conteúdo. Não sei se as famílias felizes são todas parecidas ou se a
infelicidade familiar carece de um denominador comum. Afirmar o contrário talvez funcionasse também. Mas é claro
que, sendo Tolstoi um ficcionista e não um terapeuta, ponderações como essas são meio tolas.
(...)
Autor: Sérgio Rodrigues - Categoria(s): Sem categoria
 19 comentários

É possível notar que a linguagem das narrativas hipertextuais que pudemos encontrar nos
blogs analisados, como vemos também neste último texto do ŖTodo Prosaŗ , que a literatura
praticada na web deixa de ser apenas um modelo estético para se tornar um modo de produção de
subjetividade em que a intimidade ou o pensamento são promovidos e anunciados como signo de
realidade e de autenticidade diante da tela do computador, ao mesmo tempo em que as
características do espaço virtual, por meio de possibilidades diversas de representação do sujeito,
ampliam a potencialidade do discurso de ficção, de forma que constroem um tipo de linguagem que
trabalha com o embaralhamento entre o real e o ficcional, e, entre os papéis historicamente
desempenhados por autor e leitor.

5) Considerações finais.

Esta análise possibilitou a observação das tendências assumidas pelo discurso literário na
contemporaneidade, quando entram em cena as novas tecnologias da comunicação. A partir de certo
momento sócio-histórico, é cada vez mais evidente a necessidade de se criar uma relação
diferenciada entre as formas poéticas tradicionais e os novos meios de difusão da mensagem. A
tarefa de compreender e interpretar a criação literária no ciberespaço pressupõe a compreensão da
leitura enquanto atividade ativa e criadora, que é produto de um processo criativo, o qual também
vem potencializado pelos recursos da tecnologia digital.
Chaves e Soares (2009), em artigo intitulado ŖLeitor e autor na era da textualidade
eletrônicaŗ afirmam que, de fato, o surgimento do hipertexto Ŗprovoca uma reviravolta na histñria
da escrita e reconfigura o papel do autor, mais do que nunca, um dos elementos da tríade (para não
dizer trindade Ŕ três em uma só pessoa?) autor-leitor e personagemŗ. Os avanços técnicos ligados ao
computador, portanto, como a hipermídia, apontam para uma nova forma de expressão da escrita
419
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

com base em meios audiovisuais e também para a necessidade de novos parâmetros de leitura e
fruição por parte dos receptores, os quais, simultaneamente, podem ocupar ainda o lugar de
emissores.
Na rede, cada Ŗnavegadorŗ é, ao mesmo tempo, um autor, cuja atividade consiste em fazer
alianças com novos elementos, e um leitor, capaz de redefinir e transformar seus componentes. Ou
seja, um autor, no ciberespaço, é um leitor moldado por relações heterogêneas (e vice-versa). ŖA
Internet é um novo espaço literário Ŕ ainda em construção. Ausência de fronteiras, fusão do oral e
do escrito, convergência dos papéis de leitor, autor, crítico e editor, aceleração e simultaneidade,
fragmentação e multilinearidade, virtualização do real e realização do virtual, assim se processa o
ler e o escrever no ciberespaçoŗ (CHAVES; SOARES, 2009, p. 173).
Por fim, entendemos que a Internet, no século XXI, entra em cena para democratizar a
informação e, portanto, o acesso ao texto literário. Na web, a literatura encontra uma veiculação
particular. Finalmente, compreendemos que as novas tecnologias da comunicação são tecnologias
da linguagem, e têm a capacidade de submeter essa linguagem a novas modalidades de tratamento.
Nesse mundo, nascidos na era digital compõem sua própria forma de produção, introjetam o hábito
da leitura ao molde de hipertextos e de forma cada vez mais aleatória, simultânea, subjetiva,
sensorial e heterogênea, fazendo do novo aparato ferramenta não apenas de recepção, mas de
produção e reprodução do conhecimento de textos literários.

Referências bibliográficas

CHAVES, Lilia Silvestre; SOARES, Izabel Cristina Rodrigues. Leitor e autor na era da textualidade
eletrônica. In: SALES, Germana; FURTADO, Marli (Orgs.). Linguagem e identidade cultural. João
Pessoa: Idéia, 2009. p. 165-174. ISBN 978-85-7539-464-9.

FERRARI, Pollyana. Hipertexto, hipermídia: as novas ferramentas da comunicação digital. São


Paulo: Ed. Contexto, 2007.

FISH , Stanley . ŖInterpreting the Variorumŗ . In: ____. Is there a text in this class? - The authority
of interpretive communities. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1980.

HALL, Stuart. ŖEncoding/decodingŗ. In:____. Culture, Media, Language. Working papers in


Cultural Studies, 1972-1979. London: Hutchison/CCCS, 1980.

JAUSS, Hans Robert. Por uma hermenêutica literária. Trad. Maurice Jacob. Paris: Gallimard,
1982.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. ŖDas entrelinhas do texto ao hipertexto on-lineŗ .


In:____. Das tábuas da lei à tela do computador – As leituras e seus discursos. São Paulo: Ed.
Ática, 2009.

SCHRAMM, Luanda. Comunidades interpretativas e estudos de recepção: das utilidades e


inconveniências de um conceito. Disponível em:
<http://www.facom.ufba.br/midiaerecepcao/textos/2005/luanda_schramm.pdf>. Acessado em: 2
jun. 2010.

420
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Blogs consultados

Liberal, Libertário e libertino. Disponível em: <http://www.interney.net/blogs/lll/>. Acessado em:


7 jun. 2010.

Todo Prosa. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/>. Acessado em 7 jun. 2010.

421
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

HOWARDS END E A TRADUÇÃO DE PERSONAGENS PARA O CINEMA


José Ailson Lemos de Souza (UFC)1
Carlos Augusto Viana da Silva (UFC)

Resumo: Em Howards End (1910), E. M. Forster levanta a discussão sobre a identidade inglesa, e
nesse sentindo, recorre à construção de duas personagens de ascendência germânica, as irmãs
Schlegel. É a partir da figura dessas irmãs que Forster trata de temas, tais como a posição da mulher
na sociedade inglesa e sua função intelectual, convergindo para os redimensionamentos sociais
ocorridos no início do século XX. Este trabalho tem como proposta analisar a tradução destas
personagens por James Ivory, no filme Retorno a Howards End (1992). Para tal, levantaremos
algumas considerações sobre aspectos intersemióticos entre literatura e cinema, tendo por base a
teoria da tradução intersemiótica de Plaza (2003) e os estudos da adaptação como tradução de
Catrysse (1992).

Palavras-chave: Tradução intersemiótica; Literatura; Cinema; Adaptação.

Abstract: In Howards End (1910) E. M. Forster discusses English identity, and in order to do so, he
constructs, two characters of German ancestry, the Schlegel sisters. It is from the representation of
these sisters that Forster deals with themes, such as womenřs position in society and their
intellectual activity, in the context of social changes that took place at the beginning of the 20th
century. This paper aims at analyzing the translation of these characters by James Ivory in the film
Howards End (1992). In order to do that, the intersemiotic relationships between literature and
cinema will be considered, taking as theoretical background the intersemiotic translation (PLAZA,
2003) and film adaptation as translation (CATTRYSSE, 1992).

Keywords: Intersemiotic translation; Literature; Cinema; Adaptation.

Introdução

A Merchant-Ivory, companhia cinematográfica independente formada pelo diretor


americano James Ivory, o produtor indiano Ismail Merchant e a roteirista alemã Ruth Prawer
Jhabvala, tornou-se conhecida internacionalmente pela adaptação de obras literárias, geralmente
contos e romances dos escritores E. M. Forster e Henry James. As décadas de 1980 e 1990 são
provavelmente o momento de maior reconhecimento e impulso deste gênero cinematográfico que
cumpriu, de acordo com Higson (2003), importante função na indústria do cinema norte-americano,

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará, bolsista da Fundação
Cearense de Amparo à Pesquisa (FUNCAP). Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Viana da Silva.
422
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

e relaciona-se de maneira complexa com a crise de identidade do cinema inglês. Em outras


palavras, os filmes de época deste período, em sua grande maioria produzidos na Inglaterra, e com
enfoque para a cultura inglesa, tiveram o duplo papel de dar novo fôlego à indústria cinematográfica
americana Ŕ afinal, são na verdade co-produções com grande participação hollywoodiana Ŕ e de
reconfiguração do cinema inglês.
Não causa surpresa observar, neste contexto, a recorrência à obra de Forster pela
Merchant-Ivory, com a adaptação de três de seus romances. O escritor inglês compôs,
principalmente através dos romances, uma interessante reflexão sobre a identidade inglesa. Para
essa questão específica, observa-se nos romances de Forster a oposição entre o indivíduo inglês,
oriundo da classe média alta, e o indivíduo de outra classe social ou de outra cultura.
Em Uma Janela para o Amor [A Room with a View] (1985), por exemplo, primeira
adaptação fílmica de uma obra de Forster pela Merchant-Ivory, a narrativa é construída
principalmente a partir do envolvimento problemático de uma jovem inglesa, Lucy Honeychurch,
com um italiano de origem humilde. Maurice [homônimo], (1987) traduz o romance em que Forster
aborda a visão da sociedade inglesa do início do século XX acerca da homossexualidade. E, por
fim, Retorno a Howards End [Howards End] (1992), adaptação pela Merchant-Ivory do romance de
Forster, em que a discussão sobre a identidade inglesa é bastante salientada. Tal discussão pode ser
compreendida por meio da observação das personagens Margareth e Helen Schlegel, e suas atitudes
e comportamento.
O objetivo deste trabalho é analisar a tradução destas duas personagens para o cinema,
ressaltando as estratégias de composição utilizadas por James Ivory em conformidade com o
sistema semiótico e gênero cinematográfico em questão. Para isso, primeiramente, faremos
considerações sobre a personagem de ficção, tanto na literatura quanto no cinema. Em seguida,
abordaremos algumas questões sobre a tradução intersemiótica e a adaptação fílmica. E por último,
examinaremos a construção das irmãs Schlegel e sua tradução para o cinema, considerando aspectos
do universo literário do autor.

1. A construção da personagem

A personagem na literatura

Dentre muitos elementos que representam a convergência entre a literatura e o cinema,


destacamos neste estudo a personagem. Outros fatores, comuns aos dois sistemas semióticos,
apontados por Diniz (2003, p.63) como possíveis objetos de análise comparativa, são o enredo, o
ponto de vista, o discurso figurativo, a alegoria, o símbolo, etc. Como se sabe, o cinema, em seu
início, procurou se estabelecer como linguagem artística, apoiando-se em técnicas narrativas
oriundas da literatura. A narratividade, pois, surge, segundo Cardoso (2003, p.64), como a
característica que inicialmente uniu as duas artes. O texto narrativo, por conseguinte,
independentemente do sistema semiñtico em que é veiculado, corresponde a uma Ŗinstância
423
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

enunciadora que relata eventos reais ou fictícios que se sucedem no tempo (...) originados ou
sofridos por agentes antropomórficos ou não, individuais ou coletivos, e situados no espaço do
mundo empírico ou de um mundo possívelŗ (SILVA apud CARDOSO, 2002, p. 64). Assim, os
Ŗagentes antropomñrficos ou nãoŗ , ou seja, os personagens, são elementos intrinsecamente ligados
às relações de intersemiose entre literatura e cinema.
Em sua apreciação sobre personagem e verossimilhança, Miraux (2005) afirma que a
construção da personagem permite a abertura de Ŗmúltiplos direcionamentos para intrigas, ações e
tensões dos acontecimentosŗ 1 (MIRAUX, 2005, p. 16) do tecido narrativo. A respeito da
composição da personagem na literatura, Miraux assevera ainda a crença hegeliana de que a ficção
evoca indivíduos contextualizados num meio específico, e, por meio desta relação referencial com o
real, constrói-se a verossimilhança. Ocorre que, na modernidade, observa-se, através da figura da
personagem, a ruptura com aspectos do verossímil. Entendemos que tal quebra pode sinalizar para o
aprofundamento da reflexão sobre a complexidade da representação. Barthes (1992), por exemplo,
percebe a personagem como um Ŗproduto combinatñrioŗ que comporta Ŗtraços mais ou menos
congruentes, mais ou menos contraditñriosŗ (BARTHES, 1992, p. 97). Miraux acrescenta que a
verossimilhança não mais responde pela constituição dos atos da personagem. Esta se dá através de
Ŗsua função e síntese para a economia do relatoŗ 2 (MIRAUX, 2005, p.22).
Segundo Brait (1985, p. 52), para a análise da personagem não se pode perder de vista a
questão do narrador. Este elemento constitui a instância organizadora do relato, e pode surgir sob
diversas formas dentro da narrativa. Sua posição influi na maneira como a história e os personagens
são apresentados. A partir da tipologia de Norman Friedman, Leite (1997) enumera as diversas
feições do narrador, que pode ser do tipo: onisciente intruso, onisciente neutro, testemunha,
protagonista, onisciência seletiva múltipla, onisciência seletiva, modo dramático e câmera. A figura
do narrador, nesta perspectiva, pode aparecer tanto explícita quanto implicitamente, chegando até
ao Ŗapagamentoŗ , como no caso, por exemplo, da onisciência seletiva múltipla, em que Ŗa histñria
vem diretamente, através da mente dos personagensŗ (LEITE, 1997, p.47). Esta característica
demonstra que a composição de personagens é um processo complexo, cujas técnicas de construção
abrem possibilidades diversas para processos de interpretação.
No que diz respeito ao narrador de Howards End (1910), Ricardo Lísias o aponta como do
tipo onisciente, porém engajado na trama (LÍSIAS apud FORSTER, 2006, p.18). Surge, algumas
vezes, como um personagem propriamente dito, como observamos a seguir: ŖPara Margaret Ŕ
espero que isto não vá fazer com que o leitor se volte contra ela Ŕ a estação de Kingřs Cross sempre
sugerira o infinitoŗ 3 (FORSTER, 2006, p. 33). Devido a isso, Lísias sugere semelhanças entre o
narrador forsteriano e o de Machado de Assis.

1
(...) las múltiples direcciones de las intrigas, de las tensiones, de los acontecimientos. Com exceção do romance
Howards End, as traduções ao longo do texto são do autor.
2
(…) su funciñn y su rol en la economia del relato.
3
To Margaret Ŕ I hope that it will not set the reader against her Ŕ the station of Kingřs Cross had always suggested
infinity (FORSTER, 2000, p.10).

424
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A personagem no cinema

A personagem no cinema situa-se, de acordo com Gomes (1969, p. 107), de maneira


semelhante à personagem no romance, obedecendo à estratégia narrativa escolhida pelo autor.
Gomes (1969), no entanto, argumenta que, devido ao contexto visual, a personagem fílmica
encontra-se Ŗencarnadaŗ numa pessoa (ator) e, com isso, o espectador perde em liberdade com a
imposição da imagem. Pensamos que, neste caso, estamos diante de uma característica óbvia do
meio semiótico em questão, não sendo produtivo contabilizar perdas neste sentido. No entanto, não
podemos descartar outro fato mencionado por Gomes acerca do status Ŗfamiliarŗ alcançado por
alguns atores, tornando-os Ŗpersonagens de ficção para a imaginação coletivaŗ (GOMES, 1969, p.
114).
Em relação a esta observação, Cattrysse (1997, p. 82) percebe na Ŗmera presença de
atoresŗ um processo de transferência que, apesar de exercer determinada influência, não constitui
uma relação funcional para a adaptação. A figura conhecida de certos atores, neste caso, pode trazer
à lembrança personagens encenados por eles anteriormente. Esta característica da personagem no
cinema ilustra o conceito de Ŗpseudo-originalŗ proposto por Catrysse (1997, p. 82). Este termo é
atribuído também a outros aspectos de produções cinematográficas, como a fotografia e a trilha
sonora, por exemplo. São elementos geralmente tidos como originais, que, no entanto, revelam
influências de outros filmes e expressões artísticas.

2. Os Estudos de tradução

A tradução intersemiótica (TI) constitui uma das três classificações de tradução destacados
por Jakobson (1991), e é definida como a Ŗinterpretação de signos verbais por meio de sistemas de
signos não-verbaisŗ (JAKOBSON, 1991, p. 65). Este processo tradutñrio ganhou bastante destaque
a partir da problemática em torno da Ŗtraduzibilidade vs. intraduzibilidadeŗ do signo estético. A
reflexão teórica em torno da questão conduziu ao reconhecimento de que a tradução relaciona-se
menos com semelhanças do que com diferenças. Plaza (2003, p. 29) conclui que a tradução, e por
conseguinte, a TI, tocam o original em pontos tangenciais, pois movimentam-se entre Ŗidentidades e
diferençasŗ . Deste modo, a busca por fidelidade, cada vez mais, passa a ser encarada como
atividade infrutífera. Termos como original e tradução ganharam contornos complexos, e são
abordados enquanto entidades idiossincráticas que, porém, Ŗestarão ligadas entre si por uma relação
de isomorfiaŗ (CAMPOS apud PLAZA, 2003, p. 28). A inserção da TI dentro dos Estudos de
Tradução também pode ser compreendida como necessidade decorrente do adensamento de trocas,
transferências e influências diversas nos diversos campos da atividade humana. A adaptação
fílmica, por exemplo, ilustra bem este fenômeno.
O estudo da adaptação fílmica enquanto processo tradutório, na perspectiva de Cattrysse
(1992), utiliza a teoria dos polissistemas (PS) de Even-Zohar (1990) como aparato teórico. A
escolha da PS aplicada aos estudos da adaptação, para Cattrysse, deve-se principalmente aos
425
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

seguintes fatores: o foco no texto de chegada (T2), no caso da adaptação para o cinema, o filme; a
descrição de procedimentos tradutórios, buscando explicar a razão de escolhas feitas ao invés de sua
prescrição; a não restrição a somente dois elementos do processo de tradução (texto de partida (T1)
e T2), já que outros aspectos, se ignorados, podem conduzir a descrições incompletas, e que essa
abordagem percebe a tradução como um fato lingüístico e cultural; e finalmente, a função que
cumpre o T2 (adaptação) no contexto em que está inserido.
Outro conceito que corrobora essas percepção de analisar a tradução é o de reescritura de
Lefevere (1992). Tal conceito, dialoga com os fatores eleitos por Catrysse para sua aplicação ao
estudo da adaptação fílmica. As reescrituras, segundo a perspectiva de Lefevere, poderiam ser
definidas como Ŗa adaptação de uma obra literária a um público diferenteŗ (VIEIRA, 1996, p. 141).
No entanto, para a obra traduzida assumir seu lugar no novo sistema, faz-se necessária a mediação
de diversas outras formas de reescrituras, como textos críticos, historiografia, artigos, etc. Assim,
Lefevere incorpora no processo de análise diversos mecanismos de interferência, que podem ou não
situar o produto final da tradução na corrente ideológica ou poetológica vigente. No último caso,
observa-se, muitas vezes, a redução do T2 (literário ou fílmico) à categoria de obras menores por
parte de alguns setores da crítica especializada.
As diferentes aplicações da teoria dos PS de Even-Zohar (1990), da TI, e como
conseqüência, a amplitude alcançada pelo próprio conceito de tradução, demonstram o
redimensionamento que tomou os Estudos de Tradução para poder tratar da relação complexa que
se estabeleceu entre os processos semióticos na contemporaneidade.

3. As Irmãs Schlegel na Tela

Na primeira vez em que surge a figura das Schlegel no filme, Helen, a personagem mais
jovem, está no interior de Howards End, em conversa calorosa com membros da família Wilcox. O
grupo é observado pelo vulto etéreo de Ruth Wilcox, postada no exterior da casa. A cena introduz
alguns elementos importantes para o gênero cinematográfico a que pertence Retorno a Howards
End (1992) Ŕ que aqui o denominaremos como HF1 (Heritage Film) Ŕ por exemplo, figurinos,
cenário de época, e sofisticado arranjo musical. O HF é um gênero cinematográfico com uma
função bem delimitada, em que operam lado a lado o tradicional circuito de filmes de arte e o
circuito comercial. Adapta (geralmente pondo em destaque a afiliação literária) obras canônicas de
autores que retrataram a cultura inglesa, como Henry James, Jane Austen, Virginia Woolf, dentre
outros. Nas décadas de 1980 e 1990, os HFs tiveram o importante papel de contornar a crise de
público nas salas de exibição da Grã-Bretanha, fixar uma identidade para o cinema britânico Ŕ
sufocado pela onipresença de Hollywood Ŕ e, ironicamente, estabelecer um nicho para a indústria
do cinema americano sem entrar em conflito com a indústria européia. Higson (2003, p. 5) explica

1
Heritage Film é o gênero cinematográfico que se estabeleceu no cinema britânico por volta do final do século XX, e
possui como característica marcante retratar a Inglaterra de séculos anteriores, de maneira nostálgica. Higson (2003, p.
1) esclarece que tal nomenclatura ainda não é consensual, fato que nos levou a não traduzi-la.

426
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

que muitos dos HF Ŗou foram financiados por companhias americanas, ou realizados como co-
produçõesŗ 1.
O momento da narrativa fílmica que mencionamos anteriormente, em que Helen e os
Wilcox conversam no interior da casa, evidencia indubitavelmente o gênero HF. Ouve-se, ao fundo,
o som de piano. É interessante perceber que, neste momento, a trilha sonora sugere um ambiente de
cultura erudita. Este procedimento ressignifica a construção romanesca dos Wilcox, representantes
do pragmatismo e do materialismo da classe média alta, desdenhosos ou alheios à erudição.
Acreditamos até que, no romance, eles funcionam como contraponto à disposição para o
enriquecimento cultural e intelectual do núcleo Schlegel.
Logo depois, Helen e Paul Wilcox seguem para o jardim, onde trocam carícias. Esta ação,
no filme, é construída de modo a conformar certa linearidade para os acontecimentos. No romance,
a personagem apenas informa à sua irmã: ŖPaul e eu estamos apaixonados Ŕ o filho mais novo que
chegou aqui só na quarta-feiraŗ 2 (FORSTER, 2006, p. 27). Entendemos que o novo foco na
narrativa fílmica pode explicar algumas das mudanças na personagem ocorridas com a tradução
para as telas, como por exemplo, a suavização de seu caráter impetuoso e o realce de aspectos
sentimentais. No filme, após o encontro entre Helen e Paul, Margaret recebe um telegrama da irmã,
que lhe informa: ŖPaul Wilcox e eu estamos apaixonados. Estamos noivosŗ (grifo nosso). A
personagem, na versão fílmica, é apresentada com expectativas de casamento, o que sinaliza para
uma personalidade inclinada para valores tradicionais. Isto significa um distanciamento acentuado
em relação à personagem do romance.
Após uma série de mal-entendidos, a história entre Helen e Paul determina o afastamento
temporário entre as duas famílias. Por acaso, os Wilcox tornam-se vizinhos das Schlegel. Este fato,
no romance, preocupa a tia de Helen, a Sra. Munt, pois a personagem acredita que a sobrinha não
estaria preparada para rever os Wilcox. Tanto a reação de Helen quanto a de Margaret com a notícia
sobre os novos vizinhos invalidam a crença da tia. Nesta mesma ocasião, Helen aceita o convite de
sua prima para passar uma temporada na Alemanha. No filme, é de Margaret que parte a inquietude
com os novos vizinhos, devido ao mal-entendido amoroso com Paul. Margaret sugere para a irmã
que aceite o convite de sua prima, como forma de evitar os Wilcox. Helen, por sua vez, com
semblante austero (fisionomia presente em grade parte da narrativa fílmica) olha pela janela e
pondera sobre a possibilidade de ser apontada como Ŗaquela que tentou prender Paul Wilcoxŗ.
Observamos que, mais uma vez, a personagem na tela parece corresponder mais a um padrão de
comportamento tradicional do que transgressor, como é característico no texto de Forster.
Mencionamos o semblante austero de Helen em grande parte do filme em contraste à sua
vivacidade enquanto personagem literária. Partimos da idéia de que tal configuração pode ter sido
estimulada por duas razões: uma relacionada ao gênero HF e outra relacionada ao nível de
transferências decorrentes do perfil das atrizes que interpretam Helen e Margaret Schlegel.
Discorreremos primeiramente sobre este último ponto.

1
(…) were either funded by American companies, or made as co-productions (HIGSON, 2003, p. 5).
2
Paul and I are in love Ŕ the younger son who only came here Wednesday (FORSTER, 2000, p. 5).
427
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Na medida em que percebemos Helen retratada como uma figura amorosamente


ressentida, constatamos em Margaret algumas atitudes jocosas que, em certas ocasiões, funcionam
como verdadeiros empréstimos da versão literária de Helen. Por exemplo, podemos citar a seguinte
situação: após um concerto de música clássica, Helen leva para casa o guarda-chuva de um rapaz
até então desconhecido, Leonard Bast. No filme, Leonard segue Helen até sua casa para recuperar o
guarda-chuva. Ao ser informada sobre o engano, Helen parece surpresa e diz o seguinte: ŖDesculpe.
Não costumo roubar guarda-chuvasŗ . Em seguida, Margaret interpela o jovem, ŖMinha irmã roubou
seu guarda-chuva?ŗ e diz para Helen ŖDe novo não, Helen.ŗ Em tom zombeteiro, ela brinca ŖÉ uma
ladra incorrigível. Sinto muito.ŗ Na versão literária, a tirada espirituosa vem de Helen: ŖNão faço
outra coisa senão roubar guarda-chuvas. Sinto muitíssimo. Entre e escolha umŗ 1 (FORSTER, 2006,
p. 64). Podemos interpretar que esta troca pode se tratar de uma tentativa de adequação das
personagens a traços característicos das atrizes. Emma Thompson, que interpreta Margaret, iniciou
a carreira no teatro no grupo satírico Footlights (Universidade de Cambridge), e tornou-se
conhecida pelo agudo senso de humor. A atriz, ao explicar a possível origem de seu talento cômico,
não abre mão do humor negro e informa que Ŗfoi criada por pessoas que davam risadas em
funeraisŗ 2. Por outro lado, Helena Bonhan Carter, Helen no filme, ganhou destaque nas décadas de
1980 e 1990 por seus papéis românticos em diversos filmes de época. Em Uma Janela para o Amor
[A Room with a View] (1985), ela interpretou Lucy Honeychurch.
O estilo de atuar está entre os elementos apontados por Cattrysse (1997, p. 79), que podem
influenciar também no processo de adaptação. Segundo ele, uma abordagem multilateral, que leve
em conta na análise o Ŗestilo de atuar, cenário, fotografia, música, e convenções sociais, políticas e
culturaisŗ 3, seria mais apropriada para o estudo da adaptação fílmica do que a abordagem binária,
em que se observam apenas as relações entre os T1 (texto literário) e T2 (filme).
As irmãs Schlegel, no romance, são o ponto de partida para a discussão de questões
recorrentes na obra de Forster, como a crítica à sociedade inglesa. A ascendência alemã das
Schlegel surge muitas vezes como elemento peculiar da identidade. Direcionaremos nossa atenção
nesta última parte de nossa análise para a representação das irmãs, na literatura, enquanto figuras
transgressoras da ordem social estabelecida e sua tradução para o cinema.

4. A versão literária das irmãs Schlegel

A intensa vida cultural e intelectual das personagens Margaret e Helen Schlegel, no texto
de Forster, ampara-se na herança deixada pelo pai. No entanto, o ambiente em que cresceram teve
bastante influência em sua formação. Margaret demonstra desde muito cedo suas inclinações:

1
I do nothing but steal umbrellas. I am so very sorry! Do come in and choose one. (FORSTER, 2000, p. 35)
2
ŖI was brought up by people who tended to giggle at funeralsŗ Disponível em:
http://movies.nytimes.com/person/70692/Emma-Thompson/biography - acesso: 20/06/2010
3
(…) acting style, setting, photography, music, and sound as well as the surrounding cultural, political, and social
norms and conventions.
428
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

(...) aos treze anos identificara um dilema que a maioria das pessoas passa a vida toda sem
perceber. Sua mente lançava-se em todas as direções; tornava-se cada vez mais flexível e
forte. Sua conclusão foi de que qualquer ser humano particular está mais próximo do
invisível que qualquer organização, e essa opinião nunca mais a abandonou 1 (FORSTER,
2006, p.52)

Como podemos perceber, Margaret exibe um perfil que a diferencia tanto dos Wilcox,
quanto da Sra. Munt, sua tia, no que se refere à sociedade de classes inglesa. Ao saber do
envolvimento de Helen com Paul, a apreensão da tia recai sobre a classe social do rapaz. Assim a
personagem se posiciona: ŖO que acha dos Wilcox? São gente como nñs?ŗ 2 (FORSTER, 2006, p.
29). Margaret rebate afirmando que não se importaria caso ŖHelen tivesse escrito o mesmo sobre
um balconista de loja ou um escriturário sem tostãoŗ 3 (FORSTER, 2006, p. 31).

O engajamento em questões feministas se sobressai na personagem Helen. Sua posição é


expressa de maneira contundente. Entre suas atividades está a de conferencista, na qual podemos
perceber sua postura:

Acredito que no último século os homens desenvolveram o desejo pelo trabalho e não
devem deixá-lo morrer de inanição. É um desejo novo. É considerado em grande parte
ruim, mas é, em si mesmo, bom, e espero que para as mulheres, também, Řnão trabalharř
em breve torne-se tão chocante quanto Řnão ser casadař foi há cem anos 4 (FORSTER,
2006, p. 138)

Outro ponto relevante na construção da personagem em questão é a violação dos códigos


de conduta da sociedade. Uma evidência disso seria o caso em que Helen engravida e, ao invés de
revelar a paternidade, vai exilar-se em Munique, onde passa a relacionar-se com outra mulher. E
reconhece: ŖFiz algo que o inglês nunca perdoaŗ (FORSTER, 2006, p. 334).1

Percebemos que a caracterização das personagens se reconfigura bastante com o processo


de adaptação. Os elementos citados anteriormente, que compõem a personalidade das irmãs
Schlegel no texto literário, como a intelectual na figura de Margaret, e o feminismo engajado de
Helen, são amenizados ou apagados por completo no cinema. A reflexão sobre a estratificação
social, no filme, concentra-se acentuadamente na opinião do patriarca dos Wilcox, para quem Ŗnão
se deve ser sentimental em relação aos pobresŗ . Margaret, então noiva do Sr. Wilcox, não o
contesta, ao contrário, parece não se importar com a questão. A construção do núcleo dos Schlegel
parece confirmar a visão dos Wilcox, para quem cultura é sinônimo de emotividade. A relação das

1
… at thirteen she had grasped a dilemma that most people travel through life without perceiving. Her brain darted up
and down; it grew pliant and strong. Her conclusion was, that any human being lies nearer to the unseen than any
organization, and from this she never varied. (FORSTER, 2000, p. 26)

2
ŖWhat do you think of the Wilcoxes? Are they our sort?ŗ (FORSTER, 2000, p.7)
3
ŖHelen had written the same… about a shop-assistant or a penniless clerkŗ (FORSTER, 2000, p. 8)
4
I believe that in the last century men have developed the desire for work, and they must not starve it. Itřs a new desire.
It goes with a great deal thatřs bad, but in itself itřs good, and I hope that for women, too, Řnot to workř will soon
become as shocking as Řnot to be marriedř was a hundred years ago. (FORSTER, 2000, p. 94)

429
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

irmãs com Leonard Bast ressalta apenas o lado filantrópico. E, por fim, a relação homossexual de
Helen foi eliminada na tradução.

Entendemos que o uso dessas estratégias de suavização, transfigurações e apagamentos


ocorrido na tradução das duas personagens de Howards End (1910) para as telas pode ser percebido
como uma forma de adequação ao meio semiótico de chegada, mais especificamente ao gênero HF,
uma vez que converge para uma característica marcante deste gênero: Ŗconverter a nostalgia em
espetáculo, e para isso, filtra do trabalho original conteúdos políticos e emotivosŗ 1 (HIGSON apud
STRAIN, 1998, p. 165). Os filmes HF têm como proposta o retorno ao passado inglês, de modo a
enaltecer o caráter e Ŗos bons costumesŗ que moldaram a nação. Deste modo, parece razoável
concluir que foram aproveitados nas personagens apenas atributos que não entrem em conflito com
o gênero em questão.

Considerações finais

Nesta breve análise sobre o processo de tradução de duas personagens principais do


romance Howards End para o cinema, pudemos observar que algumas diferenças resultantes do
processo de adaptação têm relação com um gênero específico do cinema inglês, o heritage film.
Devido a suas especificidades, demonstradas ao longo do texto, este gênero demandou mudanças
que resultaram em estratégias de tradução, tais como a suavização do comportamento das
personagens e, conseqüentemente, a moderação da discussão em torno do papel da mulher presente
no texto literário. Assim, a direção estabeleceu no cinema um traço particular na leitura da obra de
Forster e um diálogo com o espectador.

Referências bibliográficas

BARTHES, R. S / Z. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

BRAIT, B. A Personagem. São Paulo: Ática, 1985.

CARDOSO, Luís Miguel. ŖLiteratura e Cinema: Dissídios e Simbiosesŗ . In: NASCIMENTO, E.


(org.) Literatura em Perspectiva. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2003.

CATTRYSSE, P. Film (Adaptation) as Translation: Some Methodological Proposals. Target 4:1,


53-70. Amsterdam: John Benjamins, 1992.

______. Audiovisual Translation and New Media. In: HODGSON, R. & SOUKUP, P. A. (eds.).
From One Medium to Another: Communicating the Bible Through Multimedia. Kansas City:
American Bible Society, 1997.

1
ŖI have done something that the English never pardonŗ (FORSTER, 2000, p. 250)

430
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

DINIZ, T. F. N. Literatura e cinema: da semiótica à tradução cultural. 2ª ed., Ouro Preto: Editora
UFOP, 2003.

EVEN-ZOHAR, I. Polysystem studies. ŖSpecial issues of poetics todayŗ The Porter Institute for
poetics and semiotics, Tel Aviv, 11:1 1990.

FORSTER, E. M. Howards End. London: Penguin, 2000.

______. Howards End. Tradução de Cássio Arantes Leite. São Paulo: Globo, 2006.

GOMES, P. E. S. A Personagem Cinematográfica. In: CANDIDO, A. A Personagem de Ficção.


São Paulo: Editora Perspectiva, 1969.

HIGSON, J. English Heritage, English Cinema: Costume Drama Since 1980. Oxford: OUP, 2003.

JAKOBSON, R. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1991.

LEITE. L. C. M. O Foco Narrativo. São Paulo: Ática, 1997.

MIRAUX. J. P. El personaje en la novela: génesis, continuidad y ruptura. Tradução para o espanhol


de Emilio Berrini. Buenos Aires: Nueva Vision, 2005.

PLAZA, J. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.

STRAIN, E. Forsterřs Anti-Touristic Tourism and the Sightseeing Gaze of Cinema. In: DEGLI-
ESPOSTI, C. Postmodernism in the Cinema. Oxford: Berghahn Books, 1998.

THOMPSON, E. Entrevista e biografia. Disponível em:


http://movies.nytimes.com/person/70692/Emma-Thompson/biography Acesso em: 20/06/2010.

VIEIRA, E. R. P. Andre Lefevere: A teoria das refrações e da tradução como reescrita. In:
________, E. R. P. (org.) Teorizando e Contextualizando a Tradução. Belo Horizonte: Programa de

pós-graduação em estudos lingüísticos da FALE (UFMG), 1996, p. 138-50.

Referência filmográfica

Ivory, J. dir. Retorno a Howards End [Howards End]. Com Emma Thompson, Anthony Hopkins,
Helena Bohan-Carter, Vanessa Redgrave. Reino Unido, 1992, 136 min.

1
(...) [heritage film] converts nostalgia into spectacle, thereby draining the original work of its emotional and political
content (...)

431
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

SOBRE O VENDEDOR DE PASSADOS DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

José Hildo de Oliveira Filho1 (UFAM)

A tradição dos oprimidos nos ensina que o Ŗestado de exceçãoŗ em que vivemos na verdade
a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade.
(Walter Benjamin, Sobre o conceito de história)

Resumo: O Vendedor de Passados de José Eduardo Agualusa apresenta uma perspectiva ficcional a respeito
da construção do nacionalismo, da memória e identidade angolanos. Nossa análise está centrada nas
personagens deste romance, nas suas construções, em seus confrontos e trajetórias em como estas
personagens são representantes deste contexto de constituição da nação angolana. Para uma análise mais
aprofundada do referido romance, utilizaremos a filosofia da história de Walter Benjamin, sobretudo seu
Sobre o conceito de história.

Introdução

Com nosso trabalho, visamos a analisar a construção das personagens e suas trajetórias
singulares no romance O vendedor de passados de José Eduardo Agualusa (2004). Para uma análise
mais aprofundada, no entanto, recorreremos a Walter Benjamin (1994) e ao seu Sobre o conceito de
história. As teses contidas neste ensaio de Benjamin estão relacionadas com sua obra de maneira
transversal. Entretanto, é, sobretudo, em Sobre o conceito de história que vemos uma articulação
entre marxismo, romantismo alemão e messianismo judaico (Löwy, 2002, p. 199). Pois, para
Benjamin, o marxismo deveria incorporar a teologia a fim de florescer amplamente. Benjamin fala-
nos assim em sua segunda tese:

O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois, não somos
tocados por um sopro de ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos,
ecos das vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas
nunca chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as
gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está a nossa espera. Nesse caso, como a
cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige
um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe
disso. (p.223)

O passado e o presente se articulam de forma que o passado apela ao presente, através de um


encontro secreto entre gerações. Esse encontro, no entanto, escapa a qualquer evolucionismo: na
concepção benjaminiana, não deixamos para trás os que já viveram justamente porque não podemos
nos esquecer dos conflitos cotidianos. Em especial, não podemos nos esquecer da luta de classes. O
progresso técnico e científico e o evolucionismo nos remetem a uma concepção de tempo e de

1
Tenho de agradecer muito ao professor Dr. Francisco Topa, que muitas dúvidas me deu sobre a literatura angolana. Ao
Ítalo Cardoso, amigo sempre. E a Gigi Macchi, pela fantástica hospitalidade.
432
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

narrativa que são vazias de consciência histórica e possibilidades de transformação. Se não


podemos nos esquecer da luta de classes, temos também de ter em mente que o encontro deve nos
remeter à memória dos vencidos para que possamos construir a história a contrapelo e fraturar outra
história: a história oficial, de grandes feitos e de grandes eventos. Benjamin busca uma história que
engendre uma identidade a partir do ponto de vista dos vencidos e aponte a um futuro através de
uma força messiânica revolucionária.

Temos plena consciência de que as teses sobre história de Benjamin estão distantes do
romance de Agualusa em termos de propostas políticas. Já que Benjamin visa a construir uma
filosofia da história que tem como objetivo não somente uma crítica radical a qualquer concepção
evolucionista1 (progressista), mas que visa, como proposta política explícita, a uma revolução
proletária. Entretanto, as teses de Benjamin nos revelam este mistério do tempo histórico e as
possibilidades de abordá-lo. Como dissemos anteriormente, Benjamin, ao longo de suas teses,
debate-se com maneiras de escrever a história. Uma mais próxima do historicismo alemão; que tem
como alvo a Ŗhistñria dos grandes homensŗ, as guerras, os líderes políticos e econômicos. Essa é,
segundo Benjamin (adotando o ponto de vista da luta de classes), a histñria dos Ŗvencedoresŗ . Ao
contrário destes historiadores, Benjamin visa a escrever a história a contrapelo, a partir dos
fragmentos cotidianos, dos relatos orais, das formas míticas, do imaginário. Do ponto de vista dos
vencidos, enfim. Essas duas formas de escrever a história também estão presentes no romance de
Agualusa, como tentaremos deixar claro a seguir.

Assim, Benjamin e Agualusa, postos frente a frente, revelam-nos, ao menos, duas formas de
narrativas históricas que coexistem e que se chocam. Assim como nos revelam um fundo misterioso
que tem qualquer história; seja ela pessoal, nacional, oral ou ficcional...

Seguiremos, para analisar o romance.

O vendedor de passados

Félix Ventura é alguém que pouco conhece de seu verdadeiro passado. Mal sabe sobre seus
verdadeiros pais, sobre suas Ŗorigensŗ. Seu corpo foi marcado pelo albinismo e talvez por isto, por
não ser Ŗnegro2ŗ , tenha sido abandonado às portas de um livreiro. Junto a Felix, albino,
abandonado, alguns exemplares de A Relíquia de Eça de Queiroz. Talvez, Félix estivesse ali como
um tesouro. Por outro lado, Félix Ventura poderia já estar marcado a criar ficções realistas. E ele

1
Segundo Löwy (2002, pp. 199-200), os grandes inimigos da filosofia da história de Benjamin eram o evolucionismo
darwinista e o otimismo com relação ao progresso. Pois estes esvaziariam a história de seus conflitos e da luta de
classes.
2
Sabemos que Félix sente-se negro pelo seu primeiro encontro com José Buchmann. Pois é preciso que Buchmann o
recorde de que ele também é Ŗbrancoŗ, mencionando o seu albinismo.

433
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

assim o faz. É hoje um próspero vendedor de passados. A ascendente burguesia angolana está a
buscar uma libertação de seus antigos vínculos políticos, de suas atividades subversivas. Alguns
buscam livrar-se das torturas que cometeram (ou sofreram), dos caminhos corruptos que os levaram
aos ministérios, a tornarem-se deputados... Enfim, busca-se assumir um novo rosto, através do
passado construído por Félix... O vendedor de passados é uma metáfora da memória e trajetória
histórica de Angola: inventando novos passados, silencia-se um contar das histórias que se
deveriam Ŗesquecerŗ : as histñrias dos torturados, dos exilados e presos políticos, dos corruptos, dos
ex-comunistas, dos hoje degredados. Manipula-se a memória ao gosto dos políticos e dos burgueses
ao sabor do momento, reinventa-se a história... Ou melhor, talvez a história se torne uma
mercadoria porque negociável nos mesmos termos1. Ao mesmo tempo, porém, ela é nada mais que
ficção, minimamente realista, porque incorporada (no momento presente, como um projeto futuro).
Félix provoca-nos: seu ofício de criar passados seria um passo além da literatura: ao contrário dos
escritores, Félix cria personagens que falam, andam, têm vontade... Félix lhes dá um fardo do qual
não se livram simplesmente quando querem: o passado tem este peso sobre a vida de seus clientes,
já que devem sustentá-lo ou escondê-lo. E é sob este peso que se assenta sua criação... O encontro
secreto de que nos fala Benjamin é então concretizado, vivenciado, pois mesmo que o passado seja
ficcional, os clientes não têm alternativa: devem tomar uma posição diante de sua Ŗnova histñria 2ŗ .
Entretanto, sabemos que os clientes de Félix situam-se nas classes ascendentes e que os passados
inventados somente podem conviver pacificamente sem o confronto com a diferença. Os passados
atuais da nova burguesia não podem enfrentar memórias díspares: memórias que os confrontem.
São passados frágeis. Ao construir genealogias, dar-lhes fotos de avós e lhe contar novas e ilustres
histórias, Félix costura uma história dos vencedores em Angola. A Angola contemporânea revê sua
história. E essa revisão é representada por Félix Ventura.

José Buchmann é um estrangeiro que pede a Félix um passado e uma identidade angolanos;
já que gostaria de estabelecer-se em Angola. O espanto inicial de Felix parece-lhe evidente: aquele
que bate a sua porta em busca de um passado angolano é branco, tem um sotaque desajeitado, não
veste roupas angolanas... Ao que Buchmann replica com a oferta de uma boa quantia em dinheiro.
A Félix, a oferta lhe parece irrecusável... Assim, desde que Félix entrega a Buchmann seus novos
documentos e seu passado inventado, Buchmann parecerá não dar Ŗsossegoŗ ao seu passado
ficcional. Buscará registrar cada milímetro de história Ŗverdadeiraŗ , buscará seus ascendentes

1
Acreditamos que podemos alargar a construção de Agualusa para uma história coletiva, através de um exemplo: a
história do Ministro que busca a Félix Ventura para que lhe reinvente um passado. Depois que ele conhece a sua nova
árvore genealogia, quer homenagear ao avô fictício; nomeado um Liceu com o seu nome.
2
Acreditamos que os passados inventados por Félix Ventura estão mais próximos da perspectiva dos vencedores de que
nos fala Benjamin, já que são passados gloriosos, imaculados. Estes passados se materializarão, através das instituições
oficiais angolanas. Em sua sétima tese, Benjamin (p. 225) assim nos diz: ŖFustel de Coulanges recomenda ao
historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre as fases posteriores da história.
Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua
origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu
relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza (...). A natureza desta
tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com quem o historiador historicista estabelece uma relação de
empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor (...)ŗ.
434
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

fictícios, irá ver o túmulo de Matheus Buchmann, seu pai fictício e chega a garantir que ele está de
fato lá, em Chíbia. Buchmann não segue o conselho de Félix: o de manter-se o mais distante
possível de seu passado. E sua busca pelo passado mostrará a Ventura o quão eficaz pode ser sua
invenção. Buchmann abandona o sotaque estrangeiro, incorpora um sorriso angolano, veste roupas
nativas. O passado que Félix criou a Buchmann parece completamente incorporado.

Ao longo de todo o romance, somos confrontados com este Buchmann que parece não temer
a ficção armada por Félix, ao contrário, vai ao encontro dela. Quer dominá-la por dentro, habitar
agora um passado seu. Buchmann nos remete a relação que cada um tem com a sua memória; como
lidamos com o nosso passado. Sua atitude, a princípio, parece-nos a de alguém que sabe que chegou
a terras novas e nebulosas (as suas memórias inventadas) e quer dominá-las (vivenciar seu
Ŗpassadoŗ ); para não ser surpreendido depois... É somente ao fim, no entanto, que vemos o oculto:
Buchmann sempre esteve a enganar Ventura. Não testou a validade de seu passado, inventou esses
testes para o prñprio inventor (um risco para alguém que cria personagens Ŗanimadasŗ ). Por isso
Buchmann nos remete a nossa relação com a memória: somos confrontados com uma postura
passiva (o que poderíamos supor ser a postura comum entre os clientes de Ventura que aceitam seus
conselhos e se mantém distantes de seus novos passados) ou uma postura como a de Buchmann, a
de alguém completamente curioso e sedento de suas Ŗorigensŗ . Assim Buchmann pode se visto
como um diálogo com o leitor, pois nos mostra que a cada recomeçar de nossas vidas, somos
confrontados com a possibilidade de esquecermos nossa própria trajetória: podemos constantemente
nos inventar a nós mesmos, desde que paguemos o devido preço por isso. Ao fim e ao cabo,
Buchmann e Félix complementam-se neste jogo entre ficção e história. Pois, através do jogo entre
Buchmann e Félix compreendemos, afinal, que um passado inventado não pode coexistir com as
memórias alheias. A prñpria Ŗânsiaŗ de Buchmann por suas Ŗorigensŗ revela-nos esta contradição:
afinal, como é possível que ele sustente um passado ilustre sem poder ostentá-lo... Os novos
passados, como vimos anteriormente, não permitem o confronto com o outro... E esse é o preço a
pagar...

É através do margear deste confronto que o romance avança. Buchmann acaba por encontrar
Ŗacidentalmenteŗ a Edmundo Barata Reis. Na verdade, o encontro não é tão acidental: José
Buchmann é fotógrafo e é atraído por Edmundo através de seu ofício. Agualusa aqui nos revela o
fascínio e a ambigüidade das imagens fotográficas, principalmente no caso de Buchmann, pois este
trabalha fotografando guerras e dramas sociais. Fragmentos do Ŗrealŗ, as fotografias muitas vezes
afirmam-se impessoais e eliminam o fotógrafo como autor. Além disso, as imagens servem por
vezes como uma forma de etiquetar os mais complexos processos históricos. Servem como uma
forma de percepção imediata, quase impessoal, quase revelam o Ŗreal em si mesmo1ŗ . Edmundo é
caracterizado com um louco (como um Ŗex-genteŗ ), pois se declara o último comunista de Angola.
Entretanto, Edmundo é exatamente o contrário de Buchmann, alguém que não quis negar sua

1
Ver: Sontag, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

435
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

história, apesar de haver se tornado um mendigo. Edmundo e Buchmann, postos frente a frente,
revelam as tensões e as possíveis formas de contar a mesma história. Em torno deles, o conflito
anunciado se desenvolverá. Poderíamos ainda fazer um paralelo entre Edmundo e Benjamin, pois
para ambos o comunismo representa memória, resistência e possibilidades futuras. Este é um ponto
fundamental: por nos basearmos em Benjamin, vemos em Edmundo uma crítica ainda atual a uma
Angola contemporânea; como se os sonhos engendrados no processo de independência de Angola
estivessem, agora, nas mãos de um Ŗex-genteŗ ; completamente vencido. Edmundo não está sñ, no
entanto, ele representa os Ŗvencidosŗ angolanos. Da mesma forma que a burguesia ascendente
representa os Ŗvencedoresŗ .

Outro encontro fundamental ocorre ao longo do romance: o de Félix Ventura com Ângela
Lúcia. Ela, também fotógrafa, começa um relacionamento com Félix. Ângela, vemos, faz com que
Félix se atrapalhe ao contar seu próprio passado. Ela, estranhamente, parece não ter qualquer
resistência ao fato de que Félix seja albino, ao contrário da maior parte das mulheres. Ângela,
também fotógrafa, se afirma como uma caçadora de luz e evita fotografar guerras e dramas, como o
faz Buchmann. O que sabemos sobre o passado de Ângela está muito mais ligado ao seu ofício
como fotógrafa do que a qualquer relato mais elaborado. Ângela e Buchmann revelam a
convivência harmoniosa entre imagens bucólicas e imagens dramáticas. Ambos colocam-se na
paradoxal posição de fotógrafo.

Entretanto, é quando, enfim, uma das personagens resolve Ŗassumirŗ outro passado, que os
conflitos explodem de forma violenta. Pois as suas memórias se rebatem umas nas outras.
Buchmann reconhece Edmundo e tenta matá-lo. Pois Edmundo foi o responsável pela prisão de
toda a família de Buchmann quando este quis exilar-se, com sua esposa grávida, em Portugal. Na
verdade, o nome de Buchmann é Pedro Gouveia e este era um colono português que casou com uma
angolana. Ambos foram presos no processo de independência de Angola e somente Gouveia
conseguiu chegar a Portugal. Entretanto, apesar da morte da mãe, a filha vive. E ela é Ângela Lúcia;
que retorna a Angola para seguir os passos do pai. Ângela somente decidiu dedicar-se a fotografia
pelo pai. Os relatos que se sobrepõem tomam lugar na cozinha da casa de Félix Ventura, onde
termina a perseguição de Gouveia a Edmundo. Agora, os passados fictícios já não importam; pois o
que está em jogo é o esforço que não foi realizado para recuperá-lo, no caso de Buchmann e de
Ângela Lúcia e, no caso de Edmundo Reis e Pedro Gouveia, estão em jogo as marcas indeléveis
deixadas por Edmundo na vida de Gouveia. O romance ganha assim um encadeamento histórico
global. Com uma pistola nas mãos, Gouveia ouve a revelação de sua história por parte de Edmundo.
Ângela Lúcia, no entanto, retira-lhe a pistola e assassina a Pedro Gouveia. O assassinato do
português é bastante significativo segundo nossa interpretação: à nova geração de angolanos cabe
uma visão histórica crítica, que busque esmiuçar seu passado para desconstruir não somente uma
perspectiva histórica dos grandes homens e realizar a história a contrapelo, mas também cabe a
tarefa do Ŗassassinatoŗ de uma histñria subordinada a Portugal. O regate dessa memñria passa
também por uma crítica ao processo histórico que engendrou o nacionalismo e a independência de
436
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Angola. São Ŗpersonagens vencidasŗ , como Edmundo Reis, que podem fazer com que as novas
gerações angolanas sejam confrontadas com essa possibilidade. O revelar crítico desta memória
deve evitar quaisquer extremos: nem o civilizacional discurso português, muito menos o
nacionalismo angolano exacerbado. É só movendo-se através de uma linha tênue e fugindo aos
estereótipos que se pode construir uma história crítica de Angola. A literatura pode assim
desempenhar um papel fundamental1.

Conclusão: sobre a relação entre o romance e a história angolana

Não buscamos nesse artigo arrancar da ficção de Agualusa a história angolana nem
tampouco submeter seu romance a uma total imersão num contexto histórico específico.
Procuramos mostrar em que consiste essa relação e como a memória e identidade angolanas são
retratadas no romance. Sabemos ainda que nossa leitura não esgota as possibilidades de
interpretação desta obra e que outras relações entre o próprio Walter Benjamin e Agualusa
poderiam ser poderiam ser realizadas. Ao olharmos para o narrador do romance, por exemplo,
podemos problematizar o messianismo judaico benjaminiano e as perspectivas de certas religiões
africanas; já que o narrador do romance é uma osga que viveu vidas passadas humanas. O problema
do narrador poderia ser encarado como uma forma de concepção temporal que está distante do
evolucionismo ocidental, de sua concepção de progresso ou mesmo de revolução. Por outro lado,
poderia questionar a fragilidade do narrador e das suas observações sobre as personagens do
romance (abrindo espaço para questionarmos as influências literárias presentes na obra de
Agualusa). No entanto, aos leitores não familiarizados com a história contemporânea de Angola,
não poderíamos fugir a uma contextualização mínima dessa história, a fim de que possam
compreender melhor as nossas orientações interpretativas.

ŖFélix Venturaŗ , o vendedor de passados, está bem situado na histñria contemporânea de


Angola. Seus clientes pedem novos passados, pois Angola, após o conflito colonial (1961 Ŕ 1974),
viveu quase 30 anos de guerra civil (1975 Ŕ 2002). O atual processo de paz é um processo não
somente de reconstrução material, mas, sobretudo, um período de reconstrução simbólica. O
conflito entre as personagens, entretanto, remonta ao conflito colonial. Durante esse conflito,
formaram-se os três principais movimentos de libertação que seria os responsáveis pelo subseqüente
conflito civil: o MPLA (Movimento para a Libertação de Angola), a FNLA (Frente Nacional para a
Libertação de Angola) e a UNITA (União para a Libertação Total de Angola). Esses movimentos

1
Não somente a literatura contemporânea de Angola, mas também a literatura dos anos 40, 50 e 60. Onde os
movimentos literários como o ŖVamos Descobrir Angolaŗ ou ŖNovos intelectuais de Angolaŗ. Para uma histñria da
literatura dos países lusófonos, ver: Pires Laranjeira, José; Mata, Inocência; Santos, Elsa Rodrigues. Literaturas
africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1995. Assim como Tavares, Ana Paula. Cinquenta

437
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

sustentavam o apoio externo num complexo cenário geopolítico africano, além de conseguir coesão
a partir de grupos étnicos específicos. O MPLA acabou por sair vitorioso e em um contexto de
Guerra Fria foi apoiado, sobretudo, por Cuba e engendrou ideais socialistas no período de pós-
independência1. A história da própria Angola, nesse sentido, foi o que nos levou a questionar as
múltiplas formas de contar qualquer história. E essas possibilidades, atreladas ao passado comunista
de Angola, foram o que nos levaram a reunir Walter Benjamin e José Eduardo Agualusa. Assim,
não concordamos com certas leituras que vêem a mudança da burguesia ascendente de Angola
como simples reflexos da pós-modernidade (Barros, 2009). Acreditamos que essas leituras retiram o
caráter político e as relações de poder, presentes na Angola contemporânea, e evidenciados por
Agualusa.

Referências bibliográficas

Agualusa, José Eduardo. O vendedor de passados. Lisboa: Dom Quixote, 2004.

Barros, Karen Dias. Urdidura liquefeita: um olhar sobre o vendedor de passados. Círculo de
Estudos Filológicos e Lingüísticos. Rio de Janeiro, 2009. Disponível em:
http://www.filologia.org.br/xiicnlf/15/10.pdf (data de acesso: 03/08/10).

Benjamin, Walter. Magia, técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

Kapuscinski, Ryszard. Mais um dia de vida: Angola 1975. Porto: Campo das Letras, 1998.

Löwy. Michael. A filosofia da história de Walter Benjamin. Estudos Avançados 16(45). São Paulo,
2002. Disponível em: www.scielo.br (data de acesso: 03/08/10).

Machado, Alexsandra. ŖO Vendedor de passadosŗ: e ntre o real e a ficção. IX Congresso


internacional da ABRALIC. USP, São Paulo, 2008. Disponível em:
http://www.abralic.org/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/077/ALEXSANDRA_MACHA
DO.pdf

Pires Laranjeira, José; Mata, Inocência; Santos, Elsa Rodrigues. Literaturas africanas de expressão
portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1995

Santos, Sônia Regina dos. A reinvenção da história, da memória e da identidade em O Vendedor de


Passados de José Eduardo Agualusa. Rio de Janeiro: Teias, ano 9, n. 17.

Sontag, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

anos de literatura angolana. Via atlântica, n. 3. Dez. 1999. Disponível em:


http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via03/via03_10.pdf
1
Para um relato sobre o fim da guerra colonial, ver: Kapuscinski, Ryszard. Mais um dia de vida: Angola 1975. Porto:
Campo das Letras, 1998.

438
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Tavares, Ana Paula. Cinquenta anos de literatura angolana. Via atlântica, n. 3. Dez. 1999.
Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via03/via03_10.pdf

439
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A ESTRUTURA FAMILIAR DENTRO DAS OBRAS: O CORTIÇO, O ATENEU, QUINCAS


BORBA E RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAIAS CAMINHA.

Juliana da Silva Morais (UFRR)


Vanessia Pereira Noronha (UFRR)
Profº. Dr Roberto Mibielli (UFRR)

Introdução

É proeminente abordar sobre o modo pelos quais as relações familiares são estruturadas em
determinado lugar e época. Para esse estudo é necessário entendermos o termo estrutura familiar. A
família é uma instituição antiga, suas origens ultrapassam a história, por isso, observá-la em
determinada época e lugar não é uma tarefa fácil, pois, antes de tudo, devemos entender a
importância dela para o meio social em diferentes momentos históricos.

Apesar de a família apresentar aspectos diferentes em relação a épocas e lugares, uma coisa
sabemos, que surge dela os primeiros passos de cada individuo, ou seja, todas as pessoas até chegar
a vida adulta e construir uma outra família, leva dela as influencias e principalmente os
ensinamentos adquiridos por ela.

Peter Burke, historiador da Universidade de Cambridge da Inglaterra, em seu livro Historia


e Teoria Sócial (2002), abrange uma discussão em volta da estrutura familiar. Para ele a família não
é somente uma unidade residencial, todavia, em muitos casos não deixa de ser uma unidade
econômica e jurídica. Burke relata ainda, que na família o mais importante deveria ser a
comunidade moral, ou seja, em que os membros se identificam e mantenha um envolvimento
emocional.

Entretanto, segundo o historiador, não pode haver uma coincidência entre uma unidade
econômica, emocional e residencial. Ou seja, talvez não ocorra uma íntima relação entre as três,
porque essa variedade de funções pode proporcionar problemas. Pois, explica ele que, as mudanças
econômicas, especialmente o surgimento do mercado industrial, remodelam não só as estruturas
sociais, mas também a familiar.

Burke aponta três tipos principais de família, os quais foram caracterizados por Frédéric Le
Play em 1871 em sua obra L´organisation de la famille (A Organização Familiar), sendo elas: a
Ŗpatriarcalŗ, também conhecida como conjunta, na qual os filhos casados, do sexo masculino,
permanecem sob o teto do pai; a Ŗinstávelŗ, conhecida como Ŗnuclearŗ ou Ŗconjugalŗ , em que todos
os filhos deixam a casa dos pais ao se casarem; e por ultimo, a Ŗtroncoŗ , em que apenas um filho
casado do sexo masculino permanece com os pais.

440
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Levando em consideração esses três tipos de características da família, é importante destacar


a Ŗnuclearŗ ou Ŗconjugal, que, como vimos, refere-se aos filhos que deixam a casa dos pais ao se
casarem. Pois, esse tipo de atitude é a mais comum em um país industrializado. Para tratar melhor
desse assunto, ou seja, da família nuclear, utilizarei as considerações de Thomas Bottomore em seu
estudo Introdução Critica a Sociologia 1920.

Ao referir-se a família nuclear, Bottomore enfatiza que ela é um fenômeno social e


universal. Pois nela se encaixam, em suas relações constituintes, quatro funções importantes para a
vida social do homem, as quais são: a sexual, a econômica, a reprodutiva e a educacional 1.
Complementa ainda que, na família nuclear existem as funções sociais e psicológicas que pode
distinguir-se. Sendo assim, nas funções sociais são apontadas quatro características, as quais foram
estabelecidas por Kingsley Davis; reprodução, manutenção (crianças), colocação e socialização. Já
nas funções psicológicas é relevante a satisfação das necessidades sexuais do matrimonio, e a
necessidade de afeição e segurança, tanto para os pais quanto para os filhos. Além dessas funções
da família, Bottomore argumenta que, existem outras como o culto religioso, assim também como o
status social que depende não só da realização individual, mas principalmente, da função familiar
(Thomas Bottomore, 1920).

Ele ressalta que, um dos fatores importantes na manutenção da família é a cooperação


econômica, a qual é baseada na divisão do trabalho entre os sexos, pois fortalece os laços entre pais
e filhos, assim como entre irmãos. Entretanto, na família nuclear das modernas sociedades
industriais, ocorre a perda dessas funções de produção, ou seja, do trabalho cooperativo dos
membros da família. Pois, de acordo com a explicação de Bottomore, a família nuclear é um
fenômeno recente e surgiu principalmente nas sociedades industriais. Sendo que, essa
predominância é comparada ao crescimento do individualismo, que reflete na propriedade, na lei,
nos ideais sociais e realização individual, e também na mobilidade geográfica.

Segundo o Sociñlogo a estrutura básica da família nuclear depende dos Ŗtabus do incestoŗ 2,
que é a fonte da complexidade dos usos do parentesco e da terminologia. Pois, destaca que a família
nuclear é descontínua no tempo, e limitada a duas gerações. Portanto, a terceira geração resulta da
formação de novas famílias com a troca de indivíduos masculinos e femininos entre as famílias
nucleares existentes. Com base nisso, é apontado duas famílias nucleares, a qual provavelmente
todo homem pertence. Uma é a Ŗfamília de orientaçãoŗ em que nasce e é criado, tendo assim o pai,
a mãe, irmãos. Outra é a Ŗfamília de procriaçãoŗ que é construída pelo casamento que abrange,
dessa forma, o marido ou a esposa e os filhos. Mas ocorre que essa divisão de família nuclear, pode
diferenciar-se de acordo com outras culturas.

1
Em vista, a explicação para essas funções talvez baseiam-se na seguinte idéia: a sexual seria na relação conjugal; a
econômica refere-se aos bens ou patrimônios da família; a reprodutiva trata-se dos filhos, que são os herdeiros desse
patrimônio; e por ultimo a educacional é o ensinamento que os pais passam para os filhos.
2
União sexual ilícita entre parentes consangüíneos, de acordo com o minidicionário Soares Amora da língua
portuguesa.
441
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Essa foi uma breve introdução sobre estrutura familiar, e como vimos, foram utilizados os
argumentos de Peter Burke e Thomas Bottomore, que relatam sobre o mesmo assunto, que são de
fundamental importância para a compreensão e análise das obras examinadas a seguir, sendo elas:
O cortiço, O Ateneu, Recordações do escrivão Isaias Caminha e Quincas Borba. Observa-se que
cada autor utilizou termos semelhantes apontando algumas funções para esclarecer um pouco sobre
a organização da família. No entanto, são essas categorias que nos fazem refletir sobre a concepção
da estrutura familiar. Sendo assim, é preponderante apontar estudiosos, que assim como eles,
discorrem sobre o mesmo tema, e com isso, contribuem para o fortalecimento desse estudo.

Breve Histórico sobre a Estrutura Familiar

Não sabemos, ao certo de que forma desenvolveu-se a formação da família, desde a


primitiva ate a moderna, ou melhor, até nos paises industrializados. Para entendermos isso, temos o
estudo de Friedrich Engels, no seu livro A origem da família, da propriedade privada e do estado,
1891. Ele relata que, através dos séculos e dos milênios, a família foi modificando e as suas regras
de constituição foram-se diferenciando, surgindo assim, outras modalidades de vida em sociedade,
que abrangem a criação de outras necessidades para o grupo familiar, e com isso, dando origem a
uma inclusão no sistema da indústria. Isso talvez seja decorrente da expansão do território, ou
mesmo da guerra, assim como de troca, compra e venda que passaria a ser visto como uma
atividade industrial.

Engels apresenta informações sobre a origem da família, e mostra algumas categorias em


que compreende a organização da mesma. Uma delas seria a Ŗfamília consangüíneaŗ , na qual todos
os avôs e avós são maridos e mulheres entre si, e que, era permitido o sexo entre irmãos e irmãs,
tornando maridos e mulheres uns dos outros. Entretanto, essa forma de família desapareceu. Outra
seria a Ŗfamília punaluanaŗ , que passou a evitar as relações sexuais entre os irmãos uterinos
(aqueles que são irmãos por parte de mãe), e também casamentos entre irmãos colaterais, ou seja,
primos carnais. Isso aconteceu devido as instituições de modo religioso e social. Segundo Engel,
esse grupo de família reflete os graus de parentesco semelhante à forma que expressa o sistema
americano.

Há também a família pré-monogâmica que, refere-se ao casamento por grupo, ou seja, o


homem tinha muitas mulheres, que obtinha por rapto ou compra das mesmas, e isso foi muito
difundido, sendo que, surgiu entre o estado selvagem e a barbárie, porém, ela não se generalizou.
Por ultimo, Engels cita a Ŗfamília monogâmicaŗ , que era bastante comum entre os gregos, em que
eram mais fortes os laços conjugais não podendo ser rompido por uma das partes.

Essa explicação foi apenas para mostrar, um pouco, sobre a organização da família desde a
primitiva, visto que, modificou-se bastante, até a sociedade industrial. Engel aborda que, na
sociedade burguesa, em que os pais arranjam para o jovem burguês a mulher que melhor lhe
convém, pela posição social, resultou dessa forma, o matrimonio de conveniência. Explica ainda

442
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

que, a família individual moderna é fundamentada na Ŗescravidão domesticaŗ , transparente ou


dissimulada, pois, o homem tem de ser o suporte da família, pelo menos nas classes possuidoras,
dando uma posição de dominador. Sendo assim, complementa Engels que, Ŗo homem é o burguês e
a mullher representa o proletariadoŗ . Para ele, desde que os meios de produção passaram a ser
propriedade comum, a família individual deixou de ser a unidade econômica da sociedade, e a
economia doméstica transforma-se em Ŗindústria socialŗ.

Quanto à educação das crianças, todavia, passaram a ser uma atividade pública. Ou seja, a
sociedade cuida de todos os filhos, independentes de serem legítimos ou não. Essa visão de Engels é
muito importante para compreendermos a estrutura familiar da sociedade industrial. Segundo ele, o
casamento na concepção burguesa era um contrato, e muitas vezes, era o mais importante de todos
os negócios. Ele também enfatiza muito a respeito da vida sexual no casamento, e sua relação com a
manutenção ou não do mesmo.

Compreende-se através de Engels que, na sociedade até mesmo dentro da família, existe
uma relação de poder, sendo que, o homem tem o papel de ser o Ŗdominadorŗ , tendo sobre sua
mulher, e também sobre os seus filhos uma autoridade.

O sociólogo Goran Therborn (1941), apresenta em seu livro Sexo e poder: a família no
mundo, assuntos que dizem respeito a instituição familiar. Ele argumenta que os poderes do pai e do
marido estavam fortemente institucionalizados, apoiados pela lei da igreja, assim como pela lei
secular. Pois, esse exemplo do homem de família provedor, administrador de sua propriedade,
tornou-se a norma do século XIX.

Entretanto, Michel Foucault em Microfisica do poder (1978), ao falar sobre a forma de


governar, associa isso à família quando diz que para governá-la é preciso ter como objetivo os
indivíduos que compõe a família, suas riquezas e prosperidades, e buscar formar aliança com outras
famílias. Pois, segundo ele se o Estado é bem governado, os pais de família sabem governar suas
famílias, seus bens, seu patrimônio.

Os dois teóricos Therborn e Foucault, abordam sobre o poder de diferentes aspectos, o


primeiro fala em relação ao patriarcado referentes às relações familiares, em que o pai/marido é
quem tem poder sob a família, o segundo trata do poder também concebido ao pai/marido
relacionado a forma de administrar os bens, o patrimônio, mas percebe-se que nos dois argumentos
o poder está associado a família.

Esses são alguns estudiosos que relatam sobre a estrutura familiar. Todos aqui citados
apresentam, de maneira diversa, informações que ajudam a esclarecer sobre essa Ŗinstituiçãoŗ que
sempre existiu, e que a cada época vai adquirindo novos valores, e mudanças. Os assuntos que
foram abordados realçam apenas uma simples explicação que vem a ser a estrutura familiar, pois
serve para mostrar como é importante entendermos o seu desenvolvimento juntamente com a
evolução da sociedade, e que juntos estiveram em constantes mudanças. Porém, o que realmente
443
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

interessa, é saber como a estrutura familiar é vista na sociedade industrial, especificamente na


burguesia, assim como vimos foi abordado por alguns autores apresentados neste estudo, e com
isso aplicar-se-á as obras aqui mencionadas para obtermos uma analise concisa.

A estrutura familiar nuclear burguesa

Após termos uma breve compreensão da estrutura familiar trataremos da mesma,


especificamente a nuclear, por se tratar da sociedade industrializada, pois reflete o século XIX,
época em que ocorrem os fatos das obras: O cortiço, O Ateneu, Quincas Borba e Recordações do
escrivão Isaias Caminha.

De acordo com Bottomore (1920) a família nuclear é fundamentada em quatro funções a


educacional, a econômica, a reprodutiva e a sexual, e segundo o sociólogo ela é um fenômeno
social e universal. Essas funções serão analisadas segundo o conceito que temos da família nuclear
na sociedade burguesa. Na análise trataremos, especificamente, das funções educacional e
econômica. Engels explica que a família moderna é conhecida também como monogâmica, devido
ela ser a forma da sociedade civilizada. Para os gregos o objetivo da família monogâmica é o
domínio do homem na família e a procriação de filhos que estavam destinados a herdar suas
riquezas. E, por muitas vezes, o casamento, para a formação de uma família, era apenas de
conveniência, principalmente das classes possuidoras.

Nessa análise será levado em consideração, a estrutura familiar de alguns personagens de


cada obra, por exemplo, em O Ateneu explanarei sobre a família do personagem Sergio, que apesar
de obter poucas informações, é possível termos características que expliquem sobre a estrutura de
sua família.

Em Recordações do Escrivão Isaias Caminha tratarei da estrutura familiar do personagem


Isaias Caminha, pois este, mesmo sendo pobre e mulato quer conseguir um título de doutor. Talvez
essa convicção de estudar seja por meio do estímulo repassado ao pai, ou seja, surge do âmbito
familiar. Na obra Quincas Borba buscarei explicar sobre como ocorre a função educacional
atribuída à mulher. Que como veremos se distingue totalmente aos dos homens, pois estes têm a
liberdade de estudar, conseguir um título, e escolher a mulher para o casamento, e assim formar sua
própria família, mesmo que seja por conveniência. E, por fim, na obra O Cortiço procurarei fazer a
análise sobre a família do personagem Miranda e Jerônimo, que mantém suas relações familiares
diferentes uma da outra.

A função educacional e econômica na família nuclear burguesa dentro das obras

Na obra O Ateneu, Sergio, personagem-narrador, será observado na perspectiva familiar e


talvez seja plausível encontrar a função educacional, e a econômica. Já que a função reprodutiva

444
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

esta ligada aos filhos, e Sergio é visto como o filho que é deixado pelos pais no colégio Ateneu, e a
função sexual esta associado ao matrimonio, porém, não constam subsídios sobre esse tipo de
função na família do personagem Sergio.

A função educacional não vem somente da família, mas também de outras instituições como
a escola, religião, ou seja, de outras influencias do meio social. A função econômica é a forma de
administrar corretamente, os bens, as riquezas do interior da família, ou como diz Faucoult (1978),
é saber governar a família.

Nessa obra não deixa tão claro como funcionam todas as funções dentro da família do
personagem Sérgio, e por isso partiremos para um das funções que talvez seja a mais defendida
dentro da obra. Talvez, a primeira seria a função educacional, que envolve também a econômica.
Pois Sergio aos onze anos passa a estudar no internato chamado Ateneu, colégio de grande
prestígio. Antes de ir para o Ateneu, ele estudava durante a infância em uma pequena escola, e
depois passou a ter aula em domicilio.

No capitulo I, logo no início, o pai orienta seu filho, Sergio, na entrada do Ateneu da
seguinte forma: ŖVais encontrar o mundo. Coragem para a lutaŗ . Trata de uma metáfora, em que o
pai quer mostrar ao seu filho que o conhecimento é o caminho para o progresso e só através do seu
esforço no estudo ele consegue ter essa conquista.

A segunda seria a função econômica, pois estudar em um colégio tão prestigiado como
Ateneu significa que sua família, composta apenas do pai e da mãe, está em boa posição social, pois
seus pais chegam a fazer uma viagem pela Europa, enquanto o jovem fica sob os cuidados do
internato. E o tratamento dado aos alunos do Ateneu é diferenciado na maioria das vezes pelo poder
econômico.

Na obra Recordações do escrivão Isaias Caminha de Lima Barreto pouco se percebe a


estrutura familiar do personagem Isaias Caminha. Somente no capitulo I o narrador-personagem
fala sobre o seu circulo familiar. E, ao contrario do personagem Sergio em O Ateneu, Isaias
Caminha pertence a uma família pobre, ou seja, de um nível social mais baixo. Ele, filho único, de
um vigário da região e de uma mulher parda e humilde. Isaias, também personagem-narrador,
admirava seu pai por causa do conhecimento que ele demonstrava ter:

ŖPareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço da
linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las constituíam, não só a
razão de ser de felicidade, de abundancia e riqueza, mas um título para o superior respeito
dos homens e para a superior consideração de toda gente.ŗ
Ŗ(...) Se minha mãe me parecia triste e humilde Ŕ pensava eu naquele tempo- era porque
não sabia, como meu pai, dizer o nome das estrelas do céu e explicar as coisas da chuva....ŗ
(capitulo I, pág. 15)

445
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Nesse trecho, ele chega a ver o conhecimento como uma razão da felicidade, assim como
uma riqueza, e acima de tudo como um título. E essa admiração que sentia pelo pai foi que deu
estímulo para seguir os estudos. Observa-se ainda que, ele compara a tristeza e a humildade de sua
mãe devido à desigualdade de conhecimento que tinha o seu pai. Isso é que o fortalece o desejo de
obter conhecimento. Em contradição a primeira obra, personagem Sergio, aqui percebe-se que
surge do personagem Isaias Caminha a vontade de se dedicar aos estudos.

Assim como em O Ateneu, está presente em Recordações do escrivão Isaias Caminha a


função econômica e a função educacional. A primeira reflete a posição social de sua família, que é
pobre e leva uma vida roceira. A segunda refere-se ao desenvolvimento educacional que o filho,
Isaias caminha, obteve durante a infância pelos seus pais. Porém, mesmo sua família não tendo
economicamente condições para a contribuição dos estudos, é relatado pelo o narrador-personagem
a sua passagem no curso primário. O qual comenta que tinha uma boa reputação de estudante e
conseguira passar, durante seus anos de estudos, por todas as aprovações.

Apesar das dificuldades que seus pai tinham em fornecer uma boa educação ao filho Isaias é
mostrado o esforço que ele fazia para ajuda-lo:

Ŗ(...) Animara a continuar os meus estudos, fizera sacrifícios para me dar vestuário e livros,
desenvolvendo assim uma atividade acima dos meus recursos e forças.ŗ

Quando o personagem-narrador diz Ŗanimaraŗ ele refere-se ao pai que apesar de ser humilde
tentou dar o melhor para o seu filho continuar nos estudos, pois essa era a única herança que ele
poderia deixar ao filho. Talvez essa força fornecida pelo o pai foi que deu a Isaias pretensão de ir
adiante, ou seja, tentar conseguir um título de doutor.

Na obra Quincas Borba de Machado de Assis não fica bem claro como fica a função
educacional em uma família nuclear burguesa, mas pode-se considerar que a forma de educação
fornecida às mulheres, que é diferente aos dos homens, trata-se de uma educação baseada na cultura
da época. Porque para a mulher o ensinamento está associado aos fazeres domésticos, para ser
aproveitado no matrimônio. Pois, ela não tem a mesma liberdade de estudar e conseguir um título
de doutor, ou algo parecido, como os homens. Com isso, o casamento é a única forma de conseguir
se destacar na sociedade. Percebe-se isso no trecho em que o narrador fala em relação a personagem
Maria Benedita em Quincas Borba: ŖA educação foi sumária: ler, escrever, doutrina e algumas obras de agulhaŗ
(pg. 90, 1992).

Isso mostra um pouco como era atribuída a educação às mulheres, como se vê nesse
fragmento, à mulher bastava ler e escrever, talvez isso fosse o suficiente além dos ensinamentos
domésticos para a educação das mulheres na família nuclear burguesa. É o que nos lembra Engels

446
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ao falar que no regime de Atenas, época em que surgiu a família monogâmica, as jovens a prendiam
somente a fiar, tecer e costurar, e no máximo a ler e escrever um pouco. No entanto, essa é uma
situação que se mostra presente na família nuclear burguesa.

E, por fim, em O Cortiço de Álvares de Azevedo temos outro exemplo de educação


atribuída à mulher, que é a personagem Pombinha, filha de dona Isabel. Mesmo esta sendo viúva,
procurou dar a melhor educação para a filha:

(...) Fora casada com o dono de uma casa de chapéus, que quebrou e suicidou-se, deixando-
lhe uma filhinha muito doentinha e fraca, a quem Isabel sacrificou tudo para educar, dando-
lhe mestre até de francês (...) (pg 28, 1999)

Apesar das condições sociais não serem favoráveis para Isabel, ela não mediu esforços para
educar a filha. As duas moravam em um cortiço, tinham uma vida econômica de nível muito baixo,
sendo que, a influência do meio em que conviviam poderia interromper a educação que a mãe
conseguiu passar para a filha. Pombinha era admirada por todos no cortiço. O narrador fala que era
ela quem escrevia as cartas, quem tirava as contas e fazia o rol para as lavadeiras. É uma jovem que
demonstrava ter uma boa educação, mesmo vivendo em ambiente impróprio para isso. Apesar de
Isabel fornecer o melhor na medida do possível para a criação da filha, o único desejo que ela tinha
era de ver a filha casada. Porque, para a mãe, Pombinha ficaria amparada sob os cuidados do
esposo.

Como vimos nas duas primeiras obras observamos como era a educação dos narradores-
personagens, os quais eram homens e podiam conseguir com os estudos um melhor nível social,
devido a possibilidade de conseguirem um título de doutor, ou algo parecido, mesmo a vida
econômica do segundo sendo inferior ao do primeiro, ele buscou um título de doutor, pois, essa era
a forma dele se sentir importante na sociedade burguesa. Já, nessas últimas obras notamos que a
educação fornecida às mulheres é sumária em relação aos dos homens, porque a elas é garantido
apenas ler e escrever, além de aprender a coser, tecer, ou seja, de aprenderem as atividades
domésticas. Pois, tudo isso serviria para utilizar no casamento, garantindo, assim, a sua segurança e
seu acomodamento na sociedade.

As relações familiares na obra O Cortiço

Em O Cortiço de Aluísio de Azevedo, temos na família personagem Miranda exemplo de


que se originou de um casamento de conveniência, ou seja, que formado com base em critérios
econômicos. Resultou assim em conflitos familiares, em que o personagem Miranda tinha dúvida
sobre a paternidade, pois sabia das traições da esposa, que é Dona Estela. Mesmo sabendo do
447
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ocorrido adultério, ele matinha ainda o matrimônio, porque zelava tanto a posição social que temia
um escândalo na sociedade:

Ŗ(...) Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério, ficou furioso e o seu primeiro
impulso foi mandá-la para o diabo junto com o cúmplice, mas a sua casa comercial
garantia-se com o dote que ela trouxera, uns oitenta contos em prédios e ações da dívida
pública, de que se utilizava o desgraçado tanto quanto lhe permitia o regime dotal. Além
disso, um rompimento brusco seria obra para escândalo, e segundo a sua opinião, qualquer
escândalo doméstico ficava muito mal a um negociante de certa ordem.ŗ

Engels (1891) explica que com a monogamia aparece duas figuras sociais constantes e
características, até então desconhecias: Ŗo inevitável amante da mulher casada e o marido traídoŗ. É
o caso desses dois personagens. Pois, sendo uma família conflituosa, talvez o motivo aparente seja a
falta de afeto entre os membros dessa família. Nota-se pelo trecho da fala do narrador que o único
interesse de Miranda pela esposa é o dote, enquanto a afetividade ficara de lava. E, talvez, esse seja
o motivo que a esposa Dona Estela, por falta de afetividade da parte do marido, levou a cometer o
adultério, deixando dúvidas a paternidade do comerciante Miranda:

Odiavam-se. Cada qual sentia pelo outro um profundo desprezo, que pouco a pouco se foi
transformando em repugnância completa. O nascimento de Zulmira veio agravar ainda mais
a situação; a pobre criança, em vez de servir de elo aos dois infelizes, foi antes um novo
isolador que se estabeleceu entre eles: Estela amava-a menos do que pedia o instinto
materno por supô-la filha do marido, e este a detestava porque tinha convicção de não ser
seu pai. (pg. 14, 1999)

Aqui percebe-se que os casais Miranda e Estela não tem nenhuma afetividade um com o
outro. Em consequência disso a menina Zulmira é vítima dessa situação entre os seus pais, que
passam a desprezá-la. No entanto, trata-se de uma família que guarda apenas a aparência,
permitindo a infelicidade dos seus membros, ao contrário do que deveria ser uma família. Como
disse Peter Burker Ŗa família deve ser a comunidade moral, em que os membros se identificam e
mantenham um envolvimento emocionalŗ.

Ainda nessa mesma obra, observaremos outro tipo de relação familiar, que ao contrário da
família do Miranda, apresenta uma afetividade entre seus membros. O personagem Jerônimo, o
português, mora no cortiço com sua esposa, Piedade, e sua filha. Eles são de uma família humilde,
sem nenhum interesse financeiro por parte dos dois. Talvez por não se tratar de um casamento por
conveniência, deu origem a uma relação familiar mais harmônica em relação a primeira:

Ŗ(...) Era homem de uma honestidade a toda prova e de uma primitiva simplicidade no seu
modo de viver. Saía de casa para o serviço e do serviço para casa, onde nunca ninguém o
448
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

vira com a mulher senão em boa paz; traziam a filhinha sempre limpa e bem alimentada, e,
tanto um como o outro, eram sempre os primeiros à hora do trabalho (...)ŗ (pg 39, 1999)

Assim, como diz o narrador, por ser de uma simplicidade no seu modo de viver, Jerônimo
mantém uma boa relação com os membros de sua família. Em contradição ao Miranda,
comerciante, em uma posição social que tinha conflito com os membros no seu círculo familiar.
Para explicar isso, abordarei sobre as considerações de Engels, ao explanar a relação do proletariado
com sua esposa em oposição a relação do burguês com sua esposa. Segundo ele, o amor sexual só
ocorre com as classes oprimidas, entre o proletariado. Porque inexistem os bens e as riquezas que
foram instituídas a monogamia e a dominação do homem pela mulher. Pois, o direito burguês que
defende essa dominação só existe para as classes possuidoras.

Com base nesse critério, a classe possuidora seria a família do Miranda enquanto a do
proletariado refere-se à família do Jerônimo. Isso nos leva a entender o motivo do conflito na
relação familiar do primeiro em contradição à relação familiar do segundo. Uma vez que, ambos
tiveram interesses diferentes na formação de sua família.

Considerações finais

Em síntese, a estrutura familiar nos permite compreender as normas de conduta de uma


sociedade local. Porque ela não é uma instituição isolada, pois, tem características da cultura do seu
meio social. Vimos também que a família passou por diversas mudanças, desde a primitiva até a
moderna.

Para a análise das obras: O Ateneu, O Cortiço, Recordações do escrivão Isaias Caminha e
Quincas Borba, foi utilizado o conceito de família nuclear burguesa. Pois, esta reflete como era
formada a sociedade do final do século XIX, época em que ocorre os fatos dos romances.

A família nuclear é composta por quatro funções, as quais foram utilizadas apenas duas para
a análise das obras: a educacional e a econômica. Para explicar sobre essas funções, utilizei de um
personagem de cada obra. Foi mostrado como a educação oferecida pelos pais aos filhos significa
muito para a vida adulta. Uma vez que, surge do pai o interesse de educar seus filhos para se tornar
alguém na sociedade.

Percebemos que a educação dada ao homem é diferente da educação imposta às mulheres,


pois, enquanto eles podiam conseguir títulos de doutores, a elas era oferecido apenas o básico, ler,
escrever e aprender atividades domésticas para serem futuras donas de casa. Além disso, é o homem
quem governa a família, tendo assim, uma autoridade sobre os outros membros.

449
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ao referirmos à relação familiar dentro da obra O Cortiço, observamos que em uma família
como a do comerciante Miranda, apenas de aparência, há ausência de afeto entre os membros, pois,
foi formada por um casamento por interesse econômico, tendo em consequência disso, um conflito
entre os membros da família. E ao contrário, temos a família do Jerônimo que mantém uma
harmonia com a esposa e a filha, pois, estes sendo humildes não necessitam viver de aparência, e,
por isso, apresentam uma afetividade entre os membros de sua família.

Esse enfoque na estrutura familiar foi para mostrar o quanto ela é importante para a
compreensão da história de uma sociedade. E apesar de viver em constantes mudanças, a família
ainda carrega traços de uma cultura passada, e isso permite que percebamos o seu desenvolvimento
junto com a sociedade distinguindo-se de outras épocas e culturas.

Referências bibliográficas

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: coleção grandes leitura, FTD, 1992.

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. 34ª ed. Ŕ Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaias Caminha. 2ª ed. Editora Escala.

BOTTOMORE, Thomas. Introdução Critica à Sociologia. Editora Zahar, 1920.

BURKE, Peter. Historia e teoria social. Editora UNESP, São Paulo, 2002.

CASEY, James. A Historia da Família. Editora Atica, 1992.

FREIDRICH, Engels. A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Editora Escala.

POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 2 ed. Ŕ São Paulo: coleção grandes leituras, FTD, 1992.

THERBORN, Goran. Sexo e Poder: A Família no Mundo 1920-2000. Editora Contexto, 2006.

450
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ISTO É O SERTÃO: MANIFESTAÇÕES DO MAL NA POIESIS ROSIANA DE GRANDE


SERTÃO: VEREDAS

Juliana Maria Silva de Sá (UEA/Fapeam)

Da atividade ficcional exige-se capacidade de invenção. Inevitável na invenção, o gosto pelo


risco de dizer o que ainda não se explorou e por meio dele desconstruir conceitos, suscitar tensões
ou recriá-los em arremedo da realidade situa-se entre os principais vanguardistas da moderna
tradição literária brasileira. A fusão de gêneros lírico, épico ou dramático, especialmente na
categoria da tragédia, destaca-se em meio às manifestações de natureza estética de nossa literatura
que aderem aos ideais da ruptura como condição criadora. Dentre aqueles que se propuseram
investir um projeto de síntese épico-dramática da realidade sertaneja figuram Euclides da Cunha
com Os Sertões ([1902] 2002) e Guimarães Rosa com Grande Sertão: Veredas ([1956] 2003).
Argumento incontestável diante da fortuna crítica das letras brasileiras, a contribuição de ambas as
obras para a leitura do homem sertanejo com suas lutas e conflitos certifica o lugar de destaque que
ocupam em nossa literatura. Superando dissoluções estéticas representadas por Euclides em Os
Sertões1, Rosa acresce ao tratamento privilegiado do sertão o predomínio da violência sobre a
tradição cruel da guerra jagunça e sua influência sobre a cultura sertaneja, tornando sua obra uma
das mais significativas poéticas contemporâneas do romance brasileiro.
De Magma ([1936] 1997) à Tutaméia: Terceiras estórias ([1967] 2001) peregrinam, ao
longo de suas narrativas, atributos caros a um Ŗdiscurso miméticoŗ (LIMA, 1980, p. 50)
genuinamente inventivo tal qual a poiésis descrita por Platão em A República (2004. p. 187), como
Ŗagente que traz à existência algo que ali não havia antesŗ , isto é, decorrência da capacidade de
imitação da imitação do real. Fruição estética ilustrada na liberdade de criação da linguagem por
meio da qual se experimentam acentos, transferem-se pesos de uma sílaba para outra, ensaiam-se
estórias e digressões. Resgatadas de um entre-lugar mantido em oculto pelo sertanismo romântico2,
as autênticas imagens do sertão e seu sistema jagunço aliam-se à luz da arte verbal de Rosa que,
num trabalho artesanal, determina suas condições internas de produção Ŗem função das
características sociais e políticas vigentes no grande sertão em que vigoram a coação, a violência, o
arbítrioŗ (LEONEL; SEGATTO, 2005, p. 75).
Para além da semelhança com o enredo central de Doutor Fausto ([1950] 2000) 3, o mal
revelado em Grande Sertão excede a presença do pactuário e se concebe sombrio e impiedoso nas
imagens evocadas na fala de Riobaldo que, de seus muitos relatos sobre a vida e os costumes no
sertão, atribui à descrição de Valtêi e Hermógenes um clima próprio de horror. Ao recriar a

1
Conforme assegura Walnice Nogueira em depoimento aos imortais da Academia Brasileira de Letras acerca da
contribuição da ficção euclidiana para a nossa literatura, em julho de 2001.
2
LINHARES, Temístocles. Do sertanismo romântico e outras manifestações realistas. In: História crítica do romance
brasileiro I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. p. 139-163.
3
Alegoria político-filosófica de Thomas Mann (1875 Ŕ 1955) em referência à clássica tragédia de Goethe (1749 Ŕ
1832), que introduz na literatura medieval a figuração do mal oriundo do contato pactuário com o demônio.

451
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mitologia sertaneja1 sob a perspectiva do discurso poético, Guimarães Rosa redimensiona a


violência e a crueldade no seio da cultura jagunça, estendendo seus domínios a causos peculiares,
como aquele representado na violência impelida entre Valtêi e seus pais.
Numa breve consideração sobre a estética do mal subscrita em Grande Sertão: Veredas,
veremos de que maneira os desdobramentos do crime e da violência no sertão se revelam na
configuração do romance rosiano, inserindo-a no Ŗprocesso de ficcionalização da crueldade
cotidiana que marca o espaço urbano no Brasilŗ (SOARES, 2005, p. 168). Dada a brevidade de
tempo e espaço a que se destina, concentra-se a proposta em Valtêi e Hermñgenes, dois Ŗcausosŗ
representativos da temática em torno da maldade humana pontuados no romance. Sob a leitura do
processo transitório e criativo da arte literária e fruição estética rosiana, este estudo versará ainda o
argumento pelo qual se aplica o conceito de originalidade à obra prima de Guimarães Rosa.

Jagunçagem e barbárie em Hermógenes

Um submundo de resistência num mundo de barbárie. Traduzido como perfeita encarnação


do mal por Euclides da Cunha (2002), o espaço do sertão rosiano se alinha à aporia do horror
introduzida em Os Sertões ao reunir casos de crime, dor e violência que partem do plano puramente
temático Ŕ de onde aprioristicamente reside o ideal de resistência contraliterária1 Ŕ para
representarem indicadores de uma prática rotineira, incorporada à cultura sertaneja em todos os seus
níveis, porém revelada, sobretudo, por Ŗdesocupados permanentes, [que] vagando de léu em léu à
cata do que se manter, apresentando-se a ocasião, enveredam para o crimeŗ (PRADO JÚNIOR apud
LEONEL; SEGATTO, 2005, p. 78-79).
A descrição de Caio Prado Júnior (1973) faz menção ao jagunço, tipo humano histórico
revestido de tom mitológico e místico da realidade sertaneja que, afamado pela cultura popular,
agrega à sua imagem valores antitéticos de bravura, medo e violência. Para além das análises
extenuantes já produzidas a fim de se chegar a uma compreensão mais apurada de permanências e
descontinuidades da jagunçagem na ficção rosiana posta em paralelo com outras obras de mesmo
tema, o pensamento em torno da monstruosidade ética de tal personagem propõe novos
desdobramentos. Dentre estes, destaca-se o verbo enquanto dúplice instrumento de denúncia da
barbárie: primeiramente, a serviço do jagunço fragilizado pela represália de seu próprio bando
quando este se negava a executar prisioneiros por Ŗcomprazimentoŗ (ROSA, 1986, p. 461); em
segundo plano, dialogando a figura do mal instintivo impetrado pelo jagunço como punição,
ameaça ou sentença contra inocentes.
Seja sob a forma do mal cometido ou do mal sofrido, Ŗa violência habitual, como forma de
comportamento ou meio de vida, ocorre no Brasil através de diversos tipos sociais, de que o mais
conhecido é o cangaceiro da região nordestinaŗ (CANDIDO, 2004, p. 99). Como romance

1
Objeto já explorado em nossa literatura sob o olhar idealizado da prosa romântica de José de Alencar em O Sertanejo
([1875] 1975) e da seca e do jagunço incorporados em O Cabeleira ([1876] 1973), de Franklin Távora.

452
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

transgeográfico e transhistórico, Grande sertão tornou possíveis atos de violência e barbárie que
excederam fronteiras de propriedades particulares, questionando incoerências do sistema de
autoridade dos chefes jagunços e seus subordinados, até então, pouco explorados na moderna
literatura sertanista.
Como aponta Candido (2004), na relação de autoritarismo e violência da honra dos jagunços
prevalece uma espécie de código de conduta regulador dos costumes de cada bando no qual se
manifestam arbitrariedades que desafiam o poder de seus líderes, num tenso e insurgente embate de
forças. Subversivo representante desse ideal de ruptura com o caráter heróico do jagunço,
Hermógenes abre espaço ao medo e à negatividade ao sentenciar um modo próprio de violência e
morte descrito com repúdio por Riobaldo.
Dialogando com a Ŗbrutalidade humana dentro da quietude miserável das coisasŗ (CUNHA,
2002, p. 256) de Os Sertões, Grande Sertão: veredas manifesta suas Ŗrelações de dominação
regidas pela violênciaŗ (LEONEL; SEGATTO, 2005, p. 77) no mal ameaçador incorporado em
Hermógenes, sob o qual permanece não apenas a suspeita de uma incerta associação com o mal
demoníaco como também um juízo abjeto de seus mecanismos de assimilação do mal. Dos diversos
exemplos de crueldade gratuita impelida contra inocentes, sobressaem as

ruindades de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando,


estripando, furando os olhos, cortando línguas e orelhas, não economizando as crianças
pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na beira de
estrago de sangues... (ROSA, 1986, p. 38).

Contrapondo a ética da honra e da vingança do sertão-jagunço, Hermógenes transgride a


figura do herói determinista1 com sua imposição de resistência à fria hierarquia estabelecida pelo
código de honra jagunço que impunha total submissão ao comando de Joca Ramiro, seu líder. O
assassinato do compadre, chefe e amigo que desestabiliza o regime de soberana autoridade do líder
sob seu bando incorpora aos costumes de seus subjugados novos valores de poder, sanguinários e
vis quando igualadas ao julgamento de Ramiro, impostos em verdadeiros contextos de guerra
instaurados nos arraiais de bandos inimigos. Na medida em que as tensões entre estes bandos se
intensificam, a barbárie torneia a exterioridade dos conflitos e volta-se aos integrantes do bando sob
influência de Hermógenes, como no tumulto causado por Fancho-Bode e Fulorêncio ao insultarem
Diadorim (ROSA, 1986, p. 136).
Confrontos como estes reiteram outra descrição de Os Sertões (2002). Estando muito
prñximo da barbárie, o Ŗhomem do sertão, encourado e bruto, tinha parceiros porventura mais
perigososŗ (CUNHA, 2002, p. 324). Ao se voltarem uns contra os outros, o bando hermogênio não
apenas rompe com o código de fidelidade mantido pela conservação da ordem entre os jagunços
como também passa a admitir práticas condenáveis sobre o ponto de vista ético-moral defendido
por homens como Medeiro Vaz, Zé Bebelo e Titão Passos. ŖRixar gratuitamente, obrar

1
Categoria observada por Mouralis na literatura negro-africana de expressão francesa em MOURALIS, Bernard. As
Contraliteraturas. Coimbra: Almedina, 1982.

453
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

brutalidades, atirar em passantes inocentes ou, tão somente, aterrorizá-losŗ (ROSA, 1986, p. 463,
469- 470) são alguns outros exemplos de um ajustamento interno que se tornou comum entre os
jagunços dedicados a romper com qualquer sentimento de humanidade, promovendo conflitos em
que o sofrimento alheio tornara-se objeto de prazer.

Causos da maldade: Um tratado da violência em Valtêi

Marcas de violência insídica e gratuita atribuída à inocentes, redemunho de horrores cíclicos


nutridos pelo prazer da punição. Citado por Riobaldo dentre uma e outra fatídica estória, o trágico
causo do menino Valtêi, filho de Pedro Pindó, conhecido do narrador de Grande Sertão, bem
representa a influência do mal sobre os destinos do homem sertanejo, mesmo sobre aquele que se
via imune à ira da humanidade ou dela almejava sair incólume. Num arremedo da inumana
realidade de algumas famílias sertanejas, o costumeiro ritual de agressão impelida contra o menino -
motivo que ao fim o faz participante da experiência-limite da morte (ROSA, 1986, p. 6) Ŕ delata
uma espécie atroz de prazer experimentado com o sofrimento alheio, acrescido de pontuais e,
continuamente intensos, atos de tortura.

Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem
de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm um
filho duns dez anos, chamado Valtei Ŕ nome moderno, é o que o povo daqui agora apreceia,
o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito
mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo
das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha
pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um
caco de garrafa, lanhou em três pontos a polpa da perna dela. O que esse menino babeja
vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. Ŕ ŖEu gosto de matar...ŗ Ŕ uma ocasião ele
pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça Ŕ o vôo já
está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão
nele, de miséria e mastro Ŕ botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro,
ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois
limpam a pele do sangue com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O
menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e
entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o
Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim, foram criando
nisso um prazer feio de diversão Ŕ como regulam as sovas em horas certa confortáveis, até
chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no
blimbilim, não chega para a quaresma que vem... (ROSA, 1986, p. 6).

Como a raiz de um mal congênito nutrido pela crueldade impetrada por Valtêi e
correspondida em igual medida por seus pais, a relação mantida em família indica uma luta
controversa de supressão da violência por seus próprios mecanismos. A despeito de sua fala
desregular, Riobaldo consegue transmitir a negatividade das imagens evocadas pelo caráter
maléfico das ações do menino e seus concernentes castigos, a vigor. A falta de linearidade da
construção estético-discursiva não impede que o mal se alastre e assuma a pena do sofrimento
imputada fria e violentamente entre pais e filho. Sob o discurso da correção, o horror inerente aos
episódios de sanção disciplinar atribuídos a Valtei sugerem partir do mesmo contexto político-

1
Por muitos, representada em Riobaldo que, disfarçado de resignação, resiste à tragédia de seu destino, abandona a vida
de jagunço e dedica-se a se tornar um homem de bem.

454
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

situacional dos sistemas jagunços com a violência recíproca que lhes eram características. Dadas as
coincidências, Ŗpoderíamos pensar que a inocência da maldade de Valtêi remete a Hermñgenes, a
Řmaldade purařŗ ? (MORAES, 2008, p. 98).
A partir da observação da violência e do crime como manifestações específicas do mal sobre
o menino, a hostilidade generalizada numa mesma família se instaura e, inerente a ela, o desejo por
participar a dor alheia. Envolvido por dois distintos elos - o horror e o prazer Ŕ o signo demoníaco
dos comandos de Hermógenes revela traços de semelhança com o sadismo afinado à família Pindó.
A tensa relação entre Valtêi e seus pais, e Hermógenes e os inocentes a quem imputava dor Ŕ bem
como seus inimigos declarados - dialogam e correspondem-se num trabalho de mediação entre duas
esferas culturais que convergem simultaneamente ao universo da violência.
Partindo do plano da violência e da apropriação da dor alheia 1 para conferir à narrativa todo
o seu teor de violência, a maldade supostamente inata de Valtêi questiona as fontes de onde partem
seus atos abjetos. O domínio que o jovem menino demonstra possuir acerca dos mecanismos de
apreensão do mal assim como o gosto pela violência e pela tortura brevemente narrados em Grande
Sertão: veredas projetam sobre a descrição de Riobaldo espontaneidade e disposição para a
violência sob uma perspectiva de plena impunidade.
Sob o aspecto da infância com toda sua ordem de carências, negligências e cuidados, a
descrição de abusos e violências cometidos e sofridos por Valtêi compete com o perfil da fase de
desenvolvimento. Diferentemente da dimensão de horror agregada ao jagunço e aos pais do menino,
desvios de comportamentos tais como nele revelados questionam e desmitificam as referências de
ingenuidade e isenção de maldade atribuídas ao tipo humano infantil. Transtornos de
comportamento e personalidade como os revelados na persona de Valtêi além de incomuns à idade
atribuem à infância a suscetibilidade e fragilidade moral, durante o qual o mal pode florescer com
facilidade.
Na forma de Ŗviolência sádicaŗ (DIAS; GLENADEL, 2004) vinculada não apenas às
desigualdades sociais caras ao tempo histórico em que fora concebida a narrativa rosiana como
ainda ao Ŗprincípio da crueldadeŗ comum ao ambiente sertanejo, o mal representativo no menino
avança em direção ao eixo da intolerância equivalente à recíproca aferida sistematica e friamente
sobre Valtêi.

Referências bibliográficas

ALENCAR, José de. O Sertanejo. São Paulo: Ática, 1975.

BOLLE, Willi. O Brasil jagunço: retórica e poética. Rev. Inst. Estud. Bras. [online]. n. 44, 2007, pp.
141-158.

CANDIDO, Antonio. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In: Vários Escritos. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004, p. 99-124.

1
Sobre os desvios do comportamento humano diante das barbaridades mundanas, ver SONTAG, Susan. Diante da dor
dos outros. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

455
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

DIAS, Ângela Maria, GLENADEL, Paula. (Orgs.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro:
Atlântica Editora, 2004.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Os Sertões faz cem anos: o alcance das idéias de Euclides da Cunha.
Conferência proferida na Academia Brasileira de Letras. Jul. 2001.

HANSEN, João Adolfo. Forma, indeterminação e funcionalidade das imagens de Guimarães Rosa.
In: SECCHIN, Antonio Carlos (org.) et al. Veredas no sertão rosiano. Rio de Janeiro: 7Letras,
2007, p. 29-49.

LEONEL, Maria Célia; SEGATTO, José Antonio. Política e violência no Grande Sertão de
Guimarães Rosa. Estudos Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v.13, n.1, p.75-93, abr. 2005.

LIMA, Luiz Costa. Mimesis e Modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

MANN, Thomas. Doutor Fausto: A vida do compositor alemão Adrian Leverkühn. Trad. Herbert
Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

MORAES, Anita Martins de. Às voltas com a aporia do mal, o redemunho. Trilhas do grande
sertão. In: Revista Cerrados, Brasília, vol. 17, n. 25, p. 93-106, abr. 2008.

PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1973.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 36. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986.
____________________. Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

____________________. Tutaméia: Terceiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

SOARES, Angélica. Estéticas da Crueldade. In: ALEA, Rio de Janeiro, v. 7. n. 1, p. 167-169, jan. Ŕ
jun. 2005.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.

TÁVORA, Franklin. O Cabeleira. Rio de Janeiro: Editora Três, 1973.

456
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

RESISTÊNCIA, REPRESSÃO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS PSÍQUICAS PRESENTES NAS


OBRAS ŖASEMENTEŗ E ŖEM CÂMARA LENTAŗ

Juline Ribeiro Silva - PIBIC/UFPA


Augusto Sarmento-Pantoja Ŕ UFPA (Orientador)

Resumo: A partir do contexto sócio-político de ditadura governamental em que os enredos da peça teatral
ŖA Sementeŗ , de Gianfrancesco Guarnieri, e do romance ŖEm Câmara Lentaŗ , de Renato Tapajñs, estão
inseridos, o presente estudo objetiva mapear em tais obras duas características peculiares a esse período: a
repressão por parte do Estado e a resistência por parte dos movimentos esquerdistas dos operários e dos
guerrilheiros. Bem como evidenciar em tais obras alguns aspectos que norteiam o fenômeno do trauma, tais
como a memória amnésica, a fragmentação do ego, a não superação das perdas e o estado de desalento do
sujeito traumatizado.

Palavras-chave: Resistência. Repressão. Trauma. ŖA Sementeŗ . ŖEmCâmara Lentaŗ .

1. Introdução

Apesar da existência de diferenças, principalmente de ordem formal, entre um romance Ŕ


composto em uma escrita linear e compacta Ŕ e uma peça teatral Ŕ estruturada em diálogos Ŕ, tais
formas literárias apresentam seu valor expressivo como forma de manifestação da realidade.

Os enredos das obras ŖA Sementeŗ , de Gianfrancesco Guarnieri, e ŖEm Câmara Lentaŗ , de


Renato Tapajós, retratam conjunturas político-sociais que induzem algumas camadas da sociedade a
se organizarem para combater e resistir aos regimes ditatoriais em voga naquele momento. Dessa
forma, traçar um estudo comparativo entre as duas formas expressivas é de suma importância para
evidenciar as semelhanças na forma de representação dos aspectos da resistência, da repressão e dos
processos psíquicos decorrentes do trauma vivenciado dentro desse contexto.

Na peça teatral ŖA Sementeŗ é mostrada a tentativa do operário Agileu em mobilizar a


classe para reivindicar melhores condições de trabalho durante a ditadura de Vargas. Já no romance
ŖEm Câmara Lentaŗ são apresentados os movimentos da guerrilha urbana atuando contra a ditadura
militar brasileira. Tais regimes políticos reagem violentamente contra esses grupos resistentes a fim
de reprimi-los, provocando seu silenciamento e desmantelamento dos ideais da resistência.

Na obra de Guarnieri fica nítida a presença de diversas situações subumanas de vida do


proletariado, tais como a alta carga horária de trabalho, a exploração infantil e a depressão. Soma-se
a toda essa estrutura, a tentativa de Agileu em liderar diversas revoltas dentro da fábrica a fim de se
obter melhores condições de vida; mas pode-se dizer que esse desejo fracassa diversas vezes, seja
pela falta de união à causa pela grande maioria operária, seja pelo silenciamento decorrente da
repressão política.

457
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Já o enredo do romance ŖEm Câmara Lentaŗ apresenta a descrição minuciosa dos


movimentos da guerrilha urbana, suas rotinas, estratégias de combate, questionamentos, desejos e
dificuldades de atuação; bem como a ocorrência da violência policial repressiva ao movimento, o
que envolve a prática de torturas e assassinatos aos militantes; e como resultante de todo esse
processo repressivo e de fracasso da resistência política, são manifestadas, a partir da voz do
narrador, as conseqüências traumáticas psíquicas, que incluem a memória amnésica, a fragmentação
do ego, a não superação das perdas e o desalento do sobrevivente. Tais conseqüências, que serão
discutidas posteriormente, também serão perceptíveis na peça teatral ŖA Sementeŗ a partir da psique
do personagem Américo após a morte de seu filho Tonico.

2. Resistência

É perceptível nos discursos de alguns personagens na obra ŖA Sementeŗ a resistência em se


aceitar as condições trabalhistas impostas pelo governo que geraram uma conjuntura social de
exploração e de miséria na maior parte da população.
Essa inquietação diante de tal realidade se faz presente principalmente no personagem
Agileu Carraro, um operário, que acredita que tal situação precisa ser transformada, isto é, não deve
ser aceita passivamente pelo povo, como é perceptível no diálogo a seguir: ŖAGILEU Ŕ A situação
está bem ruim, hein, avó?!/ VELHA Ŕ A gente acostuma./ AGILEU Ŕ Pois não devia acostumá!ŗ
(GUARNIERI, 1978, p. 29)

Pode-se considerar que as mobilizações de resistência de alguns operários, refletidas na


formação de um Partido, começam a se concretizar a partir do episódio em que Tonico, filho do
operário Américo, sofre um acidente na fábrica. No fragmento a seguir fica nítida a proposta de
Agileu para que a classe operária se mobilize caso Tonico morra: ŖAGILEU Ŕ Se o garoto morre, a
gente levanta a classe operária toda! Isso precisa de uma demonstração monstro!ŗ (Idem, p. 38).

Esse processo de resistência em relação ao que foi imposto é perceptível ainda no final de
uma reunião do Partido, em que são expostas as reivindicações propostas no discurso de Agileu:
ŖASSISTENTE Ŕ O que ele disse. Pagamento imediato do adicional, indenização filho do Américo,
proteção do menor, melhores condições de trabalho... há muitos filhos mortos... mulheres doentes...
muitos filhos comendo terra... (Sai.).ŗ (Idem, p. 59-60)

Mesmo quando Agileu não é entendido nem apoiado pelos companheiros do Partido ao
considerar ser essencial fazer um comício para protestar as péssimas condições de trabalho, ele
continua firme no seu posicionamento de resistência ao que é posto. Como é notável a seguir:

É preciso! É preciso fazê comício a todo instante. [...] Vivem falando em precipitação, em
falta de condições. A reboque de tudo, do próprio medo. Só porque tem um dedo-duro

458
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

qualquer, porque dois ou três companheiros foram presos, é o pânico? Nada disso, infeliz!
A hora é de ação e de ação rápida.

[...]

A hora é da gente ir pra fábrica. Esclarecer essa gente. Experimentá-los nas luta.
Demonstrar em massa nosso poder! (Idem, p. 57)

Com a morte de Tonico e de Américo já é nítida no trecho ŖNñs responsabilizaremos a


empresa pela morte do Tonico e do Américo! Nosso movimento é de protesto!ŗ (Idem, p. 106) a
movimentação de resistência por parte do operário Jofre, a fim de apoiar as causas defendidas por
Agileu.

Quando o gerente da fábrica, preocupado com a eminência de greves, tenta colocar os


operários contra Agileu afirmando que a greve é ilegal, o operário, respaldado pelos episódios da
morte de Tonico e o suicídio de Américo, argumenta fervorosamente contra o gerente ŖE a morte de
Toniquinho, é legal? E a falta de pagamento de adicional é legal? É legal esses menores trabalhando
tempo extra? E a morte do Américo? Que acabou de dor e de miséria, por falta de esperança? Do
Américo que morreu batendo nas máquinas! É legal?!ŗ (Idem, p. 108-109)

Percebendo que seu argumento conseguiu traduzir o que os outros operários sentiam a
respeito de toda aquela situação de exploração trabalhista, Agileu começa a liderar a manifestação,
após o gerente ter se retirado sob vaias. Como pode ser observado em ŖVamos lá, gente, pega as
faixas. Vamos receber os outros já de faixa aberta. Os manifestos estão aí, gente atira pro povo, com
fé, hein!... [...]ŗ (Idem, p. 110).

Já no romance ŖEm Câmara Lentaŗ , o processo de resistência se faz, dentre várias maneiras,
através do movimento guerrilheiro contra a ditadura militar, em que este tem como objetivo não
aceitar a opressão e a condição política impostas pelos que estão no poder, tal como afirma o
narrador-personagem: ŖNecessidade social da revolução: processo fora de nós, contínuo e
inesgotável Ŕ necessidade de cada um de nós, daqueles que não admitem permanecer placidamente
na superfície da vida.ŗ (TAPAJÓS, 1977, p. 114).

Percebe-se que esse sentimento presente no narrador não se altera mesmo depois da derrota
da guerrilha, haja vista que ele, agora sendo um sobrevivente, continua acreditando nos ideais da
guerrilha. Como fica nítido a seguir:

Eu sei que o gesto estilhaçou-se, não se completou, ficou a meio caminho. Mas não pode
ser apagado, tornando-se inexistente, esquecido. Mesmo errado, valeu a pena. Mesmo
errado, serviu para alguma coisa. Senão, será dar razão a eles. Será dar razão ao inimigo,
aos que exploram, aos que oprimem, aos que matam e torturam para continuar a explorar, a
oprimir, a matar e a torturar. (Idem, p. 48)

459
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Outra dimensão da resistência presente na obra ŖEm Câmara Lentaŗ consiste na luta frente à
repressão policial e pode ser notada através da personagem ŖElaŗ , que mesmo sofrendo agressões
não colabora no processo investigativo, isto é, não cede informações que poderiam contribuir para o
combate ao movimento guerrilheiro, nem mesmo seu nome declara:

Mas ela não gritou, nem mesmo gemeu. Apenas levantou a cabeça, os olhos abertos, os
maxilares apertados numa expressão muda de decisão e dor [...] enquanto outro perguntava
seu nome. Ela nada disse. Olhava para ele com um olhar duro e feroz [...] Apenas seus
olhos brilharam de ódio e desafio. (Idem, p. 170-171)

Tal posicionamento da personagem é bastante ressaltado e admirado pelo narrador, que


procura descrevê-la como uma mártir, capaz de morrer defendendo a causa da guerrilha. No trecho
da obra apresentado, o militante nos apresenta esse caráter heróico da personagem, evidenciando a
força sobre-humana que esta possuía para resistir e manter absoluto silêncio durante a tortura.

3. Repressão

Na obra ŖA Sementeŗ alguns operários descontentes com a realidade trabalhista e social


imposta já estavam cientes do perigo da repressão, e por isso pensavam com cautela antes de se
mobilizarem. No trecho a seguir é perceptível a alerta dada por Cipriano a Agileu de uma possível
repressão da polícia, depois dela já ter prendido a mulher deste: ŖEstou te entendendo, Agileu. Mas
eu não posso. E se eles te pegam agora, te amassam de pancada e você fala? Ninguém está livre
disso. É melhñ pra você ficá de fora. Me entende, vai!ŗ (GUARNIERI, 1978, p. 36)
Em outro fragmento da obra fica nítida a manipulação de depoimento que a polícia realiza
para tentar reprimir o movimento dos operários, a partir da deturpação da declaração de Rosa
Carraro, esposa de Agileu, em que esta afirma não ter conhecimento da participação do marido no
Partido, mas acaba assinando papéis em branco e que depois serão aproveitados para embasar tal
envolvimento:

DELEGADO Ŕ Pois muito bem. E a senhora afirma não saber qual o caráter dessas
reuniões.

[...]

DELEGADO Ŕ Sendo assim, a senhora não poderá negar que reuniões tinham caráter
subversivo...

[...]

DELEGADO Ŕ [...] nosso datilógrafo está ocupadíssimo. A senhora terá de esperar aqui
bastante tempo, talvez até amanhã. Então?

ROSA Ŕ Ah! Tô cheia, sabe? Dá aqui! (Assina as folhas em branco.) (Idem, p. 50-52)

460
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Eis a seguir o resultado de tal manobra policial, como forma de enfraquecer o movimento,
atribuindo a Agileu a imagem de uma pessoa descontrolada e agressiva:

JOFRE Ŕ [...] Rosa Carraro declarou às autoridades que seu marido é o principal
responsável pelos movimentos subversivos que vêm ocorrendo, dentre os quais a greve
geral de metalúrgicos, bem como pelos movimentos pró-paz dos bairros do Brás e da
Mooca [...] Rosa Carraro declarou ser insuportável o convívio com Agileu. Queixou-se de
sofrer maus tratos do marido que, alcoolizado, chegou mesmo a atentar contra a sua vida!
[...] (Idem, p. 79)

A partir de alguns fragmentos da peça é perceptível a repressão policial logo quando os


operários começam a protestar pelas mortes de Américo e Tonico: Ŗ[...] Tá tudo cercado! Tão
jogando gás! [...] Olha lá, é um carro de choque! [...] Tão atirando pedra! [...] Ouve-se uma rajada
de metralhadora. [...] (GUARNIERI, 1978, p. 117-118)

Com o protesto reprimido, o Delegado a fim de desvirtuar a imagem de Agileu como líder,
resolve esclarecer para o operário qual o plano traçado para desmantelar o movimento, perceptível a
seguir: Ŗ[...] Com tipos da sua espécie há dois caminhos: o fuzilamento sumário, infelizmente
impraticável; ou vossa autodestruição que, pensando bem, é o que mais me agrada. É o mais
inteligente, o mais humano...ŗ (Idem, p. 121)

Logo apñs ser solto, Agileu percebe qual a finalidade dele ter sido libertado: ŖConseguiram
me fazer passar por traidor... Prenderam mais de trinta companheiros... Jofre e Cipriano também...
Na fábrica, estão certos de que fui eu que delatei...ŗ (Idem, 1978, p. 139)

Já no romance ŖEm Câmara Lentaŗ , a repressão aos movimentos da guerrilha é realizada


principalmente por meio da violência física. Neste caso, exemplificamos a repressão policial aos
guerrilheiros Fernando e Sérgio quando estes são perseguidos após perceberem que seus
esconderijos tinham sido descobertos. Essa prática coerciva pode ser observada a seguir:

Fernando atirou novamente, mas errou, surpreendido pelo movimento do policial. Este
disparou uma rajada contínua: as balas atingiram Fernando no peito, uma ao lado da outra,
abrindo na saída, um enorme rombo em suas costas. O policial não tirou o dedo do gatilho
até esgotar todo o pente. Fernando foi lançado para trás, como se tivesse recebido um
poderoso soco. Suas mãos se abriram, soltando a metralhadora, que girou no ar. Ele
rodopiou e caiu de costas na calçada, o peito transformado numa única massa de sangue. Já
estava morto quando o policial, sacando o revólver, atirou mais uma vez. (TAPAJÓS, 1977,
p. 106)

É perceptível ainda no romance a agressão policial contra o personagem Ŗjaponêsŗ :

461
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Os soldados continuaram a avançar, disparando contra ele, enquanto o helicóptero baixava


e a metralhadora acertava os seus tiros. O corpo magro trepidava ao impacto das balas, que
o atingiam em todas as partes do corpo, arrebentando a cabeça, quebrando os braços,
abrindo o peito e a barriga. Quando os soldados chegaram perto e o helicóptero suspendeu
o fogo, restava apenas uma massa sangrenta e disforme. [...]. (Idem, p. 154)

Bem como a ação violenta dos soldados ao guerrilheiro Ŗamericanoŗ logo que este foge da
prisão: ŖLogo estava [o americano] novamente caído, sob uma chuva de coronhadas e pontapés.ŗ
(Idem, p. 155).

Na narração do último bloco do episódio em que ocorre o processo de morte da personagem


ŖElaŗ , fica nítido o emprego da tortura:

Os dedos estalaram, os ossos se rompendo com o impacto. [...] Ela cambaleava e continuou
a ser espancada a cada passo [...] Eles a seguravam no chão pelos braços e pernas, um deles
pisava em seu estômago sufocando-a. [...] O policial apertou-lhe o estômago com o pé,
enquanto outro chutou-lhe a cabeça, atingindo-a na têmpora [...] ele atirou em seu braço [...]
Amarram-lhe os pulsos e os tornozelos, espancando-a e obrigando-a a encolher as pernas.
Passaram a vara cilíndrica do pau-de-arara entre seus braços e a curva interna dos joelhos e
a levantaram, para pendurá-la no cavalete. [...] Os choques incessantes faziam seu corpo
tremer e se contrair, atravessavam-na como milhares de punhais [...] Os policiais
continuavam a bater-lhe no rosto, no estômago, no pescoço e nas costas. (TAPAJÓS, 1977,
p. 169-172)

4. Conseqüências psíquicas

As conseqüências psíquicas a serem evidenciadas nas obras são oriundas de motivos


bastante peculiares de cada enredo. No romance ŖEm Câmara Lentaŗ elas se fazem presentes no
narrador-sobrevivente e resultam das lembranças da atuação do movimento e da não aceitação do
processo de desmantelamento do grupo pela repressão política. Tais seqüelas englobam a memória
amnésica, a fragmentação do ego, a não superação das perdas e o estado de desalento. Já na peça
teatral ŖA Sementeŗ tais conseqüências serão evidenciadas a partir do psiquismo do pai de Tonico,
que em decorrência da morte trágica do garoto, encontra-se desnorteado, apresentando alucinações
referentes ao passado com o filho, bem como um desânimo quanto à continuidade de sua vida por
não conseguir superar tal perda, culminando no seu suicídio.
A memória amnésica se faz presente nas obras através das vozes narrativas que descrevem
um reviver alucinatório do acidente traumático, isto é, a situação testemunhal concebe o tempo
passado como um tempo presente, instalando um presente contínuo. Assim, segundo Rudge (2003,
p. 106), o fenômeno traumático foi tão intenso que este Ŗpassará a ser reeditado nos sonhos, e
ressurgir em ataques histeriformes que transportam repetidamente o sujeito para a situação do
trauma, como se fosse impossível superá-la.ŗ

462
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

É bastante perceptível na obra ŖEm Câmara Lentaŗ a presença da memñria amnésica pelo
fato de o narrador onisciente e onipresente retomar ao contexto da resistência à ditadura militar
brasileira por meio da guerrilha urbana, vivenciado por ele e seus companheiros. Como se percebe
no trecho do 2º parágrafo da obra ŖA imagem já se perdeu no tempo, mas está bem viva [...]ŗ
(TAPAJÓS, 1977, p. 13).

Assim, durante a narrativa o narrador-personagem mostrará que tal realidade foi tão intensa
na sua vida que seus relatos irão retratar momentos pelos quais o grupo guerrilheiro se deparou,
incluindo as reuniões secretas, os atos terroristas, o retrato da guerrilha no país, evidenciando a
tentativa de articulação do movimento com operários e estudantis, o heroísmo; e, finalmente, o
fracasso da organização a partir da repressão e da tortura policial.

É perceptível nos trechos a seguir a impossibilidade do sobrevivente evadir-se daquele


campo simbñlico, isto é, o contexto de atuação da guerrilha urbana: Ŗ[...] não existe por aqui uma
guerra? Não, não existeŗ (Idem, p. 85), Ŗ[...] olhando as sombras, os destroços, os fragmentos
rasgados do passado. Os fragmentos rasgados do futuroŗ (TAPAJÓS, 1977, p. 151) e em ŖHoje o
pensamento [é] [...] uma coisa que se arrasta com a inevitabilidade da permanênciaŗ (Idem, p. 83-
84). Bem como no fragmento:

[...] e eu não escapei porque eu fiquei lá pra sempre, o que escapou foi um corpo vazio, uma
casca sentada na beira da cama olhando a parede e sabendo que o tempo acabou, mas que
vai continuar se arrastando e atirando e odiando uma casca cheia de ódio, ouvindo os
nomes repetidos em voz baixa e que não sabe mais nada, apenas que amanhã cairá. (Idem,
p. 24-25)

Essa dificuldade que o narrador-personagem apresenta em se afastar daquele contexto da


guerrilha, por ter sido tão forte e impactante, faz com que ele apresente o quadro de memória
amnésica, em que seu psiquismo não consegue ligar e expor tais episódios, impedindo que ele pense
de modo articulado o passado e o presente.

Como conseqüência disso, o sobrevivente traça a narrativa com a presença de repetições.


Isso é retratado no trecho em que o narrador afirma que ŖO prñprio gesto, agora, é um movimento
hesitante feito de diversas repetiçõesŗ (Idem, p. 38). E de forma geral, tal aspecto é perceptível pelo
fato de a narração do episñdio em que a personagem ŖElaŗ é torturada e morta ser efetuada seis
vezes, isto é, em seis blocos da mesma história.

Partindo do fato de que a memória amnésica se caracteriza pela repetição do evento


traumático devido não ter sido recalcado1 na psique do traumatizado, a obra ŖA Sementeŗ , por meio

1
Recalque, segundo Maldonado e Cardoso (2009), é a operação pela qual o indivíduo procura repelir ou manter no
inconsciente as representações ligadas ao afluxo pulsional excessivo Ŕ o trauma Ŕ; o que torna impossível a assimilação
da vivência traumática como um fato já ocorrido, instalando um presente contínuo.

463
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

do personagem Américo, pai de Tonico, apresentará tal seqüela, em decorrência do trauma vivido
por este Ŕ a morte de seu filho. Os trechos a seguir dizem respeito ao conjunto de alucinações que o
operário manifesta durante um expediente de trabalho na fábrica:

AMÉRICO Ŕ As máquinas, pelo amor de Deus. As máquinas, pára! Pára a engrenagem.


Olha o braço. Olha o braço dele!

[...]

AMÉRICO Ŕ Olha o braço. O bracinho dele!

AMÉRICO Ŕ Agüenta, minha esperança, agüenta. Só um pouco. Já pára! Já pára tudo. Não
grita filho. Não grita... Já parou, tá parando...

[...]

AMÉRICO Ŕ Olha lá o que foi. Olha lá, tá sangrando! Vamo tirá ele de lá. Vamo tirá.
Ajuda baiano, ajuda!

[...]

AMÉRICO Ŕ Não. Eu. Eu vou. Calma, filho. Agüenta um pouco. Que nem homem. Como
te ensinei, hein? Como te ensinei!

[...]

AMÉRICO Ŕ Eu não consigo chegá lá. Num consigo. Me acode, minha Nossa Senhora, me
acode! Eu não consigo chegá lá! (GUARNIERI, 1978, p. 97-98)

Dessa forma, esse reviver alucinatório que se reporta à retomada de fatos inerentes à cena
traumática da morte de Tonico - quando seu braço ficou preso nas máquinas, quando Américo pediu
que parassem as máquinas e quando este tenta alcançar o menino a fim de tirar seu braço das
máquinas Ŕ irá caracterizar a memória amnésica em Américo.

No que diz respeito à fragmentação do ego, Maldonado e Cardoso (2009) definem este
fenômeno como um processo de clivagem narcísica, que ocorre quando o ego se dissocia em várias
partes, incomunicáveis entre si, a fim de que esses traços traumáticos não se liguem e impeçam a
representação de tal episódio de forma coerente e significativa.

Pode-se dizer que na obra de Guarnieri, mesmo que não de forma propriamente dita, a
fragmentação do ego se faz presente em decorrência do estado melancólico em que o pai de
Américo se encontrava, já que seu estado de melancolia não permitiu a elaboração dos fatos
traumáticos.

Já no romance de Renato Tapajós, mais especificamente no psiquismo do narrador-


sobrevivente, é nítida a presença da dissociação do ego em várias partes, incomunicáveis entre si,
que impedem a narração de forma coerente e significativa daquele período turbulento e traumático
em torno dos movimentos resistentes da guerrilha urbana.

No trecho a seguir da obra ŖEm Câmara Lentaŗ , o narrador consegue traduzir tal
fragmentação, quando faz referência à desconexão das imagens inerentes ao passado de atuação dos
464
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

guerrilheiros: [...] tudo muito de repente, tudo de uma vez fragmentado e não há mais tempo para
nada. O espelho foi de novo colocado, mas agora ele está trincado em mil pedaços e devolve uma
imagem partida. (TAPAJÓS, 1977, p. 42).

Isto é, essa desarticulação de imagens reflete a fragmentação do ego do narrador e é ainda


perceptível no trecho ŖO gesto continuava estilhaçado, espalhado aos pedaços pelo chão da casa e é
impossível reunir as peças para reconstituir seu sentido. Para restituir a forma ao jogo de armarŗ
(Idem, p. 42).

Essa dissociação do ego no gesto testemunhal se reflete também na própria estrutura da


narrativa, em que o narrador-sobrevivente se mostra incapaz de incorporar numa cadeia contínua as
imagens, exatas, do episódio traumático, neste caso, o do processo de desmantelamento do
movimento guerrilheiro.

Dessa forma, é evidente no romance a fragmentação da narrativa em diversos tempos, em


que algumas passagens estão deslocadas do conjunto até então apresentado. Isto é, o sobrevivente
não consegue apresentar tais eventos numa única oportunidade, tal é a força de sua conseqüência
traumática daquilo que não se enquadra numa percepção consciente da realidade.

E, como uma das conseqüências psíquicas mais intensas e destruidoras, têm-se ao lado do
estado de desalento, a não superação das perdas do sujeito traumatizado, que se manifesta em
decorrência do fato de que o episódio traumático foi tão intenso que é incapaz de ser acomodado na
psique de quem presenciou o trauma, fazendo com que este não consiga superar as perdas.

Durante quase toda a narrativa do romance ŖEm Câmara Lentaŗ em que o narrador-
personagem se refere ao fracasso do movimento guerrilheiro, a não superação das perdas pode ser
identificada, já que ele não se conforma com o ocorrido. Isso pode ser notado em: ŖA sensação de
perda é física, como se faltasse a laringe ou o esôfago e não vai passar porque se, ao menos, tivesse
servido para alguma coisaŗ (TAPAJÓS, 1977, p. 13) e Ŗ[...] É tarde demais, mas é preciso continuar
vazio, um sentimento ocoŗ (Idem, p. 14).

Esse estado de não superação das perdas se intensifica a partir do momento em que o
narrador-personagem fica sabendo de forma detalhada através do primo da companheira como
ocorreu o processo de tortura e morte da personagem ŖElaŗ . Esse processo psíquico é perceptível no
trecho abaixo: [...] não há nada pra fazer: andar, comer, esperar. (Idem, p. 47)

O narrador-personagem não consegue superar as perdas relacionadas ao movimento


guerrilheiro, como as mortes dos companheiros e o fracasso da guerrilha, de forma com que esse
passado de atuação ainda exercerá uma significação em sua vida. Assim, o narrador-personagem
exigirá de si a continuação no movimento; mesmo que o gesto final seja inútil, ele procurará honrar
a luta dos companheiros agora mortos. Como é perceptível em:

465
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Caminhar pela rua e saber que esses passos são definitivos e que o gesto é inútil porque
ninguém vai tirar proveito dele, mas fazê-lo assim mesmo porque é o único possível agora
que eu sei. Me recuso a desertar, me recuso a recuar, me recuso a parar, a trair por um
momento que seja essa confiança, essa herança que ela e os outros deixaram. (Idem, p. 174)

O personagem assume que é impossível superar as decepções vividas no decorrer do


movimento e que elas continuarão presentes durante a sua trajetñria como guerrilheiro: ŖAgora eu
sei o que é mergulhar na vida, abandonar a superfície e arranhar o fundo, o fundo escuro, assustador
e a gente não pode mais voltar a partir de um certo ponto porque o peso nas costas, o peso de todos
os mortos é grande demais.ŗ ( Idem, p. 161).

Já na peça teatral ŖA Sementeŗ o fenômeno da não superação das perdas é nítido a partir da
psique de Américo, que não se conforma com a morte do filho. Isso pode ser perceptível logo após
que acontecera o velório de Tonico, em que Américo vai trabalhar na fábrica e este demonstra a
dificuldade de retomar sua rotina sem a presença do filho: ŖAMÉRICO Ŕ Primeiro almoço que faço
sem meu filho perto pedindo a sobremesa...ŗ (GUARNIERI, 1978, p. 89)

Outro momento em que é perceptível a não superação da perda por parte de Américo é
quando este começa a apresentar alucinações que dão a garantia de que Tonico ainda está vivo:
ŖAMÉRICO Ŕ [...] Olha lá o Toniquinho, tá subindo sempre. Sobe que nem louco! Ah, menino, o
trabalho que você dá! Toniquinho não sobe mais... Está no andaime!ŗ (Idem, p. 99). Mesmo quando
cessados esses delírios, e que Américo reconhece que Toniquinho já não está vivo: Ŗ[...] Tonico!
Ah!... É mentira, mentira desgraçada!ŗ (Idem, p. 99), o operário deseja vê-lo novamente, mesmo
que seja através de alucinações Ŗ[...] Eu quero vê!... de novo!ŗ (Idem, p. 99), evidenciando, dessa
forma, a não superação das perdas.

A última conseqüência psíquica a ser apresentada neste estudo diz respeito ao estado de
desalento do traumatizado, que implica na existência de um sujeito melancólico e desanimado
diante da vida, culminando na autodestruição do seu ego.

Segundo Freud (1914/1996), o estado de desalento faz com que o sujeito nessas condições
apresente algumas características psíquicas, como:

Um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda


da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos
sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-
envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. (p. 250)

No romance de Tapajós o estado de desalento apresentado pelo narrador-sobrevivente é


provocado pela não superação das perdas (fracasso do movimento guerrilheiro e morte dos
466
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

companheiros), fazendo com que o militante apresente um estado emocional diferente daquele que
possuía diante da vida e da luta armada - ŖA única ambição legítima é a de mudar o mundoŗ
(TAPAJÓS, 1977, p. 113) -, adotando uma postura melancólica, concebida por Freud (1914/1996)
como uma elevada redução na auto-estima e um empobrecimento do ego, tornando-se vazio e
desprovido de valor. Esse estado psíquico pelo qual o personagem não encontra mais sentido em
continuar vivendo é nítido quando é narrado que ŖMesmo que todas as informações reconstruam os
fatos, mesmo que saiba exatamente quem estava lá, mesmo que o ódio atravessado na garganta
possa encontrar rostos a serem destruídos. Não foi apenas uma pessoa que morreu, foi o tempoŗ
(Idem, p. 15).

Dessa maneira, o personagem manifestará uma situação psíquica de desânimo, não


conseguindo traçar uma expectativa de vida desatrelada àquele campo simbólico de atuação na
guerrilha. Como pode ser observado no trecho Ŗ[...] olhar para dentro de mim mesmo e ver se
sobrou alguma coisa em meio aos destroços, um fragmento prateado onde me agarrar, ou tão
somente o campo sangrento de carne revolvida.ŗ (TAPAJÓS, 1977, p. 153)

Isto é, ele não encontra mais significado na sua existência fazendo com que a fantasmagoria
tome conta de sua vida, sendo ele prñprio simbolicamente uma pessoa morta, perceptível em: Ŗ[...]
porque eu também morri, lá naquele dia, no momento quêŗ (Idem, p. 25). Assim como em: Ŗ[...]
Quem não tem mais [a esperança] sou eu, porque tudo acabou. A vida é apenas, hoje, um adiamento
da morte prñxima, uma pausa entre quem sobrevive e aqueles que já morreram [...]ŗ (Idem, p. 83)

Nos trechos que seguem: ŖQuase escuridão, um zumbido surdo, a pele se esticando, os olhos
mortos cansados de ver e vendo [...]ŗ (Idem, p. 24) e ŖAndar pela casa, almoçar, porque é preciso
manter o corpo funcionando e esperarŗ (Idem, p. 50) fica evidente o sentimento de que o narrador-
sobrevivente só está vivo por estar, isto é, só faz o necessário para se manter vivo fisicamente, pois
ele mesmo afirmou já ser um homem morto psiquicamente.

O ponto culminante a respeito do estado de desalento do narrador-sobrevivente acontece


quando ele toma conhecimento de todo o processo de tortura e morte da personagem ŖElaŗ , e busca
reagir com toda a força e ódio para vingar-se da repressão, perceptível em ŖO ñdio se transformou
numa decisão fria e o cérebro é apenas uma máquina para registrar imagens e ordenar movimentosŗ
(Idem, p. 175)

Todo esse ñdio despertado pela morte da companheira ŖElaŗ fez com que ele agisse por
impulso, a ponto de sair atirando em pessoas, que a narrativa não deixa claro se eram realmente
policiais, ou se o sobrevivente apenas pensava que fosse. Esse episódio tem como término a morte
do narrador, como fica nítido a seguir:

A rajada da metralhadora o atingiu no peito, lançando-o contra o muro. Uma outra bala
quarenta e cinco acertou em sua boca, saindo pela base do crânio, jogando sangue no muro.

467
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ele caiu para a frente, sobre a calçada, os braços abertos, as mãos ainda apertando a
coronha dos revólveres. Diversas rajadas atingiram seguidamente o corpo, picotando-o e
fazendo com que ele estremecesse ao impacto das balas. O sangue, como um rio, escorreu
pela calçada em direção à sarjeta.

A deserção definitiva tinha sido realizada. (Idem, p. 176)

Já na peça teatral ŖA Sementeŗ , Américo demonstra seu estado de desalento apñs a perda de
seu filho, em que este não deseja nem mais viver: ŖTiro na cabeça! Essa é a solução! Quem é que
não teve! Quem é que não teve vontade de metê um tiro na cabeça, hein? Quem é que não teve...ŗ
(GUARNIERI, 1978, p. 89)

Esse estado de desalento que Américo apresentava tem como ponto culminante o seu
suicídio. No momento que precede este fato, ele declara: ŖE um corpo que não vale nada; nem
precisa ter cuidado. Adeus Mãe. Que Deus me perdoe se existir!ŗ (Idem, p. 101). Neste trecho duas
características do desalento são manifestadas, como o desânimo em ŖE um corpo que não vale
nadaŗ e a expectativa delirante de punição em Ŗnem precisa [o corpo] ter cuidadoŗ .

5. Considerações finais

Neste estudo procurou-se evidenciar a partir da leitura das obras ŖA Sementeŗ , de


Gianfrancesco Guarnieri, e ŖEm Câmara Lentaŗ , de Renato Tapajñs, os processos de resistência por
parte de grupos descontentes com as ações políticas de regimes ditatoriais e de repressão aplicada a
esses movimentos de esquerda.
Bem como foram mapeadas nas obras a partir do comportamento psíquico do narrador-
personagem de ŖEm Câmara Lentaŗ e do personagem Américo de ŖA Sementeŗ conseqüências
psíquicas da memória amnésica, da fragmentação do ego, da não superação das perdas e da
autodestruição do sobrevivente, decorrentes da realidade traumática - no romance, as mortes dos
companheiros e o fracasso do movimento guerrilheiro; e na peça, a morte do garoto Tonico.

Reconhecendo que o estudo apresentou limitações na sua base investigativa, esperamos que
ele contribua para novas investigações voltadas às questões intrínsecas ao processo de
caracterização de mártir nas obras ŖA Sementeŗ e ŖEm Câmara Lentaŗ ; bem como à presença no
romance de uma possível crítica ao movimento guerrilheiro, quando são minimizadas as chances
defensivas dos policiais em decorrência das atitudes dos militantes e quando, em determinadas
passagens da obra, o narrador abranda a ação policial frente aos guerrilheiros.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund (1914 a). Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XIV.

468
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

GUARNIERI, Gianfrancesco. A Semente. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1978.

MALDONADO, Gabriela; CARDOSO, Marta Rezende. O trauma psíquico e o paradoxo das


narrativas impossíveis, mas necessárias. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 45-57,
2009.

RUDGE, Ana Maria. Trauma e temporalidade. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, ano
VI, n. 4, p. 102-116, dez. 2003.

TAPAJÓS, Renato. Em Câmara Lenta: romance. São Paulo: Alfa-Omega, 1977.

469
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A LITERATURA FANTÁSTICA NO CONTO: ŖA NINFA DO TEATRO AMAZONAS‖ DA OBRA


A CIDADE ILHADA DE MILTON HATOUM

Kamila Oliveira de Lima (UFAM)

Resumo: Ao engendrarmos em um texto estamos, muitas vezes, entrando em um labirinto, no qual somos
assaltados pelas múltiplas possibilidades de leitura que um texto pode nos oferecer. Este trabalho busca
provar e revelar dentro do conto: ―Aninfa do Teatro Amazonas‖ da obra A cidade ilhada de Milton Hatoum,
algumas condições do Fantástico. Objetiva-se, pautado nas teorias do Fantástico Tradicional de Todorov e
outras leituras, analisar a presença do fantástico-estranho a partir do julgamento dado ao personagem Álvaro,
mostrando que aquilo que se questiona como mitômano, soníloquo, delirium tremens, lembrança e loucura
atribuídos ao personagem, podem ser meios de justificar, ou ainda, reduzir a presença do Fantástico. A
pesquisa apresenta relevância, uma vez que aponta para uma leitura singular, buscando uma outra discussão
em torno do autor analisado, produzindo, assim, uma via de análise que procura o inusitado através da leitura
relacionada ao fantástico.

Palavra-Chave: Literatura Fantástica, Fantástico-Estranho, Leitura, A cidade Ilhada.

Introdução

Ao engendrarmos em uma análise somos assaltados pelas múltiplas possibilidades de leitura


que um texto pode oferecer e que, muitas vezes, nos leva a um labirinto. A proposta deste trabalho
tende a engendrar nesse labirinto sugerido por Edgar Allan Poe, que diz: ŖO conto deve ser
desvendado tal qual um labirinto, do centro para a saída, do fim para o começoŗ 1. Assim, aquele
que percorre o texto precisa buscar em suas leituras, nas entrelinhas, as pistas necessárias para
desvendá-lo, tendo que realizar um processo de olhar novamente, reler, analisar, retornando aos
caminhos já trilhados.

Busca-se, assim, provocar e revelar dentro do conto ŖA ninfa do Teatro Amazonasŗ de


Milton Hatoum, na obra A cidade ilhada, a presença do Fantástico, pois o Ŗfantástico implica não só
na existência de um acontecimento estranho (...), mas também de uma maneira de lerŗ
(TODOROV,p.19)2. Pauta-se, dessa forma, nas teorias do Fantástico Tradicional do Todorov e em
outras leituras auxiliares, pois segundo Umberto Eco: ŖMesmo quando não existem num bosque
trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para

1
SPALDING, Marcelo. O conto como labirinto em Milton Hatoum. Porto Alegre, 2009. Disponível em:
http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2802. Acesso em 22 julh. 2010.
2
TODOROV, Tzvetan. Introdução a literatura fantástica. Disponível em: http://groups-
beta.google.com/group/digitalsource. Acesso em: 1 julh. 2010.

470
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direçãoŗ
(p.12)1.

Nesse sentido, é que optamos em trilhar nosso caminho com base no livro Introdução a
Literatura Fantástica de Tzvetan Torodov que traça um respaldo teórico na tentativa de caracterizar
e delimitar o Fantástico Tradicional. E, desse modo, iremos nos apropriar de algumas dessas
delimitações propostas para fazermos uma análise substancial do conto de Hatoum. A partir delas
que entendemos que o Fantástico poderia ser caracterizado como um gênero vizinho do estranho e
do maravilhoso, em que apresentaria um evento sobrenatural que fugiria à idéia de realidade,
provocando assim uma hesitação. Para Todorov, Ŗo fantástico é a vacilação experimentada por um
ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente
sobrenaturalŗ (TODOROV, p. 16).

Nesse sentido é que ―A ninfa do Teatro Amazonasŗ de Milton Hatoum apresenta-se como
conto possível de ser entendido, lido e analisado sob o olhar da Literatura Fantástica. Nosso
objetivo é desvelar mistérios, mas também estabelecer outros, uma vez que ao nos apropriarmos
deste campo de análise, criamos possibilidade de leituras, intervenções e discussões.

Trilhando a Literatura Fantástica com Todorov

Tzvetan Todorov em seu livro As Estruturas Narrativas afirma que:

O século XIX vivia, é verdade, numa metafísica do real e do imaginário, e a literatura


fantástica nada mais é que a má consciência desse século XIX positivista. Mas hoje já não
se pode acreditar numa realidade imutável, externa, nem numa literatura que fosse apenas à
transcrição dessa realidade. As palavras ganharam uma autonomia que as coisas perderam.
A literatura que sempre afirmou essa outra visão é sem dúvida um dos móveis dessa
evolução. A própria literatura fantástica, que subverteu, ao longo de suas páginas, as
categorizações lingüísticas, recebeu ao mesmo tempo um golpe fatal; mas dessa morte,
desse suicídio nasceu uma nova literatura. (2008, p.166)

Nesse momento pode-se fazer o seguinte questionamento: essa nova literatura não traria
resquícios da Literatura Fantástica? E essa recebeu mesmo um golpe fatal? Esse suicídio foi
realmente real? Se partirmos da idéia de golpe fatal podemos acreditar que não, pois esse enunciado
nos levaria a pensar em algo mortal, derradeiro, que impossibilitaria qualquer ressurgimento, já que
não se assumem questões religiosas nesse caso. Porém, sabemos que muitas vezes as obras literárias
que são consideradas ou acreditam trazer uma nova forma de literatura sempre guardam em suas
páginas fragmentos de outros movimentos literários, fazendo com que o fantástico não tenha

1
ECO, Umberto. Seis Passos pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

471
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

morrido no século XIX ao ser usurpada pela Psicanálise, com acreditou Todorov1, mas sim forjado
um suicídio para assim reaparecer ou estar implicitamente presente em outras obras do século XX,
por meio dos contos de Edgar Allan Poe, O tocador de Charamela de Erasmo Linhares; o livro A
Metamorfose de Kafka, que estaria inserido por Sartre, no Fantástico contemporâneo 2, além de
outros contos que são mencionados em alguns estudos/análises sobre a presença do Fantástico.

O que seria então a Literatura Fantástica? Em a Introdução a Literatura Fantástica, Todorov


colocá-la-ia como um gênero vizinho ao estranho e o maravilhoso, subdividindo-se nos seguintes
subgêneros: estranho puro, fantástico-estranho, fantástico-maravilhoso e maravilhoso puro. Desses
subgêneros, para esta análise, adotamos o fantástico-estranho por Ŗos acontecimentos que com o
passar do relato parecem sobrenaturais, recebem, finalmente uma explicação racionalŗ
(TODOROV, p. 25)3.

O Fantástico Tradicional é criado dentro do cenário de hesitação, cujo ser dentro da ficção,
assim como o leitor implícito, precisa optar se o elemento que se apresenta como sobrenatural
condiz com as leis da realidade. Realidade essa conhecida e dada por uma época, uma cultura e uma
localidade4, para não se recair a idéia do maravilhoso em que Ŗnada é questionável, tudo pode
acontecer (...)ŗ 5, já que se pode admitir um Ŗmundoŗ, lugares e culturas que muitas vezes não
conhecemos, o que poderia tornar o sobrenatural aceitável dentro de uma outra realidade. 6 Assim, o
leitor precisa decidir se o sobrenatural trata-se apenas das diversas representações do imaginário,
como forma de reduzir a presença do sobrenatural, explicando-se por meio do sonho, da loucura, do
uso de drogas, qualquer forma de ilusão de sentidos. Conforme diz Tzvetan Todorov:

Em um mundo que não é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sem sílfides, nem vampiros
se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo
familiar. Quem percebe o acontecimento deve optar por uma das soluções possíveis: ou se
trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem
sendo o que são, ou o conhecimento se produziu realmente, é parte da realidade, e então
esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser
imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a diferença de que rara vez o
encontra. (p.15)

1
ŖPara alguns analistas, como Todorov, seu ciclo se fecha nos fins do século XIX, quando a Psicanálise não só lhe
usurpa os temas, mas também explica os fantasmas á luz do pan-determinismo da atividade psíquicaŗ (CHIAMPI apud
PIMENTEL, 2002, p. 54)
2
Sartre assumiria o Fantástico Contemporâneo, no qual o elemento sobrenatural apresentar-se-ia logo no começo da
narrativa, o que influenciaria em que toda o universo narrativo, pois a partir do momento que se assume um elemento
fantástico ou natural tudo aquilo que o cerca também se transformará
3
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
4
SÀ. Marcio Cícero de. Da Literatura Fantástica (Teorias e Contos). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: USP,
2003.
5
PIMENTEL, Vânia. Narrativas do além-real. Manaus: Ed. Valler, 2002, p.34.
6
Ŗ...Supõe-se que o receptor implícito dos contos não conhece a região nas que se desenvolvem os acontecimentos; por
conseqüência, não há motivos para pô-los em dúvida (...)ŗ. (TODOROV, p.30)
SCHWART Ŗ... somente podemos chegar a definir a aquilo que é fantástico na medida em que conhecemos a norma
extra-textual definida pela tradição cultural. Tudo aquilo que transgrida suas leis é considerado, num primeiro
momento, um fato fantástico.ŗ SCHWART apud SÀ , 2003, p.36.

472
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Precisa, então, a Obra obedecer a três condições para se existir o fantástico: a primeira seria
a interação do leitor no mundo do personagem e, não obrigatoriamente, sua identificação com
algum personagem, o que levaria a segunda condição que refere às hesitações sobre o que é real e
sobrenatural, ou a vacilação termo usado por Todorov, que o leitor precisa ter para dar vida ao
fantástico, e a terceira que anula a possibilidade de uma leitura alegórica e poética, pois acabaria
com qualquer possibilidade do fantástico existir, tendo a Obra que construir algo ficcional, como a
citação explica:

...Existem narrativas que contêm elementos sobrenaturais, mas o leitor nunca se interroga a
cerca da natureza, pois sabe que não deve tomá-los ao pé da letra. Se os animais falam,
nenhuma dúvida nos assalta o espírito: sabemos que as palavras do texto devem ser
tomadas num outro sentido, que se chama alegórico. A situação inversa se observa em
poesia. O texto poético poderia ser frequentemente julgado fantástico, se se a pedisse à
poesia que ela fosse representativa (...) Para se manter, o fantástico implica, pois, não só na
existência de um acontecimento estranho, que provoca a hesitação no leitor e no herói, mas
também um certo modo de ler, que se pode definir negativamente: ele não deve ser nem
poético nem alegórico. (TODOROV, 2008, p.151)1

Como, então, se constituiria as ações e ambiente da narrativa no Fantástico Tradicional, pois


sabemos que toda obra narrativa apresenta um espaço em que as ações se passam? Assume Sartre a
seguinte idéia no Fantástico Contemporâneo: Ŗse conseguir convencerŔme que o cavalo é
fantástico, então também as árvores, a terra e o rio são fantásticos, mesmo se nada me disseste a
respeito (SARTRE apud SÀ, 2003, p.54), o que contraporia a idéia de Todorov, aja vista que os atos
narrados, a ambientação espacial seriam os principais elementos da narrativa para Todorov, fatores
esse que possibilitariam a apresentação, a aparição de elemento fantástico, pois esse tipo de
narrativa não se daria pelos personagens, e nem espaço, mas pela presença, o surgimento de um fato
estranho (fantástico) no caminhar da narrativa E é nesse momento, que nos deparamos com o conto
ŖA ninfa do Teatro Amazonas‖, e nos perguntamos por que não haveria aqui algo do Fantástico?
Dando-se, assim, nossa busca e representatividade.

O fantástico em “A ninfa do Teatro Amazonas”

O conto ŖA ninfa do Teatro Amazonasŗ publicado em 2009 no livro A cidade Ilhada de


Milton Hatoum, inicia-se da seguinte forma:

Ela parecia em vulto perdido nesse mundo invadido pela água. Ainda não sabemos seu
nome, e sua morada é incerta; uns dizem que a mulher se esconde num buraco, lá na
Colina; outros a viram perambular nos becos do bairro do Céu, e sabe Deus se é filha da
cidade ou do mato (HATOUM, 2009, p.89).

1
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
473
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

É percebido, nesse momento, a presença de uma figura feminina, a qual não possui
identificação, ou uma identidade definida, pois não se sabe seu nome e sua moradia, apresentando-
se como um vulto. Mas a única coisa se sabe é que em um dia de chuva, ela Ŗtentou entrar na Santa
Casa, mas foi enxotada pelo porteiro do hospitalŗ (p.89), conseguindo abrigo apenas no Teatro
Amazonas, que aparentemente estava vazio. Habitava nele um senhor de oitenta e sete anos
chamado Álvaro Celestino de Matos que deparou-se com a imagem da mulher e logo em seguida
foi internado, sendo diagnosticado como lunático. E é nesse ponto que iremos nos deter: seria ele
mesmo um lunático? Questionamento esse também feito pelo narrador ao final do conto:

Ainda não podemos diagnosticar o estado psíquico do Sr Álvaro. Será mesmo ele um mero
mitômano? Um simples soníloquo? Teria sido vítima de uma crise de delirium tremens? O
que ele viu, ou disse ter visto, seriam miragens de um lunático?(op. cit, p. 94)

Cabe aqui lembrar que Hatoum traz fortemente a temática da memória em suas obras, o que
abre espaço para inúmeros estudos, assumir-la-emos também aqui a partir da hipótese levantada
pelo Dr. S.L, psiquiatra da clínica em que o personagem foi internado, mas apenas como uma outra
pergunta: essa apariçao da mulher não seria apenas fragmentos da memoria do Sr Alvaro, já que é
ele possuia uma fotografia com o rosto não identificado em seu bolso que poderia ser de uma
pianista amazonense, assim como, de uma cantora de soprano também aclamada? Porém, como já
se sabe o Fantástico dá-se pela presença de um fato que causa uma ambigüidade e essa Ŗé mantida
até o fim da aventura: realidade ou sonho? Verdade ou ilusão?ŗ (TODOROV, p.15). Seríamos,
então, aqui conduzidos ao coração do fantástico-estranho de que Todorov fala, pois se busca
justificar aquilo que parece sobrenatural por meio de explicações racionais.

Ao abrirmos o livro A cidade Ilhada e buscarmos o conto A ninfa do Teatro Amazonas, a


primeira coisa com que nos deparamos é com título do conto. Quando nos é apresentado o termo
ninfa recordamos rapidamente a mitologia grega em que as ninfas eram espíritos de natureza
feminina associadas à fertilidade e que muitas vezes apareciam e eram invocadas pelos homens
como forma de inspiração, além de estarem ligadas a um local ou objeto particular, habitando lagos,
riachos, bosques.1

Se partirmos desse ponto, temos que trazer à tona algumas considerações: a palavra ninfa
pode significar botão de rosa, se assumirmos esse enunciado correspondendo a uma Ŗfaseŗ da rosa,
sabemos que esse botão pode assim desabrochar, para assim chegar a ser uma rosa de fato. Dessa
forma, esse botão de rosa, ou melhor, a aparição dessa ninfa não poderia desencadear, ou
desabrochar a presença, ou a crença do sobrenatural? E quem seria a ninfa dentro do conto? No
caso, essa mulher seria a representação, ou melhor, traria a representatividade de uma ninfa, pois se

1
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras,
cores, números). Trad. de Vera da Costa e Silva e outros. 23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. p.635-6.

474
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

sabe que as ninfas Ŗpertubam o espírito dos homens aos quais se apresentamŗ (CHEVALIER,2009,
p.636).

Recaímos então na construção de alguns elementos da narrativa, no caso a ambientação. O


ambiente espacial ajudaria na apariçao do fato sobrenatural como mencionou Todorov. Se
levarmos em conta que o Teatro Amazonas está localizado na região do Amazonas, logo um lugar
conhecido por suas lendas, folclores e mitos, onde Ŗentidadesŗ frequentemente se apresentavam aos
homens, assim como, o Ŗteatro representa o mundo, manifestando-o aos olhos do espectador(...)
mexendo com o manifestadoŗ (CHEVALIER, 2009,p. 817), nesse mundo se instauraria, então, o
mundo real e sobrenatural , revelando o ambiente sombrio do Teatro, no conto, e a forma como a
mulher se apresenta, requisitos que aumentariam a disponibilidade de uma aparição sobrenatural:

O interior estava deserto; de vez em quando um lampejo riscava o vidro da janela e um


estrondo do céu como uma ameaça. Ainda rastejando, a mulher imergiu num espaço
sombrio, onde nada-salvo seu corpo umedecido e seus cabelos molhados Ŕlembrava chuva
lá fora. (HATOUM, 2009, p. 94).

Ocorre, então, nesse ambiente, um fator que nos encaminha as primeiras Ŗestruturas
narrativas do fantásticoŗ , lembrando que no Fantástico Tradicional o elemento sobrenatural é
apresentado aos poucos. Sr. Álvaro, sempre quando acordava, há mais de sessenta anos, Ŗseu
primeiro gesto era acender o candeeiro, que aclarava o rosto de Angiolinaŗ (HATOUM,2009, p.
91), a cantora de soprano, porém essa noite seu rosto tinha sumido da fotografia. Fato esse que nos
leva ao começo da hesitação, pois esse acontecimento não seria apenas uma ilusão, ou um erro de
percepção do personagem, já que nossos olhos captam imagens e as projetam para nosso cérebro, e
esse, muitas vezes, produz imagens que causam estranheza, ou distorções daquilo que
corresponderia à realidade? Porém Ŗ...da atmosfera sombria...o som que o vigia escutava não mais
pertencia ao sonho ou ao sono. Ele não sabia afirmar se era uma voz...; parecia vir de longe do
interior do Teatro.ŗ (HATOUM, 2009 p. 91), dando-se a aparição:

....a mulher se recostava na cadeira, segurando nas mãos uma criança. Ela abraçava o bebê
e, quando abriu a boca, ele esperou ouvir um bocejo; em seguida a mulher lambeu o rosto
da criança e ele viu a língua e os lábios dela iluminados pelo lustre. Como num sonho, a
sala tornou-se opaca; então o vigia fechou os olhos e com impaciência golpeou várias vezes
o assoalho com o cabo da arma.(HATOUM, 2009, p.93)

Nesse excerto, a compreensão da aparição como um erro de percepção é anulada, pois o


personagem ao tentar Ŗencontrar a fonte do ruídoŗ (HATOUM, 2009, p.92), colocaria anteriormente
seus óculos a fim de reafirmar aquilo que via e acontecia, e ainda lá ela estava, sendo a aparição
dada pelo domínio, a captação do olhar, mas agora assegurada por um recurso de auxílio visual:

...Sentiu um desânimo ao notar a sala deserta, cadeiras e camarotes vazios. Então o olho
arregalado viu uma sombra, a forma de um corpo sentado perto do palco. Pela primeira vez
o vigia teve medo. Pôs os óculos a fim de enxergar com nitidez a sala (...) e numa cadeira
da primeira fila, o corpo molhado de uma mulher morena .(op. cit. p.92)
475
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Assim, o personagem ao deparar-se com a visão da mulher, viu como num sonho, a sala
tornar-se opaca... Ŗdeu uma gargalhada e escutou o eco da sua alegria ou loucuraŗ (HATOUM, 2009
p.93). É feita, então, de novo referência ao sonho e também à loucura, vista por Todorov como
temas do eu que buscariam reduzir a presença do sobrenatural, pois o que se acreditaria ver não
seria mais que fruto de uma imaginação desordenada (sonho, loucura, drogas)1. Sendo Sr. Álvaro
levado ao hospício e esse seu relato diagnosticado como Ŗa versão de um homem tragado pelo
pântano da senilidadeŗ (p.93). E a partir daí que temos uma justificativa para o fato ocorrido.

Porém, essa justificativa deixa uma dúvida no âmago do narrador, assim como do leitor
implícito, pré-requisito esse levantado por Todorov, o que acarretaria nos questionamentos
levantados pelo narrador, esses já mencionados anteriormente. Nesse sentido, fermentaria a dúvida
do que realmente se passou, pois, por meio deles (questionamentos) vemos à consciência do
narrador, não mais em apenas narrar um fato, mas em questioná-lo, transferindo esses
questionamentos ao leitor como meio de suscitar nele também dúvidas, já que o texto deve obrigar
o leitor Ŗa considerar o mundo dos personagens como um mundo de pessoas reais e a vacilar entre
uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocadosŗ (TODOROV,
p.19). Dessa forma:

...o verossímil não se opõe absolutamente ao fantástico: o primeiro é uma categoria que
aponta a coerência interna, a submissão ao gênero, o segundo se refere à percepção
ambígua do leitor e do personagem. Dentro do gênero fantástico, é verossímil que se dêem
reações fantásticas. (TODOROV, p. 26)

A ambigüidade giraria em torno da senilidade do personagem. Poder-se-ia dar crédito ao


relato de um Senhor de oitenta sete anos, que poderia ser acometido por uma crise delirium tremens,
causada pela abstenção de álcool, que provocaria alucinações visuais e auditivas? Ou seria ele um
mitômano, ou seja, possuiria uma tendência compulsiva pela mentira? Essas respostas ficariam e
ficam assim abertas, o que daria e dá espaço para a crença na aparição do sobrenatural,
confirmando-se a idéia de Todorov, em que a dúvida é mantida entre dois pñlos: Ŗa existência do
sobrenatural e uma série de explicações racionaisŗ . 2

Outro ponto também pode ser verificado, diz respeito aos acontecimentos e ações. O que
percebemos é que os acontecimentos no conto se sobressaem aos personagens, como uma maneira
de fazer com o leitor tenha uma maior percepção do cenário onde se dá o acontecimento, além de
remeter ao que estaria por vir, quando se menciona a Ŗchuva lá foraŗ com certa freqüência, o que
acaba por ajudar na construção do cenário, já sombrio, do Teatro, entre inúmeros quadros e
caminhos:

1
TODOROV, p.26
2
TODOROV, p.26
476
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Uma trovoada violou o silêncio da sala e fez vibrar o lustre de cristal pendurando na cúpula.
(HATOUM, 2009, p.90)

A descida foi lenta e penosa (...) intuiu que algo de fatídico aconteceria essa noite. A porta
de entrada, entreaberta, era um sinal de invasão?(...) O vigia empurrou a porta com o cano
da arma; depois notou no piso uma mancha vermelha que desaparecia na sala de
espetáculos. Evitou esse caminho contornando a sala (...) Pensou em entrar no sétimo
camarote e já girava a maçaneta quando escutou novamente o som, agora mais estranho,
mais ameaçador. (HATOUM, 2009, p.91)

Dando-se qualquer referencia maior aos personagens, ou referindo-se a eles mais


precisamente, mesmo que de forma substancial, apenas ao fim do conto.

Percebemos assim que as justificativas lançadas e os questionamentos giram em torno de


explicações racionais, mas, mesmo assim, isso não exclui a idéia do sobrenatural, pois a
possibilidade do fantástico está relacionada a um acontecimento, esse que nos leva a uma hesitação,
como verificamos dentro do conto ŖAninfa do Teatro Amazonasŗ .

Considerações finais:

Nessa breve trajetória, percorremos uma das trilhas do labirinto do conto de Milton Hatoum,
em que o relato descrito por Sr. Álvaro não estaria só relacionado com a exatidão daquilo que
subscreve a realidade de mundo real e aceitável, mas poderia estar envolto em um mundo real e
sobrenatural. Por essa razão utilizamos à teoria do Fantástico Tradicional de Tzvetan Todorov e
outras leituras para abordar o tema proposto e buscar uma análise para o conto ŖA ninfa do Teatro
Amazonasŗ . Com isso, tentamos abrir mais um caminho de pesquisa dentro da vastidão de análises
que uma Obra de Milton Hatoum pode trazer, desvelando mistérios e estabelecendo outros.

Referências bibliográficas

CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos,


formas, figuras, cores, números). Trad. de Vera da Costa e Silva e outros. 23 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2009.

ECO, Umberto. Seis Passos pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

HATOUM, Milton. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PIMENTEL, Vânia. Narrativas do além-real. Manaus: Ed. Valler, 2002.

SPALDING, Marcelo. O conto como labirinto em Milton Hatoum. Porto Alegre, 2009. Disponível
em: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=2802. Acesso em: 22 julh.
2010.

477
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

SÁ. Marcio Cícero de. Da Literatura Fantástica (Teorias e Contos). Dissertação de Mestrado. Rio
de Janeiro: USP, 2003. Disponível em: http//www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-
23102003-190256/. Acesso: 11abr. 2010.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Disponível em: http://groups-


beta.google.com/group/digitalsource. Acesso em: 1 julh. 2010.

478
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A EXPERIÊNCIA SUBJETIVA EM CIRANDA DE PEDRA E AS MENINAS

Karoline Fernandes Teixeira (UEA/ FAPEAM)

Você está triste, Coelha? Fica contente, amor, fica contente. Eu


queria tanto que as pessoas todas fossem mais contentes, é tão
bom ficar contente. A gente vê na rua todo mundo tão triste, por
que as pessoas estão tristes? Ahn? Queria tanto sair por aí
alegrando as pessoas, olha, não fique triste, segura minha mão e
vem comigo que te mostro o jardim da alegria com Deus lá
dentro, vem... (TELLES, 1982, p.85)

O anseio de criar laços e comunicar-se parece ser, na contemporaneidade, um fator


importante que o homem encontrou para Ŗresolverŗ seus problemas e, sobretudo, para retirá-lo de
seu estado de desamparo. Assim sendo, pretendemos destacar o importante papel desempenhado
pela narrativa ficcional como resposta ao sujeito de fazer-se ouvir a partir de uma diferença que
precisa do outro para se autorizar em sua singularidade. Compreendemos o texto ficcional como
organizador da experiência subjetiva, na medida em que é produtor e revelador de sentidos,
proporcionando às vezes consolo, às vezes confirmação de seu desamparo.

Centraremos a nossa atenção na cena enunciativa da escrita literária a partir da noção


fratria, ou seja, verificaremos de que modo o sujeito-leitor suscita, por meio da sua subjetividade,
mesma a representada na literatura, laços de identificação com o texto ficcional, especificamente
com as personagens dos romances analisados: Virgínia (Ciranda de Pedra), Lorena, Lia e Ana
Clara (As meninas).

Ciranda de Pedra(1954) é um romance que traz vozes que vociferam por mudanças sociais,
pois, ao mesmo tempo em que anunciam as novas relações familiares, nutrem com o leitor uma
relação fraterna, já que, de certo modo, este se sente impactado pelo drama de um sujeito no seu
momento de desajuste, desamparo e solidão. Desta forma, o leitor, através da experiência
intrasubjetiva de leitura, torna-se escritor de si mesmo. Ciranda de Pedra é um romance que causa
estranhamento, dúvida, angústia, alegria, reflexão... De certa forma, essa mistura de sentimentos e
sensações é vivenciada pela protagonista e pelo leitor, concomitantemente, no desenvolver da
trama. A obra tem como foco principal a tensão familiar entre três personagens femininas: as irmãs
Virgínia, Bruna e Otávia. A ciranda, um círculo de cinco anões feito de cimento e instalado no pátio
da casa, representa a família e os amigos de Bruna e Otávia, formando um circuito fechado no qual
é proibida a presença de Virgínia. As mulheres protagonizam o seu importante papel, como a
personagem principal, que denuncia o interior feminino com os seus próprios desejos.

479
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Já o romance As meninas (1973), oferece-nos, de um lado, um painel de vivências de


três sujeitos em busca de si mesmos; de outro, uma amostra dos problemas cruciais que
preocuparam a sociedade durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, que
Telles teve a ousadia e a coragem de denunciar. O diferencial dřAs meninas é que o leitor pode se
identificar com três personagens de singularidades diversas, todavia, com algo em comum: a busca
de suas subjetividades. Neste romance, temos a combinação de três vozes imiscíveis, mas em
constante interação, uma vez que as consciências das protagonistas travam relações dialógicas a
todo instante, interpondo-se e contrapondo-se tanto nos diálogos quanto nos monólogos interiores.
O leitor sente-se, por vezes, como que perdido em meio às vozes que sobressaem do texto, mas é a
partir dessas vozes desajustadas que o leitor vai estabelecendo laços de identificação com as
protagonistas da trama. Ao abrirmos as páginas de As Meninas, não podemos imaginar o universo
significativo de tensões que encontramos no decorrer de suas linhas. A obra nos apresenta três
narradoras-personagens, universitárias, moradoras de um pensionato dirigido por freiras, durante
uma greve na universidade, com vozes independentes e histórias singulares de vida que as tornam
também ímpares e as fazem romper com os estereótipos apresentados por seus corpos.

O drama de Virgínia suscita, no leitor, laços de ressentimento1: identificado com o ponto de


vista da personagem ressentida, mantém-se preso à trama até a espera do desenlace. Segundo
Maurano (2003), somos facilmente atraídos pela posição de injustiça. É nesse ponto que Lygia
prende o leitor, através do forte apelo dramático. A rejeição surge na obra da autora como um dos
maiores sofrimentos da condição humana. Em As meninas, o leitor também suscita laços de
identificação através das personagens ressentidas Lorena, Lia e Ana Clara. O leitor solidariza-se
com drama que cada personagem enfrenta as, deste modo a estabelece laços de identificação.

Virgínia apresenta, ao longo da trama, um profundo sentimento de abandono, o que


proporciona ao leitor, a cada relato, solidarizar-se. Primeiro vê sua família sendo destruída em
consequência da separação dos pais, o que faz com que vá viver em uma casa longe de suas irmãs e
seu Ŗpaiŗ Natércio. Lá passa por diversas dificuldades financeiras; logo apñs é rejeitada pelo Ŗpaiŗ e
suas irmãs. Sua mãe sofre de problemas mentais, acabando por morrer. Daniel, seu verdadeiro pai,
suicida-se; em seguida, descobre que sua vida inteira foi uma grande farsa, porque não era filha de
Natércio, mas sim de Daniel, o homem que ela sempre condenou e julgou.

Ana Clara uma menina pobre, de infância sofrida e família desestruturada. Quando criança
sofria abuso dos amantes de sua mãe. Por um lado ela se entrega ao vício e não se preocupa com
sua imagem, por outro aspira ascender socialmente a qualquer custo. Suas amigas a chama de Ana
Turva tal adjetivo condiz com a obscuridade em que se debatem suas emoções. Entretanto ela é a
única das três que se realiza no amor. Mas o seu destino final não depende apenas disso, o

1
O ressentimento, segundo Kehl (2004), é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem
contemporâneo. Ressentir-se significa atribuir a um outro a responsabilidade que nos faz sofrer.

480
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

desamparo que sofreu explica sua posição fraca, dependente e doentia, no entanto não explica o fato
de ela ser ambiciosa.

Lia representa uma jovem de classe média, com forte personalidade, engajada politicamente
e que almeja dias melhores ao seu país. Possui ideais revolucionários e participa de um grupo de
esquerda contrário à ditadura militar. Lia é filha de um homem alemão de classe média, que
combateu na época do nazismo e veio para o Brasil em busca de paz, e de uma nordestina
representativa das mulheres-esposas de acordo com os modelos patriarcais vigentes, mas rompe
com sua educação tradicional quando defende a revolução e a queda do poder do governo/ideologia
vigente.

Lorena é uma jovem da classe média alta, cheia de requintes e etiquetas características de
sua situação social: preza pelo europeu e pela tradição clássica, que acredita ser inigualável. Para
ligar-se ao requinte de sua figura, Lorena tem uma educação sublime, cheia de miudezas e
futilidades e, por isso, é tida, por muitas vezes, como uma mulher fútil e alienada, característica que
se acentua quando a menina mostra seu interesse por assuntos tradicionalmente, dentro da ideologia
burguesa patriarcal, vistos como típicos do universo feminino, como roupas, chás e conversas
durante à tarde. Mas por trás de tanto requinte esconde uma mulher frágil, solitária repleta de
sonhos e fantasias, passa toda a narrativa à espera do telefonema de MN, seu amante.

Através do narrador, temos acesso à Virgínia e tudo que envolve seus dramas e sentimentos
mais secretos. No começo da trama, já revela que seu maior desejo era ser aceita, aceita pelo Ŗpaiŗ
Natércio, pelas irmãs Bruna e Otávia, por Conrado (seu grande amor) e todos aqueles que
pertenciam à ciranda de pedra. É nesse momento que o leitor começa a desenvolver os primeiros
laços de identificações: o sentimento de desamparo:

Viu-se morta, com a grinalda da sua primeira comunhão. Trazidas por Frau Herta, vestidas
de preto, chegavam Bruna e Otávia debulhadas em prantos: ŖNñs te desprezamos tanto e
agora está morta!ŗ aos pés do caixão, quase desfalecido de tanto chorar, o pai lamentava-se:
Ŗ Era a minha filhinha predileta, a caçula, a mais linda das três!...ŗ muito pálido dentro da
roupa escura, Conrado apareceu com um ramo de lírios: ŖIa me casar com ela quando
crescesseŗ (TELLES, 1982, p.9).

Em As meninas, conhecemos as personagens a partir delas mesmas, pois apesar de


encontrarmos a presença de um narrador onisciente, as personagens não são narradas através de um
outro distante que tudo sabe e tudo vê, mas sim de eu que conhece muito de si e que também fala e
pensa muito sobre os outros. Cada moça é sempre um eu observador que mostra sua própria posição
quando fala dos outros:

Que sei sobre Lorena? Que gosta de Latim, que ouve música o dia inteiro e que está
esperando telefonema de um namorado que não telefona? Ana Clara, ai está Ana Clara.

481
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Como me procura e faz confissões, eu podia ficar com a impressão de que sei tudo a
respeito dela. Mas sei mesmo? ŗ (TELLES, 1982, p. 123)

Além dessas três narradoras que participam da narrativa, temos a presença de um narrador
heterodiegético, que, no entanto, parece limitar sua voz apenas à observação da diegese, como um
Ŗnorteador de leituraŗ , em momentos em que a mudança de assunto não possibilita ao leitor
perceber a mudança de voz das narradoras-personagens: ŖApertou os olhos úmidos e colocou o
disco no prato. Mansamente levantou a agulha e a conduziu como bico de um pássaro cego até a
vasilha dřágua. Deixou-a tombarŗ . (TELLES, 1985, p. 10).

O sentimento de desamparo é suscitado por toda narrativas de As meninas, Vemos que, no


universo de Ana Clara, sua maior angústia é toda relacionada à sua infância, ao seu passado
miserável. Guarda desse período todas as recordações e todos os traumas:

Infância podre, ombro podre, cabelo podre. Tenho um metro e setenta e sete. Sou modelo.
Uma beleza de modelo. O que mais você quer? Bastardo. Se esta cabeça me desse uma
folga pomba. Queria ter uma abóbora em lugar da cabeça, mas uma abóbora bem grande e
amarelona. Contente. (TELLES, 1985, p. 30)

De encontro com essa realidade, nos deparamos com dois espaços claramente degradados,
que contribuem para a representação da personagem: um é o da infância, com o prédio em
construção, os cheiros ruins, os dentes podres, os ratos e as baratas e o outro é o presente, onde o
álcool, o sexo, os remédios, as alucinações e a linguagem pesada são constantes e contrastam com
um quarto de pensionato liderado por freiras. Parece que Ana carrega consigo o caos da infância
para qualquer lugar, evidenciando sua prisão psicológica ao passado e, portanto, a complexidade
que sua figura representa, por ser dotada de personalidade complexa e singular. A morte é a única
saída para encontrar as aparências buscadas em vida. Só o mascaramento da realidade opressora e
discriminatória traz a maquiagem de uma vida (morte) feliz e normal. É mais uma forma de
esconder embaixo do tapete a sujeira que Ana Clara representa, é mais uma forma de manter
tapados os olhos de uma sociedade que se recusa a enxergar uma realidade suja, triste e corriqueira,
que é sempre levada à margem e ao silêncio e, consequentemente, ao abandono total.

Lorena parece ser marcada pelo espaço da contradição, pois rompe, em seus sonhos e
desejos, o lugar do feminino esperado por seu modelo representativo, mas cai em lugares comuns a
ele quando tenta fugir do seu destino de mulher branca, burguesa e tradicional. É uma moça da qual
a sociedade teria orgulho, pois seus valores subjacentes são considerados dignos e encaixados num
padrão social que espera da mulher submissão, delicadeza e futilidade. A moça está sempre
apresentando às amigas (Lia e Ana Clara) normas de etiquetas, de moda, de religiosidade e de
conduta: Ŗ-Mas que ideia, querida, usar meia com este calor. E sapatões de alpinista, por que não

482
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

calçou as sandálias? Aquela marrom combina com a sacolaŗ (TELLES, 1985, p. 10). Mas a moça
de requinte também é uma personagem ressentida, desta forma suscita no leitor o sentimento de
desamparo: Ŗabandonei minha filhinha num pensionato de freiras pobres, num quarto de chofer em
cima da garagem e fui viver com um homem que me apunhala pelas costasŗ (TELLES, 1985, p. 49)

Lia , talvez, seja essa a mais paradoxal das figuras aqui representadas. É uma jovem menina
engajada em ideais revolucionários da sociedade brasileira de 1970, que busca pela autonomia das
pessoas dominadas (inclusive a das mulheres), e apresenta característica física rude e combativa.
Telles constrói a personagem Lia de modo a explicitar a reflexão sobre o mundo, lançar concepções
de preocupação social e humanitária e questionar qual o papel do escritor em uma sociedade repleta
de injustiças, como a sociedade brasileira. É como se a personagem estivesse descrente do papel
social da literatura, apontando a inutilidade da ficção em meio ao caos político: ŖO mar de livros
inúteis já transbordou. Ora, ficção. Quem é que está se importando com issoŗ (TELLES, 1985,
p.32), mas, às avessas, acaba pondo em discussão qual deve ser o objetivo da obra literária.

Todas acabam por cair nos lugares esperados pela sociedade para seus corpos, pois Ana
Clara, a dona do corpo degradado, tem o final da morte, esperado pelo pensamento tradicional,
enquanto a subversiva Lia segue seu amado e rende-se a uma vida longe de seu país, e Lorena
retorna ao seu lar, do qual tentava manter-se distante. Nenhuma das três personagens alcança a
plena realização; Ana Clara morre por overdose, Lorena retorna para a companhia de sua
Ŗmãezinhaŗ e Lia viaja para a Argélia, ou seja, nenhuma das três encontra as respostas que buscava
para a crise de valores da sociedade moderna, caindo no lugar comum esperado para seus modelos.

Virgínia, Ana Clara, Lia e Lorena são mulheres que representam a sociedade a seu modo e
com seus valores. Telles cruzou diferentes discursos, que formaram o cruzamento de ideologias,
rompendo regras e desfazendo estereótipos, apontando construções singulares e completas, que
representam a luta da literatura de autoria feminina e do feminismo.

As obras analisadas não narram apenas os dramas e as dificuldades de cada protagonista,


mas também os sonhos, e é nesse ponto que se assemelham. Virgínia, de Ciranda de pedra), sonha
em encontrar a si mesma, mas somente o consegue a partir do olhar do outro que a configura como
eu. As três personagens de As Meninas somente conseguirão constituir sua subjetividade a partir de
reconhecimento de si: Lorena, ao sonhar em viver um amor utópico, busca o seu eu no amor do
outro, quando na verdade, somente o conseguirá se souber primeiro encontrar a si mesma; Lia e
Ana Clara talvez tenham conseguido encontrar-se consigo, pois, apesar de suas ações necessitarem
de outros, partem de si; enquanto a primeira quer revolucionar o seu país, a segunda vai em busca
de seu crescimento pessoal.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

483
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

BIRMAN, Joel. Por uma estilística da existência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.

CAVALHEIRO, Juciane dos Santos. O espaço ficcional e a experiência subjetiva: uma análise
enunciativa de A Metamorfose. Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada. Orientado por
Terezinha Marlene Lopes Teixeira. São Leopoldo: UNISINOS, 2005.

____. A alteridade e seus efeitos na constituição da subjetividade: uma análise enunciativa dos
protagonistas kafkianos. Tese de Doutorado em Linguística. Orientada por Ana Cristina Aldrigue.
João Pessoa: UFPB, 2009.

KEHL, Maria Rita. A constituição do sujeito moderno. Disponível em


http://www.scribd.com/doc/19133258/Maria-Rita-Kehl-A-constituicao-literaria-do-sujeito-
moderno. Acessado em 09 de junho de 2009

______.Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008.

_____. O tempo e o cão Ŕ a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.

_____. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

MACHADO, Irene. O romance e a voz. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

MAURANO, Denise. Para que serve a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

TELES, Lígia Fagundes. Ciranda de pedra. São Paulo: Abril Cultura, 1982.

_____. As meninas. São Paulo: Círculo do livro S.A., 1985.

PEREIRA, Mário E. C. (org). Leituras da psicanálise: estética da exclusão. Campinas, SP:


Mercado de Letras, 1998.

484
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

CONCRETEMAS, DE PEDRO H. S. LEÃO: MANIFESTAÇÕES DA POESIA CONCRETA NO


CONTEXTO DA LITERATURA CEARENSE

Kedma Janaina Freitas Damasceno (UFC)

Resumo: O concretismo foi um movimento vanguardista bastante significativo para literatura


brasileira. Surgido nos anos 50, opôs-se, principalmente, à poesia tradicionalista da Geração de 45,
uma vez que rompeu com uso de formas fixas e com a predominância do verso e passou a valorizar
a utilização do espaço gráfico-visual, a materialidade fônica e outros artifícios que possibilitassem a
criação de uma poesia dotada de objetividade e o mais distante possível de elementos subjetivos e
voltados para emoção. Neste trabalho, com base na obra Concretemas, de Pedro Henrique Saraiva
Leão, pretende-se apresentar uma pequena amostra de como se deu a atuação da poesia concreta na
literatura cearense. Analisando os poemas, percebe-se, por exemplo, que o autor valoriza o espaço
em branco da página e trabalha com as palavras dispondo-as de diferentes formas, caracterizando,
portanto, o uso de artifícios comuns à poesia concreta. Por outro lado, em alguns poemas, faz uso de
uma temática amorosa e se contrapõe à característica concretista de não priorização da
subjetividade. Contudo, embora seja inegável a grande influência exercida pelos concretistas do
Sul, os poetas cearenses apresentam suas peculiaridades quanto à forma de fazer poesia concreta.
Por isso é preciso que estejamos atentos a elas para que possamos conhecer melhor as
manifestações de nossa literatura regional.

Palavras-chave: Vanguarda, concretismo e literatura cearense.

Abstract: The concretism was a avant-garde movement important enough for the Brazilian
literature. Appeared in 50 years, opposed mainly to traditional poetry of the Generation of 45, since
it broke with the use of fixed forms and the prevalence of back and came to value the use of
graphic-visual space, materiality and phonics other devices that enable the creation of a poetry
endowed with objectivity and farthest possible of subjective elements and focused on emotion. In
this work, based on work Concretemas, by Pedro Henrique Saraiva Leão, intends to present a small
sample of how was the performance of concrete poetry in literature of Ceará. Looking at the poems,
we find, for example, that the author appreciates the blank page with the words and works featuring
them in different forms, featuring, so the use of deception common to concrete poetry. Moreover, in
some poems, makes use of a thematic loving and opposes the specific characteristics of non-
prioritization of subjectivity. However, while it is undeniable the great influence of Southern
Concrete poets Ceará have peculiarities in how to make concrete poetry. Therefore we must be
attentive to them so we can better understand the manifestations of our regional literature.

Keywords: Avant-garde, concretism and literature of Ceará.

Introdução

Quando se escuta falar no movimento de poesia concreta, imediatamente lembra-se da


região Sudeste, do trio Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, que juntos
protagonizaram um episódio importante da literatura brasileira que foi a inovação poética ocorrida
nos anos 50. Porém, no presente artigo, além de relembrar um pouco da atuação da vanguarda
concretista no Rio de Janeiro e em São Paulo, pretende-se verificar a manifestação da poesia

485
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

concreta na literatura cearense, um fato que ainda é desconhecido por muitos. Para tanto, servirá
como corpus a obra Concretemas, do médico e poeta cearense Pedro Henrique Saraiva Leão.

Antes de iniciar a discussão acerca da atuação do movimento concretista no estado do


Ceará, faz-se necessário uma breve contextualização do surgimento desta vanguarda no Brasil.O
grupo brasileiro ŖNoigandresŗ 1 (depois ŖInvençãoŗ ), de São Paulo, composto inicialmente pelos três
nomes já anteriormente citados: Os irmãos Augusto e Haroldo de Campos e o amigo Décio
Pignatari, foi o responsável pela inserção do movimento no país. Os três jovens intelectuais
costumavam se reunir para trocar idéias sobre música erudita contemporânea, cinema, artes
plásticas e poesia moderna. Nesse ínterim, também bastante influenciados por alguns nomes da
tradição erudita internacional como Mallarmé, Pound, Joyce e cummings, resolveram declarar
oposição ao retrocesso formal que a chamada ŖGeração de 45ŗ representava para a poesia da época.
Os concretistas se inspiraram bastante na poesia ŖPau- Brasilŗ de Oswald de Andrade, com suas
reduções lingüísticas e técnicas de montagem, assim como nos poemas de João Cabral, com seu
rigor construtivo, para proporem as suas inovações poéticas. A primeira mostra do movimento
aconteceu no Brasil, no período de 4 a 18 de dezembro de 1956, no Museu de Arte Moderna de São
Paulo.

Contudo, o movimento de poesia concreta sofreu muitas críticas, o trio ŖNoigandresŗ chegou
a ser acusado de Ŗterrorismo culturalŗ devido às inovações poéticas que implementaram. Na
introdução à segunda edição da Teoria da Poesia Concreta: Textos críticos e manifestos (1950-
1960), Augusto de Campos afirma que Décio Pignatari rebateu a acusação dizendo:

É estranho três poetas do bairro das Perdizes, aos quais se juntaram uns poucos
companheiros, sem outra força que a da sua vontade, e sem outro apoio a não ser o
individual para a divulgação dos seus poemas Ŕ até este ano sempre publicados em edições
não comerciais- conseguiram aterrorizar a poesia brasileira. Ou esta era muito fraca, ou as
idéias deles eram muito fortes. O que vocês acham?
(CAMPOS et al, 1987, p.12)

Um importante diferencial da vanguarda concretista em relação aos outros movimentos


literários que atuaram no Brasil é que, como afirma Haroldo de Campos na introdução à primeira
edição da Teoria da Poesia Concreta: Textos críticos e manifestos (1950-1960): Ŗ É o primeiro
movimento literário a nascer na dianteira da experiência artística mundial, sem defasagem de uma
ou mais décadas.ŗ (CAMPOS et al, 1987, p. 7).Sem dúvida, o pioneirismo do movimento brasileiro
de poesia concreta foi um ponto positivo para a sua consolidação naquele período. As idéias
concretistas chegaram até mesmo a ser exportadas para outros países.
Pela primeira vez Ŕ e diz-se isto como verificação objetiva, sem implicação de qualquer
juízo de valor - a poesia brasileira é totalmente contemporânea, ao participar na própria
formulação de um movimento poético de vanguarda em termos nacionais e internacionais,

1 A respeito do nome Noigandres, ver Ezra Pound, Antologia Poética, cit., pp.166-8. Augusto de Campos, em Verso,
reverso, controverso, p. 43, anota: Ŗ A linha, e jois lo grans, el´ olors de noigandres fora assim reconstituída pelo sábio
alemão (o Ŗvelho Levyŗ) : e jois lo grans, el´olors d´ enoi gandres. A segunda parte de NOIGANDRES seria derivada
do verbo gandir (proteger); enoi seria forma cognata da moderna palavra francesa ennui. Portanto, um olor d´enoi
gandres, que protege do tédio, antídoto do tédio: o grão só de alegria e o olor contra o tédioŗ.
486
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

e não simplesmente em sentir-lhe as conseqüências com uma ou muitas décadas de atraso,


como é o caso até mesmo do movimento de 22. (CAMPOS et al, 1987, p. 153)

O enfraquecimento do movimento concretista se deu diante da dificuldade de conciliar as


suas abstrações geométricas e seus padrões de organização ótico-espacial com os setores político e
social. Assim, diante da necessidade de devolver à palavra sua condição de verbo, de totalidade
transcendente, e de reafirmar a independência da poesia como criação; o ŖNeoconcretismoŗ,
representado principalmente por Ferreira Gullar, sai em defesa da subjetividade e dos valores
verbais expressivos, rompendo, portanto, com as ideologias concretistas sem deixar, contudo, de ser
estudado como o par do concretismo na ação das ideologias construtivas no Brasil.
Com o fim do movimento cada um dos três ŖNoigandresŗ seguiu seu prñprio rumo: Haroldo
de Campos passou a desenvolver fundamentalmente uma atividade de crítica literária; Augusto de
Campos voltou-se às traduções e à crítica de música e Décio Pignatari passou a se dedicar,
principalmente à teoria da informação e à reflexão sobre os meios de comunicação de massa e sua
influência na cultura moderna.

1. O concretismo na literatura cearense

Depois de São Paulo e do Rio de Janeiro, o Ceará foi um dos primeiros estados em que as
técnicas concretistas foram consideradas e experimentadas. Já em 1957, apenas um ano depois do
lançamento da poesia concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo (1956), o Ceará faz sua
primeira exposição de arte concreta, no Clube do Advogado Local de Fortaleza. Haroldo de
Campos tem um texto intitulado ŖContexto de uma Vanguardaŗ 1, que se encontra também na
Teoria da Poesia Concreta: Textos críticos e manifestos (1950-1960), em que ele comenta sobre
a participação do estado na composição desse movimento artístico:

Fortaleza, já em 1957, teve a sua primeira exposição de poesia concreta, no Clube do


Advogado local; em fevereiro de 1959, a segunda no IBEU. Foi a primeira capital
brasileira, depois dos grandes centros São Paulo e Rio de Janeiro, a contribuir
positivamente, com idéias e criações, para o movimento concreto. Suas manifestações são
anteriores , por exemplo, à primeira mostra de poesia concreta austríaca, que ocorreu na
Galeria Würthle de Viena, em 1959; anteriores suas publicações ao primeiro número da
revista Nota de Munique, julho de 1959, um dos principais veículos da poesia de vanguarda
na Alemanha. (CAMPOS et al, 1987, p. 155)

O poeta cearense José Alcides Pinto foi quem primeiro entrou em contato com as idéias
concretistas e foi quem as trouxe para o estado já em 1957, apenas um ano depois da primeira
mostra nacional de arte concreta, ocorrida em São Paulo. Antônio Girão Barroso, Horácio Dídimo,
Eusélio Oliveira, Eudes Oliveira e Pedro Henrique Saraiva Leão foram os poetas que, juntamente
com José Alcides Pinto, formaram o grupo de poetas concretos do Ceará. Porém, assim como
aconteceu com os concretistas do Sudeste, os cearenses também sofreram muitas críticas de alguns
conterrâneos. Estes não aceitavam as inovações formais que estavam sendo realizadas por aquele

1 Escrito em julho de 1960, como uma introdução a uma antologia de poemas do Grupo Concreto de Fortaleza, Ceará.

487
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

grupo de poetas. Antônio Girão Barroso, em seu ensaio ŖA poesia concreta no Cearáŗ , apresenta
algumas dessas críticas. O pai de um dos poetas do grupo CLÃ, um importante grupo de literatos do
estado naquele período, escreveu uns versinhos bem provocadores, em forma de quadra, dizendo
coisas assim:

ŖAderiste ao Concretismo
Sem concreto, sem concretar,
Como quem deixa o lirismo
No concreto a batucar.

Se és concreto como dizem,


Quero ver concretizado
Esse afã concretizante
Desse teu dilema ousado.

Sabes tu concretizar
O sentimento do amor?
Quero ver se concretizas
O perfume de uma flor!ŗ

O poeta Filgueiras Lima, bastante consagrado na terra, também não apoiava as propostas do
movimento concretista no estado: ŖFazem-se poemas com palavras e casa com tijolos. E assim
como um montão de tijolos não é casa, também um amontoado de palavras desconexas não é
poema.ŗ (BARROSO, 1977, p.32).
Porém, havia também os que eram favoráveis ao concretismo. Ainda no mesmo ensaio,
Antonio Girão Barroso transcreve as palavras do médico e escritor Belo da Mota:
ŖO concretismo, neste instante, horroriza a maioria, deixando-a espavorida... Mas
o espírito compreensivo deve aguardar o desenvolvimento de mais essa inovação
na arte poética. O espírito cearense, árdego e vibrátil em matéria de arte, dará
necessariamente sua contribuição valiosa ao movimento. E imporá mais uma vez
seu valor qualitativo no campo dessa experiência revolucionária, cujo destino o
tempo irá filtrar através das medidas da pura arte , como fez com as que
passaram...ŗ ( BARROSO, 1987, p. 32)

Como se pode perceber, o movimento concretista no Ceará teve seus opositores, mas
também teve aqueles que o apoiaram, o que demonstra que foi um movimento significativo e que
merece uma maior atenção por parte dos estudiosos de literatura, no que se refere a averiguar a
importância de um movimento cultural para a formação de uma literatura local, ou mesmo a
importância desse apoio de uma literatura tão regional a um movimento nacional que vinha
recebendo tantas críticas.
Algumas questões merecem ser destacadas para que se possa refletir melhor acerca deste
tema. Como se sabe, o concretismo foi um movimento de vanguarda impulsionado principalmente
pelas molas propulsoras da modernidade. Não foi à toa que ele teve seu berço em São Paulo e no
Rio de Janeiro. Estes estados da região Sudeste, considerados o centro cultural e econômico do país,
viviam um período de significativas inovações tecnológicas, industriais e crescimento urbano,
influenciados, principalmente, pelas mudanças desenvolvimentistas que estavam ocorrendo no

488
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Enquanto isso, o Ceará continuava sendo um estado
periférico, agrário e distante do desenvolvimento industrial que ocorria no Rio e em São Paulo.
Diante destas disparidades, algumas indagações podem ser levantadas: ŖO que teria motivado os
poetas cearenses a aderirem ao movimento de poesia concreta, uma vez que sua realidade política e
econômica era bastante diversa da realidade dos estados do Sudeste, que apresentavam um contexto
propício à manifestação de uma poesia de ruptura eminentemente urbana e de apelo às novas
tecnologias? A poesia concreta cearense seguiu os mesmos moldes da poesia concreta dos
concretistas de São Paulo e do Rio de Janeiro?ŗ
As duas indagações ficam para a reflexão do leitor, sendo que a segunda poderá ser melhor
verificada através da análise que será feita neste artigo de alguns poemas que compõem a obra
Concretemas, de Pedro Henrique Saraiva Leão.

2. Concretemas : uma amostra do concretismo cearense

Pedro Henrique Saraiva Leão, autor da obra que será apresentada, foi um dos mais atuantes
poetas que compôs o grupo de poetas concretos do Ceará. Participou ativamente das duas mostras
de arte concreta ocorridas no estado nos anos de 1957 e 1959. No prefácio de Concretemas, escrito
por José Alcides Pinto, este afirma o seguinte do amigo:

O concretismo no Ceará foi por natureza um movimento de equipe, sem chefes nem
papismos. Mas teve seu consultor, como acontece em todo grupo literário ou artístico. E
esse papel era desempenhado pelo mais jovem do grupo Ŕ Pedro Henrique Saraiva Leão. E
foi na condição de acadêmico de medicina e professor de inglês do IBEU que cerrou
fileiras ao nosso lado. P.H.S.L., mais do que qualquer outro do grupo, captou o efeito
espacial do poema concreto corroborando, assim, o conceito de Focillon, que muito antes
do concretismo já dizia que Ŗa organização conduz à formaŗ .

Concretemas é um livro curto, composto por apenas 18 poemas, mas representa bem a
poesia concreta cearense. Assim como é afirmado no Ŗplano-piloto para poesia concretaŗ , escrito
por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari: Ŗo poema concreto é um objeto em
si e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas.
seu material: a palavra (som, forma visual, carga semântica). (CAMPOS et al, 1987, p.157). É
justamente isso que Pedro H. S. Leão faz em seus poemas, se utiliza da experimentação formal das
palavras e dos sons para compor sua poesia concreta. Contudo, antes da curta análise de alguns
poemas, é importante atentar para um ponto que também constitui-se como uma característica do
concretismo cearense: o ano de publicação de Concretemas é 1983, ano em que o apogeu
concretista já havia passado. Ou seja, tem-se aí uma literatura de Ŗpermanênciaŗ , como afirma o
crítico Antonio Candido. Não só Pedro H. S. Leão, mas também outros poetas concretistas do Ceará
continuaram fazendo poesia concreta mesmo depois da moda concretista dos anos 50 e 60 ter sido
Ŗsuperadaŗ . Antonio Candido aborda constantemente o termo Ŗpermanênciaŗ em seus ensaios para
falar de características da literatura que se mantêm de um período para outro. O crítico articula o
estudo das transformações estéticas e temáticas de cada movimento vanguardista ao seu respectivo momento
489
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

histórico, mostrando seus respectivos perigos e contribuições. Em uma entrevista à revista Escrita ( nº 2,

ano I, São Paulo, 1975), intitulada ŖAntonio Candido e os condenados à vanguardaŗ , o crítico
afirmou, entre outras coisas, que Ŗa vanguarda não é feita para permanecer, e sim para provocar
mudança e dar lugar a uma fase estávelŗ (CANDIDO, 2002, p.223). Porém, o que se verifica no
Ceará, a priori, é a permanência das características concretistas, que se prolongam até os dias
atuais.
Agora, observe-se os quatro poemas que foram selecionados para serem analisados quanto a
sua forma e conteúdo:

morcego
cego
erra raio
som onda
sonda senda
cego

Neste primeiro poema já se nota o trabalho do poeta com a forma. Ele dispõe as palavras de
uma maneira que elas formem uma figura que nos faça lembrar o objeto morcego. Depois, o que
fica perceptível ainda é o jogo que ele realiza com as palavras para caracterizar o morcego. A
primeira característica ressaltada é o fato de ele ser cego, que é uma palavra que adquirida com a
omissão da primeira sílaba da palavra mor-cego. Esta palavra aparece duas vezes, no segundo verso
e no último, como uma maneira de ratificar bem essa característica do animal. O poeta se utiliza
ainda de outras seis palavras (e r r a / r a i o; s o m / o n d a; s o n d a / s e n d a) que também
aparecem no poema para caracterizar o animal.
Veja-se o segundo poema selecionado:

veia
vál<ula
<eda
veia
>e d a
Vida

Neste poema predomina a utilização do fonema /v/, sendo que em três das seis palavras
escritas no poema ( v á l < u l a, < e d a, >e d a ) a letra Ŗvŗ é invertida ou para um lado ou para
outro, simbolizando, sugestivamente, na primeira palavra, uma espécie de canal por onde percorre o
líquido vital que é o sangue e nas outras duas algum mecanismo com função de impedimento. Note-
se que este poema está também bastante associado ao exercício da medicina, pois estes elementos:

490
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

veia, válvula e vida fazem parte do vocabulário e do trabalho de um médico, que foi uma outra
atividade exercida por Pedro H. S. Leão.
O terceiro poema para a análise:
F
F
FV
FA
FAP
FAB
FABP
FABR
FABRI
FABRIO
FABRIC
FABRICV
FABRICA
FÁBRICA

Neste poema a forma também é predominante, pois o poema, gráfica e semanticamente se


autofabrica. O poeta, como um operário da linguagem, vai construindo a estética e semântica do seu
poema, de forma que o resultado remeta a um objeto concreto da realidade. No caso deste poema, o
autor vai inserindo as letras de cima para baixo sempre acrescentando uma letra no final do
sintagma, o que vai passando uma idéia de construção. As duas últimas palavras se diferenciam
apenas pelo acento agudo que está na última (FABRICA ŔFÁBRICA) e que faz toda a diferença,
pois é na última palavra que está o núcleo do poema, um poema cujo conteúdo enfocado é um dado
relevante daquele contexto social e temporal: o advento da industrialização e o aumento do número
de fábricas em diversas partes do país.
Através destes três exemplos já é possível verificar as nítidas características concretistas na
poesia de Pedro Henrique Saraiva Leão. O jogo com as palavras, com os sons e com as imagens,
que pode ser traduzido por uma palavra que está sempre presente no vocabulário dos concretistas,
verbivocovisual, são marcas constantes nos poemas que estão inseridos na obra Concretemas.
Portanto, a forma dos poemas que constituem esta obra se aproximam bastante dos poemas
concretos produzidos pelos concretistas do Sudeste. Quanto ao conteúdo, embora também não fique
muito distante, pois não prioriza o lirismo exacerbado ou o subjetivismo, verifica-se uma leve
inclinação à temática amorosa, pois o poema de abertura, por exemplo, é um poema em que o poeta
louva, à primeira vista, ao nome de uma mulher:

o amor
mora em marina
491
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

marina luar
marina do mar
marina do ar
marina do amor
marina aromática
marina romã
marinaromadomar

Neste poema, segundo escreveu José Alcides Pinto no prefácio da obra, vê-se: Ŗos elementos
do poema Řamor/marina/luar/mar/romãř buscando a forma ideal do poema concreto, na
contenção das palavras unidades de correlação semântica (marinaromadomar )(...)ŗ Ou seja, no
final do poema que é construído em linhas de palavras, o poeta as sintetiza em um só vocábulo que
pode ser desmembrado assim: Ŗmarina/aroma/do/marŗ.

Conclusão

Apesar de muitos não se identificarem com a vanguarda concretista e até mesmo


desconsiderarem a poesia concreta como poesia, é necessário reconhecer que este movimento teve
grande importância para a reformulação da poesia brasileira do século XX que estava retrocedendo
às normas tradicionais através da poesia da ŖGeração de 45ŗ . Caracterizada como uma poesia de
caráter visual, a poesia concreta acompanhava o ritmo do tempo, pois as décadas de 50 e 60 foram
marcadas, principalmente, pela correria da industrialização e do progresso. Assim, a nova poesia
era a poesia ideal, uma vez que não exigia do leitor muito tempo, pois estava presente
principalmente nos meios de comunicação de massa (Textos de propagandas, na paginação do
jornal, na diagramação do livro, no slogan de televisão), o que propunha uma leitura rápida.

O estado do Ceará, mesmo sendo um estado periférico e distante do centro cultural do país,
deu sua válida contribuição ao movimento de poesia concreta nacional. A partir da leitura de
algumas revistas e jornais da época, que propagavam as idéias concretistas, alguns poetas
resolveram aderir ao movimento e formaram até um grupo de poetas concretistas no estado. Neste
artigo, foi apresentado um pouco sobre a obra Concretemas, de Pedro Henrique Saraiva Leão, que
foi um dos importantes nomes do grupo concretista cearense. Através desta obra foi possível refletir
um pouco sobre a comparação entre a poesia concreta que era realizada no Sudeste e a que era
feita no Ceará. Viu-se que, na obra que foi apresentada, a forma de composição poética do autor se
aproxima bastante da forma utilizada pelos concretistas de São Paulo e do Rio de janeiro.Mas o
conteúdo às vezes diverge um pouco, pois, como foi exemplificado, no poema de abertura do livro,
Pedro H. S. Leão se utiliza de uma temática voltada para o sentimentalismo amoroso.

Assim, o desafio é continuar estudando este movimento vanguardista que foi tão
significativo para a nossa literatura, bem como focando no concretismo cearense e em suas
convergências e divergências em relação às manifestações concretistas do Sudeste.
492
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Desta forma, o movimento concretista poderá ser melhor reconhecido, tanto por parte da crítica
literária local como nacional, como um movimento que foi de suma importância para a renovação
da poesia brasileira.

Referências bibliográficas

Antologia de Poetas Cearenses Contemporâneos. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará,


1965.

BARROSO, Antônio Girão. Modernismo e Concretismo no Ceará. Fortaleza: Instituto Lusíadas,


1978.

CAMPOS, Augusto et al . Teoria da Poesia Concreta: Textos críticos e Manifestos (1950-1960).


2 ed. São Paulo: Duas Cidades, 1975.

CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. 34. ed. São Paulo: Duas cidades, 2002.

LEÃO, Pedro Henrique Saraiva. Concretemas. Fortaleza: Xisto Colona Editor, 1983

______. Poesia concreta no Ceará. In: Academia Cearense de Letras. A produção literária do
Ceará: Antologia. Coordenação da ACL. Fortaleza: Expressão gráfica, 2001.

PINTO, José Alcides. Concretismo no Ceará. In: LEÃO, Pedro Henrique Saraiva. Concretemas.
Fortaleza: Xisto Colona Editor, 1983.

Revista de Cultura Vozes: Concretismo. LXXI: 1, jan.-fev. 1977.

493
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

HORTO AL BERTIANO DE INCÊNDIO

Kenedi Santos Azevedo (UFAM)

Resumo: Este trabalho tem o intuito de fazer uma análise dos poemas de Al Berto, destacando a imagem do
fogo, na obra Horto de Incêndio, de 1997, último trabalho do poeta português, já que a presença dessa
imagem, em muitos poemas, é constante. Exemplo disso verifica-se em vestígio e outros dias, títulos
iniciados com letra minúscula, onde não está presente apenas a palavra em si Ŕ fogo -, mas também outras de
campos semânticos afins, como o seguinte grupo de termos: incêndio, relâmpago, fulmine, queimar, ligando
todo o significado e a simbologia da palavra em um só sentido: a do renascimento e da regeneração, da
dualidade entre destruição e renovação. Também pretende-se apresentar brevemente a vida e a obra ainda
pouco conhecida e lida desse que foi um dos grandes nomes da poesia contemporânea.

Palavras chaves: Al Berto, Horto de Incêndio, Literatura Portuguesa.

Introdução

A poesia portuguesa do final do século XX, principalmente a dos anos 70 até os nossos dias,
ganhou, tanto na forma, como no conteúdo, certa liberdade; os poetas tentaram fugir daquela
fórmula-comum em que os antepassados falavam e escreviam. Se antes, grupos de escritores
criavam um estilo, hoje, diferentemente, cada um tem estilo independente. Se havia uma literatura
monótona, hoje o que prevalece é uma literatura dinâmica com temas diversos. A esse respeito,
António Moniz escreve:

Na caracterização do poeta contemporâneo, ambiguamente adjetivado de moderno, a partir


do confronto com o poeta antigo, Eduardo Lourenço distingue na sua angústia as
conseqüências da sua solidão individualista e do desmoronamento inevitável da sua
automitificação: ŖO poeta antigo podia angustiar-se, em sentido subjetivo, por não ser
Homero ou Dante, cantores deste ou daquele deus e angustiar-se ainda por não se sentir à
altura de cantar outro deus por ele entrevisto. Cautelosa e humildemente não se
envergonhava de avançar no seu inferno pela mão de um Virgilio, mesmo se era um Dante.
O poeta moderno recusa todos os guias. Um universo comum não existe na poesia
moderna. Cada homem está só num universo que poderá ser o de todos, mas no fim do
percurso, talvez, não no principioŗ (MONIZ, 1997 p. 22).

O poeta português Al Berto recusa também todos os guias e revela um universo que é só
dele e pode ser de todos. Desde sua estréia na literatura com À Procura do Vento num Jardim
d‘Agosto, de 1977, até Horto de Incêndio, de 1997, Al Berto apresentou uma poesia diferenciada,
com um tom prosaico, carregada de mistério e significação. Isso não é recorrente apenas na escrita,
mas nas capas dos livros, como se percebe neste último. O poeta cobre um lado do rosto com a mão,
494
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

deixando aparecer o outro lado do rosto e um dos olhos; a luz que atinge esse olho cria a imagem de
que ele está incendiando. A parte do rosto que ficou coberta conota o lado obscuro, misterioso, que
pode ser notado pela cor preta da capa e no próprio nome adotado pelo poeta: Al Berto. Se se
pronuncia de uma vez só, entende-se aberto, ou seja, livre, transparente, mas esse nome, para além
da abertura tem uma separação, um afastamento, levando à seguinte pergunta: Ŗque afastamento?ŗ
E a imaginar que seja o afastamento da realidade do mundo. É exatamente isso que António Ramos
Rosa verifica na obra al bertiana, conforme se lê a seguir:

Logo nos primeiros poemas de Al Berto (Trabalhos do Olhar, 1982) deparamos com uma
poesia da violência do mundo e da realidade insuportável. Tomar contacto com o mundo
para este poeta não é uma possessão da realidade, mas quase sempre significa uma perda
irreparável, um grito de revolta e de medo (ROSA, 1991 p. 119).

O poeta tenta se livrar de um mundo. Mas, não é de qualquer mundo. É de um mundo


violento onde as pessoas não têm liberdade de expressão, o qual ele quer denunciar para todos,
dando um grito. Por isso, Al Berto falou em uma entrevista que Ŗtalvez este livro seja um livro para
ler também em voz alta. Stop‖. Por isso, também, é que se percebe o afastamento entre a pronúncia
e a escrita de seu nome: Al Berto, não Alberto.

Faz-se agora um retrospecto de sua vida. Alberto Raposo Pidwell Tavares nasceu em
Coimbra em 1948. Passou parte da infância e adolescência junto com os seus irmãos mais novos em
Sines, na quinta de Santa Catarina. Desde a adolescência, o futuro escritor destacava-se pela
originalidade do seu traje e das suas atitudes, o que provocava escândalos, sendo filho de uma
família da burguesia inglesa duma estirpe nobre. Especialmente os avós Pidwell Tavares que eram
extremamente conservadores. Quanto a isso, Al Berto disse a um jornal: ŖLembro-me da primeira
vez que me chamaram maricas Ŕ foi a minha avñ.ŗ Quando morreu o filho dela, pai do jovem
Alberto, ela tentou apoderar-se da educação dos netos.

Já desde a infância, Al Berto mostrava extraordinário dom para a pintura e por isso, em
1965, foi estudar na Escola Antonio Arroio em Lisboa. Naquela altura, frequentava também o
Curso de Formação Artística da SNBA (Sociedade Nacional de Belas Artes). Em 1967, dez anos
antes da publicação da sua primeira coletânea escrita em português, abandonou Portugal e exilou-se
em Bruxelas com a intenção de fugir da possibilidade de servir ao Exército Nacional em função da
Guerra Colonial, cuja violência se potencializava. Entrou para a École Nationale Supérieure
d‘Architecture et des Arts Visuels, na qual os professores e alunos concordavam com as idéias
revolucionárias que deflagraram os acontecimentos de Maio de 1968, época da enorme agitação
social, cultural e política, época da permanente vertigem. Sobre esse momento, Antonio Negri
afirma: ―Havia um ar estranho: a revolução inesperada arrastara o adversário, tudo era
permitido, a felicidade era desenfreada‖. E Voltaire Schilling comenta em seu artigo sobre esse
mesmo ano:
495
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗ1968ŗ foi o ano louco e enigmático do nosso século. Ninguém o previu e muitos poucos
dos que dele participaram entenderam afinal o que ocorreu.

Deu-se uma espécie de furacão humano, uma generalizada e estridente insatisfação juvenil,
que varreu o mundo em todas as direções.

Tornou-se um ano mítico porque Ŗ1968ŗ foi o ponto de partida para uma série de
transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais, que afetaram as sociedades da
época de uma maneira irreversível. Seria o marco para os movimentos ecologistas,
feministas, das organizações não-governamentais (ONGs) e dos defensores das minorias e
dos direitos humanos. Frustrou muita gente também. A não realização dos seus sonhos, Ŗda
imaginação chegando ao poderŗ, fez com que parte da juventude militante daquela época se
refugiasse no consumo das drogas ou escolhesse a estrada da violência, da guerrilha e do
terrorismo urbano.

A dificuldade de interpretar os acontecimentos daquele ano deve-se não sñ à Ŗmúltipla


potencialidade do movimentoŗ como à ambiguidade do seu resultado final. A mistura de
festa saturnal romana com combates de rua entre estudantes, operários e policiais, fez com
que alguns, como C.Castoriaditis, o vissem como Ŗuma revolta comunitáriaŗ, enquanto que
outros, como Gilles Lipovetsky, era Ŗa reivindicação de um novo individualismoŗ.
(SHILLING, 2002).

Depois disso, Al Berto fundou com alguns amigos, principalmente artistas plásticos,
fotógrafos e escritores, a Associação Monfaucon Research Center e publicou um livro de desenhos
intitulado Projects 69. A exposição de pintura de final de curso em La Cambre foi um escândalo. A
sala foi forrada a papel de prata na sua totalidade e as únicas representações foram uma série de
fotos em polaroid que não eram de todo susceptíveis de serem observadas por espíritos moralistas.
No entanto, os quadros mais característicos de Al Berto eram enormes telas que podiam ocupar toda
uma parede com representações do tipo das de Andy Wharol em cores berrantes, banda desenhada e
técnicas tão diversificadas como a pintura sobre jornal ou transparências inusitadas. Elaborou
também cartazes contra a expulsão de estudantes e trabalhadores estrangeiros e cartazes para a Feira
do Livro de Frankfurt. O contato com a pintura marcou a escrita de Al Berto, pois a maioria de seus
poemas possui recorrências visuais, sendo uma delas a do fogo.

Em Horto de Incêndio o entrelaçamento do recurso visual com a palavra começa desde a


capa, continua no título e se amplia para o conteúdo. Deste, propõe-se, no presente artigo, analisar
algo que traz em si uma carga de significação considerável, a imagem do fogo. Sobre a simbologia
dessa imagem Jean Chevalier diz: ŖSegundo certas lendas, o Cristo (e alguns santos) revivifica os
corpos passando-os pelo fogo da fornalha da forjaŗ (2002, p. 440). É desse ponto que queremos
iniciar este estudo.

Passemos, então, ao título. Horto é o local onde são cultivadas plantas de jardim. Isso dá
ideia de ambiente alegre, pela presença da natureza; também remete ao jardim do Éden, lugar que
representa o estado primordial e sem pecado do ser humano; ao mesmo tempo, lembra o sofrimento
de Jesus no Horto das Oliveiras antes de sua morte, fazendo-nos atentar para a dubiedade da alegria
e do sofrimento. Incêndio, o efeito do fogo numa coisa, está ligado a Horto por meio de uma
preposição, criando assim, a imagem de um jardim não de flores, mas de chamas. É essa figura que

496
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

se pretende destacar nos poemas al bertianos. É importante ressaltar que, na época em que os
escrevera, ele estava acometido de uma doença grave, que abreviou sua vida, podendo-se relacionar
o estado de espírito do poeta com a sensação de estar no horto, esperando a hora de sua morte, um
horto de incêndio, um lugar que queima, transforma, regenera e purifica assim como o fogo o faz
com as coisas onde ocorre.

O livro Horto de Incêndio está dividido em duas partes: a primeira composta por vinte e
nove poemas, e a segunda intitulada Ŗmorte de rimbaud dita em voz alta no coliseu de lisboa a 20 de
novembro de 1996ŗ , uma mistura de poesia e prosa poética.

Feitas essas considerações vamos então aos poemas, começando por um que chama a
atenção pela forma e pelo conteúdo.

1. “Até que o relâmpago fulmine a língua”

vestígios

noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas Ŕ noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
ao quarto do zinabre e do álcool Ŕ pernoita-se

onde se pode Ŕ num vocabulário reduzido e


obsessivo Ŕ até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva Ŕ vamos pela febre
dos cedros acima Ŕ até que tocamos o místico
arbusto estelar
e

o mistério da luz fustiga-nos os olhos


numa euforia torrencial

(Al Berto, 1997, p. 11 e 12, negrito meu)

Destaca-se, no poema, o relâmpago, em primeiro lugar, que é a representação do poder, de


uma força que brilha e ofusca, cuja descarga possui intensa velocidade. Em seguida, o verbo
fulminar, que demonstra o poder do fogo sobre determinada coisa: não deixa cinzas, levando a
497
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

pensar no desaparecimento da linguagem, da palavra, da língua. A mesma língua que propicia a


sintonia nos relacionamentos pode também destruir sem deixar vestígios e ainda pode ser destruída
por uma força desmedida como a do relâmpago. Este também sugere os opressores da época
salazarista, enquanto a língua, as atitudes contrárias às normas, bem como os protestos dos jovens
desse tempo. Uma outra leitura lembra a forma de escrever dos modernistas que faziam propostas
de escrever o poema livre da poética tradicional, despertando o estranhamento do leitor desde a
arquitetura do texto. O surrealista Pierre Garnier publica o Manifesto para uma poesia nova, visual
e fônica, em 1962, onde esclarece:

A poesia visual é um excitante ao seu [do leitor] psiquismo: a partir das palavras propostas
e a partir de sua arquitetura, esse psiquismo deve fazer trabalhar seu corpo e seu espírito;
ele mesmo deve colocar-se como conteúdo. Todos os homens retomam assim um lugar que
nós lhes havíamos contestado. Eles se reabilitam de seu eu. Pouco a pouco aparece, em
cada um deles, o eu, princípio ativo da criação. (GARNIER apud TELES, 1992, p. 216-
217).

Vamos ao trecho que inicia o poema: noutros tempos/ quando acreditávamos na existência
da lua/ foi-nos possível escrever poemas... O poeta volta seu olhar ao passado, quando tudo aquilo
em que eles acreditavam os faziam escrever poemas para limpar as máscaras da sociedade Ŕ as
regras que permitiam agir de um modo e proibiam, ao mesmo tempo, de agir de outro modo. Todas
essas regras, que eram reveladas através do vestuário, do contato corporal, do modo de como se
deve usar a língua, faziam com que os intelectuais desse tempo tentassem transformá-las,
mostrando quem estava realmente por detrás das imundas máscaras que essa mesma sociedade
criava para si.

E essa transformação se confirma quando ele diz: hoje/ nenhuma palavra pode ser escrita/
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras... Dessa forma o poeta mostra que, apesar da
censura quanto à expressão daquele pensamento libertador e revolucionário, ainda era possível
escrever poemas, mesmo que fosse na Ŗaridez das pedrasŗ que aqui pode ser entendida como a
ditadura, a qual tentou eliminar os ideais desses intelectuais que buscavam uma nova forma de viver
a realidade, vestindo-se e comportando-se de maneira, às vezes, irreverente. Na verdade, essa era a
palavra adequada para ilustrar a vida dos jovens daquela época que, apesar do cerceamento da
liberdade de expressão, continuavam Ŗa repetir os gestos e a beber a serenidade da seivaŗ , num
tempo que fora de acreditar na lua e de compor poemas, mesmo que o relâmpago fulminasse a
língua. Eles escreviam para se livrar dessa tirania, para expor no papel o sentimento que os envolvia
tanto de desejo de libertação como de denúncia da opressão.

Por isso, Al Berto disse ao editor Manuel Hermínio Monteiro, em uma entrevista via
telegrama: ŖA poesia tem-me levado ao despojamento daquilo que é lixo e me atrapalha a vida.
Cada vez mais me parece que a poesia é a única linguagem capaz de atingir o rosto de um deus e
feri-lo moralmente, nem que fosse por um milésimo de segundo. Stop‖ (2010). É somente através
498
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

da poesia que o poeta tenta se livrar de tudo o que é considerado asqueroso neste mundo cheio de
conflito e que põe em risco a vida daqueles que tentam expressar suas opiniões Ŕ Ŗmesmo que o
relâmpago fulmine a línguaŗ . É por meio da poesia que ele expõe toda sua revolta contra Ŗum
deusŗ. Esse Ŗdeusŗ pode ser considerado o sistema de regras imposto pela sociedade da época; a
verdade que esta impõe a seus membros e que atrapalha, de certa forma, as pessoas de escolherem o
modo de vida que lhe aprouver.

Neste sentido, a imagem do fogo representada pelo verbo fulminar pode muito bem ilustrar a
destruição de uma língua repleta de formalidades para o renascimento de uma mais clara e mais
próxima ao nosso tempo, uma libertação, tanto na escrita como na oralidade, na língua e em todas
as atitudes, como já havia sido proposto desde os primeiros modernistas. Assim afirma António
Ramos Rosa:

Ao dogmatismo das normas sociais e políticas respondiam os modernistas com a prática de


uma escrita aberta, que no caso do dadaísmo ia até o puro aleatório, e, em todas as
correntes, se poderia considerar uma verdadeira libertação da linguagem (ROSA, 1991, p.
35).

Portanto, o relâmpago em questão pode ser, também, o grito de liberdade que os modernistas
deram e que os contemporâneos seguiram. Esse grito não foi dado em qualquer direção, mas sim no
sentido de mudar uma sociedade, a forma de determinados homens olharem o mundo, sendo que o
ponto inicial da transformação é o artista. António Moniz diz o seguinte sobre isso:

Do Modernismo ao Neo-Realismo e ao Surrealismo, nos seus mais diversos matizes,


campeia a afirmação mais ou menos individual de cada poeta, empenhado em fazer ouvir
sua voz por múltiplos processos que visam chocar, chamar a atenção, escandalizar: estou
aqui, também sou gente, a minha poesia tem valor!... É a substituição das Musas pela
invocação do sujeito, enquanto entidade auto-suficiente e autotélica da escrita (<<Nós
invocamo-nos a nós mesmos>>)

Este individualismo narcísico, herdado do Romantismo, mergulha as suas raízes


ideológicas no Liberalismo filosófico setecentista cuja expressão económica e política
nunca foi tão exacerbada como neste final de século e de milénio, na chamada sociedade de
consumo. Convergem, assim, as tendências estético-culturais e a crise de valores que tão
profundamente afecta e abala nossa época (MONIZ, 1997, p. 23).

O artista quer chamar a atenção. A fala do poeta ao responder as perguntas do entrevistador


sobre a publicação do livro Horto de Incêndio confirma isso: ao final de cada resposta, ele escreve a
palavra Stop, que em português significa pare, como se estivesse pedindo para se desligarem das
atividades diárias, realizadas com automatismo, para refletirem naquilo que ele estava falando e
escrevendo, conforme se lê a seguir:

Manuel Herminio Monteiro: 2 Ŕ Há os poemas «inferno», «sida», «febre», «fantasma»,


«senhor da asma». É um livro triste, trágico quase apocalíptico?
Al Berto Ŕ Telegrama: 2 - Não podia ser de outra maneira. Veja-se os tempos que correm,
tempos de manipulação e de enxertia, tempos de metamorfose maligna e hipocrisia. Já não

499
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

há cidadãos, mas contribuintes Ŕ o que quer dizer que o corpo foi substituído por uma série
de algarismos. Stop. (MONTEIRO, 2010).

Percebe-se acima a crítica do poeta ao modo de viver atual em que as pessoas são
manipuladas, pois enxertam em sua cabeça ideias que elas nem sabem como passaram a ter. Essa é
a maldade e a hipocrisia de que ele fala. As pessoas nada decidem para o bem do lugar onde vivem,
são apenas cobradas a trabalhar, a pagar impostos. As necessidades do corpo, a boa qualidade de
vida foi trocada pela imposição de ter dinheiro. E Al Berto diz: Stop. Pare! Reflita sobre isso,
chamando sempre a atenção para o que ele diz.
O fogo também aparece no poema que será analisado a seguir. Embora o significado seja
diferente, essa imagem, carregada de subjetividade, leva a um outro tema da poesia al bertiana.

2. “Um dedo incendiado”

outro dia

cai na manhã do coração desolado


a toutinegra que longe daqui cantava e
nesse instante
a tristeza do rosto subiu aos lábios
para queimar a morte próxima do corpo e
da terra

mas se a noite vier


cheia de luzes ilegíveis de véus
de relógios parados Ŕ ergue as asas
fere o ar que te sufoca e não te mexas
para que eu fique a ver-te estilhaçar
aquilo que penso e já não escrevo Ŕ aquilo
que perdeu o nome e se bebe como cicuta
junto ao precipício e à beleza do teu corpo

depois
deixarei o dia avançar com o barco
que levanta voo e traz notícias dos jornais
e o cheiro espesso das coisas esquecidas Ŕ os óculos
para ver o mar que já não vejo e um dedo incendiado
esboçando na poeira uma janela de ouro
e de vento

(Al Berto, 1997 p. 13,14) (negrito meu)

Neste poema a representação do fogo aparece através do cigarro. O cigarro é um elemento


que traz em si duas imagens importantes para entendermos o poema outro dia. A primeira é a
fumaça, resultado da ação do fogo sobre um objeto, no caso o tabaco e o papel que formam o
cigarro, podendo ser a relação entre a terra e o céu pelo fato de ela, após sair da boca, ir sempre em
direção ao alto; pode ser também, a representação da morte, considerando a ideia cristã de que, ao
morrermos, o espírito sai do corpo, vai para o céu ou para o inferno. Pode-se pensar na libertação do
corpo deste mundo cheio de falhas para um mundo distante. Outra, seria a cinza, que é o que sobra

500
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

do cigarro, do efeito do fogo, como já foi mencionado acima. Portanto, ela representa o que resta do
corpo do ser humano, os restos mortais, algo que nasceu de um processo e que passa a existir de
outro modo após a morte.

Sobre essa figuração, Marcelle Marini diz:

Os pensamentos inconscientes são transformados em imagens, pois é uma produção visual


que se impõe ao sonhador como uma cena atual. Os pensamentos mais abstratos devem ser
transmitidos por substitutos figurados: quando Freud analisa Ŗos processos de figuração dos
sonhosŗ costuma recorrer às técnicas da pintura. Assim, as vinculações lñgicas são
suprimidas ou substituídas pela sucessão de imagens, pela metamorfose de uma imagem em
outra, pela intensidade luminosa ou ampliação de uma representação, pela organização de
diferentes planos, etc. Quanto às frases ou às palavras, estas Ŗsão tratadas como coisasŗ,
isto é, como elementos significantes na sintaxe original do sonho, e não utilizadas pelo
sentido que têm na língua. Se Freud fala de Ŗhierñglifosŗ ou de Ŗenigmasŗ não é por acaso
(MARINI, 2006 p. 54).

Por isso, tenta-se aqui fazer essa leitura, levando em consideração a imagem, a figura
representada no poema de Al Berto, tentando buscar o significado, não real, mas abstrato,
relacionando-o à forma de encarar a realidade desse poeta, a visão que ele tinha do mundo e como
se comporta perante os desejos de transformação das atitudes e ideias do tempo em que viveu. Por
que as palavras, no fazer poético de Al Berto, sofrem uma metamorfose considerável, criando, um
labirinto perigoso que instiga a decifrar seu enigma.

Na passagem a tristeza do rosto subiu aos lábios/ para queimar a morte próxima do corpo e
da terra, o que se queima é a morte, então, o resultado disso é a vida; pois no momento em que o
poeta fuma, ele esquece seu estado que parece ser de muita tristeza, pelo fato de ele sentir a
proximidade da morte.

(...) Durante 15 dias vivi nessa expectativa do fim. Todos os dias morremos muitas vezes:
as perdas, os erros, aquilo que arrumamos dentro de nos… Seria ideal atingir o momento da
morte com uma grande serenidade. Yourcenar disse que queria morrer de olhos abertos e
atenta. O mesmo digo eu. (Al BERTO apud ŠTERBOVÁ, 2008 p. 13 ).

Nos versos - os óculos/ para ver o mar que não vejo e um dedo incendiado/ esboçando na
poeira uma janela de ouro... O poeta remete ao passado, relacionando-o sempre com o presente
vivenciado por ele, no passado tem-se Ŗo mar que não vejo maisŗ e o presente Ŗum dedo
incendiadoŗ . O jogo envolvendo a mistura temporal do passado e do presente revela a escrita de
forma melancólica a respeito de sua época. Essa luta existencialista proposta pelo poeta percorre
todo o livro Horto de Incêndio. Na passagem acima, há a imagem do cigarro, consumido
intensamente na ocasião em que Al Berto viveu, quando os jovens, revoltados contra a imposição
de regras, fumavam e bebiam para afrontá-las e provar sua liberdade.

501
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Também os artistas portugueses vão buscar as novas expressões artísticas, já que, com a
desaparição da censura, se abrem novas possibilidades temáticas. Os ambientes de
underground da Europa representaram os ideais democráticos e libertários e o clichê de
aquel então, Ŗsexo, drogas e rockřnřrollŖ, significou a fonte de inspiração para muitos
artistas (Štěrbová, 2008, p. 07).

No entanto, essa liberdade teve sua conseqüência: a doença e a reprovação da sociedade. A


AIDS destruiu a vida de muitos jovens dessa geração e alguns deles, após serem infectados, tinham
no cigarro um meio de esquecer a condição em que estavam. Como escreve Tatiana Pequeno da
Silva, Ŗa poesia de Al Berto sempre discutiu esta perniciosa relação entre o corpo que padece e uma
alma em desassossegoŗ (2006, p. 45). É nesse momento que ele se sente num horto, criando o tom
lúgubre dos poemas de Horto de Incêndio, fechando grandiosamente com a segunda parte dedicada
à morte do poeta Rimbaud.

Esse é o último livro do poeta, o término de sua escrita e de sua vida e, ao mesmo tempo, o
renascimento de mais uma força poética na literatura portuguesa, que revive na mente daqueles que
o lêem. A respeito desses ele fala:

Aterrador foi ter-me apercebido o que havia neste livro de premonitório. A eternidade não é
lerem-me dentro de 50 ou 60 anos ou ficar na história da literatura portuguesa. Só espero
que meia dúzia de doidos me leiam agora e isso os toque. A eternidade é uma permanência
da força que está dentro de nós. (AL BERTO apud NOGUEIRA, 2005).

E diz ainda:

Se calhar é porque toda a minha escrita é um dialogo comigo mesmo… Uma viagem em
direcção ao silêncio. Não sei… Não. A poesia não é feita para ninguém em especial, mas
uma vez publicada é para quem a lê. Talvez este livro seja um livro para ler também em voz
alta. Stop. (idem. MONTEIRO, 2010).

Talvez seja por esse motivo que os pronomes te e ti estejam presentes na obra que aqui
analisamos, confirmando o diálogo de Al Berto consigo mesmo.

Graciosa Reis comenta também: ŖTrata-se de uma escrita com regras próprias, com silêncios
e auto-censuras que buscam preservar uma identidade mesmo para além da morteŗ (2009, p. 22).

Poe tudo isso, o fogo, no poema outro dia, significa a ruptura com a realidade que
atormenta, no caso a proximidade da morte, sendo o cigarro um suporte para encará-la, pois, no
momento em que fuma, abranda a angústia.

Considerações finais
deus tem que ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.
(Al Berto, 1997, p. 13)

502
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Como foi proposto acima, comentou-se de forma sintética a vida de Al Berto, situando-o no
período contemporâneo ou pós-moderno, na década de setenta até a década de noventa, quando o
poeta morreu. e realizou-se a leitura de sua obra, Horto de Incêndio, destacando a imagem do fogo,
que é uma constante nos poemas. Essa figura está ligada aos temas do desassossego em face da
morte, além do desejo de transformação da sociedade. Os outros poemas da mesma obra trazem
esse tema e, segundo os críticos literários mencionados durante a análise acima, falam sobre o
medo, a melancolia, o mundo corrupto, a morte e a AIDS, a qual aparece no livro com o poema
intitulado sida.

Pode-se concluir que o livro é sim um Horto al bertiano de Incêndio, porque o significado
da palavra incêndio é construído de modo a criar a visão do fogo, ilustrando essa imagem, pois é
como se Al Berto empregasse o desenho para pintar seus poemas.

Referências bibliográficas

BERTO, Al. Horto de Incêndio. Lisboa: Assirio & Alvim, 1a ed., 1997.

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes,


gestos, formas, figuras, cores, números); tradução Vera da Costa e Silva. Ŕ 17ª. ed. Ŕ Rio de
Janeiro: José Olympio, 2002.

MARINI, Marcelle. A crítica psicanalítica in: Métodos críticos para a análise literária. Tradução
Olinda Maria Rodrigues Prata Rodrigues. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MONTEIRO, Manuel Hermínio. Horto de Incêndio (Entrevista a AL Berto). Disponível em:


http://asfolhasardem.wordpress.com/2010/01/07/horto-de-incendio-entre vis ta-a-al-berto/ .
Acessado em: 30/04/2010.

MONIZ, António. Para uma leitura de sete poetas contemporâneos. Lisboa: Presença, 1997.

NOGUEIRA, Lucila. Al Berto descoberto. São Paulo: Agulha-Revista de Cultura, 2005. Disponível
em http://www.agulha-revistadecultura.com.br. Acessado em: 16/04/2010.

PEQUENO DA SILVA, Tatiana. Al Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia.


Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, UFRJ, 2006.
Disponível em: www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/SilvaTP. pdf. Acesso em: 01/04/2010.

REIS, Graciosa Maria Ferreira Curto. Al Berto in lugares. O deambular da melancolia lunar do
corpo. Dissertação de Mestrado em Estudos Portugueses Interdisciplinares, Universidade Aberta de
Lisboa, 2009. Disponível em:http ://repositorioaberto .univab .pt/ bitstream /104 00.

503
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

2/1449/1/Al%20Berto%20in%20ugares.%20O%20deambular%20da%20melancolia%20lunar%20d
o%20corpo.pdf. Acessado em 18/05/2010.

ROSA, António Ramos. A Parede Azul: Estudos sobre poesia e artes plásticas. Lisboa: Caminho,
1991.

SHILLING, Voltaire. 1968 a revolução inesperada. Disponível em: http:// educaterra . com .
br/voltaire/mundo/1968.htm . Acessado em: 21/05/2010.

ŠTERBOVÁ, Nikola. O Medo na Poesia de Al Berto. Filozoficka Fakulta, Masarykova Univerzitav


Brne, 2008. Disponível em: http://is.muni.cz/th/109220/ff_b/bakalarka.pdf. Acessado em:
08/04/2010.

504
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A DOCÊNCIA DA LITERATURA NO ENSINO MÉDIO1


Kevny Soares Porto (UEA)2

Resumo: Este trabalho se concentra na teoria e prática da docência da disciplina de Literatura no


Ensino Médio. A multiplicidade da compreensão histórica do que vem a ser literatura é verificada,
num primeiro momento, sobretudo, a partir das concepções de Barthes (2007), Compagnon (2006) e
Zilberman (2001). Em seguida, para dar conta do processo ensino-aprendizagem da literatura,
respaldados no conceito de Ŗmaternagemŗ, tal como formulado por Barthes (2007), passa-se à
verificação do espaço das aulas de literatura como lugar de semeadura e germinação de
conhecimento. Utilizamos a proposta da Ŗsequência expandidaŗ , sugerida por Cosson (2007), como
estratégia de leitura e interpretação, tomando por objeto de análise a obra O menino de engenho, de
José Lins do Rego. Nossa proposta pressupõe a importância de trazer novas possibilidades para a
docência de literatura no Ensino Médio, através da evidenciação da pluralidade cognitiva fornecida
pelo texto ficcional-literário aos alunos enquanto leitores em formação.

Palavras-chave: literatura, docência, Ensino Médio.

Considerações iniciais

Discorrer sobre literatura implica em verificar quais acepções teóricas sustentam essa
proposição. Para Compagnon (2006), essas concepções teóricas são consideradas como doutrinas,
dogmas críticos ou ideologias e, dessa maneira, entende que Ŗhá tantas teorias quanto teñricosŗ e,
diante de qualquer abordagem teñrica, pressupõe uma Ŗpráticaŗ (op. cit., p. 23). A primeira
inquietação pertinente a esta pesquisa, tendo por fundamento o acima exposto, concretiza-se no
seguinte: o que é, ou pelo menos, o que se entende por literatura?
Fazem-se necessárias, contudo, determinadas reflexões antes de partir para um entendimento
sobre o que seja a literatura: é preciso estabelecer uma Ŗparceriaŗ , tal como proposta por Barthes
(2007), entre a materialidade linguística Ŕ no nosso caso, o texto ficcional-literário Ŕ e a leitura
propriamente dita, isto é, o ato singular do eu-leitor em contato com a obra. Enquanto o primeiro é
responsável por transgredir a relação entre o significado e o significante, no sentido de constituir um
Ŗjogoŗ com os signos linguísticos; o segundo, o é Ŕ ao menos em parte Ŕ pela decodificação dos
signos da escrita. Não há como dissociar um do outro: o texto ficcional-literário, ao apresentar-se
como inovador, proporciona o amadurecimento intelectual do leitor e, isso decorre do caráter
reflexivo que a literatura possui Ŕ o jogo com os signos Ŕ, causa ruptura com a passividade alienante

1
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de graduado em Letras,
sob a orientação da professora Doutora Juciane Cavalheiro.
2
Graduado em Letras pela Universidade do Estado do Amazonas.

505
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

do eu- leitor, fruto do Ŗcaráter fascistaŗ da linguagem1. Consequentemente, torna-se legítima a


afirmação de que a língua nos sujeita aos paradigmas linguísticos consolidados pela própria
linguagem.
Começaremos por traçar um percurso entremeando vozes que reverberaram a partir da
inquietação sobre o que se pode entender por literatura. O intuito proposto não é delimitar um juízo
para o questionamento, mas promover um diálogo permeado pelas preleções consultadas a respeito
do assunto. A partir disso, propomo-nos a realizar um trabalho de leitura, tomando como objeto de
análise a obra O menino de engenho, de José Lins do Rego, e utilizando Ŕ como estratégia de leitura
e interpretação Ŕ a proposta da Ŗsequência expandidaŗ sugerida por Cosson (2007). Destarte, a
pesquisa tem por finalidade apresentar um caminho a ser percorrido nas aulas de literatura para o
Ensino Médio, ensejando a contribuição cognitiva fornecida pelo texto ficcional-literário aos
alunos.

1. A literatura

Considerando o posicionamento de Eagleton, Ŗa literatura é uma forma especial de


linguagem, em contraste com a linguagem comumŗ , usada habitualmente (1994, p. 5). Devido a
isso, a literatura é um tipo de linguagem que usufrui de certa liberdade, visto que ela Ŗé um discurso
não-pragmáticoŗ (ibid., p. 8). Seguindo a proposta, Eagleton é taxativo ao afirmar que a literatura
não pode ser vista como o estudo de uma entidade estável, assim, Ŗos juízos de valor que a
constituem são historicamente variáveisŗ e têm Ŗuma estreita relação com as ideologias sociaisŗ
(ibid., p. 17). Com efeito, o que faz com que um texto seja considerado como literatura ou não é a
recepção do mesmo através do tempo, portanto, é a história da leitura que determina o que é ou não
literário.
A postura barthesiana (2007), entretanto, vai além da eagletoniana ao estabelecer três forças
de liberdade que residem na literatura, as quais são colocadas sob três conceitos gregos: a Mathesis,
a Mimeses e a Semiosis. A primeira é entendida como Ŗo saberŗ que engloba todas as ciências que
se fazem presentes no Ŗmonumento literárioŗ (op. cit., p. 17); consequentemente, Ŗa literatura faz
girar os saberesŗ , dando-lhes um lugar indireto ao Ŗtrabalhar nos interstícios da ciênciaŗ (ibid., p.
18). Quanto à Mimeses, é compreendida sob o aspecto de representação do real, haja vista que:
Ŗdesde os tempos antigos até as tentativas da vanguarda, a literatura afaina na representação de
alguma coisa. O quê? Direi brutalmente: o real.ŗ (ibid., p. 21). Cabe à última, a tentativa de
Ŗtrapacearŗ com a língua, já que:

a terceira força da literatura, sua força propriamente semiótica, consiste em jogar com os
signos em vez de destruí-los, em colocá-los numa maquinaria da linguagem cujos breques e

1
ŖA linguagem é uma legislação, a língua é seu código. (...) Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é
nem reacionária, nem progressista, ela é simplesmente fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a
dizer.ŗ (BARTHES, 2007, p. 12 e 14).

506
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

travas de segurança arrebentaram, em suma, em instituir no próprio seio da linguagem


servil uma verdadeira heteronímia das coisas. (BARTHES, 2007, p. 27 e 28).

Apresentadas as três forças de liberdade, Barthes trabalha a compreensão de literatura como


Ŗo grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática do escreverŗ , entendendo, assim, o texto
como a fonte, como o aflorar da língua e, consequentemente, propõe que a língua deva ser
combatida em seu interior Ŗpelo jogo de palavras de que ela é o teatroŗ (ibid., p. 16). Barthes
vislumbra a literatura sob a condição de Ŗtrapaçaŗ com a língua, o que caracteriza o processo no
qual se opera a derrocada do poder Ŗfascistaŗ da linguagem.
Pautada nos estudos de Jauss, Zilberman (2001) esclarece o caráter social da literatura, cujo
enfoque recai sobre a ampliação do conhecimento de mundo que ele proporciona ao leitor, o que
significa dizer que Ŗa literatura desempenha papel fundamental (...) porque modifica as percepções
e rompe com o automatismoŗ (ibid., p. 90). Além do mais, a experiência da leitura, segundo Jauss
(apud ZILBERMAN, 2001), produz na humanidade o efeito libertador de suas amarras sociais.
Zilberman observa ainda que a natureza libertadora da arte literária é constituída, assim como em
Barthes, por uma tríade: a Poiesis, a Aisthesis e a Katharsis:

A Poiesis corresponde ao prazer de se sentir co-autor da obra (...); a Aisthesis diz respeito
ao efeito provocado pela obra de arte, de renovação da percepção do mundo circundante
(...); a Katharsis constitui a experiência comunicativa da arte, explicitando sua função
social, ao inaugurar ou legitimar normas, ao mesmo tempo que corresponde ao ideal de arte
autônoma, pois liberta o espectador dos interesses práticos e de compromissos cotidianos,
oferecendo-lhe uma visão mais ampla dos eventos e estimulando-o a julgá-los.
(ZILBERMAN, 2001, p. 92-94).

Após abordar a teoria de Jauss, Zilberman passa a analisar os estudos de Fish. Este, por sua
vez, Ŗbusca examinar como o destinatário dá à obra um sentidoŗ e assegura que Ŗo texto confunde-
se à experiência que proporciona e à que o leitor carrega consigoŗ (FISH apud ZILBERMAN,
2001, p. 97). Por fim, Zilberman constata a autonomia do leitor como resultado de mobilização
social enquanto postura positiva em relação à leitura e ao livro.
Para Blanchot (2005), Ŗa essência da literatura (...) deve ser sempre reencontrada ou
reinventadaŗ , é a Ŗnão-literatura que cada livro persegue, como essência do que ama e desejaria
apaixonadamente descobrirŗ (op. cit., p. 294). Blanchot é enfático quando assegura que não
podemos neutralizar, ou mesmo reduzir, a literatura a um conceito, o que vai ao encontro do
posicionamento de Manguel (1999), para quem Ŗcada leitura é em si mesma alegñrica, objeto de
outras leiturasŗ , quer dizer, Ŗnenhuma leitura pode ser finalŗ, mais sim Ŗuma prova de nossa
liberdade enquanto leitoresŗ (op. cit., p. 106). Estes dois últimos, assim como os demais autores
citados, estão animados por um posicionamento que faz alusão à dificuldade em firmar um molde
intrínseco ao qual seja englobada toda a essência da literatura.
Retomando Compagnon (2006), afirma que Ŗnão há essência da literatura, ela é uma
realidade complexa, heterogênea, mutávelŗ (ob. cit., p. 44). Para chegar a essa assertiva, o autor
percorre a história da crítica literária: parte das concepções do humanismo aristotélico, segundo o

507
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

qual Ŗa literatura é uma experiência das paixões ligadas à arte poéticaŗ (ibid., p. 35); passa pela
visão romântica, para a qual Ŗa literatura são os grandes escritoresŗ (ibid., p. 33); até atingir o
formalismo russo, que se caracteriza pela busca da essência da literariedade, um dos objetos
fundamentais de análise deste movimento.
Em síntese, as diversas concepções arroladas acima exemplificam a pluralidade da
compreensão histórica do que vem a ser literatura. Todavia, a literatura, que ora atravessa um
período de incertezas conceituais, Ŗestá sendo questionada em sua produção e em sua recepção,
encontrando-se ameaçada em seus prñprios fundamentosŗ (PERRONE-MOISÉS, 2000, p. 345).

2. Ensino e aprendizagem da literatura

Trabalhar a literatura em sala de aula é um desafio com o qual os docentes de Língua


Portuguesa se deparam ao longo do processo ensino-aprendizagem, especificamente Ŕ no que se
constitui no foco do presente trabalho Ŕ em turmas de Ensino Médio. Os motivos que embasam esta
constatação vêm das mais diversas situações, quer seja pela falta de prática de leitura por parte do
corpo discente, quer seja pelo papel de Ŗprofessor máquinaŗ que necessita cumprir uma jornada
extensa de trabalho e, assim, recorrer exclusivamente a livros didáticos como suporte. Além disso,
no que concerne à prática de leitura, caberia discutir o tipo de literatura indicada por estes
professores e lida por seus respectivos alunos. Haverá limitações quanto ao que seja ou não
Ŗrecomendávelŗ a estes leitores em formação? Esta questão pode ser expandida a uma segunda: o
que se espera dos discentes de Ensino Médio, no que se refere às aulas de literatura? E dos
professores, enquanto leitores?
Para pensarmos o processo de aprendizagem da literatura no Ensino Médio, iniciamos pela
seguinte questão, formulada por Cerdeira (2004): Ŗa literatura se ensina?ŗ (op. cit., p. 240). A autora
apresenta uma reflexão a esse respeito, valendo-se das concepções de Barthes para pensar o caráter
sedutor do texto, aquele que desvia o caminho, impacta. Para tanto, recorre ao seminário
barthesiano cujo foco incide na questão da Ŗmaternagemŗ 1, isto é, Ŗa única forma verdadeiramente
generosa de ensinarŗ (CERDEIRA, 2004, p. 243).
Segundo a posição de Barthes, é desejável uma nova forma de ensino, desprendida Ŕou
talvez suavizada Ŕ do discurso do poder, tendo em vista que, conforme abordado anteriormente, a
língua possui Ŗcaráter fascistaŗ : obriga a dizer. Decorre daí a concepção conceitual de seminário
como lugar de semeadura e germinação de conhecimento. Considerando que a literatura detém a
capacidade de fazer com que a língua seja ouvida numa perspectiva fora do poder, nota-se a
tentativa de Ŗtrapaçaŗ da primeira com relação à segunda. Para tanto, leva-se em conta a excursão às
malhas, possivelmente infinitas, presentes no texto ficcional-literário, pois o fundamental é
conseguir perceber nuances e sutilezas nele. Barthes complementa essa assertiva no último

1
Esta expressão barthesiana é antes metafórica que literal, pois sua Ŗimagem não pode ser outra senão a da relação
íntima que se tece entre a mãe e o filhoŗ. A maternagem poderá ser uma possível forma de ensinar literatura.
(CERDEIRA, 2004, p. 243).
508
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

parágrafo de Aula, onde ratifica a necessidade do pesquisador: Sapientia, ou seja, nenhum poder,
um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível. (ob. cit., p. 45).
Esta afirmação consiste em uma proposta calcada, no que se refere à docência como
trabalho, que não se deixe prender tão somente aos comentários de livros didáticos, com o objetivo
de fazer da literatura mais que simples recorte histórico de obras. O que se propõe é que o professor
oriente o aluno na leitura, instigando-o a perceber os sentidos possíveis do texto ficcional-literário,
uma vez que os mesmos não estão contidos na própria obra, nem no autor, nem no leitor e, muito
menos, na pretensa resposta contida no livro didático, mas sim, e enfaticamente, na interação autor-
texto-leitor.
Martins (2006, p. 84), ao discutir a docência da literatura no Ensino Médio, aponta para uma
distinção entre a Ŗleitura da literaturaŗ e o Ŗensino de literaturaŗ . Enquanto a primeira está
relacionada à compreensão do texto ficcional-literário no ato da leitura, o segundo se concentra no
estudo da obra propriamente dita. É de suma importância que haja uma relação dialética entre essas
duas práticas: por um lado, a leitura do aluno, despojada da teoria literária; por outro, a do
professor, que se pressupõe ter vasto conhecimento crítico e teórico sobre literatura. Dessa forma, o
que se pretende é que o ensino da literatura ultrapasse a mera classificação histórica de obras e
autores, e passe a Ŗrevelar ao aluno o caráter atemporal, bem como a função simbñlica e social da
obra literária.ŗ (MARTINS, 2007, p. 91). Aliás, é papel do professor mediar o intercâmbio entre a
experiência de leitura dos alunos e o que deve ser trabalhado em sala de aula para que haja a
promoção de um diálogo, verificando, assim, as dificuldades encontradas e os anseios almejados
pela turma.
Segundo Perrone-Moisés, o motivo pelo qual a literatura ainda deve ser ministrada no
Ensino Médio deve-se ao fato de que esta disciplina Ŗnão é ensinávelŗ, mas sim Ŗa leitura literária
pode ser e, necessita de uma aprendizagem, é por isso que os professores de literatura ainda
existemŗ (op. cit., p. 350). Pensando nisso, a partir da disciplina Prática de Ensino de Língua e
Literatura Portuguesa: estágio supervisionado III, exercitamos a proposta de Cosson Ŕ Estratégias
para o ensino de literatura: a sistematização necessária.

2.1 Uma proposta de leitura a partir de O menino de engenho

Considerando os estudos de Cosson, o ensino de literatura deve partir Ŗdo conhecido para o
desconhecido, do simples para o complexo, do semelhante para o diferente, com o objetivo de
ampliar e consolidar o repertñrio cultural do alunoŗ (op. cit., p. 47-48). A partir desta perspectiva,
foi elaborada uma proposta de ensino de literatura para estudantes de duas turmas de terceiro ano do
Ensino Médio da Escola Estadual Professor José Bernardino Lindoso, discriminadamente:

509
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

motivação, introdução, leitura, primeira interpretação, contextualizações e segunda interpretação Ŕ o


que corresponde (quase integralmente) à proposta de Cosson: Ŗsequência expandidaŗ 1.
Antes de iniciar o projeto foi verificada e confirmada, na biblioteca da instituição, a
disponibilidade de número suficiente de exemplares de uma obra pertencente ao Modernismo
brasileiro, pois foi este o tema sugerido, pela professora responsável pelas turmas, a ser abordado
durante a realização do estágio. A obra que preenchia os requisitos acima expostos foi O menino de
engenho, de José Lins do Rego.
A primeira aula, dedicada às etapas Ŗmotivaçãoŗ e Ŗintroduçãoŗ , objetivou despertar o
interesse dos alunos pela obra. Para a motivação, escolhemos a temática memória, devido à
narrativa ter por foco as impressões do protagonista em relação à sua infância e pré-adolescência,
vividas no engenho do avô materno. Em coerência com o tema, foi solicitada aos alunos a redação
de um parágrafo contendo as seguintes palavras: vida, tempo, lembrança, sentimento e saudade.
Objetivou-se com este procedimento a sociabilização do tema entre os discentes envolvidos. Já para
a introdução, apresentamos duas edições diferentes da obra, com a finalidade de analisar a
iconografia presente nas capas e proceder à leitura dos paratextos (orelha e nota introdutória) de
cada uma das reedições. Como etapa subsequente, optou-se pela exposição centrada no autor,
seguida por exposição da fase histñrica conhecida como Ŗciclo da cana-de-açúcarŗ . Ao final destas
duas primeiras etapas, firmou-se com os alunos o compromisso da leitura dos dez primeiros
capítulos da obra.
Iniciamos o segundo encontro com a análise do poema ŖInfânciaŗ , de Carlos Drummond de
Andrade, onde o eu-lírico aborda, em comparação com as aventuras de Robinson Crusoé, uma
infância passada em ambiente rural e, portanto, análoga à abordada em O menino de engenho. A
partir de então, estabeleceu-se um diálogo entre o poema e o romance. Tal qual no primeiro
encontro, ao fim deste segundo, propôs-se a leitura dos capítulos 11 ao 24.
Para a terceira aula, dando sequência à temática até então trabalhada, fez-se pertinente trazer
à classe discussão sobre mitos e lendas, pois na obra de José Lins do Rêgo, há uma personagem que
narra as Ŗhistñrias de trancosoŗ presentes no imaginário popular da cultura nordestina, mais
especificamente entre os estados da Paraíba e de Pernambuco. Procedeu-se a distinção conceitual
entre mito e lenda, com o intuito de munir os alunos das informações necessárias para que
pudessem analisar as histórias contidas na narrativa, ora como mito ora como lenda. No segundo
tempo de aula, a discussão foi expandida ao imaginário popular amazônico, com o objetivo de
proceder à aproximação entre a memória dos alunos e as memórias contidas no romance. Finalizada
esta etapa, foi solicitado o término da leitura de O menino de engenho (capítulos 25 ao 40), a fim de
realizar a primeira interpretação da obra na aula seguinte.

1
Cosson ainda apresenta uma última etapa, que vai além da investigação nas relações textuais, a Ŗexpansãoŗ, a qual
Ŗbusca destacar as possibilidades de diálogo que toda obra articula com os textos que a precederam ou que lhes são
contemporâneos ou posterioresŗ (p. 94). Não obstante a reconhecida importância desta etapa, foi-nos impossível
executá-la em decorrência da limitação imposta pelo período previsto para a realização e conclusão do estágio.

510
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Não será desnecessário justificar a escolha da temática memória, entre muitas outras
possibilidades, em virtude desta ser motivadora de numerosos textos literários e, portanto, propiciar
o entendimento, por parte dos alunos, de que Ŗo literário dialoga com outros textos e é esse diálogo
que tece a nossa culturaŗ . (COSSON, op. cit., p. 83).
No quarto encontro, realizamos a primeira interpretação da obra, por meio de produção
textual, baseada nas impressões dos alunos ao longo do processo de leitura. Conforme Cosson, Ŗo
texto literário é um labirinto de muitas entradas, cuja saída precisa ser construída uma vez e sempre
pela leitura deleŗ , por isso mesmo, Ŗas atividades da interpretação devem ter como princípio a
externalização da leitura, isto é, seu registroŗ (ibid., p. 65-66). Como suporte ao texto narrativo-
argumentativo solicitado, disponibilizou-se um roteiro composto por foco narrativo e elementos do
enredo específicos ao desenvolvimento da atividade proposta.
No intento de enriquecer a apreensão da obra, estabelecemos uma interrelação do literário
com outros contextos:

Inspirados em Maingueneau, sugerimos a contextualização como o movimento de


ler a obra dentro do seu contexto, ou melhor, que o contexto da obra é aquilo que
ela traz consigo, que a torna inteligível para mim enquanto leitor. Dessa maneira,
toda a vez que leio um livro estou também lendo seu contexto, simplesmente
porque texto e contexto se mesclam de tal maneira que resulta inútil estabelecer
fronteiras entre eles. Em lugar de uma fronteira como linha de delimitação entre
territórios distintos, a relação entre texto e contexto deve ser analisada como a
passagem em um limiar, um espaço que pode ser estendido até o ponto em que a
vibração ou o efeito deixa de ser percebido. (COSSON, ibid., p. 86).

A contextualização que vamos propor terá como propósito aprofundar a compreensão da


leitura. Dentre os mais diversos tipos de contextualização1, optou-se pela histórica. Esta, embora
mais próxima do tradicional, pode ser um excelente ponto de partida para um estudo mais
aprofundado, devendo-se ter a cautela de não permanecer na visão estreita da história como simples
sequência de acontecimentos. Pelos aspectos incertos de um tempo fecundo no passado (talvez
metáforas da opulência dos engenhos e da ótima situação de que desfrutava a família retratada no
romance) e pela busca da história de sua origem, o protagonista revive, por meio da memória,
testemunha a passagem do tempo e acompanha a degradação do ciclo da cana-de-açúcar.
Para finalizar o projeto de docência de literatura, coube à última aula o espaço destinado à
segunda interpretação. Na primeira buscou-se observar a impressão e a apreensão global da obra
com que os alunos tiveram contato; na segunda, que consiste na leitura aprofundada de um dos
aspectos da obra (personagem, aspectos linguísticos ou estilísticos, questão social, ângulo histórico,
foco temático, entre outros), de acordo com as contextualizações trabalhadas e os textos analisados
nos intervalos, buscou-se continuar a percorrer a proposta de Cosson.
Como o trabalho realizado no decorrer deste projeto pôde direcionar os alunos para o fato de
que a interpretação deve resultar da partilha das diversas visões de leitura, já que permite que o

1
Cosson, ao analisar a obra O cortiço, apresentou sete contextualizações (teórica, histórica, estilística, poética, crítica,
presentificadora e temática).

511
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

aluno visualize que o literário não se esgota e, quanto mais um texto permitir interpretações, mais
literário será, solicitou-se, nesta última etapa avaliativa Ŕ e que também funcionou como estímulo Ŕ
a elaboração de um trabalho. Para esta, foi facultado aos alunos aprofundar a temática memória e o
contexto histórico-social, traçando um paralelo entre a obra e o tema.
De um modo geral, os resultados foram positivos, pois os discentes apresentaram
entusiasmo, perceptível, tanto na atenção dispensada às explicações quanto na execução das
produções textuais solicitadas. Acreditamos, portanto, que, ao final da Ŗsequência expandidaŗ , este
trabalho pôde oferecer uma possibilidade de aprendizagem significativa sobre a literatura.

Considerações finais

Sobretudo em decorrência de boa parte dos estudantes de Ensino Médio, em princípio,


mostrarem-se arredios à leitura do texto ficcional-literário, o esforço para evidenciar a importância
da leitura do mesmo encontrará substância no fato de que tal prática tem grande chance de formar
leitores conscientes, bem como fornecer subsídios a seus professores em relação às possibilidades
que a literatura oferece. Finalmente, segundo Barthes, sñ o Ŗmonumento literárioŗ é capaz de fazer
girar os saberes, propiciando uma ruptura em relação a passividade alienante, portanto, o texto
ficcional-literário, propriamente dito, instiga, modifica e amplia a percepção de que o ser humano
pode ter, a partir da literatura, a possibilidade de absorver as diversas situações compreendidas no
universo que vivencia.
Para a prática docente no Ensino Médio, não há receita. Entretanto, o professor pode se
orientar para ter condições de viabilizar o diálogo entre a prática de leitura que o aluno por-ventura
possuir e o fornecimento de novos subsídios para uma compreensão mais ampla do que seja a
leitura literária.
Como observa Martins, Ŗa educação literária proposta pela escola e pela prñpria academia
merece ser reavaliadaŗ (op. cit., p. 101-102), constantemente, por necessitar de um enfoque que se
relacione diretamente às transformações históricas, sociais, políticas e culturais que constituem o
universo de saberes do mundo Ocidental, por sua própria natureza, em permanente mutação. O
fundamental é, portanto, proporcionar o encontro entre o leitor e a leitura literária, pois só assim
poderá o aluno absorver e reabsorver a obra, analisar e reanalisar o contexto em que se insere,
tornando-se, desta forma, mais que um leitor comum.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do colégio de França.
São Paulo: Cultrix, 2007.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

512
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

CERDEIRA, Teresa Cristina. A literatura se ensina? Belo Horizonte: Scripta, 2004, p. 240.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2006.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2007.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

MANGUEL, Alberto. A primeira página ausente. In: Uma história da leitura. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, p. 105.

MARTINS, Ivanda. A literatura no ensino médio: quais os desafios do professor? In: BUNZEN,
Clécio; MENDONÇA, Márcia. Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo:
Parábola, 2006, p. 83.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Inútil poesia. São Paulo: Companhia das letras, 2000.

PINHEIRO, Hélder. Reflexões sobre o livro didático de literatura. In: BUNZEN, Clécio;

MENDONÇA, Márcia. Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo:


Parábola, 2006, p. 103.

REGO, José Lins. Menino de Engenho. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2003.

ZILBERMAN, Regina. Fim do livro, fim dos leitores? São Paulo: SENAC, 2001.

513
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

IMAGENS DE ALTERIDADE: A AMAZÔNIA NA ESCRITA DO FREI GASPAR DE


CARVAJAL E NO POEMA COBRA NORATO DE RAUL BOPP

Kigenes Simas (UFAM/ FAPEAM)

Resumo O presente trabalho analisa comparativamente a escrita do Frei Gaspar de Carvajal e o


poema cobra Norato de Raul Bopp. Ambos tratam da Amazônia, mas estão inseridos em momentos
históricos específicos e pertencem a gêneros textuais diferentes, contudo, não é no nível dessas
diferenças que situamos nossa leitura, o que nos propomos é entender como a alteridade enquanto
limite do que pode ser nomeado nos estratos discursivos de cada época, problematiza as estratégias
discursivas acionadas para dar conta do Outro e sua irredutível opacidade. A Amazônia não pode
ser vista como um espaço de referência unitário onde esses textos se debruçariam, mas sim como
um nó de tensões que coloca em evidência a rachadura com a qual temos que lidar quando nos
encontramos diante da alteridade mais extrema. As estratégias para abarcar esse abismo são
diversas, mas ao invés de elencá-las segundo uma hierarquia de relevância, tentaremos outra via:
cartografar o espaço de dispersão em que elas se exercem.

Palavras chave: Amazônia, Discurso, Literatura, Alteridade

A Colonização da Amazônia não foi apenas um movimento de conquista orientado segundos


os interesses do capital comercial e dos Estados absolutistas europeus, mas, sobretudo, a
transformação instantânea de todo um território em anexo, apêndice do Ocidente. Essa
transformação aconteceu mesmo antes da consolidação da máquina administrativa e bélica colonial,
pois já nas expedições iniciais, os primeiros viajantes não cessaram de identificar a região como
domínio exclusivo dos governos cristãos da Europa. O Estado absolutista ibérico atualizou os seus
domínios em um território em que a própria noção de Estado e de fronteira era (e ainda é)
movediça, na medida em que nenhuma extensão territorial poderia ser abarcada e seccionada
segundo os ditames da configuração geopolítica européia.
Esse ato de transformação não seria possível sem a escrita dos viajantes, foram eles que
fizeram o inventário da conquista, o mapeamento do território, que, segundo o que nos diz os
relatos, já era de domínio da Europa antes que qualquer europeu pisasse nele, antes que os Estados
tivessem transplantado seus organismos de controle e de agenciamento de forças para que o
domínio ratificasse sua assinatura soberana, pois uma vez nomeada Ŗa América de Vespúcioŗ já
estaria inevitavelmente sob o domínio Europeu. Era o ato de nomear que efetuava a
homogeneização, era através dele que a Europa assinalava o signo irremovível da posse.
O documento de Carvajal ŖRelação do novo descobrimento do famoso rio grande que
descobriu o capitão Francisco Orellanaŗ é um desses inventários e tem como particularidade tratar
da primeira expedição a cruzar o Rio Amazonas e chegar até a sua foz. A nomeação do Ŗrio grandeŗ
como rio Orellana, desdobra um mecanismo de apropriação pelo batismo, amplamente utilizado no
período, tal como nos fala Jose Ribamar Bessa Freire ( 1987):

514
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O simples fato de navegar pelo Rio Amazonas fazia que o rei do qual o descobridor fosse
súdito lhes desse a posse da região. O Rei Carlos V doou ao espanhol Orellana as terras
descobertas, batizadas como ŖNova Andaluziaŗ . Maria de Médice, regente de Luís XVIII
da França, doou parte das terras da Amazônia ao francês Daniel de La Touche. O Rei James
I fez o mesmo em relação aos súditos ingleses Thomas Roe e Robert Harcount.

Os reis doam a terra aos seus Ŗdescobridoresŗ . Doam, portanto, uma terra que já consideram
como suas de direito antes de qualquer exploração efetiva. O espaço é todo retido no nome que o
unifica e o remete ao nomeador como o depositário legítimo do elo entre o signo de posse e a posse
pelo signo. A consequência prática de tal operação foi a formação de um regime de signos que
deveriam ser preenchidos segundo o direito de posse que os antecedia, ou seja, as imagens da
alteridade que preencheriam os signos deveriam estar de antemão contraídas pela máquina
semiótica que as uniformizaria. Essa máquina de captura só pôde funcionar ao garantir a soberania
do signo enquanto signo do Soberano, isto é, de Deus, pois:

Desde os primeiros momentos da expansão Ultramarina tanto a Espanha quanto Portugal


usaram concessões Papais de domínio territorial juntamente com a responsabilidade
imputada de Ŗdefender e expandir a igreja de Deusŗ, como base de suas reivindicações
legais de soberania(SCHWARTZ, p.26,2009)

A lei existia para ser promulgada. Nomear era a aplicar a lei de Deus, ou melhor, seu
recenseamento, uma vez que tal lei não provinha de um sistema de ordenação alheio a realidade
nomeada, mas estava inscrita na superfície das coisas, pois Deus havia depositado no mundo sua lei
soberana, ou seja, a questão era tanto de uma linguagem de domínio, quanto de um domínio pela
linguagem, portanto, havia pressuposição recíproca entre as duas, sem qualquer primazia de uma
sobre a outra.
O que se verifica nesse procedimento de nomear é a integração e unificação do espaço ao
domínio estatal. É no interior do direito de posse da coroa espanhola que a alteridade amazônica
aparece no relato de Carvajal. Nessa medida, o relato é sintomático da escrita enquanto vetor de
posse.
A partir do entendimento de que a escrita do relato efetua a inserção prévia da região nos
domínios dos governos ibéricos e tendo em conta o fato dela só enunciá-la após estabelecer essa
inserção como pressuposta, poderemos ler essa estratégia enquanto atividade constitutiva da relação
entre discurso e alteridade no relato colonial. Desse modo poderemos entender também como essa
operação foi determinante, séculos mais tarde, para articulação entre a literatura e o projeto de
unificação do território brasileiro. Por essa via, analisaremos o Poema ŖCobra Noratoŗ de Raul
Bopp enquanto formulação estética singular dessas questões, no que tange a região amazônica, já
que nele a homogeneização territorial ŕ praticada tanto no relato colonial quanto nos primeiros
projetos literários do país ŕ sofre um deslocamento considerável. O que só poderemos demonstrar
ao observarmos que após a independência do país a literatura foi mobilizada com o intuito de dar
consistência à imagem de unidade nacional que seria usada para legitimar a formação de um Estado
unitário. O que só foi possível, conforme nos diz Flora Sussekind (2000) com a formação de:

515
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

[...] uma paisagem atemporal e pitorescamente cheia de referências locais [...] uma essência
meta-histórica ŕ a que se chama Brasil ŕ que preexistiria à conquista européia, persistiria
durante o período colonial e justificaria a consolidação de um Estado-Nação imperial[...]
(p.37)

Em outras palavras, a literatura teria que gestar uma unidade nacional que preexistiria a
formação do Estado Imperial: os contornos de um Brasil que já existisse como domínio do Estado
antes mesmo que o Império houvesse se formado e que teria sido obnubliado pelo colonizador.
Assim, o Estado poderia dar a si mesmo uma justificativa histórica, pois, segundo essa operação, ele
teria surgido primeiro como Ŗsentimento nacionalŗ e depois como estrutura de poder.
Do mesmo modo como a posse pelo signo antecedeu a formação da máquina de Estado
colonial, assim também, o Estado Imperial Brasileiro buscou consolidar uma imagem de nação que
o antecedesse, para que homogeneização do território por ele efetuada aparecesse como mera
ratificação de um domínio prévio.
As duas estratégias visaram estabelecer contornos territoriais legítimos onde os Estados
pudessem regularizar seus domínios. É claro que esses Estados foram agenciados segundo
demandas históricas específicas e por isso mesmo são irredutíveis um ao outro, contudo, a forma
como a escrita ŕ documental, no caso do primeiro; literária, no caso do segundo ŕ foi agenciada
para sedimentar um espaço de posse, não deixou de exigir a homogeneização desses espaços em
ambos os casos.
O poema ŖCobra Noratoŗ de Raul Bopp, por sua vez, mostra-se como um momento
privilegiado do encontro entre atividade estética e ação política, uma vez que não submete a região
a um modelo identitário previamente construído e esteticamente pré-formado, mas faz da criação
do espaço pela linguagem um modo de criação de linguagem pelo espaço, ou seja, Ŗantes de mais
nada, esse modo depende de um grau significativo de exposição à alteridade: enxergar e querer a
singularidade do outro[..]ŗ ( ROLNIK,2005,p.41). Essa proposta estética integra-se a um modo
inovador de conceber a relação entre literatura e nação: o movimento antropofágico. Esse
movimento de 1922 alimentou-se da heterogeneidade cultural e territorial do país, desdobrando-a
em múltiplas linguagens. A esse respeito, Suely Rolnik(2005) elabora uma proposição aguda:

Fazer cultura antropofagicamente tem a ver com cartografar : traçar um mapa de sentido
que participa da construção do território que ele representa, da tomada de consistência de
uma nova figura de si[..]É na vizinha paradoxal entre heterogêneos, feita de acordos não
resolvidos e não remetidos a uma totalidade, que se produz o sentido[..] Qualquer
experimentação pragmática, seja ela mais ou menos bem-sucedida, vale mais que a
imitação estéril de modelos (p.97)

O poema de Bopp desestratifica os pressupostos das ficções de origem que buscaram no


relato colonial um começo histórico disposto organicamente. Quanto a essa questão, podemos
recorrer a Raúl Antelo (2001) que ao analisar a construção de identidades em ficções de origem que
retomam o relato colonial, nos fala da ambivalência desses discursos, uma vez que o desdobramento
516
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

histórico nacionalista é na maioria das vezes um trabalho de apagamento da violência praticada pelo
discurso de unificação nacional; o articulista também assevera que a desconstrução desses discursos
deve articular-se a um deslocamento de suas estratégias:

Não é possível, portanto, nos marcos do nacionalismo, esperar uma unificação nacional dos
acontecimentos históricos já que toda organização de elementos heterogêneos, em uma
ficção de origem, é resultado da violência e não do desdobramento do sentido histórico.
Cabe a nós, entretanto, resgatar, na densidade de um acontecimento, uma relação de forças
que se inverta, um poder confiscado, um vocabulário retomado e lançado contra seus
usuários, uma dominação que declina, se distende e se envenena a si mesma [..](p.26)

Se por um lado o poema ŖCobra Noratoŗ é um acontecimento de linguagem que elabora


novas relações entre território e discurso, por outro o seu investimento não visa à organização de
heterogêneos em uma totalidade comum, o que o interessa é lançar-se em um espaço de dispersão
que desloque a unidade territorial de posse. Orientamos nossa leitura segundo essa estratégia
incomum, visando articulação dela com o discurso colonial. A pergunta implícita em nossas
análises poderia ser enunciada nos seguintes termos: o que, no discurso colonial e na dinâmica da
literatura brasileira, não é redutível a identidade territorial e cultural que ambos os discursos querem
dar a si mesmos? Ou, de maneira mais modesta: em que medida a(s) Amazônia(s) enunciada(s) no
Relato de Carvajal e no poema de Bopp deixa(m) o estigma de receptáculo transparente de
discursos alheios e torna(m)-se zona(s) de forças inconciliáveis?

Carvajal e a legibilidade de um evento

Analisando Michel Foucault, Gilles Deleuze (1991) nos diz Ŗ [...] cada estrato, cada
formação histñrica implica uma repartição do visível e do enunciávelŗ (p.58) isto porque Ŗ Uma
época não preexiste ao enunciados que a exprimem nem as visibilidades que a preenchemŗ (Idem,
ibidem). Cada formação histñrica Ŗdá a verŗ a região de visibilidade e o espaço de dizibilidade que
são a produção do campo de suas práticas, da regularidade de sua ocorrência, das regras de sua
formação, que agenciam o espaço de dispersão histórico em que singularidades discursivas se
distribuem. É nesse campo que nos instalamos, logo de saída, na articulação e produção dos efeitos
de sentido que o percorrem. A condição da formação desse campo é a produção de todas as suas
regras ao mesmo tempo, segundo suas relações diferenciais possíveis, pois Ŗcada época tem sua
maneira de reunir a linguagem em função de seu corpus ŗ (p.65). O corpus da linguagem do século
XVI reuniu-se:

[...] à igreja como Corpus Cristi à sociedade como ordinata multitudo e ao homem, ser
natural, Corpus Naturale, Transferido para a esfera política , o termo corpo mantêm o
significado da analogia teológica. A cabeça sede da razão, é proporcionalemente para o
homem individual , o que Deus é para o Mundo ( HANSEN, 1989, pg.206)

517
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Vejamos detalhadamente no documento de Carvajal esses procedimentos ŖTudo que vou


contar daqui por diante será como testemunha de vista e homem a quem Deus quis dar parte de um
tão novo e nunca visto descobrimento , como é este que adiante direiŗ( CARVAJAL,1941. p.15)

Gaspar de Carvajal inicia seu relato nos dando duas orientações de leitura que visam
assegurar a veracidade do que será relatado. A primeira diz respeito ao teor testemunhal que perfaz
o documento, afinal de contas Carvajal viu o que relata. A outra concerne ao fato de Deus ter
tornado visível tal acontecimento ao Ŗdar parteŗ ao Frei Ŗde um tão novo descobrimentoŗ (Idem,
Ibidem). Assim somos apresentados ao Ŗdescobrimentoŗ naquilo que o faz ser ,ao mesmo tempo,
imediato e mediado : a sua visibilidade.

Desse modo, Carvajal nos alerta que o que vamos ler é o visível de um evento e por visível o
cronista designa tanto aquilo que ele viu, quanto o que Deus o fez ver. Eis o paradoxo em que
somos lançados logo de entrada: lemos a visibilidade do evento ao ver sua legibilidade. A
disposição do que é legível no relato é simultaneamente organização do modo de ler e explicitação
do modo de ver, tanto do relator quanto do seu possível leitor. Para melhor compreender tal
procedimento devemos ter em mente que :

No ser bruto e histórico do século XVI, a linguagem não é um sistema arbitrário; está
depositada no mundo e dele faz parte porque, ao mesmo tempo, as próprias coisas
escondem e manifestam seu enigma como linguagem e porque as palavras se propõem
como coisas a decifrar. (FOUCAULT, 2002, p. 47).

A linguagem no século XVI enfeixava dessa maneira uma escritura que Ŗia do mundo à
palavra divina que nele se decifravaŗ (FOUCAULT, 2002, p. 413). Ler e ver ,portanto ,era uma sñ
operação: lia-se o visível e via-se o legível. O relato se configura em uma formação discursiva em
que Ŗ Deus, perfeição suprema, é a ordem; o homem conhece a ordem, imitando a perfeição; as
coisas recebem a ordemŗ ( HANSEN, 1989,p.45) pois participam da escrita divina Ŗquando realizam
na sua substância uma Lei , que elas mesmas não conhecem mas que Ele imprime nelasŗ (Idem,
ibidem). Ao relator desse documento cabe o recenseamento e a decifração dessa linguagem Eterna.
Duas ordens assim se sobrepõem : a inscrita por Deus nas coisas e aquela que o cronista ordena na
linguagem escrita. Deus ordena o visível tornando-o legível, Carvajal ordena o legível fazendo-o
visível. É nessa reversão ininterrupta de uma à outra ordem que o relato se constitui.

Dentro de tal dispositivo as amazonas são acionadas como forças articuladas capazes de
fomentar um império, de adquirir e pilhar o que é de Deus por direito; elas reúnem a contraposição
à ordem prefixada da conquista, e só o podem fazê-lo ao instaurar sua própria ordem e hierarquia,
eis o que diz o índio, em certo momento, ao descrevê-las:

Disse mais que entre todas estas mulheres há uma senhora que domina e tem todas as
demais debaixo da sua mão e jurisdição, a qual se chama Conhorí. Disse que há uma
imensa riqueza de ouro e prata, e todas as senhoras principais e de maneira possuem um
serviço todo de ouro e prata, e que as mulheres se servem em vasilha de pau, exceto as que
vão ao fogo, que são de barro.

518
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Disse que na capital e principal cidade, onde reside a senhora, há cinco casas muito
grandes, que são adoratórios e casas dedicadas ao sol, por ela chamados caranaí ( Idem,
p.67)

Segundo esse quadro a ordem se opõe à ordem e só pode ter como fonte uma hierarquia
social corpórea, pois no século XVI :

[..]A integração harmônica do corpo é instrumento para o princípio superior que o rege, a
alma. Por analogia, o corpus hominis naturale, o Ŗcorpo natural do homemŗ, é o termo de
comparação para outros objetos possíveis pensados como corpos. Caso da sociedade
comparada ao corpo humano segundo a proporção: cabeça: corpo: rei :reino.( HANSEN,
2003p.15)

As terras das amazonas não são um análogo da sociedade européia, mas a condição para que
o discurso colonial possa enunciar a alteridade do espaço amazônico, inscrevendo-o de antemão nas
suas práticas discursivas, seja por fazê-lo habitar na ordem de Deus como um dos seus signos ,seja
por compor uma outra ordem, um outro corpo passível de ser enunciado e visto que atualiza e se
contrapõem a ordem Cristã, mas dela não escapa.

Cobra Norato: do plano de organização ao plano de Imanência

Não se constitui uma unidade nacional sem uma homogeneização concomitante dos espaços
em que essa nação é compreendida. Se isso vale para configuração política, não deixa de ser
verdadeiro também para construção de sistemas culturais nos quais essa nação constitui-se. Pierre
Clastres(2004) amplia essa questão ao analisar a cultura francesa:

A cultura francesa é uma cultura do Francês. A extensão da autoridade do Estado se traduz


na expansão da língua de Estado. A nação pode se dizer constituída, o Estado pode
proclamar-se o detentor exclusivo do poder, quando as pessoas sobre as quais se exerce a
autoridade do Estado falam a mesma língua que ele. Esse processo de integração passa
evidentemente pela supressão das diferenças.

Essa correlação entre cultura e língua desdobra-se na superposição entre língua e literatura.
A literatura brasileira, não menos que a francesa, foi tomada como estrato unificador da cultura e da
língua do Estado, porém, como nem a língua e nem a cultura poderiam suprimir a miscigenação
cultural de que derivavam, a operação sempre foi problemática. De um lado os poetas e romancistas
deveriam compor a partir dos elementos formais Europeus que pré-formavam a prosa e a poesia.
Por outro essas formas teriam que dar conta de uma atmosfera cultural diferente da Européia.

As contingências políticas e as demandas culturais sempre andaram juntas, uma vez que
cabia à literatura Ŗfigurar um Brasil que se desejava absolutamente original, paradisiacamente
singular e sem divisões sociais, raciais e regionais de monta ou que não pudessem ser classificadas
e homogeneizadasŗ ( SUSSEKIND, 2000, p. 33) À literatura não coube apenas homogeneizar, mas
também transfigurar espaços que se impusessem para além de toda divisão, um solo comum onde
essa divisão cairia no mero relativismo, sem autonomia cultural ou histórica na medida que estavam
compreendidas nas fronteiras unitárias da nação

519
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Nenhum terreno foi mais fértil para tal homogeneização do que a paisagem natural, nela,
o Estado ganhava uma pré-configuração natural, ele se confundia com o próprio modelo da
Natureza, que integrava a opulência de forças contrastantes à unidade do espaço que elas
habitavam. A unidade terra como unidade de Estado, fazia do próprio Estado uma terra una e
indivisível nos quais os mecanismos estatais comunicavam uns aos outros a inseparabilidade de
suas partes. O resultado de tal operação é :

Uma identidade em primeiro lugar fictícia, porque baseada em um passado artificialmente


homogeneizado afim de legitimar o presente e, além do mais ,fechada, com pouca
disponibilidade pra modificar-se frente aos novos estímulos do processo social. ( ANTELO,
2001,p.92)

A questão de um passado comum e de um território comum está implicada nessa operação


que do final do século XIX ao início do século XX animou a literatura brasileira.

Gilles Deleuze e Felix Guattari( 2008) conceituam tais mecanismos como planos de
organização, ou seja, planos que operam como princípios ocultos não determinados naquilo que
organizam, sempre fora de sua própria efetuação, uma vez que encontram sua condição de
possibilidade para além dos espaços que constituem.

A esses planos, os autores opõem os planos de imanência, que estão completamente


implicados nos espaços em que se investem. Esses planos existem como campos de força que
entram em relações instáveis, nunca remetidas a um princípio regulador transcendente, o que
significa dizer que cada uma dessas forças só encontram lugar de existência no campo onde
interagem, nas relações sempre modificáveis que admitem

Na literatura brasileira o plano de imanência e o plano de organização se implicam e estão


em constante interação. Mas essa interação só foi afirmada e oportunamente investida a partir do
movimento antropofágico de 1922.

O movimento antropofágico, tal como nos fala Raúl Antelo (2001), Ŗ ao definir a identidade
como diferença, nos mostrou como a identidade é uma urdidura de narrativas alheias , em que
prñprio se deixa ouvir em murmúrioŗ ( p. 31).

Para antropofagia a identidade é sempre um murmúrio, algaravia de vozes dissonantes, de


histórias entrando em relações de força e de contágio.

Apenas nessas condições a voz da Amazônia pode ser ouvida como multiplicidade de
forças, como produção do presente vivo do discurso. Somente nestas condições o plano de
organização da literatura brasileira pôde ser reorientado pelo plano de imanência dos espaços que
ela suprimia.

O poema de Raul Bopp inscreve-se nessa proposta estética, pois sua operação de linguagem
não é a de um ideal nacional no qual a Amazônia poderia ser refletida e sim uma estética da
520
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

antropofagia cultural , que conforme nos diz Suely Rolnik ( 2005) produz a alteridade como
heterogenia:

Assim, o índio ou o negro não são investidos como humanidade boa, portadora de uma
verdade a ser engolidos, contrapontos ao Europeu, que seria a humanidade má, distante da
verdade a ser vomitada[..}pois o critério de seleção para o ritual antropofágico não é o
conteúdo de um sistema de valor tomado em si, mas o quanto funciona, com que funciona,
o quanto permite passar intensidades e produzir sentido (p.97)
Na estética antropofágica, o discurso não é dado como um sistema de valor acabado, mas é
acionado em seu funcionamento discursivo, para fazê-lo funcionar, segundo outros modos de
produção de sentido. Mais uma vez , segundo Rolnik (Idem):

Fazer cultura antropofagicamente tem a ver com cartografar: um mapa de sentido que
participa do território que ele produz[...] È da vizinhança paradoxal entre heterogêneos,
feita de acordos não resolvidos não remetidos a uma totalidade, que emana o sentido.

Vejamos como esse mecanismo é articulado no poema de Bopp(1994), que inicia dessa
forma:

Um dia
hei de morar nas terras do sem fim
Vou andando caminhando caminhando
Me mistruro no ventre do mato mordendo raízes
Depois mando chamar cobra Norato
[..]
A noite chega mansinho
Estrelas conversam em voz baixa
Brinco então de amarrar no pescoço
Estrangulo a cobra agora sim me enfio
Na pele de seda elástica e saio a correr
Mundo.(p.3)

O movimento do poema articula-se como o início de uma trajetória, mas nesse percurso o
espaço efetua-se na mobilização de verbos no gerúndio, com predileção pelos substantivos em
detrimento dos adjetivos; por esse efeito de substantivação, a paisagem é disposta em uma
linguagem em trânsito que não pode ser fixada em qualificações estáticas, ou seja, não há o que
dizer dela, mas somente nela. Enuncia-se um presente discursivo no qual tudo é dito em
movimento. A cobra que intitula o texto faz parte de uma lenda Amazônica com várias versões, mas
Bopp produziu uma variante própria e mobilizou um tempo outro: o das tradições populares:

A tradição é aquilo que diz respeito ao tempo, não ao conteúdo. Por outro lado, o que o
Ocidente deseja[...] é o oposto: esquecer o tempo e preservar, acumular conteúdos,
transformá-los no que chamamos de história e pensar que ela progride porque acumula. Ao
contrário, no caso das tradições populares, nada se acumula, ou seja, as narrativas devem
repetidas porque são esquecidas todo o tempo.Mas o que não é esquecido é o ritmo
temporal que não para de enviar narrativas para o esquecimento
Está é uma situação de constante encaixe que torna impossível encontrar o primeiro
enunciador ( LYOTARD apud BHABHA, 2007, P.93)

O tempo das tradições populares, conforme o enunciado supracitado, evita que haja um
primeiro enunciador, no qual o sentido original da narrativa pudesse ser retido. No documento de
Carvajal, conforme vimos, esse primeiro enunciador era Deus, nele o espaço amazônico era dado

521
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

como signo prévio da conquista. O tempo acionado por Bopp, por sua vez, faz do presente da
enunciação a condição de possibilidade da produção de sentido, no ritmo temporal que joga tudo no
esquecimento para que se possa ser novamente enunciado enquanto produção. Em duas passagens
do poema, podemos ler :

Está é a floresta de hálito podre


Parido cobras(p.12)
[..]
Acordo
A lua nasceu com olheiras
O silêncio dói dentro do mato
(p.17)

A floresta pare cobras, ela é produção de heterogêneos; ela produz silêncios que jogam tudo
no esquecimento dolorido, que torna possível a enunciação de seu presente em inacabamento
discursivo.
Esses elementos do discurso nos quais a linguagem de Bopp se articula trazem o Outro, o
sentido de alteridade amazônica para o Ŗalémř discursivo do presente, para uma ordem discursiva
que desorganiza o discurso colonial, ao intervir nele, ao falar nele, sem querer, de forma alguma,
dele escapar

Referências bibliográficas

ANTELO, Raul. Transgressão e modernidade.2d. UEPG, Ponta Grossa, 2001.

BHABHA, Homi.Local da cultura.4ed.Editora UFMG,Belo Horizonte,2007

BOPP, Raul . Cobra Norato. 21 ed. Rio de Janeiro : José OLimpo .1994

CARVAJAL, Gaspar. Relação do novo descobrimento do famoso rio grande que descobriu o
capitão Francisco Orellana. In : Descobrimento do Rio Amazonas. Companhia Nacional, Porto
Alegre , Recife, Rio de janeiro. Série 2. 1941.

DELEUZE. Gilles. Lógica do sentido. 4ed. São Paulo : Perspectiva. 2007

_________. Foucault, 2ed.São Paulo: Brasiliense.1991

FOUCAULT. As palavras e as coisas.8 ed. São Paulo:Martins fontes .2002.

________, A arqueologia do Saber, 7ed. São Paulo: Forense Universitária. 2004

HANSEN . João Adolfo. Alegoria : construção e interpretação da metáfora1ed. São Paulo: Editora
Atual.1986

CLATRES, Pierre. Arqueologia da violência. São Paulo: Cosac& Naify.2004

ROLNIK, Suely .Subjetividade antropofágica. In: Razão nômade.1ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária. 2005.

522
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

___________. A Sátira e o engenho. 1 ed. São Paulo: Cia de Letras. 1989.

___________. Cartas do Brasil.3ed. São Paulo: Hedra. 2003.

UGARTE. Auxiliomar. Margens Míticas: XVI. In: Senhores dos Rios. 1ed. Rio de Janeiro:
Elsevier. 2004.MUCHAIL, Tannus.

523
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

MÍMESIS-ZERO E DESEJO: O SUJEITO A CAMINHO.

Laíse H. B. Araújo (PUC/RIO)

A 22 de outubro de 1960, por ocasião do recebimento do prêmio Georg Büchner em


Darmstadt na Alemanha, Paul Celan (1996: 51) esboça uma reflexão sob forma de pergunta dirigida
à platéia:

Talvez a poesia Ŕ é apenas uma pergunta Ŕ , talvez a poesia, tal como a arte, se dirija, com
um Eu esquecido de si, para aquelas coisas inquietantes e estranhas, para de novo se
libertarŔ mas aonde? Mas em que lugar? Mas com que meios? Mas em que condição?

É assim que o poeta, o esquecido de si, dirige-se àqueles espectadores que testemunham sua
láurea pública, reconhecimento oficial de uma escritura tecida de cinza e silêncio, em nome daquela
que fora sua Mutter e Mördersprache.
Seria esse público, seriam esses ouvintes o Outro a compor o mistério do encontro a que o
poema se destina?

O poema quer ir ao encontro de um Outro, precisa desse Outro, de um interlocutor.


Procura-o e oferece-se-lhe. Cada coisa, cada indivíduo é, para o poema que se dirige para o
Outro, figura desse Outro (CELAN, 1996: 57).

Afinal, a que (ou a quem) se destina o poema?

O poema, como uma obra de arte, é criação genuinamente humana. Mas há algo que possa
efetivamente ser criado pelo homem? Ou nada mais faz o homem senão repetir eternamente um
quadro desde sempre dado?

A uma realidade perfeita subjaz uma concepção substancial de verdade; a uma concepção
substancial de verdade corresponde uma atividade humana reiterativa. É contra esse quadro
cristalizador da realidade, que concebe a mímesis como imitatio, que se volta o trabalho intelectual
de Luiz Costa Lima.

Não se pode dizer, por suposto, que o combate à mundivisão metafísica seja engenho
exclusivo desse nosso pensador brasileiro. A rejeição de um acesso inequívoco à essência do real
pode ser encontrada desde Kant, pelo menos, enquanto a própria realidade de tal essência é
definitivamente refutada por Nietzsche. Pode-se dizer, portanto, que a princípio Costa Lima está ao
lado desses filósofos que compõe, junto à grande maioria dos pensadores dos últimos três séculos, a
tradição anti-metafísica.

524
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Tendo a produção literária como seu principal objeto de estudo, o crítico, no entanto, aos
poucos transbordou os limites de sua investigação e, do questionamento acerca da incidência da
mímesis na literatura, alcançou questões nucleares do pensamento contemporâneo, como as que
tangem o estatuto do sujeito e da subjetividade em tempos niilistas.

É sobretudo em Mímesis: desafio ao pensamento que as especulações do teórico da literatura


tocam estas questões. Mas, longe de desviar-se do seu objeto primevo, Costa Lima volta-se a ele
continuamente, lançando-o a um lugar onde permanece sem respostas, mas compartilha, por
comunhão, do caráter aporético dos grandes mistérios. Afinal, a que se destina o poema?

O homem, como foi dito, não está mais inserido em uma realidade que o subordina, porém
tampouco se torna absoluto criador dessa realidade, como o quer o mito moderno do sujeito. Suas
representações nem correspondem a uma imitação do desde-sempre nem a uma direta e
independente emanação de um sujeito total. E Costa Lima mostra como mesmo o mito do sujeito
moderno já aparece em seu nascedouro questionado. Com o antígeno mortal inoculado desde a raiz,
tal concepção de sujeito evolui organicamente à sua morte, morte que significa a radical crise da
representação.

Ao lançar seu objeto dileto a um lugar além, projeta-se também o escritor para além
daqueles que ladeava, renegando a famigerada morte do sujeito e propondo, entre a concepção solar
de sujeito e sua aniquilação total, uma subjetividade fraturada, que se encontra trincada pelo desejo,
como algo que a suplanta sem destruí-la. Recuperado o sujeito, recuperada a representação.

Nem subordinado, nem subordinante, o sujeito, inserido em uma cadeia que o ultrapassa, é
restituído à realidade e a ela se dirige, através de suas representações, em busca de sua própria
constituição. Fora das incitações da realidade, inscreve-se o desejo como busca de constituição da
identidade subjetiva.

Afinal, a quem se destina o poema? Essa pergunta, que pode ser considerada a força motriz
desta escrita, exige uma digressão, excursão que é antes um movimento de encontro que um
afastamento, como tentarei mostrar.

1. O Sujeito Fraturado

No seio de sua formulação do sujeito fraturado, Costa Lima encontra no inconsciente


freudiano a instância a solapar a pretensão da consciência ao domínio de suas representações.
Retomando a economia em que opera o par conceitual princípio de prazer/princípio de realidade,
verifica no diferimento da satisfação, a força do ego pré-consciente, em que se forma uma oposição
necessária à representação libidinal, gerando o recalque. Assim, a Ŗimagemŗ se origina de um
derivado multiplamente truncado do desejo libidinal inconsciente, uma ambigüidade escolhida com
dois significados em pleno desacordo (FREUD, 2006).

525
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

No magma inconsciente dos sonhos, porém, essas imagens revelar-se-iam de maneira mais
autêntica: a proposta de Freud é que as imagens que povoam o sono satisfazem os desejos
inconscientes de quem sonha, e a ausência de compreensão imediata de tal significado, expresso na
defasagem entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente dos sonhos, deriva de interditos
originários, que funcionam como a censura que efetua o recalque.

Da análise do conteúdo manifesto das imagens oníricas, representações que são fruto do
embate agônico entre o desejo de gozo e o desejo de realidade, revela-se que Ŗa força substitutiva
não é imotivada quanto ao antagonismo que a gerou, mas, ao contrário, pela contradição das
expressões, ela como que dá uma forma icônica ao antagonismoŗ (COSTA LIMA, 2000: 143.). O
princípio de realidade é exatamente o que regula as expressões contraditórias que torna a
representação possível. Porque fendido e submetido a representações que não controla, porque não
é senhor da realidade, nem por isso o sujeito está menos em contato e em correlação com ela, mas
antes a realidade é o que possibilita as suas representações.

Negar esse embate é negar a própria representação. Costa Lima mostra como, dentre os
riscos do anti-representacionismo, está a paradoxal manutenção do sujeito, em posição tal que
facilita a normatividade do analista, ou do legislador, ou do historiador. Não vincular o sujeito
pensante à realidade é torná-lo livre para criar ao seu bel prazer essa própria realidade.

Embora a análise freudiana represente um grande avanço e auxílio da reconstrução desse


sujeito que Costa Lima propôs, é a partir dos reparos feitos pela teoria da mímesis de René Girard e
sua leitura psicanalítica por Borch-Jacobsen que se insinua a aresta que parece ser a mais inovadora
e fértil dentro desse percurso, abrindo ainda o campo de possibilidades à formulação de uma
autêntica teoria da subjetividade mimética.

Contra a concepção de um sujeito anterior às manifestações dos seus desejos, o que


implicaria um vestígio da concepção moderna de sujeito (pois ainda que este não os regule
conscientemente, representaria a instância de que emanam), Boch-Jacobsen dirá, com René Girard,
que o desejo antes de tudo se regula por um modelo identificatório Ŕ seu verbo fundamental é ser
(ser como) Ŕ sendo a busca pela obtenção do prazer posterior Ŕ o desejo ter (gozar de) seria
emanação de um sujeito já constituído.

Sem propor uma explicação de moldes metafísicos, substancialistas, o esforço interpretativo


de Luiz Costa Lima é o de deslocar o sujeito de sua posição de controle inclusive do próprio desejo,
invertendo por exercício abstrativo a ordem relacional entre sujeito e desejo, pois se o sujeito é um
sujeito que claudica perante o desejo, tal arrebatamento só poderá ocorrer se na constituição do
próprio sujeito houver algo anterior que o possibilite e que o transpasse. O desejo, então, adianta-se
ao próprio sujeito, que passa a ser tardio.

É essa orientação primeva pela identificação que, ao questionar o primado do desejo-efeito,


resignifica a própria mímesis. A mímesis, nessa primeira impulsão geratriz, é Ŗirrefletida, pré-
526
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

reflexivaŗ , situa-se exatamente no ínterim entre pulsão e desejo e caracteriza-se sobretudo por ser
essa passagem ainda não orientada, por esse ínterim, essa travessia intransitiva. Esse primeiro
ímpeto ou movimento, que Costa Lima nomeou mímesis zero, isso que está na base de uma espécie
de orientação que emana do próprio corpo pulsional do homem para ser sujeito, está antes da
própria constituição desse sujeito, possibilitando-o.

2. Mímesis-Zero

A mímesis zero é vetor-movimento que se localiza entre pulsão, que é o limite entre o
psíquico e o somático (Ŗé uma força que necessita ser submetida a um trabalho de ligação e
simbolização para que se possa inscrever no psiquismo propriamente ditoŗ ), e o desejo de objeto
(desejo, no sentido freudiano, é desejo por antonomásia de objeto: desejo-de objeto, os dois termos
da expressão são inseparáveis).

Vetor que está na base da determinância do ser, na possibilidade e capacidade de se


identificar, mas que ainda não se confunde com a aquisição de uma forma. A Mímesis-zero se
caracteriza pela produção de um signo imperfeito, em que o significante Ŕ plasticidade pura Ŕ
encontra-se destituído de significado.

A reformulação de Boch-Jacobsen, ao colocar o movimento de identificação anterior ao


desejo objetual, tornando-o configurável ao invés de configurado e fantasmático em seu
nascedouro, é também uma rejeição da cristalização da representação.

Não é o sujeito que ao desejar o objeto proibido se constitui, mas é um desejo de


identificação que permite que uma subjetividade particular se constitua. Tal desejo não é concebido
predicativamente a nenhuma substância que o preceda, mas como puro movimento vital inerente à
corporeidade humana. A massa amorfa pulsional é imantada de um movimento projetivo e
identificatório, cuja total indiferenciação com a realidade sofrerá um corte; é esse corte que,
operado por uma metamorfose do desejo, inscreve na carne o sujeito, garantindo a subjetivação: é a
verdadeira entrada do sujeito no mundo, é a transformação do desejo de ser no desejo de ter.

Desejo de ter, produto desse corte originário, é a introdução da linguagem, enquanto


capacidade configurativa, que nasce com o sujeito. A linguagem é, portanto, contemporânea à
inscrição do sujeito, e, se nega a indeterminação do ser, não o define a priori, mas antes o coloca
em contato com o lócus em que se encontram os objetos que serão afetados pelo seu desejo.

Tratando-se de um Ŗesforço interpretativoŗ ou de um Ŗartifício de cálculoŗ, tal Ŗesquema


transcendentalŗ foi objeto de estudo do grupo de pesquisa de que faço parte, durante o segundo
semestre de 2009 e o primeiro de 2010, e apresentou alguns avanços importantes, cujo resultado
parcial presente trabalho dedica-se a expor.

3. Tempo/Espaço

527
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O que permite, portanto, que o desejo de ser se converta em desejo de ter? Que pode ser
visualizado como intrínseco à estrutura pré-subjetiva da mímesis-zero, compreendida desde sempre
como o movimento de passagem, sistematicidade dinâmica, que possibilita sua metamorfose?

Como já foi dito, o que caracteriza a mímesis-zero é a disposição de constituição subjetiva,


de modo que opera com a ausência de sujeito bem como de objeto, muito embora seja um
movimento em direção a eles. Assim, a mímesis-zero pode ser compreendida como a condição de
possibilidade tanto de um quanto de outro, aproximando o conceito em vias de formulação da
estética transcendental proposta na primeira crítica kantiana.

O passo seguinte exige cautela. Embora seja notória a ascendência kantiana no pensamento
de Costa Lima, não se quer aqui recorrer ao seu pensamento nos moldes de uma filiação teórica Ŕ
pois já se disse como a própria concepção de sujeito fraturado costalimeana afasta-se do cânone
moderno de subjetividade Ŕ senão como aproximação especulativa. Salvas as considerações,
retomemos por empréstimo as condições transcendentais de possibilidade da experiência sensível
postulada por Kant.

É na primeira parte da Crítica da Razão Pura que Immanuel Kant realiza as célebres
Ŗexposições transcendentais dos conceitos de espaço e tempoŗ , em que o espaço é apresentado
como a condição formal de possibilidade de o sujeito ser afetado por objetos e o tempo como a
condição formal da experiência subjetiva, enquanto possibilidade transcendental da interioridade.

Tais conceitos, como o indica a seção em que estão alocados, dizem respeito à experiência
sensível que apenas um sujeito é capaz de ter. Afasta-se, portanto, a formulação de Kant do intuito
deste trabalho em aproximar as condições formais de espaço e tempo de uma sistematicidade que se
localiza antes do sujeito. Pensemo-las, a título de abstração, como condições de possibilidade do
próprio sujeito (enquanto instância que se constitui na própria experiência sensível).

A massa pulsional, enquanto materialidade indistinta de sujeito e objeto, pode ser pensada
como um ponto de confusão entre espaço e tempo (o que é, em termos lógicos, impossível) e a
mímesis-zero, como movimento projetivo de exteriorização do desejo, de encontro com a realidade,
pode ser compreendida então como um vetor que tensiona o ponto, gerando uma ameaça de cisão
entre tempo e espaço, tensão essa que provoca o movimento.

Se tempo e espaço são os componentes da subjetividade e da experiência subjetiva, eles, por


essência antagônicos, criam uma estrutura sempre instável, uma mistura de dentro (tempo) e fora
(espaço), de desejo de ser e desejo de ter. A natureza antagônica dessas duas formas impede, na
verdade, a sua total confusão, fazendo com que a primeira etapa Ŕ que seria verdadeiramente o zero,
em que a massa amorfa é pura energia e potencialidade, confusão pontual de tempo e espaço Ŕ não
passe de uma Ŗficçãoŗ , ela na verdade nunca ocorre, existindo desde sempre a tensão que engendra
o movimento, a ressonância: há, desde sempre, portanto, o que estamos chamando de mímesis-zero.

528
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O tempo em mímesis-zero ainda se encontra indiferenciado do espaço, porque não tem


objeto, porém não mais se confunde com ele estaticamente, engendrando uma estrutura híbrida que
gera uma espécie de oscilação ou ressonância. A massa pulsional constituída de energia pura de
tensão entre tempo e espaço retém em si a irreprimível oposição intrínseca de seus elementos, de
modo que é em si a sua própria negação.

Esse exercício abstrativo justifica-se pois define o que se compreenderá como a estrutura
auto-contraditória e, portanto, dialética do sujeito que se configura como fraturado, originariamente
constituído a partir de formas que se negam reciprocamente.

A instabilidade em que se encontram as formas transcendentais do que virá a ser o sujeito


(espaço e tempo) e que engendra um movimento a priori intransitivo terá sua primeira conformação
na eleição provisória do Outro, modelo de identificação e rivalidade, para quem se direciona o
desejo de configuração, direção esta possível ao sofrer a ação negativa de uma força exterior ao
sistema mimético, que é o primeiro encontro com a Lei.

Inscrito no impulso mimético o desejo de ser, parte o corpo em busca de presentificar-se na


realidade, misturando-se provisoriamente ao Outro que escolheu na busca cega de si. Como não lhe
é possível tal fusão, e o encontro com o Outro gera um deslocamento recíproco (ou em termos
girardianos, obedece ao mecanismo de rivalidade), segue-o, rastejando em direção ao que o Outro
busca, aos objetos, ao mundo a que o Outro se encaminha. Traça seu caminho para si através dos
passos de um Outro, que é uma parte projetada espaço-temporalmente de si. E nesse caminho
encontra um outro, que não é mais o si-mesmo fora de si, mas é efetivamente um outro a que deseja:
inscreve-se-lhe, por fim, um objeto. E o desejo de ser metamorfoseia-se em desejo de ter.

O desejo de ter, que se inscreve como uma negação à sua totalidade, porém, não nulifica o
desejo de ser, mas absorve-o, suprassume-o, garantindo a permanência de uma capacidade auto-
configurativa que se dá exatamente pela provisoriedade e vulnerabilidade desse Outro eleito, que
nunca corresponde a um ideal modelar, nem o pode ser, já que exerce uma função que lhe é
necessariamente alheia.

A mímesis-zero, portanto, sistematiza em si algo que se desdobra depois e é maior que ela
mesma, efetuando uma condensação abstrativa que não se iguala ao que se produz. Mas se ela se
desdobra depois e garante que um resto de desejo de ser jamais seja aniquilado pelo desejo objetal,
como ela se apresenta? Uma primeira aposta de resposta segue em direção à formulação freudiana
de interpretação dos sonhos, operando, ao lado de Borch-Jacobsen, uma (pretensiosa) sugestão de
retificação.

O sonho, ao invés de ser concebido como uma realização de desejos objetais, cujas imagens
aparecem deformadas ou truncadas por ação do recalque, é considerado a partir de uma completa
suspensão da subjetividade, em que se vislumbra um retorno a um puro desejo de ser, pura
dinamicidade intransitiva em que se é tudo: não há sonho com objetos, todos os objetos confundem-
529
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

se com uma primeira mistura do ser à realidade; não há imagens configuradas, há pura plasticidade
e mímesis-zero. A percepção do sonho em vigília é o que engendra nele determinadas
configurações, ou seja, é a ação posterior do sujeito que o interpreta, delimita seus pseudo-objetos.
Operação da linguagem e, portanto, do sujeito.

A linguagem, ao constituir a subjetividade, representa um ponto de referência negativo,


constituído por uma ambigüidade essencial: ao mesmo tempo em que é via de socialização e
encontro com o outro referencial, é também resistência, na medida em que direciona o desejo ao
objeto e inscreve a instância da alteridade, representando um corte que define a identidade. Imprime
tanto a relação quanto a deformação da realidade; nega a intransitividade do desejo de ser, ao
mesmo tempo em que possibilita que o ser do sujeito se inscreva, e, posteriormente, a partir das
relações desse sujeito com o mundo, que ele se escreva, a partir de suas representações, produtos
fantasmáticos do gozo interditado.

A mímesis, que surge como identificação subjetiva e anterior ao encontro com a realidade,
transmuta-se em movimento do sujeito em direção ao mundo, encontro este de cujo veto derivarão
as representações truncadas da realidade. Se a mímesis não mais significa reiteração, repetição,
imitação do real, pois há sempre um impulso à subjetividade, isto é, à formação de uma instância
particular subjacente que se inicia antes do real, tampouco ela estará dissociada desta realidade,
tendo nela o substrato onde estão mergulhados os objetos de desejo (e de frustração desse desejo)
do sujeito.

Não estando mais modulada apenas pelo princípio de semelhança, a mímesis será marcada
pela contradição dialética entre semelhança e diferença, entre repetição e identidade, rivalidade e
combate, e Ŗpor mais radicais que sejam as formas de diferença, elas sempre mantêm um resto de
semelhança, uma correspondência, não necessariamente com a natureza mas sim com o que tem
significado em uma sociedade, com a maneira como a sociedade concebe a prñpria naturezaŗ
(COSTA LIMA, 2000: 56).

ŖResto de semelhançaŗ este que remete à permanência do desejo de ser como desejo criador
de identidade, esforço por presentificação1, em ser no mundo (mímesis de produção), enquanto o
desejo de ter, que introduz o movimento de separação do Outro-modelo, engendra a diferença pelo
conflito, pelo recalque do desejo negado, ligando, paradoxal e perpetuamente, o sujeito aos seus
fantasmas do real (produtos truncados, deformados, de objetos para sempre perdidos na história do
sujeito).

O convívio dialético entre as duas modalidades de desejo fundacionais do sujeito (que


reiteram a tensão originária entre tempo e espaço) impedem que a relação do sujeito com a Lei seja
de pura aniquilação/negação ou de pura repetição. O que equivale dizer que, ao constituir-se
enquanto sujeito desejando o objeto de desejo do Outro modelar, isto é, deixando-se ser inscrito

1
Darstellung: produção e presentificação.
530
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

pelo outro do mundo, nem a escolha (ativa/positiva) do Outro nem a ação (passiva/negativa) do
outro-do-mundo dar-se-ão de forma linear, mas será sempre o produto de uma tensão1.

As duas formas miméticas concebidas por Costa Lima, mímesis de representação e mímesis
de produção (ou apresentação), então, aproximar-se-iam mais ou menos de uma ou de outra
modalidade de desejo: a mímesis de representação, que tenderia à busca incessante do gozo de
objetos inscritos no real, seria um predomínio do desejo de ter, modulado pelo impulso do prazer;
ao passo que a mímesis de produção, agregadora de novidade ao mundo, caracterizar-se-ia pelo
fundamental ímpeto de ser Ŗalguma coisaŗ , impulso criador.

A Lei como lastro dessas configurações, por sua vez, também não pode ser entendida como
uma realidade cristalizada, mas aproxima-se antes à concepção de Ŗárea centralŗ, tal como
entendida por Carl Schmitt1, enquanto constância de uma dinâmica, movimento estável, porque
dotado de dimensão histórico-social. Entre o ser e o não-ser (negação da subjetividade total do
sujeito) do movimento do sujeito, é esse Ŗa caminho deŗ , essa fenda que se abre entre a vontade de
ter o objeto completamente, confundindo-se com o real, e a impossibilidade de tê-lo, o que
diferencia a materialidade exterior real de um espectro absolutamente forjado pelo sujeito e,
portanto, aleatório: a Lei, que é o prisma através do qual se configura a realidade, dá ao que se
produz do desejo negado um substrato de conformação, sem nunca equivaler às configurações,
impede-as de serem totalmente irreferenciadas.

As configurações, porém, tendem normalmente a cristalizações. É isso o que garante a


estabilidade da Lei, é isso que garante a afirmação do sujeito fraturado. Há, porém, no âmbito da
mímesis de produção (qualidade inerente à atividade artística), um movimento radical que é feito
pelo próprio sujeito no sentido de negar ou suspender essa subjetividade constituída. Efetuado no
próprio âmbito da linguagem, tal movimento opera de forma a dilatá-la ao limite, até provocar uma
perda de suas características convencionais, utilizando-a antes como um significante sem
significado, cuja leitura se dá de acordo com a Lei. A identidade subjetiva, por ardil do próprio
sujeito, claudica e o desejo de ser comprime o desejo de ter ao extremo. O sujeito mitigado põe em
movimento a dinamicidade que se dirige à sua própria constituição, re-constituindo-se
continuamente.

Tais obras de arte efetivariam uma Ŗexperiência de presençaŗ , bastante prñximas de algo
como uma experiência não-hermenêutica, conservando um mínimo traço representacional, Ŗmarca
dřáguaŗ do que se insinua como uma lembrança de semelhança. O sujeito que aí se encena insinua-
se como um proto-sujeito, e a obra surge como uma

1
O Eu parte em busca do Outro como uma busca de se inscrever no mundo, mas nessa busca percebe a existência de
uma realidade que lhe é exterior e que lhe nega a totalidade; seu desejo de inscrição no mundo é então negado pelo seu
desejo (insaciável) de ter o mundo; tudo o que esse eu assim constituído faz, a partir de então, é referente a um desejo
de ter o mundo que sempre remete a um desejo de confundir-se com este mundo, sendo.

531
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

simulação de um estado anterior às suas fraturas Ŕ simulação realizada por um sujeito já


fraturado, o poeta em seu estado de maturidade. Pois, ao falarmos em simulação, estamos
dizendo que, de fato, as fraturas já estavam lá instaladas; que elas são momentaneamente
suspensas, fazendo com que o sujeito produza a dinamicidade que põe a mímesis-zero em
movimento (COSTA LIMA, 2000: 152).

Então, afinal, a que (ou a quem) se destina o poema?

O poema se destina, e essa é a sua principal característica, ele é um movimento de


passagem, um entre-caminho ao encontro do Outro-do-Eu. Um Eu sempre-e-mais-uma-vez
provisório. O poeta, ao produzir a dinamicidade que busca o Eu, afasta-se de si, e reengendra-se: a
mímesis-zero é Ŗirreflexiva, cega, produto de uma carência identificatñria em seu processo, contudo,
ela se concretiza em um mímema, produto que efetua um sujeito para si mesmoŗ (Idem).

O poema relaciona-se com o mundo, mas não é a ele que se dirige:

Quem traz a arte diante dos olhos e no sentido, esquece-se de si. A arte provoca um
distanciamento do Eu. A arte exige aqui, numa direção determinada, uma determinada
distância, um determinado caminho.

O artista não se cristaliza. Ao usar a linguagem para se remeter a uma instância que é
anterior a ela, esse algo que resta fora da linguagem, está sempre criando um caminho e um
movimento em direção a um Outro que é um novo Eu. A poesia, que é esse movimento de desejo de
ser provocado pelo artista coloca-se em direção de uma figura a que segue Ŕ na frente: Ŗa poesia
antecipa-se-nosŗ e é Ŗqualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração [...] Talvez
aqui, como o Eu Ŕ este Eu surpreendido e liberto aqui e deste modo Ŕ , talvez aqui se liberte ainda
um Outroŗ (CELAN, 1996: 54).

O Outro na poesia de Celan é instância recorrente e sempre enigmática, que se insinua como
um sempre fugidio interlocutor a quem sua escrita se destina: ŖDesde sempre uma das esperanças
do poema é precisamente a de [...] falar em causa alheia [...] quem sabe se em nome de um
radicalmente Outroŗ (CELAN, 1996: 55).

É então esse Outro nunca revelado, conquanto sempre entremostrado pelos outros, que
Celan reconhece frente àqueles que apenas provisoriamente puderam ser considerados o seu Outro,
e que se incluíam (os outros) na Mutter-Mördersprache:

Será então que, quando pensamos em poemas, será que seguimos tais caminhos com o
poema? São essas vias apenas des-vios, caminhos ínvios de ti a ti? Mas são também, no
meio de sabe-se lá quantos outros caminhos, caminhos nos quais a língua ganha voz, são
encontros, caminhos de uma voz para um Tu que recebe, caminhos da criatura, projetos de
existência, talvez, uma antecipação a nós próprios para nos encontrarmos, em busca de
nós próprios... Uma espécie de regresso a casa (CELAN, 1996: 61. grifei).

1
Cf. SÁ, Alexandre Franco de. O Poder pelo Poder: Ficção e Ordem no combate de Carl Schmitt em torno do poder.
Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009.
532
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Referências bibliográficas

BORSCH-JACOBSEN, Mikail. Le Sujet freudien. Paris: Flammarion, 1982.

CELAN, Paul. Arte Poética: o meridiano e outros textos. Lisboa: Edições Cotovia, 1996.

CHÉDIN, Jean-Louis. La condition subjective: le sujet entre crise et renouveau. Paris: Vrin, 1997.

FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1999.

_______________. Conferências Introdutórias sobre a psicanálise. Vols. 1 e 2. Rio de Janeiro:


Imago, 2006.

GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

_____________. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

GUMBRECHT, Hans Ulrich; ROCHA, João Cezar de Castro (org.). Máscaras da mímesis a obra
de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Record, 1999.

LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

_______________. Limites da Voz. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.

SÁ, Alexandre Franco de. O Poder pelo Poder: Ficção e Ordem no combate de Carl Schmitt em
torno do poder. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009.

533
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

CORPOS, ESPELHOS, IMAGENS: UMA LEITURA DE DANÇARINOS NA ÚLTIMA NOITE, DE


MILTON HATOUM
Larissa Pollari Araújo (UFAM)

Milton Hatoum, escritor amazonense aclamado pela crítica e entre os de maior projeção do
estado no cenário nacional lançou, após três romances e uma novela, seu primeiro livro de contos:
ŖA cidade Ilhadaŗ (2009).
Sem apresentar uma efetiva sequência entre os contos, A cidade Ilhada é, em verdade, uma
coletânea que, segundo Milton, não tem de fato alguma periodicidade. Com contos produzidos entre
os anos de 1990 e 2008, o livro vem muito mais como um apanhado de produções contísticas,
totalizando catorze - das quais seis são inéditas e oito já foram publicadas em outros meios.
Sabe-se que Manaus veio sempre permeando a obra de Milton. Essa cidade, de fato ilhada
(como tanto sua geografia Ŕ espacial, concreta Ŕ mostra, como o seu sentimento de periferia ante ao
resto do país demonstra), faz-se sempre de fundo, de ambiente, onde se passam ações, histórias e
vidas. Não podemos ignorar o caráter plural de Manaus, que se formou a partir de tantos imigrantes,
de indígenas e da miscigenação desses povos. Diz Luiz Costa Lima que Ŗestamos diante de uma
cidade sem raízes, formada por estratos que se dissipam e desaparecem quase sem vestígiosŗ
(LIMA apud PINHEIRO, 2007, p. 348). Uma cidade que se forma por uma mescla cultural tão
densa é por demais adequada a já conhecida obra do escritor. Seguindo por estes caminhos é natural
que ao se ler A cidade Ilhada julguemos, com um título que parece ter tamanha obviedade,
imediatamente que estamos, novamente, ante a uma obra que nos trará a tão presente Paris dos
trópicos. O livro, no entanto, se desprende de um campo significativo Ŕ e puramente físico Ŕ que
poderia remeter a um mero local e traz, muito mais que uma Manaus-centro ou Manaus-periferia;
traz uma Manaus que se presentifica enquanto essência naquilo que, notoriamente, o livro mostra
desde o título. Manaus é, portanto, Ŗum microcosmo do universo em que se movimentam os
personagens dos contos de A cidade ilhada, seres enraizados, mas permanentemente em trânsito no
espaço e no tempoŗ ( SAMPAIO, 2009.).
Entendemos assim que, um livro com tantos trânsito, com tantos lugares que pretendem
representar o próprio mundo, temos como grande foco agora não a memória como um lugar, mas as
personagens como errantes/viajantes. Não há mais o que, mas quem. E quem se faz presente do
começo ao fim do livro é essa figura do viajante. Viajam as personagens sempre aos mais diversos
lugares: Bombaim, Manaus, Paris, Rio de Janeiro. Representativamente viajam as personagens cada
vez mais para dentro de si. Hatoum afirma que Ŗ[a] viagem permite a convivência com o outro, e aí
reside a confusão, fusão de origens, perda de alguma coisa, surgimento de outro olharŗ (HATOUM,
2009, p. 101). Nesse transitar constante de espaço Ŕ e também de tempo Ŕ perdem-se sempre, em
suas identidades fragmentadas. Entendemos assim que ilhada, muito mais que uma cidade, é a
condição desses seres: aqui, viajantes; adiante, não se sabe. E entendemos, por fim, que num ser
viajante cabe e que num eu fragmentado habita uma cidade inteira Ŕ essa cidade ilhada.
534
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O livro, como não poderia deixar de ser se pensarmos em Milton, evoca a questão da
memória. Ela vem trazendo em si a tortuosidade dos eventos passados e embaçados, trazendo a
necessidade da presentificação desse passado. Nos contos percebemos que memória gera dúvida,
gera esquecimento, gera lembrança. A mesma dúvida, tão deturpada nos faz pensar em erro. Erro 1
remete à errância, que remete a errantes. Errantes, como já dito, são os personagens de Milton,
inebriados em suas memórias, conturbados em suas identidades.
Entre errantes e entre memórias passamos por contos que vão de uma mãe de família
prostituída a delírios num teatro; que vão de uma amante cega de paixão em Paris a uma amante já
retomada de lucidez em Barcelona. E nessa confluência de rostos e eus aparece o Dançarinos na
última noite.
No conto, temos o horizonte latente, que nos joga mais além. Um jogo intenso de espelhos
múltiplos surge ante aos olhos, tendo ao fundo uma floresta que, mais que amazônica ou não, vem
para ocultar o próprio homem e também trazer a tona sua essência. Ao longo da narrativa
constroem-se, a partir da sutileza e de elementos plantados como pistas, personagens que
movimentam o conto com a mesma sinuosidade dos rios. Dançarinos na última noite traz em seu
enredo ocultações e verdades que cabem no curto espaço de dois corpos que compartilham uma
vida. Com elementos nada gratuitos, o conto se desenrola. O enredo segue e de costas para a
floresta vemos as personagens tomarem vida num texto pleno de nuances machadianas. Dançam os
corpos unidos e segue a música num curto espaço de tempo guardado na memória que eles pensam
ser toda una vida (HATOUM, 2009, p. 119).
Manaus é o ponto de início do enredo Ŕ uma cidade que tantas vezes mais parece um porto
flutuante, já que temos a constante impressão de que alguém irá chegar ou irá partir. A impressão,
no entanto, não é em vão. O conto se fará de saídas e, portanto, futuras chegadas.
Saindo de Manaus, nossos protagonistas mudarão para o interior. A cidade do interior é, no
conto, de nome não-especificado Ŕ o que já seria bastante significativo para as incertezas futuras.
Esse nome, no entanto, é facilmente dedutível. Quando os personagens mudam-se, sabemos que
chegam Ŗà margem do lago do Ubimŗ (HATOUM, 2009, p. 113). O lago do Ubim,
geograficamente, fica na cidade de Manacapuru, que significa Ŗflor matizadaŗ . Matizada a flor?
Matizada a flor do Paraíso, a Porfíria.
Porfíria e Miralvo: esses são os nomes dos protagonistas. Eles são casados e moram nos
fundos da casa de um cambista, patrão de ambos. Porfíria é uma mulher exuberante e de volúpia
visível. Ela é mais antiga que Miralvo na casa do doleiro e trabalha para o patrão desde antes de
conhecer seu futuro marido. Sabe-se que

antes de conhecer Miralvo, ela dançara com uns amigos do patrão, políticos de outros
estados e até uns americanos de Miami. Ela os levava aos clubes dos Educandos e da
Cidade Nova, onde ensinava a dançar carimbó e forró. Ganhava roupa nova do patrão,

1
Segundo o Dicionário Aurélio, temos ŖErro: 4. Desvio do bom caminho; desregramento, falta.ŗ Partindo desse
conceito e tomando aqui caminho de forma metafórica, temos os caminhos tortos da memória, os caminhos tortos que
segue a própria vida. Caminho como erro, caminho errado, sujeito errante.

535
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

roupa cara, mas essa mamata acabou quando ela casou com Miralvo. (HATOUM, 2009, p.
113).

Supomos, portanto, que Porfíria, além de trabalhar como doméstica, trabalhava também
como prostituta. E, pelo trecho acima, também sua voluptuosidade se confirma. Porfíria é quem tem
acesso aos interiores da casa. Ela cozinha e faz a limpeza. Miralvo só tem acesso às áreas externas:
cuida do jardim, faz o supermercado e mora na edícula. Segundo o texto, por ser pessoa honesta,
vira homem de confiança do patrão. Passa então a transportar caixas que deve entregar sem nunca
abrir.
Explicado o conto, percebemos elementos que caem quase como obviedades. Elementos
amplamente significativos nos são entregues nas mãos, nos fazendo antever o que vem.
Porfíria tem um nome por demais peculiar. Nome de patologia, porfíria é uma doença que,
até onde nos interessa saber, impede que seus portadores se exponham ao sol. A condição de um
portador de porfíria é de, indiretamente, esconder-se. Algo interessante a notar é que os portadores
de porfíria, socialmente, sobretudo nas regiões interioranas (para onde vai a nossa Porfíria),
associam os enfermos com lobisomens e vampiros. Pensando em Porfíria (não a doença, mas a
personagem) como uma figura que se toma de licantropia é bastante aceitável e, para ela, não seria
de todo ofensivo. A figura da Loba, segundo Chevalier e Gheerbrant, Ŗé sinônimo de libertinagemŗ
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 555). Para uma mulher que, por um homem, deixa a
vida na cidade e se esconde na selva e que, face a uma grande oportunidade financeira, esbanja o
que tem numa noite em um hotel alegando que Ŗo prazer dura uma noite, mas a lembrança é para
sempreŗ (HATOUM, 2009, p. 118) parece bastante aplicável.
Miralvo tem um nome de fácil assimilação. É aquele que mira. Mirar, cabe lembrar, é ver,
fitar, almejar. Mirar é pertencente ao campo do desejar. Ambos, o ver e o desejar, são quase
complementares. No entanto, Ŗo ver abre todo espaço ao desejo, mas ver não basta ao desejo. O
espaço visível atesta ao mesmo tempo [a] potência de descobrir e [a] impotência de realizar.
Sabemos o quanto pode ser triste o olhar desejante.ŗ (STAROBINSKY, apud NOVAES, 1990, p.
11). Entre potências e impotências, resta saber se Miralvo, além de mirar e desejar, obtém.
O patrão do casal é um cambista. Nada mais claro uma vez que é ele que desencadeia as
mudanças que ocorrerão no conto. Nada mais irônico que tal patrão, notoriamente metido com
ilegalidades, mude-se para Brasília. Temos, logo no começo do conto, um primeiro traço que nos
parece, segundo a ótica de Cícero, uma caso muito atraente de imitatio (cf FURLAN).
No conto, como visto, Miralvo, casa-se com Porfíria. Os dois são, o tempo inteiro, opostos.
Miralvo é o externo, Porfíria o interno. Miralvo é aquele que trouxe a instituição do casamento,
Porfíria é a que mais parecia distante disso, a julgar pela vida que tinha. Miralvo é o que, quando
precisa falar com o Patrão, se acovarda; Porfíria é quem tem a iniciativa. Neste ponto cabe notar
algo que, analisando aqui a contística de Milton, nos remete, mais uma vez, a Machado. Isso porque

as personagens femininas machadianas contribuem para a rasura e a desconstrução da


idealização e essencialização românticas, principalmente se as estudarmos tomando como

536
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

parâmetro os conceitos de símbolo e alegoria desenvolvidos por Walter Benjamin.


(PIETRANI, 2000, p. 17)

Vemos então que a mulher presente em A cidade ilhada, sobretudo Porfíria, é uma mulher
de traços machadianos.
Quando Miralvo começa a fazer entregas, ele é responsável por entregar algo que nunca
conhecera, mas que sempre quis conhecer (entrando aqui novamente a idéia do mirar): um pacote
lacrado. A ordem era muito simples: levar o pacote, entregar, não perguntar nada a ninguém.
ŖMiralvo obedecia, mas apalpava o pacote e fechava os olhos, com ar sonhadorŗ (HATOUM, 2009,
p. 111). Perante um ser de tamanha curiosidade e que, em posse de um pacote nas mãos, é tomado
de violenta curiosidade em abri-lo, vê-se nesse mesmo a figura de Pandora.
Miticamente, Pandora é modelada por Hefesto e recebe artifícios de todos os imortais de
modo a tornar-se irresistível. Então

o pai dos deuses enviou Hermes com o "presente" a Epimeteu. Este se esquecera da
recomendação de Prometeu de jamais receber um presente de Zeus, se desejasse livrar os
homens de uma desgraça. Epimeteu, porém, aceitou-a, e, quando o infortúnio o atingiu, foi
que ele compreendeu. (BRANDÃO, 1986, p. 168)

Pandora, aqui, poderia ser representada por Porfíria, que possui tamanha ousadia, que parece
sempre inebriada de curiosidade e de desejos. Quem deseja, no entanto, é Miralvo. Quem carrega a
caixa? Quem deseja abri-la? E então o patrão, como Prometeu, avisa também a Miralvo: Ŗnunca
abra o pacoteŗ (HATOUM, 2009, p. 111).
É latente o jogo que se estabelece de oposições, dos corpos (dos protagonistas) que, no fim,
independem de gênero. Por mais que seja aqui o Miralvo o homem, ele surge como a Pandora,
figura indubitavelmente feminina. Miralvo, ao se esconder atrás de Porfíria, lembra muito Bento
Santiago (Dom Casmurro), que, podendo, se esconde atrás da mãe, depois, da mulher... e que
carrega sempre em si elementos pretensamente femininos, como a inveja, a curiosidade e sobretudo
a fragilidade.
Quando o patrão vai embora, suas últimas palavras são a Miralvo e ele assim diz Ŗ[c]uida da
tua mulher, rapazŗ (HATOUM, 2009, p. 113). Nesse momento é também o que antecede a mudança
para o Ŗlago do Ubimŗ (HATOUM, 2009, p. 113). Sendo lago, cabe considerar que, segundo
Chevalier & Gheerbrant, Ŗos lagos eram divindades ou moradas dos deusesŗ (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 2007, p. 533). Miralvo, na condição de Pandora, parece ter enfim a caixa nas
mãos. Abrindo-a, Pandora, condena a todos os homens, libertando Ŗtodas as desgraças que
atormentam o homemŗ (BRANDÃO, 1986, p. 164). Miralvo tem no novo emprego um presente que
parece ter vindo dos deuses e a mulher, como aquela que funciona sempre como a concretizadora
dos seus desejos.
O ponto culminante é quando, após o casamento, após a vida a dois e após o anúncio da
mudança, eles, por fim, vão para o interior para o novo emprego. A mudança trará uma mudança

537
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

dos eixos então mantidos. O que antes parecia fixo deixa de ser. Mudam assim as essências.
Modificadas as essências, há uma possibilidade da percepção de si.
Porfíria e Miralvo se mudam para um hotel de selva. Sugestivamente, o hotel se chama New
Horizon (ŖNovo Horizonteŗ , em tradução livre). O novo horizonte Ŗera uma torre de madeira e
vidro à margem do lago do Ubimŗ ( HATOUM, 2009, p. 113). A imagem que se forma, pensando-se
que um lago reflete por ser naturalmente espelhado e que uma torre que o crava, temos montada
metaforicamente a forma de um alvo. Talvez esse o destino de Miralvo.
O hotel é um ambiente repleto de elementos opostos, lembrando as oposições daqueles que
agora vão para lá trabalhar. Toda a exuberância do hotel está imponente no meio da floresta. Os
clientes, quase sempre estrangeiros e muito ricos, contrastam com os funcionários. Os vidros
contrastam com a madeira. O jogo de dualidades vem, então, para se consolidar, uma vez que já
vinha sido anunciado desde as diferenças de Miralvo e Porfíria.
O lago espelhado reflete o céu. As torres de vidro espelham o que nelas se reflete. Em um
momento isolado do conto, o casal vai a um motel, ŖFlor do Paraísoŗ, e lá também há espelhos para
refleti-los.
Segundo Eco, Ŗo espelho é um fenômeno-limiar, que demarca as fronteiras entre o
imaginário e o simbñlicoŗ (ECO, 1989, p. 12). O espelho é, portanto, instância máxima de
simbolização dos personagens. Porfíria, com uma provável licantropia (não efetiva, mas simbólica);
Miralvo, que se esconde atrás do próprio desejo ante o tomar as coisas.
Ao chegarem ao hotel, a realidade se estabelece e logo percebem o quanto são infelizes.
Moram Ŗnuma casinha de madeira no outro lado do lagoŗ (HATOUM, 2009, p. 114). Lá falta a
diversão, as festas de Manaus. Porfíria não é mais tão alegre. De funcionária que compartilhava a
casa por dentro, junto com o patrão, agora limita-se à cozinha. Miralvo, de homem de confiança,
agora dança (lembrando aqui a conotação que a dança tem para algumas culturas, sobretudo para
homens) Ŗcom um cocar de penas de gavião, o peito e o rosto pintados com sumo de urucum, os
pulsos e tornozelos enfeitados com plumas de garça e ararinhaŗ (HATOUM, 2009, p. 114). Nesse
ambiente, Miralvo começa a acovardar-se menos e a mostrar-se mais. Agora o Miralvo que se
ocultava começa a saltar aos olhos. E, uma vez que a dança (agora por ele exercida) Ŗrepresenta a
escala pela qual se realiza e completa a libertaçãoŗ (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p.
319), ele começa a se libertar do que era para ser quem é.
O ambiente que envolve os envolve, agora, como, já dito, é pleno em espelhos. O espelho,
ainda que com seu caráter simbólico, reflete a verdade. O que antes se falseava, agora está
claramente visível. ŖO objeto está ali, causando a imagem, até onde mesmo eu, inicialmente, não a
viaŗ . (ECO, 1989, p. 34). A imagem, portanto, estava presente. Era sñ uma questão de vê-la. Eles
que estão, agora, cercado por espelhos por todos os lados, tudo aquilo que se mantinha velado tem
por fim a plena capacidade de reconhecer-se e fazer-se visto.
O ponto culminante da total percepção de Miralvo para si e de desnudamento ante ao leitor é
quando ele vai à mata em busca da caça.

538
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A caça é, simbolicamente, uma busca. Miralvo vai em busca da caça, uma paca, mas acaba
por caçar uma cobra. Miralvo vai em busca de um animal pequeno e inofensivo, adequado à
alimentação e encontra uma cobra. A cobra Ŗencarna psique inferior, o psiquismo obscuro, o que é
raro, incompreensível, misteriosoŗ (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 814). Por fim,
Miralvo traça um encontro consigo.
Miralvo não mata a cobra simplesmente. Tomado pela fúria, golpeia o animal na cabeça,
agride com pauladas a mandíbula já ferida. Não sendo o bastante, fura-lhe os olhos (deixando o
animal, que na verdade é ele, propositalmente cego num possível desejo de não ver o que era) e
termina decepando-lhe a cabeça. Todo um requinte de crueldade surge de um homem que mal tinha
coragem de encarar o próprio patrão
Ao encontrar a cobra, Miralvo encontra de fato a paca que procurava. Mais que a paca,
encontra outras coisas. Encontra dois sapos apodrecidos (sapos esses, ele e Porfíria, numa alusão a
idéia de não-nobreza de um casal e da podridão que eles se encontram), cinco pulseiras de plástico
(sendo o cinco um número nupcial), uma boneca sem cabeça (referente ao futuro que eles não terão)
e o mais importante de tudo: uma carteira de couro, cheia de dólares dentro. Nesse último objeto
encontrado, contrariando a pobreza e podridão de tudo que veio antes, é tudo muito legítimo, tudo
muito valioso. Pela primeira vez no conto estão em posse de algo genuinamente precioso. Miralvo,
em posse de dinheiro em grande quantia, passa a ser o doleiro a quem tanto serviu; passa a se sentir
na condição do patrão.
Naquela noite, a dança é mais exagerada, Miralvo pula como animal e ao ser questionado,
ironiza: Ŗdança é coisa sériaŗ (HATOUM, 2009, p. 117). Vê-se neste conto a cena de outro, quando
Ŗmáscaras, cocares e colares eram lançados para o alto e caíam no chãoŗ (HATOUM, 2009, p. 41).
Miralvo aqui é um selvagem.
Ao contar a Porfíria sobre o dinheiro surge a dúvida quanto ao que fazer. Miralvo agora
parece decido, parece disposto a convencer Porfíria. Ele quer um sítio1 e um motor. A lupanária
Porfíria quer uma noite no hotel, quer não ser empregada. Quer ser tratada como hóspede, quer
dormir nos lençóis caros, quer usufruir do prazer que aquele dinheiro possa trazer. Miralvo então,
que tende sempre a esconder-se atrás de Porfíria, e que tem nela seus desejos projetados 2, cede a
Porfíria. O que poderia haver nos quartos? O que poderia haver no hotel, em que ele só entrava pra
dançar? Aquela também uma caixa de Pandora?
Decidem pelo hotel. Uma noite apenas, mas sendo tratados como reis. Na véspera, vão a
Manaus, no ŖBarateiro dos Educandosŗ . Compram roupas, maquiagens. Estão prontos para cobrir-
se, camuflar-se. Podem, enfim, ocultar a própria face do que são para poderem apresentar-se como
outros, para usufruírem da felicidade que não é deles. A data escolhida foi 15 de Novembro (dia em

1
Ŗ[A] casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em pazŗ (BACHELARD, 2008, p. 26)
2
Fazendo aqui as vezes não mais de Pandora, mas de Epimeteu, deixando que recaia sobre Pandora a culpa de abrir a
caixa.

539
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

que se comemora a Proclamação da República, quando o Brasil enfim se liberta da Monarquia1) e


naquela noite estavam para ver o show de Colombianos, para dançar na noite.
Dançam agarrados, muito mais que a noite inteira, na noite inteira. Porfíria toma Miralvo
pela cintura e o conduz. Todos se recolhem, mas eles permanecem. ŖQuando o lago escureceu mais
que o céu, os músicos anunciaram um bolero para o casal bailar apechugadoŗ (HATOUM, 2009, p.
119). A música que os embala é exatamente o que significa aquele instante para eles: toda una vida
(HATOUM, 2009, p. 119). A noite, segundo o prñprio texto, Ŗteimava não ter fimŗ (HATOUM,
2009, p. 119). Mas é claro que uma hora teria, mas é claro que tudo voltaria a ser como antes. Eles
estão, enquanto dançam, do lado de dentro do espelho. No entanto a alma deles não está dentro, mas
está fora; Ŗa alma é o lado claro do espelhoŗ (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 396), a
alma é o dia, é onde eles não estão. O espelho Ŗnão transforma a natureza, mas comporta um certo
aspecto de ilusãoŗ (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, p. 394). A ilusão se desfaz. A alma,
aqui sendo sua essência, voltará a ser o que são. Restará então, agora como lugar, não a noite 2, mas
o que em Milton é lugar sempre: o passado, resgatado pela memória para se fazer presentificado.

Referências bibliográficas

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 242 p.

BRANDÃO, J. Mitologia grega. Rio de Janeiro: Vozes, 1986. 419 p. Vol.I

CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos,


formas, figuras, cores, números). Trad. de Vera da Costa e Silva e outros. 23 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2009. 996 p.

ECO, U. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. 345 p.

FURLAN, M. Brevíssima história da teoria da tradução no ocidente. Disponível em :


http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/viewFile/5881/5561. Acesso: junho de
2010.

HATOUM, Milton. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 125 p.

LIMA L. A ilha flutuante. In: PINHEIRO, M. Arquitetura da Memória. Manaus: EDUA, 2007. 384
p.

NOVAES, A. O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 503 p.

PIETRANI, A. O enigma mulher no universo masculino machadiano. Niterói: EdUFF, 2000. 136 p.

SAMPAIO, A. Personagens em trânsito, espaços subjetivos e intertextos em ―A cidade ilhada‖, de


Milton Hatoum. Disponível em: http://litebrasil.blogspot.com/2009/04/personagens-em-transito-
espacos.html. Acesso: junho de 2010.

1
Aqui mais uma referência a Machado, que tanto tratou de questões de Monarquia e República.
2
Referindo-se ao título, Dançarinos na última noite, em que a noite é espaço e não tempo.
540
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

GENJI MONOGATARI Ŕ O PATRIMÔNIO DA LITERATURA DO JAPÃO

Linda Midori Tsuji Nishikido (UFAM)

Resumo: ŖA histñria de Genjiŗ (Genji Monogatari) é um romance considerado patrimônio da


literatura do Japão, pois tem seu registro no início do século XI, no período denominado Heian. Foi
escrito por uma mulher de nome Murasaki Shikibu, numa época em que exercer a arte literária era
privilégio dos homens. Muitos estudiosos classificam esta obra como sendo o primeiro romance do
mundo em termos de extensão, tendo em vista que o seu enredo distribui-se em 54 capítulos.

Desta forma, a viagem a um passado tão longínquo através do estudo deste romance, bem
como da autora, possibilitam uma aproximação a um mundo literário que, apesar de distante no
tempo e no espaço, mostra-se tão semelhante ao nosso, na medida em que se constitui também um
valioso testemunho da história do Japão.

Palavras-chave: Genji. Heian. Murasaki Shikibu.

Abstract:"The story of Genjiŗ (Genji Monogatari) is a novel considered patrimony of Japanřs


Literature, because it had been recorded in early eleventh century, known as the Heian period. It
was written by a woman named Murasaki Shikibu, in the time that practicing literary art was a
privilege of men. Many scholars classify this work as the first novel in the world in terms of
extension, given that its plot is split into 54 chapters. Thus, the journey to a distant past as through
the study of this novel and the author, provide an approach to a literary world that, although distant
in time and space, it seems to be very similar to ours, as it is also a valuable witness to the history of
Japan.

Key words: Genji. Heian. Murasaki Shikibu.

1. Introdução

Para entender o romance Genji Monogatari, necessário se faz conhecer um pouco da história
do período Heian, em que foi escrita esta obra, considerada por muitos estudiosos e pesquisadores
ocidentais como um dos romances mais antigos da história literária. É importante pontuar,
sobretudo, o relato cotidiano da vida social da nobreza, pois o enredo desta obra está centrado em
torno dos acontecimentos pessoais não registrados nos livros didáticos de história do Japão. Este
romance foi traduzido pela primeira vez por Arthur Waley1 em 1921 e divulgado em toda a Europa
Ocidental.

1
Famoso orientalista e sinologista inglês.

541
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010
きょくとう きゅうてい
Ŗ...「源氏物語」は、十一世紀のはじめに極 東 の一王国の宮 廷
きんだい こうろうむ
に出現したふる物語の一つにすぎないにかかわらず、近代の「紅楼夢」や
ひ しじょうゆびおり
プルースト1やジイド2に比せられ、今日世界小説史上指折の大作として
きちょうし
貴重視

されている。で、アーサーウェリー博士の英訳のごとき内外の学者にとか
ひひょう おうべい あいどく
くの批評がないではないが、ひろく欧米人に愛読
な こ く
せられ、今や英文学の古典とさえなりつつあるのである。そして名国
じゅうやく げんみつ ちょくせつやく こころ
にその重 訳 、また英訳にあきたらずして、より厳密な直接訳も 試
ふきゅう
みられつつあって、その世界的普及
せいおうぶんがく
もそんなに遠い将来ではないのである。 また、この物語の西欧文学

への影響も、イギリスではすでに、ヴァージニア ウルフ
3
その他にあらわれているし、また、フランスでは、この物語の作者の紫式
か げ き
部を主人公とした歌劇

も書かれているが、いっぽう中国の銭稲孫氏、ソ連のコンラッド博士
きょうじゅ
4
、ドイツのベンル教 授 、フランスのアグノエル教授、英国のモリス博士
し ん し
5
など、いずれもこの物語に長年興味をもって、真摯
か ち
に専門的な研究をしておられ、「源氏物語」のほんとうの価値

が世界に知られてくるのは、これからだと思われる。(岡、1982年、
11ページ)6

2. Período Heian

1
Marcel Proust(1871-1922), escritor francês, conhecido com a obra À la recherche du temps perdu (ŖEm busca do
tempo perdidoŗ ).
2
André Gide (1869-1947), escritor francês, recebeu Prêmio Nobel de Literatura em 1947.
3
Virginia Wolf (1882-1941), romancista inglesa, escreveu The Voyage Out (A viagem).
4
Joseph Conrad (1857-1924), escritor inglês, nascido na Polônia sob domínio Russo, escreveu Heart of Dakness
(Coração das Trevas).
5
Ivan Morris(1925-1976), escritor e professor britânico, estudioso de assuntos relacionados ao Japão.
6
ŖGenji Monogatari, apesar de ser uma simples história que surgiu no início do Século XI, tendo como palco o Império
de um país do extremo oriente, é comparado com as obras literárias da era moderna tais como a obra Kouroumu
(ŖSonhoŗ) , a de Marcel Proust e a de André Gide e hoje é tido como uma das obras mais importantes da literatura
mundial. Existe a análise crítica dos estudiosos tais como podemos constatar pela tradução em inglês, do PhD Arthur
Waley, no entanto é uma obra amplamente lida e adorada pelos leitores euro-americanos que atualmente até está se
tornando como clássica da literatura inglesa e que está tentando até uma tradução direta da obra em língua inglesa,
acreditando-se que a sua difusão mundial seja de um futuro breve. Por outro lado, a influência desta obra à literatura
ocidental é notória pois, já se tem na Inglaterra vários outros escritores como Virginia Wolf, e na França existem até
musical tendo como a personagem principal a autora desta obra, Murasaki Shikibu. Os pesquisadores tais como Joseph
Conrad, da Rússia, Oscar Benl da Alemanha, Agnoel da França, Morris da Inglaterra, têm efetuado por longo período
uma pesquisa específica e aprofundada. Desta forma acredita-se que o verdadeiro valor e reconhecimento a ser
alcançado no âmbito da literatura mundial ainda estão por vir. (OKA, 1982, p. 11). Tradução: Ken Nishikido, tradutor
ad hoc de idioma japonês, JUCEA no. 003/ 2002.

542
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A era Heian (794 Ŕ 1185) foi um dos períodos mais longos da história do Japão, com
duração de aproximadamente 400 anos de dinastia. Neste período, a capital foi transferida de Nara
para Kyoto para enfraquecer o poder da classe eclesiástica da dinastia anterior, Nara. O imperador
da época, Kanmu, tenta reformular a lei política centralizadora, mas o comando político acaba
sendo dominado pela família dos nobres Fujiwara. Foi nesta época em que a cultura nacional de
modo geral principiou e prosperou, visto que houve a ruptura das relações diplomáticas entre Japão
e China e consequentemente o declínio da influência chinesa sob todos os aspectos. Assim como
houve o desenvolvimento da arte como pintura e escultura, incentivada pelo pensamento de Kukai,
budista que trouxe da China inovações religiosas voltadas à arte fundando em 828 a primeira
instituição educacional religiosa do Japão, a literatura nacional especialmente a desenvolvidas por
mulheres, foi intensamente difundida no meio social por parte da nobreza. O que favoreceu o
desenvolvimento da arte literária pelas mulheres foi a criação pelos monges budistas da escrita
Kana1, o kanamoji, de uso exclusivo, a princípio, pelas mulheres. Dentre elas, destacam-se duas
mulheres: Murasaki Shikibu, com as obras Genji Monogatari e Murasaki Shikibu nikki, 2e
Seishounagon,3 com a obra Makura no Soshi4.

「平安時代は、平安京(京都)に都をうつしてから約四百年もつづ
せんと さいけん
いた長い時代です。桓武天皇は、遷都によって律令政治の再建
ぜんせいじだい
をはかなりますが、結局、藤原氏を中心とする貴族の政治の全盛時代

となります。

ぜんせいき けんとうし は い し
また、この時代は貴族文化の全盛期でもあります。遣唐使を廃止
こくふう
してから、日本的な文化―国風

文化が花開きました。」(高山、1993、87ページ)5

De toda a era Heian, destaca-se, dentre os nobres da família Fujiwara, o comando de


Michinaga Fujiwara, descendente de Nakatomi no Kamatari, por seu grande poder político exercido
sobre o reino. A família Fujiwara vivia no imenso palácio onde não raro eram presenciados
festivais como de Hinamatsuri, Tanabata que até nos dias atuais são comemorados. Na literatura
desenvolveu-se a composição de poesias Waka6 presentes no romance História de Genji, num total

1
Representação fonética derivada do kanji, ideograma chinês.
2
Diário de Murasaki Shikibu.
3
Escritora que serviu como dama de companhia no reino antes de Murasaki Shikibu.
4
Livro de Cabeceira.
5
ŖPeríodo Heian foi uma longa era que continuou por mais de 400 anos, após ter sido transferida a sede do
governo Imperial para Heian Kyou (hoje Kyoto). Com esta transferência, o Imperador Kanmu tentou a
reestruturação político-governamental, no entanto acabou sujeito à centralização governamental da nobreza,
esta comandada pela família Fujiwara. Por outro lado, este período pode ser chamado de era áurea da
nobreza, pois após a extinção do intercâmbio diplomático no sentido de enviar os emissários para a China,
floresce a era da cultura tipicamente japonesa.ŗ (TAKAYAMA, 1993, p. 87). Tradução: Ken Nishikido,
tradutor ad hoc de idioma japonês, JUCEA nº. 003/ 2002.
6
Poema japonês composto de 31 sílabas.

543
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

de 800 poesias interpostas. Além disso, foram apresentados, através de desenhos estilo Yamato, o
cotidiano dos nobres, o vestuário típico das princesas chamado Juuni Hitoe 1(十二単)e todo um
movimento inacessível aos olhos da população da época. É imprescindível ressaltar que o povo
japonês, de modo geral agricultores, vivia em completa penúria.

Assim, enquanto a nobreza desfrutava de festas e prazeres, surgiam agricultores influentes


em cada região que passaram a tomar posse das glebas e formar feudos. Havia também, por outro
lado, alguns funcionários de alto escalão da corte que, aproveitando o seu grau de poder,
surrupiavam bens e riquezas para o benefício próprio.

Os dirigentes de cada gleba, para não perderem seus feudos, aprenderam a lutar e se
defender, resultando no surgimento de Bushi, popularmente conhecido como samurais, dos quais os
mais ilustres eram selecionados para servir ao reino e à nobreza, destacando-se entre eles o
Minamoto Yoritomo ou Genji2 e Heishi. O Clã Heishi tinha um comando centralizado por Taira no
Kiyomori ,3 que inicialmente abafa Minamoto levando em declínio a família Fujiwara e assumindo
o poder político no lugar deste. Entretanto, os samurais e os descendentes restantes de Fujiwara,
insatisfeitos, provocam uma revolução comandado por Minamoto. Este, porém, perde a batalha e,
aos 34 anos, vai ser extraditado para uma região interiorana chamada Izu, atual província de
Shizuoka. Lá juntamente com outros chefes de clã e samurais se armam e retornam com força total,
derrotando o clã Heishi, que foi deslocado para a região oeste do Japão, onde a última batalha foi
travada em 1185, marcando o final da era Heian.

3. Biografia da autora Murasaki Shikibu (973-1014)

Murasaki Shikibu é um pseudônimo em que ŖMurasakiŗ está relacionada à cor lilás e


ŖShikibuŗ , a uma categoria ministerial que tratava de assuntos referentes ao cerimonial da corte.
Não se sabe ao certo o nome verdadeiro da escritora, tendo em vista que no Japão Heian era
considerado falta de modos registrar nomes de damas da nobreza, exceto cônjuges imperiais e
princesas de sangue.

Não se tem uma data exata de seu nascimento e falecimento, mas acredita-se que tenha
nascido no ano de 973 e falecido em fevereiro de 1014, com 42 anos para a contagem de idade no
Japão e 41 anos para o mundo ocidental. Filha de Tametoki Fujiwara, um poeta estudioso da língua
chinesa, Murasaki casou-se com Nobutaka Fujiwara em 999 e da união teve uma filha. Em 1001,
quando seu marido falece, ela inicia os seus escritos de Genji Monogatari. Em 1004 é convidada

1
Vestuário feminino constituída de 12 peças.
2
Coincidência de nome, não havendo nenhuma relação com o personagem de Genji Monogatari.
3
Personagem histórica do período Heian, um dos chefes do clã Heishi.

544
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

para ser a dama de companhia da esposa do Imperador, Ichijo Soshi, filha do chanceler Michinaga
はくしぶんしゅう
Fujiwara, com a função de ensinar arte literária como o 白氏文集 (Hakushi Bunshu)1

Segundo o pesquisador e escritor Kazuo Oka, após a conclusão da obra Genji Monogatari,
aproximadamente em 1008, esta foi lida ao Imperador pela dama de companhia. Sua Majestade, o
Imperador Ichijo, manifestou admiração sobre a sua genialidade quanto ao domínio da obra literária
tradicional do Japão e a elogiou da seguinte maneira:

に ほ ん き ざえ
「この人は日本記をこそみたるべけれ、まことに才あるべし。」2(OKA, 1982, p.11)

Murasaki Shikibu, aproveitando a convivência diária com as pessoas da corte, passa a


escrever, de 1008 a 1010, um diário denominado Diário de Murasaki, relatando nesta obra detalhes
dos acontecimentos da vida social cotidiana da nobreza.

4. A obra

Segundo Edward G. Seidensticker3, a História de Genji, embora levante suspeitas a respeito


de todos os capítulos serem atribuídos a apenas uma pessoa, principalmente os capítulos finais
Takekawa e os dois anteriores, ambos bastante curtos, trata-se de uma obra escrita pela dama da
corte Murasaki Shikibu. Mesmo que o romance tenha sofrido acréscimos durante os dois séculos
seguintes, não chega a ser suficiente para alterar a história original. A obra é composta de 54
capítulos, descrevendo a vida da corte de um Japão da era Heian, representado pelo personagem
principal Hikaru Genji.
ŖAt least one chapter, ŖBam boo Riverŗ , is widely thought to be spurious, and the two
preceding chapters, both short, are also suspect.ŗ 4 (SEIDENSTICKER, 1976, p.7)

5. Enredo sinótico

O romance Genji Monogatari ou História de Genji inicia o capítulo com a história de


Kiritsubo, mãe de Hikaru Genji, que é enviada à corte para servir ao príncipe Kiritsubo tei. Uma
jovem linda, com uma beleza reluzente, contudo efêmera, pois muito jovem transcendeu para o
outro plano. Viveu somente para o seu amor e este mesmo amor levou-a ao seu eterno descanso. O
seu primeiro encontro com o fidalgo foi por acaso ao anoitecer e este, ao vê-la, se apaixona

1
Coletânea de textos e poemas do poeta chinês Hakushi, da dinastia Tang.
2
ŖPode-se comprovar que esta pessoa é detentora de profundo conhecimento em se tratando de registro histórico do
Japãoŗ (Tradução nossa.)
3
Nasceu em 1921(Colorado-EUA) e faleceu em 2007. Era um estudioso sobre o Japão, ficou conhecido pelo seu
trabalho de tradução da literatura japonesa Genji Monogatari.
4
Pelo menos um capítulo, Rio de Bambu, muitos estudiosos acreditam não ser original e os dois capítulos anteriores
também são suspeitos, pois ambos são curtos.

545
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

perdidamente. Nomeia-a Kiritsubo. Descobre o seu recinto e passa a enviar muitos presentes todos
os dias, até que um dia visita-a no seu aposento para a primeira noite de amor, permanecendo,
entretanto, no anonimato, para não fazê-la sofrer, pois além de ter uma esposa legítima, era a
autoridade suprema da nobreza. Kiritsubo entrega-se inteiramente ao desconhecido, pois seu amor
também era imenso a ponto de viver intensamente cada momento, de amar e ser amada, não
importando a identidade dele. Os encontros continuaram mesmo depois de a verdade vir à tona,
muitas vezes ela sofrendo humilhações e ciúmes das demais esposas. Engravida e dá à luz um
menino que passa a ser chamado de Hikaru Genji. Kiritsubo é acometida por uma doença e morre
muito jovem, deixando o menino Genji de três anos aos cuidados da avó. Ele permanece lá até aos
seis anos, quando perde a sua avó. Ele é levado para a corte para receber uma educação digna de um
nobre.
Na corte, Genji, aos nove anos, é entregue aos cuidados de uma jovem chamada Fujitsubo,
uma das esposas de seu pai. Ela tinha quatorze anos, cinco anos mais velha que ele e, segundo
outras serviçais próximas, muito parecida com Kiritsubo, mãe de Genji. O afeto que ambos sentem
é muito forte e Genji passa a idealizar através da madrasta a imagem de sua mãe, de uma irmã mais
velha, transformando posteriormente esse sentimento em amor carnal.
Genji a cada dia vai se tornando um jovem adolescente muito bonito, uma beleza capaz de
fazer suspirar mulheres de todas as idades, que além das virtudes nas artes e nos conhecimentos
gerais; sua postura educada, digna de um nobre, é comentário não raro em todo reino. O pai,
suspeitando da amizade do filho com a sua esposa, Fujitsubo, decide submetê-lo à cerimônia de
maioridade aos 12 anos. Genji fica contrariado com o anúncio, pois sabe-se que não poderá, a partir
daquele momento, continuar próximo de Fujitsubo. Neste cerimonial é apresentada uma esposa, a
princesa Aoi, filha de um nobre de alto escalão, quatro anos mais velha. Fujitsubo fica entristecida,
mas ao mesmo tempo aliviada, pois, da mesma forma que ele, alimentava um sentimento de amor
profundo.

Genji tenta esquecer Fujitsubo, mas a frieza com que é tratado pela sua esposa Aoi o leva a
conhecer várias outras mulheres, todas lindas, porém comparando todas elas a Fujitsubo. Entre elas
está Rokujou no Miyasudokoro, uma senhora culta, conhecedora profunda de kanamoji; depois se
apaixona por Yuugao, jovem muito fraca, mas encantadora aos olhos de Genji, pois o que ela deseja
é apenas estar junto e ser feliz.

A ausência de Genji no recinto de Rokujou no Miyasudokoro a deixa muito enciumada a


ponto de transmitir ódio através de pensamento, um poder incontrolável de lançar cargas negativas
a outrem, levando à morte de Yuugao. Genji fica depressivo e vai para uma vila no interior fazer
uma reflexão. Lá ele conhece uma jovem de dez anos, peralta e muito esperta, que faz lembrar a sua
madrasta Fujitsubo. Ele a nomeia de Murasaki no Kimi. Descobre posteriormente que a menina é
sobrinha de Fujitsubo.

546
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Na visita ao palácio de seu pai, Genji descobre que Fujitsubo vai para casa do seu
irmão, pai de Murasaki, e então vai forçar um encontro. Fujitsubo finalmente confessa que o ama e
eles se entregam perdidamente, esquecendo-se do mundo que os cerca.
Nesse ínterim, morre a avó da pequena Murasaki no Kimi, que fica sem lar, pois o
pai (que é irmão de Fujitsubo) não pode adotá-la para não contrariar a sua esposa legítima. Genji,
então, assume-a para criá-la, levando-a para um dos palácios da corte denominado nijou no ie
(二条の家). Murasaki é educada como filha da nobreza, aprendendo todos os comportamentos e
artes culturais da época, como Waka, muito em voga neste período.

Fujitsubo fica grávida e sofre muito, pois tem a certeza de que a criança não é de Kiritsubo
Tei, seu marido, mas do filho deste. Ao nascer, o pai pede para Genji cuidar dele como se fosse seu
filho.

Genji continua com seus casos, agora com Roku no Kimi, a esposa de seu irmão Hitsugui no
Miko, princesa de um ministro da corte, passando a chamá-la de Oborozukiyo no Kimi. Os pais de
Roku no Kimi descobrem o caso e ficam revoltados, mas o irmão de Genji a perdoa, deixando-a
bastante constrangida. Para Hitsugui, a esposa é chamada de Kan no Kimi. Nesse ínterim, Genji
fica contente ao saber que sua esposa legítima, Aoi, vai lhe dar um filho.
Quando sua filha adotiva, Murasaki no Kimi, completa 15 anos, Genji a desposa por fazê-lo
lembrar-se de sua madrasta, Fujitsubo.
Enquanto isso, o pai de Genji é acometido por uma doença grave e antes de morrer pede
perdão a Fujitsubo, deixando-a intrigada. Em meio a sofrimento e culpa, ela decide se retirar ao
monastério para ser sacerdotisa. Genji, por sua vez, se desespera, pois sabe que irá perder para
sempre o amor de sua vida. Desesperadamente, passa a se relacionar com várias damas novamente.
Dentre elas, Hanachiru Sato no Kimi, jovem não muito bonita, mas de boa índole. Mesmo assim, a
imagem de sua madrasta permanece constante em sua vida, o que o leva a embrenhar-se no interior
para fazer uma reflexão. Lá ele recebe a aparição de seu pai, que lhe pede para voltar à capital.
Contudo, no caminho de volta há uma tempestade que, segundo os povos da aldeia, é um feito de
Deus chamado Sumiyoshi e o seu barco é levado para uma pequena vila chamada Akashi, onde
conhece uma jovem muito linda, Akashi no Kimi, que vai lhe conceber uma filha, posteriormente
educada pela Murasaki. Enquanto isso, no reino, o irmão de Genji, Hitsugui no Miko, está com
problema de visão e pede-lhe para voltar ao reino e assumir o trono.
Após três anos em Akashi, Genji volta finalmente à capital, recebido com uma grande festa
na corte e tem o reencontro fraterno com Murasaki. O filho mais velho vai completar maioridade
aos doze anos.

Genji, mesmo tendo um amor estável com Murasaki, está sempre em busca de uma mulher
ideal, continuando com casos novos de amores: Utsusemi no Kimi, a amante de seu pai; Asagao no
Hime, linda como a flor que abre pela manhã. Adota também Umetsubo, filha de sua ex-amante
Rokujou no Miyasudokoro e a filha ilegítima do amigo, Tamakazura no Kimi, sempre com

547
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

segundas intenções. Mesmo assim, Murasaki ama-o em silêncio, ciente de tudo, pois Genji revela
todos os perfis de seus amores à amada.

Todavia, quando Genji resolve oficializar o seu casamento com uma princesa bem jovem
chamada San no Miya, Murasaki fica muito entristecida e enferma a tal ponto que manifesta o seu
desejo de retirar-se ao monastério, a única luz de salvação naquele momento. Genji não admite tal
atitude, pois representava a renúncia à vida conjugal e social.

O amigo de seu filho, Kashiwagi, aproveitando a ausência de Genji, que passou mais tempo
a cuidar de Murasaki, faz visita frequente ao recinto de San no Miya, resultando com isso uma
gravidez indesejada. Genji descobre a verdade e fica indignado, mas vem à consciência o seu
romance com Fujitsubo, esposa de seu pai. É como uma repetição de um filme, mas agora como
personagem passivo.

Por outro lado, a doença de Murasaki agrava e, para tristeza de muitos, ela transcende para
outra vida. Tarde demais, quando ele percebe a importância da sua companheira, que sempre esteve
ao seu lado, tolerando todas as suas aventuras, aquela que foi filha, esposa, mãe e amante. A perda
imensurável da companheira leva Genji a abandonar tudo e tornar-se um monge, dedicando o
restante de sua vida à espiritualidade, retirando-se em um monastério.

6. Genji Monogatari x história do japão

やすひこ
Segundo Murai Yasuhiko1,(村井康彦), o personagem principal do romance História de

Genji, Hikaru Genji, está inspirado na vida de um dos poderosos fidalgos da era Heian, Michinaga
Fujiwara, descendente de Clã Fujiwara, que administrou e comandou o reino durante o início do
período Heian. Genji muitas vezes é confundido com a vida pessoal de Michinaga Fujiwara não
apenas com relação a casos amorosos com várias damas da época, mas inclusive à trajetória política
percorrida por este fidalgo. Sendo filhos de esposas não legítimas, as possibilidades de Michinaga,
assim como de Genji, ansiar um cargo representativo tornavam-se remotas. Mas a morte dos irmãos
para Michinaga e a doença do irmão para Genji resultam um posto hierárquico elevado na corte.

De acordo com A Chronogical Dictionary of Japanese History, Michinaga, após a morte dos
dois irmãos em 995, consegue o posto alto no Ministério. Em 996, deporta o sobrinho e se torna
Ministro, além de casar a filha com o Imperador Ichijo. Em 1016, vinte anos depois do seu cargo
como Ministro, chega a ser procurador e tutor do imperador. Em 1017 repassa o posto para o filho
Yorimichi e se torna Daijo Daijin2. Posteriormente assume o cargo que pode ser hoje comparado ao
Primeiro Ministro do Estado. Em 1018, casa a segunda filha com o herdeiro do imperador Ichijo.
Com todos esses feitos, chega a cantar o seguinte verso:

1
Autor com o tema Era de Michinaga, da coleção História do Japão, Heian Kizoku. Volume 4. (p. 110~115).
2
Chanceler do reino.

548
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

「この世をば、わが世とぞ思ふ、望月のかたけることのなしと思へば。」1

No entanto, em 1919, é acometido por uma doença pulmonar ocasionando um estado de


meditação profunda, o que o leva a ser sacerdote no mosteiro. A trajetória de Hikaru Genji é
comparável do mesmo modo, pois, além de todos esses atributos, ele também teve uma filha que se
casou com o imperador e filhos que tiveram postos louváveis no reino.

Por outro lado, o conto nos proporciona particularidades não relatadas na história estudadas
em salas de aula, trazendo à tona a vida cotidiana da nobreza de forma aberta e detalhada,
retratando casos de amores, paixões e traições inimagináveis numa sociedade tão cheia de
formalidades, onde o falar com as damas realizava-se sob a proteção de cortinas e aos olhos de
damas de companhias. As damas, além do uso de trajes com doze peças, o chamado Juuni Hitoe,
mantinham os cabelos sempre longos, exceto quando abandonavam a vida conjugal para servir à
espiritualidade.

Segundo Shin Ichiro Nakamura, essa liberdade de expressão social no período Heian,
manifestada através da arte literária, está fundamentada na corrente ideológica do período, em que o
relacionamento conjugal apresentava-se imprescindível para a saúde humana. Existia no palácio
いしんほう
uma instituição médica, contendo uma enciclopédia denominada de Ishin hou 2「医心方」, que,

dentre inúmeras receitas e curas, citava a importância do relacionamento carnal com várias
parceiras como fonte de saúde, haja vista a troca de energia entre cargas opostas fortalecer tanto o
homem quanto a mulher, independente de amor ou algum sentimento.

いしんほう あや
「今、証処としてあげた「医心方」という医学書は怪

しげな本ではなく、当時の最高の医学書であり、それは中国古代の様々の
医学古典からの引用によって成立しているもので、それは、宮中の医学の
専門の役所(今日でいえば大学病院)に保存されて、実際の治療の指針と
なっていた。」3 (NAKAMURA, 1978, p.155)

7. Considerações finais

Pode-se observar, portanto, que Genji Monogatari, na figura do personagem principal,


Hikaru Genji, é um romance com um profundo conflito psicológico, levantando questões tais como

1
ŖTudo que existe nesse mundo parece ser meu e estou satisfeito por inteiro, que nem a lua cheia.ŗ (Tradução: Ken
Nishikido, tradutor ad hoc de idioma japonês, JUCEA no. 003/ 2002).
2
Segundo Grande Dicionário da Língua japonesa, é a enciclopédia mais antiga do Japão, contendo 30 volumes;
elaborado por Tanba Yasuyori que transcreveu da enciclopédia medicinal, de Zui/ Tou (hoje China), dados medicinais
identificados por tipo de enfermidades, concluída em 984. (Tradução: Ken Nishikido, tradutor ad hoc de idioma
japonês, JUCEA no. 003/ 2002).
3
Hoje, não se tem dúvida de que a enciclopédia de Medicina Ishin hou foi tida como o livro máximo de medicina da
época, cujo conteúdo estava baseado nos livros de medicina clássica da China, encontrando-se guardada na instituição
imperial no departamento especializado em medicina (hoje comparável a uma faculdade de medicina), como livro de

549
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

o existencialismo e a busca da própria identidade, numa sociedade poligâmica, onde o homem tinha
muitos direitos e a mulher era totalmente submissa, inclusive sem opção do parceiro para o amor,
sendo muitas vezes, na nossa visão moderna, tratada como objetos para serem manipulados pelos
pais para interesses próprios. Por outro lado, levando em conta o fato de haver casamentos por
conveniência, os jovens estavam sempre à procura de um verdadeiro amor, tendendo a casos de
traição e paixão proibida. Genji representa esse personagem marcante que se relaciona com várias
damas, à procura de uma identidade, perdida quando morre a sua mãe, sua avó e posteriormente a
sua madrasta, que ele imagina ser a mulher ideal em sua vida.

Se compararmos o romance com a civilização do mundo ocidental, fica evidente que a


verossimilhança com relação às histórias de amor, paixão, conflitos pessoais e sociais independem
de fatores como o lugar, o nível social, as raças, a época, as línguas etc.

Enfim, trata-se de uma combinação perfeita entre literatura e história para descrever e
rememorar épocas tão longínquas, permitindo inserir o leitor num contexto social de
aproximadamente mil anos passados, buscando, junto com os personagens, a própria identificação
na obra, através do processo de verossimilhança e catarse.

8. Referências bibliográficas

IKEDA Kazuhide. A History of Japan (Nihon no Rekishi). Heian Kizoku. Volume 4. 1978.
Editora Kenshu.Tokyo. Japão.

MICHAELIS: Dicionário prático japonês-português / coordenação: Katsunori Wakisaka. 2006.


São Paulo.SP.

OKA, Kazuo. Genji Monogatari - Interpretação e Gramática. 1ª. Edição 1982. Reedição 1990.
Editora Obunsha. Tokyo, Japão.

SASAKI, Tsuyoshi. IWATA, Kazuhiko. HASEGAWA, Akihide e mais 40 colaboradores.


Sociedade Moderna 6ª.série, 1º. Ano(Atarashii Shakai Roku Ue) 1ª.Edição 2004. Reedição 2010.
Tokyo, Japão.

SEIDENSTICKER. Edward G. The Tale of Genji.1978. Editora Alfred A. Knopf, Inc.

SHIIYA, Mitsunori, TAKAYAMA Hiroyuki. A chronological Dictionary of Japanese History.


Editora Shogakukan. 1993. Tokyo. Japão.

UMEZAO, Tadao. KINDAICHI, Haruhiko. SAKAKURA, Atsuyoshi. HINOHARA, Shigeaki.


Grande Dicionário de Língua Japonesa (Nihongo Daijiten). Editora Kodansha.1989.Tokyo,
Japão.

práticas para tratamentos de enfermidades. (NAKAMURA, 1978, p.155). Tradução: Ken Nishikido, tradutor ad hoc de
idioma japonês, JUCEA no. 003/ 2002.
550
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

YAMATO, Waki. The Tale of Genji, Asaki Yumemishi. 2008. Editora Kodansha. Tokyo, Japão.

551
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

IMAGINÁRIO AMAZÔNICO EM MONOTEMATICIDADE FLORESTÂNICA

Luciana Marino do Nascimento (UFAC)1

Resumo: Pretende-se mostrar nesta comunicação que para além de um discurso hegemônico, outros
discursos convivem no interior da sociedade, nos mostrando que não só de imagens da floresta ou
de elementos da culinária vive a Amazônia, mas também do questionamento dessas imagens, como
é caso da canção ŖMonotematicidade florestânicaŗ , do músico acreano Aarão Prado.

Palavras-chave: Amazônia, canção popular, imaginário.

A linguagem nomeia o mundo e participa da construção da realidade. É por meio da


linguagem que se constroem imagens de terra e povos. E foi através da linguagem que se instaurou
no imaginário social, a imagem do paraíso terrestre nos representação do Brasil, na sua colonização
e como estratégia do português para o povoamento da terra. Algumas imagens cunhadas pela
iconografia e pelos relatos de viajantes tornaram-se tão perenes, que, muitas vezes, foram tomadas
como uma única identidade e como juízo de valor sobre uma determinada região ou um povo.
Assim o foi com a Amazônia, que cercada de imagens distorcidas por tais registros, foi vista como
o "país da cocanha"2 , terra da abundância, Ŗ inferno verdeŗ e também como paraíso tropical. De
acordo com Stuart Hall, a identidade é construída dentro e não fora do discurso, bem como são
produzidas em locais históricos e institucionais. (HALL, 2005, p. 109). Assim, podemos observar
que foram os textos, sejam ele, os iconográficos ou os relatos de viajantes que produziram muitas
das imagens já referenciadas, que ainda permanecem no discurso atual, como é o caso do discurso
do desenvolvimento sustentável.

Adentrar o território para conhecer e dominar foi a estratégia lusa. Portanto, foi nessa
direção que se deu a ocupação do espaço amazônico pelos portugueses, que aqui chegaram (época
do Brasil-Colônia) em busca das riquezas, denominadas " drogas do sertão", que eram constituídas
de variados produtos florestais:

Constituída de produtos diversos, utilizáveis na alimentação, nos medicamentos, na perfumaria, na


habitação, as drogas do sertão eram representadas, principalmente, pelo cacau, baunilha, cravo,
canela, puxuri, sementes oleaginosas, raízes aromáticas, espécies variadíssimas de madeiras, logo
empregadas nas construções que se
levantavam no reino, com aceitação certa no mercado externo e que na vida amazônica nada mais
são do que a matéria-prima do sistema colonial de exploração" (RANCY, 1992.p57)

Ações exploradoras por parte dos colonizadores portugueses foram empreendidas ao longo
dos séculos XVI, XVII e XVIII e se traduziram em ações como a aniquilação de povos indígenas e
de sua cultura, a adoção de uma "língua geral", derivada do Tupi, o processo de catequização

1
Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Pós-Doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ. Professora
dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Acre.
2
"Pais de Cocagne" - abundância. Em Holandês, " país das maravilhas" ; em Alemão e em Inglês, " país dos doces" ; já
em francês o termo vem do Provençal, Cocagne significa "pastel de nata".
552
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

jesuítica sobre os índios, sendo que este último perdurou até a Segunda metade do século XVIII,
com a expulsão da Companhia de Jesus dos territórios portugueses, marcando, assim, um chamado
"período pombalino". O projeto pombalino também não levou em consideração o processo de
alteridade e forjou uma " integração dos índios à sociedade".

O segundo movimento de colonização da região amazônica situa-se no século XIX, cujo


foco maior foi a atividade extrativista da borracha, principalmente, na região ocidental da Amazônia
brasileira (região que abrange o Estado do Acre). Nesse período, a paisagem amazônica se
modificou, diante desta atividade extrativista, que trouxe um fluxo imigratório de populações
nordestinas destinadas a trabalhar nos seringais. Este movimento deixou, portanto, marcas
indeléveis na cultura e na economia acreana, tendo em vista que no Acre, ainda hoje, é praticada a
atividade extrativista da borracha, porém, em menor escala. É neste cenário de encontros e
desencontros entre indígenas e seringueiros que podemos perceber o entrecruzamento de culturas e
discursos Ressaltemos que o encontro entre os tipos humanos variados na Amazônia, produziu,
segundo Loureiro, um quadro de ―sfumato,‖ o que resultou num grande caldo cultural, no qual se
interpenetraram o real e o ficcional, cotidianamente. (LOUREIRO, 1997. p.38)

Loureiro destaca também o conflito de imagens (LOUREIRO,1997.p.70.) provocado pela


presença do colonizador, seja ele religioso ou funcionário do Estado, desde o início da colonização
do Brasil por Portugal, prolongando-se na atualidade e nos mostra ainda o modo pelo qual foi se
construindo um imaginário de inferioridade da cultura Amazônica em favor da cultura européia e da
região Sul do Brasil. Apesar desses conflitos de signos, o autor defende que a dominante cultural do
imaginário Amazônico é poetizante, sendo sua matéria a natureza exuberante da floresta e dos rios,
de tal modo que essa vivência estetizada se refletiria na ética das relações sociais.Lançar um olhar
sobre as imagens portentosas da Amazônia, mais especificamente, do Acre, na música de um jovem
compositor e líder de uma banda Aarão Prado, é objetivo desta comunicação.

A música ŖMonotematicidade florestânicaŗ , de autoria de Aarão Prado, foi uma das


finalistas do Festival Universitário da Canção. Já no seu título, o autor lança uma crítica à exaustão
de alguns temas tão em voga, na época da música (2003) e que, de certa forma, ainda continuam Ŕ a
florestania e o desenvolvimento sustentável.

Cabe-nos esclarecer que a palavra Ŗflorestaniaŗ passou a ser veiculada no Acre, a partir da
entrada do Partido dos Trabalhadores, no Governo do Estado do Acre. Na formulação da palavra,
aparece um produtivo processo de formação de palavras, na qual se efetuou a junção da Floresta -,
elemento que viceja na paisagem acreana-, com a cidadania, passando a expressar mais do que o
significado de um pertencimento à floresta Amazônica, bem como o orgulho de uma possível
identidade acreana. No estabelecimento de uma possível Ŗidentidade acreana" baseada na
florestania, foram mobilizados signos e símbolos com grande recorrência para que houvesse uma
fixação de um elemento identitário.

553
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Como em toda sociedade, não há uma única voz; um único discurso, assim não o foi
diferente no caso do Acre. O músico Aarão Prado com a canção Ŗmonotematicidade florestânicaŗ ,
nos mostra a partir de uma visa o bem humorada que outras leituras são possíveis. O músico
acreano assim nos diz nos primeiros versos da canção:

Posso não gostar de tapioca


E vomitar o açaí,
Não vou falar de mandioca,
Para dizer que sou daqui.

Eu odeio tacacá,
E amendoim do Quinari.
Nunca fui ecologista,
Nunca vi o Mapinguari.

Eu adoro uma farofinha,


Mas não quero nem saber,
Se a farinha é de Cruzeiro,
da Sadia ou Nestlè.

Pelos versos citados, podemos observar que o autor realiza uma desconstrução por meio de
um processo de carnavalização, sendo esta aqui, compreendida como postulou Mikhail Bakthin.
Bakthin se debruçou nos estudos acerca das tradições populares e do carnaval medieval e
renascentista na literatura. No clássico livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento,
ao examinar a relevância do riso popular no entendimento do contexto da obra de François
Rabelais, Bakhtin afirma que grande foi a amplitude das formas carnavalizadas na idade Média e no
Renascimento, pelo seu caráter de oposição à cultura oficial, ao tom sério e áulico da época, no qual
se enfatizava a quebra de barreiras cuja transposição, o autor russo denominou de carnavalização,
que é a presença dos elementos do carnaval dentro da literatura. De acordo com Bakhtin, a
carnavalização traz em seu bojo quatro elementos que estabelecem relações entre si e em conjunto,
constroem-na, a saber: inversão, excentricidade, familiarização e profanação. A tônica primordial é
a inversão. As restrições, as normas e as leis, que normatizam a sociedade e a ordem da vida
comum, são revogadas durante o carnaval, conforme nos afirma o teórico russo: Ŗrevogam-se, antes
de tudo, o sistema hierárquico de todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta
etcŗ (BAKHTIN, 2000, p.123). No carnaval, todas as desigualdades determinadas pela ordem social
homens é abolida.
Aarão Prado realiza a carnavalização dos elementos da culinária, ao afirmar que vomita o
açaí, negando tudo o que já é consenso e, mais ainda, por negar a tradição da melhor farinha Ŕ a de
Cruzeiro do Sul Ŕ afirmando que a farofa é boa com qualquer farinha, inclusive, citando marcas
consagradas na área da indústria alimentícia Ŕ Sadia e Nestlé. ŖO amendoim do Quinariŗ refere-se
ao amendoim produzido por uma família japonesa Ŕ a Casa Nishizawa, localizado no Quinari,
Distrito de Senador Guiomard, cidade a 60 km de Rio Branco e segundo, a cultura local, possui
propriedades afrodisíacas. Aarão Prado vai mais além, ao destacar a sua não-adesão à onda
ecologista, ao afirmar Ŗnunca ter visto o Mapinguariŗ , a figura mítica, que habita as florestas do
Acre e o imaginário dos seringueiros e ribeirinhos. Ressalte-se que mesmo o ex-seringueiro que já

554
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mora há muitos anos na Capital, conta a história e o encontro com o Mapinguari, o guardião das
caças, afirmando sua crença na sua existência.
Cabe-nos ressaltar que a formulação imagética da Floresta, no Acre, ao ser absorvida pelas
instâncias políticas, produziu alguns postulados, que por seu turno, apresentaram perfeitos elos para
a criação de um Ŗorgulho de ser acreanoŗ , bem como criou uma utopia florestânica, o que se
manifestou em muitos enunciados da propaganda política, tais como: Acre Ŕ Governo da Floresta.
Acre - Estado da Florestania. O slogan vem acompanhado de uma árvore - a castanheira.

Essa exaustão do Ŗdiscurso da florestaniaŗ nas ruas, na imprensa, no poder público e com a
presença da bandeira em muitos pontos da cidade, é assim desconstruído e carnavalizado por
Aarão Prado:

Tudo agora é sustentável,


É só o que se pode se cantar.
Se a Amazônia é mesmo nossa,
Toma minha parte para você,
Cuidado com o que digo.
(...)
Hoje, faço este protesto,
Em forma de revanche,
Quem sabe com essa letra,
Posso até ganhar....

Podemos observar na canção de Aarão Prado, as categorias postuladas por Bakthin


(inversão, excentricidade, familiarização e profanação), para identificar os principais elementos de
carnavalização, tais como: a crítica à monotematicidade e sua exaustão; a excentricidade, a partir de
alguns enunciados, como o Ŗvomitar o açaíŗ, a relativização do gosto pelo sabor da farinha, a
profanação com o Ŗodiar o tacacáŗ e com o questionamento da Amazônia brasileira e com o aspecto
lúdico de tentar persuadir os jurados a dar-lhe o prêmio ao afirmar que está fazendo um protesto e
com a letra pode até ganhar...
555
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Considerações finais

ŖSe a alegria é a prova dos noveŗ como bem nos ensinou Oswald de Andrade, podemos
afirmar que para além de uma Ŗreinvenção das tradiçõesŗ , a utopia florestânica abriu uma senda
para a reflexão sobre a cultura, tendo também se tornado um importante instrumento para suscitar
intensos debates sobre a conservação da floresta, a cultura amazônica, o desenvolvimento
sustentável e a harmonia do homem com a natureza.

Referências Bibliográficas

ACRE. Estado da Florestania. Rio Branco/AC: Secretaria de Turismo, 2003.


BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2000.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha. Várias faces de uma utopia. São Paulo: Ateliê Editorial,
1998.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Thomaz Tadeu. (org.). Identidade e
Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Stuart Hall, Katryn Woordward. 4 ed.
Petrópolis:Vozes, 2005

LOUREIRO, J.J.P. Cultura Amazônica. Uma poética do imaginário. Belém: Cejup, 1997.

556
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

EROS E TÂNATOS: POSSÍVEIS CONJUNÇÕES E DISJUNÇÕES NA TRANSMUTAÇÃO


FÍLMICA DO CONTO ŖAS FORMIGASŗ DE LYGIA FAGUNDES TELLES SOB UM
ENFOQUE INTERSEMIÓTICO

Luciene Oliveira Vieira1 (UFC)

Resumo: O presente artigo tem como objetivo uma breve análise das disjunções e conjunções
presentes na transmutação fílmica do conto ŖAs Formigasŗ , de Lygia Fagundes Telles. O conto foi
transmutado em 2004 em curta-metragem pela cineasta cearense Verônica Guedes. A abordagem
escolhida para essa análise será guiada à luz dos conceitos da semiótica greimasiana e pelas
abordagens dos temas, de pulsão de vida e morte ŕ Eros e Tânatos ŕ tratados na psicanálise
freudiana.

Palavras-chave: Eros e Tânatos. Disjunções e conjunções. Fantástico.

1. Introdução.

As transmutações fílmicas de textos literários têm sido uma constante na realidade


cinematográfica brasileira. No entanto, quando o assunto trata-se da relação cinema e literatura
as discussões tornam-se acirradas. Principalmente no que diz respeito ao que é especifico das
linguagens literária e cinematográfica. Apesar das polêmicas, as adaptações fílmicas de textos
literários é uma prática inerente a própria genealogia do cinema. Segundo Campos (2003, p.25),
Ŗo que interessa ao homem é seu prñprio drama que, de certa maneira, já se encontra pronto na
literatura, o cinema volta-se para essa arte em busca de fundamento às histórias que ele quer
contar.ŗ A necessidade de contar do cinema contemporâneo, além da busca pelo drama humano,
tem sido determinada também pelas influências mercadológicas: inúmeras realizações
independentes nascidas de trabalhos autorais, em que o roteirista, além da adaptação, é quem
também produz e, muitas vezes, dirige o filme como no caso do curta-metragem escolhido para
análise desse artigo. Essas produções visam inserir os novos cineastas no concorrido mercado
cinematográfico e baratear os custos do filme.

É inserida nesse contexto que a cineasta cearense Verônica Guedes, em trabalho


autoral, lançou seu olhar para a escrita de Lygia Fagundes Telles, especificamente para o conto
ŖAs Formigasŗ , e resolveu adaptá-lo em roteiro de um filme de curta-metragem. O filme tem
vinte e oito minutos de duração e foi gravado em 35mm. Ganhou vários prêmios, sendo o mais
importante o da categoria de melhor curta-metragem na edição de 2004 do Cine Ceará2.

1
Aluna do curso de Mestrado em Literatura Comparada da Universidade Federal do Ceará
2
Cine Ceará Ŕ é uma promoção da Universidade Federal do Ceará, através da Casa Amarela Eusélio Oliveira com
apoio do Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura e Desporto, e do Ministério da Cultura,
através da Secretaria do Audiovisual. A Realização é da Associação Cultural Cine Ceará e conta com patrocínio de
empresas públicas e privadas, por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura (SIEC) e da Lei Federal de Incentivo à
Cultura (Lei Rouanet).

557
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A escolha da roteirista para a adaptação do conto, segundo ela mesma, em entrevistas,


deu-se pelo fato de Ŗa escrita de Lygia Fagundes Telles poder não apenas ser lida, mas vista, já
que a autora compõe seus personagens mostrando-os por dentro e por foraŗ 1. Diante das
palavras da roteirista e também diretora do filme, destacamos aqui uma das características
presentes na literatura contemporânea que inspiraram a criação do cinema: as narrativas
construídas a partir de traços sígnicos pertencentes principalmente ao campo visual em que os
traços psicológicos dos personagens são trazidos à tona em enquadramentos específicos típicos
da estrutura narrativa do cinema. O conto faz parte do livro Mistérios antologia de contos que
pertencem ao gênero Fantástico. No domínio comum, o termo fantástico pode significar: Ŗ1.
aquilo que só existe na imaginação, na fantasia; 2. caráter caprichoso, extravagante; 3. o fora do
comum; extraordinário, prodigioso; 4. o que não tem nenhuma veracidade; falso, inventadoŗ .
No domínio dos Estudos Literários, o Fantástico mantém, em sentido lato, as mesmas
concepções, trazendo à tona o delicado campo teórico ao qual pertencem as definições a esse
gênero, dependendo em muito das premissas que cabem a cada estudioso.

No caso do objetivo deste artigo, que é analisar as conjunções e disjunções presentes na


adaptação fílmica do conto abordado, definir a que premissa vamos nos ater em relação à
definição do Fantástico torna-se de vital importância. Tanto por ser o gênero abordado em nossa
pesquisa de pós-graduação como para entendermos as construções sígnicas que pretendemos
observar, à luz da semiótica greimasiana, presentes nessas disjunções e conjunções que nascem
da adaptação. Para tanto, escolhemos aqui definir o Fantástico segundo o olhar de Irene Bessière
por apresentar propostas teóricas que estão em acordo com a análise deste trabalho. A
abordagem sobre o Fantástico feita por Bessière (1974, p.02) começa por citar a dificuldade de
conceituação do gênero:

Toda síntese ŕ nota J. Bellemin-Noël ŕ sobre aquilo que chamamos de fantástico é


atualmente prematura, mesmo que as pesquisas a esse respeito estejam se desenvolvendo.
Estamos tentando colocar a questão de encontrar- lhe um lugar: seu próprio lugar.

Em seguida, a teórica destaca, dentre muitas de suas considerações sobre o gênero, uma das
características da narrativa fantástica que pensamos ser de perfeito encaixe para a abordagem deste
estudo:

O relato fantástico utiliza marcos sócio-culturais e formas de compreensão que definem os


domínios do natural e do sobrenatural, do banal e do estranho, não para concluir com
alguma certeza metafísica, mas para organizar o confronto entre os elementos de uma
civilização relativos aos fenômenos que escapam à economia do real e do surreal, cuja
concepção varia conforme a época. (Bessière, 1974, pp. 9-29)

A citação acima coaduna-se com a perspectiva de observar os fenômenos levando em conta


a historicidade, como é o caso de produções cinematográficas, no que diz respeito à sua construção,
utilizando certos marcos sócio-culturais. Ao tomar a literatura como objeto de tradução, o cinema

1
In: http://www.vervecultural.com.br/kalix/entrevistavg.html. Acesso em 03 de junho de 2010.
558
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

inicia um processo de dessacralização do cânone literário, mesmo quando as escolhas dos


adaptadores valem-se desse critério. Aguiar (2003, p.119) observa que grande parte das produções
cinematográficas do século XX Ŗseguiu ou perseguiu enredos e personagens consolidados primeiro
na literaturaŗ . O estudioso acredita que isso ocorra em razão do prestígio de determinados autores e
obras. Assim, estaria, em tese, assegurado o sucesso das películas provenientes de textos já
consagrados. Isso deixa claro que a escolha de adaptação feita por Verônica Guedes de um conto de
Lygia Fagundes Telles está calcada no fato de a autora pertencer ao cânone literário brasileiro, o
que é compreensível, haja vista uma produção autoral e independente ter a necessidade de recorrer a
artifícios que lhe garantam tanto os investimentos necessários à sua realização quanto atrair a
atenção do público a que se destina, pois, pautados nas obras literárias, os diretores imprimem na
película suas crenças e seus objetivos. Assim, eles buscam ou aproximar, ou traduzir o texto
literário ao cinematográfico, observando as possibilidades de ligação de um meio ao outro, tendo
em vista aquilo que desejam expressar.

Outro ponto que achamos necessário destacar é a escolha sobre a terminologia em relação ao
que dissemos anteriormente ŕ no que se refere à tradução, e à adaptação ŕ e o termo que
elegemos para construir nossa análise: transmutação. Em primeiro lugar, vamos evitar neste
trabalho a noção de equivalência, pois o cinema é, antes de tudo, linguagem e, como linguagem,
apresenta signos próprios, o que deixa de lado a noção de equivalência enquanto tradução ipsis
verbis de outra linguagem ŕ no caso, a literária. Mesmo que a noção de equivalência permeie o
imaginário popular no que diz respeito às adaptações fílmicas, segundo Johnson (2003, p. 42), a
Ŗinsistência à fidelidade é um falso problema, porque ignora a dinâmica do campo de produção em
que os meios estão inseridosŗ . A linguagem cinematográfica e a linguagem literária apresentam
campos de produção de significados distintos, cuja relação pode tornar-se possível em razão do
forte apelo visual presente em determinados textos literários como, no caso, o conto ŖAs Formigasŗ ,
permitindo a transformação daqueles em filmes. Isso nos leva a crer que a literatura serve de
inspiração à criação de outros signos e evidencia discussões não só em relação à linguagem dos
meios literários e cinematográficos, mas também traz a luz das discussões questões de ordem
valorativas - cultura, posição política, fatores econômico-sociais - do produtor da obra fílmica.
Além disso, cada linguagem deve ser preservada e Ŗapreciada de acordo com os valores do campo
no qual se insere, e não em relação aos valores do outro campoŗ (JOHNSON, 2003, p. 42). Exposto
isso, recorremos ao termo transmutação por achar que esse é o que melhor se enquadra para a
análise feita aqui. Para tal, valemo-nos do que diz Garcia apud Balogh (2005, p.23):

podemos dividir a matéria visual em: imagem fixa, imagem em movimento e palavra
escrita; e a matéria sonora, em: música, ruído e palavra falada. Por esta razão considera-se
muito pertinente o termo alternativo que Jakobson propõe para a tradução intersemiótica:
transmutação.

Apresentados os devidos esclarecimentos relativos as terminologias a serem utilizadas nesse


artigo, passemos a apresentação da análise de ŖAs Formigasŗ filme (AFF) e ŖAs Formigasŗ conto
(AFC).
559
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

2. Conjunções e disjunções: Eros e Tânatos na transmutação de “As Formigas”

Os conceitos de Eros e Tânatos, presentes na mitologia grega, são abordados em Além do


Princípio do Prazer, estudo realizado por Sigmund Freud, no qual identifica, em cada ser humano,
um antagonismo existente, um constante embate entre as forças de Eros - a pulsão de vida e as de
Tânatos Ŕ a pulsão de morte, a primeira estimulando o crescimento e a realização e a segunda
alimentando instintos destrutivos e atitudes de auto-sabotagem e de autodestruição. No conto ŖAs
Formigasŗ , podemos identificar que a pulsão de vida, Eros, é o agente desencadeador da história,
pois é a partir do desejo de sobreviver das duas moças (Sujeito1) personagens do conto, que a
história tem seu início. Esse desejo de sobreviver dá-se pela necessidade que as estudantes têm de
conseguir o quarto da pensão, as duas são jovens universitárias limitadas pela necessidade
econômica (Destinador). Enquanto o Tânatos, representado nas figuras do anão e da formiga, é o
agente finalizador; é através da ação das formigas sobre os ossos que o Eros será vencido por
Tânatos, ou seja, a incapacidade das duas em compreender a desordem instaurada dentro de seu
espaço (quarto) desencadeando a frustração dos planos e consequentemente o abandono do quarto
ou do objeto de desejo. ŖAs Formigasŗ é um conto em que a narrativa conta a histñria de duas
estudantes que, por necessidade, alugam um quarto no sótão de uma pensão decadente, onde
passam três noites e do qual acabam fugindo às pressas, em função de acontecimentos insólitos (há
no quarto um caixote com ossinhos de anão, deixado pelo morador anterior, e que vai sendo
manipulado por formigas, as quais vão montando o esqueleto com ordenação perfeita, durante as
noites).

No caso da transmutação fílmica, temos a presença do mesmo plano narrativo e do mesmo


embate entre a Eros e Tânatos pelos mesmos agentes desencadeadores e finalizadores. Temos ai o
elo conjuntivo entre os dois discursos: a Tematização que, segundo Barros (2005, p.23), seria
Ŗformular valores de modo abstratoŗ. Os valores tanto em AFF quanto em as AFC são isotópicos1
(isotopia temática) garantindo assim uma coerência semântica no nível do discurso. No entanto, a
motivação que desencadeia Eros caracteriza-se pelo elemento disjuntivo entre o fílmico e o
literário: enquanto Eros em as AFC é motivado apenas pelo desejo de sobreviver conseguindo o
quarto da pensão, em AFF temos, além deste mesmo desejo, o sentimento amoroso entre as duas
estudantes tema não abordado no texto literário. A sinopse do filme já esclarece este traço
disjuntivo: ŖDuas universitárias ganham da dona da pensão onde moram uma caixa contendo os
ossos de um anão. Toda noite milhares de formigas passam a montar o esqueleto do anão.

1
A isotopia, propriedade afeita ao discurso, é um termo emprestado da Física que semioticamente significa Ŗa
permanência de um efeito de sentido ao longo da cadeia do discursoŗ. Numa análise semântica, a isotopia permite
observar a permanência e a transformação dos elementos de significação.

560
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Enquanto isso, surge um sentimento novo entre as duas moças.” 1

Esses elementos conjuntivos e disjuntivos acontecem no âmbito do discurso das duas


narrativas. Por tanto, escolhemos fazer um percurso em torno dos eixos semânticos e para tanto
faremos uma breve análise através de um percurso gerativo de sentido que, segundo Barros (2005,
p.10), Ŗé fundamental para a teoria semiñticaŗ . A ordem de análise segue a mesma proposta feita
pela teórica em seu livro: em primeiro momento, analisaremos as estruturas no nível fundamental
em seguida no nível narrativo e no nível das estruturas discursivas.

O Nível fundamental

Segundo Barros (2005, p.12), Ŗno nível das estruturas fundamentais é preciso determinar a
oposição ou as oposições semânticas a partir das quais se constrñi o sentido do textoŗ. Por tanto
temos:

AFC: Eros (desejo de sobreviver pela aquisição da moradia)

VS

Tânatos (frustração de Eros pela presença do insólito)

AFF: Eros (desejo de sobreviver pela aquisição da moradia + desejo de realização amorosa)

VS

Tânatos (frustração de Eros pela presença do insólito)

Temos assim, a esquematização do nível fundamental das duas narrativas, apresentando


Eros como categoria positiva ou eufórica e Tânatos como categoria negativa ou disfórica. O conto
gira em torno do eixo natural x sobrenatural: de um lado, o cotidiano (Eros) de duas estudantes
universitárias; de outro, a ação das formigas (Tânatos) que instala no conto o desconhecido, o
sobrenatural, o incompreensível, caracterizando assim o gênero Fantástico. Para passarmos ao nível
a seguir, apresentamos o esquema do percurso entre os termos de oposição apresentados:

Tânatos -------------------- concretização de Eros --------------------- Eros

(disforia) (não-disforia) (euforia)

O Nível narrativo

1
In: http://www.portacurtas.com.br/Filme.asp?Cod=2006. Acesso em: 03 de junho de 2010.
561
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

No nível narrativo temos a seguinte estrutura em relação aos actantes:

AFC:

Sujeito 1: as moças e o desejo de se estabelecerem no quarto da pensão

Destinador: a necessidade econômica.

Anti-sujeito: as formigas como o objetivo de montar o esqueleto do anão.

Destinador: por motivo não explicitado a expulsão das moças

AFF:

Sujeito 1: as moças e o desejo de se estabelecer e concretizar a união amorosa.


Destinador: o sentimento que nasce entre as duas.
Anti-sujeito: as formigas com o objetivo de montar o esqueleto do anão.
Destinador: também a expulsão das moças (o motivo segue a proposta do texto literário)
Um exemplo da ação do sujeito 1 no conto fica explicita nessa passagem do texto:
Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do
velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma
pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
ŕ É sinistro.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas
redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o
fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras
com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a
creolina. (Telles, 1998, p.31)

No tocante as estruturas do nível narrativo Barros (2005, p.23) diz: Ŗ no nível das estruturas
narrativas, os elementos das oposições semânticas fundamentais assumidos como valores por um
sujeito e circulam entre sujeito graças à ação também de sujeitos.ŗ

O Nível discursivo

Os elementos discursivos no filme e no conto podem ser divididos em temas através de


figuras (vocábulos que se referem aos elementos concretos) que geram o suspense tanto na
transmutação fílmica como no texto literário. Podemos ver neste exemplo de descrição da casa:
ŖFicamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles
vazado por uma pedrada.ŗ (Telles, 1998, p.31). Neste trecho temos o eixo semântico do
sobrenatural que confere a casa uma antropomorfização, sugerido-lhe o caráter sombrio. No
entanto, nos interessa aqui a descrição da cena do jantar em que temos a representação maior do
elemento disjuntivo entre o discurso literário e fílmico:

Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma
lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou
o pão, abriu um pacote de bolacha Maria. (p.33)

562
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Em AFF, nesta mesma cena, temos a construção de um cenário romântico em que há a


existência de uma mesa com velas e flores que instaura o clima de romance entre as duas
personagens. As oposições temáticas seriam:

AFC AFF

As malas, japona, gravura, lata de sardinha, A mesa, vaso, vela, quarto escuro, sardinha,
pão, bolacha, chá, omelete, chocolate, urso pão, pratos, copos, talheres, flor. Instauram o
de pelúcia, lâmpada de duzentas velas, clima de romance e leva a isotopia amorosa que
álcool. remete a necessidade de se estabelecer no intuito
Que levam a isotopia da condição sócio de concretizar o romance. Manifestação de Eros.
econômica das duas moças e
consequentemente remete a necessidade de
sobreviver e permanecer no objeto de
desejo: o quarto da pensão. Manifestação de
Eros.

Os temas nos dois discursos giram principalmente em torno do Fantástico na oposição


natural x sobrenatural. Fica claro tanto para o leitor como para o expectador que algo ocorre no
espaço caracterizado no quarto da pensão. No entanto, nosso olhar deteve-se no tema em que se
observa a disjunção entre AFC e AFF: a sugestão ou interpretação de um romance entre as duas
estudantes.

3. Considerações Finais

Como desdobramento do que foi analisado, o desenlace, tanto no conto como no filme,
marca uma falha de competência do S1, que prejudica sua performance. O S1 tem competência -
modais poder / saber - para alugar o quarto, pode pagar por ele, soube escolher algo dentro de suas
possibilidades financeiras, mas não tem competência para lidar com o insólito, o sobrenatural, o
inexplicável, uma vez que as moças sentem-se ameaçadas, têm medo, desistem de lutar contra as
formigas e vão embora. Essa competência é caracterizada pelo desejo de superação dos objetivos,
Eros, que é frustrado pela presença do esqueleto do anão e a ação das formigas sobre ele,
caracterizando o elemento fantástico, e ocasionando o Tânatos ou uma pulsão de morte pelo medo
ante o insólito. No entanto, Eros e Tânatos se diferenciam na transmutação do conto: Tânatos
permanece com suas características, Eros, porém, ganha uma nova face: uma possível relação
amorosa entre as duas moças. Essa disjunção se dá tanto pelas especificidades que cada linguagem,
a fílmica e a literária, carregam quanto pelos objetivos do responsável pela transmutação devendo-
se levar em consideração as questões culturais, sociais, mercadológicas do contexto da adaptação
como também as idiossincrasias do roteirista.
Para melhor explicitarmos nosso parecer citamos Guimarães (2003) que diz: Ŗos limites
entre cultura de massa e erudita, (...) são sempre redefinidos [porque] as adaptações estabelecem
uma zona de conflito entre formas culturais diferentes voltadas para públicos diferentes e
heterogêneosŗ Assim a escolha de um texto de uma autora do cânone para abordar um tema ainda
563
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

considerado marginal, mas que tem seu público como um alvo que ascende na indústria
mercadológica, aponta para a característica principal do cinema: atender as massas, que na
contemporaneidade não trata só de atender o entretenimento dessas mesmas massas mas em
construir pensamentos, destacar comportamentos e direcionar esses objetivos a públicos específicos.
O que antes era função sacra da literatura, vai à grande tela e usa a própria literatura como ponte.

Referências bibliográficas

AGUIAR, Flávio. (2003) Literatura, cinema e televisão. In: PELLEGRINI, Tânia et all. (2003)
Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac, 2003

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005.

BAZIN, Andre. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991

GUEDES, Verônica. Formigas [Filme-video] 28min.Fortaleza, 2004 DVD.

GUIMARÃES, Hélio. O romance do século XX na televisão: observações sobre a adaptação de Os


Maias. In: PELLEGRINI, Tânia et all. (2003) Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora
Senac, 2003.

JOHNSON, Randal. Literatura e cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In:
PELLEGRINI, Tânia et all. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: 2003.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003.

TELLES, Lygia Fagundes. As formigas. In: Mistérios. São Paulo: Rocco 1998.

XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

564
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

HISTÓRIA DA LITERATURA ANGOLANA: DE 1845 A 1957

Luiz Guilherme Melo de Souza (UFAM)

Resumo: No presente artigo pretende-se demonstrar a história da Literatura Angolana de expressão


portuguesa, empregando como fundamentação o livro A Sociedade Angolana Através da Literatura, de
Fernando Mourão, que a relaciona ao processo de colonização e a apresenta nas seguintes fases, das quais se
discutirá as quatro iniciais: a primeira, a partir de 1845, com a publicação do Boletim Oficial; a segunda,
começada em 1896, com a criação da Associação Literária Angolana; a terceira, cujo marco é 1912, com o
começo da administração do general português Norton de Matos em Angola; a quarta, em 1948, com o
surgimento do Movimento Vamos Descobrir Angola; e a quinta, desde 1957, com o Movimento dos
intelectuais da Casa dos Estudantes do Império, estendendo-se até a década de setenta. Nas quatro primeiras
fases, de 1845 a 1957, propõe-se ainda analisar o surgimento da mencionada literatura, seguido da tentativa
de silenciá-la e a resistência decorrente da organização dos escritores e de sua divulgação fora de Angola.

Palavras-chave: literatura angolana, poesia, romance, Angola

Abstract: This article intends to demonstrate the history of the Angolan literature that is written in
Portuguese langue. The text in which we research is entitled A sociedade angolana através da literature, by
Fernando Mourão, who associates this literature with its society He classifies five periods: first at 1845 with
the publication of the Boletim official; second at 1896 with the foundation of the Associação Literária
Angolana; third at 1912 when the Portuguese general Norton de Matos administrates the Luanda city; fourth
at 1948 when initiates the intellectual movement called Vamos descobrir Angola; and fifth when initiates
another intellectual movement at Casa dos estudantes do Império. We intends discuss the four initial periods
in which that literature appears and after it is almost eliminated and finely occur the resistance of the
intellectuals that made it continues through divulgating it in some parts of the Europe.

Keywords: Angolan literature, poetry, novel, Angola

Literatura angolana: os quatro primeiros períodos

Segundo o crítico e historiador da literatura Fernando Mourão, para quem a literatura


angolana pode ser dividida em cinco períodos que se modificam de acordo com as transformações
dessa sociedade, os quais estão diretamente ligados ao processo de colonização, todos tendo a
capital Luanda como lugar privilegiado.

Ele inicia sua pesquisa no século XIX, verificando que o homem branco é minoria em
Angola, colônia de Portugal nessa época. As posições sociais são divididas entre negros, mestiços e
brancos. O pequeno comércio e boa parte dos cargos humildes da administração colonial são
ocupados pelos três e, mesmo que exista, da parte dos brancos, a ideia de que eles são superiores ao

565
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

homem negro, esse preconceito não é suficiente para impedir o crescimento de uma sociedade
plurirracial, pois todos têm o objetivo em comum de sobreviver naquele ambiente ainda pouco
conhecido cientificamente, de beleza natural e perigosa. A crescente burguesia possui laços de
parentesco, sendo formada por pequenos e médios proprietários que instruem seus filhos na medida
do possível.

Nessa época, destaca-se uma atividade intelectual comum para negros e brancos: o
jornalismo. Daí surge então um grupo ilustre de intelectuais negros e mestiços. No seio dessa
comunidade surge a primeira fase da literatura angolana marcada pela publicação, em 1845, do
Boletim Oficial, um jornal do governo que dá espaço para produções literárias, ensaios e relatos de
viagens pelo interior do sertão angolano. Com o passar do tempo, esse veículo passa a apenas
publicar normas administrativas, perdendo, assim, seu valor cultural.

Surgem, em seguida, os jornais bilíngües em português e quimbundo ou só redigidos em


uma das línguas, escritos por negros e brancos estimulados por ideias liberais trazidas por
profissionais liberais - eles serviam nos quadros coloniais - para a costa africana por meio da
literatura francesa ou mesmo da literatura portuguesa da época. Apoiados pela Lei de Marquês de
Sá Bandeira, de 1856, que permite a liberdade de imprensa em todos os territórios africanos sob
dominação colonial de Portugal, esses jornais começam a publicar ideias polêmicas, como a
abolição total da escravatura além de críticas contra a corrupção administrativa.

Os artigos reunidos em periódicos como O Futuro de Angola, dirigido pelo africano Arcénio
do Carpo, e Muen‘ex, dirigido por Castro Francina, concretizam a primeira fase da literatura
angolana, mesmo que ainda não seja uma literatura claramente definida.

Desse período, destaca-se o escritor Joaquim Dias Cordeiro da Mata, cuja obra é pouco
conhecida, porque parte de seus manuscritos nunca chegou a ser publicada ou simplesmente se
perdeu, como um romance de costumes sobre Luanda. Outra parte de sua obra chegou a nossos dias
em forma de livro, entre eles a pesquisa da literatura e filosofia oral intitulada Philosophia Popular
em Provérbios Angolenses, de 1891, o Ensaio de Diccionário Kimbundu-Portuguez, de 1893, e o
volume de poemas Delírios, em que revela as expectativas dos homens negros sobre a cultura e a
ideia de que a cor da pele não é um caráter diferencial.

Vale destacar que é frequente, nesse período, homens brancos serem deportados para as
costas de Angola para pagar um crime cometido em Portugal ou mesmo no Brasil. Grande número
desses brancos constitui famílias com mulheres negras e, com a liberdade de comércio de Angola e
dos sertões próximos da capital, se misturam com os comerciantes na feira. Negros e brancos vivem
em condições iguais.

A segunda fase da literatura angolana começa em 1896, com o surgimento de intelectuais


ligados à pequena burguesia negra de Luanda, entre eles Silvério Ferreira, Vieira Lopes, Domingos
Van-Dumém e Paixão Franco. O movimento se institucionaliza com a criação da Associação
566
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Literária Angolense, impulsionada por Augusto Silvério Ferreira que, por meio do jornal A
Juventude Literária, tem como ponto fundamental do seu programa educar o povo de Angola,
erguer seus irmãos de raça e incluí-los na cultura urbana europeizada, onde todos devem ser aceitos,
independentemente da cor da pele. Os membros do movimento reúnem-se na casa uns dos outros
para discutir as novidades da propaganda republicana, pois é nas mensagens liberais que os homens
negros vêem a solução para os problemas sociais de então.

Os textos dessa época consistem nas propagandas republicanas, e os frutos esperados não
brotam porque o projeto de viver em igualdade, em torno do qual brancos e negros se organizam, é
interrompido quando Angola passa a ser administrada pelo general Norton de Matos na qualidade
de Alto Comissário.

A terceira fase da literatura angolana começa em 1912, com a administração do Alto


Comissário Norton de Matos, um homem que implementa os objetivos do colonialismo clássico. A
política desse português pretende fortalecer o império de Portugal sobre suas colônias, criando, para
isso, núcleos habitacionais exclusivos para brancos vindos de Portugal, formado por pessoas de
classe social baixa, mas apresentados como cidadãos-modelo das civilizações consideradas perfeitas
Ŕ por exemplo, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos - para fixar a Ŗraça portuguesaŗ e fundar um
tipo superior de civilização em Angola. Os colonos selecionados para povoar esses núcleos
habitacionais recebem uma casa à maneira do estilo arquitetônico português com mobília completa.

Quanto aos povos que sempre habitaram em Angola, eles não são exterminados, porém são
transformados à imagem de uma civilização dita perfeita, sem considerar sua cultura. Aos negros de
ambos os sexos reserva-se o ensino de ofícios, preparando-os para produzir, seja como pequeno
agricultor ou mão-de-obra industrial e semi-industrial. Dessa instrução é praticamente excluído o
ensino da literatura.

Restringindo ao homem negro poucas possibilidades de formação, Norton de Matos impõe a


eles ocupação de funções hierárquicas abaixo das do homem branco. Forma-se, assim, uma
sociedade de classes em Angola, e o negro acaba sendo rebaixado nos quadros administrativos.

Para consolidar essa política, chega, em terras angolanas, grande número de mulheres
brancas, que antes eram minoria, e isso causa, aos poucos, a diminuição do casamento entre brancos
e mestiças ou negras, até essa relação tornar-se rara.

Também aos poucos, os jornais opinativos artesanais, publicados em dialetos africanos,


bilíngues ou somente em português, desaparecem e surge no seu lugar uma imprensa atrelada aos
altos interesses, que publica textos literários de péssima qualidade, escritos por colonos recém-
chegados.

Com o início da censura, em 1930, a imprensa africana é levada quase à extinção e,


conforme o negro vai perdendo posição na sociedade luandense, os movimentos literários africanos

567
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ligados à cultura negra também tendem a desaparecer, com exceção da Liga Nacional Africana, que
publica a revista Angola por, aproximadamente, duas décadas e que também veio a desaparecer.

Com a perda do espaço da pequena burguesia negra para os brancos chegados em larga
escala à colônia, o negro vai sendo gradativamente marginalizado. Se antes vivia em bairros
residenciais, passa a morar em musseques, - as favelas de Angola - em casas de madeira, povoadas
por pessoas vindas das vilas localizadas nas fronteiras com o sertão, alheias ao que se passa na
capital e que, por isso, olham esse negro marginalizado, sem perspectivas de melhora financeira e
de se igualar economicamente ao homem branco como um excêntrico. Tempos depois, na década de
cinquenta, o poeta Viriato da Cruz descreve essa situação num poema que se transcreve a seguir:

Sô Santo

Lá vem o Sô Santo...
Bengala na mão
Grande corrente de ouro que sai da lapela
Ao bolso... que não tem um tostão.

Quando o sô Santo passa


Gente e mais gente vem à janela:
- Bom dia, padrinho...
- Olá...
- Beça, padrinho...
- Como está?...
- Bom-om di-ia sô Sasanto...
- Olá, povo...

- Mas por que é saudado em coro?


Por que tem muitos afilhados?
Por que tem corrente de ouro
A enfeitar a sua pobreza?...
Não me responde, avô Naxa?

- Sô Santo teve riqueza...


Dono de musseques e mais musseques...
Padrinho de moleques e mais moleques...
Macho de amantes e mais amantes,
Beça-nganas bonitas
Que cantam pelas rebitas:
Uari Ŕ ngana Santo
Dim Ŕ dom
Nalřo banda ñ calaçala
Dim Ŕ dom
Chaluto um muzambo
Dim Ŕ dom

Sô Santo...
Banquetes pra gentes desconhecidas
Noivado da filha durando semanas
Kitoto e batuque pro povo cá fora
Champanha Řngaieta tocando lá dentro...
Garganta cansando:
Coma e arrebenta
E o que sobra vai no mar...
568
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Hum Ŕ hum
Mas deixa...
Quando o sô Santo morrer,
Vamos chamar um kimbanda
Para ŘNgombo nos dizer
Se a sua grande desgraça
Foi desamparo de Sandu
Ou se já própria da raça...

La vai...
Descendo a calçada
A mesma calçada que outrora subia
Cigarro apagado
Bengala na mão...

Se ele é o símbolo da Raça


Ou vingança de Sandu...
(CRUZ apud MOURÃO: 1978, p. 27-28)

Dessa terceira fase, destacam-se os seguintes escritores: o romancista e linguista António


Assis Júnior, autor de O segredo da morta, de 1934, onde são descritos os costumes em Luanda e o
comércio com o sertão angolano - esse romance é considerado o último grito do homem negro da
geração literária do fim do século XIX; o poeta português radicado Tomaz Vieira da Cruz, que
louva a beleza da mulher negra, em especial a mulata, e tem o mérito de mostrar o colono na
conquista da nova fronteira; o romancista Oscar Ribas, que descreve os costumes e a organização da
Luanda do século XIX e início do XX; o poeta e advogado negro Geraldo Bessa Victor que,
segundo Mourão, Ŗnão faz eco dos valores da cultura negra, [a qual] consciente ou
inconscientemente não aflora, para nos dar uma poesia permeada por um cunho exñticoŗ (1978,
p.30); e o poeta nascido em Benguela, Aires de Almeida Santos, escritor de poemas saudosistas
sobre sua terra. Transcreve-se a seguir o trecho de um texto deste poeta:

A mulemba secou

No bairro da rua,
Pisadas
Por toda a gente
Ficaram folhas
Secas, amarelas
A estalar sob os pés de quem passava
(...)
Como o meu bairro mudou,
Como meu bairro está triste,
Porque a mulemba secou...
Só o velho Camalundo
Sorri ao passar por lá...
(Apud Mourão, a978, p. 30-31)

A quarta fase da literatura angolana inicia por volta de 1948, com o movimento intelectual
chamado Vamos Descobrir Angola, que se propõe a combater a despersonalização do negro devido
569
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

à chegada em massa de imigrantes brancos. Vale ressaltar que, nessa época, até as festas típicas de
Luanda estavam sumindo.

Entre os jovens intelectuais, há alguns jovens brancos, evidenciando que nem tudo da
sociedade de Angola do século XIX estava aniquilado. Nessa época, é criada a Associação dos
Naturais de Angola, através da qual se publica a revista Mensagem.

Boa parte da produção poética de brancos e negros data deste movimento que edita, em
1953, o Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, organizado por Mário de Andrade e
Francisco José Tenreiro, na época estudantes na Universidade de Lisboa. Esses poemas correm o
mundo e chamam a atenção para as expectativas dos jovens angolanos. Um desses poemas é o de
Alda Lara, que se transcreve a seguir:

Regresso

Quando eu voltar
Que se alongue, sobre o mar,
O meu canto criador...
Porque me deu vida e amor
... pra voltar...

Ver de novo balançar


A fronde majestosa das palmeiras,
Que as derradeiras horas do dia
Circundam de magia...
... Regressar...

Poder de novo respirar


(Ó minha terra!)
Aquele calor escaldante
Que o húmus vivificante do teu solo encerra...

Embriagar uma vez mais o olhar,


Numa alegria selvagem
Que o sol
A dardejar calor
Transforma num inferno de cor!
(Apud Mourão, 1978, p. 34-35)

Porém, desse grupo diz Mourão:

A negritude, a meu ver, só epidermicamente tocou os poetas e contistas angolanos dessa


geração. (...) Trata-se de uma geração criada em Luanda, fora do contato com as etnias que
ainda permaneciam no contexto absoluto dos valores das culturas africanas, e criada numa
Luanda já diferente, pois essa cidade estava modificada pela chegada de numerosos
contingentes de homens brancos (1978, p.39).

570
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Corrobora para essa observação de Fernando Mourão o fato de que, sintomaticamente, o


grupo se dispersou após a conclusão do curso superior em Portugal. Uns foram para Luanda, outros
ficaram em Lisboa e demais centros urbanos da Europa, muitos não regressaram, tendo se fixado
em países vizinhos.

Considerações finais

Compreende-se, então, que as quatro primeiras fases da literatura angolana, sistematizadas


por Fernando Mourão, consistem na expressão dos intelectuais angolanos em busca de afirmar a
identidade cultural dos povos que habitam Angola, possuindo significado mais documental que
literário. Essas quatro fases, de certa forma, contribuem para que a articulação entre os intelectuais
que se organizam em torno de um novo movimento cultural em Angola surja com mais maturidade,
o que acontece em 1957, a partir de quando se inicia a quinta fase da literatura angolana. Essa,
porém, é uma discussão que fica para outro momento.

Concluindo, Fernando Mourão apresenta o panorama do início da literatura angolana até a


década de sessenta, enumerando os escritores e exemplificando com seus poemas e comentando sua
importância no cenário social e literário.

Referências bibliográficas

MOURÃO, Fernando Augusto Albuquerque. Luanda. In: A Sociedade Angolana Através da


Literatura, São Paulo: Ática, 1978. P.13-47.

571
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

STAR WARS: BREVE ANÁLISE ENTRE CINEMA, MITO, LITERATURA E HISTÓRIA

Luiz Henrique Barreto de Moura Costa (UFAM/UNISUL)

Apresentação

O presente artigo faz uma breve análise sobre os temas abordados, os modelos utilizados e
os arquétipos mitológicos refletidos na série de longas-metragens intitulados ŖSTAR WARSŗ ,1
filmes escritos, produzidos e dirigidos pelo cineasta norte-americano George Lucas.2 Para tal,
utilizar-se-ão os conceitos desenvolvidos nas obras escritas de Joseph Campbell, antropólogo norte-
americano, reconhecidamente um dos maiores estudiosos e mais profundos intérpretes da mitologia
universal.
Através da relação entre as criações de George Lucas e Joseph Campbell, mostrar-se-á de
que maneira desenvolveu-se intencionalmente o conteúdo de uma mitologia clássica nos filmes, de
forma a contextualizar historicamente seus roteiros à época em que foram produzidos, ou seja, os
anos de 1977, 1980 e 1983. Refletindo, portanto, o mundo real, isto é, a sociedade norte-americana
em seus aspectos políticos e sociais, como um cenário histórico mitologizado de uma história de
aventura ficcional.
A base que Joseph Campbell nos oferece é a sua visão analítica de uma mitologia constante
e comum na sociedade moderna, comparada à ficção nas telas de cinema: as personagens e suas
ideias, as relações de poder e o mito. Historicamente, tais conceitos são de natureza atemporal,
acolhem temas universais que, com sutis diferenças provenientes das singularidades existentes nas
várias culturas do mundo nas mais variadas épocas, refletem a riqueza de um imaginário coletivo.
O mito, desde tempos imemoriais quando os homens ainda rabiscavam bisões em cavernas,
exerce poder nos aspectos mais simples do cotidiano dos povos, seja nos rituais do catolicismo
romano, seja nos rituais dos índios americanos. Embora apresentem amplas variações em termos de
incidentes, de ambientes e de costumes, os mitos de todas as civilizações oferecem um número
limitado de respostas aos mistérios da vida. E George Lucas, com a saga STAR WARS, esboça
questões pertinentes à humanidade que geram confiança e familiaridade ao público; e este não
percebe que seu fascínio provém do poder do mito.

1
STAR WARS A New Hope. George Lucas. EUA: 20th Century Fox, 1977. DVD, 121min. Cor;
STAR WARS The Empire Strikes Back. George Lucas. EUA: 20th Century Fox, 1980. DVD, 124min. Cor;
STAR WARS The Return of the Jedi. George Lucas. EUA: 20th Century Fox, 1983. DVD, 134min. Cor;
STAR WARS The Phantom Menace. George Lucas. EUA: 20th Century Fox, 1999. DVD, 133min. Cor;
STAR WARS Attack of the Clones. George Lucas. EUA: 20th Century Fox, 2002. DVD, 142min. Cor;
STAR WARS The Revenge of the Sith. George Lucas. EUA: 20th Century Fox, 2005. DVD, 146min. Cor.
2
Os filmes The Empire Strikes Back e The Return of the Sith foram dirigidos, respectivamente, por Irvin Kershner e
Richard Marquand.
572
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O Mito e o Herói

Mito
O mito pode ser definido como uma narrativa de caráter simbólico relacionado a uma dada
cultura, pelo qual se formula uma explicação da ordem natural e social e de aspectos da condição
humana. O mito é uma tentativa de explicação da realidade, os principais acontecimentos da vida,
os fenômenos naturais, as origens do mundo e do homem por meio de deuses, semideuses e heróis.
E como uma narrativa de explicação da realidade, possui caráter estruturante, pois está associado ao
rito. É através dos ritos Ŕ cerimônias, danças, orações e sacrifícios Ŕ que os mitos se põem em ação
na vida do homem.1
Entender toda a mitologia que cerca o homem moderno é entender o significado de cada
ação praticada numa sociedade que não conhece seu passado. Entender que o homem é fruto de
todo um contexto com profundos significados históricos é ver sua trajetória construída em mitos e
lendas fantásticas até a atualidade. A mitologia do homem moderno possui as mais variadas formas
de manifestação, todas elas com base nos achados escritos de culturas antigas, as quais, hoje,
transformam-se em espetáculos visuais que fazem o homem retornar aos costumes de seus
ancestrais.
Seja através da religião, seja através da arte, seja através da cultura popular, os mitos se
revelam como ideias criadas em um dado momento da história humana e amplamente seguidas. O
mito opera como uma história que guia e mobiliza povos, e tal tarefa se torna fácil a partir do
momento em que a comunicação une esses povos, a partir da facilidade de acesso à linguagem que
conta as histórias e as passa de geração em geração. E numa sociedade como a atual, que se
vangloria do termo Ŗmodernidadeŗ com tanta freqüência, o mito se fortifica ao mesmo tempo em
que sofre o esquecimento de suas raízes.
As transformações históricas pela qual a humanidade atravessa tem seus momentos de
Ŗprogressoŗ no campo da linguagem, quando se percebe que esta é viva, muda suas características
de acordo com a época e com o lugar. Atualmente, através de uma linguagem mais dinâmica como
nunca fora, a transferência de informações e a descoberta do conhecimento em seus mais diferentes
níveis são aspectos elementares na transformação dos mitos. As artes escritas, sonoras e visuais
remontam a tempos antigos, a épocas remotas que voltam à vida nos olhos e ouvidos
contemporâneos.
A literatura e o cinema são de longe os meios mais poderosos de se remontar histórias
fantásticas de deuses e heróis que, ao contrário do que seus leitores e espectadores pensam, estão
muito próximas a nós. São canais de abertura para o entendimento humano sobre o sofrimento
presente no que podemos chamar de jornada da alma humana. O espírito do homem segue numa

1
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Editora Palas Athena, São Paulo, 1990. 250p.

573
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

jornada de alto descoberta enquanto presente no invólucro de matéria chamado corpo humano. Tal
trajetória tem sido seguida por toda a humanidade desde os primórdios dos tempos. E o mito é o
suporte que faz transcender o significado dessa jornada. Mas na era moderna, na sociedade assim
chamada ocidental, essa transcendência perdeu-se na correria do dia-a-dia. Só é recuperada quando
entramos na sala escura a qual chamamos Ŗcinemaŗ , ou quando passamos os olhos sobre um épico
escrito de uma obra fantástica.
E em toda história fantástica existe o herói.

O herói

O herói pode ser definido como a figura arquetípica que reúne em si todos os atributos
necessários para superar de forma excepcional um determinado problema de dimensão épica.
Variando consoante às épocas, às correntes estético-literárias, os gêneros e subgêneros, o herói é
marcado por uma projeção ambígua: por um lado, representa a condição humana, na sua
complexidade psicológica, social e ética; por outro, transcende a mesma condição, na medida em
que representa facetas e virtudes que o homem comum não consegue mas gostaria de atingir Ŕ fé,
coragem, força de vontade, determinação, paciência etc.1
Em outras palavras, o herói é o que poderia ter sido ou o que o homem comum gostaria de
ser. Às vezes, caracteriza-se por uma metáfora às fraquezas do ser humano. Mas, como dito
anteriormente, a figura do herói é marcada. E suas marcas apresentam-no como o herói compósito:
Apolo, Wotan, Buda e numerosos outros protagonistas da religião, dos contos de fadas e do folclore
representam simultaneamente as várias fases de uma mesma história, da qual faz parte o
relacionamento entre seus símbolos intemporais e os símbolos detectados nos sonhos pela moderna
psicologia profunda.
O ponto de vista psicológico pode ser então comparado com as palavras proferidas por
grandes líderes espirituais, como Moisés, Jesus, Maomé, Lao-Tzu e os Anciãos das tribos
australianas. Oculto por trás de um milhar de faces, emerge o herói por excelência, arquétipo de
todos os mitos. É através da análise da figura do herói compósito de Luke Skywalker que podemos
entender como a história desenvolvida por George Lucas é possuidora dos mesmos arquétipos
mitológicos clássicos contidos em inúmeras outras obras ficcionais. O roteiro de Lucas,
propositalmente, desenvolve as ideias sobre o mito e a jornada do herói, pois se relaciona com o
momento histórico no qual foi criado, reflete a realidade de seu autor e é implicada diretamente por
ela.
Luke Skywalker é a resposta aos anseios de uma sociedade fragilizada, ele é a nova
esperança de uma nação enfraquecida, é o herói de uma geração corrompida. E ele não é o primeiro,
é apenas mais um de uma série de símbolos que são buscados pela humanidade nos momentos mais

1
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. 11. ed. Editora Pensamento, São Paulo, 2007. 414p.

574
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

difíceis. Nossa tarefa aqui é desvendar como a era atual utiliza-se do cinema para essa busca pelos
deuses perdidos, mais especificamente com o cinema de ficção e, em especial, STAR WARS.
Implicando esta busca, está a representação da figura do herói contida no imaginário de uma
nação. Se entendermos a relação do mito com a obra ficcional, entenderemos a receptividade
historicamente justificada do público e, a partir daí, a realidade mitológica das obras literárias que
enveredam pelo mesmo caminho da obra cinematográfica.

Cinema, Mito e História

Entre o mito e a narrativa moderna, seja ela escrita ou audiovisual, há uma ideia simples:
todas as histórias consistem de alguns poucos elementos estruturais comuns encontrados nos mitos,
contos de fada, sonhos e filmes. Eles são conhecidos, coletivamente, como ŖA Jornada do Herñiŗ .1
Esses elementos, usados sabiamente na produção literária moderna, são antigas ferramentas do
ofício de contar histórias. São comuns certos personagens familiares, adereços, locações e situações,
implicados pelo padrão ou molde que guia e traça a história.
Filmes de ficção como STAR WARS repetem os padrões universalmente satisfatórios que
Joseph Campbell encontrou nos mitos. Existe algo neles de que as pessoas precisam, um padrão
oculto da mitologia que reflete os estágios da jornada do herói e entrelaça mito, história e
psicologia. O psicólogo Carl Jung escreveu que é constante a repetição de personagens nos sonhos
das pessoas e nos mitos de todas as culturas, pois esses arquétipos refletem diferentes aspectos da
mente humana, que se divide em outras personalidades e foge do drama da vida real. Jung constatou
uma forte correspondência entre as figuras dos sonhos de seus pacientes e os arquétipos comuns da
mitologia. Ele sugeriu que ambos vinham de uma fonte mais profunda localizada na inconsciência
coletiva da raça humana.2
STAR WARS pode ser visto como uma das mais desenvolvidas expressões das ideias e
concepções de Joseph Campbell sobre a Jornada do Herói. Após seu lançamento, tornou-se
rapidamente um sucesso de bilheterias, pois sua história mostrou-se como um grande exemplo dos
movimentos e princípios da Jornada do Herói, cujas partes mostraram-se simples, claras e vivas. Os
filmes utilizaram a linguagem da cultura pop, providos de metáforas úteis, símbolos, e frases que
expressavam as concepções populares de bem e mal, tecnologia e fé.
A obra desencadeou uma série de produtos, acessórios, franquias etc. Gerações inteiras
cresceram e ainda crescem sob sua influência, e a obra tem inspirado um grande número de artistas
a perseguir sonhos e a desenvolver sua criatividade. STAR WARS ocupa hoje para milhões de

1
VOGLER, Christopher. The Writer‘s Journey. 2. ed. Michael Wiese Productions, 1998. 325 p.

2
ŖCampbellřs thinking runs parallel to that of the Swiss psychologist Carl G. Jung, who wrote about the archetypes:
constantly repeating characters or energies which occur in the dreams of all people and the myths of all cultures. Jung
suggested that these archetypes reflect different aspects of the human mind Ŕ that our personalities divide themselves
into these characters to play out the drama of our lives. He notice a strong correspondence between his patientsř dream
figures and the common archetypes of mythology. He suggested that both were coming from a deeper source, in the
collective unconscious of the human race.ŗ id. ibid. p. 9.
575
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

pessoas o mesmo lugar que muitos velhos mitos ocuparam, dando-lhes metáforas e significados.
Mesmo se a saga se resumisse a apenas um filme, seu impacto cultural ainda seria considerável,
mas sua influência foi triplicada com as continuações ŖThe Empire Strikes Backŗ e ŖReturn of the
Jediŗ.
Temos de ter em mente Ŕ sempre Ŕ o dinamismo que o cinema implicou em 1977, como
ainda implica nas ciências humanas, com seus recursos visuais que afetam direta e indiretamente a
psique humana. É imperativo lembrarmos o impacto causado mesmo antes da década de 1970, com
a criação e difusão do cinema e outros meios de comunicação de massa nas sociedades do século
XX. Se visto como objeto industrial reproduzido e destinado às massas, é revolucionário no sistema
de artes, desde a produção até a difusão.1
O historiador inglês Eric Hobsbawm, ao falar das mudanças ocorridas nas sociedades
ocidentais nas primeiras décadas do século XX, destaca o surgimento das artes voltadas às massas
em detrimento das artes destinadas à elite, e fala do cinema como influência decisiva Ŗna maneira
como as pessoas percebem e estruturam o mundoŗ .2 Na relação cinema e história, a questão central
que se levanta é: o que a imagem da película reflete? Ela é a expressão da realidade ou uma
representação? Qual o grau possível de manipulação da imagem?
Tais perguntas nos levam a refletir sobre a questão da linguagem visual e da imagem, suas
várias manifestações em diferentes momentos históricos como forma de expressão, comunicação e
construção de padrões a serem definidos e seguidos por uma determinada sociedade. É através da
semiologia que admitimos que a imagem não ilustra nem reproduz a realidade, ela a reconstrói a
partir de uma linguagem própria que é produzida num dado contexto histórico.3
Foi no período da década de 1970 que o historiador francês Marc Ferro explicitou
formalmente as relações existentes entre cinema e história.4 O filme pode ser considerado como
documento histórico tendo seu campo de investigação ampliado graças à aproximação dos
historiadores com a semiologia e a psicanálise, procedendo, assim, a uma renovação metodológica
na compreensão dos comportamentos, das visões de mundo, dos valores, das identidades e das
ideologias de uma sociedade ou de um momento histórico.
Ainda segundo Ferro, é possível identificar com maior clareza o diálogo entre filme e
sociedade por meio da crítica e recepção do público. O fascínio desse público vem do poder que o
mito inserido na película exerce e torna a obra atraente. Independente do que seja retratado nas

1
KORNIS, Mônica Almeida. História e cinema: um debate metodológico. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.
10, 1992, p.237.
2
Entrevista concedida a Nicolau Sevcenko para o jornal Follha de S. Paulo, 04/06/1988. apud KORNIS, Mônica
Almeida. op. cit.
3
Foi no âmbito do movimento renovador da historiografia francesa, denominado ŖNova Histñriaŗ, que a histñria das
mentalidades ganhou impulso enriquecendo o estudo e a explicação das sociedades através das representações feitas
pelos homens em determinados momentos históricos. Foi essa mesma concepção que impulsionou o campo mais vasto
da história do imaginário. A Nova História também ampliou o significado de documento histórico, incluindo-se aí o
cinema. Ch. Samaran, citado por Jacques Le Goff. Documento/Monumento, in Enciclopédia Einaudi, Porto, Imprensa
Nacional, Casa da Moeda, 1984, vol. l: Memória e História, p.98.
4
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo. Paz e Terra. 1992.

576
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

telas, uma coisa é certa, vemos ali o grave e o constante do sofrimento humano, o que sempre foi o
tema principal da mitologia clássica.
Por que se precisa da mitologia hoje? Será que todos esses deuses são necessários ou
irrelevantes à condição humana? O que muitos não sabem é que os vestígios desses deuses antigos
se alinham ao nosso sistema interior de crenças. Os rituais os evocam. Seja dentro de um tribunal,
seja numa cerimônia fúnebre, seja num longa-metragem de cinema. O que se desenvolve em STAR
WARS é uma nova rotação de tudo isso, uma poderosa versão da história clássica do herói.
E George Lucas desenvolveu em seus roteiros numa linguagem moderna é o mesmo que
Goethe disse no Fausto: a mensagem de que a tecnologia não vai nos salvar. Nossos computadores,
nossas ferramentas, nossas máquinas não são suficientes. Temos de confiar em nossa intuição, em
nosso verdadeiro eu. Assim, superamos as paixões tenebrosas, e o herói termina simbolizando nossa
capacidade de controlar o selvagem irracional dentro de nós.1
Essa simbologia não torna o herói grande necessariamente. O objetivo último da busca não é
a coragem, mas a vivência de uma vida de auto-descoberta. A ideia guia de Campbell é procurar o
caráter comum dos temas dos mitos do mundo, visando a constante exigência, na psique humana, de
uma centralização em termos de princípios profundos Ŕ a canção que nos faz dançar Ŗquer quando
escutamos o ritual de um curandeiro no Congo, quer quando lemos os poemas de Lao Tsé, um
argumento de S. Tomás de Aquino, ou aprendemos o sentido de uma lenda esquimñŗ. 2
Transformando os filmes da saga STAR WARS num instrumento de diálogo com a
sociedade, poderemos, analisando a mitologia da jornada do herói que eles contêm, reconstruir e
entender a sociedade e o contexto histórico de sua produção. Tal tarefa se mostra imperativa como
um passo paralelo no caminho de entendimento rumo ao imaginário do público e sua visão de
mundo na construção coletiva de seus heróis nacionais e na construção e desenvolvimento dos
arquétipos em que esses heróis estão inseridos.
Assim, duas realidades se refletem e se completam. A nossa realidade que busca seus deuses
somente quando precisa deles e essa busca se dá nos mais variados meios de produção artística,
cultural e religiosa. E a realidade da ficção que se utiliza dos arquétipos mitológicos clássicos do
coletivo inconsciente da humanidade para lhes fornecer os deuses e heróis de que essas pessoas
necessitam3. O problema do mundo moderno é que não estamos familiarizados com a literatura do

1
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Editora Palas Athena, São Paulo, 1990. p. 7.
2
id. ibid. p. 10.
3
Um exemplo claro da simbiose da realidade e ficção é como se deu a evolução das histórias em quadrinhos ao longo
do século XX, como retrato quase fiel da realidade norte-americana e mundial. A chamada Era de Ouro dos quadrinhos
surgiu por volta da década de 1930, com as primeiras publicações sobre aventureiros que usavam fantasias e combatiam
o crime. Esses novos super-heróis logo conquistariam milhares de fãs e criariam uma demanda incrível por mais e mais
publicações do gênero. Essas histórias eram simples, mas mostravam heróis com uma atitude agressiva, acima da lei,
que depois seria devidamente amenizada na chamada Era de Prata. Ao longo desse primeiro período, 1930 a 1950, era
comum os heróis combaterem o Eixo do Mal, chegando por vezes até mesmo encarar Hitler e Mussolini no mano-a-
mano. Muitas dessas HQs realmente chegavam às frentes de batalha nos teatros europeu e japonês e serviram para
aumentar o moral das tropas no front. A partir de 1950, imperou um estilo mais leve e maniqueísta. Nessa época, no
início da corrida atômica e espacial, eram comuns temas científicos, repleto de alienígenas, energia atômica,
radioatividade e mutações. Os heróis tinham ainda códigos de conduta heróicos como nunca matar, obedecer à lei e

577
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

espírito, esquecemos aqueles que falam dos valores eternos que têm a ver com a vida Ŕ Platão,
Buda, Confúcio, Goethe etc.
O espírito humano se sustentou desde tempos antigos através desses temas que construíram
civilizações e formaram religiões através dos séculos. Em outras palavras, contamos histórias para
tentar entrar em acordo com o mundo e harmonizar nossas vidas com a realidade e encontrarmos a
experiência de estar vivos. O mito assume a função de pista para as potencialidades espirituais da
vida humana e encontra no cinema seu caminho mais promissor.

proteger os valores americanos. A Era de Bronze, 1970 a 1980, ficou famosa pela maior sofisticação nos temas,
cenários e personagens focados em temas reais. Questões como direitos civis, movimento negro e feminista e guerra do
Vietnã eram comuns. Os heróis da Era de Bronze lidavam com problemas cotidianos como relacionamentos, rebeldia
juvenil, drogas, alcoolismo e racismo. Os heróis humanizados entravam em conflito com suas próprias identidades
secretas, com suas dúvidas e subjetividades, assim como qualquer pessoa comum Ŕ foi também uma época da
globalização dos personagens. Aconteceu uma inundação de personagens de todos os continentes e de diversas culturas
e raças, se misturando aos típicos super-heróis americanos brancos. De 1980 a 1990, é a chamada Idade da Trevas dos
Quadrinhos americanos. Surgem os primeiros anti-heróis, com métodos muito mais agressivos e explícitos que seus
antecessores. Um eco do cinema americano, que nessa década investe em heróis violentos e armados até os dentes.
Outro aspecto que desaparece na Era de Ferro/Idade das Trevas é o maniqueísmo. O limite entre herói e vilão quase
desaparece e a moral se torna ambígua. Os heróis desta Era estão desiludidos com a ineficácia do sistema e resolvem
fazer justiça com as próprias mãos, não importa como. A partir do final da década de 1990, revela-se um teor de
nostalgia e de colagem de referências das eras anteriores, agrupadas nas páginas das revistas com sensibilidades
modernas, tentando casar a beleza da Era de Prata com o cinismo da Era de Ferro. Nela, os super-heróis não são algo
novo, eles já foram, em certo ponto de vista, absorvidos pela sociedade que tenta agora coexistir com eles. Por isso são
comuns temas realistas discutindo a influência dos supers na mídia, na política e na diplomacia. Surgirão assim histórias
que vão questionar as verdadeiras funções dos super-seres num mundo real. Os quadrinhos através dos tempos.
Disponível em http://www.zineacesso.com/2007/03/30/os-quadrinhos-atraves-dos-tempos-1ª-parte/. Acessado em 03 de
agosto de 2010.
578
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A FLORESTA CIFRADA DE SIGNOS EM COBRA NORATO

Marcos Vinícius Scheffel1 (UFAM/UFSC/Fapeam)

Resumo: Cobra Norato, escrito por Raul Bopp e publicado em 1930, é um dos livros mais
significativos do primeiro Período do Modernismo Brasileiro (1922-1930). Composto de 33 cantos,
o poema relata a viagem mágica do eu lírico na pele de uma cobra pela floresta Amazônica. O autor
construiu o livro a partir de experiência de viagem pela Amazônia e agregou ao poema
características típicas do Modernismo daquele período, principalmente as idéias ligadas ao
primitivismo dos Manifestos Pau-Brasil e Antropófago. O presente trabalho pretende rastrear
algumas influências de livros do folclore da Amazônia e da experiência Ŗviajeiraŗ de Raul Bopp na
construção deste importante marco da poesia brasileira, procurando dimensionar a nova perspectiva
adotada pelo autor para representar a floresta segundo as convenções Modernas. Além disso,
pretendo surpreender, no plano formal e expressivo, o uso de técnicas ligadas à Poesia Futurista na
representação do espaço da Floresta.

Palavras-chave: Cobra Norato, Movimentos de Vanguarda, Poesia brasileira.

Num curto período, do início do século XVII ao início do século XIX, o Brasil expandiu seu
território político e cultural. A anexação do Acre e a ocupação mais efetiva da Região Norte, ambas
em conseqüência do ciclo da borracha, são os melhores exemplos dessas duas conquistas.
Anteriormente, viagens como as dos naturalistas alemães Spix e Martius à Amazônia, entre 1817 e
1820, deram um caráter de observação científica àquela região, até então pouco explorada,
revelando plantas, animais e povos que passariam para o imaginário nacional. E como afirmou
Benedict Andersen (1991: p.25), toda nação: É imaginada porque até os membros da mais pequena
nação nunca conhecerão, nunca encontrarão e nunca ouvirão falar da maioria dos outros membros
dessa mesma nação, mas, ainda assim, na mente de cada um existe a imagem de sua comunhão. A
literatura cumpriu e cumpre um papel fundamental na construção dos imaginários de nação.
Na literatura brasileira a incorporação desses Ŗnovos territñriosŗ foi um pouco demorada. O
Romantismo brasileiro não se valeu dessa nova região para a construção ficcional, bastando lembrar
que mesmo José de Alencar Ŕ com seu projeto de cobrir com a literatura o país vertical (plano
histórico) e horizontalmente (plano geográfico) Ŕ ocupou-se apenas dos índios do nosso litoral e,
entre os diversos cenários de seus romances, a floresta Amazônica não assistiu aos idílios amorosos
de suas personagens. Somente no Modernismo brasileiro é que se requisitou a posse imaginária da
Região. Os Modernistas brasileiros inauguram a viagem turística de Kodak na mão, causando

579
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

espanto nos próprios moradores da região que não conseguiam conceber que alguém viajasse para o
Amazonas, como se vê no depoimento de Mário de Andrade em seu Turista Aprendiz (1927):

Nem era possível zangar com o homem, tal o pasmo dele, vendo alguém que não era uma
rainha enfarada e decerto meio maluca, andar passeando por aquelas paragens. Então
expliquei com muita paciência para ele, espécie de explicação coletiva embora tardia, dada
a centenas de pessoas que já tinham privado comigo nesta viagem, expliquei que não, que
éramos um grupo de amigos paulistas, curiosos de conhecer outros brasis, viajando cada
qual por conta própria, pela vaidade ou aventura de conhecer coisas.

A viagem agora era movida não apenas por um interesse econômico, nem somente pelo
senso de aventura, mas pelo desejo de conhecer outros brasis, uma mistura de trabalho
antropológico e turismo, como destacava o autor de Macunaíma. Conforme seria assinalado pela
crítica, na primeira fase do movimento havia dois brasis possíveis para os modernistas brasileiros:
São Paulo, espaço da modernidade, ou o território mítico de Macunaíma, da Antropofagia e de
Cobra Norato (BOSI: 2003, p.215). Vendo por essa perspectiva, a escolha de uma dessas
possibilidades obrigaria, de certo modo, os autores a se valerem de determinados recursos formais
em suas tentativas de representarem o mundo tecnológico da cidade ou o espaço primitivo, mítico
da floresta e de seus povos. Assim, os que optassem pelo tema urbano se filiariam às técnicas
futuristas e cubistas, enquanto os primitivistas se filiariam às técnicas surrealistas, corroborando a
idéia batida de que o urbano está ligado à ciência, à tecnologia, e a floresta está ligada ao onírico, ao
inexplicável. Seria isso mesmo?
É nesse ponto que gostaria de assinalar algumas particularidades de Cobra Norato,
publicado em 1930, pelo gaúcho-cidadão-do-mundo-viajeiro Raul Bopp. Quero demonstrar como
Bopp embaralha e torna mais complexas as associações entre a floresta e as correntes expressivas
modernistas ao valer-se das técnicas futuristas, imprimindo uma perspectiva industrial e
cosmopolita à sua floresta cifrada de signos.
Antes de me ocupar da questão central aqui proposta, quero contextualizar, brevemente,
alguns aspectos gerais do poema (a concepção do poema e seu produto final) e, por fim, comentar
uma experiência poética de Bopp pouco conhecida, publicada dois anos antes de Cobra Norato Ŕ e
que, para a época, foi uma Ŗaventureira viagemŗ de carro de São Paulo a Curitiba. Já neste trabalho,
se surpreende na representação de elementos da modernidade (o carro, a estrada) traços semelhantes
aos utilizados para representar a floresta de seu mais famoso poema.

A concepção do poema

Cobra Norato começou a se formar para Bopp a partir de suas experiências de viagem.
Durante o seu curso de Direito, Bopp fez questão de cursar cada ano da Faculdade em uma cidade
diferente: Porto Alegre, Recife, Natal, Belém. Nesse período, travou amizades e conheceu obras

1
Professor de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura da Universidade Federal do Amazonas Ŕ Campi Humaitá.
Doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista da FAPEAM.

580
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

importantes para construção de sua poesia, como a amizade com o folclorista Luiz da Câmara
Cascudo, em Natal, ou o conhecimento, em 1921, do livro Lendas em Nheengatu e em Português,
de Antônio Brandão de Amorim, durante sua estada em Belém. Nele, Bopp encontrou elementos
que convergiam para o projeto primitivista do Modernismo Brasileiro: Foi uma revelação. Eu não
havia lido nada mais delicioso. Era um idioma novo. A linguagem tinha às vezes uma
grandiosidade bíblica. / No seu mundo as árvores falavam. O sol andava de um lugar para o outro
(BOPP: 2008, p.83-84). Segundo o poeta, ele foi conduzido no período a um novo estado de
sensibilidade, procurando os germes de poesia pura em suas raízes populares e daí surgiu, ainda
motivado pelos nheengatus de Amorim, a idéia de fixar o mito da cobra grande num episódio
poemático. E foi a lenda de cobra Norato, somada a uma história obscura que lhe foi contada por
uma senhora no Maranhão sobre a filha da rainha Luzia, que lhe ofereceu uma substância humana.
A saber: a lenda da Cobra Norato conta a história de duas cobras filhas de Boiúna, a Cobra-
Grande, com uma mulher. A mulher, descobrindo que as crianças eram cobras, jogou-as no rio.
Ambas sobreviveram: uma má (Cobra Maria) e outra boa (Cobra Norato ou Nonato). Nonato vê-se
obrigado a matar a irmã e espera que alguém o liberte de sua condição (teria que lhe dar leite e ferir
sua cabeça). O eu lírico do poema se apropria apenas da pele de Cobra Norato. De acordo com a
lenda, Norato deixava sua pele na beira do rio e se transformava num rapaz para ir às festas da beira
do rio. Aqui o eu lírico faz uma inversão e rouba a pele e a condição de cobra para fazer uma
viagem mítica e onírica pela floresta amazônica, mas sem que isso impeça que um olhar urbano
transfigure a floresta, imprimindo-lhe elementos urbanos.

Matrizes formais

Como assinalou A. Bosi (2003), movimentos como o surrealismo, o dadaísmo e o cubismo,


quando relacionados ao mergulho nos elementos primitivistas (o mundo mítico e folclórico),
encontraram um solo fértil no Brasil. Bastava afastar-se um pouco das metrópoles para mergulhar
no mundo mágico de lendas, assombrações e de uma fala que se desenvolvia livremente longe das
convenções gramaticais: a língua pura e neolítica e a contribuição milionária de todos os erros de
Oswald de Andrade no seu Manifesto Pau-Brasil.
Através dos Modernistas de São Paulo, Raul Bopp teve contato com as técnicas desses
movimentos de vanguarda, caminhando para um ideal de poesia pura, ligada a fontes pré-lógicas,
como assinalou a pesquisadora Lígia Morrone Averbuck (1985: p.148), em Cobra Norato e
revolução Caraíba: as novas formas permitiam a identificação completa, não mediatizada, entre o
poeta e um mundo natural fortemente impressivo, resultando desta unidade a expressão de ―pura
poesia‖. [...] O destruir a literatura, aí no sentido convencional, propõe-se como ―reconstruir o
mundo‖ expressão de uma ―arte social, tribal, religiosa, comemorativa.ŗ No poema, o mergulho
nas raízes primitivas se dá na pele de uma cobra, que traz dentro de si um eu lírico cidadão da
metrópole. Um eu lírico que se entrega ao mundo mítico e desconhecido, num ritmo alucinatório Ŕ

581
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

movido pela diamba, pela maleita Ŕ e, ao mesmo tempo, veloz. Ritmo de máquina que faz lembrar a
outra matriz formal do poema: as técnicas da poesia futurista.
Como se sabe, o Futurismo, idealizado por Francisco Marinetti, com seus pressupostos de
destruição do passado e louvor à civilização moderna da máquina e da guerra, pregava o uso de uma
linguagem que quebrasse com a sintaxe tradicional, abolindo elementos coesivos, assemelhando-se
aos telegramas e às tomadas cinematográficas. Claro que todos esses elementos favoreciam a
representação do espaço urbano, mas em Cobra Norato pode-se perceber que o futurismo deixou
marcas importantes.
Cobra Norato foi gestado e reescrito durante toda década de 20 e passou pela mão de vários
amigos, escritores e artistas modernos que deram seus Ŗpitacos vanguardistasŗ . Nesse mesmo
período, Raul Bopp escreveu um interessante texto, coligido por Augusto Massi nas Poesias
Completas de Raul Bopp (1998), intitulado Como se vai de São Paulo a Curitiba. Trata-se do relato
de uma viagem de carro entre essas duas cidades que, se hoje pode parecer algo banal, à época era
uma aventura através de poucos trechos de estradas construídas em linha reta e pelo constante abrir
porteiras de estradas particulares. O poema não é revelador apenas pelo seu conteúdo temático, mas
também pelo plano expressivo extremamente próximo de Cobra Norato. Vamos a dois trechos do
relato poético:

Nas estradas boas sofre-se uma aflição de velocidade.


Parece que atrás de cada curva há espectadores ansiosos esperando a gente de relógio na
mão.
O motor alucinado abafa na corrida um surdo rumor de aplausos anônimos.
São Roque passou.
Esfarelou-se em dois minutos na memória: Uns italianinhos a cavalo. A praça. Uma igreja
colonial. Casas e casas.
Num canto da rua, uma bomba de gasolina, de pé, às ordens. (BOPP: 1998, p.132-133)

Aqui, o poeta procurou imprimir a velocidade, marcada tanto no plano semântico (a aflição
de velocidade, o motor alucinado, São Roque passou) como na técnica de quadros
cinematográficos: Uns italianinhos a cavalo. A praça. Uma igreja colonial. Casas e casas. A
velocidade transforma essa sucessão de imagens num filme assistido da janela do carro. Trata-se de
uma linguagem substantiva, com poucos elementos conectivos, com versos curtos, em que cada
quadro é separado por ponto final. Tal escrita foi largamente utilizada pelos modernos brasileiros
em poemas, manifestos e na prosa de Oswald de Andrade, tendo suas principais origens no
Futurismo e nos movimentos de vanguarda que apostavam no fragmentário, no simultaneísmo e na
sucessão de imagens, como se pode ler no Manifesto Técnico da Literatura Futurista: Para dar os
movimentos sucessivos de um objeto é preciso dar a cadeia das analogias que ele evoca, cada uma
concentrada em uma palavra essencial. (MARINETTI IN TELES: 1978, p.90)
Aproveitar-se desses recursos expressivos na representação de elementos da civilização
industrial e urbana era um caminho natural. No entanto, Bopp usou as técnicas futuristas na
representação da floresta Amazônica, apontando para o encontro de duas civilizações em Norato Ŕ
personagem mítico que empresta sua pele elástica para um eu lírico urbano adentrar nos mistérios
582
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

da floresta. É justamente essa duplicidade, primitivo-urbano, do eu lírico que lhe permite conversar
no plano mítico com os seres da floresta, mas ao mesmo tempo projetar um olhar urbano e fabril
sobre os elementos naturais. Assim, o poema traz uma série de elementos do mundo civilizado: a
pele elástica da cobra, o riozinho que vai para escola, a maria-fumaça que passa passa passa, uma
lâmina rápida que risca o mato, as árvores niqueladas, a noite envidraçada, este rio é nossa rua. É
como se a floresta só pudesse ser apreendida sob o olhar urbano, que imprime sua marca nas
metáforas e comparações. Uma apropriação da floresta pelo urbano, uma familiarização daquilo que
é diferente e estranho aos olhos do eu lírico urbano.
Além disso, a própria viagem de Norato em busca da filha da rainha Luzia é feita num
ritmo veloz de máquina, marcado, a exemplo do relato poético anteriormente comentado, por uma
sucessão de imagens que remetem às técnicas futuristas. Todo o poema destaca aspectos móveis da
paisagem: a floresta vem caminhando, movem-se raízes com pernas atoladas, aqui vai passando um
riozinho de águas órfãs fugindo. Desta forma, além do deslocamento do eu lírico, somam-se os
elementos da natureza que também se movem (canto XVII). Como afirmou José Paulo Paes: A
simbologia de Cobra Norato funda-se quase toda num animismo incorrigível – o primitivo é
explicado pelo moderno, o rural elucidado pelo urbano. Aquele ―mundo paludial e como que ainda
em gestação‖, da frase de Manuel Bandeira, descreve-o o poeta através de metáforas fabris, se me
consentem o adjetivo. (PAES: 1961, p.87).
Nesse sentido, Cobra Norato representa o confluir de algumas das principais técnicas
vanguardistas, sintetizadas no Manifesto Pau-Brasil e Antropófago, conciliando o binômio
primitivo-urbano, tanto no plano temático como no plano expressivo, promovendo o encontro de
dois brasis, vislumbrados num olhar duplo, estrategicamente construído, em que a floresta não é
vista exoticamente, mas em delírio por um eu lírico movido à diamba, puçangas, maleita e leituras
de um mundo civilizado projetado na floresta cifrada de signos.

Referências bibliográficas

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas – reflexões sobre a origem e a expansão do


nacionalismo; tradução Catarina Mira. Lisboa: Editoções 70, 1991.

AMORIM, Antonio Brandão de. Lendas em nheengatu e em português. Manaus: Fundo Editorial-
ACA, 1987.

ANDRADE, Mário. Fotógrafo e turista aprendiz. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1993.

AVERBUCK, Lígia Morrone. Cobra Norato e a Revolução Caraíba; prefácio de Guilhermino


César: Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1985.

BOPP, Raul. Poesia Completa de Raul Bopp; organização preparação de textos e comentário de
Augusto Massi. Rio de Janeiro: José Olympio; São Paulo: Edusp, 1998.

583
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

BOPP, Raul. Vida e Morte da Antropofagia; apresentação Regis Bonvicino. 2ª ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2008.

BOSI, Alfredo. Moderno e Modernista na literatura brasileira. In: Céu, Inferno Ŕ ensaios de
crítica literária e ideológica. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. (p.209-226)

584
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

REVISITANDO AS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS DE BELÉM DO INÍCIO DO SÉCULO


XX: UMA LEITURA DAS CRÔNICAS DE DE CAMPOS RIBEIRO

Maria das Neves Rocha de Castro1 (UFPA/ CAPES)

Resumo: A narrativa é entendida como uma forma de representação da realidade em seus vários
aspectos, principalmente, sócio- culturais. Em se tratando do livro Gostosa Belém de outrora
(1966), é possível se estabelecer essa relação, tendo em vista, no contexto da obra, escrita pelo
literato José Sampaio de Campos Ribeiro (1901-1980), a presença de uma vasta descrição das
principais manifestações culturais ocorridas na capital paraense dos primeiros decênios do século
XX, que sob o viés memorialístico do cronista, são reconstituídas em forma de crônicas. Dessa
forma, o presente trabalho objetiva traçar o panorama cultural de Belém a partir da leitura das
crônicas ŖMastros votivos de outroraŗ eŗ Oh! Noites de junho antigoŗ , embasando-se no escopo
teórico proposto por Jacques Le GOFF (2003) acerca da memória enquanto fenômeno ligado à vida
social.
Palavras-chave: festas populares; crônica; memória.

―Para o autor que recorda o principal não é o que ele


viveu, mas o tecer de sua recordação, o trabalho de
Penélope da rememoração‖.

(Walter Benjamin)

1. Iniciando a prosa...

Começo tecendo algumas considerações sobre o objeto de estudo que embasou este trabalho.
Trata-se do livro de crônicas Gostosa Belém de outrora (1966), escrito por De Campos Ribeiro2,
publicado inicialmente no ano de 1966 e reeditado posteriormente pela Secult em 2005, compondo
a coleção da série ŖLendo os municípiosŗ . Neste livro, o cronista apresenta-nos como pano de fundo
uma Belém, revestida de lirismo e nostalgia pelas Ŗsaudosas, agridoces lembrançasŗ do contador-
personagem que vivenciou grande parte dos episódios narrados, nutrindo uma afeição lírico-filial
pela cidade, tendo em vista o fato de a mesma ser sua terra adotiva, pois ele era natural de São Luis
do Maranhão, de onde migrou aos cinco anos de idade com sua família e, em solo paraense, fixou
suas raízes de bom prosador e versejador. Vale ressaltar que Belém do Pará constituiu o conteúdo

1
Graduada em Língua Portuguesa pela UFPA e cursa o Mestrado em Estudos Literários na mesma instituição de
ensino. Bolsista da CAPES.
2
José Sampaio de Campos Ribeiro nasceu em São Luis do Maranhão no dia 28 de janeiro de 1901, veio com a família
para a capital paraense aos cinco anos de idade. Dentre as funções por ele exercidas, destaca-se a de jornalista, em
especial do jornal ŖFolha do Norteŗ (1921-1926), importante veiculo de propagação de seus escritos. Ocupou a cadeira
de número 37 da Academia Paraense de Letras e foi membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Sociedade
Paraense de Educação e do Conselho Estadual de Cultura. Faleceu na cidade de Belém, musa inspiradora de grande
parte de sua produção literária, no dia 28 de setembro de 1980. Publicou as seguintes obras: Em louvor do Heroísmo e
da Bravura (conferência)- 1924; Aleluia (poemas)- 1930; Brasões de Portugal (poemas)- 1940; Gostosa Belém de
outrora (prosa)- 1966 e Horas da Tarde (poemas)- 1970

585
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

de grande parte de sua produção literária. Em verso e prosa, declarou seu afeto por sua amada
ŖCidade moça das Mangueirasŗ a exemplo dos versos abaixo

Exortação 1

Minha Cidade Linda!


Velha flor singular de esquisitos perfumes,
Para o Bem, para o Mal e o pecado e a Virtude!
Minha Cidade que tens alma de criança,
Com teus palácios e casebres tu resumes,
Linda e mansa,
Todo o contraste rude
De uma alegria louca e uma tristeza infinda...

Na alma de teus jardins de alamedas serenas


Sonham lirismos conventuais
Em dolorosas cantilenas
Esses dramas de amor e saudades inquietas
Da alma romântica dos teus poetas
Ancestrais...
Cidade evocativa
Que a luz equatorial, toda hosanas, florindo
De altos céus, glorifica e, cantando, abençoa...
Minha Cidade moça das mangueiras,
Onde a noite é melhor, onde o luar é mais lindo,
Assim deslumbradora e compassiva,
Tumultuosa e febril, e suave e boa,
Amo-te assim, flor das cidades brasileiras!

E é por ti, pelo amor que celebras e brindas,


Que o meu culto pagão ao teu sol se descerra,
Ó Cidade feliz, porque tu tens mais lindas
As estrelas do céu e as mulheres na terra!

O pano de fundo das crônicas é o bairro do Umarizal, cenário por onde circulam os tipos
humanos, costumes e manifestações culturais das primeiras décadas do século XX. Neste local, De
Campos Ribeiro viveu da infância a adolescência e, dessa forma, transpôs ao texto literário suas
vivências, conforme afirma o escritor amazonense Mário Ypiranga Monteiro2

[...] De Campos Ribeiro não escreveu deliberadamente de si próprio, mas nem o homem
curtido do jornal poderiam deslocar-se dos quadros daquela cinemática em que surge, o
contador, como personagem. Realmente, nada mais significativo para a história social de
uma comunidade do que o depoimento espontâneo de quem participou do conjunto de
experiências a que chamamos de vivência. (grifo meu)

1
IN: Horas da Tarde- pág. 136 e Aleluia Ŕ págs. 66 e 64, neste sob o título de ŖExortaçãoŗ - (ob. cit.)
2
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Biografia sentimental de Belém. IN: ŖA Província do Paráŗ , 19 de setembro de 1968.
Neste artigo, o escritor amazonense destaca o aspecto autobiográfico da obra Gostosa Belém de outrora, na qual o autor
De Campos Ribeiro recompõe o passado da cidade por intermédio das recordações do narrador Ŕ personagem, ofertando
ao leitor crônicas de cunho memorialístico.

586
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A escritora paraense Lindanor Celina1, por sua vez, ressalta as qualidades do livro de
crônicas. Assim ela inicia sua apreciação

Bem gostosa mesmo, essa Belém que não conheci e de que nos fala De Campos Ribeiro.
Tão província que me lembrou sabem o que? Ŕ Itaiara, ou qualquer outro interior assim.
Nesta era do asfalto, dos taxis-mirins, bem longe parece a cidade dos bondes puxados a
burro e enterros a pé. Mas De Campos para lá nos leva. Nem sentimos sua conversa
despretensiosa, agradável, colorida e pitoresca como a Belém de sua mocidade.

Além disso, relembra em seu texto, do Umarizal das mutambeiras e das festas populares,
como os folguedos juninos, quando a cidade Ŗtrescalava das ervas de junhoŗ . Este aspecto será
abordado no decorrer deste trabalho, o qual pretende traçar um panorama cultural de Belém das
primeiras décadas do século XX, a partir da leitura das crônicas ŖOh! Noites de junho antigo...ŗ e
ŖMastros votivos de outroraŗ .

1.1 .Oh! Noites de junho antigo...

Com seu tom de bom prosador, o narrador nos remete a um passado, recomposto através de
suas recordações. Os textos que constituem a obra do ficcionista maranhense são articulados a partir
da oposição semântica envolvendo passado e presente, tempos distintos ao longo das crônicas. A
focalização da narrativa está centrada na primeira pessoa do discurso, implicando em modulações
estilísticas, reveladoras de posicionamentos ideológicos e afetivos do narrador com a enunciação
(REIS: 1999 p.367), além das atribuições valorativas conferida ao tempo passado, como se observa
no fragmento abaixo, extraído da crônica ŖOh! Noites de junho antigo...ŗ :

Tudo isso é hoje página do passado...


Os grupos joaninos perderam toda a beleza e todo o encanto folclórico. São cópia grosseira
de mau cinema, com dramalhões sem sentido e descabelado vocabulário de seus cômicos
sem graça, os tais Ŗmatutosŗ, e muita biquine de suas vedetas e sambistas.
Os próprios bumbás são, no instrumental que nos ensurdece, uma cópia das batucadas
carnavalescas. (p. 103)

Ao referendar os grupos joaninos do presente, o narrador o faz utilizando-se de recursos


discursivos (adjetivos e locuções de aspecto negativo) responsáveis pela contraposição com as
festas juninas do passado, que de acordo com sua perspectiva de observador, eram repletas de
requinte e originalidade, em especial os pertencentes aos bairros do Jurunas, Cidade Velha e
Umarizal, onde eram protagonizadas grandes apresentações de cordões de pássaro e boi- bumbá,
além das disputas envolvendo as torcidas, que culminava nos Ŗencontrosŗ :

Saiu no primeiro ano como simples troça. Mas a cousa ganhou entusiasmo. E dividiu no
segundo ano de exibição as simpatias do bairro entre Jacaré e Rouxinol.
O resultado, como não poderia deixar de ser, foi violento encontro, plena madrugada, em
frente mesmo do ŖPau do Macacoŗ, entre os dois grupos, com cabeças quebradas e as
pequenas do Rouxinol em fuga, como revoada de rolinhas espavoridas...(p.101)

1
CELINA, Lindanor. Gostosa Belém de outrora. IN: ŖFolha do Norteŗ, 18 de junho de 1967.

587
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Embora envolta neste ambiente de disputas entre as torcidas dos grupos folclóricos, as festas
juninas do passado do enunciador possuíam suas particularidades, em se tratando das burletas
musicadas por grandes compositores da época, como Cirilo Silva, de prestimoso valor no cenário
musical:

[...] negro de luminoso talento e imensa modéstia, prodigioso na multiplicidade de escripts


produzidos com amor às tradições, respeito aos fundamentos do folclore regional, sem se
repetir numa cena ou num motivo musical, fecundo na sua predestinação de verdadeiro
mestre (por que não dizer-se gênio?), formador, por sinal, de várias gerações de musicistas
do Pará.(p.102)

Somado a esse requinte, abrangendo desde o capricho na indumentária dos brincantes até a
elaboração das músicas a serem utilizadas nas coreografias, temos a atmosfera mística evocada pelo
mês junino, quando as moças buscam nas ervas seus efeitos miraculosos, a fim de garantir um
pretendente ou não perdê-lo para uma rival de torcida:

Sim, a cidade trescalava das ervas de junho... E que cabrochinha dengosa, de um cordão ou
da torcida, se encorajava a sair sem antes tomar seu banho de cheiro, chamador de
felicidade e de amor?
Imaginem-se caso se não tenha dela o exato conhecimento, os efeitos duma deliciosa
maceração de trevo roxo, agarradinho, cumaru, japana, pataqueira, torcidinho, beliscão,
manjerona, manjericão, periperioca, corimbo, cipó-catinga, ária de cheiro, macaca-poranga,
pega-rapaz, catinga de mulata, vinde-cá... (uf!), de tanta raiz, tanta gramínea, tanta batata e
tanto trevo de misteriosos poderes, e diga-se depois que cabocla, mulatinha, curiboca ou
negrinha do Umarizal se arriscaria a perder para uma rival do Jurunas?(p.101)

Mas eis que surge uma novidade: um boi-bumbá de mulheres denominado de ŖBoi Anizetaŗ ,
em homenagem ao Ŗabre-corpoŗ das mulheres boêmias, pertencentes às classes pobres. Esse grupo
era comandado pela Nega Lourença, filha de uma conhecida mingauzeira da Vila dos Inocentes. As
brincantes inebriavam a platéia, composta em sua maioria pelos ricos comerciantes portugueses da
Avenida 15 de novembro, os quais ficavam encantados com as performances das jovens dançarinas:

[...] esses derretiam-se, embasbacavam-se de admiração concupiscente pelo ŖAnizetaŗ, não


tanto por seu bizarro colorido, mas para a plástica espetacular, a pele sedosa e fina, os
dentes de pérola, os olhos rasgados, brilhantes e sedutores da nega Mônica, adolescente e
bamboleante de quadris virginais à frente das brincantes com seu calção de veludo
vermelho...(p.102)

O desfecho da crônica é marcado pelo tom saudosista do narrador, preocupado em relação


ao porvir dos folguedos juninos, segundo sua ótica, já perdendo grande parte da originalidade,
devido à incorporação de elementos pertencentes a outras manifestações folclóricas. Resta a ele, sob
sua pena de memorialista, preservar por intermédio da escrita, a memória cultural do povo paraense.

1.2. Mastros votivos de outrora


588
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Na crônica ŖMastros votivos de outroraŗ a narrativa gira em torno de outra manifestação


cultural bastante recorrente durante o período descrito pelo cronista, o Mastro do Divino, um cortejo
religioso seguido de missa solene e derrubada do mastro. O narrador inicia saudosamente, evocando
as procissões do presente, ocorridas na Cidade Velha em devoção a São Benedito, que segundo sua
perspectiva, são desprovidas de popularidade, prestígio e tradição tal como os organizados no
passado por Mestre Martinho e Tia Ana das Palhas no bairro do Umarizal

À límpida luz matinal das primeiras horas, dois domingos após a Quinta- Feira da
Ascensão, anualmente, o bairro da Cidade Velha assiste, aos acórdes [sic] nem sempre
afinados de improvisado conjunto de trombone (ou piston), saxofone, banjo e surdo, ou
mesmo caixa de banda marcial, que executa o hino ŖQueremos Deusŗ, à passagem de
melancólico e ralo cortejo religioso que lá se vai, rua Dr. Assis acima, rumo à Estrada
Nova.(p.57)

Após essa breve introdução, caracterizada pelo saudosismo do narrador, o mesmo nos
conduz ao passado das festas do Divino no Pará, que nem de longe lembravam a falta de entusiasmo
das procissões presenciadas por ele no bairro da Cidade Velha. Assim ele descreve os ŖMastrosŗ do
Umarizal
[...] em verdade, geravam até rivalidades, preferências. Se não chegavam à formação de um
Partido Azul e outro Róseo, como as Pastorinhas daqueles idos, iam à formação de torcidas
pelos arranjos de arraial, os divertimentos onde possivelmente constaria até um ŖCarimbñŗ ,
na medida, pelas cabrochinhas do funileiroŗ Caranguejoŗ da Dois de Dezembro, (a atual
Generalíssimo Deodoro), e até a voz e a classe das tiradoras da Ladainha, Ŗcoraisŗ que não
raro incluíam a voz esganiçada e o latinório espevitado de algum sestroso mulatinho de
calças justas, subidas nos suspensórios até acima do estômago...(p.58)

Semelhantemente ao ocorrido nas festas juninas de outrora, existia também a rivalidade das
torcidas, mas, com o objetivo de caprichar na organização da festa. Tudo isso agora faz parte de um
passado longínquo do narrador, considerado uma testemunha dos fatos, que agora vêm à tona em
forma de narrativas. Embalado por suas lembranças, reflete sobre a importância dos dois maiores
organizadores do Mastro do Divino

Mestre Martinho João Tavares, negro encanecido na sua devoção ao Divino Espírito Santo,
marcou época nas crônicas de imprensa com seu arraial na Dom Romualdo de Seixas, da
Oliveira Belo à Bernal do Couto, em cuja baixada, logo após o cruzamento das duas ruas,
era erguido o famoso ŖMastroŗ, o ŖPauŗ na referência brejeira de boêmios e humoristas
escrevinhadores da época.(p.59)

O bairro do Umarizal, durante o decurso da festa, era comparado a uma ŖMeca da rapaziada
estroinaŗ , pois os rapazes, depois de participar do ritual religioso, iam à busca de diversão profana
nas boêmias noitadas doŗ Molin Rougeŗ , uma casa de espetáculos aos moldes franceses cuja
atração eram as sedutorasŗ cocotes espartilhadasŗ . Outro destaque são os pagadores de promessa,
em geral, a gente humilde do bairro

[...] essa fazia ato de fé ouvindo o novenário, pagando promessas por alguma graça.
Dentre tais votos destacava-se o sacrifício que era ir buscar ŖMastroŗ lá pras bandas da
sétima da Pedreira, onde oito dias antes fôra cortado, madeiro de alto lustre, linheiro, no
grande dia levado em charola que era a um tempo expoente vivo de ardente fé e motivo
para muita exibição de taras em beliscões e apalpadelas dos sabidos aproveitadores nas
589
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

exacerbadas romeiras, mescla de anciãs respeitáveis, modestas mães de famílias, algumas


(em bom número) rameiras, de contrapêso [sic] (p.59-60)

Seguida à tradicionalidade e extravagância da procissão organizada por Mestre Martinho,


subia o Mastro de Tia Ana das Palhas, uma Ŗvelhinha curiboca, de pele apergaminhada e pele de
algodãoŗ , em louvor da Santíssima Trindade, erguido bem em frente à sua barraca. Apesar da fama,
sua festividade nem se comparava ao Ŗbrilho da do velho Martinho João Tavares. Mais modesta,
não atraia as gentes de bairros distantes.ŗ Por volta de 1910 ou 1911 ocorre uma ruptura na tradição
da Festa da Trindade com a inserção de elementos até então só vistos num arraial nazareno, em
virtude dos investimentos provenientes de Ŗcertos senhores baludos da vizinhançaŗ

[...] Moradores ali mesmo da Quartoze de Março, tomaram a frente da iniciativa os irmãos
Girard, farmacêuticos, estabelecidos à esquina da Diogo Moia, e seu simpático e
cavalheiresco vizinho, o contabilista e industrial Alexandre Rodrigues.
[...] Pois bem, os novos ŖJuízes do Mastroŗ entenderam de abafar o arraial de Mestre
Martinho e fizeram deslumbrante Ŗféerieŗ daquêle trêcho [sic] da Quatorze de Março, onde
até as centenárias mutambeiras se vestiram de luz, da raiz à copa esgalhada e farta. Creio
que foi essa a primeira vez que um arraial de festa suburbana brilhou de luz elétrica, e que
luz!(p.61)

A música ficava a cargo da luxuosa Banda dos Bombeiros com seu instrumental dourado,
farda de gala, tocando um repertório erudito de Carlos Gomes, Verdi e Strauss, bem diferente do
triste pau-e-corda e da bandinha do Tiro de Guerra. As netas das devotas exibiam sua rica
vestimenta, toda de branco e coroinhas de rosas de pano nos cabelos. Infelizmente, mesmo em meio
a tanto capricho, os novos juízes do Mastro se desinteressaram e

[...] o ŖMastroŗ subiu, é certo, mas sñ teve alumiando as noites tristes, de Ladainha sem
orquestra, sem arraial com coreto e com música, meia dúzia de lamparinas fumarentas nos
espeques sem pintura, luz direitinho a de um velñrio de pobre que espera o Ŗrabecãoŗ. ..
Velha Tia Ana das Palhas morria pouco depois e Mestre Martinho também não demorou
muito a fazer a derradeira viagem: foram cumprir, lá mais perto do Divino e da Santíssima
Trindade, sua devoção que fêz época no Pará de há cinqüenta anos... (p.61)

Em ambos os casos, o leitor percorre a cidade de Belém do início do século XX, sendo
conduzido pelo narrador, que a partir de suas vivências, nos remete ao seu mundo particular,
tornando-o uma experiência coletiva, articulação possível graças à memória, forma de
sobrevivência do passado por meio de representações do presente, nesse caso, as narrativas da
Gostosa Belém de outrora. Acerca do valor desse elemento articulador na era contemporânea, o
historiador Jacques Le Goff (2003:p.469) afirma

A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou


coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de
hoje, na febre e na angústia.

Tomando por base o pressuposto teórico proposto por Le Goff(2003), depreende-se que as
crônicas de De Campos Ribeiro possuem um caráter documental, porque possibilitam ao leitor,
além do prazer estético propiciado pelo texto literário, a funcionalidade, haja vista as narrativas da
590
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Gostosa Belém de outrora servirem de suporte para se compreender uma determinada época da
capital paraense, com seus tipos, costumes pitorescos e festividades ambientadas num contexto com
ares de provincianismo, como bem lembrou Lindanor Celina!

Referências bibliográficas

CELINA, Lindanor. Gostosa Belém de Outrora. IN: Folha do Norte, 18 de junho de 1967.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão et. al. 5ª. ed. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2003.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Biografia Sentimental de Belém. IN:A Província do Pará, 19 de setembro de
1968.

REGO, Clovis Moraes. De Campos Ribeiro: o maior poeta que Belém perdeu Ŕ Belém, Pará: L&A
Editora, 2004.

RIBEIRO, José Sampaio de Campos. Gostosa Belém de outrora... - Belém: SECULT-PA: 2005.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Trad. Marina Appenzeller; Petit Ŕ Campinas, São Paulo:
Papirus, 1995.

591
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ANÁLISE DAS TRANSMUTAÇÕES EM CLADESTINA FELICIDADE: CONJUNÇÕES E


DISJUNÇÕES ENTRE O CURTA-METRAGEM E ALGUNS TEXTOS DE CLARICE
LISPECTOR

Maria Elenice Costa Lima (UFC)1

Resumo: O presente trabalho, vinculado à disciplina Estudos Comparados de Narrativa I, tem por objetivo
analisar as transmutações realizadas pelo curta-metragem ŖClandestina Felicidadeŗ (1998), dirigido por Beto
Normal e Marcelo Gomes, a partir da leitura dos textos ŖFelicidade Clandestinaŗ , ŖRestos de Carnavalŗ,
ŖUma Histñria de tanto amorŗ, ŖBanhos de marŗ e ŖMedo da eternidadeŗ, da escritora Clarice Lispector.
Tomando por base os estudos realizados por Décio Pignatari, Anna Balogh, Thaïs Flores entre outros,
pretende-se analisar as conjunções (semelhanças) e disjunções (diferenças) na tradução inter-semiótica dos
textos clariceanos para o meio audiovisual, além de comprovar o surgimento de um outro objeto estético que,
embora tendo vínculos com o texto de Ŗorigemŗ, pos sui sua prñpria autonomia.

Palavras-chave: Conjunções, disjunções, objeto estético.

Abstract: The present paper, linked to the discipline Estudos Comparados da Narrativa I, aims to analyse
the transmutation comprehended by the movie ŖClandestina Felicidadeŗ (1998), directed by Beto Normal
and Marcelo Gomes, from the reading of the texts ŖFelicidade Clandestinaŗ , ŖRestos de Carnavalŗ, ŖUma
Histñria de Tanto Amorŗ, ŖBanhos de Marŗ e ŖMedo da Eternidadeŗ , from the writer Clarice Lispector.
Taking as a base the studies held by Décio Pignatari, Ana Balogh, Thaís Flores and others, it is intended to
analyze the conjunctions (similarities) and breakings (differences) in the intersemioti translation of
clariceanos texts to the audiovisual means, it is intended to emphagige besides vouching the appearance of
another aesthetic object that, although linked with the Ŗsourceŗ texts, it has own autonomy.

Keywords: Conjunctions, breakings, aesthetic object.

Considerações iniciais

A análise das transmutações2 ocorridas na adaptação do conto ŖFelicidade Clandestinaŗ , de


Clarice Lispector, para o curta-metragem ŖClandestina Felicidadeŗ (1998), dirigido por Beto
Normal e Marcelo Gomes, ajuda a perceber as nuances que perpassam as fronteiras entre o texto
fonte e as várias possilidades de leituras que este incita, leituras que dialogam com outros textos de
Clarice e com sua biografia. Vale ressaltar também a importância em se averiguar o modo como
estas são transpostas para as imagens visuais, salientando, sobretudo, as conjunções (semelhanças) e
disjunções (diferenças) que autorizam a afirmação de que o curta-metragem, aqui apresentado, é
uma Ŗlivre adaptaçãoŗ do conto clariceano supracitado.

1
Mestranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará.
2
Transmutação/tradução inter-semiñtica segundo Jakobson Ŗconsiste na interpretação dos signos verbais por meio de
sistemas de signos não-verbaisŗ. (JAKOBSON, 1973, p. 65)

592
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Primeiramente destaque-se que a expressão Ŗlivre adapataçãoŗ é usada na abertura de


ŖClandestina Felicidadeŗ . Isso serve para reforçar a proposta de releitura ou reescrita do conto de
Lispector e dar aos diretores roteiristas maior liberdade para a apropriação ou processo de
Ŗcanibalizaçãoŗ do texto literário. Isto significa dizer que a imagem audiovisual reproduzida não é
exatamente o texto integral tal qual a autora o escreveu, mas, sim, a leitura feita por cada um dos
diretores que desencadeou no processo de transmutação sofrido pelo texto fonte, pois Ŗna
transmutação, o mesmo conteúdo, ou parte ponderável dele, transita de um texto a outroŗ
(BALLOGH, 1996, p.41). Sobre esse aspecto deve-se levar em consideração a afirmação de Thaïs
Flores Diniz:

O conceito de tradução ultimamente vem sofrendo transformações marcantes. Além da


idéia de que se deve relativizar a noção de origem e não procurar fidelidade na tradução,
enfatiza-se que os textos Ŗorigemŗ e Ŗalvoŗd evem ser considerados signos um do outro. Sua
similaridade pode ser, como nos signos, algo muito fulgaz, permitindo entretanto, que se
estabeleça entre os textos uma referência mútua. Essa similaridade não precisa
necessariamente ser nem de tom, nem de conteúdo, nem de forma. Poderá limitar-se a
interrelações mais ou menos evidentes que justifiquem o reconhecimento dos textos como
signos um do outro. (DINIZ, 1999, p. 13)

Tal consideração aponta para a Ŗequivalência na diferençaŗ discutida por Roman Jakobson
(1973). De fato, o que se pode perceber entre os textos estudados neste trabalho é que eles
apresentam mais diferenças do que semelhanças entre si e isso se deve, principalmente, ao fato de
que tradução é, sobretudo, diferença. Como afirma Décio Pignatari Ŗé da natureza do signo em
geral, e não apenas do signo icônico, representar (e não Řreproduzirř), por substituição, algo em
certa medida e sob certos aspectosŗ. ( PIGNATARI, 2004, p. 57)

Tomando por base as considerações realizadas até aqui sobre livre-adaptação, transmutação
e representação, é pertinente que se reflita acerca do seguinte: quais elementos possilibitam que o
leitor faça o reconhecimento de que se trata de uma releitura ou reescrita de um texto literário para
outra mídia?

Para essa reflexão é necessário que se tenha consciência do tipo de leitor de que se está
falando. Primeiramente, trata-se do leitor pós-moderno, um leitor de mídias em que, na maioria das
vezes, o acesso ao audiovisual precede ao literário. Sendo assim, o processo de reconhecimento de
um texto a outro tende a fazer um caminho contrário Ŕ o texto Ŗalvoŗ vai ser referência para o texto
Ŗorigemŗ e não necessariamente o oposto. Este é um dos motivos pelos quais a indicação Ŕ
Clandestina Felicidade: uma livre adaptação do conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector Ŕ
realizada no início do curta se faz tão fundamental. No entanto, vale destacar que no contexto em
que foi lançado, em Pernambuco (cidade que a escritora passou boa parte de sua infância), no ano
de 1998 (vinte e um anos de morte da autora), e pelo público a que geralmente se destina esse tipo
de produção: estudantes, professores, especialistas, leitores de um modo geral Ŕ haja vista que tem o
apoio do Ministério da Cultura, tendo sido parcialmente financiado pela Secretaria para o
desenvolvimento do audiovisual e governo do Estado de Pernambuco SECE/MISPE/FUNDARPE Ŕ
é possível que o texto de partida seja a base de interpretação para o texto de chegada.
593
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

É válido atentar para o fato de que Beto Normal e Marcelo Gomes optaram pelo conto de
Lispector cuja temática envolve uma menina que mora em Recife, daí um dos primeiros indícios de
que o contexto é parte integrante da história construída por eles. Aproveitam e nomeiam a menina
com o mesmo nome de Clarice, o que é extremamente compreensível uma vez que o mesmo texto
está presente no livro de crônicas A Descoberta do Mundo, mas com o título ŖTortura e glñriaŗ .
Além disso, para a construção de sua película, eles utilizam pelo menos cinco textos da autora em
que as passagens da infância funcionam como núcleo temático, a saber: ŖFelicidade Clandestinaŗ ,
ŖRestos de Carnavalŗ, ŖUma Histñria de tanto amorŗ , ŖBanhos de marŗ , ŖMedo da eternidadeŗ
(estes dois últimos são crônicas presentes apenas no livro A Descoberta do Mundo, os demais são
contos que também estão englobados como crônicas), ademais, é quase evidente que tenham lido
Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector (1999), de Tereza Montero, mais
precisamente a parte que trata sobre Recife, e para complementar a tessitura de seu mosaico trazem
a personagem Macabéa para a narrativa.

Relações entre “Clandestina felicidade” e os textos de Clarice Lispector

A primeira imagem apresentada no filme é das águas do mar e de uma igreja velha de
Recife. A seguir, aparecem pessoas e carros passando e uma menina brincando amarelinha e
segurando um livro nas mãos. A mesma menina surge num balançador e logo após lendo o livro A
galinha dos ovos de ouro. Depois, ela vai contar para sua galinha de estimação, Eponina, que
acabara de ler um livro que falava de uma galinha e é interrompida por um homem Ŕ seu pai Ŕ que
chega, chama-lhe pelo nome Ŕ Clarice Ŕ e lhe apresenta uma moça Ŕ Macabéa Ŕ que vai trabalhar
com a família enquanto sua mãe está doente. Clarice se impressiona com o nome da empregada, o
que fica explícito ao tentar repetir o nome, olhar para câmera assustada e dizer: _Misericórdia!

Até aqui o que se pode perceber é a identificação da personagem principal com a escritora
Clarice Lispector. Também se tem a presença da galinha Eponina, do conto ŖUma histñria de tanto
amorŗ e de Macabéa, personagem principal do último romance publicado pela escritora, A hora da
estrela. Contudo, para que o grande público consiga fazer essas relações é necessário,
principalmente para a primeira, que tenha lido o texto. Quanto à segunda não há a mesma
necessidade, pois o romance e sua personagem têm projeções maiores e são bastante conhecidos,
tendo inclusive um filme com forte projeção nacional.

A estñria de ŖFelicidade Clandestinaŗ entra em cena logo a seguir quando a menina se


dirige, saltitando pelas ruas de Recife, até a casa de uma coleguinha, Revecca Ŕ esta menina,
segundo Teresa Montero, era filha do dono da livraria Imperatriz localizada na rua onde a família
Lispector morava Ŕ e esta lhe diz que ganhou do pai o livro As Reinações de Narizinho, de
Monteiro Lobato. Clarice se impressiona com a beleza do livro e pergunta a sua colega se pode lê-
lo, mas esta lhe diz que já prometera emprestá-lo a uma amiga e assim que esta acabar de ler

594
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

empresta a ela também. Diante da insistência de Clarice, ela se irrita e diz para cuidarem em ir, pois
já estão atrasadas para o colégio. Assim, as duas saem em direção à escola. Clarice carrega o livro
durante todo o trajeto e vai tecendo comentários acerca da beleza dele e diz que já lera todos os
livros do Sítio do Pica-pau Amarelo e só falta este. Ao que Revecca retruca: _Eu já li todos!

O que se pode perceber na análise dessa cena é que os diretores tentam transmitir a carga
semântica do texto original para as imagens. Isso ocorre desde a escolha das meninas que vão
representar: Clarice é uma menina magrinha, com expressões fortes e com um jeito todo peculiar de
ser, já Revecca é gordinha, tem ares de superioridade e até no modo de falar demonstra sua
arrogância, mas não tem os cabelos excessivamente crespos como é citado na narrativa clariceana.
Maria Tereza Amodeo ao falar sobre a composição da personagem para as minisséries televisivas
salienta: Ŗa existência da personagem se revela, pois, na histñria, a qual se constitui como
possibilidade de representação de uma realidade. E são os atores, com suas marcas sígnicas já
reconhecidas pelo público de televisão, que se configuram como médiuns das várias instâncias
específicas do veículo e da obra originalŗ (AMODEO, 2003, p. 123). Contudo, mesmo com esse
cuidado na escolha e na atuação das atrizes infantis, a cena retratada no texto de Lispector é mais
forte e emocionante, como se pode constatar:

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha
um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse,
enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer
criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um
livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima
era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas.
Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como Ŗdata natalíciaŗ e Ŗsaudadeŗ .
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com
barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas,
esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo.
Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a
implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.
Como casualmente informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro
Lobato.
Era um livro grosso meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o,
dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua
casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. (LISPECTOR, 1998, p. 9-10)

Por sua maneira peculiar de escrever, pelo modo como opõe a inter-relação Eu versus Outro
e por toda a carga subjetiva que é inerente aos seus textos, a escrita clariceana se lança como um
problema aos diretores, pois mesmo com todas as modificações realizadas no texto original, para
que se possa ter uma melhor representatividade no meio audiovisual, vê-se que o modo como está
descrita a situação no texto de Lispector é superior ao que é representado. No entanto, a
representação é possível e é preciso ter consciência que Ŗa imagem tem, portanto, seus próprios
códigos de interação com o espectador, diversos daqueles que a palavra escrita estabelece com seu
leitorŗ (PELLEGRINI, 2003, p.16).

Na sequência começa a ser relatado o conto ŖUma estñria de tanto amorŗ , cujo
reconhecimento exige não apenas que o leitor conheça a narrativa, mas que esteja atento, pois são
595
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

realizadas profundas transformações na passagem de um texto a outro. No curta, a menina chega em


casa da escola e, ao se dirigir ao quintal para ver suas galinhas, se depara com a empregada,
Macabéa, depenando uma galinha e constata que ela havia matado a sua Eponina. A seguir, a
menina está triste num canto e um rapaz chega e lhe pergunta o que houve e ela diz que mataram
Eponina. Ao perguntar quem é esta, ele se surpreende com o fato de ser uma galinha e tenta
amenizar dizendo que todo mundo tem que morrer um dia, ao que Clarice retruca que ela não
morreu, mas foi a Macabéa quem matou. Duas personagens vão aparecer aqui como integrantes da
narrativa que não fazem parte da inicial: Macabéa e o rapaz. Isso é importante na percepção das
escolhas realizadas pelos roteiristas, pois elas devem condizer tanto com as interpretações deles
mesmos Ŕ afinal, como afirma Rosemary Arrojo Ŗnossa tradução de qualquer texto, poético ou não,
será fiel não ao texto Ŗoriginalŗ , mas àquilo que consideramos ser o texto originalŗ e acrescenta
Ŗalém de ser fiel ao texto de partida, nossa tradução será fiel também à nossa prñpria concepção de
traduçãoŗ (ARROJO, 2000, p. 44) Ŕ quanto apresentar uma linearidade reconhecida pelo público.

No texto clariceano a família matou uma das galinhas da menina, Petronilha, enquanto
Clarice estava passeando na casa de um parente. Ao saber do fato, a menina passou a odiar todos da
casa, menos a mãe, que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca
ou de boi. Ao perceber o que estava acontecendo, a mãe da menina interveio e lhe disse: ŖQuando a
gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nñsŗ.
Assim, quando maiorzinha, ela possuiu outra galinha, Eponina, cujo amor por ela era Ŗmais realista
e não românticoŗ . Como se pode observar no trecho que fala sobre a morte de Eponina:

Mas a menina não esqueceu o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados:
comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer
quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais
sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num
ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a
carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina.
A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.
(LISPECTOR, 1998, p. 143)

Vê-se que as distinções entre o texto e o audiovisual não são sutis, que a figura da mãe não é
mencionada nessa passagem do curta e que, neste, ela atribui toda a culpa do assassinato da galinha
à Macabéa enquanto no conto essa culpa é atribuída ao pai. Em relação ao menino, mesmo não
estando presente no conto, pode-se dizer que sua presença se justifica na frase Ŗe havia os homensŗ .
Para finalizar essa cena, Clarice e o menino estão em um breve silêncio quando Revecca e uma
amiga sardenta se aproximam, aquela aproveita para perguntar pelo livro e obtém a resposta de que
outra menina passou de manhã pela casa e pegou o livro Ŕ aqui há um entrelaçamento entre os
contos ŖUma histñria de tanto amorŗ e ŖFelicidade Clandestinaŗ . Ao ficarem sozinhos novamente,
Clarice e o rapazinho se olham com um ar de sensualidade e flerte, tentando transpor o erotismo
presente no final do conto e que pode ser reconhecido pela celébre frase Ŗnão era mais uma menina
com um livro: era uma mulher com o seu amanteŗ . (Id., Ib., p.12)

596
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A próxima cena do curta-metragem é composta por fotos de Clarice e sua família tomando
banho de mar. As imagens fotográficas se unem às vozes alegres das personagens, deixando claro
que aquele era um momento de felicidade para todos. Esta estória é narrada em A Descoberta do
Mundo e é intitulada de ŖBanhos de marŗ . Para que se identifique a cena com a crônica da autora,
basta que se leia o início do texto clariceano Ŗmeu pai acreditava que todos os anos se devia fazer
uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz como naquelas temporadas de banho em Olinda,
Recifeŗ (LISPECTOR, 1999, p. 169) O curta vai apenas reportar essa passagem feliz da infância,
mas não vai se prender a narrar a estória tal qual está no livro, desviando-se dela quando a
personagem Clarice sai do mar correndo em direção a um livro, evidenciando a intenção dos
roteiristas em demonstrarem o apego íntimo dela com o universo livresco.

Para enfatizar ainda mais essa relação, a cena seguinte traz à baila a Clarice escritora. Inicia-
se com a pequena reclamando para duas amiguinhas que o jornal nunca publicava seus escritos, só
publicava aquelas histñrias de ŖEra uma vezŗ , contos de fadas. Este fato é relatado por Ferreira da
seguinte forma:

Um dia, folheando o Diário de Pernambuco, Clarice deparou-se com a página dedicada ao


público infantil: o Diário das crianças. Imediatamente teve o desejo de enviar para aquele
jornal suas histórias. Auxiliada por Tania, colocou o texto no correio na esperança de vê-lo
publicado. Toda quinta-feira, dia em que saía a página, lia o Diário ansiosa por encontrar
sua história, o que para sua frustração nunca ocorreu. Mesmo preferindo as outras histórias,
Clarice não alterava seu modo de escrever. Continuava enviando seus textos mesmo
sabendo que os publicados diziam sempre o Era uma vez, e isso e aquilo.... (FERREIRA,
1999, p.43)

O que fica em destaque aqui é a singularidade do modo de escrever da pequena Clarice, que
desde cedo foi tomada por uma escrita introspectiva e, por muitas vezes, considerada como uma
escritora hermética. Na continuação da cena, Revecca chega com uma novidade para as amigas: um
confeito que não acaba nunca. Manda-lhes experimentar e diz que o nome é chiclete. Clarice indaga
se esse negócio nunca acaba e finaliza olhando para a câmera e dizendo que quando crescer vai
querer escrever um livro que nunca acabe. Embora tenham sido realizadas alterações, pode-se
reconhecer essa estñria na crônica ŖMedo da eternidadeŗ . A principal disjunção entre os textos é
que na crônica a personagem citada pela autora é sua irmã e não Revecca. Talvez uma justificativa
para essa alteração seja a importância que tal personagem apresenta no curta-metragem e ao fato de
sua representatividade atingir o exótico.

Fragmentos do conto ŖRestos de carnavalŗ são inseridos na narrativa quando a protagonista


está na janela e aos poucos vai se aproximando um bloco de carnaval. Ao mesmo tempo é iniciada
uma trilha sonora de marchinhas. A menina entra para que as irmãs possam terminar de fantasiá-la
de rosa, mas nesse meio tempo o pai aparece suplicando que Clarice vá comprar um remédio para a
mãe que está muito doente. Ao sair correndo, ela entra em contato com o bloco e sente-se
desnorteada diante da multidão, até que aparece o menino e lhe joga confetes na cabeça, salvando o
seu carnaval. O que se pode averiguar é que há muitas aproximações dessa cena com a narrada no

597
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

conto, o que este apresenta a mais é o fato de que a fantasia da menina fora feita com os restos da de
uma amiga e a repercursão íntima que isso provocou no Eu da jovem.

De modo implícito é representada a morte da mãe de Clarice, primeiro com a imagem do


mar, depois o pai dizendo para as filhas que terão que morar no Rio de Janeiro e finalmente, o pai e
as três filhas no cais trajando luto e se recordando de quando chegaram em Recife. Ao voltarem
para casa, Clarice sai correndo pelas ruas até a casa de Revecca. Chegando lá, grita
desesperadamente por ela, fazendo com que a mãe da menina venha recebê-la e perguntar-lhe o que
desejava. Ela respondeu que era a respeito do livro que Revecca prometera lhe emprestar e queria
saber se a outra menina já o havia devolvido. A jovem senhora achando estranho tudo aquilo,
questiona qual o nome do livro e ao saber que se trata de As reinações de Narizinho, constata que
esse livro nunca saíra de lá e que a filha nunca se interessara por ele. Enquanto isso num outro plano
aparece Ravecca, com um violino nas mãos, dizendo Ŗcoitadaŗ e soltando maquiavélicas
gargalhadas. A seguir Revecca começa a tocar a música ŖOver the rainbowŗ , que vai ser a trilha
sonora enquanto a pequena Clarice sobe as escadas e entra na biblioteca para pegar quantos livros
quiser, a mando da bondosa mãe. Finalmente a menina se encontra no quintal de casa com o livro e
pela expressão fascinante da jovem atriz pode-se perceber que está em êxtase puríssimo, pois
finaliza a cena abraçada ao livro e com um sorriso singular. As principais diferenças entre esta parte
da narrativa audiovisual e a narrativa de Lispector é que nesta a mãe pede explicações a Clarice e a
Revecca, tendo que encarar a crueldade da filha e obrigá-la a emprestar o livro, enquanto se dirige
para Clarice dizendo que pode ficar com o livro o tempo que quiser. Além disso, há no conto a
passagem da infância para o universo adulto com a afirmação Ŗnão era mais uma menina com um
livro: era uma mulher com seu amanteŗ , enquanto no curta nota-se a atuação do núcleo infantil com
a menina num balançador abraçada ao livro.

Considerações finais

De modo geral, o que se pode destacar, a partir da análise aqui feita, é que o curta-metragem
ŖClandestina Felicidadeŗ é construído não apenas a partir da estñria do conto ŖFelicidade
Clandestinaŗ , mas também de outras narrativas clariceanas que abordam a temática da infância
autobiográfica da escritora na cidade de Recife e os atropelos ocorridos em sua passagem para a
adolescência, evidenciando toda a sensualidade latente na personagem. Evidencia, também, a
importância da leitura em sua formação. Verifica-se de fato o surgimento de um outro objeto
estético Ŕ segundo Décio Pignatari Ŗa operação metalingüística resulta em nova linguagem-objetoŗ
(PIGNATARI, p.79, 2004) Ŕ que através de suas singularidades assume um importante papel na
divulgação da obra da autora e na análise das múltiplas possibilidades de leitura que um texto pode
incutir.

598
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Referências bibliográficas

AMODEO, Maria Tereza. ŖLiteratura, televisão e identidade cultural nos tempos pñs-modernosŗ.
In: SARAIVA (Org.) Narrativas Verbais e visuais. São Leopoldo: Editora Unissinos, 2003.

ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução. São Paulo: Editora Ética, 2000.

BALOGH, Anna Maria. Conjunções – disjunções – transmutações da literatura ao cinema e a TV.


São Paulo: ANNABLUME: ECA-USP, 1996.

DINIZ, Thaïs Flores Nogueira. Literatura e Cinema: da semiótica à tradução cultural. Ouro Preto:
Editora UFOP, 1999.

FERREIRA, Teresa Cristina Montero. Eu sou uma pergunta: uma biografia de Clarice Lispector.
Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Trad. Isidoro Blikstein e José paulo Paes. 6ª ed.
São Paulo: Editora Cultrix, 1973.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

________. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999

PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senace Institução Itaú
Cultural, 2003.

PIGNATARI, Décio. Semiótica & Literatura. 6. ed. Ŕ Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.

599
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

CARTAS DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO A FERNANDO PESSOA: RELAÇÃO DE


SOCIABILIDADE PARA A CONSTRUÇÃO DO MODERNISMO DE ORPHEU

Mariana Marques (UEA)

Não é pensamento que deve servir a arte -


arte é que deve servir o pensamento.
(Mário de Sá-Carneiro)

Quando pensamos na figura do autor, geralmente o associamos à sua produção literária.


Todavia, tão rico quanto o produto final de uma criação, é o seu próprio processo. Entre as fontes
que podemos vasculhar para estudar o momento de elaboração do texto, como os rascunhos
originais do autor, documentos, entrevistas, etc., existem as cartas, fontes profícuas de exposição
ideológica e de criação do autor. Para exemplificar a relevância que têm as epístolas para o estudo
da criação literária, citamos um trecho consagrado de uma carta de Fernando Pessoa:

[...] tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E
escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei
definir. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o
aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro (2008,
p. 60).

Esta é uma das cartas mais conhecidas da literatura portuguesa. Quem a conhece sabe do
seu caráter informativo e enigmático. Além disso, à medida que atentamos mais a ela, melhor
percebemos a preocupação estética do seu autor. A utilização de frases com o uso de inversões, o
uso correto dos pronomes relativos e a sequência indicando um suspense a ser revelado pelas
últimas palavras que elucidam o nome do mestre dos heterônimos de Fernando Pessoa ajudam-nos
a confirmar isso. Reafirmando a nossa leitura da consagrada carta, Carlos Renato de Jesus declara:
Ŗmesmo quando tinham o mero intuito de transmitir informações, os textos epistolares moldavam-
se de material estético, impregnado de elementos literáriosŗ (2009, p. 130). Podemos apreender,
então, que as cartas sempre se detiveram em preocupações de ordem estética e formal, mesmo que o
decorrer do tempo tenha multiplicado suas maneiras de utilização.
Uma forma que interessa aos estudos literários é a troca de correspondências entre
escritores. Como consequência da valorização e do estudo dos textos paraliterários (paratextos), isto
é, os textos que servem como enriquecedores do produto-fim do autor, surgem as edições críticas
das correspondências. Para o nosso estudo, elegemos a edição crítica da Teresa Sobral Cunha
(2004). O resultado do trabalho com as cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa nos
serviu de mote para estudar as epístolas daquele em relação ao momento finissecular no qual os dois
escritores se corresponderam. Souza & Miranda ressaltam, assim, a importância da edição crítica
como abertura para novos estudos ao falar que esta:

enriquece a leitura da obra ao ampliar o seu foco de produção e, como consequência, tornar
mais viva a recepção, ao inseri-la no espaço de possibilidades de leitura e de futuros
desdobramentos realizados pelos leitores (2003, p. 12).

600
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Em se tratando de Mário de Sá-Carneiro, este estudo dos bastidores de sua criação se torna
mister, visto que o autor parece ter sido esquecido pela crítica devido à grandiosidade de recepção
de seu amigo. O presente estudo epistolar busca discutir a construção ideológica que findou na
revista Orpheu, liderada tanto por Sá-Carneiro quanto por Pessoa. Entendem-se, portanto, as cartas
não somente como a troca de confissões pessoais, mas como troca intelectual e literária. Como
defende Maria Rothier Cardoso:

trata-se, sim, de desentranhar do trabalho escritural-desenhado entre as lacunas e riquezas


do arquivo ŕ um perfil composto de valores culturais, que responde pelos sentidos a serem
produzidos e pela força de interferência a ser exercida sobre a sociedade, ao longo da
carreira de divulgação do texto (2003, p. 52).

As cartas de Sá-Carneiro para Fernando Pessoa exprimem, em meio às confissões pessoais,


um pensamento ideológico do momento de transição política e literário em que viviam ambos os
vates: o fim de século oitocentista. Enquanto as mudanças políticas apresentavam-se visualmente,
as transformações estético-literárias estabeleciam-se no campo artístico. Em meio à frustração da
utopia de progresso finissecular, os artistas buscaram explorá-la artisticamente, dando vida a um
movimento hoje conhecido como Decadentismo. Sendo este mais sensação/percepção do que
organização estético-literária, pode-se dizer que o sentimento de fim de século é traçado na
literatura de diversas maneiras. Fialho de Almeida, António Patrício e Raul Brandão são exemplos
de autores que souberam, pela representação da petrificação, da morte, da tristeza do homem e do
cenário crepuscular, espelhar esse sentimento para a literatura. Na produção dos amigos íntimos Sá-
Carneiro e Fernando Pessoa, a apreensão dessa sensação/percepção teve um significado mais
disperso e não tão palpável do que os representativos decadentistas da época, mas que não deixa de
ser significativo e inovador.
Embora tendo aproveitado a abertura dada pela carta para a exploração de seus sentimentos
pessoais, como a instabilidade e insegurança, Mário de Sá-Carneiro mostra-se determinado quando
o assunto é produção literária. Um autor que preferiu Paris como cidade para morar e se posicionar
no meio artístico caracteriza-se como um artista preocupado perante a movimentação da
intelectualidade da época. Outro fato histórico relevante no que condiz a esse autor é que a obra sá-
carneiriana apresenta-se concluída, e por que não dizer, cumprida, já no início do século, em vez da
poesia pessoana, que ainda teve mais duas décadas de maturação. Mesmo que sito em cidade
importante artisticamente, Sá-Carneiro manteve-se solitário, aproveitando mais a observação para o
que queria expressar na arte. Conservado e, não deixando, contudo, de ser atento, o Esfinge Gorda,
codinome de que o próprio Sá-Carneiro se denominava, foi exemplo vivo de uma figura que associa
em si mesmo uma elegância que mostra indiferença e um sofrimento escondido pelo olhar: o dandy.
Em célebre ensaio sobre esta figura, em O pintor da vida moderna, Baudelaire diz que Ŗo dandismo
aparece sobretudo nas épocas transitñriasŗ (2009, p. 43). Para Sá-Carneiro, a transição do século
XIX para o XX não foi somente o período antes/depois, mas também o momento de mudanças que
culminaram na Primeira Guerra Mundial. O Esfinge Gorda presenciou não somente o fim de um
601
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

século, mas estando entre momentos marcantes, pôde realizar uma potencialização da apreensão de
mundo para a sua produção literária. Momento instável, e portanto, propício ao surgimento dessa
figura de que Sá-Carneiro é um representante. Ao sintetizar as características do dandy, Baudelaire
elucida:

é precisamente esta ligeireza de comportamento, este rigor das maneiras, esta simplicidade
no ar de dominação, este modo de trajar um fato [...], estas atitudes sempre calmas, mas
revelando força, que nos fazem pensar, quando o novo olhar descobre um destes seres
privilegiados em quem o gentil e o temível se confundem tão misteriosamente: ŖEis, talvez,
um homem rico, mas mais certamente um Hércules sem empregoŗ (p. 44).

Vemos aí uma descrição do que Mário de Sá-Carneiro é e como age. Ao mesmo tempo em
que é um homem ocioso, é preocupado com o seu posicionamento perante a sociedade, equilibrando
indiferença e inquietação. Era na correspondência com Fernando Pessoa que tanto confessava suas
angústias de problemas pessoais que muito o afligiam quanto mostrava seus anseios literários e sua
produção constante. Lino Machado denomina a poesia sa-carneiriana de Ŗpoesia da dorŗ (2004, p.
81), assimilando ao eu-lírico o caráter trágico aristotélico. Todavia, seria uma tragédia às avessas,
pois o drama não está vinculado ao fracasso da ação do homem, mas sim ao próprio embate dele
consigo mesmo. Seria um sofrimento isolado, exclusivo, em que o ser percebe-se só. Por isso, a
temática de Sá-Carneiro, que perpassa as suas novelas e a sua poesia de Dispersão e Indícios de
Oiro, finca-se nos seguintes temas: a dispersão, a frustração do tempo, o fracasso da alteridade, o
sonho, a loucura, a morte, a vida e o amor. Da mesma forma que consideramos o processo de
criação literária como parte relevante para se entender a produção final do autor, vemos a
revista Orpheu como um processo lato, pois a poesia de Sá-Carneiro publicada na revista é parte de
um todo que consta nas epístolas e publicado em outras obras. O todo completa a poética do autor e
foi explorado nas cartas ao poeta da Mensagem. A revista foi, isto é, esse movimento precisamente
defendido nas cartas por Sá-Carneiro. Em maio de 1914, confessa:

a sua ideia sobre a revista entusiasma-me simplesmente. É, nas condições que indica
perfeitamente realizável (materialmente) disso mesmo eu responsabilizo. Claro que não
será uma revista perdurável. Mas para marcar e agitar basta fazer sair uma meia dúzia de
números. O título Esfinge é óptimo (2004, p. 142).

O trecho mostra a determinação que Sá-Carneiro tinha diante da produção da arte, e mais,
demonstra a vontade de colocar em circulação um veículo agregador das produções fecundas de
uma época desestabilizada historicamente para representar um marco na literatura portuguesa.
Percebe-se também que, à medida que Álvaro de Campos — o heterônimo de Pessoa que criticava o
progresso científico e tecnológico do mundo moderno — ia sendo amadurecido por seu poeta
criador, maior a necessidade de Mário de Sá-Carneiro para publicar os poemas em uma revista.
Vemos isso na carta datada de 5 de junho de 1914: Ŗcontinuo a dizer meu amigo, que as produções
do Alvarozinho vão ser das coisas maiores do... Pessoa. Europa! Europa (revista) é que é preciso
sobretudo!ŗ (2004, p. 183). Publicar, então, significava expor uma produção que buscava

602
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

reposicionar a literatura portuguesa no que diz respeito à forma e ao conteúdo, e os próprios líderes
de Orpheu tinham consciência disso.
Aliada à ideia de Lino Machado, José Augusto Bernardes vê a poesia sá-carneiriana como
Ŗuma profusão de estilhaçosŗ (1990, p. 164). Desta forma, o ser confuso e instável que se encontra
em um momento de choque consigo mesmo acaba por se fragmentar como fruto de uma dispersão.
O eu-lírico perdido em si é o retrato do homem finissecular, visto então pela perspectiva do eu para
o social, e não vice-versa. Sá-Carneiro, portanto, mostra-se atento a esse momento de tensão e o
remete à sua poesia de forma implícita. Assim como um ser trágico às avessas, o eu-lírico presente
na poesia do Esfinge Gorda aliava-se ao Futurismo, movimento este que já se delineava mais
visivelmente na arte. Sobre este aspecto, Eduardo Lourenço afirma que Ŗde Sá-Carneiro se pode
dizer sempre que foi um futurista que recusou frontalmente o Futuro ou que aderiu a ele com tão
vertiginosa pressa que o integrou, em gesto sem réplica, num eterno presente explodidoŗ (1990, p.
8). Percebemos que isto se deu não somente pelo sentimento de não fixação como também pela
busca fracassada de adequação a este momento feita pelo artista.
A ideia de fragmentação, dispersão e não fixação também são indícios do que a
modernidade traz à tona para a sociedade. E aí os autores aproximam-se da declaração de Fernando
Pessoa: Ŗnão tenho sentimento nenhum político e social. Tenho, porém, num sentido, um alto
sentimento patriñticoŗ (apud Berardinelli, 2004, p. 60-61). Esse, portanto, é o reflexo do que a troca
entre Sá-Carneiro e Fernando Pessoa nos deixou, uma poesia que evidencia o Eu, e que nem por
isso o exclui do sentimento de se pertencer à sociedade em um fin-de-siècle que Ŗexprimia para uma
parte da inteligentzia européia [...] um sentimento de cansaço, de frustração, de decadência e,
sobretudo, de desilusãoŗ (Lourenço, p. 32). Como se percebe, porém, o que poderia ter sido apenas
a expressão de uma não fixação e desilusão foi ultrapassado pela expressão estético-literária
inovadora de Mário de Sá-Carneiro, e logo em seguida, Fernando Pessoa. Além disso, o cenário
político-cultural caracterizado pela instabilidade, ao contrário de provocar um possível
Ŗaniquilamentoŗ artístico, motivou-os suficientemente a promover uma inovação estética. Sobre
isso, Sá-Carneiro confessou a seu amígo íntimo, em carta enviada em 7 de janeiro de 1913:

um abatimento enorme nos esmaga, o pensamento foge-nos e nós sentimos que nos faltam
as forças para o acorrentar. Pior ainda: sentimos que se nos dessem essas forças, mesmo
assim, não o acorrentaríamos. E vamos dormindo o Tempo. Intimamente sabemos que a
crise passará. Fixaremos a ideia, e realizaremos. Mas, embora saibamos firmemente, não o
cremos. Eu por mim, meu caro amigo, embora saiba muito bem que hei-de escrever mais
livros, não o acredito nestes períodos de aniquilamento. A este respeito devo-lhe dizer que
me parece aproximar-se uma época de energia Ŕ após tantos meses de passivismo (2004, p.
51).

Na passagem de 1913, já se fazia referência a uma Ŗépoca de energiaŗ , isto é, à reação


prática a este momento de Ŗaniquilamentoŗ. Esse foi o fruto da sociabilidade explicitada nas cartas
entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, que em dois anos, em 1915, concretizou-se na
publicação da revista Orpheu. Segundo Otávio Rios, é desse relacionamento textual que Ŗresultam
em parcerias para a produção de novas obras, revistas literárias e movimentos sociais e políticos,

603
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

bem como o processo de feitura de obras em siŗ (2007, p. 32). Pessoa foi, então, o maior
contribuidor para a produção de Mário de Sá-Carneiro em relação ao objetivo afim deles de
explorar o fragmentário humano.
Contudo, outro artista pode ser citado em relação de sociabilidade com o Esfinge Gorda.
Dentre os quatro anos da troca de cartas com Pessoa, percebemos muita atenção dada e julgamentos
feitos à Santa-Rita Pintor, um cubista da área da pintura. Por meio de tais opiniões — muitas vezes
negativas — sobre este, podemos cunhar o pensamento traçado por Mário de Sá-Carneiro. É da
divergência entre eles que se apreende o posicionamento para a arte que nosso autor estudado
traçava. Da carta de 10 de maio de 1913, destacamos uma reclamação ao artista, dentre as muitas,
em: Ŗé que segundo o Santa-Rita Pintor confessa, para ele vale muito mais o Artista do que as suas
obras [...]ŗ (2004, p. 131). Dessa forma, a relação de sociabilidade pode ser dada aí pela negação do
compartilhamento de ideias. Enquanto Sá-Carneiro negava os ideais de Santa-Rita, transpareciam
os seus. O pintor pode ser visto, então, como quem estabelece uma relação de sociabilidade
transversal com Sá-Carneiro.
O impacto das ações e o relacionamento com Santa-Rita fica muito aquém da colaboração e
compartilhamento de ideias, discussões, comentários sobre a produção literária e amizade que autor
português teve com o Fernando Pessoa. Na carta do dia 30 de junho de 1914, Sá-Carneiro elogia um
poema de seu correspondente: Ŗnão tenho dúvida em assegurá-lo meu Amigo, você acaba de
escrever a obra-prima do Futurismo. Porque, apesar de não pura, [...], o conjunto da ode é
absolutamente futuristaŗ (2004, p. 176). Apreciava-se a famosa ŖOde Triunfalŗ, poesia que ironiza
o mito do progresso. Ao aludir ao exacerbado maquinário a que a vida humana se atrelou, acaba por
se referir a um antes e um depois, como podemos ver na terceira estrofe: Ŗem febre e olhando os
motores como a uma Natureza tropical / grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força / canto, e
canto o presente, e também o passado e o futuro, / porque o presente é todo o passado e todo o
futuroŗ (1915, p. 46). Assim, enquanto se remete ao passado, posiciona-o como algo que delineia o
futuro, a construção do presente. Também se pode identificar em outro poema de Pessoa, ŖOde
Marítimaŗ , que faz parte da segunda edição da revista, a referência ao passado como algo que
interfere no presente. Vejamos a estrofe publicada na primeira edição de Orpheu:

ah, todo o cais é uma saudade de pedra!


e quando o navio larga do cais
e se repara de repente que se abriu um espaço
entre o cais e o navio,
vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
uma névoa de sentimentos de tristeza
que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
como a primeira janela onde a madrugada bate,
e me envolve com uma recordação duma outra pessoa
que fosse misteriosamente minha. (1915, p. 28).

A problematização do tempo na produção de Pessoa aponta-nos para o que se queria


exprimir no momento: a saudade do passado e a desilusão com o presente, e, portanto, com o
futuro, características estas compatíveis com o sentimento finissecular. Eduardo Lourenço
604
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

denomina Portugal como a Ŗterra da saudadeŗ (1999), o que vem da constância desse sentimento na
literatura portuguesa, e cita D. Francisco Manuel de Mello, quem melhor escreveu sobre esse
sentimento, segundo o crítico português; a verificarmos em: Ŗé a saudade uma mimosa paixão da
alma, e por isso tão subtil, que equivocamente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da
satisfaçãoŗ (apud Lourenço, 1999, p. 30). A saudade do fim de século se difere um pouco dessa
saudade cultural que tanto sente o povo lusófono, pois parte não da busca por uma rememoração
positiva, mas se une à frustração, ao desalento, à incerteza do futuro. Quando Mário de Sá-Carneiro
expõe a Fernando Pessoa um projeto denominado Além, também coloca em questão a problemática
da saudade. A carta é de 3 de fevereiro de 1913:

no que lhe escrevo há frases de que gosto deveras: ŖOs meus lábios de ânsia sofriam já da
saudade dos beijos que lhe iam darŗ. É a ideia da saudade antes da posse que eu acho
qualquer coisa de trágico de grande ŕ Ŗter saudade já do futuroŗ. ŖA minha alma era um
disco de ouroŗ agrada-me também pois me dá bem a impressão duma grande alegria e
entusiasmo. Gosto da nota dos girassñis e depois da expressão ŖVerguei-meŗ que estabelece
uma ligação indefinida entre as duas frases porque é das flores que se diz que elas Ŗse
vergamŗ (2004, p. 67).

Percebemos que há uma relação temática tanto do que fora e não fora publicado em Orpheu,
o que se equilibra com a relação entre a produção literária conhecida de um autor e os seus textos
circundantes. Falar de Orpheu é falar de um processo muito mais amplo. Por isso mesmo que as
cartas tanto tratam de poemas disponibilizados ou não na revista. Além disso, ao tratar de Além,
Mário de Sá-Carneiro mostra seu interesse por falar da saudade. É perceptível o tratamento de uma
temática tão presente na literatura portuguesa dá-se em meio a um ambiente em que o centro é o Eu,
isto é, apreende-se que a motivação histórica não precisa ser representada explicitadamente na
poesia, mas é do cenário que menos indica ser a problematização que faz da poesia fecunda. É daí
que a poesia desse autor parece se mascarar da áurea motivadora da sensação de fim de século, e é
isso que o consagra.
Há também os poemas publicados na revista a que antes se fez referência nas cartas. Um
exemplo é o poema ŖTaciturnoŗ , que também se ambienta num dos momentos já aqui ditos como
influentes para a produção de Sá-Carneiro. Em carta do dia 17 de agosto de 1914, o autor diz que
segue uma poesia concluída no dia anterior, como veremos em:

percorro-me em salões sem janelas nem portas,


longas salas de trono a espessas densidades,
onde os panos de Arrás são esgarçadas saudades
e os divans, em redor, ânsias, lassas, absortas... (1915, p. 6).

Neste poema, percebe-se novamente a introspecção do Eu em busca de um


autoentendimento, sentimento este frustrado. Novamente a saudade é posta e se compara o ser
humano envolto ao local construído por concreto que, todavia, é preenchido por acessórios
elegantes. Outro poema presente em Orpheu, Inegualável, também é referido por Mário de Sá-
Carneiro em carta de 17 de abril de 1916, na qual elucida que: Ŗ[...] previram misteriosamente a

605
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

personagem real da minha vida de hoje estes versos. E Você compreende todo o perigo para mim
[...]ŗ (2004, p. 379). Segue, para buscarmos entender, uma parte do poema veiculado em Orpheu:

ah! que as tuas nostalgias fossem guizos de prata


Teus frenesis, lantejoulas,
E os ócios em que estiolas,
Luar que se desbarata (1915, p. 11).

Quando Sá-Carneiro aproxima o eu-lírico ao sujeito-eu, transmite o que pessoalmente sofre


no decorrer do ano de seu suicídio (1916). Os sentimentos tratados nos poemas já condizem com
um desespero espiritual, provindo de problemas financeiros, que intensificam a instabilidade da
personalidade do autor. Enquanto arte, o poema reforça a inadequação de um Eu cujos sentimentos
intensificam-se de acordo com o sensação de não fixação.
Dessa forma, percebemos que das cartas de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa se pode extrair
tanto a idealização, maturação e preparação de um veículo que representasse toda uma produção
literária fecundada nesse momento transitório. Orpheu representa, portanto, a movimentação e a
revelação estético-literária, ruptura esta motivada desde o Decadentismo e que provem de um
passado, fruto de um pensamento construído e amadurecido nas cartas de Sá-Carneiro a Fernando
Pessoa, e aponta para um futuro ao deixar seu legado ao modernismo. Ademais, a revista é um
marco palpável do que estava somente ao alcance da sensação/percepção de mundo e que se espelha
representativamente em um Eu dilacerado, multifacetado, refletindo a incompreensão do mundo
para a sua própria incompreensão, percorrendo a sua alma em forma de labirinto infinito, no qual
passado e presente estão envoltos simultâneo e conflitantemente de um saudosismo exacerbado.
Atentamos também ao agudo olhar de um artista observador e atuante nas cartas de Mário de
Sá-Carneiro. Mesmo a profunda instabilidade que revela a sua personalidade e a descrição mais
melancólica dos seus dias que se possa perceber, é quando fala de sua produção que o Esfinge
Gorda expressa a seriedade do seu compromisso literário. Por isso, podemos afirmar que o filtro de
mundo de Sá-Carneiro o permite abstrair para a poesia o limiar da sensação de não fixação provindo
de um sentimento finissecular. Quanto mais sutil é a poesia de Mário de Sá-Carneiro, melhor se
pode observar a capacidade desse autor de criar uma poesia ao mesmo tempo, indiferente Ŕ o que
muito se assemelha ao seu dandismo Ŕ e marcada de olhar crítico.
Coube aí a função das cartas de nos mostrar um planejamento e contextualização na
produção literária da Sá-Carneiro e de como ele soube aproveitar-se da sutileza que a poesia
permite para, também em meio a um labirinto que parece não ter fim, mostrar um traço de
sentimento decadentista. E quanto mais fino esse traço pareça ser, mais forte o é, pois é nas
profundezas da alma humana onde se encontra o que se busca esconder perante o mundo. Passamos
a entender a correspondência entre Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa não somente como
troca de riscos de poesia, mas um comprometimento com uma época histórica, em que apenas a arte
pode apaziguar almas que sofrem a modernidade. É assim que a epígrafe deste trabalho se justifica,
com uma própria frase de Mário de Sá-Carneiro: Ŗnão é pensamento que deve servir a arte — arte é

606
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

que deve servir o pensamentoŗ (2004, p. 137), pois é sucumbir-se pela arte a um propósito provindo
da vida. Tal preocupação estético-literária que abrange e extrapola esse pensamento é perceptível na
áurea de Orpheu, mas é a maneira esmiuçada e fecunda das cartas de Sá-Carneiro a Fernando
Pessoa que nos permite entendê-la.

Referências bibliográficas

BAUDELAIRE, Charles. ŖO dandyŗ . In: O pintor da vida moderna. 5 ed. Posfácio de Teresa Cruz.
Lisboa: Vega/Passagens: 2009. p. 41-45.

BERNARDES, José Augusto Cardoso. Mário de Sá-Carneiro: aqueloutro. In: Colóquio/Letras.


Ensaio, n. 117/118, set. 1990, p. 163-168.

CARDOSO, Marília Rothier. "Arquivos em confronto". In: Gragoatá, n. 15, Niterói, RJ: EdUFF,
2003. p. 43-53.

CUNHA, Teresa Sobral (Ed). Correspondência com Fernando Pessoa. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.

GAMA, Rinaldo. ŖPlural como o universoŗ. In: FERRAZ, Heitor (Ed.). Panorama da literatura
portuguesa. Revista Entrelivros, São Paulo, v. 5, n. 5, p. 57-68, 2008.

JESUS, Carlos Renato R. de. "Epistolografia na Antiguidade Clássica". In: RIOS, Otávio (Org). O
Amazonas deságua no Tejo: ensaios literários. Manaus, UEA Edições, 2009. p. 127-146.

LOURENÇO, Eduardo. "Dois fins de século". In: O canto do signo: existência e literatura (1957-
1993). Lisboa: Editora Presença, 1993. p. 317-328.

________. Mitologia da saudade: seguido de ŖPortugal como destinoŗ . São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.

________. "Suicidária Modernidade." In: Colóquio/Letras. Ensaio, n. 117/118, set. 1990, p. 7-12.

MACHADO, Lino. "Scripta mortalia: grafia compulsiva da 'dispersão total' em Mário de Sá-
Carneiro". In: Scripta, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 79-91, 2º sem. 2004.

Orpheu. Revista, Lisboa, ano 1, n. 1, Jan.-Mar., 1915.

Orpheu. Revista, Lisboa, ano 1, n. 2, Nov. 1915.

RIOS, Otávio. A experiência estética de Raul Brandão: variantes textuais e construção narrativa em
Húmus. 2008. 144f. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) Ŕ Programa de Pós-graduação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

SOUZA, Eneida; MIRANDA, Wander (Orgs). Arquivos Literários. São Paulo: Ateliê Editorial,
2003.

607
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A ESTRUTURA DE POEMAS AMAZÔNICOS, DE PEREIRA DA SILVA

Maria Sebastiana de Morais Guedes (UFAM)

Resumo: Estudo da estrutura da obra Poemas amazônicos, de Francisco Pereira da Silva. A construção do
olhar de fora sobre a Amazônia. Os mitos amazônicos em sua relação com os mitos universais. O uso de sete
máscaras (ou disfarces) pelo eu lírico desvelado na sua arte poética.

Palavras-chave: máscaras, Poemas Amazônicos, Pereira da Silva, mitos.

Francisco Pereira da Silva nasceu em 1892 na cidade de Guamaré, Rio Grande do Norte.
Publicou a obra Poemas Amazônicos em 1927 em Manaus.

Considerando que a obra Poemas Amazônicos expressa essencialmente uma visão mítica
sobre a Amazônia e que a voz que profere os enunciados líricos se apresenta sob múltiplas faces,
resolvemos, para melhor realizar a leitura dos mitos aí contidos, evidenciar as máscaras usadas pelo
autor.

As máscaras são artifícios usados para fazer de conta que é alguma coisa que não é. A
pessoa que encobre o rosto com uma delas se identifica, na aparência ou por apropriação mágica
com o personagem representado. É, pois, um símbolo de identificação. Hans Biedermann diz que
Ŗquem coloca uma máscara sente-se interiormente transformado e assume, por todo o tempo que a
usa, as qualidades do ser que a representa (deus, demônio)ŗ (1993, p. 242).

Ao abordarmos a temática do mito, sentimos de imediato a necessidade de buscar uma


definição, ou melhor, dizendo,uma significação para esse termo. Tal significação tem de
necessariamente ser aplicável às histórias e às personagens que nos remetem a acontecimentos
ancestrais que, transmitidos inicialmente pela oralidade, revelam a heterogeneidade cultural que
compõe o universo. Compreendemos essa heterogeneidade não do ponto de vista científico, mas
sim do ponto de vista mágico.

No século XIX, o mito era considerado como fábula, invenção ou ficção. A partir do
segundo quartel do século XX, os estudiosos optaram por uma revisão na maneira de ver e de tratar
o mito, aceitando-o como uma Ŗhistñria verdadeiraŗ , posto cumprir funções necessárias às
sociedades arcaicas ou primitivas em que foi gerado. Dentre as várias tentativas de definição
pesquisadas, optamos pela de Mircea Eliade, por ter sido a que nos deu a direção mais segura para
que pudéssemos percorrer esse abstrato caminho que é o da elucidação dos mitos encontrados em
Poemas Amazônicos.

608
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗo mito conta uma histñria sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo
primordial, o tempo fabuloso do Ŗprincípioŗ[ ...] Em suma, os mitos descrevem as diversas,
e algumas vezes dramáticas irrupções do sagrado ( ou do sobrenatural) no mundo. É essa
irrupção do sagrado que realmente fundamenta o mundo e o converte no que é hoje. E mais:
é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser
mortal, sexuado e culturalŗ (1989, p.11)

A partir dessa definição, É possível penetrar com maior clareza no significado dos mitos
contidos em Poemas Amazônicos. Nessa obra, encontramos tanto os mitos clássicos, que tão
fortemente estão entranhados na cultura amazônica por via do colonizador, como os endógenos, que
se presentificam a todo o momento. Tal como os mitos que, genericamente, chamamos de gregos e
que podem ter sua origem em outra cultura, chamamos aqui de indígenas aos que se referem à
cosmogonia amazônica ou à etiologia de plantas e animais da região.

Explicando as recorrências ao mito, fenômeno que perpassa as obras de arte em geral, e, em


particular, a literatura, Gaston Bachelar, na obra A Água e os Sonhos, diz: Ŗo inconsciente do
homem vai buscar em sua pré-história os temas eternos sobre os quais, em seguida, borda mil
variações diferentesŗ . (1998, p.53)

Da leitura do ŖPñrtico,ŗ poema de abertura da obra ŖPoemas Amazônicos‖ depreende-se que


o sujeito lírico levará o leitor pelas veredas da Amazônia, valorizando tanto os mitos endógenos
quanto os exógenos.

A Amazônia assim como o resto do Brasil, foi colonizada sob a égide do cristianismo; foram
os religiosos também que fundaram as primeiras instituições de ensino, obedecendo a regras
estruturais da escola tradicional, que valorizava um ensino de conteúdo clássico. No entanto, a
cultura nativa tem sobrevivido, ainda que precariamente ao massacre cultural imposto pelo
colonizador através dos tempos. Advém daí a tendência eclética que encontramos nos ŖPoemas
Amazônicosŗ . Não estranhemos, portanto, alusões misturadas a mitos diversos: judaico-cristãos,
greco-latinos e indígenas, numa miscigenação que simboliza o pensamento e a forma de ser do
homem brasileiro e, em especial, do amazônida.

Loureiro analisa a relação entre poesia e mito, observando que Ŗé prñprio do poético ter a
dimensão do mito, tornando-se dimensão transfiguradora de fases históricas que são entendidas e
idealizadas como épocas das origens, como se nelas tudo estivesse nascendo. Como se tudo
estivesse em perene recomeçoŗ (1994, p.67). Nos ―Poemas Amazônicos‖, a presença dos mitos
recontados em forma lírica não oferece nenhuma surpresa, pois se o poeta é o porta-voz do seu povo
através de uma linguagem desautomatizada, nada mais natural que eles, que não só fazem parte da
cultura, mas diríamos até que estão no inconsciente do povo amazônico, aflorem de maneira
bastante intensa. Os mitos nesta região não são apenas histórias memoráveis, eles ainda estão vivos,
eles ainda são a explicação para aqueles acontecimentos a que o povo, principalmente à época da
elaboração do livro que analisamos, não tivera acesso de forma racional ou científica. E esse

609
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

universo mítico revela-se no desenvolver dos poemas, quer seja por simples alusões, como o
registro de determinadas plantas aquáticas, quer seja na explicação da cor de um pássaro ou da
forma de um animal ou ainda na explicação das origens do mundo. E é Loureiro ainda que nos
explica o maravilhamento do povo diante da natureza:ŗno reino da natureza amazônica, para o
caboclo, cada coisa é e não é. No ser de cada coisa há uma outra coisa, uma outra razão, uma nova
imagem. Cada elemento da paisagem é apreendido como uma nova revelação cosmogônica, tem sua
história de origens e tem um destino além de suas circunstâncias. Há uma necessidade ontológica
insaciável. O mundo físico exige uma explicação imaginal, e o caminho para isso tem conotações
estéticas, na medida em que tudo parece vir impregnado de uma espécie de Ŗaparência essencial.
Uma aparência que se converte em essência. O rio a floresta, o ar são formas que abrigam
conteúdos aparentes de beleza, traduzidos por signos que constituem configurações dessa
modalidade de maravilhamento.ŗ (1994,p.139)

Diante disso e levando-se em conta o fingimento poético, verificamos que o poeta


intensifica esse artifício, usando o que era bastante comum nas culturas antigas e, em especial, por
sua maior complexidade, no teatro grego - a máscara, que não é apenas um disfarce superficial e
sim, durante o seu uso, um momento mágico em que o portador vive aquilo que representa.

NřŖOs cantos bárbaros do meu deslumbramento,ŗ o bardo expõe a sua arte poética. Diante
da grandiosidade da natureza amazônica, estarrecido, recorre aos mitos, pois somente por
intermédio deles é que será possível a descrição das imagens que lhe parecem a de um retorno ao
princípio, às primeiras eras da criação, de acordo com os relatos ancestrais. E é baseando-se em Pã,
deus dos disfarces, aquele que se apresenta com a face de quem, inadvertidamente, o mira, que o
poeta multiplica o próprio rosto. Num jogo de substituição de máscaras, apresenta-se como Pã e
será o fauno insaciável que ao som da flauta dolente, louvará a fecundidade e a beleza da terra
amazônica e verá nela o Paraíso. Em outra parte do livro, como Orfeu, será o poeta, o mago que
encantará o mundo com sua lira, que contará a história dos deuses e fará sua passagem pelo Inferno.
Por afinidade com os goliardos, poetas medievais que satirizavam os poderosos, denunciará a
exploração e a oferta do Inferno, disfarçado de Paraíso, aos seus irmãos. Levará o leitor ao mundo
da fábula e será um novo Esopo. Usará também a máscara de Wagner para compor e reger o coro de
sons contrastantes a cantar os mitos nativos. Dos Druidas, adoradores das árvores mediadoras entre
deuses e homens, valer-se-á para enaltecer as que, por imensas, compõem significativamente o
cenário amazônico. Finalmente o ultimo disfarce: o de Camões, que louvou os momentos heróicos
do povo português, assim também o fará o sujeito lírico, cantando a bravura nordestina no cenário
amazônico.

E é assim, com a máscara de Pã que se manifesta em ŖPrece pagãŗ ,louvando a natureza


como a terra-mulher, como se uma fêmea fosse, capaz de corresponder aos seus desejos
erñticos:ŗTe rra-mulher! Noiva da luz! Enamorada / Eterna do Grande Rio/.....Tortura suave de meu
sangue moço,/ Teu erógeno odor acorda os meus desejos, / Penetrando nos refolhos / Dos meus

610
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

cinco sentidos despertados.ŗ (1998, p.61). Ainda como Pã compara a orquídea, flor que em algumas
culturas simboliza a fecundidade, com Pandora, criação de Hefestus, dotada por Hermes de ardis,
fingimento e perfídia, a fim de atormentar os homens, e é plena de erotismo a aproximação desse
sujeito lírico à flor: ŖLinda flor de baunilha/ Beijo-te! e sinto que és mulher./ Mulher que se tornou
em vaporosa orquídea/ -Orquídea que partilha/ Da graça da mulher, do cheiro e da perfídia/

Baunilha... Carne em florŗ .(1998,p.99 e 102) Enquanto Pã excita deuses e mortais com a
flauta denunciadora da sua presença,Orfeu, poeta e músico, ao som da lira ou da cítara, acalma
homens, natureza e feras. Ora, o lugar onde se encontra o poeta é a natureza em sua plena
exuberância; vegetação de difícil penetração, feras das mais variadas espécies.Por outro lado, há
homens desejosos de dominar o ambiente que lhes parece hostil.A voz lírica, então recorre ao
disfarce daquele que foi o Ŗeducador da humanidadeŗ : Orfeu, cuja máscara se concretiza através das
alusões à sua vida e morte míticas. Dessa forma encontramos em ŖOs cantos bárbaros do meu
deslumbramentoŗ uma referência metafñrica ao Velo de Ouro, objetivo maior da expedição dos
argonautas, na qual Orfeu desempenhou fundamental importância, pois com o seu
canto,acompanhado da lira, acalmou e calou as entidades do mar que enlouqueciam os marinheiros
com vozes maravilhosas.ŗ É meu prazer cantar minhas estrofes nervosas./Nelas eu vejo os meus
anseios serpeando/ Pelo espaço./E as minhas angústias recônditas, clamorosas,/ Na agitação febril
de quem procura/ O Velo de Ouro de um regaço.ŗ (1998,p.55) O Velo de Ouro,segundo J.Chevalier
e A. Gheerbrant Ŗexpressa a conquista do que a razão julga impossível. Ele concentra dois
símbolos, o da inocência figurada pelo velo do carneiro, e o da glória, representado pelo ouro
Ŗ(1995, p.934) A Amazônia haveria de ser conquistada sem que a inocência paradisíaca fosse
perdida Ŕ tal é o desejo do sujeito lírico.E em atitude análoga à de Orfeu, o poeta canta a beleza
caótica da natureza, num canto em que a emoção é a nota mais alta e mais adiante ele se declara o
poeta pagão ao elogiar a terra amazônica tal como o fez o demiurgo com sua amada Eurídice.ŗ E
assim, terra ideal, iremos, vida adiante,/ Num enleio de eterna mocidade./ Eu, o poeta pagão, ao
som dos alaúdes/ Selvagens, cantarei a beleza triunfante/ dos teus seios formosos, inundados/ De
seiva, e luz e glñrias e harmonias!ŗ (1988, p.62).

Esse hinário de louvor à terra, elaborado sob a máscara de Orfeu, numa verdadeira e nova
cosmogonia, inclui os rios amazônicos, que pelo gigantismo são comparados aos titãs, como no
poema ŖO grande Rioŗ: ŖAqui / O Grande Rio/ Surge como um fantasma pavoroso!/ Brama como
um titã, pisando a Cordilheira /Dos Andes! E o ruído enorme de seus passos/ Bastou para fazer em
mais de mil pedaços/ O enorme coração da selva brasileiraŗ (1988, p83/84). A cosmogonia ñrfica
afirma que o mundo teria se originado de um ovo (1991, p.206) e é o que encontramos na sequência
do poema anteriormente citado: Ŗ[...] E arrastas na caudal o ñvulo fecundo/ De novas ilhas e de
continentes,/ De refloridas terras, onde gentes/ Audazes, varonis, destemerosas,/ As bases firmarão
de pátrias vitoriosas,/ À redentora luz do sol de um novo mundo!ŗ Em seguida, num contínuo jogo
de ocultamento /revelação que traduz a visão caleidocópica do poeta sobre a Amazônia, percebemos
outras máscaras delineando-se no poemaŗ Os cantos bárbaros do meu deslumbramentoŗ . Eis que
611
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

surge o Goliardo junto com Esopo: ŖEu tenho grande culto a essa afinidade,/ Que há entre os poetas
e as cigarras,/ Boêmios medievais da piedade/ Da vibração/ Trazem sempre à garganta uma cantiga
amena,/ De

Inverno a verão.../ A mesma sina cruel os norteia e consome:/ Nascem cantando, vivem
cantando,/ E cantam sempre Ŕ até morrer de fome. ŗ (p.54/55) Os poetas boêmios medievais da
piedade eram os goliardos, jovens clérigos estudantes que por volta do século XII perambulavam
entre as recém-fundadas universidades da França e da Alemanha. Escreviam poemas em latim e se
diziam filhos de Golias. Nessa época, em que tudo ou quase tudo o que era escrito provinha da
Igreja, eles, utilizando o respeitado canto litúrgico, inseriam versos profanos de amor à natureza, de
forma panteística, fazendo referências aos mitos pagãos, à mulher, aos prazeres da mesa, somando-
se a isto as críticas aos desmandos dos representantes eclesiásticos, os quais pregavam ao povo o
jejum, enquanto se regalavam à mesa farta, condenavam a luxúria e praticavam bacanais às
escondidas. Os goliardos se dispersaram por perseguições da Igreja e acabaram integrando-se ao
movimento trovadoresco (1971, p.914). Além de poemas laudatórios à natureza há também aqueles
em que o poeta revela a mentira de que foi vítima o nordestino pobre. A ele foi oferecido o inferno
da escravidão revestido pela delícia do paraíso. É o que se lê no ŖPoema da seringueira:ŗ ŖE o
seringueiro vai pela estrada torcicoleante, / Com a esperança dançando dentro da alma, / E o balde
cheio de leite... De ouro!/ [...] Mas, oh! Desilusão de uma crença insensata!/ Tudo afinal é a trama,
o engano ledo/ De um bruxedo/ Da Mãe-da-mata.ŗ (p.188). A extração do látex foi dada ao
nordestino como a redenção dos males que sofrera durante a seca. Era a sua possibilidade de
sobrevivência; porém ele não contava com os transtornos que haveria de passar para se adaptar à
Amazônia, pois além da natureza hostil, ainda teria que lutar contra a terrível exploração do dono
do seringal.

A máscara seguinte é a de Esopo, fabulista grego do séculoVII ou VI a/C., quase legendário,


já que pouco se sabe sobre sua vida .Apesar disso, suas histórias foram e continuam sendo
amplamente citadas para criticar o comportamento humano, quando necessário se faz. A fábula é
uma narrativa que tem por assunto a vida dos animais e por finalidade uma lição de moral dirigida
aos homens. Desse modo, vamos reconhecer no poema ŖO Japiim e o Tamuruparáŗ o disfarce de
Esopo acumulado ao do Goliardo e ao do músico Wagner: ŖPalhaço e trovador,/ É de ouvi-lo
saudando a natureza,/ Abençoando a floresta e rindo, com finura,/ Da vida, entre um gorgeio, um
salto e um sarcasmo,/ Indiferente a tudo o que é tristor./ [...] Ironista, mordaz, cantando a vida
inteira,/ Imita, quase sempre, em ferino arremedo, / Por prazer de irritar,/ todos os bardos
plumitivos,/ Que vivem a modular endechas à alvorada/ E às lindas tardes cor de rosaŗ (p.105/106).
O japiim, imitador dos cantos dos outros pássaros, provoca sua própria ruína ao arremedar e
ironizar o poderoso tamurupará E eis o sujeito lírico, travestido de Esopo para contar essa história:
ŘVem de longe esse ñdio, entre os dois, revivendo.../ Diz a lenda que outrora o avô do japiim,/Vivia
arremedando o tamurupará./ E um dia se feriu em tremendo combate!/ Asas feridas! Céus! Que
drama tão sangrento!/ As aves, ainda hoje, choram essa desgraça!/...E o avô do japiim, / Vencido,
612
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

exausto, exangue, / Morreu, por fim... ŗ (p.107) A máxima que fecha a fábula está implícita: não se
deve provocar a ira de alguém se não se estiver preparado para o revide. Vejamos agora a máscara
de Wagner, o cultor dos mitos endógenos de seu povo, cujos libretos das óperas resgataram as
origens da cultura germânica. De forma análoga, o sujeito lírico, expressará essa referência: ŖEm
êxtase, ouviremos todos, os canglores/ E o coro wagneriano de mil vozes/ Em contracanto, / Entre
metais em fúria protofônica/ E ribombos de tempestade em festa druídica!ŗ (p.57). O sujeito lírico
não deixa dúvida quanto ao tratamento grandioso que dá aos poemas. Ele o faz à maneira da ópera
wagneriana, que é de intensa e densa sonoridade, além de ser a exaltação de deuses e heróis. Ainda
sob a máscara de Wagner, leiamos ŖO canto da nação Canamariŗ : ŖOs payés,/ Às noites claras,/ No
terreiro das ocaras,/ O lume aceso a seus pés,/ Triste a voz,/ O peito arfante,/ Cantam a lenda mui
distante,/ Ouvida de seus avñsŗ (p.91). O trecho trata da preparação indispensável à narrativa da
origem do mundo.O ritual se faz necessário porque, segundo Eliade, em Mito e Realidade, Ŗa
recitação solene do mito cosmogônico serve para curar determinadas enfermidades ou
imperfeiçõesŗ (1989,p.26).No caso do povo da nação Canamari, o poeta capta-lhe a tristeza pelos
contratempos sofridos com a presença de outra tribo mais numerosa, a Caxinaua.Os canamaris
lamentam a partida do demiurgo, fato a que atribuem essa desgraça. Retornemos, então aos
instantes iniciais da criação do mundo ŖFoi Tama que nos fez e a tudo mais./ Tama era o dono da
sabedoria./Num tempo muito longe, muito atrás,/ Tama acordou./ Tudo era escuro.Tama não viu./
E, erguendo a cabeça para a noite absoluta,/ Tama soprou a escuridão.Soprou/E fez Tiang. E fez
Uadia. / Foi assim que a luz surgiu (p.93). No entanto, apareceu Kirak, o deus errado que, movido
pela inveja, quis ser igual a Tama, que se zangou e o transformou em tatu. A narrativa prossegue até
que chega ao momento da criação do povo: ŖSoprando a folha da sororoquinha virou Canamariŗ
(p.93). Nesse trecho, à semalhança dos coros das óperas wagnerianas, é emitido o grito em
reconhecimento ao criador: ŖHia! Hia! Hia! Hia! / Tama fez todos nñs, / Canamari, Canamariŗ
(p.93).

Para o pensamento mágico, é bem natural atribuir-se à intervenção do sobrenatural o


surgimento de um fenômeno ou de um ser. E isso é constatado sob a máscara de um autor de música
erudita, Wagner, que se valeu de motivos populares para criar sua arte. Quer-nos parecer que este
fato é uma clara demonstração de que as culturas se equivalem. Não há uma superior a outra. É por
isso que, portando o disfarce wagneriano, o olhar do poeta é dúbio: ao olhar o feminino, ele percebe
de um lado as valquírias, e de outro as icamiabas. As valquírias são as mulheres guerreiras da
mitologia germânica e na ñpera ŖDie Walküreŗ é Brünnhilde a valquíria sensibilizada pelo amor, a
tal ponto que poupa a vida a dois amantes condenados. As icamiabas são as legendárias mulheres
guerreiras que frei Gaspar de Carvajal julgou haver visto às margens do rio Nhamundá e, por causa
disso, ŖFrancisco Orelhana chamou o Paranatinga dos silvícolas de Rio das Amazonasŗ , segundo
informação de Nunes Pereira, no Moronguetá (1980, p.686). No poema ŖOração da última
icamiabaŗ , é Naruna a mulher guerreira que inicia o conflito com os homens, sofrendo por isso a
contradição do amor e do ódio, levando suas companheiras a insensibilidade. Isto faz com que a

613
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

última delas, sofrendo as conseqüências dessa guerra dirija-se a Iaci, deusa dos que amam: ŖIaci!
Iaci! / Os homens são irmãos das feras insaciáveis. / Mas Naruna, amaldiçoando os homens, / matou
o amor. [...] Iaci! Traze do fundo dřagua do lago sagrado/ A pedra verde da felicidade!ŗ (p.211). A
pedra verde da felicidade é a muira- quitã sempre associada às icamiabas porque elas a
presenteavam aos homens, após serem amorosamente servidas por eles. Essa pedra é um talismã
realizador de desejos, bastando para isso que a pessoa tenha em mãos ao formulá-los. E o desejo da
última icamiaba é o de voltar a sentir o amor, daí o término do poema ser exatamente como um final
operístico: ŖE que ressurja o amor no peito da icamiaba, / Na glñria de prender meu algoz entre
beijos/ Para depois morrer cantando nos seus braços!ŗ (p.211).

Em meio a esse mundo de imensidades verdes, destaca-se, de maneira a impressionar pelas


dimensões, a Vitória-Amazônica. Com essa aparência difícil seria não existir no imaginário popular
uma origem mágica para essa flor, sobre a qual o poeta compôs um poema recontado-lhe a
etiologia. É o ŖNatal nas Selvasŗ , cujo inicio reporta-se a atitude ritualística assumida pela tribo.
Contam-na os mais velhos aos descendentes: ŖNaquela noite, os guerreiros, / Sentados em
semicírculo em frente ao chefe Iuma, /Ouviram a marandubaŗ (p.215). E a maranduba é a do
surgimento da grande e bela flor Ŕ a Vitória-Régia Ŕ que é oferecida aos homens da mesma maneira
mística que os reis magos ofereceram os presentes ao menino Jesus: ŖBem no meio do lago, / Onde
a estrela do Pastor gloriosamente reluma, / Emerge um aguapé gigânteo e ebúrneo, / A corola
entreabrindo para a luz. / Fulge a oferenda das águas/ E das selvas, /Avultando entre a mirra, o ouro
e o incenso, / Que os Reis Magos levaram ao Deus-Nascido! / ŖIpotira! Ipotira-uaçu!/ Ipotira-
poranga!/ É a grande flor-das-águas que Tupana nos deu!ŗ ŗ (p.217-218). A flor preciosa não surge
da água imotivadamente. Ela é o correspondente amazônico de Narciso, a flor resultante da mirada
de Iaci-raíra, que se maravilha com a prñpria imagem refletida no lago: ŖNa tranqüilidade
espelhante da água parada, / Iaci-raíra reflete e maravilha/ Todo o lúcio esplendor de sua nueza
estelar... (p.216).ŗ Essa imagem especular é explicada por Gaston Bachelard em A Água e os
Sonhos : Ŗ O narciso generalizado transforma todos os seres em flores e dá a todas as flores a
consciência de sua beleza. Todas as flores se narcisam e a água é para elas um instrumento
maravilhoso do narcisismoŗ( 1998, p.27).

O processo da troca de disfarces acontece incessantemente como se pode observar na


alternância entre a máscara de Wagner e a do Sacerdote druida em ŖA dança negra da florestaŗ : Ŗ...
A floresta enlouqueceu! / Bambeiam em contorções diabólicas, tangidas/ Ao brado sinistral dos
vendavais, Todas as grandes árvores, lembrando/ Fantasmas de revoltas cabeleiras, / [...] Ouvem-se
os gritos de pavor dos canibais. / Tuno-tuno dá gargalhadas aos trovões, / Regendo a partitura dessa
orgia de bramidos e sons, / - Desespero orquestral de uma polifonia/ Que Wagner esqueceu...ŗ
(p.168-169). Referindo-se à divindade defensora da floresta, Tuno-tuno, provocadora de intensa
turbulência, o eu lírico usa o disfarce wagneriano, no entanto Biedermann diz que, Ŗno âmbito
germânico, o vento da tempestade era, muitas vezes, relacionado aos exércitos selvagens e furiosos
de Wotan (Odin)ŗ (1994, p.357). De posse dessa informação percebemos também o druida,
614
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

sacerdote celta, para quem a natureza assumia uma dimensão de santuário natural, sendo as árvores
mediadoras entre os homens e a divindade. Observamos isso no poema ŖSumaumeira mortaŗ : Ŗ
Depois, dentro da noite, a sumaumeira,/ Tinha a grandeza de um altar druídico,/ Erguido em meio
da brutalidade/ Das selvas e das águas tumultuárias,/ Iluminado pelos pirilampos. [...] A múmia
branca da potência vegetal/ Da Terra Verde,erguia os braços para os céus./ E o lampadário/ Do sol-
poente,/ Parecia enviar uma prece eloqüente/ Ao Sublime-Inexplicável Ŕ que é Deus!ŗ (p.120-121).
No mesmo poema, percebe-se o poeta-sacerdote druida, devoto da árvore, a bendizê-la: ŖBendita
sejas, Árvore Grande de minha devoção/ Emocional! / Teu último instante/ Há de ser grandioso/
Como o enterro de um Deus, na vastidão/ Azul do espaço sideral!ŗ (p.123).

Finalmente a última máscara: a de Camões. Com certa transparência, devido ao tom


historicizante, o sujeito lírico canta os feitos heroicos do homem que se aventura a penetrar no
mundo verde, à semelhança do que o épico lusitano fizera ao louvar a bravura de Vasco da Gama,
representante do povo português. Inicialmente, vejamos o seguinte trecho de ŖOs Cantos bárbaros
do meu deslumbramentoŗ , oportunidade em que o eu lírico se afirma como o cantor de sua gente: Ŗ
[...] Mas, no entrecho final, dominará, nos espaços,/ Sobre o estridor de orquestras em delírio/ A
loucura vocal de mil cantores,/ A nota aguda, estranha,/Isolada e inarmônica destes versos,/
Divinizando o meu deslumbramento!ŗ (p.57). Agora seu olhar não mais será filtrado pelos poetas e
músicos; Não há para acompanhá-lo Pã, Orfeu, Goliardos, Druida ou Wagner. Ele está isolado. Sua
voz se eleva sobre a dos antigos. Como diria Camões, em Os Lusíadas, Ŗcesse tudo o que a Musa
antiga canta/ que outro valor mais alto se alevantaŗ (1980, p.76). O novo valor está representado
pelos nordestinos que vieram para a Amazônia, cuja saga é celebrada no ŖPoema dos Acreanosŗ: Ŗ
Avançam pela floresta adentro/ Os homens bronzeados do Meio-Norte!/ - Gente do litoral e dos
sertões bravios,/ Onde o fogo do sol dança o bailado das secas,/ Sobre o dorso cinzento das
caatingas. [...] Ŕ Nós somos o Brasil dos seringueiros do Aquiri!/ Primeiro, afrontamos as iras do sol
que nos matou a felicidade/ E pelo sofrimento conquistamos um Paraíso Verde!/ À beira dos rios e
paranás derramamos o nosso sangue./ Mas fomos adiante.Era mister a luta./ Ferir. Matar. Morrer,
honrando a nossa raça,/ Conquistando, a punhal, trincheiras e trincheiras,/ Na ânsia de ter um luar
sob frondes eternas.ŗ (p.235-236). É ainda mitificando e heroicizando que o eu lírico alude ao
nordestino, homem másculo e jovial, capaz de conquistar e modificar a natureza. Observemo-lo no
Poema da Seringueira: ŖÉ o seringueiro! É o homem moreno, caldeado/ Pelo sol nordestino, / -
Misto de trovador e de herói espartano -/ Que sofre, dentro da selva, a nostalgia das caatingas. / E
contempando a bruteza dos rios/ Tem saudade dos Ŗverdes mares braviosŗ / De sua terra. / É o
seringueiro, / Que vem chegando para o Ŗcorteŗ , / vencendo o varadouro emaranhado, / Depois de
atravessar igapñs e restingas.ŗ (p.184)

Em contrapartida ao herói do Nordeste, e expressando uma visão certamente preconceituosa


Ŕ uma falha lamentável na ideologia e na concepção estrutural da obra Ŕ percebe-se o caboclo
amazônida, apático, calado e vencido pelas forças da natureza. Confirma-se essa assertiva na
ŖHistñria de Abanaŗ : Ŗ Caboclo pamari/ À beira dřágua, estranhamente absorto,/ Fronte inclinada
615
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

para a relumância/ Do lago, na quietude da amanhecença,/ Enrola maconha e fumo velho,/ Veneno
e sonho,/Numa folha macia de tauari./ E a fumarada cinzenta do cigarro,/ Como se fora o incenso da
desgraça,/ Mal disfarça o tristor do seu rosto fouveiro/ E a ofegância cruel do peito salpintado,/
Tudo se refletindo e se estampando/ Em sua sombra inquieta e dolorosa,/ Lembrando um morto-
vivo dentro dřágua./Caboclo pamari é uma coisa parada,/ Espiando a fatalidade do seu fim...ŗ
(p.227).

Como se pode verificar através dos textos, enquanto o nordestino é um verdadeiro demiurgo,
remodelador da natureza, lutador, alegre, forte e saudável, o caboclo é coisificado, triste, doente,
viciado e espectador abúlico da natureza e do mundo.

E assim, observamos em Poemas Amazônicos a visão multifacetada do sujeito lírico. Ele


enalteceu sensualmente a terra paradisíaca como Pã; cantou a cosmogonia e atravessou o inferno
verde com a lira de Orfeu; para denunciar injustiças, vestiu a pele dos Goliardos; ironizou
comportamentos como Esopo, através das fábulas; recontou mitos endógenos, tal como o fizera
Wagner; nos trajes de um Sacerdote druida, cultuou a majestade das árvores; ao final, cantou,
fingindo-se de Camões a grande empreitada dos nordestinos, que, da condição de homens comuns,
foram elevados a patamares dignos dos heróis.

Foram sete as máscaras usadas.

Referências bibliográficas

BIEDERMANN, Hans. Dicionário ilustrado de símbolos. Trad. Glória Paschoal


de Camargo. São Paulo: Melhoramentos, 1993.

BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico; mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991. 2 v.

BACHELARD, Gaston. A Água e os sonhos; ensaio sobre a imaginação da matéria. Trad. Antônio
de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Itatiaia/USP, 1980.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos; mitos, sonhos, costumes,


gestos, formulas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva et alii. 9ª ed. Rio de Janeiro:
José Olímpio, 1995.

DURANT, Will. A história da civilização. Trad. Mamede de Souza Freitas. 2ª ed. Petrópolis:
Vozes, Record [s.d.] v. IV.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Póla Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1989. (Debates,
Filosofia)

616
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica; uma poética do imaginário. Belém:
CEJUP,1995.

PEREIRA, Manuel Nunes. Moronguêtá, um Decameron Indígena. 2ª ed. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1980.

SILVA, Francisco Pereira da. Poemas Amazônicos. 3ª ed. Manaus: Valer, 1998.

617
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

LETRA E VERDADE NAS ŖCONFISSÕESŗ DE SANTO AGOSTINHO

Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto (UFAM)

Quais as condições de possibilidade de uma obra literária? Há nas Confissões de Santo


Agostinho uma relação com a arte poética? Se considerarmos a literariedade como capacidade de
apreensão do real em função de dois fatores, primeiro da linguagem, que é a capacidade de
dizermos o que queremos e em segundo da ideologia que expressa uma visão de mundo construída
socialmente, então será possível demonstrar que a natureza da obra em questão concentra em si
mesma os requisitos indispensáveis para pensá-la também como obra de arte.

Quando se diz que a literatura imagina, diz-se que ela produz imagens, manifestações
sensíveis das idéias das coisas, visibilidade mental (Samuel, 2002, p. 23). Neste sentido, Aurelius
Agostinho, pensador medieval que à época da redação das Confissões entre os anos de 397 e 398 já
havia se tornado Bispo de Hipona, cria a primeira autobiografia da História da Filosofia Ocidental,
nela o autor descreve a história da própria vida fazendo uso da linguagem poética e reveste os fatos
da sua existência com idéias, sentimentos e emoções. Não se trata, portanto, apenas do registro da
sua biografia pura e simples, dado que ela vem acompanhada do uso da imaginação transformadora
da realidade.

Disto resulta que no tocante às formas de narratividade que a tradição literária nos deixou as
Confissões de Santo Agostinho se afigura, enquanto obra como o protótipo do gênero. Sua
característica principal é reconhecida como a exposição do Ŗeuŗ do autor voltado para a sondagem
da sua consciência revelando ao leitor todas as suas angústias e perplexidades (DřOnofrio, 1999, p.
124). Agostinho pretende revelar a Deus perante os homens o que foi, antes da conversão, em seus
desregramentos e depois de abraçar a fé em sua convicção religiosa, fato capital na sua biografia,
tanto, que lhe rendeu o título de um dos quatro maiores doutores da cristandade.

A habilidade com as letras foi herança da sua formação nas Artes Liberais, arduamente
pretendida pelo pai que se esforçou para que o filho pudesse concluir seus estudos superiores em
Cartago e assim ocupar o cargo de professor municipal ou até mesmo a magistratura. Foi assim que
se tornou professor de Retórica, e passou a lecionar primeiro, em Tagaste sua terra natal e uma das
províncias romanas na África e depois em Roma e Milão, cidade na qual o contato com Santo
Ambrósio foi decisivo para abraçar a doutrina cristã. No entanto, antes deste acontecimento,
Agostinho descobrira a filosofia por meio da leitura do Hortensius de Cícero, diálogo de exortação
ao estudo da filosofia que se perdeu e que foi composto no ano 45 antes de Cristo. Tal influência
encontra-se registrada no capítulo 4, do Livro III das Confissões:

618
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Era entre estes companheiros que eu, ainda de tenra idade, estudava eloqüência, na qual
desejava salientar-me, com a intenção condenável e vã de saborear os prazeres da
vaidade humana. Seguindo o programa do curso, cheguei ao livro de Cícero, cuja
linguagem, mas do que o coração, quase todos louvam. Esse livro contém uma
exortação ao estudo da filosofia. Chama-se Hortênsio. Ele mudou o alvo das minhas
afeições e encaminhou para Vós, Senhor, as minhas preces, transformando as minhas
aspirações e desejos. Imediatamente se tornaram vis, a meus olhos as vãs esperanças. Já
ambicionava com incrível ardor do coração, a Sabedoria imortal. Principiava a levantar-
me para voltar para Vós. (...) Como ardia, Deus meu, como ardia em desejos de voar das
coisas terrenas para Vñs, sem saber como procedíeis comigo? ŖEm Vñs está,
verdadeiramente a sabedoriaŗ (Jñ 12,13). Porém, o amor da sabedoria, pelo qual aqueles
estudos literários me apaixonavam tem o nome grego de FILOSOFIA. (Agostinho,
1980, p.44).

No período denominado de antiguidade tardia, intervalo histórico entre o fim do mundo


antigo e o início da idade média, as escolas filosóficas possuíam também um caráter soteriológico,
ou seja, preocupavam-se com o problema da salvação do homem e, sobretudo, com o problema da
felicidade, talvez tenha sido esta a motivação que levou nosso autor a interessar-se pela filosofia.

Embora limitado pela ignorância do grego, a língua culta da época, Agostinho teve acesso à
tradução latina de algumas obras filosóficas, entre elas as Categorias de Aristóteles e ao
maniqueísmo, doutrina que o seduziu durante algum tempo. Em seu itinerário filosófico conheceu
também o neoplatonismo de Plotino, que era visto como sistema filosófico, capaz de auxiliar a fé
cristã com argumentos racionais, na sua defesa e elaboração teológica (Pessanha, 1980, p. IX). A
nova fé mobilizou o autor na criação da primeira grande síntese que adornou a revelação cristã de
elementos da especulação filosñfica grega, que ele denominou de Ŗfilosofia cristãŗ .

Designado a exercer o ministério da palavra, na medida em que foi aclamado presbítero da


igreja de Hipona passou a exercer das suas funções pastorais, na qual sua produção literária foi
vasta e contou com a redação de mais de quinhentos sermões, textos catequéticos, cartas, sentenças
seculares e as obras filosóficas, dentre as quais figura, como uma das maiores as Confissões, que
aqui pretendemos apresentar em sua densidade filosófica e mostrar em que sentido se aproxima
também de um texto literário.

Agostinho em seu lirismo utiliza a fala direta. É musical, subjetivo, suave. Fala de si e ao
falar do eu torna-se o porta-voz do outro, ou seja, da humanidade inteira na medida em que simula
um apelo a Deus, confessando-se e reconhecendo-se como ser mortal, imperfeito, pecador e carente
da misericórdia divina:

ŖSois grande, Senhor e infinitamente digno de ser louvadoŗ . ŖÉ grande o vosso poder e
incomensurável a vossa sabedoria.ŗ O homem fragmentozinho da criação, quer louvar-
Vos; - o homem que publica a sua mortalidade, arrastando o testemunho do seu pecado
e a prova de que Vós resistis aos soberbos. Todavia, esse homem particulazinha da
criação deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque
nos criaste para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós
(Agostinho, 1980, p. 09).

619
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Desta forma Agostinho abre o primeiro capítulo do Livro I das Confissões, cita nas duas
primeiras frases os Salmos 95 e 146 do Antigo Testamento e assim sintetiza num lirismo vibrante a
nostalgia de Deus que habita no coração do homem (Santos; Pina, 1980, p. 09). A citação bíblica
que inaugura a obra e é recorrente até o final dos seus treze livros corrobora com um das
características da filosofia cristã: Toda filosofia cristã norteia-se pela tradição, pois tem consciência
de ser parte de um projeto coletivo, para o qual deve contribuir, levando adiante a empresa dos seus
predecessores, cuja obra procura aprofundar e melhorar. Em parte alguma se verifica ruptura
completa com o passado, ao contrário , verifica-se um grande apego à autoridade, neste caso à
Bíblia (Gilson, 1988, p. 11). De igual modo os pensadores cristãos posteriores também se tornaram
devedores e foram inspirados pelos textos escritos por Santo Agostinho.

Nas Confissões o uso das fartas citações da Sagrada Escritura justificam-se pelo fato de que
é nela que se concentram as Verdades da fé que posteriormente foram aprofundadas pelo trabalho
da razão e por uma necessidade histórica exterior. Diante do legado da filosofia helênica era
imperioso que o cristianismo assumisse uma atitude crítica uma vez que ela também se ocupara
com questões de ordem religiosa. Para os cristãos, a posse de uma verdade absoluta, garantida pela
revelação, proporcionaria um critério seguro de julgamento em face das especulações gregas,
caberia à especulação cristã a tarefa de desmascarar os erros da filosofia pagã (Gilson, 1988, p. 13).

Agostinho realizou com maestria a tarefa que desafiou a geração de pensadores cristãos da
sua época, ou seja, do século IV d. C, a construção de um edifício argumentativo capaz de conciliar
as verdades reveladas com as idéias filosóficas vigentes, tal esforço foi empreendido pelos
primeiros padres da Igreja, no entanto, os mesmos o fizeram de forma parcial e fragmentada. A
primeira grande síntese denominada de Filosofia Patrística e que teve como expoente maior Santo
Agostinho foi o resultado da maturidade histórica e intelectual dos seus mestres.

Apresentando quatro séculos de existência o cristianismo não era tão novo, já havia sofrido
várias transformações e se encontrava acomodado dentro das estruturas jurídicas e políticas do
Império Romano. As lutas externas e a era das perseguições havia cessado definitivamente, no
entanto, era preciso combater os inimigos internos presentes no campo das idéias, o arianismo e o
maniqueísmo se apresentavam então como doutrinas, cujas controvérsias teológicas perturbaram o
mundo cristão. A polêmica cristã contra tais heresias não passou despercebida nas Confissões, tanto
que está registrada no índice da obra em oito capítulos da sua primeira parte, na qual Agostinho
narra a sua trajetória intelectual intermediada por fatos e acontecimentos da sua vida pessoal.

Com uma existência afeita às letras, Agostinho narra nas Confissões que sua conversão se
deu nos moldes de uma experiência mística a partir da leitura epistolar de São Paulo:

620
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Assim falava e chorava oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que de súbito,
ouço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de menino, se de menina. Cantava
e repetia freqüente vezes: ŖToma e lê; toma e lêŗ. Imediatamente mudando de
semblante, comecei com a máxima atenção a considerar se as crianças tinham ou não o
costume de trautear essa canção em algum dos jogos. Vendo que em parte nenhuma a
tinha ouvido, reprimi o ímpeto das lagrimas, e levantei-me, persuadindo-me de que só
Deus me mandava uma coisa: abrir o códice, e ler o primeiro capítulo que encontrasse.
Tinha ouvido que Antão, assistindo, por acaso, uma leitura do Evangelho, fora por ela
advertido, como se essa passagem que se lia lhe fosse dirigida pessoalmente: ŖVai,
vende tudo o que possuis, dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem e
segue-Meŗ. Com este oráculo se converteu a Vñs. (...) Não quis ler mais, nem era
necessário. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de
luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram (Agostinho, 1980, p.145).

Como conseqüência desta experiência íntima Deus aparecerá então como a figura central do
sistema filosófico agostiniano. No Livro III das Confissões, intitulado A caminho de Deus, o
filósofo discute o problema de Deus que é um dos mais sensíveis na própria existência humana, na
medida em que toca o seu sentido e sua autonomia. Na história da filosofia ocidental, desde a
Grécia Antiga, o questionamento sobre o tema e a construção de provas sobre a sua existência
passaram a ser uma tarefa árdua da razão e que ocupou espaço nas reflexões de inúmeros
pensadores. Nosso autor confessa ainda no Livro III que inspirado pelas proposições do
neoplatonismo se dedica ao exercício da imaginação sobre Deus e o concebe como algo superior
aos sentidos:

Ora, sendo eu homem Ŕ e que homem! -, esforçava-me por Vos imaginar o grande, o
único verdadeiro Deus. Com efeito, acreditava, com todas as fibras do coração, que
éreis incorruptível, inviolável e imutável. Porém, apesar de não saber donde e o modo
como me vinha esta certeza, via perfeitamente e estava certo de que aquilo que se pode
corromper é inferior ao incorruptível, e o que não se pode deteriorar, sem hesitação o
antepunha ao deteriorável, e o imutável parecia-me melhor do que aquilo que é
suscetível de mudança (Agostinho, 1980, p. 108).

O tom lírico do texto revela, pois, uma atmosfera de profunda penetração psicológica que é
trabalhada, sobretudo, na segunda parte da obra, nos Livros X e XI. No primeiro, Agostinho revela
que o encontro do homem com Deus é uma experiência íntima e complexa, pois abarca duas
dimensões: uma mística e a outra intelectual. Deus que recorrentemente é identificado na obra com
o conceito de Beatitude foi encontrado no interior do homem e tal descoberta merece ser
compartilhada com seus leitores e concidadãos, uma vez que todos estão na condição transitória de
peregrinos no caminho da vida, este é o Ŗfruto das Confissõesŗ :

O fruto das minhas Confissões é ver, não o que fui, mas o que sou. Confesso-Vos isto,
com íntima exultação e temor, com secreta tristeza e esperança, não só diante de Vós,
mas também diante de todos os que crêem em Vós; dos que participam da mesma
alegria e, como eu, estão sujeitos à morte; dos que são meus concidadãos e peregrinam
neste mundo; e enfim diante dos que me precedem, me seguem ou me acompanham no
caminho da vida. Estes são os vossos servos, os meus irmãos, aos quais constituístes

621
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

vossos filhos e meus senhores. A eles me mandastes servir, se quisesse viver de Vós e
convosco (Agostinho, 1980: p.173).

Ainda no Livro X Agostinho ao falar sobre Deus e a motivação humana em encontrá-lo


escreve um ensaio sobre a Memória que se constitui como um dos mais belos textos escritos sobre o
assunto na História da Filosofia Ocidental, nele fala também sobre a lembrança e a reminiscência
enquanto faculdades intelectuais e discorre ainda sobre os sentidos como formas de apreensão da
realidade. Em outro diálogo escrito logo após a conversão denominado Contra os Acadêmicos, o
autor busca reabilitar os sentidos como fonte de verdade; os argumentos são construídos no intuito
de refutar o ceticismo da Nova Academia platônica. O erro, segundo Agostinho estaria no fato de
querer ver nos próprios sentidos a expressão de uma verdade externa ao sujeito.

No aprofundamento da questão sobre os fundamentos do conhecimento, o bispo africano


antecipa a reflexão cartesiana formulada doze séculos depois, acerca da natureza humana: ŖSe eu
me engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado.ŗ O homem seria um ser pensante
e seu pensamento não se confundiria com a materialidade do corpo (Peçanha, 1980, p. XV). É na
memória humana que se alojam as impressões produzidas pelas sensações e que o homem pode
reter e dispor conforme sua vontade. Agostinho alegorizou a memória enquanto faculdade cognitiva
como se a mesma estivesse abrigada em um palácio de vastíssimas proporções, cujos espaços
seriam ocupados pelas imagens e sensações.

O capítulo 8 do Livro X das Confissões constitui-se poeticamente como um dos mais belos
textos escritos em tributo à Memória, às sensações e ao imaginário humano, nele observa-se a
descrição poética das imagens oriundas da percepção que ora se manifestam e ora se escondem de
acordo com a vontade do homem. De acordo com o tradutor, esta série de capítulos dedicada ao
estudo da memória tem imenso valor para a psicologia experimental. Nesta descrição magistral
Agostinho distingue dois tipos de memória, aquela que é faculdade das imagens corpóreas e, na sua
constituição mais perfeita, faculdade puramente espiritual (Santos; Pina, 1980, p. 176).

Chego aos campos e vastos palácios da memória onde estão tesouros de inumeráveis
imagens trazidas por percepções de toda espécie. Aí está também escondido tudo o que
pensamos, quer aumentando quer diminuindo ou até variando de qualquer modo os
objetos que os sentidos atingiram. (...) Quando lá entro mando comparecer diante de
mim todas as imagens que quero. Umas apresentam-se imediatamente, outras me fazem
esperar por mais tempo, até serem extraídas, por assim dizer, de certos receptáculos
ainda mais recônditos, Outras irrompem aos turbilhões, e enquanto se pede e se procura
outras saltam para o meio, como que a dizerem: ŖNão seremos nñs?ŗ Eu, então com a
mão do espírito, afasto-as do rosto da memória, até que se desanuvie o que quero e do
seu esconderijo a imagem apareça à vista (Agostinho, 1908, p. 176-177).

É precisamente sobre este assunto, entre tantos outros, que compõe a vasta lista temática
dentro da obra, que Agostinho revela como transformou a massa de estudos recebida nos anos em

622
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

que estudou a Arte Retórica a fim de abraçar o magistério ou a vida pública conforme desejavam
seus pais. Os trabalhos sobre a arte da memória remontam desde os primórdios da Antiguidade
Grega. Tal como foi concebida, a arte da memória, é, antes de tudo, espacial e imagética. Utilizada
para armazenar grandes quantidades de informação em sociedades de tradição oral, foi
desenvolvida tanto no Ocidente como no Oriente, mas tem sua fonte comum na antiguidade, cujo
precursor teria sido o poeta grego Simônides de Ceos (556-467 a. C.) (Werneck, 2002, p. 135).

Poeta lírico, Simônides era conhecido pela beleza das suas imagens e segundo Plutarco,
teria sido o primeiro a comparar os métodos da poesia e da pintura, sintetizados mais
tarde por Horácio. As principais fontes de estudo deste saber se encontram na literatura
latina, na obra de Cícero, Do Orador, para o qual a memória constitui uma das cinco
partes da retórica. O método tradicional parte de uma primeira imagem Ŕ geralmente
ligada a uma construção arquitetônica imaginária Ŕ suficientemente forte para ser
acionada quando for necessário; para que, tão logo seja acionada, seja capturada pela
mente. Segundo Quintiliano, embora as construções arquitetônicas constituam a forma
mais usual dessa arte mnemônica- que não por acaso, muitas vezes recebeu o nome de
ŖPalácio da Memñriaŗ Ŕ outras imagens podem ser empregadas: uma longa viagem,
uma cidade, até mesmo pinturas. Por maior que seja o número de coisas a serem
lembradas, o método não conduz a enganos, pois cada imagem une a anterior à
posterior, e elas permanecem ligadas entre si, como as vozes de um coro (Werneck,
2002, p. 136).

Concluímos então que Agostinho conjuga, nesta série de capítulos dedicados à descrição da
memória, seu talento de orador com o esforço em responder a um problema filosófico fundamental,
que é a questão do conhecimento, na medida em que pontua como funciona a dinâmica da memória
humana aliada às sensações e ao trabalho de elaboração e reelaboração destas imagens na
construção do conhecimento.

Em relação à sua formação clássica na arte da oratória, fica claro que a projeção alcançada
pelo filósofo, se deve em parte, pelo cultivo das Letras. Cícero, um de seus mestres, declara no
tratado Sobre a Invenção, que teoriza sobre esta arte, que sem a eloqüência, pouco adianta a cultura.
É mesmo a arte da persuasão que possibilita à humanidade o avanço da civilização. O homem
distingue-se do animal pelo falar. A capacidade de se exprimir é a medida da sua humanitas.
(Pereira, 1990, p. 133). Em outro diálogo o Do Orador, Cícero trata da formação do orador e cita
além de algumas noções fundamentais a importância do papel da eloqüência e a preparação do
cultor desta arte de tão elevada função social. Aqui observamos que Cícero foi de fato importante,
na formação intelectual de Agostinho, tamanha foi a influência exercida a partir da leitura do
Hortênsio (diálogo perdido) que o filósofo de Hipona despertou para o gosto da leitura filosófica
como já fora observado anteriormente, deste modo constatamos como o autor transitou do universo
literário para a filosofia.

Do ponto de vista do conteúdo filosófico o Livro X apresenta as idéias agostinianas em fase


de amadurecimento pleno uma vez que ao discorrer sobre o Encontro de Deus, que é o título do
Livro, relaciona questões pontuais sobre a metafísica, a ética, o conhecimento e a antropologia,
623
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

questões estas recorrentes nos grandes sistemas filosóficos. Ao falar sobre o funcionamento da
memória e sobre a descoberta de Deus no recôndito mais íntimo da sua alma, Agostinho prepara o
leitor para a leitura do Livro XI que também merece ser registrado como tratado de rara beleza
literária e filosófica, sobretudo, quando discorre sobre o tempo e a obra da criação.

O cristianismo refutou a noção clássica de tempo como ciclo eterno, cujo padrão visível é a
revolução cíclica dos corpos celestes. Agostinho argumenta que o mundo em si evidencia desde já a
marca da criação. Toda a grandeza, ordem o beleza do universo nada são e não se pode dizer sequer
que existam comparadas com a grandeza, sabedoria e beleza invisíveis do Deus eterno que criou do
nada o céu e a terra, tal e a afirmação da posição cristã da criação a partir do nada (Lowith, 1991, p.
163).

Existem, pois, o céu e a terra. Em voz alta dizem-nos que foram criados, porque estão
sujeitos a mudanças e vicissitudes. Ainda mesmo o que não foi criado e, todavia existe
nada tem em si que antes não existisse. Portanto, sofreu mudança e passou por
vicissitudes. Proclamem todas as coisas que não se fizeram a si prñprias: ŖExistimos
porque fomos criados, portanto, não existíamos antes de existir, para que nos
pudéssemos criarŗ. A mesma evidência é a voz co que o céu e a terra nos falam. Vñs,
Senhor, os criastes, Porque sois belo, eles são belos; porque sois bom, eles são bons;
porque existis, eles existem (Agostinho, 1980, p. 212).

Simultaneamente com o mundo foi criado o tempo, pois como argumenta o filósofo é
impossível imaginar um tempo anterior à criação de algo que se move e muda. O conceito de Santo
Agostinho do tempo relacionado com o movimento e a mudança é uma descoberta grega e se
encontra exposta na Física aristotélica. A novidade cristã na compreensão do tempo tem lugar com
o questionamento de Santo Agostinho de Ŗondeŗ estaria o tempo originalmente. Sua resposta é na
distensão invisível da mente (a sua atenção, indicando a presença; a sua lembrança, indicando o
passado; a sua expectativa, indicando o futuro), mas não fora do universo, isto é, nos movimentos
dos corpos celestes, que são o padrão visível do conceito clássico de movimento e tempo.

O filósofo cristão pretende distinguir o tempo astronômico do tempo metafísico e do tempo


psicológico. Este último é a impressão do antes e do depois que as coisas gravam no espírito. É o
sentimento de presença das imagens que se sucedem, sucederam ou hão de se suceder, referidas a
uma anterioridade. O problema crucial para Agostinho passa a ser o modo como o homem apreende
o tempo em sua mente, de tal modo que passa a ser definido como um contínuo e não como
sucessão de instantes separados. A dificuldade em expressar conceitualmente a questão é transcrita
no capítulo 14, do Livro XI:

(...) Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá
apreender, mesmo só com o pensamento, para depois traduzir por palavras o seu
conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o
tempo? Quando dele falamos compreendemos o que dizemos. Compreendemos também
624
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se
ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não
sei (Agostinho, 1980, p. 218).

Santo Agostinho não tenta refutar racionalmente a teoria grega do retorno cíclico e da
eternidade do mundo. Seu argumento final contra o conceito clássico de tempo é, por conseguinte,
de ordem moral: a esperança e a fé cristãs estão relacionadas a um futuro e não pode existir um
futuro real se tempos passados e futuros forem fases iguais num retorno cíclico sem princípio nem
fim. A fé cristã promete efetivamente a salvação e a eterna bem-aventurança àqueles que amam a
Deus, enquanto a doutrina pagã de ciclos fúteis paralisa a esperança e o próprio amor. Se tudo
viesse a acontecer sempre de novo com intervalos fixos, de nada serviria a esperança cristã numa
nova vida (Lowith, 1991, p. 164).

O fato é que a esperança depositada no futuro por meio da fé trouxe conseqüências que
marcaram a concepção ocidental da história, todas as tentativas modernas de delinear a história
como um progresso significativo, apesar de indefinido, em direção a uma realização dependem
deste pensamento teológico, que foi aprofundado magistralmente em outra obra de Santo
Agostinho, a Cidade de Deus: contra os pagãos, na qual se assiste a primeira tentativa de se pensar
uma síntese da história universal ao lado da reflexão de interesse sobre temas políticos e sociais, tais
como a noção de cidade, povo, guerra e paz.

Nossa intenção aqui, além de prestar uma homenagem à filosofia e à literatura como formas
de cultivo do espírito foi a de apresentar o estilo do autor e o tratamento dado para algumas
questões levantadas por Santo Agostinho ao longo da obra Confissões: Deus, o Homem, que ora se
mostra como ele mesmo, ora é a humanidade, o Mundo como obra da Criação divina, o Tempo, a
Memória. A verdade da obra estaria contida em todas estas temáticas e sua força no modo como
elas foram ditas.

Agostinho foi polifônico quando, na arquitetura da obra, pensou em confessar-se a Deus, a si


mesmo e aos homens. Ao falar sobre si e sobre o outro falou também sobre Deus enquanto
mediador e parâmetro das relações humanas. O caráter literário da obra reside na forma como ela é
lida e interpretada, conforme a intencionalidade do leitor. Ela pode ser decifrada com o recurso de
várias ciências, a história, psicanálise, antropologia, como também pode ser pura fruição, poesia aos
ouvidos dos crentes e daqueles que compartilham a mesma fé e não sabem como dizê-la. A
literatura enquanto arte e a filosofia enquanto reflexão continuam construindo o mundo do possível
na medida em que utilizam a linguagem para conferir existência plena ao que antes era inominado.

Referências bibliográficas

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo:
Abril Cultural, 1980.
625
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

D‟ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática,
1999.

GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Tradução Cristianne Ayoub. São
Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2006.

LOWITH, Karl. O sentido da história. Tradução Maria Georgina Segurado. Lisboa: Edições 70,
1991.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. Volume II, Cultura
Romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.

PESSANHA, José Américo. Santo Agostinho – Vida e Obra. In: AGOSTINHO, Santo. Confissões.
Tradução J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

SAMUEL, Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petropólis, R.J: Vozes, 2002.

WERNECK, Mariza. Artes do Esquecimento. In: Mito e Experiência: operadores estéticos do


pensamento de Claude Lévi-Strauss. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, 2002.

626
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

INFERNO VERDE AMAZÔNICO DE ALBERTO RANGEL

Mateus Epifânio Marques1 - CEST Ŕ UEA


Cláudia Regina Ferreira Santos2 - CEST Ŕ UEA

Resumo: Este trabalho analisa a partir da perspectiva histórica a obra literária Inferno Verde:
cenas e cenários do Amazonas, do cronista, contista e historiador pernambucano Alberto Rangel. O
livro Inferno Verde publicado em 1909 com prefácio de Euclides da Cunha e ambientado no final
do século XIX, é uma obra composta por onze contos, que em muitos momentos parecem cenas de
um grande espetáculo teatral; os cenários são os rios, os lagos, os seringueiros e alguns bairros de
Manaus; os personagens são os homens, as mulheres nascidos ou naturalizados e a floresta. Assim,
procurou-se verificar nesta obra como a Amazônia foi representada, especialmente o Amazonas,
observando o espaço social, econômico e cultural de uma época tão rica e próspera, bem como os
sujeitos representados na literatura. E desta maneira, compreender a importantíssima relação entre a
história e a literatura na obra de Alberto Rangel.

Palavras-chave: Literatura e História; Inferno Verde; Representações amazônicas.

1. Introdução

Se hoje a Amazônia é alvo de olhares cobiçosos; e temática constate em conferências sobre


o meio ambiente e mudanças climáticas pelo mundo afora; suas terras são eixos de disputas no
judiciário brasileiro entre índios, posseiros, grileiros, pecuaristas entre outros. Ora nas últimas
décadas do século XIX e início do século XX, a Amazônia, foi alvo de uma corrida imigratória de
milhares de pessoas vindas das mais variadas regiões brasileira e de outros países; impulsionados
pela extração da borracha, com incentivos do governo brasileiro.
Nas primeiras décadas do século XX, a maioria das narrativas de ficção que possuem a
Amazônia, como cenário tem priorizado o espaço em vez de destacar o homem que nela habita as
transformações sociais, econômicas, culturais e educacionais do povo amazônico; narrativas que
revelam a exuberância do meio intenso sobre as personagens. Mas no Amazonas, desenvolveu-se
uma literatura que aborda o ciclo econômico da borracha, entre as várias obras destaque-se, O
Paroara (1899), de Rodolfo Teófilo, marco da temática extrativista na literatura amazonense. A
Selva (1930), do português Ferreira de Castro, que na voz de Márcio Souza, em A Expressão
Amazonense (2003), é como o único romance que desfez o círculo de ostentação das letras
amazonenses, baseado numa retórica vazia e sem crítica.
Traz-se ao destaque para análise e compreensão dos limites entre a ficção e história, a obra
Inferno Verde (1908), do pernambucano Alberto Rangel, um narrador Ŕ viajante transforma a
região em personagem envolta de mistérios e caprichos, de maneira que ela apropria o discurso para
justificar a violência a que os seres que são arrastados sob seu domínio.
Analisando Inferno Verde, cujo subtítulo consta de Ŗcenas e cenários do Amazonasŗ ,
busca-se compreender a luz da ficção, as representações históricas na referida obra. Para historicizar

1
Bolsista do PAIC Ŕ FAPEAM. Universidade do Estado do Amazonas Ŕ Centro de Estudos Superiores de Tefé (CEST/UEA).
2
Professora Mestre/Orientadora - Universidade do Estado do Amazonas Ŕ Centro de Estudos Superiores de Tefé (CEST/UEA).
627
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

a obra literária basea-se aqui as palavras de Chalhoub e Pereira, em A História Contada (1998, p.
8), que revela-nos: ŖAo historiador resta descobrir e detalhar com igual afinco tanto as condições de
produção de uma página em livro de atas, ou de um depoimento em processo criminal, quanto às de
um conto, crônica ou outra peça literáriaŗ . Tendo tantos documentos como fonte histñrica, a obra
literária não é apenas mais uma, mas é: Ŗtestemunho histñrico, seja ele qual for, deve-se sempre ter
em vista que os sujeitos a história como indeterminação, como incerteza, como necessidade
cotidiana de intervir para tornar real o devir que lhes interessaŗ (CHALHOUB e PEREIRA, 1998,
p.9).
Sob os aspectos de representações recorre-se também ao texto de Roger Chartier, O mundo
como representação (1989), refere-se:

Tentar superá-la exige a principio, considerar os esquemas geradores dos sistemas de


classificação e de percepção como verdadeiras Ŗinstituições sociaisŗ, incorporando sob a
forma de representações coletivas as divisões da organização social. (CHATIER, 1989, p.
1514).

Ainda no mundo das representações Chatier (1989, p. 1513) diz que: Ŗa leitura não é
somente uma operação abstrata de intelecção: é por em jogo o corpo, é inscrição num espaço,
relação consigo ou com o outroŗ . Então, a obra literária muito mais que entretimento é fonte
histñrica que para Chalhoub e Pereira (1998, p. 7): Ŗé preciso desnudar o rei, tomar a literatura sem
reverencia, sem reducionismos estéticos, dessacralizá-la, submetê-la ao interrogatório sistemático
que é uma obrigação do nosso ofícioŗ.
No mundo das representações, ao propor historicizar à obra Inferno Verde, primeiramente
porque é uma das mais significativas do ciclo econômico da borracha, no Amazonas; em segundo
momento, por ver nela as representações sociais, econômicas, culturais e políticas; terceiro
momento, como diz Nicolau Sevcenko (1999, p. 21) por nela se encontrar: Ŗa histñria que não
ocorreu, sobre os planos que não se concretizaramŗ.
É essa história que não ocorreu, ou melhor, que não está grafada nos livros históricos, que se
pretende desnudar, neste trabalho. Mas é preciso conhecer um pouco do autor, onde viveu? Que
outros livros escreveu? O que fez? Como o próprio Chalhoub e Pereira (1998, p. 8) aconselham: ŖE
aqui as primeiras perguntas do historiador social são: ŘDe literatura se está falando? Quais as suas
características? Como determinado autor ou Ŕ escolař Ŕ concebe a sua arte?
Então se passa a conhecer o autor; Alberto do Rego Rangel nasceu em Recife em 29 de maio
de 1871, e faleceu em Nova Friburgo (RJ) em 14 de dezembro de 1945. Morou no Amazonas no
final do século XIX, depois foi para o Rio de Janeiro onde em 1908 publica Inferno Verde: cenas e
cenários do Amazonas.
Caracterizado autor, se parte agora para entender a obra literária, em Inferno Verde, a região
amazônica, principalmente o baixo Amazonas, é apresentado em um romance de 11 capítulos que
podem ser lidos cada um em separado, como contos, quadros, atos ou cenas de uma peça, cenários
do Amazonas. Em todas as cenas, a floresta, o inferno verde, surge como uma personagem
complexa, que ao mesmo tempo em que afaga e abriga no seio o filho, agride aquele que a ataca.

628
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Entre os 11 contos ou capítulos, foram escolhidos três deles: ŖO Tapará; Um conceito de


Catolé e Inferno Verdeŗ , conto que dá origem ao nome do livro. A análise se dar, a partir do último
conto, compreendendo os aspectos naturais de uma selva grávida de perigos por todas as partes. Por
fim, nas palavras de Euclides da cunha que fez o prefácio da primeira edição de Inferno Verde:

Alberto Rangel é um assombrado diante daquelas cenas e cenários; e, num ímpeto


ensofregado de sinceridade, não quis reprimir os seus espantos, ou retificar, com a
mecânica frieza dos escreventes profissionais, a sua vertigem e as rebeldias da sua tristeza
exasperada. (CUNHA, 2008, p. 30 In: RANGEL, [1908] 2008).

2. Amazônia: cenas e cenários

A Amazônia tradicionalmente foi representada em narrativas, com grandiosidade do meio,


da sua paisagem encantadora, em que sempre foi privilegiado o espaço, em contraposição a outros
gêneros da ficção, que, por exemplo, valorizavam as personagens, que, quando bem explorados,
enriquecem a narrativa. Com o Inferno Verde, de Alberto Rangel, a Amazônia é a grande
personagem, a protagonista de um lugar onde o homem que busca dominá-la, é dominado e
absorvido, pela serva densa e grávida de perigos.
É no ventre dessa floresta que Souto, personagem desse conto, se joga no meio da virgem
mata, numa missão de demarcar as terras dos seringueiros; Souto embarca no porto de Manaus em
um Ŗgaiolaŗ , nome dado a um barco fluvial a vapor com varandas, com sacos, caixões, bois e
garrafões, a todo tipo de coisa e espécie de animal doméstico. Ele, recém Ŕ formado em engenharia,
embarca numa viagem para o alto do Juruá e, durante a viagem descobre o Amazonas, ao entrar em
igarapés constata que: Ŗas árvores das margens pareciam gigantescas; adquiriam altura em
perspectiva pela estreiteza da valeira que bordavamŗ. ( RANGEL, [1908] 2008, p. 146).
Ao adentrar o Juruá, Souto, via Ŕ se num lugar cercado de mistérios e de pragas, eram piuns,
carapanãs, mutucas, catuquis e moscas, que em determinados trechos pareciam até nuvens de
pragas. Tinha noites que o engenheiro não conseguia nem dormir. Ora eram os pequenos silvestres
que o incomodavam, ora era os fenômenos da natureza que o assustava numa região desconhecida
que consumia o homem até suas últimas forças.
Ora, se diria que a mata toda crepitava incendiada pelo sol escaldante e que tombavam,
estalando, os troncos portentosos; ora, rolamento dřavalanches, pizicatos embordões de violoncelos,
arcados em violetas e contrabaixos; ora, machadadas, guinchos, pipilos e cicios. Nesse concerto
distinguia-se o concurso feral das corujas. As gargalhadas despediam-as a Ŗmãe Ŕ da Ŕ lua a irutaí
sarcástica. Acompanhavam-na em mñdulos vários, os murucututus, Řrasga-mortalhasř, bacuraus,
ducucus e acuraus... A floresta sofria, a floresta riaŗ . ((RANGEL, [1908] 2008, p. 147).
Nas palavras de Euclides da Cunha, o Inferno Verde, é um lugar surpreendente, original e
extravagante; um lugar construído para despertar no homem a estranheza como se pode confirmar
com a referência abaixo:

629
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O Inferno Verde, a começar pelo título, devia ser o que é surpreendente, original,
extravagante, feito para despertar a estranheza, o desquerer, e o antagonismo instintivo da
crítica corrente, da crítica sem rebarbos, sem arestas rijas, lisa e acepilhada de ousadias a
traduzir, no conceito vulgar da arte, os efeitos superiores da cultura humana. (CUNHA,
2008, p. 23 In: RANGEL, [1908], 2008).

Talvez para quem estivesse na Amazônia apenas por passagem, como Euclides da Cunha,
não permitisse vislumbrar que por trás dos contos de Rangel, estivesse representada uma Amazônia
que fala história e saga de um povo, o caboclo, que é uma mistura de imigrante e índio; o lavrador
de uma terra, que além, de mistérios, têm vida que brota na nascente do rio, do igarapé ou da
semente de uma nova árvore.
Voltando a Souto, seus primeiros dias embrenhados na floresta são medidos pela alternância
entre o desânimo e revigoramento, ambos associados as suas impressões da natureza e pelo
julgamento que se faz dos homens que habitam esse meio. Ora é a caça que passa repentina, com
uma graça da Providência Divina e da natureza. Ora são os estalos, grunhidos e silvos da floresta
que o assombra. Ora era as doenças, o impaludismo que ele estava sujeito a contrair; em outros
momentos era à vista de uma arquitetura rústica que o chamava atenção nos seringais rio adentro.
Sob o desânimo, Souto, resistia em cair neste pensamento que só os fracos cediam.

...Souto resistia num combate formidável aos pensamentos de desânimo, que procuravam
invadi-lo na febre. Toda a noite ele viu, entretanto horrores, ora em fogo, ora em gelo, no
algor, o seu corpo parecia precipitar-se em abismos, ou achatar-se por desabamentos
formidáveis; o plácido igarapé corria ao fundo da terra, por uma helicóide, escortinada em
fila dupla de monstros, que vomitavam chamas... (RANGEL, [1908] 2008, p. 153).

Vista de longe a floresta transpõe a imagem para o imaginário que não demora a ocorrer,
passa Ŕ se a ter uma natureza idealizada, que é uma recorrente no livro. A floresta, em seu aspecto
físico vai infernizar Souto, pois tudo o encanta e o apavora. Se existe um inferno, este deve ser
moral, propiciado pela inoportuna presença humana, também existe o inferno natural, observado
pelas constantes nuvens de insetos de toda espécie, pelo escaldante clima e pelos obstáculos
naturais que se apresentam na trilha do infeliz Souto.
Esta é uma paisagem contínua na vida do homem amazônico, que o imigrante vê numa ótica
extravagante de um verdadeiro inferno. Sua visão a cada novo quilômetro rio acima se depara a
uma nova e surpreendente paisagem. O rio é outro personagem que leva os aventureiros da selva a
desafiá-lo, seja pela própria sobrevivência, seja pelos longos percursos de horas inóspitas, que
obriga o navegante a suportar. Mas que uma suave e encantadora beleza que nas palavras de Chico
Brabo: Ŗ... os rios são a veias da Terra...ŗ (RANGEL, [1908] 2008, p. 155-156).
Uma grande representação ao longo do conto é o transporte, sempre um navio a vapor, cujo
nome gaiola, pode parecer em um primeiro momento uma prisão, mas que na verdade, era um barco
com varandas, onde todas as classes sociais se misturam sem muitas distinções entre ricos e pobres;
visto que esse é o meio de transporte comum no início do século XX, na região; depois deste meio
de transporte, vinha em segundo lugar as ubás, canoas, que faziam as travessias de rios e de
igarapés, subindo nos lugares mais estreitos, levando o imigrante até as cabeceiras, o destemido
tipográfico. A população desse rincão brasileiro vive de lavrar a terra, como descreve o Narrador:
630
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ŖO seringueiro de semear, dir-se-ia a única população regional, essa, imóvel, pungitiva,


extravagante, paralisada, muda, em atitudes choreicas de uma dança de São Vito, entre os corutos
dos milhos e os ramos dos feijoaisŗ. ( RANGEL, [1908] 2008, p. 157-158).
Por fim, Souto é acometido do impaludismo sua batalha em dominar a floresta e seus
obstáculos parecem está chegando ao fim. Sua última e decisiva batalha é travada contra um roseiral
bravo em plena selva, efeito de seu delírio, devido uma febre alta, em que grita aqui é o inferno, não
um inferno teológico, ou apocalíptico, mas um inferno verde, cercado somente de águas e matas;
isto leva as suas últimas palavras antes de descer a uma simples cova, mais uma em meio a tantas
outras Řaqui jazř: Ŗ- Inferno!... Inferno... Verde!ŗ (RANGEL, [1908] 2008, p. 162). O Narrador
neste ápice do conto dá a protagonista ou antagonista desse lugar, a própria selva, o direito de
defende-se sobre as palavras de Souto:

Perdoo-te e compreendo o estigma que me lanças. Fui um paraíso. Para a raça íncola
nenhuma pátria melhor, mais farta e benfazeja. Por mim as tribos erravam no sublime
desabafo dos instintos de conservação, livres nas marmotas pelas baciais fluviais afora.
Ainda hoje, o caboclo, sobra viril e desvalida nos destroços da invasão, vive renunciado,
sua plaga abençoada, seu recanto pacífico, na herança feticha e venerativa dos povos
autóctones de onde proveio. (RANGEL, [1908] 2008, p. 162).

Se ao dá voz a floresta, defende-se, também ataca o homem, o invasor com as defesas que
lhe são apropriadas. E o narrador conclui refletindo o triste fim do engenheiro moribundo, dizendo
que a Amazônia poderia ter exclamado, antes que esse infeliz invasor descesse à cova:

Inferno é o Amazonas... Inferno verde do explorador moderno, vândalo, inquieto, com a


imagem amada das terras donde veio carinhosamente resguardada na alma ansiada de
paixão por dominar a terra virgem que barbaramente violenta. Eu resisto à violência dos
estrupadores... Mas enfim, o inferno verde, se é a Geena de torturas, é a mansão de uma
esperança: Sou a terra prometida às raças superiores, tonificadoras, vigorosas, dotadas de
firmeza, inteligência e providas de dinheiro. (...) Oh! Infeliz Invasor! Fadejas desenraizado,
descontente, praguejando, mas fertilizas... Por ti sou denegrida, que importa! Impassível,
porem aguardo as gerações que hão de seguir contando, o carro de meu triunfo! (RANGEL,
[1908] 2008, p. 163-164)

3. Um conceito do Catolé: o imigrante nordestino amor e perdição numa terra sem coração

Um conceito de Catolé segundo conto analisado dos três deste trabalho, é também o segundo
na saga do compêndio Inferno Verde. Aproveita-se este capítulo para buscar as representações do
imigrante que fez desta terra uma nova casa e meio as diversidades que nela, Amazônia, de beleza e
fúria se apresentava. É através da história de João Catolé, que vai ser contada a vida dos brabos que
aqui chegavam com o sonho de desbravar a virgem mata.
Se a Amazônia resistia à violência dos estrupadores, como, pode-se observar na
personificação da floresta no último conto. É através dos nativos que a mesma mostra toda sua
formosura e beleza, em que reserva para as raças superiores, ou seja, aqueles que não apenas
explora, mas a cuida com amor maternal. Tal pensamento confirmado por Catolé: Ŗ- Ora a terra! A
terra é boa, o homem sñ é que não prestaŗ . (RANGEL, [1908] 2008, p. 58). Mas desmistificada por
Krüger, ao escrever Grande Amazônia: veredas: ŖClaro que tal opinião é a de um personagem, que
631
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

poderia não estar em consonância com a do Narrador. Mas não é o que ocorreŗ . (KRUGER, 2008,
P. 12 In: RANGEL, [1908] 2008,).
Caracterizando o imigrante que por essas terras se aventura no início do século XX, quase
sempre, era nordestino, especialmente do Ceará, fugido do flagelo da seca e impulsionado pelos
incentivos do governo amazonense e do governo federal; Chegavam a Manaus a procura de
melhorar sua vida. E compreender ou caracterizar esse homem é revisitar os sonhos, os anseios e as
angústias do povo brasileiro, desta parte sul do continente brazuca; povo recém-republicano que
começa a galgar os primeiros passos numa das maiores ideologias da humanidade Ŕ a democracia Ŕ
como lembra Krüger:

Compreendamos, porém, o homem do início do século e a consciência que lhe era possível.
Estava Ŕ se, então, a poucos anos da proclamação da República e o Positivismo era a
ideologia dominante no Brasil. O sonho da utopia comtiana contaminava as mentes mais
avançadas e despertava sonhos de progresso em nome de uma humanidade superior. Exigir
mais do que as cartas dispostas pela época não nos é licito. (KRUGER, 2008, p. 12 In:
RANGEL, [1908] 2008).

São os sonhos de progresso que move o homem a emigrar de sua terra natal, em busca de
ideologias que a história e a filosofia encurtem na personalidade humana. Também são esses sonhos
que mobiliza João Catolé a se desprender de seu Ceará e, enfrentar uma longa jornada até Manaus.
Ao desembarcar na capital do Inferno Verde, ele decide não trabalhar nos seringais, por trazer junto
de si, uma filha pequena, única lembrança de sua mulher falecida, que não suportou as misérias da
seca e, morreu ainda no sertão cearense; também por ter ouvido boatos da brutalidade que é a vida
nos seringais, especialmente com uma presença feminina, coisa rara pelas brenhas dos rios
amazônicos, isso tudo o assusta. Na voz do narrador, João resiste à tentação da seringa e tornar-se
mais um brabo jogado no meio dessa mística selva.

Resistia, porém, o cearense singularmente à tentação da seringa. O principal embaraço à


fascinação foi pensar na filhinha. Atirar-se com aquela menina lá para cima!... Ganhava-se,
na verdade, mas de parelha diziam tanta coisa... Vendiam-se mulheres, moças de famílias
eram arrebatadas, não se sabia como, e a sua Malvina daí a pouco estaria mulher... Não! Ele
ficaria mesmo em Manaus, para os lados de Flores, onde diziam que havia uma Colônia do
Governo. (RANGEL, [1908] 2008, p. 50).

Catolé recebe do governo amazonense um lote de terra para viver do que esta, porventura
viesse a produzir. Como ele, centenas de imigrantes foram também contemplados com alguns
hectares de terra, que na maior parte do ano ficam submersas e, em contrapartida os que tinham
influência no governo recebiam as melhores terras, para o plantio e a criação de animais
domésticos. Quando o homem acredita que sua vida está tranqüila, com terra para plantar e criar,
com sua família estruturada, sempre um infortúnio abala sua pacata vidinha; assim, acontece com o
pobre Catolé, a filha única, sua companheira de trabalho, com quem dividia suas dores e conquistas,
é raptada pelo conterrâneo Pedro. Os amantes dias depois são encontrados mortos num suposto
pacto de amor, que somente a floresta, é guardadora de misterioso fato: ŖO recôncavo da floresta
ficou guardando, cofre de malaquita discreta e impenitente, o segredo daquela cena, o desvario
dessas criaturas, o romance do crime dos corpos apodrentadosŗ . (RANGEL, [1908] 2008, p. 50).
632
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Para justificar tal tragédia, amigos de Catolé, tentam encontrar um culpa e, num gesto de
solidariedade, acusam a terra de ser ruim, e a praguejam. E relembram seu Ceará, como terra de
fartura, onde se tivesse chuvas constantes, como na Amazônia, os legumes não faltariam, o gado
não morria de sede e o povo não era expulso pela seca. Catolé, mesmo cravado pela dor da perca de
sua amada filha, defende a terra onde mora, que ela é boa para se plantar e se viver, mas em sua
visão o homem que é mau.
Mas não é o caboclo que seja mau, são alguns imigrantes que chegam corrompidos, com o
espírito de lucro rápido e fácil, que nem sempre quer fincar raízes na terra, apenas sugar da terra o
que a mesma pode lhe dar; depois abandoná-la; perfil do explorador moderno que faz da Amazônia,
o mesmo que muitos europeus fizeram com o Brasil em seu processo de colonização. Levaram o
pau-brasil, o ouro, e as pedras preciosas. O que no deixaram? O massacre de milhões de índios; a
escravidão de milhares de negros, vindos da África e, a semente da corrupção.
Portanto, o Catolé é o imigrante, que mesmo diante da tragédia supera a tristeza e a mágoa, e
vê a floresta lugar onde a ternura leva ao desabrochar de sentimentos de justiça. E que se a mesma
não acontece, de forma igualitária para todos, sem distinção de pátria, cor, credo, sexo ou condição
social; ao menos a História, fica responsável para dá ao mundo, um sinal de que aqui entre galhos e
rios a justiça pode aparecer como um iluminado nascer do Sol. São palavras do autor que se observa
a Histñria como justiceira dos esquecidos da selva: ŖA Histñria, que fará o processo do Amazonas,
como, o do resto do mundo, pode reter em epigrafe esse conceito sintético do infortunado Catoléŗ .
(RANGEL, [1908] 2008, p. 58).

4. O Tapará: cheia e vazante no sertão amazonense

Os dois contos analisados anteriormente partem da perspectiva de uma olhar misterioso para
a terra e a população que nela habita. Se em Inferno Verde se observou um lugar sobrecarregado de
mistérios, contos e lendas, em que a mesma grávida de perigos consome o invasor que insiste em
desposá-la. Em um Conceito de Catolé, se ouve as angústias e os sonhos do imigrante, que fugia do
flagelo as seca, na região nordeste, do continente brasileiro; que quase sempre ao chegar à
Amazônia, são enviados para os seringais e tornarem-se seringueiros, a quem Euclides da Cunha
comparou ao condenado Sísifo, que Souza cita em A Expressão Amazonense (2003).

Foi Euclides da Cunha quem primeiro comparou o seringueiro ao condenado Sísifo, o


símbolo do absurdo instaurado par Camus. ŖNesta empresa de Sísifo Ŕ escreve Euclides da
Cunha Ŕ o rolar em vez de um bloco o seu próprio corpo Ŕ partido, chegando e partindo Ŕ
nas voltas constritoras de um círculo demoníaco, no seu eterno giro encarcerado numa
prisão sem muros, agravada por um ofício rudimentar que ele aprende em uma hora para
exercê-lo toda a vida, automaticamente, por simples movimentos reflexos Ŕ se não o enrija
uma sólida estrutura moral, vão Ŕ se Ŕ lhe com a inteligência atrofiada, todas as esperanças
e as ilusões ingênuas, e a tonificante alacridade que o arrebentaram aquele lance, à ventura
em busca de fortunaŗ . (SOUZA, 2003, p. 138).

633
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

No Tapará primeiro conto de Inferno Verde se encontra uma imagem da Amazônia como a
mãe fértil e generosa, que o regime das cheias das cheias, é quem determina a fertilidade do lugar.
Em O Tapará, o narrador registra a condição do homem durante a enchente, o qual fica
emparedado, o caboclo, nascido e criado ou apenas adaptado nesse sertão, conhece de certo modo
que sabe viver em perfeita harmonia com ele e com a floresta, tanto no período da enchente como
da vazante. O Tapará é um lago que seco é um verdadeiro deserto, que resta no seu fundo apenas
mercúrio; quando na cheia extravasa beleza e aves de todas as espécies; como se observa no trecho
abaixo:

A baixada é o lago, o lago da Frente, declarando, pela denominação, a existência do Tapará


mais ao fundo. A placa dřaço rutilante significa o resto de água, que não pode escapar.
Forçada pelo desnível, a ficar para bebedouro e refúgio de garças, ananaís, carões, arapapás
e patos-bravos. Água prisioneira. Na raiva dessa situação parece filtrar um olhar de ódio,
olhar de basilisco, a esclerótica da lagoa. Vinga-se o poço, gerando uma baixa vida de algas
e micróbios venenosos. (RANGEL, [1908] 2008, p. 38).

É essa diversidade do regime de cheias e vazantes na Amazônia, que alimenta o sonho dos
aventureiros de conquistá-la e superar todo e qualquer obstáculo. É na época da vazante, que o
caboclo que mora às margens de um rio, pode ver-se em situação adversa, perdendo sua
propriedade em poucos segundos para o fenômeno de barrancos caídos, fato que jamais intimida o
caboclo, pois logo a seguir, recomeça a construir casa, plantação, revelando uma íntima relação
entre o homem e a natureza.
Nas enchentes tudo é mais fácil, a floresta afogada se torna navegável; tudo pode ser
acessível, mas por água é claro. A canoa do caboclo é o transatlântico do seringueiro e do baixo
Amazonas. Mas também, é durante as cheias que o homem fica ilhado, ou encurralado, como
passagem a seguir:

A floresta, afogada na cheia, é mais própria ao nativo. No dilúvio Amazônico, o homem


trocaria bem os seus pulmões por guelras. Tudo lhe é acessível quando nřágua. A solidão
do centro, quando a rede gangliforme dos lagos se liga à rede arterial das correntes, não tem
segredos. O caboclo vara, some-se numa segurança de caminheiro por vias topografadas, e
vai até onde o tino tranqüilo lhe indica o fácil pescado. Assim, só para ele não há mistério
nesse sertão. (RANGEL, [1908] 2008, p. 3).

Alberto Rangel vê no lago Tapará a última parte da criação divina no início do Gênese, que
depois Cunha ratifica: ŖRealmente, a Amazônia é a última página, ainda a escrever-se do Gênese.
(CUNHA, 2008, p. 25 In: RANGEL, [1908] 2008). Realmente, aqui é uma das páginas da criação
divina, ainda a perpetuar-se, dentro da visão genesíaca. E o lago é um recanto de toda a criação.
A vazante mostra a face petrificada do lago e da região Amazônica. A cada dia que o liquido
diminui horror que as águas das enchentes causam na parte submersa. Mas também, aparece todo
um campo ictiológico, para os amantes das ciências biológicas. O lago aparece apodrecido e a
população espalha-se pelas margens dos rios e igarapés.

Todo o horror desse lago então aparece. Não há encarar mais para o doirado da luz, nem
para o verde-cré dos vegetais que o emolduram; isso não distrai. O lago parece abafar a
alegria de toda a criação. Pastoso, pútrido, mefítico, é capaz de dar à consciência do
observador um reviramento de loucura. O acreditar que alguém ai viva e densa podridão
634
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

guarde esperanças risonhas de fortuna e conforto, é disparar a razão na vertigem da insânia.


(RANGEL, [1908] 2008, p. 41).

Essa descrição de Rangel sobre o lago estende-se a toda planície Amazônica que durante
longos meses fica embaixo das águas de seu doce-mar. E quando suas águas abaixam fica um misto
de podridão e vida; morte e vida no sertão Amazônico. No verão, todas as comunidades ribeirinhas
vivem o apogeu da fartura, tudo se torna fácil; peixes de toda espécie sobem o rio; o lago dá tanto
peixe que é preciso salgá-lo para os tempos de solidão. A caça corre solta por entre as brenhas das
matas, que até pouco tempo, encontravam-se navegáveis. Mas quando se anuncia uma nova
enchente, os homens se tornam prisioneiros do lago, mas já contavam com isso e, nem os
desânimos, ou os desesperos os abatem, pois este é um ciclo natural da vida nesta região.
Por fim, O Tapará, o baixo Amazonas, os rios amazônicos são abrigos de milhares de
caboclos, que lutam sem ter descanso, para sobreviverem às armadilhas da selva e de seu regime de
cheias e vazantes. A luta do caboclo amazônico é digna de uma tragédia grega, como a de Orestes,
como bem se referiu Rangel. Pois o infeliz que aqui habita, vive um eterno recomeçar, a cada novo
período de chuvas ou estiagem, porque tudo que planta ou cria pode ser aniquilada. Mas não é um
aniquilamento que se conhece; aqui nada se destrói tudo pode ser transformado, nem tudo que
parece é real, vida transborda por todas às margens dos rios, dos lagos e dos igarapés da selva das
Amazonas. O aniquilamento que Rangel se refere é a fundição de uma só raça, quem aqui chega o
brasileiro étnico, que ao ingressar na Amazônia deixa para trás sua pátria ou etnia e, torna-se a
mistura de tantos povos, em um único povo, o brasileiro, afirma Rangel:

Esse aniquilamento, todavia, é forma de exprimir. Nada se destrói... E no sangue, que há de


lavar, um dia, as veias do brasileiro étnico normal, o sangue do pária tapuio terá o seu
coeficiente molecular de mistura ao sangue de tantos povos, orgamassado num só corpo,
cozido em único cadinho, fundido num só molde. Cadinho, molde, corpo: aparelho e
resíduo de transformação consumada, onde com o mameluco, o carafuz e o mulato e esse
indo-europeu, que preponderar na imigração, ter-se-á tornado o brasileiro tipo definitivo de
equilíbrio etnológico. Deixará de ser, afinal, o que tem sido: um desfalecido meio para o
transito transfusivo de raças... (RANGEL, [1908] 2008, p. 45-46).

Fecha-se aqui o ciclo das cheias ou das vazantes, que renovará a cada ano, perpetuando
pelos séculos, até que o homem permita sua renovação, pois sempre é bom lembrar: A natureza é
perfeita, a terra é boa, ruim são alguns corrompidos, que nasceram com o gene da corrupção e, neste
lugar inóspito que é a Amazônia, muitos são os herdeiros da corrupção.

Conclusão

Conheceu-se aqui, uma viagem, pelas belas paisagens, quadros e cenas de um lugar com
pitorescas criaturas, de atitudes de exploração e de solidariedade. Em cada canto se forma uma cena
do grande painel da misteriosa região, que já não existe mais, a não ser em sonhos mirabolantes de
algum poeta ou romancista perdido no tempo. A Amazônia do século XXI, já foi um dia O
INFERNO VERDE. Hoje é inferno mais tão verde, é inferno das florestas que ardem em chamas,
dos rios assoreados e do tráfico silvestre de animais.
635
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Rangel supera qualquer impressão artística ou mesmo qualquer óleo sobre tela que tente
retratar a Amazônia como ele fez. Ele é a grande voz, pairada, comovida e vingadora, como bem
disse Cunha, sobre o inferno esverdeado dos seringais, das matas exuberantes e traiçoeiras que
impinotizam e cobrem de cores ilusórias, a esperança dos infelizes invasores. O ser humano é
apenas mais uma peça do genial Alberto Rangel.
Por fim, Inferno Verde, também leva a pensar nos problemas sociais que infelizmente
enfrenta até hoje a Amazônia. Deve ser entendido como expressão problematizadora dos romances
do realismo. A literatura, neste sentido, debruça seu olhar sobre questões como identidade cultural e
historiografia nacional, neste caso, regional. E possibilita enxergar no Inferno Verde uma Amazônia
em construção, seja no imaginário individual, seja no coletivo. E Rangel marca seu trabalho por
levar a repensar a história da região e as relações interpessoais do estado infernal que é viver aqui.
Por meio dele, ou melhor, do Narrador, conhece fragmentos de sua história e do passado que se liga
ao presente.

Referências bibliográficas

CHALHOUB, Sidney & PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (org.). A História Contada:
Capítulos de história social da literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
CUNHA, Euclides da. Preâmbulo. In: RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 6ª. Ed. Manaus: Valer,
2008.
KRÜGER, Marcos Frederico. Grande Amazônia: veredas. In: RANGEL, Alberto. Inferno Verde.
6ª. Ed. Manaus: Valer, 2008.
RANGEL, Alberto. Inferno Verde. 6ª. Ed. Manaus: Valer, 2008.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural da Primeira
República. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SOUZA, Márcio. A Expressão Amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. Manaus: Valer,
2003.

636
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A ESPERANÇA EM A FLOR E A NÁUSEA, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Mayara Miranda de Sena (UFAM)

RESUMO: Neste trabalho analisa-se histórica e literariamente o poema A flor e a náusea, de A


Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, levando em conta que, nas seis primeiras estrofes,
o poeta expressa ódio e nojo da injustiça pela qual o mundo passa na década de quarenta; e que, nas
três últimas estrofes, o poeta mostra o surgimento de algo novo e surpreendente: uma flor
desabrochando no asfalto, num local que não possui as condições adequadas para seu nascimento.
Por isso, ela é frágil, desbotada, suas pétalas ainda não abriram, e é feia. Mesmo assim, a flor fura o
asfalto, o tédio, o nojo e o ódio que predominam naquele tempo. Então, essa flor simboliza o
despertar da esperança de transformação da repressão política no Brasil e na Europa. Partindo dessa
idéia, analisa-se o poema A flor e a náusea nas seguintes partes: na primeira, relacionando a
indignação do poeta com o momento histórico da ditadura Vargas no Brasil e com a Segunda
Grande Guerra; na segunda parte, fazendo a analogia do nascimento da flor com o encontro de uma
alternativa para a superação desse conturbado período da história, embora as adversidades impeçam
essa alternativa de se desenvolver.

Palavras-chave: A Flor e a Náusea, Carlos Drummond de Andrade.

Introdução

A produção poética de Carlos Drummond de Andrade é fruto do seu tempo. Conhecida


como fase engajada, é o momento em que o poeta faz reflexões a respeito do seu tempo e momento
história. Têm como tema na maioria dos poemas contidos na Rosa do Povo, os reflexos da Ditadura
de Getúlio Vargas e da Segunda Guerra Mundial. Alguns exemplos de poemas que tratam desse
período histórico são Áporo e A flor e a náusea, este escolhido para desenvolver a análise a seguir.

As décadas de 30 e 40 no Brasil
A crise de 1929 na economia dos Estados Unidos da América foi o ponto de partida para o
desencadeamento do período de ditadura do governo de Getúlio Vargas, denominado Estado Novo.
Com a superprodução na indústria norte-americana, não tiveram os americanos para quem vender o
excedente produzido, um dos exemplos é a superprodução de trigo, que não encontrava consumidor
no mercado interno e externo. Por conta disso, os Estados Unidos não poderiam vender para o
mercado internacional e nem comprar a produção industrial dos outros países. Logo, os países
dependentes economicamente dos americanos, como é o caso do Brasil, não tiveram para quem
vender os produtos destinados à exportação.
637
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O Brasil vendeu apenas parte de sua produção cafeeira para os Estados Unidos e, quanto ao
excedente que não foi vendido a este país, decidiu queimar para segurar o preço do café. Com isso,
houve o enfraquecimento econômico da oligarquia cafeeira, resultando num desastre econômico e
conseqüente desestruturação da República Velha.
Mas, além dos problemas econômicos, houve uma ruptura no acordo político entre os líderes
dos estados de São Paulo e de Minas Gerais, por conta de desentendimentos na indicação de um
candidato à presidência para substituir Washington Luís. Nas eleições de 1930, a oligarquia paulista
apoiou Júlio Prestes, do Partido Republicano Paulista (PRP), e os políticos mineiros, Antônio
Carlos Ribeiro de Andrade, governador de Minas Gerais e pertencente ao Partido Republicano
Mineiro (PRM). Nesse momento conflituoso, aqueles que eram opositores às oligarquias cafeeiras
fizeram uma aliança, denominada Aliança Liberal, unindo representantes políticos do Rio Grande
do Sul, de Minas Gerais e da Paraíba. Esse grupo opositor decidiu lançar Getúlio Vargas como
candidato à presidência da República e João Pessoa como seu vice-presidente. Os candidatos
apoiados pela Aliança Liberal tiveram o apoio de pessoas que eram contra a estrutura antiga da
República Velha e também de algumas pessoas interessadas em manter o poder, como é o caso de
Antônio Carlos Ribeiro de Andrade, que antes apoiava o PRM e, após romper com a oligarquia
paulista, passa a apoiar a Aliança Liberal.
A Aliança Liberal apresentava proposta que levaria ao avanço do país, tais como: instituição
do voto secreto, antes mascarado pelo coronelismo na República Velha; criação de leis trabalhistas;
e incentivo à produção industrial.
Finalizadas as eleições de 1930, concluiu-se que o candidato paulista Júlio Prestes, do PRP
havia vencido o seu adversário Getúlio Vargas, candidato da Aliança Liberal. Porém os
representantes políticos gaúchos, mineiros e paraibanos não se convenceram de que a vitória de
Júlio Prestes havia sido justa. A verdade é que não se sabia qual dos dois partidos havia utilizado
mais artifícios para ganhar a eleição, mas o que se sabia era que o PRP soube como utilizá-los a seu
favor.
Nesse momento de conflitos, a Aliança Liberal sabia que era preciso assumir o controle da
situação antes que outros grupos sociais o fizessem.
Maior revolta contra a estrutura antiga de poder ocorreu quando João Pessoa, governador da
Paraíba, foi morto por causa de questões políticas e pessoais. A morte dele foi o motivo pelo qual os
opositores se reuniram contra o governo. As lutas armadas explodiram inicialmente no estado do
Rio Grande do Sul e se espalharam pelos estados de Minas Gerais, Pernambuco e Paraíba, com o
objetivo de impedir que Júlio Prestes tomasse posse da Presidência como sucessor de Washington
Luís.
Com o avanço de uma guerra civil, os militares do Rio de Janeiro decidiram depor o
presidente Washington Luís a poucas semanas do término do seu mandato. Depois dessa tomada de
poder, o cargo foi entregue a Getúlio Vargas e, com isso, termina a República Velha e inicia o
período getulista ou era Vargas.

638
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A vitória de Getúlio Vargas na Revolução de 30 deu início a uma nova etapa na história do
Brasil, que se estendeu até 1945. Durante esse período, ocorreram muitas mudanças no país, tais
como: o crescimento da população urbana em relação à rural, a classe média conquista maior
espaço na política do país e a indústria conquistou mais espaço na economia nacional. O período em
que Getúlio permaneceu no poder pode ser dividido em três fases: governo provisório (1930-1934),
governo constitucional (1934-1937) e governo ditatorial (1937-1945).
No governo provisório, Vargas tomou providências para controlar a situação política do
Brasil. Entre essas medidas estavam: o fechamento do Congresso Nacional, das Assembléias
Legislativas e das Câmaras Municipais; a suspensão da Constituição de 1981; a nomeação de
interventores militares para controlar os governos estaduais. Fazendo isso, Getúlio tinha intenções
de destruir as oligarquias ainda existentes da República Velha, estruturada no poder de coronéis. O
próprio Getúlio, juntamente com os interventores, achava que em pouco tempo conseguiriam acabar
com os grupos políticos ainda restantes do antigo regime. O governo Vargas demonstrou interesse
na questão social dos trabalhadores, na centralização do poder e na defesa das riquezas brasileiras,
mas a oposição paulista discordava de tais idéias e preferia a volta da República Velha. E para
enfrentar Vargas, a oligarquia paulista resolveu formar com o Partido Democrático (PD) um único
bloco. Mesmo partido que participou da Revolução de 30, porém agora descontente com o
interventor nomeado por Getúlio para São Paulo, João Alberto Lins e Barros. As exigências do
grupo paulista era a nomeação de um interventor civil e paulista e, Vargas acabou concordando ao
nomear Pedro de Toledo. Mas as exigências não terminavam até então, os paulistas queriam novas
eleições e a convocação de uma Assembléia Constituinte para elaborar uma nova constituição para
o Brasil. No dia 9 de julho de 1932, veio à tona a Revolução Constitucionalista, quando São Paulo
reuniu armas e 30 mil homens para lutar contra o governo federal. Dentre esses homens, estavam as
tropas paulistas, formadas por soldados da polícia do estado e grande colaboração das indústrias no
fornecimento de materiais bélicos como granadas, capacetes e outros. Apenas o Mato Grosso aderiu
a essa revolução junto de São Paulo, os outros estados não concordaram com a Revolução
Constitucionalista. Após três meses de embate, os paulistas foram derrotados, porém auto
denominaram-se vitoriosos, pelo fato de Getúlio, após o término da revolução, determinar as
eleições para a Assembléia Constituinte, a fim de que fosse elaborada a nova constituição. No dia
16 de julho de 1934, terminou a elaboração da constituição e por fim ela foi promulgada. Os pontos
abordados por ela foram: instituição do voto secreto, reconhecimento dos direitos dos trabalhadores
e a proteção das riquezas nacionais, como por exemplo, as jazidas e quedas dřágua geradoras de
energia. Essa constituição estabelecia que após a sua promulgação, o primeiro presidente seria
eleito de forma indireta pela Assembléia Constituinte. Getúlio inicia o seu mandato constitucional.
No governo constitucional, dois grupos políticos com ideologias diferentes passaram a se
destacar naquele momento: os integralistas e os aliancistas. Plínio Salgado, Miguel Reale e outros
intelectuais da época divulgaram um manifesto à nação explicando quais eram os princípios do
Integralismo. O Integralismo continha idéias semelhantes às do nazifascismo. Desse modo, teve

639
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

início a Ação Integralista Brasileira (AIB), organização política que conquistou a simpatia de
muitos empresários, parte da população de classe média, parte dos componentes do clero da Igreja
Católica e dos oficiais das Forças Armadas. Essa organização política defendia o combate ao
comunismo, o nacionalismo exacerbado, a disciplina e a hierarquia dentro da sociedade brasileira, o
poder centralizado nas mãos do Estado, a censura de atividades artísticas e o poder nas mãos de um
chefe pertencente ao Integralismo. Já o Aliancismo era o grupo adversário ao Integralismo,
formavam a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e seus membros eram chamados aliancistas. A
ANL reunia vários grupos simpatizantes, tais como: os sociais-democratas, os comunistas e muitos
outros. Mas a principal vertente dentro do grupo político eram os comunistas. Elegeram, em abril de
1935, Luís Carlos Prestes como presidente de honra da ANL. O temor do governo federal perante a
expansão do aliancismo fez com que decretasse o fechamento da ANL e a acusação de que eles
seriam uma ameaça para o país, alegando o apoio estrangeiro e principalmente dos comunistas à
ANL. Tal afirmativa gerou descontentamento nos militares comunistas integrantes da Aliança e em
novembro de 1935, estourou a Intentona Comunista, tentativa de tomada de poder pelos militares.
Isso só fez com que o governo tivesse mais certeza da presença dos comunistas e prendesse várias
pessoas, tais como: alguns intelectuais da época, militares e muitos outros.
No governo ditatorial, Getúlio declarava publicamente não ter pretensões de nova
candidatura porque seu mandato terminaria em 1938. Mas preparava um golpe de Estado por trás
com a intenção de assumir novamente o poder. Em 1937, foi noticiado um plano comunista para
acabar com o regime democrático. Mas tudo era uma farsa por parte do governo e em nome da
ameaça comunista, Getúlio decretou estado de guerra, prendendo muitos adversários políticos. Em
10 de novembro de 1937, Vargas impôs o fechamento da Assembléia e outorgou uma constituição
para substituir a de 1934. A partir desse momento, tem inicio o período ditatorial do governo de
Vargas. Durante esse período, o Brasil viveu em estado de emergência, podendo invadir casas,
prender pessoas e, principalmente, seus inimigos políticos. Agora, Getúlio tinha poderes e não era
submetido a fiscalização. Os partidos políticos foram extintos e as eleições foram suspensas, todas e
quaisquer tipos de greves e manifestações contra o governo eram proibidas, a polícia política tinha
poderes para perseguir, prender, torturar e matar vários cidadãos.
No período de 1939 a 1945, ocorreu a Segunda Guerra Mundial. Durante esse tempo,
Vargas tentou manter a neutralidade diante da situação. Mas acabou fazendo acordos com os
Aliados em troca de apoio. Conseguiu financiamento dos EUA para construir a Usina de Volta
Redonda e em troca forneceria borracha, minério de ferro e permissão para que as bases militares
norte-americanas se estabelecessem no Nordeste. Por conta desse apoio aos Aliados, os Alemães
enviaram submarinos para atacar os navios brasileiros, provocando revolta dos brasileiros. Em
1942, Getúlio enviou soldados brasileiros e declarou guerra aos países do Eixo. Em relação à
economia, Vargas estabilizou a produção cafeeira e diversificou a produção agrícola e também o
desenvolvimento industrial. A guerra dos Aliados contra os nazifascistas foi motivo para o grupo
liberal brasileiro combater o fascismo presente no governo ditatorial de Vargas. Vendo que vinha

640
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

em direção ao Brasil uma onda democrática, Getúlio fixou em 1945 um prazo para a ocorrência das
eleições presidenciais e anistia para aqueles que foram políticos e intelectuais exilados, dentre eles
estava Luís Carlos Prestes. Nesse período de abertura política, surgiram vários partidos políticos e
nas eleições de 1945 concorreram ao cargo o general Eurico Gaspar Dutra (apoiado por Vargas), o
brigadeiro Eduardo Gomes e o engenheiro Yedo Fiúza. No decorrer da campanha, Getúlio apoiava
abertamente Dutra, mas por trás estava conduzindo um movimento popular que pedia sua
permanência. Os opositores a Vargas, temendo a sua permanência no poder, uniram forças para
retirá-lo de lá. Em 29 de outubro de 1945, as tropas do exército cercaram o palácio do Catete e
obrigaram Vargas a renunciar à presidência. Assumiu temporariamente a presidência José Linhares,
então presidente do Supremo Tribunal Federal. Era o fim do período ditatorial conhecido como
Estado Novo, Vargas se retira do poder sem punição alguma e com muita tranqüilidade. Tem início
uma nova etapa da política no Brasil. Com a abertura democrática, o general Dutra vence as
eleições com o apoio que recebeu de Vargas.
Nesse momento socioeconômico e político o poeta Carlos Drummond de Andrade produz
seus textos e certamente há recorrências desse período conturbado na sua obra.

A vida literária de Carlos Drummond de Andrade

No período de 1920 a 1921, Carlos Drummond de Andrade inicia sua carreira como
jornalista e poeta. Mas é primeiro o jornalista quem vem à tona, quando ainda é aluno do segundo
ano ginasial, do Colégio dos Jesuítas. Contribui para o jornal escolar Aurora Colegial, ŖDe fato, são
ainda simples redações escolares, marcadas, talvez, pelo forte desejo daquele jovem de, um dia, vir
a ser escritorŗ (Barbosa, p.06). Graças ao seu irmão Altivo, o lado poético de Drummond vem à
tona, passando por cima do jornalista ainda em início de carreira. Em maio de 1918, a revista Maio
publica o poema em prosa ŖOndaŗ , que é assinado pelo poeta com o nome de Wimpl. Dessa vez, é o
lado ficcionista de Drummond que recebe, no ano de 1922, o prêmio de 50 mil Ŕ réis da revista
Novella Mineira, de Belo Horizonte, no número de setembro-outubro de 1922, com o conto
ŖJoaquim do Telhadoŗ . E nesse mesmo período, o cronista, paralelamente ao poeta, inicia, de fato,
sua carreira, colaborando com o Diário de Minas, de Belo Horizonte, e para as revistas Ilustração
Brasileira e Para Todos..., do Rio de Janeiro. Nesse mesmo período, Drummond e seus amigos
assumem o Diário de Minas, gravíssimo órgão do partido Republicano Mineiro, o partido que
dominava a política estadual e dava as cartas no Brasil. Durante o ano de 1923, Carlos Drummond,
o ainda jovem poeta se modelava por meio das suas correspondências com Manuel Bandeira ou do
contato direto com Blaise Cendrars, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. O
Modernismo caracterizava a vida da elite intelectual dos anos 20, chega também a Minas Gerais,
terra de Drummond. Já em 1925, Drummond de Andrade funda A Revista, órgão do modernismo
mineiro, juntamente com Emílio Moreira, Martins de Almeida e Gregoriano Canedo. ŖA Revista,
órgão modernista de que saem três números é onde o grupo mineiro pretende e propõe a

641
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

reformulação dos padrões estético-literários brasileiros (Barbosa, p.07). Em julho 1928, publica na
Revista de Antropofagia, de São Paulo, o poema ŖNo meio do caminhoŗ . ŖÉ ainda neste mesmo ano
que o poeta se torna Ŗpedra de escândaloŗ (Barbosa, p. 07). Em 1930, publica seu primeiro livro de
poemas Alguma Poesia cuja edição é facilitada pela Imprensa Oficial do Estado. E estourada a
revolução de outubro, o Drummond funcionário público é nomeado para exercer as funções de
auxiliar de gabinete de Cristiano Machado, na Secretaria do Interior de Minas e logo após, a de
oficial de gabinete de seu amigo Gustavo Capanema. Em 1933, Drummond passa a ser redator de A
Tribuna, juntamente com suas atividades no periódico Minas Gerais, Estado de Minas e Diário da
Tarde e o seu trabalho junto com Gustavo Capanema, nomeado interventor federal. Em 1934,
publica Brejo das Almas; transfere-se para o Rio de Janeiro, como chefe de gabinete de Gustavo
Capanema, Ministro da Educação e Saúde Pública. Colabora na Revista Acadêmica, Rio de Janeiro,
e também em alguns periódicos como O Correio da Manhã, Folha Carioca, revista Euclydes, A
Manhã, Leitura, Tribuna Popular, Política e Letras e voltando a atuar nas páginas do jornal Minas
Gerais também. Em 1940, publica Sentimento do Mundo. Em 1942, surgem Poesias, sua primeira
obra em edição comercial. Ŗ[...] obtém, pela primeira vez, uma editora, a José Olympio, para custear
a publicação de seu livroŗ (Barbosa, p.08). Em 1944, Drummond publica seu primeiro livro de
crônicas, denominado Confissões de Minas. Esse livro de crônicas é o resultado de sua atuação
como cronista nos jornais periódicos A Tribuna, Minas Gerais, Estado de Minas e Diário da Tarde.
Em 1945, deixa a chefia do gabinete e passa a trabalhar na Diretoria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional e publica a obra A Rosa do Povo.

A Rosa do Povo

O livro A Rosa do Povo (1945), contendo 55 poemas, é considerado o mais extenso e


variado de todos. Celebrado como o ápice de sua poesia social, segundo Francisco Achcar. Nele
estão presentes as estrofes irregulares ao lado dos versos livres e estrofes regulares ao lado dos
versos com métrica tradicional. Os poemas de A Rosa do Povo foram escritos durante o período da
ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e o da Segunda Guerra Mundial, através desses poemas
Drummond expressa toda a sua indignação e também esperança perante aquele momento da
história. Demonstra envolvimento com a situação social, o chamado choque social, mas não deixa
de lado a reflexão a respeito do fazer poético. Ou mesmo temáticas sobre o tempo, a família, a
velhice etc. O poeta demonstra através dos muitos poemas de A Rosa do Povo que não existem
palavras certas ou erradas para se usar no fazer poético.

As palavras não nascem amarradas, proclama Drummond: é sua adesão consciente ao fim
da hierarquia verbal própria da escrita clássica (a legitimação da democracia das palavras
de Spitzer). Mas é também o reconhecimento por parte de Drummond, de que a escrita
moderna é solidária de uma literatura de experiência. (MERQUIOR, p. 73, 1975)

Como demonstra a 1a estrofe do poema Consideração do poema, que abre o livro A Rosa do
Povo: ŖNão rimarei a palavra sono/ com a incorrespondente palavra outono./ Rimarei com a
642
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

palavra carne/ ou qualquer outra, que todas me convém./ As palavras não nascem amarradas,/ elas
saltam, se beijam, se dissolvem,/ no céu livre por vezes um desenho,/ são puras, largas, autênticas,
indevassáveis [...]ŗ

A flor e a náusea

No poema A flor e a náusea, encontra-se um indivíduo indignado com o tempo de injustiças


e sujeiras em que vive: ŖO tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera/ O tempo
pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasseŗ . Mas o mesmo indivíduo ainda nutre
esperanças em relação a esse tempo, essa esperança é simbolizada pelo aparecimento da flor. Para
todo esse ódio, nojo, náusea, tédio e revolta brota uma esperança no asfalto, como demonstra o
excerto: ŖMas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódioŗ . A náusea sentida pelo
indivíduo perante o seu tempo tem, na psicologia, um significado existencialista. É o título de um
romance publicado em 1918 por Jean-Paul Sartre, considerado um dos pais do existencialismo;
quanto à flor, sua imagem já está presente no título da obra A Rosa do Povo. Há, ao longo do
poema, a imagem do indivíduo e da sociedade fazendo parte da classe opressora, mas quem sente a
angústia e a responsabilidade perante a situação é o indivíduo.
Na primeira estrofe, o indivíduo é aprisionado tanto pela classe social quanto pelas suas
roupas. ŖPreso à minha classe e a algumas roupas,/ vou de branco pela rua cinzenta./ Melancolias,
mercadorias espreitam-me./ Devo seguir até o enjôo?/ Posso, sem armas, revoltar-me?ŗ Há um
contraste entre as cores, a cor branca usada nas roupas do individuo e a cor acinzentada das ruas.
Que levam ao aprisionamento do individuo fazendo-o destacar-se em meio ao mundo que o cerca,
envolto por uma onda de consumismo quase desvairado.
Aos olhos de quem observa parece haver uma vida encoberta em meio a um mar de lama e
sujeira que faz com haja uma cegueira quase total dos acontecimentos em derredor, fazendo-lhe
quase que obrigatoriamente usar de rígida sutileza ao comparar um muro desprovido de ouvidos
com um ser que mesmo que mesmo sendo ouvinte comporta-se e responde como o muro
anteriormente citado.
Vendo então que vive em um momento único na história de um povo e de um país, onde se
busca tolher o livre pensar, encontra refúgio na sutileza verbal, para em meio à dificuldade fazer-se
entender, mesmo que encoberto por códigos embutidos em palavras e frases, na tentativa de alertar
e chamar a atenção dos que ainda não compartilhavam de sua visão.
No trecho ŖAs coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase‖.

ŖJosé Guilherme Merquior lembrou, a propñsito dessa notável expressão a respeito da


tristeza do mundo, a frase do poeta romano Virgílio (século I a.c) sobre as Ŗlágrimas das
coisasŗ (lacrimae rerum)ŗ (ACHCAR, Francisco apud MERQUIOR, José Guilherme, p.25,
1993)

643
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Considerações finais

Carlos Drummond de Andrade, com a sua obra A Rosa do Povo, fez muitas reflexões acerca
do período ditatorial de Getúlio Vargas. O poema A flor e a náusea tem esse pano de fundo,
mostrando toda a opressão sofrida pelo indivíduo na época. Mas a flor que nasce no asfalto
representa a esperança em meio a um regime ditatorial, mesmo sendo esta sem cor e feia. Essa
esperança que nasceu, rompendo o asfalto, o ódio, o nojo e o tédio é efetivamente o fim do Estado
Novo e a conseqüente abertura democrática que elege o general Eurico Gaspar Dutra como
presidente do Brasil.

Referências bibliográficas

ACHCAR, Francisco. Carlos Drummond de Andrade: A Rosa do Povo & Claro Enigma. Roteiro de
Leitura, 1a edição. Série Princípios; volume 1. Editora Ática, 1993.

BARBOSA, Rita de Cássia. Carlos Drummond de Andrade: Seleções de textos, notas, estudo
biográfico, histórico e crítico e exercícios por Rita de Cássia Barbosa. São Paulo: Abril Educação,
1980.

________. A Rosa do Povo. 21a edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.

CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu: Biografia de Carlos Drummond de Andrade. São
Paulo: Editora Página Aberta Ltda., 1993.

CARONE, Edgard. A Terceira República, 1937-1945. 2.a edição. São Paulo: Difusão Editorial S.A,
Novembro de 1982.

CHACON, Vamireh. Estado e povo no Brasil: as experiências do Estado Novo e da democracia


populista, 1937-1964. Rio de Janeiro, José Olympio; Brasil, Câmara dos Deputados, 1977.

MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. 2a edição. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, Secretaria de Estado de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1975. Coleção
Documentos Brasileiros; volume 169.

644
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

EROS DEGRADADO: DE ESCOLHIDOS E POBRES DIABOS...

Mirella Miranda (UFRR)

Apesar de ser considerado, por muitos, um dos maiores contistas das letras brasileiras
contemporâneas, Dalton Trevisan ainda possui uma fortuna crítica relativamente escassa, com
apenas um único estudo de fôlego publicado sobre sua obra, o livro Do Vampiro ao Cafajeste – uma
leitura da obra de Dalton Trevisan (1989), da professora Berta Waldman, de que destacamos
algumas das principais contribuições.

Em Do Vampiro ao Cafajeste, Berta Waldman elabora uma cuidadosa panorâmica da obra


do escritor curitibano, buscando nesta o percurso desenhado pela negatividade dos tipos mais
comuns à produção do contista. O estudo privilegia uma leitura que busca, basicamente, rastrear a
formalização do sem-sentido da realidade e da existência que se plasma na linguagem do autor de O
Vampiro de Curitiba. Partindo da análise da imagística do vampiro, Waldman propõe de início um
paralelo entre os Ŗvampirosŗ de Dalton Trevisan e o personagem do romance de Bram Stoker,
matriz que domina a abordagem do mito na literatura e no cinema do ocidente: enquanto o vampiro
de Stoker, o conde Drácula, é uma figura envolta em uma atmosfera carregada de tragicidade, na
obra de Trevisan o vampiro se despe da aristocracia, do refinamento e da aura de sedução e passa a
figurar o homem comum, classe média, funcionário público. Às voltas com os mais cotidianos
dilemas, os Ŗvampirosŗ desta obra se distanciam da imagem mais comum do vampiro, chegando até
mesmo ao nível do patético ou do risível.

Aqui, o vampiro se faz perceber para além do tema ou da personagem. Segundo Berta
Waldman, o vampiro da obra de Trevisan se incrusta na linguagem que, se apropriando Ŕ
vampirizando Ŕ de formas cristalizadas da cultura de massa, denuncia a seriação e a fixidez da
realidade de sua época. É o que a autora denomina discurso-vampiro.

Dessa forma, é através da imagem do vampiro que Trevisan forja uma das tônicas de sua
contística: a repetição quase obsessiva de personagens, tramas e estruturas textuais, reiterados ao
longo de sua obra. Estes recursos são classificados por alguns críticos como fragilidade que limita a
obra Ŕ a repetição e a utilização de registros lingüísticos cristalizados pelo uso, sendo vistas como
um recurso comum aos produtos da indústria cultural -, classificação que Waldman corrige ao
mostrar a diferença fundamental entre a seriação que é a matéria da massificação cultural e a
seriação que emerge como procedimento estilístico de Dalton Trevisan: nos mass media o repetido
tem seu sentido esvaziado, ao passo que na obra do nosso contista a seriação ganha novos planos de
significação a partir de diferentes contextos e nuances textuais, se configurando como denúncia:

Enquanto a cultura dos media promove sempre a mesma informação e leva consigo o selo
ideológico do sistema que a cria e a quem ela reverencia, a repetição nas e das narrativas de
645
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Dalton Trevisan, ao mesmo tempo que reproduz o desenho de sua matéria naquilo que
chamo de discurso-vampiro e tecer uma trama crítica dedutível, por exemplo, a partir do
próprio roubo de linguagem a que o autor procede. Ao se apropriar de uma linguagem que
está sob o controle do poder e que não oferece resistência ao roubo porque esvaziada, o
autor desnuda-a e revela-a como impostora e vazia.

Temática das mais fecundas na obra de Trevisan, o erotismo também é analisado pela
estudiosa. Segundo ela, a sexualidade das personagens trevisanianas reflete o modelo de seus
recalques sociais: a sexualidade é exercida como atividade mecânica, que postula a ausência do
sujeito, o vazio, e, refletindo o aniquilamento da alteridade em outros níveis de relacionamento,
sugere a dissolução da diferença. É a dissolução da diferença Ŕ novamente a imagem do vampiro
que faz do outro um igual, outro vampiro Ŕ que se reitera, por exemplo, na recorrência da temática
homossexual (em profusão ao longo da obra), da autossexualidade e, sobretudo, na superposição
dos papéis carrasco/vítima nas relações heterossexuais.

Exemplar desse motivo nas narrativas de Trevisan é o livro O Vampiro de Curitiba,


publicado em 1965, um dos mais representativos de sua obra, seja por sua configuração estética, das
mais elaboradas, ou pela singularidade de personagens e dos enredos. Constituído por quinze
histórias, o livro tem no erotismo tema recorrente, que emerge, ao nosso ver, como a principal
forma de problematização das relações humanas ente as personagens das narrativas. É no rastro
dessa problemática, já apontada por estudos como o da professora Berta Waldman, que se segue a
análise de ŖA noite da paixãoŗ , conto que finaliza a coletânea.

ŖA Noite da Paixãoŗ narra a última das perambulações de Nelsinho pelo lado escuro da
Curitiba de Trevisan. Depois de vagar por ruas quase desertas, Nelsinho, personagem-eixo das
narrativas da obra, entra numa igreja onde encontra uma prostituta. Acertado o encontro, acabam
indo para um motel barato, onde se prestam a todos os tipos de torpezas sexuais. Separam-se ao fim
do Ŗencontroŗ , mais vazios e solitários que antes.

O início do conto sintetiza a obsessão de Nelsinho, que, ocupado em sua atividade mais
corriqueira, Ŗcorria as ruas à caça da última fêmeaŗ , sugerindo, já de saída, o fechamento do ciclo
de degradação prenunciado pelo conto ŖVisita à professoraŗ , do mesmo livro. Se neste, a
vítima/algoz de Nelsinho é a professora envelhecida, naquele é uma decadente prostituta, a Ŗúltima
fêmeaŗ . Inicia-se com esta primeira figura, a prostituta (a Ŗdona em marcha vagabundaŗ ), o desfilar
dos Ŗbichos da noiteŗ que povoam o conto e que fazem parte da Ŗmitologia daltonianaŗ , como já
classificou um crítico de sua obra. Depois da figura da prostituta, é a vez de dois homossexuais, que
também fazem parte da galeria de tipos assíduos às narrativas de Dalton Trevisan, mostrarem-se no
conto e interpelarem Nelsinho, chamando-o de bonitão, ao que o narrador comenta: ŖAqueles dois
chamariam de bonitão a qualquer bicho da noiteŗ ; instalando no mesmo plano o protagonista e as
figuras anônimas que aparecem no conto, todos Ŗbichos da noiteŗ .

646
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Depois de perambular pelas ruas de Curitiba, à caça da Ŗúltima fêmeaŗ , Nelsinho acaba por
entrar numa igreja, único lugar aberto na noite de sexta-feira santa. Este inusitado ato de Nelsinho
fornece, na narrativa, os elementos que são a tônica do conflito: a representação tensa (tensa porque
imbuída de tragicidade e comicidade a um só tempo) das interdições que modulam as relações entre
sagrado e profano.

Georges Bataille (1978), em seu ensaio intitulado O Erotismo, define os interditos (ou
interdições) como formas culturalmente geradas para controlar ou proibir os desejos, recalcar as
pulsões, a violência instintiva do homem. Segundo ele, os interditos surgem na sociedade para
dominar a força violenta (e por vezes destruidora) de Eros e, apesar de culturalmente construídos,
são internalizados pelos indivíduos através de mecanismos inconscientes extremamente complexos.
Embora haja uma grande variedade de interdições, que abrangem a face consciente e inconsciente
dos indivíduos, os interditos são, em sua maioria, voltados ao recalque da libido do homem.
Paralela ao interdito, a transgressão pressupõe a existência de um interdito e sua realização pode
desencadear noções extremamente antagônicas: prazer e transcendência de um lado, culpa e
destruição de outro. A transgressão é intimamente ligada à morte, que, no limite, é o fim último do
gesto erótico.

As interdições que compõem o encontro são claras e já assimiladas pela cultura ocidental:
são as interdições difundidas pela igreja católica. No conto, elas se presentificam em estereótipos
como o das beatas que Nelsinho encontra quando chega à igreja. Nessa ambiência (na igreja
povoada por beatas numa noite santa...), ocorre a primeira transgressão no texto: ŖEscândalo das
beatas, inclinou-se a visitante, saia preta, blusa verde, casaco vermelho. Cabeleira solta no ombro,
cada gesto um estalo de couro, beijou o pé trespassadoŗ . Na imagem do beijo no pé trespassado, a
sombra vampiresca se instala de forma clara.

A austeridade e a implícita relação entre sexo e pecado, eixo de um tipo de repressão


racionalizada e perpetuada pela ideologia cristã, figurada pelas Ŗbeatasŗ no conto, é abalada pela
chegada dessa prostituta. Ela destoa em todos os aspectos das Ŗbeatasŗ , e atrai Nelsinho pelo
extremo oposto do que lhe causa repulsa nestas: as beatas de preto, ela de Ŗsaia preta, blusa verde,
casaco vermelhoŗ, as beatas caladas e solenes, ao passo que em cada um de seus gestos Ŗo furtivo
farfalhar da couramaŗ .

Mesmo antes de qualquer diálogo com a prostituta, Nelsinho tinha a consciência de quem
eram Ŗos escolhidosŗ (ŖNão olhou para Nelsinho; por mais que se ignorassem eram os
escolhidos.ŗ ), numa referência à idéia, difundida pelas religiões judaico-cristãs, da existência de um
Ŗpovo eleito por Deusŗ .

A idéia do Ŗpovo eleitoŗ ou Ŗpovo escolhidoŗ diz respeito à passagem do Velho Testamento
(Êxodo, 19:5-6) em que Deus fala a Moisés firmando um acordo com o povo de Israel: se
seguissem sua palavra, seriam um povo santo, seus escolhidos. De acordo com a tradição judaica,

647
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

esse acordo constituía uma consagração absoluta, que nenhum povo na história, em tempo algum,
havia firmado antes com qualquer deidade. O acordo, segundo essa mesma tradição, significava
mais que a simples obediência a dogmas religiosos: os Ŗescolhidosŗ tinham por missão, ao abraçar e
difundir a fé judaica, a redenção de toda a humanidade.

É interessante observar como a narrativa se incumbirá de atestar que eles eram sim Ŗos
escolhidosŗ, mas para uma espécie de sacrifício, por vezes risível, em que se converte o seu
encontro. Em se tratando das personagens trevisanianas, e em particular das que transitam na
narrativa ora em estudo, a referência aos escolhidos é extremamente irônica: a pequenez de suas
figuras e histórias em nada lembra a grandiosidade dos mitos bíblicos. Essa mesma referência ainda
instaura outra significação no conto quando observamos que, na tradição judaica, a obediência à
Torah Ŕ verdade eterna de Deus Ŕ possuía um ônus bastante pesado: Ŗem vez de recompensa,
sacrifícios; em vez do prazer, a dor; em vez de paz, somente a luta eterna, a perseguição, o
Ŗdesenraizamentoŗ 1. O destino dos Ŗescolhidosŗ é ironicamente parodiado na narrativa de Trevisan,
em que noções como o Ŗsacrifícioŗ , a Ŗluta eternaŗ e o Ŗdesenraizamentoŗ Ŕ associadas ao pequeno
funcionário público que dedica sua existência a satisfazer a própria libido e às personagens sempre
presas à Curitiba e suas regras provincianas -, são transferidas para uma instância patética e risível.

No conto, as interdições que pesam sobre Nelsinho surgem calcadas no intertexto bíblico,
cujas referências aparecem em profusão no texto. A primeira se instaura na ambivalência do título
do conto. A sexta-feira da Paixão, marcação temporal da narrativa, de acordo com o calendário
litúrgico, representa o momento do martírio do Cristo em que ele foi crucificado e morto. Trevisan
explora, especificamente, a significação da palavra Paixão, comunicando o sentido bíblico (paixão
enquanto sofrimento, martírio) com o usual (a paixão enquanto sentimento violento, geralmente
associado aos desejos da carne). Associadas, as paixões (a de Cristo e a de Nelsinho) sugerem a
interdição que se presentifica em entregar-se ao sexo numa noite Ŗsantaŗ .

O interdito é enriquecido ao fazer dialogar a mística cristã com a mística pagã. Uma cena
das mais marcantes no conto é a chegada das personagens na pensão onde se hospedam para
consumar o encontro. Logo à entrada espera uma velha, dona do estabelecimento: ŖNo fundo do
corredor uma harpia nariguda atrás da mesaŗ . Mais adiante, após acirrada disputa, a velha dona da
pensão Ŗarrebataŗ das mão da moça (aparentemente sua conhecida) a revista que ela trazia debaixo
do braço: ŖA revista disputada entre as duas até que, sem aviso, a patroa correu o tampo e prendeu-
lhe o dedo."

A alusão às harpias evoca um jogo semântico que acentua o percurso transgressor das
personagens e que fortalece também o interdito dentro do texto. Segundo a mitologia Greco-latina,
as harpias (Ŗas arrebatadorasŗ ) eram gênios alados de aparência monstruosa: rosto de mulher velha,
corpo de abutre, garras aduncas, seios pendentes. Conta a lenda que as harpias costumavam pousar

1
AUSUBEL, N. Op. Cit. P. 308.

648
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

nas iguarias dos banquetes e espalhar um odor tão desagradável que não se podia mais comer. O
poeta Virgílio em sua Eneida, no canto VI, coloca-as no vestíbulo do Inferno, junto a outros
monstros.

O sentido do regate da imagem mitológica se revela, por um lado, no comparar à harpia (que
significa Ŗarrebatarŗ , Ŗtomar à forçaŗ ) a personagem que Ŗarrebataŗ a revista das mãos da
acompanhante de Nelsinho; por outro lado, a comparação também antecipa para as personagens do
conto o que as harpias prenunciavam e proporcionavam para os convivas nas narrativas da
Antiguidade: o terror e a degradação. Chamada de harpia, a personagem do conto passa a
simbolizar algo mais que uma simples recepcionista: passa a figura o momento de passagem entre
um espaço neutro, a rua, ao espaço Ŗcontaminadoŗ , a pensão onde se desenrolam os conflitos das
personagens. Ela passa a ser, tal qual a harpia, uma espécie de Ŗguardiã das portas do Infernoŗ .

A simbologia das harpias também emerge, límpida, na grotesca caracterização física da


prostituta: ŖAo retirar o casaco, a desgraçada fedia que era uma carniçaŗ . Se antes (na igreja) ela
atraía Nelsinho, sendo figurada como atrativa e receptiva, agora seu efeito sobre a libido de
Nelsinho lembra o das harpias sobre os banquetes: transforma o apetite/desejo em repulsa. O
fragmento, temperado pela ironia e pelo humor negro de Trevisan, figurativiza, mais uma vez, a
força da interdição no conto. Começa a cumprir-se o que diz Nelsinho a certa altura da narrativa: Ŗ-
Esta noite, minha filha, o amor é pecado. Esta noite ele gera monstrosŗ . Essa mesma interdição,
porém, surge em dissonância com relação aos espaços figurados na narrativa: o espaço sacro por
excelência Ŕ a igreja Ŕ apenas sugere náusea à personagem (ŖObservou a imagem pavorosa e
reprimiu, não soluço de dor, engulho de náusea: Por tua culpa, Senhor, todos os bordéis fechados.
Pomposa boneca de cachinho. Falas de sangue, ñ Senhor, e não sangras...ŗ) , ao passo em que a
sórdida pensão é convertida no espaço onde as interdições afloram e o sacrifício se consuma.

O elemento intertextual começa a tomar forma no texto através de referências que se


realizam, então, na apropriação, através de Nelsinho, do discurso de personagens e de episódios do
Novo Testamento, especialmente da Paixão de Cristo, relatada nos evangelhos de Lucas, Marcos,
Mateus e João. O primeiro índice intertextual se dá no seguinte diálogo:

(...) Fixando em frente, ele murmurou:


- Onde é que a gente vai?
- Ali na esquina.
Pequena pausa.
- Quanto tempo?
- O resto da vida Madalena.

Madalena é o nome com o qual Nelsinho batiza a prostituta que acabara de ver beijando os
pés de uma imagem de Cristo na igreja. É, obviamente, uma referência à personagem bíblica,

649
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

também prostituta1, de quem Jesus expulsou sete Ŗdemôniosŗ e que, segundo as Escrituras, a
despeito de seus Ŗpecadosŗ, foi Ŗperdoadaŗ a ponto de ser a primeira pessoa a ver o Cristo
ressurrecto (episódio presente em Marcos 16:9).

A maioria das referências bíblicas ajuda a estabelecer um paralelo entre os pares


Nelsinho/Madalena Ŕ Cristo/crucificação. No conto, o encontro das personagens, pontilhado por tais
referências, assume ares de ritual de sacrifício, como no seguinte trecho, que aparece logo que
Nelsinho descobre que sua parceira é banguela: ŖNem um dente entre os caninos superiores. Terei
de beber, ñ Senhor, deste cálice?ŗ , numa clara fusão das referências bíblicas com a mística
vampiresca (a falhar entre os caninos que, destacando-os, já prenuncia o vampiro).

Nelsinho reage à visão de Madalena da mesma forma que Jesus à certeza de sua
crucificação, Ŗclamandoŗ pela misericñrdia divina. É interessante observar que as alusões bíblicas,
em sua maioria, servem para imprimir ao sexo entre Nelsinho e Madalena, um caráter de pecado e,
sobretudo, de sacrifício. Segundo Bataille, o erótico e o sagrado guardam íntima semelhança em seu
movimento essencial. A relação entre o sagrado e o erótico se dá, de forma bastante acentuada, na
evocação da noção do sacrifício no conto. Nelsinho, ao apropriar-se das atormentadas palavras de
Cristo em seu martírio, realiza a transgressão ao mesmo tempo em que acentua o interdito. A
vivência erótica enquanto sacrifício (que, na concepção da personagem, se reduz ao extremo
desconforto que sua parceira lhe causa) redime a personagem da transgressão do interdito, da
violação do sagrado. Equiparando seu sofrimento ao de Cristo, Nelsinho diminui sua Ŗculpaŗ .

Entretanto, não podemos deixar de questionar até que ponto as interdições são, para
Nelsinho, entraves reais (estruturas realmente internalizadas por ele) ou apenas surgem como uma
espécie de fetiche, tempero sexual fornecido pela idéia de proibição e pecado. Nessa perspectiva é
interessante o fragmento: ŖNelsinho abriu-se em sorrisos Ŕ Eis o homem! Não quis perder o
entusiasmo, pôs-se de péŗ .

A referência bíblica (ŖEis o homem!ŗ ) significa o exato momento de entrega: de Cristo à


paixão, de Nelsinho a seu Ŗsacrifícioŗ (terrível e prazeroso ao mesmo tempo). No conto, essa
referência parece figurar o momento em que a personagem, mesmo inconformada com a feiúra da
parceira, consegue uma ereção, signo de prazer e, ao mesmo tempo, de sua priápica obsessão.

As alusões ao texto bíblico continuam, explícitas, em trechos como: ŖMontada em seus


joelhos, completamente vestida, os pinotes faziam estalar a cama. Ŕ Tome e coma: isto é o meu
corpoŗ . A semelhança entre as palavras de Nelsinho e as palavras bíblicas é evidente, como se pode
averiguar no Evangelho Segundo Marcos (cap. 16:11). A referência à célebre ŖÚltima Ceiaŗ parece
figurativizar a entrega (inevitável) de Nelsinho ao seu Ŗdestinoŗ . Enquanto nas Escrituras a entrega

1
Atualmente, exaustivas pesquisas acerca da existência histórica de Maria Madalena (Ou Maria, a de Magdala) dão
conta de que ela não foi uma prostituta, mas que essa condição lhe fora imposta pelo alto clero da Igreja Católica como
forma de diminuir sua importância no apostolado de Jesus. Contudo, aqui, como no conto, utilizamos a referência que
se populazirou ao longo da história, de que se tratava de uma prostituta perdoada e convertida por Cristo.
650
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

(simbólica) representa celebração, reconhecimento do sagrado, reunião, enfim, salvação, no conto é


a reafirmação da impossibilidade de vivência plena dos relacionamentos entre as personagens.

O sexo é vinculado ao sagrado com intuito de subverter os dogmas católicos, ao contrário da


idéia de transcendência que tal associação poderia evocar se a perspectiva trevisaniana fosse outra,
de sacralização do erótico com a intenção de elevar a experiência do desejo e do prazer ao nível de
uma experiência sagrada. É necessário lembrar que o que está em jogo não é apenas uma subversão
dos dogmas religiosos, mas da própria idéia de erotismo enquanto uma forma de reunião, similar ao
religare que caracteriza os movimentos da vida espiritual do homem. A subversão de Trevisan dá
conta de figurar um erotismo em que a alteridade inexiste, sendo, portanto, impossível essa busca de
uma reunião. Há, apenas, um entregar-se que, mesmo evocando a mística cristã, figurativiza a
aceitação de uma vampírica obsessão: ŖEnroscou-se nele, as unhas pelo corpo, estremecendo-o
todo. Enfio-lhe a língua na orelha Ŕ Que se faça a tua vontade, Senhor, e não a minhaŗ .

O sacrifício dos amantes se consuma. Depois do Ŗamorŗ consumado, as referências à Paixão


aludem ao últimos momentos de Jesus no Calvário, em três últimas referências. A mais contundente
é a alusão à célebre frase de Cristo na cruz: ŖAos poucos abateu-lhe a resistência Ŕ Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?ŗ (Mateus, p.106)

A citação às últimas palavras de Cristo é literal. Parece finalmente conferir ao sexo o signo
do sacrifício. Neste contexto, a vítima imolada é Nelsinho. O Ŗdesamparoŗ traz ainda a idéia de
solidão e isolamento, fazendo com que Nelsinho pareça realmente privado do que o caracterizava
nos contos iniciais de O vampiro de Curitiba: o apetite insaciável por sexo, a agressividade, enfim,
a posição de carrasco, de caçador, acabando por se converter numa espécie de vítima de sua
condição. Pensando nas fases (em termos cronológicos) da vida humana, esse momento parece
representar, no texto, a perda da potência masculina, que pode ocorrer na maturidade. É interessante
observar como Trevisan plasma, no texto, um lugar-comum freqüente na realidade social, no que
tange aos papéis sexuais: a potência masculina (até o limite da violência, como o estupro Ŕ também
presente no contexto de O Vampiro de Curitiba) ou sua ausência ou enfraquecimento, é um estigma
imposto pelo feminino: é a mulher que a provoca ou que a destrói.

O Ŗestigma do vampiroŗ , presente em toda a obra de Trevisan, também emerge em ŖA noite


da paixãoŗ , na estrutura, o discurso-vampiro que Ŗvampirizaŗ o bíblico, no conteúdo o encontro
entre as personagens. O vampiro funciona no conto ora como metáfora de isolamento e solidão, ora
como forma de figurar o sexo animalizado, inumano, como no trecho abaixo:

Ela voltou a sugar o queixo (...) Quis morder ele não deixou (...) Sem jamais colher a flor
do desejo, ela urrou de frustração Ŕ cravou-lhe os caninos no pescoço.
Ŕ Tiro sangue.

O ato sexual entre Nelsinho e Madalena é configurador do erotismo na obra de Dalton


Trevisan: animalesco, vertiginoso, geralmente associado às idéias de dor e sofrimento. Tal
concepção se atualiza na evocação da figura do vampiro, que faz com que o sexo entre Madalena e
651
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Nelsinho seja perpasssado por imagens demoníacas. A associação da figura feminina ao vampiro
parece, ainda, ser a alusão a uma forma de reprimir a mascara a sexualidade e o prazer femininos: a
associação entre a mulher e o Mal, como vemos no fragmento do conto: ŖUm grito selvagem de
triunfo, beijava-o possessa, olho aberto. Ele apertou a pálpebra para não ver careta diabólica de
gozoŗ .
É a figura feminina como Malleus Maleficarum (Mal maléfico) que o catolicismo já
divulgou em certa feita como sendo a própria natureza feminina: a essência do Mal e da impureza
(representada aqui pela prostituta). Segundo Chauí (1984), a visão que a igreja católica tem da
mulher ainda hoje é relacionada ao Mal. De acordo com a teórica, a igreja concebe a mulher, sem
exceção, como mal maléfico porque ela é natureza não submetida à regra. No conto, estas
"qualificações" femininas podem ser percebidas em questões como: a aparente falta de instrução de
Madalena, sua voracidade em relação ao sexo, e, sobretudo, no seu desconhecimento a respeito das
interdições (que atormentam Nelsinho) e do próprio ritual de sacrifício que se desenrola. A
agressividade sexual de Madalena, também evocadora da visão que se tem da mulher, pode ser
percebida em fragmentos como:

Desceu a cabeça. Sempre a beijar e, na altura do umbigo, rincho obsceno. Aos beijos tornou
ao pescoço, logo arrepiou caminho e, no umbigo, outro relincho de satisfação.

O percurso que Nelsinho desenha ao longo de O Vampiro de Curitiba é revelador de uma


busca do sujeito no intento de significar algo: da figura patética e íntima de funcionário público
provinciano, obcecado por sexo, a personagem se investe da tragicidade do mito infernal do
vampiro. Seu parentesco com ele é a seguinte similitude: o vampiro precisa de sangue como
Nelsinho precisa de satisfação sexual. Porém, vampiro desdentado, o conde Nelsinho se caracteriza
pelo patético: a sedução sugerida pelo mito não faz parte de seu arsenal - é mais vítima que algoz,
mais vampirizado que vampiro. No conto "A noite da paixão", essa relação se agudiza, uma vez que
Nelsinho troca o manto do vampiro pelo "manto sagrado", se investindo agora da tragicidade da
figura de Jesus. Porém, o Nelsinho/Cristo continua sendo vítima a ser imolada. De volta à condição,
entregue de novo às ruas de Curitiba Trevisaniana e à horda de "bichos da noite" de que faz parte,
Nelsinho traduz ainda mais intensamente impossibilidade, insulamento e insignificância.

Referências bibliográficas

ADORNO, T. W. ŖPosição do narrador no romance contemporâneoŗ . IN: Os Pensadores. (trad.


Modesto Carone). São Paulo: Abril Cultural, 1980.
AUSUBEL, Nathan. Biblioteca da Cultura Judaica – pensamento judaico. (Trad. Eva Schechtman
Jurklewicz). Rio de Janeiro: Editora Tradição S/A, 1967.
BATAILLE, Georges. O Erotismo. (Trad. Antonio Carlos Viana). Porto Alegre: L&PM, 1987.
BOSI, Alfredo. ŖSituação e formas do conto brasileiro contemporâneoŗ . IN: O Conto Brasileiro
Contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1975.
652
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

BENJAMIN, W. ŖO narradorŗ . IN: Os Pensadores (Trad. Otília B. F. Arantes). São Paulo: Abril
Cultural, 1975.
BRAYNER, Sônia. O Labirinto do Espaço Romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
CARPEAUX, Otto Maria. ŖPretensão sem surpresaŗ . IN: Livros na Mesa – Estudos de Crítica. Rio
de Janeiro: Livraria São José, 1960.
CASTELLO, José. ŖO manto do vampiroŗ . IN: Inventário das Sombras. Rio de Janeiro: Record,
1999.
CHAUÍ, Marilena. Repressão Sexual: essa nossa (dês)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1988.
COMITTI, Leopoldo. ŖAnjo mutante Ŕ o espaço urbano na obra de Dalton Trevisanŗ . IN: Revista
Literatura e Sociedade. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada Ŕ FFLCH Ŕ
USP, 1992, 01.
GOLDMANN, Lucien. ŖA reificaçãoŗ . IN: Revista Civilização Brasileira. Ano III, n. 16, NOV-
DEZ, 1967.
PAES, José Paulo. A Aventura Literária – ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
TREVISAN, Dalton. O Vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 1994.
WALDMAN, Berta. Do Vampiro ao Cafajeste – uma leitura da obra de Dalton Trevisan. São
Paulo: Hucitec, 1989.

653
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

MULHERES CHORADEIRAS: UMA ANÁLISE COMPARADA DO CONTO DE FABIO


CASTRO COM O MITO DA MEDUSA E O CANTO DA SEREIA

Mônica do Corral Vieira (Universidade Federal do Pará)

Mulheres Choradeiras é um conto de ficção que mostra não só uma cultura, mas um etos
cultural latinoamericano específico e diferente dos etos culturais de nossos colonizadores e suas
literaturas. Etos pode ser definido como modo de ser, temperamento ou disposição interior, de
natureza emocional ou moral. É também o espírito que anima uma coletividade, instituição, etc. E,
segundo a antropologia sociológica, é aquilo que é característico e predominante nas atitudes e
sentimentos dos indivíduos de um povo, grupo ou comunidade, e que marca suas realizações ou
manifestações culturais. A seguir, explanarei sobre a formação deste etos dentro da realidade
latinoamericana.
Num momento em que estudar literatura leva em conta a importância da literatura ficcional
brasileira, um conto como este de Fábio Castro não pode, nem deve, cair no esquecimento ou
indiferença por parte dos estudiosos da literatura comparada. Para isto, é preciso esquadrinhar as
linhas, as entrelinhas, os ditos e os entreditos, compreender as artimanhas do verbo ficcional.
Atiçar, para instigar a curiosidade e a acuidade do olhar leitor e estudioso que invade a malha
poética de uma obra maior, excessivamente maior, porém com pouca divulgação e pouco
conhecimento por parte dos leitores brasileiros.
Aqui, vamos em busca do politexto, das vozes múltiplas cujas articulações nem sempre são
proferidas translucidamente. Para tanto, arma-se um aparato de Ŗdesmontagemŗ e Ŗ(re)montagemŗ ,
textual para conduzir o leitor à lucidez do texto e às verdades intrínsecas da excelência poética de
Fábio Castro.
Adentrando o âmbito de texto e contexto, podemos dizer que texto é um conjunto de
palavras; é uma obra escrita considerada, na sua redação, original e autêntica. É um manuscrito ou
impresso de qualquer texto, é o excerto de língua escrita ou falada −de qualquer extensão− que
constitui um todo unificado. Texto, pode ser definido ainda, como toda e qualquer expressão, ou
conjunto de expressões, que a escrita fixou.
Já o contexto é o encadeamento das idéias de um escrito. É aquilo que constitui o texto no
seu todo; é a composição. É o conjunto; o todo, a totalidade; é o argumento, o assunto. Numa
situação de comunicação, contexto são características extralingüísticas que determinam a produção
lingüística (a exemplo, o grau de formalidade ou de intimidade entre os falantes).
No que diz respeito às relações interculturais, interliterárias e interartísticas na América
Latina, começaremos a estudar o significado de cada uma destas palavras.

O prefixo inter- parte da determinação de uma posição intermediária; reciprocidade e


interação. É ainda um ato de entrescolher; entrechocar-se.

654
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Já cultura é o conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se
preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade. Nas
ciências humanas, opõe-se por vezes à idéia de natureza, ou de constituição biológica, e está
associada a uma capacidade de simbolização considerada própria da vida coletiva e que é a base das
interações sociais. É a parte ou o aspecto da vida coletiva, relacionados à produção e transmissão de
conhecimentos, à criação intelectual e artística, etc. Pode-se definir cultura também como o
processo ou estado de desenvolvimento social de um grupo/um povo/uma nação, que resulta do
aprimoramento de seus valores, instituições e criações. Cultura representa civilização e progresso.
É, ainda, definido como o conjunto complexo dos códigos e padrões que regulam a ação humana
individual e coletiva, tal como se desenvolvem em uma sociedade ou grupo específico, e que se
manifestam em praticamente todos os aspectos da vida (a exemplo, modos de sobrevivência,
normas de comportamento, crenças, instituições, valores espirituais, criações materiais, etc). O
Dicionário da Língua Portuguesa Aurélio (século XXI) diz sobre cultura:

Como conceito das ciências humanas, especialmente da antropologia, cultura pode ser
tomada abstratamente, como manifestação de um atributo geral da humanidade, ou, mais
concretamente, como patrimônio próprio e distintivo de um grupo ou sociedade específica.
E, segundo a Filosofia, é a categoria dialética de análise do processo pelo qual o homem,
por meio de sua atividade concreta (espiritual e material), ao mesmo tempo que modifica a
natureza, cria a si mesmo como sujeito social da história. (AURÉLIO, Dicionário da Língua
Portuguesa, século XXI)

Portanto, a cultura existe não apenas como forma de representação de hábitos de um dado
local, mas existe −também− para modificar o espaço ao seu redor, (re)criar a si mesmo e, ainda,
para ser um elemento de utilização do sujeito para fazer-se parte de sua própria história.
Há ainda outras características estudadas para o tema cultura, como: a) cultura adquirida,
defende que o indivíduo é resultado do meio cultural no qual está inserido e também é herdeiro do
conhecimento adquirido pelas gerações anteriores; b) cultura dinâmica e estável, defende que a
cultura dinâmica é composta por mudanças endógenas Ŕfeitas para adequar a realidade dentro de
uma comunidade− ou mudanças exñgenas Ŕnormalmente impostas por uma comunidade estrangeira
em relação àquele ambiente− e há também a cultura estável, que defende o respeito às tradições e
aos padrões de comportamento que são repassados aos descendentes; c) cultura seletiva, defende
que a cultura é um processo contínuo de reformulações de valores Ŕalguns permanecem, outros não;
d) cultura de lógica própria, defende que não devemos julgar a partir da ética/ótica da nossa
sociedade, a sociedade do outro; e) cultura universal e regional, defende que a cultura universal é a
base de qualquer agrupamento humano, pois, sem socialização o homem não existe. Já a cultura
regional são as funções sociais, os padrões e peculiaridades que mostram aspectos particulares de
cada região; e, finalmente, f) cultura que interfere no plano biológico, defende que todo o padrão
cultural do seu meio influencia no corpo e na mente do indivíduo.
Já o termo literário diz respeito, obviamente, à literatura ou a qualquer espécie de cultura
adquirida pelo estudo ou pela leitura. O termo artístico, por sua vez, trata de tudo que é relativo às

655
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

artes, especialmente às belas-artes. Levando-se em conta a significação destes termos, podemos


analisar mais atentamente a interação entre culturas, literaturas e os diversos tipos de arte e suas
representações. Assim, temos leituras explícitas Ŕou implícitas− dentro de outras leituras; temos um
texto fazendo referência a outro; uma cultura dialogando com outra.
Neste sentido, pode-se pensar, por exemplo, numa interação antropofágica dentro do conto
de Fábio Castro. Antropofagia aqui podendo ser analisada no seu aspecto mais grosseiro, que seria
o das mulheres carpideiras devorarem a carne do corpo físico das pessoas. E também um aspecto
mais refinado do termo antropofagia, que seria a leitura referente à possibilidade de Ŗingerirŗ
culturas, hábitos e costumes; comprovando assim, a interação entre textos e culturas.

Associaremos a primeira possibilidade de antropofagia ao ato de consumir uma parte, várias


partes ou a totalidade de um ser humano. A prática, conforme afirmam antropólogos e arqueólogos,
era encontrada em algumas comunidades ao redor do mundo e consistia em rituais
religiosos/mágicos de indivíduos que assim representavam seu respeito às entidades de seus rituais
e também manifestavam seu desejo de adquirir as características do ser devorado (passando para a
carne do devorador, toda a força, poder e inteligência do ser devorado). Tribos indígenas de
canibais acreditavam poder ingerir/adquirir as qualidades características aos seres que devoravam Ŕ
sendo estes animais ou humanos. Os humanos que eram devorados, comumente eram outros
indígenas que haviam sido vencidos em batalhas ou disputas com os mais diversos dos propósitos.

Com a vinda dos missionários jesuítas, esses costumes foram fortemente combatidos por
serem incompatíveis com os valores e padrões da sociedade européia. O costume de comer carne
humana foi proscrito e reprimido à força, causando danos às organizações sociais indígenas nas
quais a antropofagia desempenhava relevante função como processo de aquisição de prestígio e
ascensão social.

Já a antropofagia em seu efeito semiológico diz respeito à sua função poética: o de criar
formas de um mundo contido na obra e o jogo estabelecido entre ficção e realidade, isto é, o que
torna este Ŗestudo antropofágicoŗ tão interessante e polifônico. Devorar as pessoas, ingerir culturas,
apropriar-se de uma língua estrangeira, esse jogo contido tanto no conto quanto no curta está
relacionado às realidades. Com isto, podemos partir desses destas duas possibilidades e fruir sobre
outros textos em uma rede intertextual, dando claramente o vínculo com a realidade do saber e
conhecimento não delimitado apenas à tarefa dissertativa.

Seguindo nesta análise interliterária, um dos adjetivos que o Fabio Castro usou para definir
as mulheres choradeiras logo na 1a página foi: ŖEram verdadeiras gñrgonasŗ (CASTRO. 1984, p.
3). ŖGñrgonaŗ é definida pelo dicionário Aurélio como Ŗmulher repulsiva e perversaŗ , entretanto,
analisando um pouco mais além, é possível adentrar o campo da mitologia e mostrar como o
adjetivo escolhido por Castro passa a ser ainda mais bem empregado do que parece. Em primeiro
lugar, Ŗgñrgonasŗ remete a referências clássicas que seriam Esteno, Euríale e Medusa, tais quais as
três mulheres choradeiras do conto de Fábio.
656
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Em segundo lugar, um fato interessante sobre a Medusa é que ela e suas irmãs eram
monstros ctônicos, ou seja, a palavra grega Ŗctñnŗ refere-se tipicamente ao interior do solo mais do
que à superfície da terra (Gaya), ou à terra como território (Khora). Ela evoca, ao mesmo tempo, a
abundância e a sepultura.

Em terceiro lugar, as oferendas para as deusas ─ou monstros─ ctônicos eram normalmente
queimadas inteiras ou enterradas. Enterradas, como os próprios defuntos dos quais elas se
apossavam e se alimentavam. Em quarto lugar, seus domínios compreendiam as profundezas da
terra. Este Ŗprofundezas da terraŗ pode ser analisado de forma superficial ou não. Uma vez que se
pode inferir que as três mulheres poderiam estar envolvidas com alguma espécie de magia negra.

A feminista e estudiosa britânica de mitologia grega, Jane Ellen Harisson, considera que:

O desmembramento da Medusa num trio de irmãs seria um aspecto secundário do mito,


uma vez que a forma tripla não é primitiva, é apenas um exemplo de uma tendência geral
que faz de cada deusa uma trindade, o que nos deu as Horas, as Cáritas, as Semnas e
diversas outras tríades. Parece imediatamente óbvio que as górgonas não são realmente três,
mas sim uma + duas. As duas irmãs que não foram mortas são meros apêndices existentes
pelo costume; a górgona verdadeira é a Medusa. (HARRISON, Jane Ellen. Prolegomena to
the Study of Greek Religion, 1903)

Quando a Medusa é decapitada, ela não morre de fato, mas deixa a sua tríplice forma sair de
seu corpo material. Quando Perseu separou a cabeça da Medusa de seu corpo, duas criaturas
nasceram, o cavalo alado, Pégaso, e o gigante dourado, Crisaor. Inclusive, para Harisson, a potência
da Medusa somente se inicia quando a sua cabeça é cortada, pois ela é, em outras palavras, uma
máscara com um corpo acrescentado posteriormente a ela, toda a sua potência encontrava-se na
cabeça. Tanto que a base do Gorgoneion ─escudo de proteção de Atena, que afugenta o mal─ é a
cabeça da própria Medusa.

As górgonas, segundo a mitologia grega, eram temidas tanto por mortais quanto por
imortais. Esses seres monstruosos eram dotados de uma farta cabeleira composta de serpentes,
corpo coberto de escamas, braços de metal, presas pontiagudas, mãos e asas de ouro, olhos capazes
de petrificar quem os ousasse mirar, e habitavam o extremo ocidente no país das sombras, num
lugar jamais tocado por um único raio de sol (sendo a deusa ŖGayaŗ e a expressão Ŗnum lugar
jamais tocado por um único raio de solŗ argumentos a serem relacionados à questão do elemento
terra, o qual abordaremos mais tarde).
Eram em número de três, Esteno, Euríale e Medusa, sendo que as duas primeiras não
estavam sujeitas nem à velhice nem à morte; apenas Medusa. Seu sangue tinha propriedades
mágicas; o sangue que corria do lado esquerdo de seu pescoço era veneno mortal, e o do lado
direito, remédio capaz de ressuscitar os mortos (menção a Ŗressuscitarŗ literaturas em desuso para
outras culturas, que também falaremos mais tarde).

657
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

As mais antigas menções diretas à cabeça de Medusa estão na Ilíada (Il. 5.741, 8.349, etc.) e
na Odisséia (Od. 11.633). A maior parte das representações artísticas das górgonas tem relação
direta com as aventuras de Perseu, sendo ele o responsável por decapitar Medusa.
Medusa e sua cabeça estão entre os mais populares temas artísticos do Período Arcaico e,
em menor grau, dos períodos subsequentes do Império Romano. Devido à crença no poder
aterrorizante/paralisante da cabeça de Medusa, associado a uma cultura apotropaica (ou seja, cultura
que tem o hábito de fazer rituais mágicos e fórmulas encantatórias para evitar/anular malefícios) os
gregos costumavam representar sua cabeça em escudos, couraças, portões, muralhas e espelhos;
utilizando-a como símbolo protetor e capaz de repelir o mal.
Outro dado interessante é que pode se perceber de forma recorrente no texto de Castro a
expressão ŖAs mulheres choradeiras, vivendo, chorandoŗ e mesmo trechos como ŖDavam sempre
seu jeito de hipnotizar as pessoas com seu choro e dali tirar, ante o sono de todos, o seu almoçoŗ . O
choro, nesta análise, tem muito a ver com o fato da cultura latinoamericana ser vista como inferior e
menor, por isso, precisar implorar/chorar às culturas dominantes e superiores para sobreviver.
Também, é possível fazer a conexão com o choro/canto da profissão das mulheres choradeiras (as
quais precisavam literalmente chorar em velórios e enterros para, dali, tirar seu sustento financeiro
para viver) e o mito do Canto da Sereia. Aqui trataremos a questão da voz como objeto pulsional.
Sereia é um ser mitológico, que provavelmente teve origem de seu mito em relatos da
existência de animais com características próximas dos chamados sirênios ou sirenídeos, do latim
Sirenia. A exemplo de animais desta classificação temos os dungongos e os manatis, mais
popularmente conhecidos como Ŗpeixe-boiŗ.
As sereias são demônios marinhos, metade mulheres, metade pássaros. Habitantes de uma
ilha do Mediterrâneo localizada ao longo da costa meridional da Itália, na altura da Ilha de Sorrento,
as sereias atraíam com sua música os marinheiros que passavam pela vizinhança. Assim, os navios
se aproximavam perigosamente das costas rochosas de sua ilha e afundavam. Em seguida, as sereias
devoravam os corpos dos marinheiros afogados.
Elas são mencionadas, pela primeira vez, por Homero no canto XII (versos 1 a 200) da
Odisséia. O herói homérico de Odisséia −Ulisses− desenvolveu uma solução simples, porém eficaz,
ordenou que sua tripulação tampasse os ouvidos com cera e amarrassem-no ao mastro, não podendo
soltá-lo de forma alguma, ainda que ele gritasse para que assim o fizessem. A idéia de Ulisses fez
com que ele e sua tripulação sobrevivessem graças a uma atitude tomada a partir do reconhecimento
de sua própria fraqueza perante o ímpeto de se atirar ao mar em direção às sereias. Abaixo, temos
um trecho da Odisséia que fala sobre as sereias:

Tu encontrarás as sereias que seduzem todos os homens que delas se aproximam; mas todo
aquele que, por imprudência, ouve seu canto está perdido, de modo que sua esposa e filhos
jamais presenciarão seu retorno (…) Escuta-o, se quiseres, mas faça que teus companheiros
te amarrem com cordas, no convés do navio, pelos pés e mãos, antes que escutes a voz
voluptuosa das sereias (HOMERO, Odisséia, canto XII, 1998)

658
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Contrariamente ao que se pode ler a respeito, o canto das sereias não é agradável. Há uma
dimensão de tensão, e logo de gozo, importante que podemos compreender se nos reportarmos à
origem da Ŗcriaçãoŗ das sereias. Ovídio (OVIDE, 1966, canto V, verso 555) narra que elas nem
sempre tiveram asas de pássaros. Elas eram inicialmente jovens companheiras de Perséfone; logo
apñs seu rapto por Hades −o deus dos Infernos− elas pediram aos deuses o poder de voar, a fim de
que pudessem procurar qualquer lugar para habitar. O nascimento das sereias se origina então de
um rapto que causará um apelo (choro) por parte das sereias, as deuses. Portanto, antes de cantar, as
sereias choram e gritam seu desespero.
A voz da sereia é o desejo do outro, é a voz de gozo que convida a reviver o arcaico, a
reviver um tempo mítico em que o desejo ainda não era tolido pelas normas necessárias para viver
em sociedade. É neste desejo do outro que vem a busca do sujeito e a perda ao utilizar seu próprio
Ŗtropismoŗ (reação de aproximação ou afastamento de um dado organismo em relação à fonte de
um estímulo) de gozo, que vem a ser o Ŗdesejo de não desejarŗ , como afirma Piera Aulagnier.
Algumas das sereias citadas na literatura clássica são Pisinoe (Controladora de Mentes),
Thelxiepia (Cantora que Enfeitiça), Ligeia (Doce Sonoridade), Aglaope, Leucosia e Parténope. O
mito da Iara, na cultura brasileira, é baseado no modelo destas sereias presentes nos contos
homéricos.
As gñrgonas e as sereias, ou −no caso deste estudo− as três mulheres choradeiras,
representam a latinoamérica em seus hábitos culturais e sua realidade histórica de literatura. Nós
nos utilizamos do outro; da fonte, pelo simples fato de que o outro nos é necessário, porém apenas o
fazemos para sobreviver.
Faz-se necessário que estejamos sempre preparados (como que em um constante estado de
alerta, porém que se passa de modo muito natural) para a passagem de uma arte à outra, de um
estado a outro, de uma dada literatura, ou qualquer outra manifestação artística estando ligada Ŕ
explícita ou implicitamente− a outras literaturas e mesmo a outras artes. É imprescindível que
criemos um estado de transformação e imaginação para a nossa visão pessoal de mundo e das artes;
é imprescindível oferendar-se à arte. Apreciar com a coragem de fazer parte do desconhecido, à tela
ainda em branco; é preciso tornar-se, liberar a vida onde ela é prisioneira, ou simplesmente abraçar
este combate incerto em busca de refazer caminhos, entrando não somente na nossa paisagem, mas
também na paisagem proposta pelos outros.
O fruto de toda essa necessidade é a linguagem. A linguagem é o instrumento que, com seu
rigor, desorganiza um outro rigor, o das verdades pensadas como irremovíveis. Linguagem é a
mesma coisa que necessidade.
Atualmente, decreta-se a morte da imaginação, como se imaginar fosse o mesmo que impor
uma forma de expressão à realidade. O ato de imaginar causa medo, porque é em si mesmo um ato
de liberdade, de transgressão e de cidadania Ŕo que aos olhos dos poderosos que nos querem
simples e ignorantes, é um ato bastante perigoso. Ora, a literatura e o cinema, e todas as outras
manifestações artísticas, estão antes do lado incompleto, em via de fazer-se, em busca do momento
de se colocar, frente a frente, o imaginário dos criadores e o imaginário dos leitores/espectadores.
659
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Portanto, o nosso trabalho, enquanto leitores/espectadores, é justamente o de imaginar, criar,


representar e ressignificar ao ponto de encontrar uma palavra/imagem/som tal que já não seja
possível distinguir-se a arte em relação à vida, e ao imaginário dos seres humanos. Tudo é um só. A
vida é a arte, e a arte, por sua vez, é a vida.

Referências bibliográficas
CASTRO, Fábio. Terra dos Cabeçudos. Pará: Lugráfica, 1984.
HARRISON, Jane Ellen. Prolegomena to the Study of Greek Religion. Inglaterra, 1903.

AURÉLIO, Dicionário da Língua Portuguesa. Século XXI. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
1999.

HOMERO, Odisséia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

660
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ROMANCE-FOLHETIM E O ROMANTISMO/REALISMO PORTUGUÊS: ENTRE A


SOBREVIVÊNCIA E A ARTE

Patrícia Maravalha (UFRR)


Cátia Wankler (UFRR)

A eclosão do Romantismo em plena Revolução Francesa (início do século XIX) foi, sem
dúvida, a grande responsável pelo surgimento de um novo público Ŕ a burguesia em ascensão Ŕ e
por isso, teve que dar um formato inovador às artes Ŕ plásticas, dramatúrgicas, e literárias Ŕ que
atendesse às necessidades desse conjunto de consumidores ávidos por usufruir das coisas que a
vida, até então, havia lhes privado.
No primeiro momento, os burgueses queriam ter, ver e sentir suas vidas retratadas nas
pinturas, nos palcos e nos textos escritos, como um prêmio pela valorização de seus feitos e
conquistas. Assim, os artistas e escritores da época compunham suas obras para eles Ŕ era a
garantia de status profissional, e obviamente, de sobrevivência financeira. O período romântico foi
o tempo dos herois, dos homens fortes, da beleza, do maniqueísmo, das mulheres puras e
inatingíveis, dos amores impossíveis, das lutas sempre ganhas pelos mais fracos e bons, pelo fim
marcado com a morte redentora ou pelos casamentos felizes. Era o tempo da ficção.
Porém, na segunda metade do século XIX, os adventos científicos, juntamente com
darwinismo, positivismo e determinismo puseram em Ŗxequeŗ essa ficção romântica: o mundo
agora tinha necessidade de explicar tudo através da razão. Não cabiam mais sentimentalismos
inconsistentes, havia a iminência de estudos e relatos que comprovassem os feitos e conquistas, o
mundo passou a retratar tudo de maneira neutra, natural, real.
Surge então o período do Realismo/Naturalismo, onde homens, mulheres, suas vidas, suas
histñrias, seus cotidianos, eram Ŗanalisadosŗ , Ŗdissecadosŗ, Ŗexpostosŗ. Não eram mais vistos sob
seus méritos, sentimentos ou qualidades, mas como objetos de estudos científicos e laboratoriais.
O gênero Romance-Folhetim supriu as necessidades de ambos Ŕ Romantismo e
Realismo/Naturalismo Ŕ no que diz respeito à forma de chegar até o público leitor: primeiro em
capítulos dos jornais e depois com a publicação do livro. Outras características do gênero também
foram muito úteis, por isso, preservadas pelos mais diversos autores, nas mais variadas histórias.
Assim, nosso objetivo específico é, além de analisar esse conjunto de especificidades do
gênero Romance-Folhetim, apontar que enquanto o formato podia ser o mesmo em qualquer nação
e período literário, os conteúdos - social, cultural e político - foram diferentes e muito peculiares,
pois retratavam a identidade, a singularidade de cada povo, dando voz e corpo as suas buscas,
conquistas, alegrias, derrotas e angústias, de acordo com a sua História, tradições e sentimentos
coletivos.

Le Roman-Feuilleton: origem, eclosão e características

661
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Entre 1827 e 1830 houve a impetuosa invasão do teatro romântico na história da dramaturgia
francesa. Aparentemente repentina, essa irrupção era o fruto da crise desde muito aberta no palco
francês, e isso porque, desde o século XVIII, a tragédia desfrutava apenas de prestígio acadêmico,
pois era um gênero que entediava os Ŗespíritos livresŗ como os escritores e filñsofos do Iluminismo.
Para o grande público, assistir a uma representação trágica era apenas uma maneira, dentre muitas
outras, de satisfazer o código mundano, de fazer parte daquilo que era considerado correto.
A Revolução Francesa transformou a evolução em completa reviravolta. O novo movimento
que se formava Ŕ o Romantismo Ŕ ganhou proporções revolucionárias. Antes de 1789, ainda existia
um grupo de Ŗconhecedoresŗ , uma Ŗfalange de homens de gostoŗ conforme palavras de Grimod de
La Reynière (LAROUSSE, p. 478) que constituía um público homogêneo pela comunidade de
preconceitos, permanecendo absolutamente fiel ao velho código dos valores dramáticos. Os
Ŗconhecedoresŗ eram a classe dominante (nobreza), e a Revolução os havia arruinado. Grimod, um
poderoso crítico da época, que era um deles, dizia Ŗ(...) sob o Império, alguns dos que escaparam
desprezavam o novo público, considerando-os um Řajuntamento heterñclito e fétidoř, que ficava
assombrado com a sublimidade de Corneille e bocejava com os versos de Racineŗ (LAROUSSE, p.
478).
Os burgueses compunham o novo público heteróclito e fétido. Eles eram os criados
enriquecidos, fornecedores do exército, beneficiários da agiotagem, especuladores, comerciantes,
que a Revolução tinha promovido a altos cargos. Agora, eles eram a classe dominante, estavam no
poder, e queriam cumprir e viver as mesmas coisas que os antigos poderosos viviam.
Maria João Brilhante (2003) explica que a tradição francesa vinha sofrendo uma série de
mudanças desde o fim do século XVIII para atender as necessidades da sociedade da época e que
Ŗ(...) o século XIX representou a tragédia clássica, mas converteu o trágico em patético e criou um
gênero para domesticar o terror e a piedade (...)ŗ referindo-se ao melodrama.
Na verdade, a nova sociedade burguesa ia ao Teatro Francês para assistir aos clássicos muito
mais por obrigação do que por gosto. O espetáculo que realmente apreciavam era o do Bulevar,
onde desabrochava o melodrama. Esses espetáculos condimentados eram postos diretamente sob os
olhos de espectadores para quem a vida muitas vezes tinha sido um romance de aventuras, com
desgraças, conquistas, fome, lutas, campos de batalha, prisões e fortes emoções.
Os movimentos gerados pelo Romantismo caminhavam a passos largos: o público
continuava indo ao teatro e o que havia acontecido em relação ao gênero teatral, afastando os
valores absolutistas e clássicos, também ocorria na literatura. Segundo Samira Youssef Campedelli:

O Romantismo está relacionado com o surgimento de um novo público leitor. Este, de


origem burguesa, formou seu gosto literário na leitura de jornais vendidos a preços
acessíveis. Além disso, a elevação do poder aquisitivo da classe média e um sistema de
impressão de livros em escala industrial propiciaram o alargamento do mercado
consumidor. (CAMPEDELLI, 1997, p.11)

Isso aconteceu porque, em 1836, Émile Girardin, homem de negócios astuto, jornalista e
político francês, escritor de pouca expressão e diretor do jornal La Prèsse, o primeiro jornal político

662
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

de sucesso comercial, graças à publicidade e aos anúncios, teve uma ideia brilhante: Ŗ(...) consiste
em fixar nele a assinatura em quarenta francos por ano, isto é, metade da taxa habitual, e projetar
cobrir os prejuízos com o rendimento dos anúncios e reclames.ŗ (HAUSER apud HAICKEL, 2006,
p. 14). Sua estratégia foi perfeita, em um ano, a tiragem do jornal cresceu aproximadamente 300% -
de 70 mil para 200 mil exemplares.

Todavia, existia desde o começo do século, o feuilleton, ou rodapé, tradicionalmente de tom


e assuntos mais leves que o resto do jornal. Destinado inicialmente a assuntos dramáticos,
críticos, porém voltados para o entretenimento, locupletado pela rubrica Ŗvariedadesŗ, porta
de entrada da ficção literária, na forma de contos e novelas curtas. (HAICKEL, 2006, p. 14)

Grande visionário que era, percebeu o gosto do povo e teve outra ideia, a de pedir que
alguns dramaturgos publicassem suas peças (que explodiam nos teatros) em capítulos nos rodapés
das páginas de seu jornal.
O Lazarillo de Tormes (1836), segundo Marlyse Meyer, inaugura a seção: ŖEstá criado o
mágico chamariz „continua no próximo número‟ e o Řfeuilleton-romanř.ŗ (MEYER apud
HAICKEL, 2006, p.14). A publicação em série resultou em ótimos proventos para o Diretor de La
Prèsse, e, no final do ano, Girardin encomendou a Balzac uma novela para ser publicada no rodapé
de seu jornal.
É importante ressaltar, que o primeiro nome que esse gênero recebeu foi feuilleton-roman ou
romance de rodapé. Entretanto, Marlyse Meyer (apud HAICKEL, 2006) explica que a ideia
fomentada por Girardin não previa tamanha aceitação, e para adequar as publicações às expectativas
do grande público de leitores, foram necessárias adequações.
Segundo Haickel (2006), ―Roman-Feuilleton‖, considerado como Ŗfenômeno literárioŗ , vai
alterar completamente toda a produção literária, e, em consequência da industrialização, o novo
gênero literário, será exportado a vapor e pelos trilhos dos trens para os jornais do mundo todo.
O ―Roman-Feuilleton‖, que agora já pode ser traduzido como Romance-Folhetim, assumiu
sua forma definitiva em 1840, quando Eugène Sue e Alexandre Dumas passaram a ser,
definitivamente, os mestres do gênero, sendo o primeiro representante da corrente realista, e o
segundo da corrente aventureira (ou histórica). Ele recebeu muitas críticas, chegando a ser
considerado literatura menor. Por outro lado, foi o grande responsável pela propagação da leitura,
pela formação do público leitor, e especialmente pela sobrevivência da obra, que após ter sido
concluída nos jornais, era publicada em forma de livros, indo parar na estante dos novos (e
apaixonados) leitores.

O Romance-Folhetim em Portugal

Os melodramas que agora imperavam no Teatro Francês e tinham como mestres Victor
Hugo, Honoré Balzac, Alexandre Dumas, Eugène Sue e René-Charles Guilbert de Pixérécourt (a
quem Nordier Ŕ um grande crítico francês - chamava de Ŗmeu adorável Shakespeareŗ ),

663
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

atravessaram os mares, viajaram pelas serras, foram vendidos e traduzidos em várias partes do
globo, e Ŗinvadiramŗ Por tugal (SARAIVA e LOPES, s.d.).
O mesmo ocorreu na Literatura: os mestres franceses Ŕ destacando-se Dumas e Sue -
estavam em praticamente todos os rodapés dos jornais portugueses. Era a época das traduções e o
novo público leitor queria os romances de aventuras. Ernesto Rodrigues, em seu artigo ―Alexandre,
o Conquistador‖ 1, descreve pormenorizadamente as publicações dos folhetins nos jornais
portugueses, como era a recepção e expectativa dos leitores, assim como as críticas (negativas e
positivas) que recebiam de escritores como Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Eça de
Queiroz.

Almeida Garret

Garrett sempre se opôs aos franceses e deixou isso bem marcado em ―Viagens na minha
terra‖, como veremos adiante. Para Campedelli (1997, p.22)

Iniciador do romantismo português foi um dos mais radicais componentes da primeira


geração romântica. Suas produções literárias revelaram na forma e no conteúdo, as
contradições ideológicas em que se debateu: era de personalidade conservadora e, ao
mesmo tempo, um defensor das ideias liberais Ŕ pelas quais foi exilado duas vezes.

Essa oposição ocorria porque o autor tencionava quebrar, romper com a literatura francesa
que considerava fútil, vazia e inadequada aos portugueses. Garrett cita várias vezes Sue, Dumas e
Hugo, e logo no capítulo III, faz seu primeiro ataque aos folhetins:

Pois é assim, e explica-se Ŕ É a literatura, que é uma hipócrita; tem religião nos versos,
caridade nos romances, fé nos artigos de jornal Ŕ como os que dão esmolas para pôr no
Diário; que amparam órfãs na Gazeta, e sustentam viúvas nos cartazes dos teatros.
(GARRETT, 2008, p. 26)

No capítulo V, ele continua. Com ironia, dá uma receita de como Ŗfazerŗ um romance,
sugerindo que as obras francesas são todas iguais, plagiadas de outras histórias, têm os mesmos
personagens Ŕ apenas com roupagem diferente Ŕ e situações que não tem muito nexo, importância
ou razão:

Ora bem: vai-se os figurinos franceses de Dumas, de Eug. Sue, de Vitor Hugo, e recorta a
gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da
moda, verde, pardo, azul Ŕ como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e scrapbooks,
forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais ou menos
disparatados. Depois vai-se as crônicas, tiram-se uns poucos nomes e palavrões velhos;
com os nomes crismam-se os figurões; com os palavrões iluminam-se (estilo de pintor
pintamo-nos) Ŕ E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original. (op. cit., p. 35)

Ele vai mostrando ao longo da narrativa, uma necessidade de Portugal criar seu próprio
estilo, mas se utiliza do mesmo formato folhetinesco para compor. Primeiro, porque sua obra é

1
Publicado em 2003, no site da Biblioteca Nacional Portuguesa, em comemoração aos 200 anos do Romance de
Aventuras em Portugal. In: http://purl.pt/301/1/dumas-estudos/e-rodrigues-1.html - último acesso em 02/07/2010
664
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

publicada em capítulos diários na Revista Universal Lisbonense em 1843 (apesar de não ter
completado a história nesse período) para ser lançada em livro em 1846. Depois, porque ele utiliza
as mesmas ferramentas Ŕ suspense, variedade, simplificação de linguagem e personagens, e termina
com uma história de amor. A diferença, que podemos atribuir à sua genialidade literária, está no
fato de ele fazer uso do mesmo formato que tanto criticou, e nele imprimir uma marca
genuinamente Portuguesa.
Almeida Garrett problematizou Portugal num Romance-Folhetim. Ele recorreu à memória e
à história para trazer a tona toda angústia portuguesa pelos problemas ocorridos no passado Ŕ o
esfacelamento e decadência da Pátria, e ao mesmo tempo e no mesmo espaço em que demonstrava
a dor e as derrotas, ele apontou a saudade, um tipo de melancolia feliz, que só o sofrido e
desgastado povo português soube (e sabe) sentir e valorizar. E assim, repensou e retratou todo
processo de (re) construção da identidade portuguesa.
Como se tratava de um romance-folhetim foi preciso inserir uma história de amor, mas que
história... Uma narrativa cheia de peripécias, cujos personagens são alegorias da História de
Portugal. Conforme Saraiva e Lopes, Viagens na minha terra foi a obra Ŗmais acabadaŗ de
Garrett, Ŗque adaptando-se à nova teoria literária [folhetim] esforçou-se por nacionalizar a teoria do
drama românticoŗ (SARAIVA e LOPES, s.d., p. 746)

Júlio Dinis

Júlio Dinis acreditava que a literatura tinha um importante papel. Segundo ele

Há livros que são monumentos, e livros que são instrumentos. Os primeiros levantam-se a
perpetuar a memória de uma literatura, ainda que se extinga a nacionalidade a que
pertencia. (...) os livros instrumentos, são pelo contrário, para andarem nas mãos de todos,
para uso quotidiano, para educarem, civilizarem e doutrinarem as massas. (DINIS apud
LIBERTO, 1974, p. 217)

Isso nos mostra que, diferente de Garrett, o autor não se importava com o formato
massificador do folhetim, pelo contrário, era partidário dele. Tanto, que As Pupilas do Senhor
Reitor sofreram um processo de criação inverso, sendo escrito primeiro em sua totalidade e
posteriormente fragmentado em capítulos para ser publicado no Jornal do Porto em 1866. Aí então,
seguiu o mesmo rumo do gênero, sendo publicado na forma definitiva de romance em 1867.
O enredo traz a história da família Dornas Ŕ José, Pedro e Daniel Ŕ pai e filhos
respectivamente; Margarida e Clara Ŕ as pupilas do Reitor Ŕ do Dr. João Semana, José da Esquina,
Joana e outros, que vivem e apresentam as tradições da cultura rural portuguesa, os contrastes entre
o novo e o velho, a moralidade familiar e a influência fortíssima da Igreja na vida cotidiana das
pessoas.
As tradições podem ser vistas no decorrer de praticamente todo livro, mas em especial no
episódio da esfolheada:

Julgo que pequeno número dos leitores, que não tenham assistido uma esfolheada na aldeia
ou que, pelo menos de tradição, não saibam a índole folgazã e traquinas deste gênero de
665
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

trabalho, no qual ninguém procura eximir-se, pois antes espontaneamente correm de toda a
parte a oferecer-lhe abraços. É que não há outros serões mais divertidos também. (...)
Aquelas liberdades todas são permitidas, ordenadas até, pelo código das esfolheadas. Cada
espiga vermelha, cada espiga de milho-rei Ŕ como por lá lhe chamam Ŕ é a sentença
promulgada contra o feliz, a cujas mãos ela não chegou. (DINIS, 1998, p. 161)

Os conflitos entre o novo e o velho, de que tratamos acima, são as relações que acontecem,
por exemplo, entre João Semana, o médico octogenário que goza de saúde e lucidez, percorre
cavalgando grandes distâncias para atender seus pacientes, a quem conhece intimamente e é
recebedor de total respeito, e Daniel, o jovem e inexperiente Ŗdoutorŗ que acaba de se formar na
Capital, que certamente tem conhecimentos atuais e mais complexos da medicina, mas não
consegue ganhar a confiança popular. Vimos nessa relação uma crítica ao novo, e uma
supervalorização do que é antigo, tradicional, algo que demonstra claramente traços da identidade
portuguesa.

A conversa de João Semana com Daniel, não entendida, e por isso admirada pelos
circunstantes, versou sobre medicina. As exaltadas crenças teóricas de Daniel, e a casuística
inflexível e fria do velho prático achavam-se em conflito. João Semana era cético em
relação à ciência moderna. Quando Daniel lhe citava um autor em voga, ou se referia a uma
descoberta notável, ou a um medicamento novo, João Semana encolhia os ombros,
sorrindo.
- Tudo isso é muito bonito Ŕ dizia ele com poucas contemplações para com a impaciência
de seu jovem colega - mas não me serve para nada. Era o que me faltava se eu, que mal
tenho tempo para dormir, me punha agora a ler essas coisas todas. Que nomes! Que
moléstias que eu nunca vi, em sessenta anos de prática! (...). (DINIS, 1998, p. 83)

Sobre a moralidade familiar e a influência da Igreja, escolhemos um trecho que os


demonstra claramente:

- Mas veja lá, Daniel! Ŕ continuou o padre - veja você este seu irmão. Que homem da casa
se está aqui preparando! Esquecido a taramelar e o trabalho entregue a criados, que quando
eu passei, bem pouco se cansavam com ele. Tudo vai ao deus-dará nesta casa, depois que o
maldito vício da caça virou a cabeça a este homem! Olha que um chefe de família, Pedro,
não é responsável só por si, mas também por toda sua gente Ŕ parentes e criados. Ŕ Ele é
que deve dar o exemplo. E eu, para te dizer a verdade, não gostei nada de ver aquela doida
da Maria, lá embaixo, com os meliantes dos teus criados, que só sabem tanger violas e
dançar, como agora ainda faziam. Eu, apesar da coisa não ser comigo, que não sou dono da
casa, sempre lhes fui ralhando, para de todo não perder tempo. Agora tu... (Op. cit., p. 147)

Além dos temas até aqui abordados, observamos na obra de Dinis, características
folhetinescas: capítulos curtos e dinâmicos, novas situações sendo misturadas às velhas, linguagem
simples, personagens que vão e voltam, a distensão e o suspense, e ainda, as situações e
personagens que não podem faltar: a mocinha ingênua e humilhada, a mulher esperta e sensual, o
homem forte, o conquistador, os personagens secundários que participam de outras tramas, as brigas
e conflitos solucionados, os reencontros, e o final feliz com o casamento.

Camilo Castelo Branco


Segundo o prefácio escrito por Célia Passoni, A queda dum anjo foi a quadragésima
primeira obra e um dos mais populares romances de Camilo Castelo Branco. Publicado em folhetim
em 1866, foi várias vezes encenado, justamente pelo seu caráter satírico e caricatural.

666
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Observando sua forma estrutural, verificamos que tem todas as características do gênero
folhetim, contendo suspense na medida certa, personagens que ocupam toda a trama, além de títulos
de capítulos que por si só, despertam a curiosidade no leitor.
O enredo é muito interessante: conta a história de Calisto Elói de Silos e Benevides de
Barbuda, morgado de Agra de Freimas, um homem de quarenta e quatro anos, cheio de virtudes,
que vivia modestamente (apesar da riqueza que possuía), imerso em seus livros antigos e ao lado de
sua avarenta esposa, a prima Teodora de Figueiroa. Além de retratar as tradições e moralidades da
família do interior de Portugal, a identidade portuguesa e memórias históricas, a trama descreve a
forma como Calisto Elói é corrompido quando entra para a política, muda-se para a capital e perde
sua identidade portuguesa, cometendo delitos morais jamais imaginados anteriormente.
Calisto Elói é um heroi às avessas, pois inicia a história como um homem de bem, honesto,
tradicional, leitor de clássicos portugueses, crítico feroz da língua portuguesa e das influências
europeias no cotidiano português, em especial das francesas, e termina totalmente mudado,
inclusive indo para França, separando-se da esposa, modernizando seu visual, e passando a viver
com o luxo que antes refutava. Ainda assim, tem um final feliz, casando-se com uma mulher linda e
sensual, a brasileira Ifigênia de Teive Ponce de Leão, com quem teve dois filhos.
Verificamos nesta obra, muitas alegorias, como por exemplo, o próprio Calisto Elói do
início da narrativa, representando Portugal tradicional, que quando se modernizou e sofreu as
influências Ŗeuropeiasŗ , caiu e degradou, deixando de ser aquela pátria virtuosa de outrora. Tal
alegoria pode ser percebida no seguinte trecho:

- Então que é isso Teodora?! Ŕ perguntou brandamente Calisto, pondo-lhe as pontas dos
dedos na face. Ergueu-se ela arrebatada, e pendurou-se-lhe ao pescoço, exclamando:
- Meu Calisto, meu Calisto, cuidei que não te tornava a enxergar!
- És tola, prima! Ŕ disse ele, assas incomodado com o apertão do abraço. Ŕ Pois eu não
havia de tornar?! Quem te meteu essa na cabeça?
Teodora entrou a encarar no homem muito fito, e rompeu num choro desfeito.
- Que tens tu? Ŕ perguntou ele.
- Como tu estás mudado! Não me pareces meu homem!... Corta essas barbas; por alma de
tua mãe, corta-me essas barbas, que pareces o diabo, Deus me perdoe!... (CASTELO
BRANCO, 1998, p. 118)

Mais uma vez, o gênero Romance-Folhetim é a forma que acolhe a expressão literária do
autor.

Eça de Queiroz

Eça de Queiroz iniciou sua longa e proficiente trajetória literária nos moldes folhetinescos.
Conforme Saraiva e Lopes

Só quase no fim do curso [de Direito] se estreia como escritor, em folhetins intitulados
Notas Marginais, na Gazeta de Portugal, que pela sua novidade foram estranhados até ao
riso, porque nosso público, mesmo que selecto, não estava preparado para o novo estilo
literário que o autor, fantasista e familiarizado com a literatura recente, pela primeira vez
cultivava em Portugal. (SARAIVA e LOPES, s.d., p. 927)

667
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Apesar disso, ―Notas Marginais‖ só foi publicado postumamente, já que primeiro exerceu a
advocacia e outras funções políticas, para depois se dedicar à literatura. Antes de Os Maias (que
estava pronto desde 1880, mas só foi publicado em folhetins em 1888), o autor publicou diversas
obras folhetinescas, entre elas O Mistério da Estrada de Sintra, O crime do padre Amaro, O
primo Basílio, O Mandarim e A Relíquia. Eça já se distanciava dos ideais românticos, sendo por
isso considerado o mais importante ficcionista do Realismo Português.
Os Maias traz a história de três gerações da família Maia: Afonso, Pedro e Carlos da Maia e
critica a alta sociedade portuguesa da época, envolvendo questões economicas, políticas, morais e
literárias. O enredo traz ainda uma situação dramática: o incesto praticado por Carlos e Maria
Eduarda, que desconheciam que eram irmãos, e vivem uma tórrida história de amor, que, diferente
dos folhetins convencionais, não tem um final feliz. Para muitos críticos, é a obra mais perfeita e
bem escrita da Literatura Portuguesa desde Camões.
A identidade nacional, foco norteador deste artigo, é apresentada nřOs Maias de forma
bastante diferente em relação às obras anteriormente comentadas, já que tanto Afonso, como Carlos
da Maia, ambos portugueses, conformam-se com ela. Aqui, o português é identificado como um
sujeito ultrapassado, atrasado em relação aos franceses e ingleses, fatos que são muito marcados ao
longo de toda narrativa. Um trecho que corrobora nosso raciocínio acontece logo no início, em
Santa Olávia, quando Afonso da Maia recebe seu amigo e administrador Vilaça, que trava o
seguinte diálogo com Teixeira, empregado da quinta, sobre a educação inglesa de Carlos:

- Então nosso Carlinhos não gosta de esperar, hein? Já sabe, é ele quem governa... Mimos e
mais mimos, naturalmente...
Mas o Teixeira, muito grave, muito sério, desiludiu o senhor administrador. Mimos e mais
mimos, dizia a S.Sa.? Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma barra de ferro! Se
ele fosse contar ao senhor Vilaça! Não tinha a criança 5 anos já dormia num quarto só, sem
lamparina; e todas as manhãs, zás, pra dentro de uma tina de água fria, as vezes à gear lá
fora... E outras barbaridades. Se não se soubesse a paixão do avô pela criança, havia de se
dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, ele, Teixeira, chegara a pensá-lo... Mas não,
parece que era sistema inglês! (...)
- Sabe S.Sa., depois que veio o mestre inglês, o que lhe ensinou? A remar! A remar, Senhor
Vilaça, como uma barqueiro! Sem contar o trapézio e as habilidades de palhaço; eu nisso
nem gosto de falar... Que sou o primeiro à dizê-lo: o Brown é boa pessoa, calado, asseado,
excelente músico. Mas é o que eu tenho repetido para a Gertrudes: pode ser muito bom para
inglês, não é para ensinar um fidalgo português... (QUEIROZ, 2008, p. 55-56)

Ainda sobre a desconstrução do ideal identitário português, temos o personagem do próprio


Afonso da Maia, que apesar de ter nascido num berço conservador, casado com Maria Eduarda da
Runa, também de uma tradicional família portuguesa, sempre foi contrário aos preceitos
portugueses tradicionais, especialmente os ligados à religião e educação. Temos ainda o
Euzébiozinho, personagem tipicamente português, educado conforme as regras morais e religiosas
da tradição que desde criança é descrito como fraco, trapalhão, menino e homem sem vigor. Ega,
também português, apresenta uma identidade contraditória, ora romântico e sentimental, ora
revolucionário, mas sempre contra as normas portuguesas.

668
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A maioria das situações sociais que ocorrem, apresentam o português como um sujeito
incompleto, que não sabe executar tarefas e solucionar problemas, como no episódio da corrida de
cavalos, que em todos os outros países era ―chic‖ mas em Portugal tem um final ridículo e
desastrado:

Nesse momento, em redor, romperam exclamações de troça; era um cavalo solitário que
chegava, num galope pacato, passava a meta a sem se apressar, como se decesse uma
avenida do Campo Grande numa tarde de domingo. E em redor perguntava-se que corrida
era aquela de um cavalo só, quando ao longe, como saindod da claridade loura do sol que
descia sobre o rio, apareceu uma pileca branca, empurrando-se, arquejando, num esforço
doloroso, sob as chicotadas atarantadas de um jóquei roxo e preto. Quando ela chegou,
enfim, já outro gentleman-rider voltava da meta, a passo, pachorratamente, e estava
conversando com os amigos, encostado à corda da pista. Todo mundo ria. E a corrida do
Prêmio Del-Rei terminou assim, grotescamente. (QUEIROZ, 2008, p. 280)

A trama principal da obra Ŕ o casamento de Pedro com Maria Monforte, que culmina no
incesto entre os irmãos Carlos e Maria Eduarda Ŕ traz consigo uma vasta discussão sobre
moralidades e identidade sempre em forma de alegorias, como por exemplo, a fraqueza de Pedro
(Português) e a força de Tancredo (Italiano), ou a volta de Maria Eduarda à terra natal e a
aproximação com Carlos. O retorno leva-nos a enxergar Portugal como um lugar fadado a acontecer
desgraças.
Os Maias nos ofereceu a possibilidade de conhecer a sociedade burguesa de Portugal no
início do século XIX, em especial sua realidade, não mais os trejeitos românticos dos personagens
perfeitos e finais felizes. Ao contrário, pudemos observar as fragilidades, os defeitos, as
desconstruções, os desacertos, e tudo isso, com o mesmo dinamismo e brilho das lindas histórias de
amor do romantismo. Isso foi possível graças à grandeza literária de Eça de Queiroz que mais que
ninguém soube usufruir da flexibilidade do gênero Romance-Folhetim. Considerações Finais
Desde o início, apontamos a origem, a evolução e a importância do Romance-Folhetim para a
constituição da literatura do séculoXIX, tratando-se de Ŗ(...) um fenômeno literário que vai
contribuir e muito para a popularização e democratização literáriaŗ (HAICKEL, 2006, p. 53), que
não só atendia os anseios do público, como ditava a seus profissionais regras de como produzir suas
obras. Além disso, a cronologia do aparecimento de novelas e romances em capítulos na imprensa
comprova um fato inusitado: o folhetim jamais deixou de ser cultivado desde seu aparecimento,
chegando à atualidade sem interrupção, em uma trajetória de quase 180 anos.
Durante esse longo período, passou por diversas fases: na França, durante a época Romântica,
afirmou a identidade burguesa, deu asas à imaginação e às aventuras, divertindo gerações e
influenciando novos autores que se deliciavam com tesouros perdidos, espadachins, herois,
mocinhas e mundos encantados oferecidos pela vertente histórica e ficcional (Romances de Capa e
Espada - Dumas); propôs reformas e reflexões (Folhetim democrático, encabeçado por Sue);
satirizou vilões, copiou a história, se transformou várias vezes, tirando e vestindo novos disfarces,
imortalizando seu próprio criador-criatura (Rocambole Ŕ Ponson du Terrail).
Na fase Realista/Naturalista, acompanhou de perto a luta dos trabalhadores pelos seus
direitos, serviu de porta-voz para denunciar as mazelas causadas pela miséria em que viviam os

669
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

trabalhadores das minas de carvão a troco de salários de fome e com condições desumanas
(Germinal Ŕ Zola), assim como expôs mulheres adúlteras, homens oportunistas, conchavos
políticos (O Vermelho e o Negro Ŕ Stendhal), fez rir e chorar uma multidão com seus dramas da
vida (A Comédia Humana Ŕ Balzac), educou, ensinou, alienou toda uma geração de homens e
mulheres, estas últimas acusadas de serem suas grandes cúmplices (Madame Bovary Ŕ Flaubert);
representou a realidade dos fatos, denunciou, examinou, dissecou, explicitou, chocou, mas em
nenhum momento deixou de ser acompanhado, vigiado, censurado, ao contrário, resistiu ao tempo,
evoluiu com as novas tecnologias, ampliou o mercado editorial com a publicação de livros, séries e
fascículos; viajou a vapor por mares e oceanos, seguiu pelos trilhos dos trens, e serviu de base para
que em torno dele se formassem grandes e inesquecíveis escritores.
Se o Romance-Folhetim foi (ou ainda é) acusado por muitos de ser uma literatura de
consumo, menor, baixa, subliteratura, foi ele que colaborou para que os grandes artistas do
Realismo/Naturalismo rompessem com os ideais românticos sem se distanciar do público, que
valorizou e difundiu a leitura e ainda permitiu que escritores sobrevivessem financeiramente
produzindo Arte.
E, como não podia deixar de ser, o Romance-Folhetim teve papel fundamental também na
Literatura Portuguesa, pois emprestou sua fórmula flexível para que os autores dialogassem com
seus leitores, problematizando, refletindo, relembrando, exortando a (re) construção da identidade
nacional, criticando o que lhes afligia, valorizando o que lhes dava vigor, e servindo de consolo e
esperança entre passado, presente e futuro.
Almeida Garrett nos levou como passageiros em suas Viagens na minha terra. De dentro do
seu quarto, prometeu-nos narrar tudo o que visse e sentisse, e assim, pudemos viajar num barco a
vapor com ílhavos, campinos e atletas até a primeira paragem. A paisagem que assistimos,
maravilhosa: de um lado o frescor do rio Tejo, do outro, a beleza dos campos. Conhecemos os cafés
portugueses, as estalagens, as serras, os montes, paramos em sítios históricos, que nos despertaram
ora saudade e alegria, ora melancolia e tristeza. Fomos à Vila da Azambuja e ao seu belíssimo
pinhal, estivemos no Cartaxo. No vale de Santarém assistimos à triste história de Joaninha, a
menina dos rouxinóis, com seus personagens Dona Francisca, Frei Dinis, Carlos e Georgina,
alegorias da História de Portugal. Chegamos a Santarém e revivemos os momentos de glória e
conquistas, sentimos saudades...
Logo a seguir, observamos o presente: ruínas, decadência e a necessidade de reconstruir e
planejar um futuro melhor. Participamos intimamente das reflexões acerca da identidade
portuguesa.
Assistimos de perto as duras críticas sobre o fazer literário francês, sobre a fragilidade do
leitor, sobre a inigualável obra de Camões. Relembramos Dom Afonso Henriques, Dom Fernando e
outros reis, alguns mitos portugueses; revivemos os momentos de dor, e, da mesma forma,
constatamos a força dos portugueses que ficaram, e isso nos encheu de alegria e esperança.
As pupilas do senhor reitor nos deu a oportunidade de conhecer as tradições da vida rural
Portuguesa. Participamos das ceifas da lavoura, ouvimos as cantigas das lavadeiras à beira do rio,
670
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

estivemos presentes numa esfolheada. Conhecemos João das Dornas e seus filhos Pedro e Daniel,
uma família exemplar que guarda os costumes e é temente à igreja e aos princípios morais.
Participamos do dia a dia do senhor reitor Ŕ o representante máximo do poder eclesiástico, e os
acompanhamos em suas tarefas: educar, proteger, evangelizar, corrigir, coibir, vigiar.
Assistimos aos conflitos entre Daniel e João Semana, ambos médicos, o primeiro
representando o avanço tecnológico, e o segundo o atraso e o empirismo. Cavalgamos com João
Semana em visita aos pacientes, e até saboreamos uma deliciosa refeição preparada com afeto pela
sua criada.
Acompanhamos as angústias, humilhações e resignações de Margarida, e nos alegramos com
seu final feliz ao lado do amado Daniel. Preocupamo-nos com a inconstância de Clara, e da mesma
forma, celebramos seu enlace com Pedro.
Apesar da simplicidade do enredo e dos personagens, a obra de Julio Dinis tem extrema
importância, já que descreve a cultura, as tradições, e os conflitos duais portugueses: o moderno e o
clássico, a cidade e o campo, o delicado e o tosco, o científico e o empírico.
Camilo Castelo Branco nos fez dar boas risadas com as peripécias de Calisto Elói de Silos
Benevides de Barbuda. NřA queda dum anjo vivenciamos a trajetória decadente de um jovem
senhor de quarenta e quatro anos que, ao sair de seu mundo atrasado, sucumbe a luxuria, vaidade,
ganância e orgulho, sendo corrompido pela política, distanciando-se da família e de suas antigas
convicções e valores morais.
Tão bem elaborada narrativa, nos levou a plateia do Parlamento para ouvir seus inflamados e
críticos discursos sobre a língua portuguesa, a reforma de cadeias, os maus costumes franceses, a
falta de compostura dos políticos locais; assim como a participar das noites em que visitava a
família de Adelaide, aquela que o fez dar o primeiro passo rumo à queda.
Dividimos com Calisto Elói seus momentos de aflição, por estar mudando de comportamento,
e o acompanhamos quando descobriu que sentia nojo de sua esposa feia e desajeitada. Vimos a
transformação de sua aparência, o despertar de sua paixão pela parenta Ifigênia. Acompanhamos o
drama de Teodora, e também as atitudes interesseiras de seu primo Lopo de Gambôa, com quem se
casou depois de ser deixada pelo marido.
Apesar da sátira folhetinesca, A queda dum anjo problematiza temas sérios e relevantes para
a identidade portuguesa: a decadência, as influências francesas e a desconstrução de valores
tradicionais, morais e éticos.
Eça de Queiroz, o último dos folhetinistas por nós estudado, nos deixou imersos no mundo
mágico do Ramalhete. Passeamos pelos seus cômodos, ainda quando estavam ao abandono.
Abrimos suas janelas, espanamos o pó dos móveis, acompanhamos sua reforma.
Estivemos ali quando ele retornou à vida, depois da terrível morte de Pedro, e recebeu de
volta seu dono, Afonso da Maia, agora novamente feliz e acompanhado de seu neto Carlos.
Participamos dos jantares, dos jogos e dos concertos musicais que ali aconteceram.

671
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Sentimos raiva do comportamento medíocre de Dâmaso; rimos e refletimos com as loucuras


de Ega, nos acalmamos com equilíbrio de Cruges e Craft. Ficamos atônitos com as mulheres, que
praticavam o adultério de maneira tão normal.
Sofremos com a desilusão amorosa de Ega, e mais ainda com o terrível destino dos irmãos
Carlos e Maria Eduarda. Acompanhamos atentamente e com ansiedade o desenrolar desse amor
impossível, e choramos com a desilusão de Afonso da Maia, ao ver seu querido neto, em quem ele
depositou toda sua vida, insistir em seu pecado. Ficamos inconsoláveis com sua morte, mas
entendemos que esse era o melhor que lhe poderia acontecer.
Não foi fácil ver o Ramalhete novamente com suas janelas fechadas, mas foi sua realidade,
seu fim. Apesar de termos vivido um verdadeiro melodrama através dessa obra, nela um Portugal
real e atual foi representado, uma terra de pessoas que perdem, que erram, de situações verdadeiras,
não mais aquela Nação heroica, que conquistou terras, acumulou riquezas e escravizou pessoas.
Em Os Maias a decadência Portuguesa foi aceita, e posta de lado. A identidade portuguesa,
enfim, foi reconstruída. E num romance-folhetim.
Atualmente, ignorado pelos jornais, o romance-folhetim segue sua carreira de sucesso na
televisão, onde ocupa lugar de prestígio na grade de programação de qualquer emissora do mundo.
Em pleno século XXI, ainda aguardamos pelo mágico ―continua no próximo número‖.

Referências bibliográfias

ANDRADE, Mário. Vida Literária. São Paulo: EDUSP, 1993.

BROCA, Brito. Naturalistas, parnasianos e decadistas: vida literária do realismo ao pré-


modernismo. Coordenação: Alexandre Eulálio. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1991.
(Coleção Repertórios).

BRILHANTE, Maria João. Caminhos da herança clássica até o teatro francês contemporâneo.
Tese de doutorado, Universidade de Lisboa. In MÁTHESIS, v.12, 2003. Páginas 199-231.

CAMPEDELLI, Samira Youssef. Literatura, História e Texto. 6ª. Edição. Volume 2. São Paulo:
Saraiva, 1997.

CASTELO BRANCO, Camilo. A queda dum anjo. São Paulo: Núcleo, 1998. (Coleção Núcleo de
Literatura).

DINIS, Júlio. As pupilas do senhor reitor. São Paulo: Ática, 1998. (Série Bom Livro).

DUBRETON. J. Lucas-. Vida de Alexandre Dumas Pae. Tradução de Aristides Avila. São Paulo,
Edições Cultura Brasileira S/A, s.d.

GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. São Paulo: Martin Claret, 2008.

HAICKEL, M. P. Folhetim: um fenômeno literário. Brasília: Thesaurus Editora, 2006.

LALOU, René. O romance francês a partir de 1900. Tradução de Hermílio Borba Filho. São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1955. (título original Le Roman Français depuis 1900)

672
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

LOPES, Óscar; SARAIVA Antonio José. História da Literatura Portuguesa. 15ª. Edição. Porto:
Porto Editora, s.d.

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Volume III. São Paulo: Cultrix: Editora da
USP, 1985.

_______________. A literatura portuguesa em perspectiva. Volume III. São Paulo: Atlas, 1994.

SERRA, Tania Rebelo Costa. Antologia do Romance Folhetim (1939-1870). Brasília: UNB, 1997.

QUEIROZ, Eça de. Os maias. São Paulo: Martin Claret, 2008.

673
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

OS DILEMAS DO HOMEM MODERNO EM A TEMPESTADE

Patrícia Soares Lima1


Marcelo Bastos Seráfico de Assis Carvalho2

Resumo: Sob influência de aspectos histórico-sociais Shakespeare apresenta o olhar europeu a respeito da
chegada do homem ocidental à América. A partir de então se dá a formação de uma nova concepção política,
econômica e social européia, além da constituição de sua subjetividade. Porém, isto não acontece
bruscamente, mas proveniente do entendimento do outro com o qual de defronta e das novas terras. Esta
ocasião de encontro significa para o colonizador um momento de instabilidade, insegurança e até mesmo
saudade. Tais sentimentos são expressos nos dilemas entre os personagens de A tempestade, escrita em 1611,
que é o que este trabalho propõe estudar. Foi possível observar que os personagens da obra desenvolvem
uma relação dinâmica entre identidade e alteridade, que revelam seus impasses. Dentre estes, foram
escolhidos três, devido sua aparência mais evidente e maior recorrência na obra em questão, sendo:
dominação e libertação, racionalidade e irracionalidade, civilização e barbárie. Os elementos compositores
dos dilemas não se opõem, mas compõem uma relação onde não se pode dizer onde termina um ou começa o
outro. São elementos conflitantes, mas que Shakespeare conseguiu apresentá-los conjuntamente.

Palavras-chave: Novo Mundo. Homem moderno. Shakespeare. A Tempestade.

1 Introdução

É bem verdade que todo texto, seja literário ou não, está situado em um contexto histórico-
social específico. Claro que não podemos dizer que exista uma representação perfeita,
principalmente quando se trata de Literatura. A Tempestade de Shakespeare - texto literário Ŕ nos dá
a possibilidade de analisar a sociedade de sua época a partir das relações entre seus personagens.

A partir desta idéia propomos uma análise levando em conta as relações sociais, e
discursivas dos personagens de A Tempestade com o intuito de verificar como se dá a formação
subjetiva do Homem moderno a partir desta obra. Ou seja, observar os traços linguístiscos que
contribuem para a constituição da identidade do eu - europeu, tendo como base para isto o
conhecimento do outro - nativo.

Cabe agora tecermos algumas considerações a respeito do discurso. Como afirma Orlandi
(1999) este está atrelado à ideologia, assim definindo-a como inerente ao sentido. Porém, não há
sentido sem interpretação, e esta é proveniente de um sujeito. Sendo que todo sujeito possui uma

1
Bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (FAPEAM), graduanda em Letras Ŕ Língua Portuguesa e
Literatura da Universidade do Estado do Amazonas, e membro da Cátedra Amazonense de Estudos Literários.
2
Orientador, professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal do Amazonas, e membro da Cátedra Amazonense de Estudos Literários.

674
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ideologia. Pensando assim, concluímos que a interpretação é determinada, já que o sujeito é


determinado pela Língua e pela história para produzir sentidos.

Considerando a idéia de Foucault, o discurso Ŗé o espaço em que saber e poder se articulam,


pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido institucionalmente. Esse
discurso, que passa por verdadeiro, que veicula saber, é gerador de poderŗ . (apud Brandão, 1999,
p.10) Aqui vemos a dimensão política do discurso.

O lugar de onde se fala pertence a um determinado contexto; assim como o direito de


enunciar é concedido por alguém, e por uma situação deste contexto. E o discurso, inevitavelmente,
produzirá sentido modificando o mesmo. Aqui se pode observar a importância da análise do
momento histórico em que o discurso foi produzido.

Entre os séculos XV e XVI ocorreram fatos de grande importância histórica, que


repercutiram na sociedade européia e que estão marcadamente presentes em Shakespeare. Colombo
diz encontrar o Paraíso divino; Cabral desembarca do Brasil; surge O Príncipe de Maquiavel;
evolui a cartografia e com ela surge uma nova percepção do mundo geográfico, tendo Mercator
como precursor; Montaigne publica os Ensaios; o mundo passa a encontrar-se em outro lugar no
Cosmo, assinalado por Copérnico, estudado por Brahe e fortificado por Galileu.

Foi este o pano de fundo histórico que Shakespeare utilizou para elaborar sua obra. O
cenário ocupado por mudanças ainda foscas e por um novo sujeito na natureza e na mente dos
europeus, o que pressupõe inseguranças e incertezas.

O homem medieval estivera marcado pelo receio diante dos obstáculos do oceano; as
viagens significavam um desafio aos limites geográficos próprio do mundo tal qual era conhecido.
Até que Colombo apresenta-se como o predestinado, escolhido divino, a encontrar o novo céu e a
nova terra mencionados no Apocalipse bíblico, que, contudo, não relatara a existência de um outro,
subalterno em uma relação de alteridade, explanado por Todorov (1993), jamais imaginado, fora de
sua realidade, e por isto, passa a ser considerado profano, necessitado de sacralização e ordenação,
condenado à submissão. (BAUMANN, 1992).

É grande o impacto da descoberta desse outro para o europeu, tanto que este modifica sua
visão de homem e de mundo sob influência daquele. Além do mais, esta descoberta possibilita uma
mudança drástica no mundo, a instauração do capitalismo.

A crise de sucessão inglesa dá margem a pensamentos da ordem do político, daquilo que


seria um bom ou um mau governo. Daí surge O Príncipe de Maquiavel. A sociedade reflete a lei da
selva: o homem deveria Ŗser raposa para conhecer as armadilhas e leão para fazer medo aos lobosŗ
(MAQUIAVEL, apud Boquet, 1989, p.21). A política é pensada como um fingimento:

um príncipe, e em particular um príncipe novo, não pode praticar todas aquelas coisas pelas
quais os homens são considerados bons, uma vez que, freqüentemente, é obrigado, para
manter o Estado, a agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a
675
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

religião. É preciso, porém, que ele tenha um espírito disposto a voltar-se segundo os ventos
da sorte e as variações dos fatos o determinem e, como acima se disse, não apartar-se do
bem, podendo, mas saber entrar no mal, se necessário. (MAQUIAVEL, apud Theodoro,
1992)

O homem é selvagem ou divino? Bom ou mal? Perguntava-se Shakespeare.

A ordem faz-se necessária, então, começa a ser instaurada. Surge a hierarquia no Novo
Mundo, e consequentemente a política. E isto implica a instabilidade, insegurança e dúvidas em
todos os âmbitos sociais, que por sua vez não deixaram de ser expressos em Shakespeare, mais
exatamente em A Tempestade, escrita em 1611.

2 Discussão

Antes de tudo acredito que seja necessária uma breve descrição do drama Shakespeariano
para que analisemos as relações tanto sociais quanto psicológicas e discursivas entre os
personagens.

A obra retrata a viajem de Próspero, na companhia de outros nobres, de seu conselheiro e de


serviçais, até uma ilha entre Nápoles e Tunis, movida pela pretensão de seu irmão, Antônio, de
assumir seu título de Duque de Milão. Lá ele encontra o Novo Mundo, dominado pela bruxa
Sycorax e Caliban, filho desta, que depois se torna servo revoltado de Próspero, o condutor da
história, ajudado por Ariel. Utilizando sua Arte, Próspero provoca uma tempestade para trazer seus
inimigos até a ilha. Enfim, o protagonista perdoa seus inimigos; Retoma seu ducado; Casa sua filha
com Ferdinand, filho do rei de Nápoles, Alonso, que participou da conspiração contra o Duque;
Liberta seu servo fiel, Ariel; e Abandona sua vara e seus livros.

Shakespeare apresenta, sob ótica européia, o surgimento da América, e com ela o


nascimento de uma nova Europa, através de seu impacto com a Ŗdescobertaŗ do Novo Mundo, que
acarretou na formação de uma inovada consciência européia e um novo sistema político a partir do
conhecimento do Ŗoutroŗ e do espaço geográfico.

Cabe ressaltar, como afirmou Frye (1992), que a obra de Shakespeare não teve apenas
importância histórica, mas também, grande significado contemporâneo à medida que possibilita
uma reflexão sobre a condição do homem moderno a partir da evidência de problemas com os quais
lidamos até hoje.

2.1 A Constituição do eu a partir da descoberta do outro.


A elaboração das identidades ocorre a partir do momento de encontro entre Ŗos dois
mundosŗ . Como afirma Bakhtin (2003), a consciência de si é construída a partir da consciência do
outro. Isto é possível observar, a partir da análise dos diálogos dos personagens de A Tempestade: a
maneira como o europeu afirma sua identidade a partir da caracterização do nativo.
676
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Os estrangeiros da ilha de Sycorax tentam classificar e localizar os seus habitantes nativos


em uma hierarquia a partir de valores próprios. Porém esta classificação não é fixa. Existe uma
linha tênue que separa o Caliban-selvagem do Caliban-amado, assim como entre o Ariel-rebelde e o
Ariel-delicado. Caliban é selvagem e amado, Ariel é rebelde e delicado.

No decorrer da obra, Próspero e Miranda chamam Caliban de servo, monstrengo malhado,


jamais cortez, vilão, coisa, escravo vil, imundo, mentiroso, incapaz de assimilar a bondade, entre
outros adjetivos neste nível. Mas, assim que chegaram à ilha o trataram como da família, o amavam.
Da mesma forma, Ariel é tratado como o delicado, servo industrioso ou esperto espírito. Porém,
também atende por rebelde, coisa vil e asno.

São personagens ambíguos. Através desta condição dos dois nativos é que Próspero se torna,
também, contraditório. Quando acolhido por Caliban se encontra na posição de vítima, expulso de
seu ducado, necessitado de acolhimento; quando liberta Ariel da magia de Sycorax passa a ser o
amo digno de ser obedecido. Todavia, Próspero é usurpador do reino da bruxa de olhos azuis, e
carrasco de seus servos.

Próspero ama e odeia os diferentes; puni e absorve-os; liberta e prende-os. É amado e


odiado; punidor e punido; preso e liberto; usupador e usurpado. As relaçoes de toda a obra é
permeada de ambiguidades.

Os impasses vividos naquela época Ŕ e retomados na contemporaneidade - são reflexos


dessas ambiguidades presentes na construção dessas subjetividades.

A partir do que tenho argumentado, proponho a análise dos dilemas do homem moderno
presentes na referida obra de Shakespeare com o intuito de responder a questão mencionada na
introdução deste trabalho.

Pela aparência mais evidente e maior recorrência na obra em questão, escolhemos três
dilemas: racionalidade e irracionalidade, civilização e barbárie, dominação e libertação, discutidos a
seguir.

2.2 Dominação e Libertação


Marina Durand (2005), em seu estudo sobre os vínculos entre os desiguais, defende a tese de
que há uma condição de dependência nas relações de mando-obediência. Essa relação constitui-se
após a quebra do contrato narcísico do nativo. O rompimento, por sua vez, se dá a partir da
permanência do degredado no Brasil, através da representação de um lugar ruim para se viver.

O que repercute psiquicamente no índio é a idéia de que ele também é um degredado. Daí
surge a necessidade de mostrar para o estrangeiro o seu valor. O que Ŗconfigura uma disposição
histérica para agradar e seduzir, pretendendo com isso repor o valor que, intrinsecamente, sentimos
que nos faltaŗ . (Durand, 2007, p. 2)

677
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A partir deste momento passa a ser natural agradar o estrangeiro. Esse aspecto é refletido
em A Tempestade, de Shakespeare. Caliban se sujeita a Próspero com esta proposta. Quis apresentar
os valores do lugar, o que há de bom. Próspero não precisa se impor, ele é colocado na posição de
superior à medida que Caliban se coloca como subalterno. Podemos observar esta relação no
discurso de Caliban: ŖE eu te amava,/ E mostrei a você tudo na ilha/ As fontes, onde é estéril e
onde é fértil.ŗ ( 1999, p.35)

Quais motivos Caliban tinha para amar Próspero no momento de sua chegada?
Aparentemente, nenhum. E Ariel possuía algum motivo para servi-lo sem resmungar ou queixar-se?
Em troca da liberdade. Este é liberto do pinheiro em que estava preso, mas está livre? O bom
espírito é preso e dominado por um favor e por ameaças de seu amo: ŖPRÓSPERO: Já esqueceu/
De que tormentos eu o libertei? ARIEL: Não. PRÓSPERO: Creio que sim; e acha exagerado/ Pisar
o mar profundo,/ Correr com o vento que sopra o norte,/ Cumprir tarefas nas veias da terra/ Quando
geladas.ŗ (1999, p.39)

O que se observa é que o modelo de nativo ideal é traçado a partir dos valores europeus.
Portanto, enquanto Caliban ou Ariel são mansos correspondem ao ideal traçado. E quando Próspero,
ou até mesmo os outros nobres, os classificam como rebeldes ou selvagens, estão classificando a si
próprios como civilizados, de acordo com o padrão. Porém, como já foi visto, Próspero é tão
Ŗbomŗ, quanto ―ruimŗ . A idéia do eu ―perfeitoŗ é uma ideologia imposta aos habitantes da ilha
pelos recém chegados.

Na visão de Caliban, a única maneira de libertar-se de Próspero é matando-o, mesmo que


precise se submeter a um novo senhor para que isso ocorra, neste caso, a Stephano. Quando esta
nova relação se estabelece, o nativo julga-se livre, apesar de continuar sob sombra da hierarquia. O
que pode, por sua vez, representar mais uma evidência de um Caliban irracional.

Caliban não se volta contra seu senhor, não se contrapõe a alguma forma de governo, mas
nega qualquer tipo de governo em que ele não esteja no poder. Seu desejo é retomar o reinado do
tempo de sua mãe, Sycorax. No entanto, Ariel vê em Prñspero o seu Ŗbom senhorŗ , por poder
oferecer a este futuramente o seu interesse: a liberdade. Já para Antônio, o bom governante é
justamente aquele que tem o domínio de seus súditos, apesar de ser odiado por eles, justamente o
governo de Próspero na Ilha e o contrário do de Próspero em Milão. (CHAIA, 1995)

E é a visão de Antônio que Shakespeare defende, como se Próspero aprendesse com os erros
o bom governo. Isto está simbolizado no momento em que Próspero enterra seus livros
considerados tão importantes em seu antigo reinado e agora sem nenhuma importância após seu
aprendizado.

Assim como na colonização européia, onde o dominante estabelece que a melhor maneira de
governar é a sua, Próspero impõe uma forma de governo. Como se naquele lugar não existisse uma
ordem política.
678
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Gonzalo, enquanto conselheiro do rei, propõe uma configuração de governo possível


somente em um lugar onde não estivesse estabelecida a ordem burguesa, o que é o caso da ilha. Ele
propõe o seguinte, se um dia dela fosse rei:

Pro bem estar geral, ou contra os hábitos faria tudo. Pois nenhum comércio admitiria. E
nem magistrados; nada de letras. Riqueza e pobreza, qual serviços, nada. Nem sucessões,
contratos, vinhas, limites de terra; nem uso de metais, milho, óleo ou vinho. Nenhuma
ocupação. No ócio do homem, como a mulher, mas puros e inocentes nada de soberania.
(SHAKESPEARE, 1999, p.54).

Gonzalo acredita que viveria melhor Ŗcontra os hábitosŗ, ou melhor, contra a tradição de seu
povo. Já que ele próprio é europeu. Enquanto Ele profere essas palavras, Antonio e Sebastian riem
do conselheiro do rei, o que não é nada inesperado, pois, como afirma Montaigne (2000), julgamos
com o olhar de nossa sociedade, portanto, tudo o que não é praticado por ela é considerado
selvageria, se praticado por outros. Todavia, na condição de conselheiro, é aceitável que Gonzalo
lance um olhar crítico em relação à forma de governo européia. No fim o moderno/crítico
prevalece, porém, Shakespeare deixa um ar contraditório com a fala de Gonzalo. O que seria
melhor? Transpor para a ilha o que havia em minha sociedade ou respeitar os hábitos?

Antes da chegada de Próspero à ilha quem a governava era Caliban, e este não nega que
possuía mordomias, ou melhor, não necessitava trabalhar para outros, senão para o próprio
benefício. Porém, após a nova forma de governo, estabelecida por Próspero, teve que pescar, lavar
pratos, pegar e acender lenha mesmo contra sua vontade. O que ele quer verdadeiramente está
expresso a seguir:

Eu quero o meu jantar. A ilha é minha, da mãe Sycorax, que você me tirou. Logo que veio,
me afagava, mimava, inda me dando umas frutinhas E eu te amava, e mostrei a você tudo
na ilha Ŕ as fontes, onde é estéril e onde é fértil. Maldito seja! Todos os encantos de
Sycorax - sapos, escaravelhos, e morcegos, te ataquem todos juntos! Pois eu sou seu único
vassalo. Eu era rei. Você me fez de porco nestas pedras, guardando pra você a ilha toda, e
ainda me ensinou a chamar a luz grande e a pequena, que queimam dia e noite.
(SHAKESPERE, 1999, p.35)

A instauração do novo sistema político obriga Caliban a sair do ócio tradicional e trabalhar
em prol do novo sistema hierárquico. Vale ressaltar que Gonzalo, um pouco depois, defende o ócio
e ataca a soberania.

2.3 Racionalidade e Irracionalidade


Historicamente, a chegada do colonizador provocou um sentimento de inferioridade
tecnológica, devido o potencial bélico, no nativo. Ao saber da existência das novas terras faz-se
necessária a documentação e divulgação do que passa a ser conhecido pelo europeu. Para isso é
utilizado como ferramenta o discurso científico, considerado como algo a favor. Talvez por estes
dois motivos, somados ao desconhecimento das línguas indígenas, o europeu julga o nativo como
desprovido da razão.

679
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Neste aspecto, pode até parece que o autor inglês apresenta-se como defensor da obediência
à autoridade para que haja a preservação da ordem social aceitável. Esta, por sua vez, ocorre através
da interferência da razão, personificada em Ariel ao realizar todas as ordens de Próspero, o que
possibilitou um Ŗfinal felizŗ onde todos reassumem seus lugares na hierarquia.

Em contraposição, Caliban representa o canibal, relatado por Staden e retomado por


Montaigne; o selvagem movido por instintos, que desestabiliza a ordem, representa a
irracionalidade à medida que se volta contra seu superior. Porém, de nada vale sua rebeldia.

Prospero não é só racional. Antes de unir Miranda com Fernando, propõe a este uma prova.
Seu objetivo não é apenas político/racional, mas também leva em conta o sentimento na relação dos
dois.

Em outro momento é possível observar o embate entre razão e emoção:

ARIEL: Retidos,/ Todos juntos, assim como ordenou,/ e os deixou; estão presos, senhor,/
sem ordem sua, não mechem. O rei,/ o seu irmão e o dele estão perplexos./ Os outros se
lamentam, junto a eles,/ transbordantes de dor; e mais que todos/ aquele a quem chamou Řo
bom Gonzaloř;/ suas lágrimas correm pela barba/ como neve no inverno. O seu encanto/
tanto nos afeta que os vendo teria/ tocado o sentimento. PRÓSPERO: Acha, espírito?
ARIEL: Se humano, eu teria. PRÓSPERO: E o meu terá./ Se você, que é só ar, fica afetado/
por suas aflições, não hei-de eu,/ que sou da espécie deles, e que nutro/ paixões iguais,
sentir mais que você?/ Os crimes deles me tocaram fundo,/ mas cořa razão, mais nobre,
contra a fúria/ tomo partido: a ação mais rara/ ŘStá na virtude, mas do que na vingança:/ se
estao arrependidos, meu intenso/ não franze mais o cenho. Vá soltá-los:/ quebre o encanto,
lhes restauro o senso,/ e serão eles mesmos. . (SHAKESPEARE, 1999, p.111-112)

Próspero precisa sentir-se tocado emocionalmente para agir racionalmente e perdoá-los,


libertá-los, quebrar o encantamento. Após toda a trama desenrolada a partir da tempestade inicial.

2.4 Civilização e Barbárie


Já foi observado na obra que Próspero, Miranda e os recém chegados à ilha acusam os
antigos habitantes de bárbaros, não civilizados ou não civilizáveis. Talvez isto ocorra não só por
motivos políticos e econômicos, mas pela necessidade de haver inferiores para que aqueles
assumam a postura de superiores.

O desejo europeu é que o bárbaro torne-se civilizado, aceite a submissão e siga a mesma
moral, para que isto não interfira na hierarquia imposta por aquele. Caliban torna-se escravo após
ameaçar a honra de Miranda, o que constituiria a sobreposição do desejo sexual irracional
promovendo a violação da moral e da ordem hierárquica vigente, já que caliban era tratado como
um filho por Próspero. Era como se o nativo houvesse nascido bárbaro, e por isso necessitado de
civilidade.

PRÓSPERO: Eu que tive pena, cuidei para que falasses e ensinei-te isto e aquilo. Quando
nem sabias, selvagem, o que eras, resmungando como uma fera eu te dei objetivos e meio
de expressá-los. Mas tua raça, mesmo aprendendo, tinha que almas boas não podem
suportar (SHAKESPERE, 1999, p.36)
680
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Próspero acolhe Caliban em sua gruta, afaga-o, mima-o e sente necessidade de ensinar-lhe
Ŗisto e aquiloŗ . Porém, é como se a raça do dominado não deixasse que ele se livrasse da barbárie,
do desejo de possuir Miranda, para subir de posto na hierarquia. Próspero utiliza a sua língua como
elemento de poder. E o desejo possuído por Caliban, de livrar-se do poder, não é suficiente, pois ele
não é capaz de livrar-se da língua, então, desenvolve um mecanismo de resistência considerado
bárbaro - o praguejar Ŕ que também não modifica sua posição na hierarquia.

Ao contrário. Prova que Próspero afirma sua posição de superior e passa a ser necessário o
aprendizado de sua língua por parte de Caliban. Assim como ocorreu no processo da colonização da
América, o nativo é silenciado, não só sob aspecto da língua. Suas diferenças são apagadas, há o
desrespeito à diversidade, há a negação do outro para que sejam enaltecidas as características do
colonizador. (Orlandi, 1990)

3 Considerações finais

Shakespeare é o reflexo europeu do momento de mudanças ocorridas a partir do encontro da


Europa com a América, do europeu com o americano. Nada melhor que um Elisabetano em uma
sociedade onde o capitalismo encontrava-se em ascensão, onde se desenvolviam os burgos,
aumentavam-se os preços e diminuíam-se os salários, onde vigorava a concepção política
hierárquica devido uma crise de sucessão, para indicar os dilemas de um encontro tão impactante.

Podemos observar que os elementos compositores dos dilemas não se opõem, mas compõem
uma relação dialética onde não se pode dizer onde termina um ou começa o outro. São elementos
conflitantes, mas que mesmo assim Shakespeare conseguiu apresentá-los em conjunto.

Estas questões continuam presentes e latentes na sociedade atual, porém, devido as grandes
mudanças globais, apresentam-se de maneiras diferentes. Vivemos em uma sociedade paternalista,
movida pelo medo de perder os beneficios dos poderosos, como se fisessem um favor aos mais
carentes, assim como nas relações entre Caliban, Ariel e Próspero. Desde 1611 até então
alcançamos a liberdade? Para que servem as leis que nao para nos prender? Para que fins a
sociedade está usando a ciência hoje? Para acabar com a fome no mundo, ou para aprimorar
potenciais bélicos? Podemos chamar atitude como esta de racional?

Estamos cada vez mais presos na gaiola do capitalismo, agindo como dóceis domáveis e
moldáveis para seguir os passos de nossa Ŗcivilizaçãoŗ .

ŖTudo que é sñlido se desmancha no arŗ , afirmaram Marx e Engels no Manifesto do Partido
Comunista (1989). Assim caracterizaram a sociedade de 1848; assim apresentava-se a sociedade em
1611; e assim acontece atualmente. A definição Ŕ ambigua ou não - de quem é o Ŗeuŗ ou o Ŗoutroŗ
acontece historicamente, no desenrolar das relacoes de poder/discurso.

681
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003

BAUMANN, Thereza. Imagens do ŘOutro Mundoř: o problema da alteridade na iconografia cristã


ocidental. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1992. p.58-76.

BOQUET, Guy. Teatro e Sociedade: Shakespeare. trad. de Berta Zemel. São Paulo: Perspectiva,
1989.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora da


UNICAMP, 2004.

CHAIA, Miguel. A natureza da Política em Shakespeare e Maquiavel. Rev. Estudos Avançados.


1995, vol.09, nº23.

DURAND, Marina. O engano, o paradoxo, o Brasil: the mistake and the paradox. Vínculo, dez.
2007, vol.4, nº 4, p.94-103. ISSN 1806-2490.

FRYE, Northrop. Sobre Shakespeare. São Paulo: EDUSP, 1992.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Rio de Janeiro: Vozes, 1989.

MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais. In: MONTAIGNE, Michel de. Ensaios, trad. de Sérgio
Millet. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à vista - Discurso do confronto: velho e novo mundo. Campinas:
Cortez, 1990.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso. São Paulo: Pontes, 1999.

SHAKESPEARE, William. A tempestade, trad. de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro, Lacerda,


1999.

THEODORO, Janice. América Barroca. São Paulo, Editora Nova Fronteira/Edusp, 1992.
Disponível em<http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/livros/ab/index.htm>

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América – A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes:
2003.

682
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

AS PALAVRAS E OS SENTIDOS: ASPECTOS SEMÂNTICOS DA LITERATURA


EPISTOLAR DE EPICURO

Pedro Secundino de Souza Maciel (UFAM)1

Resumo: O trabalho pretende destacar a importância da precisão das palavras, conforme as


epístolas de Epicuro (341-270 a.C.) contidas no livro X da obra de Diôgenes Laêrtios. Após leitura
e análise das cartas verificamos os aspectos semânticos das palavras no filosofar que prescinde e
procede por conceitos que configuram a significação das ideias inerentes as palavras em relação às
coisas. Em síntese, a literatura epistolar de Epicuro exorta ao cuidado com as ideias inerentes as
palavras considerando a polissemia assimilada nas mesmas a fim de não deixar tudo incerto ou
prolongar-se sem propósito ou ainda usar palavras inadequadas e destituídas de sentido.

Palavras-chave: Epicuro; palavras; sentidos.

Résumé: Ce travail vise détacher lřimportance de la riguer des mots selon les épistoles y comprises
chez Épicure dans lřœuvre de Diogènes Laertius. Après la lecture et lřanalyse des lettres nous avons
vérifié les aspects sémantiques de ces mots dans lřacte de philosopher cřest inévitable et procède
par concepts que configure dans le cadre de la signification des idées inhérentes aux mots par
rapport les choses. En synthèse, la littérature épistolaire dřÉpicure exhorte le soin avec les idées
inhérentes aux mots en considérant celles-ci comme polysémie assimilée, afin de ne laisser pas tout
aléatoire ou continuer sans arriver à point ou encore utiliser les mots inadéquats et dénué de sens.

Mots-clé: Épicure Ŕ mots Ŕ sans.

Introdução

O objeto desse estudo é a perspectiva de Epicuro sobre a semântica das palavras acerca das
coisas. A partir desse objeto empreendeu-se profícua análise das cartas, máximas e aforismos2 do
filósofo do jardim, de onde destacamos a importância da linguagem, com o intuito de compreender
como o pensamento epicurista pode favorecer um entendimento adequado das palavras relacionado
com as experiências.

A fim de tornar as ideias mais claras sobre o que entende Epicuro por Ŗideias inerentes as
palavrasŗ , visto que é um dos nossos objetivos - compreender os aspectos semânticos de sua feitura

1
Graduando finalista do curso de licenciatura em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da universidade Federal do
Amazonas. pssmaciel@gmail.com
2
No respectivo trabalho, por não termos tido acesso a obra de referência Epicurea de Hermann Usener, tomamos as
citações de fragmentos a partir dos autores que constam nas referências teóricas, particularmente a obra de Diôgenes
Laêrtios ŖVidas e doutrinas dos filñsofoa ilustres.ŗ

683
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

literária de caráter epistolar desenvolvemos o estudo em dois momentos, a saber: o primeiro,


intitulado Concepção epicurista sobre o problema da linguagem e o segundo, A importância da
precisão das palavras, segundo Epicuro.

Destarte, o título deste trabalho - ŖAs palavras e os sentidos: aspectos semânticos da


literatura epistolar de Epicuroŗ - destaca aspectos do filosofar epicurista que opera
propedeuticamente pela especificidade das palavras, elementos que representam a realidade. A
realidade em Epicuro é tudo que é sensível e é constatado pelas sensações imediatas, único critério
digno de confiança para por em marcha o filosofar.

Dessa feita, entendemos que Epicuro de Samos (341 a 270 a.C) em sua literatura de caráter
epistolar trata sumariamente sobre os princípios fundamentais de seu filosofar. O filosofar, por seu
turno, prescinde e procede por conceitos. Os conceitos configuram a semântica na interação entre as
palavras abstraídas e as coisas existentes. Nesse sentido, os conceitos se revelam operadores
discursivos que, no campo da língua, possibilita estabelecer sentidos entre o real e o abstrato,
ocasionando, assim, a produção de sentido da relação das coisas com as palavras. Desse modo, os
conceitos, mais que representam sentido ou sentidos do real, passam a ser dizíveis e inteligíveis.
Assim sendo, Epicuro em sua epistola a Herôdoto (Laêrtios, X, (37), 2009, p. 291) o adverte para a
importância do sentido das palavras. Inferimos daí a preocupação do filósofo quanto a semântica,
dado a polissemia assimilada nas palavras.

Concepção epicurista sobre o problema da linguagem

Para bem compreendermos a concepção epicurista sobre a linguagem trabalharemos com os


termos de Epicuro e Lucrécio com vistas ao cuidado com o sentido das palavras.

Em Laêrtios verificamos o posicionamento de Epicuro quanto as nomeações, dado o fato de


que para ele

[...] os nomes das coisas também não foram originariamente postos por convenção 1,
mas a natureza dos homens de conformidade com várias raças os criou2; sob o
impulso de sentimentos peculiares e de percepções peculiares os homens emitiam
gritos peculiares. O ar assim emitido era moldado por seus sentimentos ou
percepções sensitivas individuais, e de maneira diferente segundo as regiões
habitadas pelas raças [...].3 Mais tarde as raças isoladas chegaram a um consenso e
deram assim nomes peculiares a cada coisa 4, a fim de que as comunicações entre
elas fossem menos ambíguas e as expressões fossem mais breves. Quanto às coisas
invisíveis, alguns homens que tinham consciência delas quiseram introduzir a sua
noção e as designaram com certos nomes que pronunciavam impelidos pelo instinto
ou escolhiam com o raciocínio, de acordo com o modo predominante de formação,
dando assim maior claridade ao que desejavam expressar. 5

1
Neste ponto Epicuro descarta o convencionalismo.
2
A concepção de Epicuro da linguagem é de tipo naturalista-utilitarista.
3
Laêrtios, X, (75), 2009, p. 300.
4
Tendo origem naturalmente pelas sensações e experiências humanas os nomes passaram a ser convencionados com
vistas a utilidade.
5
Idem, (76), 2009, pp. 300-301.

684
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Dado o exposto observamos que Epicuro apesar de negar o convencionalismo na origem das
palavras sugerindo claramente a tendência naturalista entende que em vista de maior clareza e
inteligibilidade das palavras os homens de acordo com a raça e região viram que era bom
convencionar nomes às coisas. Epicuro ainda fala dos sábios e do conhecimento para expressar
neologismos a fim tão somente de mostrar à razão o que os olhos não podem ver.

Ainda quanto ao problema da linguagem, Lucrécio (V, v. 1030-1034, 1973, p. 118) reitera o
posicionamento de Epicuro ao dizer Ŗquanto aos vários sons da linguagem 1, foi a natureza que
obrigou a emiti-los e foi a utilidade que levou a dar nome às coisas.ŗ Portanto, Lucrécio demarca
com estes termos a compreensão epicurista quanto a origem da linguagem considerando ainda o
fato das crianças Ŗdo mesmo modo [...] recorrerem ao gesto por não saberem pronunciar as palavras
apontando com o dedo os objetos que estão presentes.ŗ (Idem, Ibidem.). Com esta analogia,
Lucrécio demonstra que é da natureza humana indicar seja por gestos, seja por palavras aquilo que
se apresenta no âmbito de sua experiência.2 Assim pensa o epicurista, descartando, por conseguinte,
toda ideia de um Ŗlegisladorŗ de nomes.3 No entanto, é mais razoável pensar que os homens
começaram a usar as palavras em seu clã, de onde se evidenciou a noção de utilidade das palavras
para o gênero humano em suas mais diversas e adversas empresas. Finalmente, completa Lucrécio,
não há surpresa no fato de os homens, dotados das potencialidades e dos articuladores atribuir
nomes às coisas, conferindo-lhes palavras conforme as mais variadas sensações e formações que se
tinha.4

Assim sendo, inferimos que a concepção epicurista sobre o problema da linguagem tem
firmes laços com a concepção clássica da linguagem, ora se aproximando, ora se distanciando, mas
se destaca pelo rigor e utilidade que Epicuro faz das palavras não só para compreender os estudos
da doutrina ou de qualquer pensamento, mas sobremodo para alcançar o estado de sabedoria que
gerará as condições para o mergulho no mais profundo do lógos filosófico. Para tanto, convém
saber o sentido estrito das palavras a fim de desmistificar fenômenos naturais e crenças vãs. E
principalmente, gozar de um estado de sabedoria e tranquilidade tal que o sujeito não se sujeitará a
nenhuma exigência externa, seja pelas peripécias da vida, seja por interferências políticas ou
naturais.5

A importância da precisão das palavras, segundo Epicuro

De acordo com Laêrtios, Epicuro, além de se preocupar com as palavras Ŗdesigna as coisas
com estilo apropriado, porém individualíssimo, como assinala o gramático Aristófanes. Foi um

1
O pensamento de Lucrécio sobre o problema da origem da linguagem reitera a tendência naturalista já explicita em
Epicuro.
2
Cf. Lucrécio, V, v. 1380, 1973, p. 122.
3
Cf. Lucrécio, V, v. 1040-1047, 1973, p. 118.
4
Cf. Lucrécio, V, v. 1056-1058, 1973, p. 118.
5
Cf. Laêrtios, livro X, 2009.

685
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

escritor a tal ponto lúcido que em sua Retórica exigia a clareza do estilo como requisito
fundamental.ŗ 1 Disso deduzimos que Epicuro tinha um cuidado, um rigor com o uso e aplicação das
palavras, a ponto de exigir um estilo claro à inteligibilidade. Quanto ao estilo destacamos que o
mestre do jardim cunhara em suas epistolas seu modo de cumprimentar aos amigos e discípulos, ele
substituía a formula introdutñria habitual ŖVive bemŗ ou Vive retamenteŗ por ŖSaudações.ŗ 2 Desse
modo, Epicuro imprimia seu estilo e cumprimentava seus amigos e discípulos de maneira delicada e
particular.

Nas cartas destinadas aos seus discípulos em particular as que temos notícias, a saber, a
Herôdoto, Pítocles e Meneceu, Epicuro sempre se preocupava em chamar atenção para os
procedimentos do estudo a fim de que o epicurista tivesse condições de filosofar e sustentar a
doutrina em qualquer circunstância.3

Nesse sentido, em vista de maior clareza e menos ambiguidades possíveis, os epicuristas


devem recusar o método dialético, considerando que o estudo das coisas naturais requerem a
aplicação de palavras convencionalmente atribuídas as coisas naturais para que o significado delas
não seja desnaturado no curso do estudo, e dessa feita signifique as coisas de modo a não gerar
dúvidas ou delongamentos desnecessários.4

Sobre os critérios de verdade do filosofar epicurista, o doxógrafo Laêrtios observa que ela
pressupõe Ŗas sensações (aísthesis), as antecipações (prólepsis) e os sentimentos (páthos),
acrescentando a estes a apreensão direta das apresentações do pensamentoŗ. 5 Ademais, tudo que é
possível saber advêm das experiências concomitantemente auxiliadas pelo raciocínio, de tal maneira
que o conhecimento das palavras, adequadas aos fatos, corroboram naturalmente à um
entendimento, tanto quanto possível, claro acerca das coisas.6 Haja vista, o seguinte: Ŗ[...] Por meio
de cada palavra, evidencia-se aquilo que está originariamente no fundo.ŗ 7 Isto é, o sentido próprio
daquilo que representa, e sem esse entendimento Ŗnão poderíamos investigar sobre aquilo que
investigamos se já não tivéssemos tido um conhecimento anterior.ŗ 8

Sobre as modalidades de investigação, os epicuristas entendem dois modos: o primeiro,


referente às coisas naturais e o segundo, relativo às palavras, mais precisamente aos sentidos das
palavras.9 Acerca deste aspecto semântico Epicuro na epístola à Herôdoto diz o seguinte:

Em primeiro lugar, Herôdotos, devemos apreender as idéias inerentes às palavras, para


podermos ser capazes de nos referir a elas e julgar assim as inferências de opinião ou
problemas de investigação ou reflexão, de maneira a não deixar tudo incerto e não ter de

1
Idem, X, (13), 2009, p. 286.
2
Idem, X, (14), 2009, p. 286.
3
Cf. Idem, X, (35); (52), 2009, pp. 291; 295.
4
Cf. Idem, X, (31), 2009, p. 289.
5
Idem, Ibidem.
6
Cf. Idem, X, (32), 2009, p. 290.
7
Idem, X, (33), 2009, p. 290.
8
Laêrtios, X, (33), 2009, p. 290.
9
Cf. Idem, X, (34), 2009, p. 290.

686
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

continuar explicando tudo até o infinito, ou então usar palavras destituídas de sentido 1.
(Laêrtios, X, (37), p. 291).

A objetividade e clareza da exortação do mestre ao discípulo são pontuais e revelam a


preocupação de Epicuro quanto a precisão das palavras e a abstração do significado das palavras.
Pois, saber das ideias inerentes as palavras é saber do significado, do sentido da palavra, sendo isso
determinante para o reto filosofar, visto que é comum das palavras serem polissêmicas. E o filosofar
prescinde e procede por conceitos que configuram a teia de significação das coisas pelas ideias
relativas às palavras. Para alcançarmos esse propñsito Ŗ[...] é essencial que a primeira imagem
mental associada a cada palavra seja percebidaŗ ,2 de tal maneira que fique apreendida na memória,
a fim de atingirmos condições e critérios para o filosofar. Ademais, devemos conjugar nossos
estudos com nossas experiências, e pelo critério de veracidade das percepções imediatas possamos
nos certificar da plausibilidade de nossas percepções e, por conseguinte, do que possivelmente
conhecemos, seja relacionado as coisas perceptíveis, seja relacionada as imperceptíveis. 3

Assim, é evidente a importância de que se grave na memória o fato de a emanação das


coisas sensíveis4 exteriores a nós concorrerem para formamos nosso entendimento relacionado as
coisas objetando-as dessa maneira como pensamento. Para que não haja desvirtuamento do
pensamento quanto as coisas naturais entendemos que é preciso está atento as nuanças das palavras,
posto que o equívoco é próprio da opinião duvidosa, e esta, é justamente aquela que precisa ser
investigada mais criteriosamente a fim de elucidar as ideias faladas referentes aos fatos.5 Pois, Ŗ[..] é
verdadeiro apenas aquilo que se percebe por meio dos sentidos ou se apreende por meio da mente.ŗ 6
O que se apreende por meio da mente é posto em marcha pelas sensações. Isso, para muitos, gera
dificuldades no entendimento do filosofar epicurista. Receoso disso, Epicuro esclarece sobre o que
é dito e o que deve ser entendido nos seguinte termos Ŗ[...] devemos considerar que aquilo que
chamamos de incorpóreo na acepção comum da palavra se refere ao que é pensado como existente
por si mesmo.ŗ 7 Observamos nesse passo a preocupação do mestre em salientar que incorpóreo diz
respeito a um dos elementos primordiais, a saber o vácuo. Elemento este que constitui juntamente
com os átomos tudo que existe, segundo a concepção atomística do epicurismo.

As palavras, por sua vez, apesar de constituídas por átomos e vácuo, são construídas de
sentidos, recurso do raciocínio para tornar inteligível a relação dos homens com as coisas existentes.
Ora, se a palavra é portadora de significação e comporta sentidos, deve se prestar a esclarecimentos
racionais sobre aquilo à que se refere, mas disso não podemos deduzir que dirá a coisa em si
mesma, em vista disso devemos atentar para com todas as palavras e principalmente para os

1
Cf. Idem, X, (152) Máx. XXXVII, p. 320. ŖAs noções serão pertinentes, [...] desde que não se preocupe com palavras
vãs [...].ŗ
2
Idem, X, (38), 2009, p. 291.
3
Nesse caso Epicuro está na mesma linha de raciocínio de Parmênides, ao menos no que diz respeito ao princípio de
não contradição visto o que verificamos em Laêrtios, X, (38), 2009, p. 291. Ŗ[...] nada nasce do não-ser.ŗ
4
Cf. Laêrtios, X, (46), 2009, p. 293.
5
Cf. Idem, X, (50), 2009, p. 294.
6
Laêrtios, X, (62), 2009. P. 297.
7
Laêrtios, X, (67), 2009, p. 298.
687
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

conceitos principais e sua significação com intuito de tornar as noções em ideias claras, posto que a
significação é antes, o que temos na memória que o vocábulo em si mesmo. Dessa feita, por
analogia com os elementos vácuo e átomos, observamos que as palavras dizem as coisas e as coisas
são identificadas com as palavras. Assim, é razoável dizer que as palavras configuram o vácuo das
coisas e a significação, os átomos das palavras.

Epicuro, ainda no sentido de esclarecer os conceitos principais do seu filosofar, em


particular, a categoria prazer, pontua o seguinte na epístola destinada a Meneceu:

[...] quando dizemos que o prazer é a realização suprema da felicidade, não pretendemos
relacioná-lo a voluptuosidade dos dissolutos e com os gozos sensuais, como querem
algumas pessoas por ignorância, preconceito ou má compreensão; por prazer entendemos a
ausência de sofrimento no corpo e a ausência de perturbação na alma. 1

No esclarecimento que Epicuro faz do conceito prazer verificamos aspectos semânticos


negativos e positivos, o filósofo salienta que prazer é a ausência de sofrimento no corpo e ausência
de perturbação na alma, neste ponto Epicuro trabalha com a negação, mas não é a negação de
qualquer coisa é a negação de sensações negativas o que gerará, por conseguinte, a ideia de bem
estar, mas é um bem estar diferente do que possa supor o ignorante, o preconceituoso ou o
desatento, trata-se da significação da palavra prazer como realização por excelência da felicidade.

A partir dos seus esclarecimentos sobre os aspectos semânticos mais pertinentes, o mestre do
Jardim em sua feitura literária de caráter epistolar versa enunciativamente sobre um filosofar para
vida sábia e feliz.

Assim sendo, o filosofar, para os epicuristas, é constituído pelo logismós2 e pela phrónesis,3
possui a função de orientar a disposição humana para a sabedoria, especificamente para o bem
escolher ou rejeitar os prazeres e as dores, que propiciam a Ŗfalta de sofrimentoŗ (aponía) e a
Ŗtranquilidadeŗ (ataraxía), condições necessárias à Ŗfelicidadeŗ (eudaimonía).

Em vista disso, segundo Epicuro, o logos filosófico pode ser administrado como um
phármakon, como forma de alcançar o conhecimento das coisas e a sabedoria. E como é próprio
ordem filosófica, a prática Ŕ como diz Marx4 Ŕ Ŗé em si mesma teñrica.ŗ Concepção essa que
podemos inferir também em Epicuro, tal como Cornford (1989, p. 17-18) comenta acerca do que
Epicuro concebia teoricamente por Filosofia em suas cartas e máximas:

[...] uma atividade prática que tinha por fim alcançar, através da palavra e do raciocínio,
uma vida feliz, libertando os homens dos dois grandes terrores que podiam perturbar as
suas vidas Ŕ o medo da interferência arbitrária dos deuses no mundo e o receio do castigo
da alma depois da morte.

1
Idem, X, (131), 2009, p. 313
2
Segundo Peters (1983, p. 135), o termo logismós pode ser traduzido por Ŗraciocínio, pensamento discursivoŗ. Cf.
Laêrtios, X, (39; 75; 117; 130; 132); (144) Máx. XVI e XVIII; (145) Máx. XIX e XX.
3
Peters (1983, p. 188) traduz phrónesis por Ŗsabedoria, sabedoria prática, prudênciaŗ . Cf. Laêrtios, X, (132).
4
MARX, Karl. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, 1979, p. 30.
688
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Mediante a concepção epicurista inferida por Cornford, entendemos que o filosofar de


Epicuro se distingue, sobretudo, pelo fato de ser uma prática filosófica de vida que vislumbra a vida
como momento de ser feliz, ao invés de ser mera teorização. Assim, baseado na prática do filosofar,
Epicuro expõe uma ética que procura livrar o homem do julgo dos deuses e das crendices absurdas.
Trata-se de uma ética que auxilia pela palavra e pelo raciocínio no resgate para o homem, de sua
Ŗhumanidadeŗ enquanto ser de razão, capaz de ser feliz por si mesmo por meio do lñgos filosñfico.

Para alcançar o lógos filosófico, em Epicuro, destaca-se a memória como portadora de um


discurso filosófico capaz de tornar a vida melhor por meio da lembrança das boas ideias, dos bons
momentos e de todas as experiências que constituem a vida prazerosa e feliz. É com vistas à esse
fim que Epicuro se preocupa com o sentido das palavras, da palavra filosófica.

Sobre a importância da memória no pensamento de Epicuro, Pessanha destaca o papel que


tem para o filosofar epicurista a recordação Ŗ[...] de lições, de conversas, a manutenção de um fluxo
permanente de palavras portadoras da verdade sobre a Ŗnatureza das coisasŗ e sustentadoras da vida
sábia, imperturbável.ŗ 1 Disso, inferimos que a memória tem a importante função de recordar as
palavras portadoras da verdade, de sentido preciso correspondente as sensações imediatas, critério
determinante para o filosofar epicurista.

Portanto, a partir das Cartas, Máximas e fragmentos de Epicuro preservados pela tradição
doxográfica, verificamos que, para Epicuro, a propositura só tinha caráter filosófico se aliada a uma
postura filosófica de vida, trata-se da responsabilidade do estudo das palavras, da reflexão sobre a
significação dos conceitos a fim de enfrentar o problema posto e demarcar um pensamento
esclarecedor sobre o mesmo. Assim fizera Epicuro na Ŗreestruturaçãoŗ de um novo modo de pensar
sobre a vida feliz. Daí, o éthos filosófico configurar-se, no caso particular de Epicuro, como uma
exortação ao filosofar. Ao que diz em epístola endereçada à Meneceu

Nenhum jovem deve demorar a filosofar, e nenhum velho deve parar de filosofar,
pois nunca é cedo demais nem tarde demais para a saúde da alma. Afirmar que a
hora de filosofar ainda não chegou ou já passou é a mesma coisa que dizer que a
hora da felicidade ainda não chegou ou já passou; devemos, portanto, filosofar na
juventude e na velhice para que enquanto envelhecemos continuemos a ser jovens
nas boas coisas mediante a agradável recordação do passado, e para que ainda
jovens sejamos ao mesmo tempo velhos, graças ao destemor diante do porvir.
(Laêrtios, X, (122), 2009, p. 311).

O referente trecho constitui as primeiras palavras de Epicuro a Meneceu, exortando-o a


prática da filosofia em todos os momentos da vida, desde a tenra idade até o limiar da velhice.
Segundo Epicuro, a filosofia constitui uma excelente aliada do homem, porque o ajuda a
compreender pelo esclarecimento do sentido das palavras os fenômenos naturais, os temores da
juventude e a enfrentar com dignidade as dificuldades da velhice.

Epicuro, fiel aos seus ensinamentos, adota a prática filosófica em todos os momentos da
existência, mesmo em períodos em que a distância geográfica força o afastamento físico entre

1
In: Ética. Adauto Novaes (org.), 1992, p. 63

689
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mestre e discípulos. As cartas a Meneceu, a Herôdoto e a Pítocles confirmam a informação


encontrada em Diôgenes Laêrtios (X) quanto a continuação do aprendizado filosófico, mesmo em
períodos de viagens ou deslocamentos para outras localidades. Essa prática foi adotada por outros
pensadores, dentre eles podemos citar a correspondência efetiva entre Sêneca e o epicurista
Lucílio,1 no séc. I d. C.

Devido ao teor da carta de Epicuro a Meneceu, isto é, sua significação, a exortação à prática
da filosofia para a obtenção de uma vida feliz, ficou conhecida historicamente como Carta sobre a
felicidade e que Diôgenes Laêrtios, (X, 29) diz Ŗ[...] tratar das concepções sobre a vida humanaŗ .
Em breves palavras, próprias de uma epístola, o filósofo expõe os anseios e os temores que atuam
como entraves a tão almejada felicidade humana. O desejo universal de uma vida feliz encontra
obstáculos a sua realização, por ignorância, preconceito ou desatenção sobre a significação do que
as palavras revelam durante a existência humana, seja no campo dos perigos naturais ou dos criados
pela imaginação humana. Os temores em suas diferentes modalidades são considerados por Epicuro
como inimigos vorazes que podem desviar os homens dos seus propósitos, inclusive o de uma vida
feliz e o único modo de se libertar dessa dificuldade é dedicar-se ao estudo do lógos filosófico.

Considerações

Conforme o estudo sobre a importância do sentido da palavra para o filosofar epicurista,


entendemos que a palavra enquanto recurso epistemológico opera como forma de conhecer e
comunicar tudo que se refere aos sentidos, ao passo que os sentidos são princípios para tornar uma
experiência significativa em si mesmo de maneira a provocar uma reflexão aprofundada sobre a
significação das coisas, particularmente das coisas experimentadas que pelo uso adequado das
palavras podem tornar-se inteligíveis. Haja vista que as palavras só podem ser pronunciadas sobre
os estados das coisas experienciadas. Considerando isso, Epicuro se preocupa em usar e estudar as
palavras, suas significações conjugadas com as experiências, visto que o uso e o estudo das palavras
têm o propósito de dar sentido, significação às coisas. Do contrário, não teríamos entendimento.

Nosso entendimento das coisas passa pelos caminhos da linguagem, mais precisamente da
linguagem falada, das palavras. A linguagem falada, como supracitado, foi estabelecida por
convenção, apesar de ser posterior a manifestação natural dos homens sobre a linguagem. Com a
convenção as designações, não obstante da polissemia inerente nas palavras, passaram a indicar
menos ambiguidades e, portanto, mais precisão e objetividade na comunicação. Destarte, na medida
em que o homem experimenta novas coisas e conforme a sua formação pode inclusive proferir
novas palavras, a fim tão somente de tornar as suas ideias claras e evidentes. Para tanto, o recurso
da memória é indispensável.

1
Lucílio era discípulo do epicurismo e mantinha contato com o estoicismo. Mais precisamente, ele trocava
correspondência com Sêneca. Cf. SÊNECA, Aneu Lúcio. Cartas a Lucílio.

690
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A faculdade da memória nos permite reter imagens, coisa que nos possibilita um
conhecimento e um reconhecimento mais refinado dos nossos sentimentos. Tais imagens são as
emanações atômicas das coisas, em uma palavra as prólepsis (antecipações) da sensação imediata.
As prólepsis configuram as noções gerais sobre as coisas existentes que de alguma forma temos
percebido. Dessa feita, podemos entender que a palavra filosófica através do discurso pode tornar
claro aquilo que só pelos gestos um dia tentamos comunicar.

Na ânsia de comunicar, o discurso filosófico tem por característica explicar e assim


evidenciar as ideias inerentes as palavras em relação as coisas. Por isso, é fundamental a viva-
memória das prólepsis gerais. Traduzindo para termos da linguística as prólepsis são os
significados, ou seja, a imagem mental de uma categoria e a palavra falada é o significante que é
distinto em cada língua. É justamente na relação de significante e significado que o epicurismo se
esforça para revelar o conceito, isto é, aquilo que se pretende comunicar. Consequentemente, as
prólepsis são significações impreteríveis, conforme os epicuristas, para a ação de comunicar.

Quanto a relação de sentidos entre nossos sentimentos, as palavras e as coisas a memória


cumpre função determinante enquanto arquivo vivo do conhecimento conquistado. Pois a
significação representa esse Ŗreconhecimentoŗ de uma coisa pela representação de palavras. Ou
seja, a significação mesma é resultado mais de nossas experiências e formação que dos nomes
atribuídos a isto ou a aquilo. Não perdendo de vista, naturalmente, que as palavras servem para
revelar as coisas, sobretudo quando ausentes de nossas sensações imediatas. Dado que a
comunicação compreende toda forma da linguagem humana expressar as experiências. Isto é, trata-
se de uma representação intelectiva, abstrata da coisa concreta, do fato vivido, de modo que as
palavras são sempre significativas porque temos constantemente um olhar hermenêutico sobre a
realidade de nossas experiências.

Em suma: a concepção epicurista da linguagem é coerente com o seu filosofar sendo-a,


portanto, materialista e propositiva.

Referências bibliográficas

BRUN, Jean. O Epicurismo. Tradução Rui Pacheco. - Lisboa, 70, 1987. (Col. Biblioteca Báscia de
Filosofia).
CORNFORD, M. F. Principium sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. Tradução de
Maria Manauela Rocheta dos Santos. 3. - Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
CARO, Lucrécio Tito. Da natureza. Tradução Agostinho da Silva. - Porto Alegre: Editora Globo,
1962.
DUVERNOY, Jean-François. O Epicurismo e sua tradição antiga. Tradução Lucy Magalhães. -
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
EPICURO. Carta sobre a felicidade (A Meneceu). Tradução Álvaro Lorencini e Enzo Del
Carratore. - São Paulo: Editora UNESP, 2002.
___. Antologia de textos. Tradução: Agostinho da Silva. - São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973.
(Col. Os Pensadores).
691
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ética. Adauto Novaes (org.) - São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura,
1992.
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução Mário da Gama Kury. -
Brasília: Editora Um, 1988.
MARX, Karl. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Tradução de
Edson Bini e Armandina Venâncio. - São Paulo: Global, 1979.
MORAIS, João Quartim de. Epicuro: as luzes da ética. - São Paulo: Moderna, 1998.
Os filósofos pré-socráticos. (org.) Gerd A. Bornhein. 14 - São Paulo: Cultrix, 2000.
NICOLA, Ubaldo. Antologia ilustrada de filosofia: das origens à idade moderna. Ŕ São Paulo:
Globo, 2005.
PEREIRA, Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 7 Ŕ Braga: Livraria Apostolado
da Imprensa, 1990.
PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos: um léxico histórico. Tradução Beatriz Rodrigues
Barbosa. - Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
PLATÃO. Crátilo. Tradução de Maria José Fiqueiredo. Ŕ Lisboa: Instituto PIAGET, 2001.
(Coleção Pensamento e Filosofia).
PRÉ-SOCRÁTICOS. Leucipo - Demócrito. Tradutores José Cavalcante de Souza, Paulo F. Flor e
Anna L. A. de A. Prado. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores).
SÊNECA, Aneu Lúcio. Cartas a Lucílio. Tradução de J. A. Segurado e Campos. - Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
SILVA, Markus Figueira da. Epicuro: sabedoria e jardim. - Rio de Janeiro: Relume Dumará; Natal,
RN: UFRN, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2003.
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Epicuro: o filósofo da alegria. - Porto Alegre: EDIPECRS, 1996.

692
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

AS CARTAS DE ABELARDO E HELOÍSA: ENTRE PAIXÃO E RAZÃO


Pedro Rodolfo Fernandes da Silva (UFAM)

Introdução
Passaram-se quase nove séculos do romance entre Abelardo e Heloísa. A história do affair
se assemelha a muitas outras aventuras amorosas: a atração, o envolvimento, o flagrante, a gravidez
inesperada, o casamento secreto, a separação dos amantes, a punição imposta ao sedutor e, por fim,
o recolhimento de ambos na vida monástica. Fim trágico. Mas talvez muito próximo, guardadas as
devidas proporções, de outros tantos romances legados pela história.
Fosse somente por conta dos elementos elencados acima, provavelmente em nada esse
romance se destacasse de tantos outros. Mas há motivos que o fazem único. Motivos estes que tem
recebido a atenção de estudiosos de vários ramos da ciência: filósofos, literatos, cientistas sociais,
historiadores, etc. Sejam quais forem os interesses e as motivações dos estudiosos, é certo que o
romance retratado nas cartas proporciona o conhecimento de um modo de se compreender a relação
entre razão e paixão, além de oferecer um excelente retrato de época.

As Cartas
As origens do romance foram legadas pelo próprio Abelardo em sua Historia Calamitatum
(História das minhas calamidades), escrita provavelmente em 1132. Com a intenção de confortar
um amigo anônimo que passava por provações, Abelardo narra, numa espécie de autobiografia, suas
próprias desventuras, pois assim aquele ao comparar suas provações a deste, poderia sentir-se
consolado ante as vicissitudes da vida. A Historia Calamitatum pode ser vista como uma autêntica
apologia pro vita sua ou como um astuto exercício de romance histórico, pois este documento
definiu, inevitavelmente, a percepção do caráter e da personalidade de Abelardo.
Tal texto faz parte de uma coletânea de cartas que compõe a correspondência, que inclui
ainda: uma Consolatio (carta de Heloísa a Abelardo, escrita depois que esta tomou conhecimento da
Historia Calamitatum); uma série de três cartas (de Abelardo a Heloísa; de Heloísa a Abelardo e
novamente de Abelardo a Heloísa); outras três cartas escritas por Abelardo para orientar Heloísa e
demais religiosas sob sua direção no culto divino no mosteiro do Parácleto; por fim, uma regra
também escrita por Abelardo para a organização da vida religiosa das monjas sob a autoridade da
abadessa Heloísa.
Quanto à datação e o contexto das cartas, as datas mais prováveis são os anos de 1132 a
1137. Heloísa, já no mosteiro do Parácleto, após a História das Minhas Calamidades chegar às suas
mãos, escreve a Abelardo reclamando uma atenção deste que dispõe de tempo para escrever a um
amigo, mas negligencia no cuidado necessário à orientação das religiosas que reuniu e que lhe são
como filhas. Abelardo, por sua vez, em 1132, era abade no mosteiro de São Gildas, onde passou por
outras provações devido à vida corrupta que os monges, sob sua administração, cultivavam.
693
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Com relação à autenticidade das cartas, parece fora de contestação a autoria da História das
Minhas Calamidades Ŕ disso não se segue, necessariamente, que Abelardo apresenta um relato
factual e objetivo da sua experiência ou das suas relações com Heloísa. As demais cartas, sobretudo
as que são atribuídas à Heloísa, foram motivo de inúmeras controvérsias e, até hoje, não há um
consenso sobre tal. Apesar das recentes pesquisas1 realizadas após a publicação do primoroso
estudo de Gilson, este ainda continua se colocando como muito plausível:

A correspondência de Heloísa e de Abelardo está aí, diante de nós, como um fato que
podemos glosar ao infinito e cuja origem se presta às hipóteses mais diversas. Muitas foram
feitas e certamente muitas outras serão feitas; porém, a mais convincente e a mais sábia de
todas consiste ainda em supor que Heloísa seja autora das cartas de Heloísa, Abelardo, o
autor das cartas de Abelardo, e Heloísa, a provável editora do conjunto da coletânea 2.

A história do Romance
Em linhas gerais, a história se passa do seguinte modo. Abelardo, por volta de 1115, então
com 36 anos aproximadamente, gozava de excelente reputação como professor em Paris, ao mesmo
tempo em que já angariava certas inimizades resultantes de sua postura intrépida frente a seus
antigos mestres, notadamente Guilherme de Champeaux e Anselmo de Laon. Apesar de ter
abandonado completamente a corte de Marte para se recolher no regaço de Minerva e ter preferido a
dialética e seu arsenal em detrimento das armas de guerra3, Abelardo dotou as disputas dialéticas do
espírito beligerante.
Assim, se de um lado se destacou inicialmente na Filosofia e depois na Teologia por conta
de sua perspicácia e argúcia dialéticas, de outro, seus infortúnios foram se acumulando à medida
que o número de seus detratores aumentava.
É neste contexto de glória e fama, mas também de perseguições, que Abelardo toma
conhecimento da existência de uma jovem em Paris, Heloísa, sobrinha de um cônego que a amava
com ternura e que nada havia poupado para lhe dar uma educação refinada. Afirma Abelardo que
ela era bastante bonita e a extensão de sua cultura tornava-a uma mulher excepcional4.
Utilizando-se de amigos comuns, Abelardo se faz apresentar a Fulberto, tio de Heloisa,
planejando se aproximar da jovem pela qual se sentia atraído. O plano não encontrou resistência por
parte do tio de Heloísa, pois este estava por demais desejoso em ver a sobrinha progredir nos
estudos. Associado a esse desejo, a confiança de Fulberto era tamanha que em pouco tempo
Abelardo tornara-se soberano na instrução de Heloísa, a ponto de ter acesso à residência da jovem, a

1
WETHERBEE, 2004, p. 46-7, menciona David Luscombe e Peter Dronke como dois recentes estudiosos que reforçam
a autenticidade das cartas.
2
GILSON, 2007, p. 196.
3
ABELARDO, EP I, 2002, p. 30. Considerando que a tradução aqui utilizada diz respeito ao conjunto das cartas:
CORRESPONDÊNCIA DE ABELARDO E HELOISA. Apresentação de Paul Zumthor e Tradução de Luciana
Martins. São Paulo: Martins Fontes, 2000; adotar-se-á a seguinte regra: EP I (Epístola I), para a Historia Calamitatum,
de Abelardo; EP II, de Heloísa para Abelardo; EP III, de Abelardo para Heloísa; EP IV, de Heloísa para Abelardo e
EP V, de Abelardo para Heloísa, conservando-se, na sequência, o ano e a página da referida fonte.
4
ABELARDO, EP I, 2002, p. 39.

694
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

qualquer hora do dia ou da noite, onde as aulas deveriam acontecer. O próprio Abelardo, diante da
exacerbada confiança do tio de sua amada, assim se pronuncia:

A ingenuidade do ancião me deixou estupefato. Eu não me recobrava do meu espanto:


confiar assim uma terna ovelha a um lobo esfaimado! Encarregou-me não apenas de instruí-
la, mas de castigá-la sem reservas [...]1

Além da intenção e do desejo de Abelardo, a ocasião era a mais favorável possível. Como não
consentir naquilo que a natureza arrasta inexoravelmente? No Scito te ipsum, Abelardo questiona:
ŖQuem presumirá chamar de culpa a essa deleitação que a natureza tornou necessária? 2 A diferença
é que aqui, ele o reconhece3, o consentimento e a intenção se fizeram presentes.
Pelo que segue, as lições entre os enamorados não tardaram a ignorar os livros e se voltar aos
prazeres amorosos, de modo que quanto mais experimentavam esses prazeres, mas os prolongavam
fervorosamente. Nas palavras de Le Goff, Ŗentre o mestre e a aluna é o amor à primeira vista:
comércio intelectual, sem demora comércio carnal4ŗ . Heloísa é demasiado jovem, muito inocente e
extremamente enamorada para compreender que a chegada de Abelardo sob seu teto é o resultado
de cálculos bastante mesquinhos e que a ele não anima um sentimento da qualidade do dela5.
A situação ficou insustentável. Afirma Abelardo que a paixão voluptuosa que sentiu o tomou
completamente, de modo que negligenciou a filosofia e abandonou sua escola, causando várias
queixas de seus alunos6. Aquele Abelardo racionalista, dialético, intrépido e beligerante havia
baixado a guarda para os prazeres da carne.
Os cursos e os estudos, até então suas únicas paixões, há muito não o entretinham mais. Pelo
contrário, entediavam-no e fatigavam-no. Seu único prazer estava em entreter-se com Heloísa e em
escrever versos cantando a beleza da amada. ŖEm lugar de comentar Aristñteles e a Bíblia, ele
compõe canções em honra a Heloísa. Enfim, de filósofo e teólogo, torna-se poeta, e ele próprio
tinha bastante discernimento para não considerar essa mudança como um progresso7ŗ
Tal mudança repentina no comportamento de Abelardo não passaria muito tempo
despercebida. Primeiro os alunos e, apesar da proximidade com os acontecimentos, só bem depois
Fulberto. Recordando São Jerônimo, o qual afirma que Ŗsomos sempre os últimos a conhecer as
chagas de nossa casa e, enquanto todos os vizinhos se riem dos vícios dos nossos filhos, das nossas
esposas, somente nós os ignoramos8ŗ , Abelardo sabia que não tardaria para que a verdade viesse à
tona. A consequência do escândalo foi a separação dos corpos, o que fez com que os corações se
aproximassem ainda mais.

1
Ibidem, p. 41.
2
ABELARD, 1971, p. 20.
3
ABELARDO, EP V, 2002, p. 140.
4
LE GOFF, 2003, p. 63.
5
Cf. PERNOUD, 1973, p. 55.
6
ABELARDO, EP I, 2002, p. 42.
7
GILSON, 2007, p. 34.
8
ABELARDO, EP I, 2002, p. 42.

695
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Pouco tempo após a descoberta do mal feito, Heloísa escreve a Abelardo comunicando-o da
gravidez. Abelardo, por sua vez, aproveita a ausência de Fulberto e resolve raptar Heloísa e enviá-la
para a casa da irmã dele, na Bretanha, onde nasceria Astrolábio. Quando o tio da jovem toma
ciência do seu rapto, aflige-se a ponto de beirar à loucura. Abelardo decide então procurá-lo,
prometendo reparar sua ação desposando Heloísa com a única condição de que o casamento fosse
mantido em segredo.
A confidencialidade do casamento exigida por Abelardo ensejou as mais variadas
especulações por parte de vários estudiosos. Gilson é um dos que se coloca a refletir sobre a razão
dessa exigência de Abelardo. Em resumo, alega Gilson que

[...] a decadência de sua sabedoria, Abelardo não irá divulgá-la e torná-la de algum modo
irrevogável ao estabelecê-la no estado matrimonial? Trata-se, para ele, de escolher entre
dois estados, um superior, aquele de clérigo, outro inferior, o de homem casado. O clérigo,
podia-se então ler no Corpus juris atribuído a São Jerônimo, devia se dedicar inteiramente
ao serviço divino, à contemplação e à oração; ele devia, portanto, afastar-se de todo ruído
das coisas temporais. Ora, se Abelardo desposar Heloísa, Heloísa terá direitos sobre ele. 1

Assim, para Abelardo o que está em jogo é a aparência que pretendia ostentar de um estado
de vida superior, conforme as concepções de Sêneca e São Jerônimo. Ressalte-se que Heloísa, ao
saber da promessa feita por Abelardo para reparar o mal causado à imagem de Fulberto, reprovou
tal intenção de Abelardo e tentou dissuadi-lo do feito.
Heloísa sabia que seu tio não se daria por satisfeito com tal ato reparador. Além disso,
aceitar tal situação implicaria em duas ocasiões igualmente nocivas a Abelardo: o perigo que este
corria e a desonra que não deixaria de atrair contra ele. Além disso, ela estava convicta de que o
mundo exigiria dela uma explicação por obscurecer luminar tão grande 2. Ademais, a glória de
Abelardo seria a glória de Heloísa. A desonra de Abelardo, seria a desonra de Heloísa.
De nada adiantaram os argumentos de Heloísa. O casamento se fez como Abelardo queria e
naquilo que era possível. Casaram-se na presença de Fulberto e de alguns amigos dos nubentes. Na
esteira dos acontecimentos, a separação do casal é novamente imposta, interrompida senão por
alguns furtivos encontros.
Como já previsto por Heloísa e, aliás, invocado por ela como argumento contrário à
realização das núpcias, Fulberto, sempre que a ocasião permitia, tornava público o casamento,
violando o juramento de mantê-lo na confidencialidade. Heloísa, por sua vez, sabendo da intenção
de seu tio em prejudicar a reputação de Abelardo pela divulgação do casamento, negava o ocorrido
e protestava peremptoriamente. Tais atitudes da moça lhe custaram o sofrimento de maus tratos por
parte de seu tio. Diante disso, Abelardo não hesitou em enviar Heloísa a um mosteiro próximo de
Paris.

1
GILSON, 2007, p. 60. Necessário dizer que o termo clérigo no século XII designa todo estudante, de modo que não é
uma ordem religiosa e por isso, o clérigo não estava impedido de contrair matrimônio, mas uma vez casado, não poderia
casar-se novamente. O que ocorre é que um clérigo casado é visto como incontinenti e, portanto, não vive um estado de
perfeição.
2
Cf. ABELARDO, EP I, 2002, p. 44-5.

696
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Frente a essa atitude de Abelardo, Fulberto sente-se vítima de um engodo: entende que
Abelardo enviara Heloísa para o convento para se livrar dela. Não tardou para que a vingança de
Fulberto fosse concretizada. Nestes termos descreve Abelardo o castigo imputado a ele:

Certa noite, um dos meus servidores, comprado a preço de ouro, introduziu-os no quarto
retirado onde eu dormia, e eles me fizeram sofrer a vingança mais cruel, a mais vergonhosa
e que todo o mundo conheceu com estupefação: amputaram-me as partes do corpo com as
quais eu cometera o delito de que se queixavam1.

A vergonha sentida por Abelardo, ele nos diz, foi maior do que a dor causada pela própria
mutilação2. Ele, a glória de Paris, o cavaleiro da dialética, o mais ilustre dos professores e o mais
livre dos amantes, vê-se arruinado em toda sua carreira. Não encontraria mais coragem para sua
atividade docente, pois sua vergonha certamente seria motivo de muitos risos e desrespeito diante
do alunado Ŕ afinal, é sabido que os espaços escolares são também lugares onde os gracejos e as
traquinagens ocorrem com frequência3 - assim como não dispunha mais das condições que a
vivência do amor torna necessária.
As duas paixões de Abelardo estariam impossibilitadas: nem a glória das escolas, nem os
prazeres de Heloísa. Que paixão mais poderia prendê-lo a esse mundo? Sua decisão é resoluta:
retirar-se do mundo, refugiar-se no mosteiro.

Entre Paixão e Razão


Marcados pelos estigmas do casamento e da mutilação de Abelardo, a sequencia dos fatos
permite dizer que, apesar de alguns encontros e da troca epistolar, os amantes foram separados e
condenados a sofrer a ausência um do outro. A partir desse momento, Ŗos dois amantes entram em
revolta contra a moral e contra a opinião pública4ŗ . Se Abelardo já colecionava infortúnios antes do
affair com Heloísa, eles se multiplicarão durante e após esse fato. E Heloísa, que ainda muito jovem
tomou parte nesse romance (é provável que ela tivesse na época entre 17 e 18 anos), também sofrerá
infortúnios de várias ordens.
Abelardo, que é criticado por seus opositores como extremamente racionalista, como alguém
que julgava a razão humana capaz de compreender tudo o que é Deus e, consequentemente,
esvaziar a verdade da fé cristã5, no princípio do romance assume tal postura, desejando apenas a

1
ABELARDO, EP I, 2002, p. 50.
2
ABELARDO, EP I, 2002, p. 51.
3
Le Goff, ao tratar dos goliardos e da vagabundagem intelectual no século XII, é incisivo em afirmar que os goliardos,
por exemplo, Ŗrepresentam o maior escândalo para os espíritos tradicionais. LE GOFF, 2003, p. 47-52.
4
GILSON, 2007, p. 35.
5
ŖPetrus Abaelardus christianae fidei meritum evacuare nititur, dum totum quod Deus est, humana ratione arbitratur se
posse comprehendereŗ . SANCTI BERNARDI Abbatis Clarae-Vallensis, Epistola Cxci ad Innocentium ex Persona
Domini Archiepiscopi Remensis. Patrologiae Latina tomo CLXXXII, col 337.

697
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

satisfação sexual com Heloísa1. O amor não o motiva, mas apenas o prazer. Mas por que Heloísa e
não antes uma meretriz?
Abelardo afirma que não apreciava o Ŗcomércio grosseiro das prostitutas2ŗ . Ao mesmo
tempo, declara que mantinha uma vida casta antes de envolver-se com Heloísa3. Pode-se invocar
como argumento a favor de tais afirmações o fato de que Abelardo exigiu que o casamento fosse
secreto porque desejava continuar ostentando uma vida superior, ou seja, uma vida que não
desfrutasse dos prazeres libidinosos.
Assim, Heloísa reunia qualidades além daquelas necessárias à satisfação sexual de Abelardo.
Ela representava um novo desafio que ele, no auge da sua presunção, tinha de conquistar e o qual
julgava que não lhe seria tarefa nada difícil, pois que brilhava pela reputação, juventude e beleza, e
julgava que não havia mulher junto a quem seu amor temesse recusa4.
A fama de Heloísa era conhecida por muitos. Pedro, o Venerável, que acolheu Abelardo em
Cluny quando este marchava em direção à sede do catolicismo com intenções de reverter a sentença
imposta pelo concílio de Sens em 1140, testemunha a admiração que devotava à jovem amante de
Abelardo:

Eu mal acabava de transpor os limites da adolescência, e não era nem mesmo jovem,
quando tomei conhecimento da reputação, não ainda de sua vida religiosa, mas de teus
nobres e louváveis estudos. Ouvia-se então falar desta extraordinária raridade: uma mulher
ainda envolvida nos laços do século e que se entregava, entretanto, completamente ao
estudo das Letras e da Sabedoria sem que nada, nem os desejos do mundo, nem suas
vaidades, nem seus prazeres, pudesse desviá-la do louvável desígnio de aprender as Artes
Liberais5.

Heloísa se afigurava como bem mais do que uma possibilidade de satisfação sexual: era
luxúria, vaidade, glória e fama reunidas na mesma oportunidade. Que outro troféu poderia almejar
espírito tão orgulhoso e conquistador? Esse foi o provável motivo da atração de Abelardo por
Heloísa. Segundo Gilson, Ŗnão há o menor traço de paixão romântica no seu caso; nada mais que
luxúria, como ele próprio reconhece, e orgulho6ŗ .
Essa inclinação à luxúria associada à razão da glória que acrescentaria a sua reputação foi,
indubitavelmente, a causa do romance sob a perspectiva de Abelardo. Mas e Heloísa? Que
intenções ela tinha ao envolver-se com Abelardo? O que a motivou? Será possível encontrar nas
motivações de Heloísa elementos de paixão e razão? Se sim, serão eles da mesma qualidade das
motivações passionais e racionais de Abelardo?

1
ŖMeu amor, que nos arrastou a ambos no pecado, chamemo-lo de concupiscência, não de amorŗ. ABELARDO, EP V,
2002, p. 147.
2
ABELARDO, EP I, 2002, p. 39.
3
Cf. ABELARDO, EP I, 2002, p. 42.
4
Idem, ibidem.
5
Pedro, o Venerável, Epístola XXVIII, Patrologia Latina, t. 189, col. 347ss. IN: GILSON, 2007, p. 148.
6
GILSON, 2007, p. 32.

698
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Desde o primeiro encontro com Abelardo, Heloísa confessa o amor exclusivo que lhe terá
até o último suspiro. Amor violento que nada o debilitará, porque Heloísa é de uma naturalidade
absoluta1. Ela nunca omitira a real motivação de seu envolvimento com Abelardo:

Deus o sabe, jamais procurei em ti senão a ti mesmo. Era somente tu que eu desejava, não
aquilo que te pertencia ou aquilo que representavas. Não esperava nem casamento nem
vantagens materiais, não pensava nem em meu prazer nem nas minhas vontades; buscava
apenas, bem o sabes, satisfazer teus desejos2.

Esta manifestação do mais puro amor de Heloísa coloca-a em outro nível de sentimento com
relação ao de Abelardo. Se Abelardo a amou, certamente não deixou também de calcular a glória e
depois a degradação de sua imagem com o casamento Ŕ e por isso o exigiu confidencial. Heloísa,
porém, amou Abelardo de tal modo que não relutou em momento algum em fazê-lo feliz e bem-
sucedido, pois sabia que da felicidade de Abelardo dependia a sua. Heloisa é Ŗa grande amorosa de
estilo francês, com essa estranha avidez de justificação racional, ou sofística 3.ŗ Mas do que Heloísa
precisaria se justificar? Que crime cometeu esta que parece somente ter amado?
Heloísa não se perdoa do único crime que cometeu: desposar Abelardo. Ela, que sabia tão
bem quanto Abelardo o que representava o casamento com relação ao estilo de vida de um filósofo,
confessa que preferiria ser uma meretriz a ser esposa de Abelardo e motivo de sua ruína:

O nome de esposa parece mais sagrado e mais forte, entretanto o de amiga sempre me
pareceu mais doce. Teria apreciado, permiti-me dizê-lo, o de concubina ou de mulher de
vida fácil, tanto me parecia que, em me humilhando ainda mais, aumentaria meus títulos a
teu reconhecimento e menos prejudicaria a glória do teu gênio 4.

Mesmo sabendo do que representava o casamento e após opor-se veementemente a ele,


Heloísa submete-se a essa imposição de seu amado. Carregará esse fardo para o resto de sua vida e
amargará o fato de estar casada, mas impossibilitada de usufruir seus direitos conjugais com
Abelardo5.
A vida de Heloísa, depois que conhecera Abelardo, fora agradar-lhe, atendê-lo em todas as
suas vontades. A segunda grande prova de amor que Abelardo exigiu de Heloísa foi o ingresso dela
na vida religiosa. Precedendo a Abelardo na vida monástica, Heloísa novamente apresenta sua
renúncia a si e ao mundo para viver por amor a Abelardo.
Emasculado e impossibilitado de viver a plenitude do amor, Abelardo castra Heloísa
impondo-lhe o véu monástico. Numa análise de gênero do papel da mulher na Idade Média e diante
do sofrimento de Heloísa, talvez se pudesse colocá-la contra Abelardo, assumindo a defesa da
primeira e o ataque ao segundo. Porém, aquilo que Heloísa legou em suas cartas, longe de permitir

1
PERNOUD, 1973, p. 55.
2
HELOÍSA, EP II, 2002, p. 95.
3
GILSON, 2007, p. 117.
4
HELOÍSA, EP II, 2002, p. 95.
5
Pela instituição sacramental do casamento, um passa a ter direito sobre o corpo do outro, de modo que não somente
Heloísa não poderia ter direito sobre Abelardo, porque este estava impossibilitado de atender às exigências das relações
conjugais, como também a própria Heloísa desejava uma vida para ambos compatível àquela ideologia que se tinha
acerca do estilo de vida dos intelectuais.
699
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

tal análise, sugere bem o contrário: ŖEm todos os estados a que a vida me conduziu, Deus o sabe,
foi a ti, mais do que a ele, que temi ofender; foi a ti, mais do que a ele, que procurei agradar1ŗ .
Gilson, imbuído do espírito que perpassa toda a correspondência de Abelardo e Heloísa,
sabedor da psicologia dos amantes e da moral que os envolve, nestes termos se expressa quanto à
possibilidade de uma leitura diferente daquela que corresponde ao seu sentido próprio:

É verdade que Heloísa sofreu muito, e sofreu por Abelardo, mas duas coisas ao menos são
certas: que ela faria novamente dez vezes aquilo que fez, com o risco de subir dez vezes o
mesmo calvário, e que experimentaria como a pior injúria se se desejasse engrandecê-la
rebaixando Abelardo2.

Se no início do romance é Abelardo que corteja Heloísa para alcançar a satisfação de seus
prazeres, agora é o amor cortesão que se manifesta com toda sua força e beleza em Heloísa. Alguém
poderá perguntar: será isso justo? Injusto? O amor não parece ser necessariamente uma questão de
justiça, ao menos não no sentido da participação equitativa nos prazeres e infortúnios dos quais
padecem os amantes.
Porém, justiça seja feita! Se a postura de Abelardo foi, no início, a de um lobo esfaimado
por devorar sua presa Ŕ postura reafirmada na carta à Heloísa em que confessa que seu amor foi
concupiscência3 - ele também expiou em sua vida os males que cometeu e, ainda que não da mesma
forma que Heloísa, é muito provável que a tivesse amado, tanto assim que uma vez impossibilitado
fisicamente de viver o casamento, exigiu dela o amor casto obrigando-a ao ingresso na vida
religiosa. Além disso, quando abade no mosteiro de São Gildas, sabendo que Heloísa e suas irmãs
religiosas foram expulsas do mosteiro onde residiam, empenhou-se em ampará-las de modo a
proporcionar-lhes as instalações do mosteiro do Parácleto, onde outrora havia se recolhido com
alguns alunos para escapar das perseguições dos monges da abadia de São Denis.
Seja como for, pela leitura e análise das cartas de Abelardo e Heloísa percebe-se que a
paixão e a razão se fizeram presentes como duas forças que marcaram indelevelmente suas vidas e
os projetou na história como um romance único.

Conclusão
O dramático romance entre Abelardo e Heloísa, legado pelas cartas que escreveram, figura
como um dos mais belos textos em que o amor cortês se manifesta.
Paixão e razão não se dissociam no caso de Abelardo e Heloísa. Abelardo, se inicialmente se
deixa envolver no romance por interesses meramente libidinosos, não muito depois dá mostras de
amor por Heloísa, ainda que ao seu modo e não necessariamente ao modo que Heloísa esperava e
como muitos leitores gostariam de encontrar Ŕ mas às vezes é necessário assistir a essa trama como
expectador e não como diretor que pretende mudar o roteiro.

1
HELOÍSA, EP IV, 2002, p. 121.
2
GILSON, 2007, p. 27.
3
Cf. nota 19 supra. Ressalte-se que nessa carta, supostamente a última de Abelardo a Heloísa de cunho pessoal,
Abelardo assume diante de Heloísa toda a culpa das desventuras que sofreram e se mostra conformado com a sorte que
teve.
700
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Heloísa, por sua vez, encarnou o amor. Dedicou sua vida toda a esse sentimento que nutria
por Abelardo. Não se lhe opôs em momento algum, pois mesmo no episódio do casamento, atendeu
à vontade dele. Amou Abelardo por ele mesmo, sem esperar nada em troca, nenhum
reconhecimento qualquer. Nem mesmo o de Deus ao ingressar na vida religiosa, pois ela é taxativa
em afirmar que Deus não a poderia recompensar por algo que fez somente pelo amor de Abelardo 1,
não obstante sua vida como abadessa ter sido elogiada por muitos de seus contemporâneos como de
grande piedade.
Heloísa não esconde nada: tudo o que pensa e sente, explicita nas cartas. Seu amor por
Abelardo, sua conversão e até sua piedade religiosa, ela o disse, não passavam de hipocrisia, de
modo que o hábito religioso (vestimenta) não poderia suplantar o hábito2 da religiosa.
Abelardo e Heloísa experimentaram com intensidade os sofrimentos impostos pelas
vicissitudes de suas vidas marcadas pela paixão e pela razão. Apesar disso e talvez por causa disso,
entregaram-se vivamente a esse romance imortalizado na história e na literatura.
Desse modo, pode-se concluir com Gilson afirmando que

[...] a paixão que devia dominar a vida inteira de Heloísa parece ter sido total desde o início.
Essa paixão não devia, aliás, tardar a ganhar o próprio sedutor. Pois, após a sedução de
Heloísa, Abelardo não é mais o frio calculista que fora inicialmente. Esses dois amantes
foram amantes felizes3.

Referências bibliográficas

ABÉLARD, P. Historia Calamitatum. Texte critique avec une introduction, ed. J. Monfrin. Paris,
1959.

ABELARD, Peter. Ethics. An edition with introduction english translation and notes by D. E.
Luscombe. Oxford University Press, 1971.

CAMELLO, Maurílio José de Oliveira. Pedro Abelardo: da razão à fé. In: Leopoldianum, XIII, nº
38, Filosofia Medieval: Estudos e Textos. Porto Alegre, 1986, pp. 23-30.

CARVALHO, Mario Santiago de. Lógica e Paixão: Abelardo e os Universais. Coimbra: Minerva
Coimbra, 2001.

CORRESPONDÊNCIA DE ABELARDO E HELOÍSA. Texto apresentado por Paul Zumthor;


tradução Lúcia Santana Martins. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FINDLEY, Brooke Heidenreich. Dos the Habit Make the Nun? A Case Study of Heloiseřs
Influence on Abelardřs Ethical Philosophy. Vivarium, 44, 2-3. Leiden: Koninklijke Brill NV, 2006,
p. 248-275.

1
HELOÍSA, EP IV, p. 99.
2
A propósito da distinção entre o hábito como vestimenta e o hábito como simulação (hipocrisia), cf. o interessante
artigo de: FINDLEY, 2006, pp. 248-275.
3
GILSON, 2007, p. 34.

701
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

GILSON, Étienne. Heloísa e Abelardo. Tradução Henrique Ré. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2007.

LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. Rio de


Janeiro: José Olympio, 2003.

PEDRO, O VENERÁVEL. Epístola XXVIII, Patrologia Latina, t. 189, col. 347ss. IN: GILSON,
Étienne. Heloísa e Abelardo. Tradução Henrique Ré. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2007.

PERNOUD, Régine. Eloísa y Abelardo. Tradução do francês por Gloria Alonso de Jáuregui.
Madrid: Espasa-Calpe, S.A., 1973.
VILELA, Orlando. O drama Heloísa-Abelardo. Belo Horizonte, FUMARC/UCMG, 1981.

ZUMTHOR, Paul. Prefácio a Abelardo e Heloísa. IN: CORRESPONDÊNCIA DE ABELARDO E


HELOÍSA. (Trad.) Luciana Martins. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

702
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A IMAGEM DA RESISTÊNCIA EM TRÊS POEMAS DE A ROSA DO POVO, DE CARLOS


DRUMMOND DE ANDRADE

Pollyanna Furtado Lima (UFAM) 1

Introdução
O movimento modernista de 30 foi marcado por um período de envolvimento dos
intelectuais em assuntos sociais. Nesta fase, Carlos Drummond de Andrade publica Sentimento do
Mundo em 1940. Mas é em 1945, com a publicação de A Rosa do Povo, que o poeta encontra sua
afirmação da poesia e do social numa perspectiva mais conciliatória. A relevância poética de sua
obra e a feliz articulação com questões do seu tempo são suficientes para justificar estudos no
campo literário.

A Rosa do Povo: Algumas leituras

Pesquisadores contestam os equívocos de alguns críticos que, ao medir o valor de A Rosa do


Povo, usam critérios estritamente ideológicos. Esta atitude prejudica a justa apreensão da obra
literária. Procurando desfazer equívocos, Affonso Romano de Santř Anna, Vagner Camilo, Antonio
Candido empreendem leituras mais afinadas com o espírito da obra, não se restringindo às
ideologias do autor.

Affonso Romano faz uma crítica àqueles que estabelecem a oposição entre uma fase de
poesia social2 e outra metafísica3. Para ele, essa oposição apenas demonstra os preconceitos de uma
crítica que cobra e julga onde deveria descrever e analisar, e exibe preferências onde carecia
mostrar melhor instrumental analítico. Em sua tese, ele desenvolveu um esquema que permita
apreender a obra drummondiana em três momentos: Eu maior que mundo, eu menor que o mundo e
eu igual o mundo. A Rosa do Povo situa-se no segundo momento.

Rosa do povo é o livro crucial no conjunto da obra. Segundo nossa tese, à altura de
Rosa do povo verifica-se uma verdadeira axis. É o ponto em que o personagem está
na parte mais aguda de sua luta aberta com a realidade. É o ponto crítico na travessia
da náusea, o momento da descoberta do Ŗmundo grandeŗ , onde o tempo é sentido
em todas as suas irradiações. (...)4

Vagner Camilo também observa uma polarização da crítica e considera essa tendência de
apreciação pouco valorativa, quando confrontada com a poesia social de A Rosa do Povo ou mesmo
com a poesia objetal de Lição de Coisas. Posto isto, a problemática discutida em seu estudo é as

1
Mestranda em Letras - Estudos Literários
2
Sentimento do Mundo, José e A Rosa do Povo.
3
De Claro Enigma em diante.
4
Affonso Romano de Santř Anna. Drummond: um gauche no tempo. Rio de Janeiro, 2008, p. 21.

703
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

implicações históricas envolvidas no processo em que ele chama de retirada estratégica, referindo-
se a mudança de foco do poeta entre o livro A Rosa do Povo e Claro enigma. 1

Antonio Candido identifica os elementos da inquietude e ainda afirma que toda a obra do
poeta se apóia num sentimento de culpa. Candido vê nesta culpa o conflito que divide Drummond
entre o voltar-se a si mesmo (individual) e entre o encontro com o outro (social).

O bloco central da obra de Drummond é, pois, regida por inquietações poéticas que
provêm umas das outras, cruzam-se e, parecendo derivar de um egotismo profundo,
2
tem como conseqüência uma espécie de exposição mitológica da personalidade.

Buscando dialogar com alguns estes estudiosos, me proponho a discutir o tema da


resistência e sua manifestação estética em três poemas de A Rosa do Povo. Deste modo, o que
Candido chama de inquietações poéticas; Camilo, de retirada estratégica e Santř Anna de Eu
menor que o mundo, chamarei de resistência poética de um autor sob fortes tensões ideológicas que,
em alguns momentos, o conduz para a conciliação do social e das preocupações da linguagem
literária.

A dialética do poeta e seu tempo: abordagem teórica

Para tanto, os conceitos de evento, forma, tom e perspectiva mediarão esta leitura. Segundo
Alfredo Bosi,3 evento é todo acontecer vivido da experiência que motiva as operações textuais. A
forma é a manifestação textual do evento que encontra sua modulação através de tons e
perspectivas. Tom é a modalidade afetiva e a perspectiva refere-se à visão do escritor condicionada
por fatores históricos, culturais, ideológicos. Através destes conceitos, serão analisados três poemas
de A rosa do povo.

Foram selecionados os poemas que conciliem o tema da resistência social e da


metalinguagem, temas muito presentes na obra de Drummond. Contudo, alguns dos que melhor se
aproximam deste critério de conciliação são: Consideração do Poema, A Flor e a Náusea e Nosso
Tempo. Os outros textos, embora de grande expressividade, ora prevalece o tema social, ora
prevalece à metalinguagem, sem falar dos metafísicos e de memória familiar que compõem o livro e
não serão objetos desta pesquisa.

Contexto histórico e biográfico

Para melhor contextualizar a leitura, apresentarei alguns dados históricos e biográficos.


Estas informações, mesmo que breves, darão suporte uma analise que compreende os eventos
sociais e biográficos como parte indissociável da obra literária. Evento e forma são aspectos da obra
inter-relacionados dialeticamente.

1
Vagner Camilo. Drummond: Da Rosa do povo a Rosa das Trevas, São Paulo, 2001.
2
Antonio Candido. Inquietudes na poesia de Drummond. In: Vários Escritos. São Paulo, 2004, p. 68.
3
Alfredo Bosi. A interpretação da obra literária. In: Céu e Inferno. São Paulo, 1988.

704
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

No cenário internacional, o mundo estava em choque, pois acabava de sair da II Guerra


Mundial. O período pós-guerra foi tomado por manifestações culturais, artísticas e científicas
baseadas num novo paradigma que tenta expressar ou explicar este mundo em fragmentação. No
pensamento, a consolidação da Psicanálise e o desenvolvimento do conceito de sujeito cindido
(consciente e inconsciente) lançaram nova luz sobre a forma de compreender o homem. Nas artes,
os movimentos de vanguarda buscaram expressar esta nova cosmovisão através das artes plásticas,
música, teatro e cinema. Com a literatura não poderia ser diferente e a discordância entre signo e
significado é uma lei da lírica moderna.1 Baudelaire, um século antes, surgiu como o primeiro de
uma ilustre linhagem de rebeldes culturais da moderna poesia.2
No Brasil, o Estado Novo (1937-1945) foi o período da ditadura de Getúlio Vargas, cujas
características são marcadas por ações antidemocratas, anticomunistas, baseadas num nacionalismo
conservador e na idolatria de um líder de Estado.
Em 1945, ano da publicação de A Rosa do Povo, Drummond deixa a chefia do gabinete de
Gustavo Capanema sem qualquer atrito com este e, a convite de Luís Carlos Prestes, figura como
codiretor do diário comunista, então fundado, tribuna Popular. Afasta-se do Jornal, meses depois
por discordar de sua orientação. Esse rompimento com Partido Comunista irá refletir-se,
posteriormente, em sua produção literária.

A convergência do social e da metalinguagem: Consideração do Poema


Consideração do Poema3 apresenta pontos fundamentais da poética do Drummond de A
Rosa do Povo. Na primeira estrofe, o poeta apresenta alguns princípios de seu projeto literário.
Nesta perspectiva, a metalinguagem assume um propósito social, pois ampara uma visão estética e
política.
Não Rimarei a palavra sono
com a incorrespondível palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou outras, que todas me convêm.

Nestes versos, o autor anuncia sua perspectiva modernista sobre uma visão conservadora. Os
primeiros modernistas, os mais radicais, aboliram o emprego das rimas e outros recursos formais.
Drummond assume, mesmo que provisoriamente, a voz que rompe com certas convenções ao não
se restringir a escolha de vocábulos rimáveis e termos convencionais. No conjunto de sua obra, as
composições não rimadas predominam largamente.4 Ainda na mesma estrofe, trata de liberdade de
criação ŖAs palavras não nascem amarradas,/ elas saltam, se beijam, se dissolvem,/ no céu livre por
vezes um desenho, são puras, largas, autênticas, indevassáveis.ŗ

(...) Furto a Vinicius

1
Hugo Friedrich. Estrutura da lírica moderna. 1991, p. 150.
2
O poeta sofreu o processo judicial em 1857, ao publicar Les Fleurs du mal, uma de sua obras mais celebres. Peter Gay.
Modernismo: o fascínio da heresia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 53.
3
Drummond. A Rosa do Povo (1945). In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1979. p. 158-159.
4
Hélio Martins. A rima na poesia de Carlos Drummond de Andrade. In: Poesia e Prosa de Carlos Drummond de
Andrade. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979
705
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.


Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakoviski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.

Na segunda estrofe, o poeta firma seu vínculo com representantes da literatura de expressão
revolucionária. Vinícius de Morais e Murilo Mendes são contemporâneos da geração de 30,
também escreveram poemas sociais. Pablo Neruda, poeta chileno, teve forte participação social e
dedicou várias de suas obras aos temas sociais. A referência a gravata chamejante (vermelho da
revolução) é uma sugestão à atividade revolucionária. Apollinaire, poeta francês do século XX, em
ŖLřesprit nouveau et lés poetesŗ (1918), afirma que Ŗo Ŗespírito novoŗ é o espírito da liberdade
absoluta. A liberdade na poesia leva a escrever sobre todos os assuntos sem limitações. (...)ŗ 1
Maiakovski é o poeta russo que revolucionou a poesia. Estes são alguns dos líricos com os quais
Drummond dialoga e compartilha sua visão modernista.
Na terceira estrofe, o poeta fala da característica de seus poemas, do vínculo com sua terra,
com o homem. O local e o universal são elementos de sua literatura. Em consonância com os
modernistas, mostra a qualidade de quem escolhe os temas com liberdade e os submete a um
tratamento incomum.

Estes poemas são meus. É minha terra


e é ainda mais do que ela. É qualquer homem
ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna
em qualquer estalagem, se ainda as há.

Na quarta, o poeta modernista assume sua orientação marxista, se contrapondo ao


sentimentalismo dos românticos e à busca do inefável dos simbolistas. ŖPoeta do finito e da
matéria,/ cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,ŗ.
A consciência do alcance de seus versos, a grande aventura da linguagem e a conquista do
homem que luta com palavras.

Essa viagem é imortal, e começá-la.


Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.

As sutilezas no trato de assuntos do cotidiano conduzem a uma forma elevada. ŖEle é tão
baixo que sequer o escuta/ ouvido rente ao chão. Mas é tão alto/ que as pedras o absorvem. (...)ŗ .
Qualquer acontecimento é objeto de poesia, seja do menos ou mais elevado, todos passam, mas a
poesia resiste.

Já agora te sigo a toda parte,


e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.

1
Duas reflexões sobre a lírica: Apollinaire e Garcia Lorca. In: A estrutura da lírica moderna. p. 148.

706
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Na sétima estrofe, a relação da poesia com o povo. Como poeta modernista, além da
liberdade de explorar qualquer tema, a refinada sensibilidade com os assuntos desprezados pela
elite. Ele explorara toda sua sensibilidade sem ser panfletário e sem reduzir sua força poética. Pelo
contrário, armado de um consistente instrumental lingüístico e literário, dá forma aos eventos
pessoais e da coletividade com a mesma intensidade. ŖCom autonomia das palavras com as quais
constrñi um edifício que resiste ao tempoŗ .1 A poesia é a sua grande busca e se faz presente em
tudo. Está no cotidiano, no coletivo, no povo. Um tema marginal, mas que tem seu espaço na
literatura modernista.

A Flor e a Náusea
A Flor e a Náusea2 é um texto bastante marcante na obra de Drummond, sendo alguns dos
seus versos amplamente citados. O poema de 48 versos distribuído irregularmente em nove estrofes
manifesta uma das mais belas imagens da resistência em A Rosa do Povo. Esta resistência é reação
às fortes tensões ideológicas que, canalizadas no fazer literário do autor, assumem um valor
estético. Embora possa ser lida do ponto de vista filosófico, será analisada a partir do mal-estar do
poeta diante das contradições do mundo e de si mesmo. Dar-se-á maior atenção aos elementos
imagéticos e da forma, a fim de confrontar aspectos textuais e contextuais. Toda a sua busca por
uma poesia da alta realização estética, também há uma busca de participação na vida do seu povo.
Estas tensões poderão ser melhor visualizadas através dos tom e perspectiva poéticas3.

No título A Flor e a Náusea, aparecem dois substantivos de natureza distinta, a flor, um


substantivo concreto e a náusea, um substantivo abstrato. Isto sugere a presença de uma dialética
entre a dimensão concreta do mundo exterior e outra abstrata do mundo interior. A tensão entre o
mundo interior (poeta) e o mundo exterior (realidade) é constante.

Preso à minha classe e a algumas roupas,


Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolia, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Nota-se o jogo entre interior-exterior e uma tensão que culmina em indagações. Este jogo se
expressa pelo tom melancólico ao poeta declarar seu vínculo indissolúvel com sua classe e, ao
mesmo tempo, sua presença física coberta por roupas brancas (símbolo da pureza). O poeta fala da
classe de homens como ele, intelectual, jornalista, funcionário público. De homens que transitam
em diversos espaços sociais, dialogam com os oprimidos e também com a classe opressora e, na
maioria das vezes, não assumem claramente sua posição frente às injustiças do mundo. O poeta
pequeno-burguês sofre o mal-estar da culpa moral que geram uma grande tensão. A indagação nos

1
Hugo Friedrich. Estrutura da lírica moderna. p. 148.
2
Drummond. A Rosa do Povo (1945). In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1979. p. 161-162.
3
Alfredo Bosi, A interpretação da Obra literária. In: Céu e inferno. São Paulo, 1988.
707
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

dois últimos versos revela a sua inquietude diante do seu papel social e da sensação de impotência
diante dos fatos.1 As coisas do mundo exterior se personificam, ganham atributos humanos e o
colocam em condição passiva. São as mercadorias o sujeito do verbo espreitar ŖMelancolia,
mercadorias espreitam-me.ŗ . Quando não, atributos dos objetos do mundo exterior impregnam o
meio interior, não sendo possível separar uma dimensão da outra. ŖOlhos sujos no relñgio da torre:ŗ
Os olhos sujos revelam as inquietações e a visão de mundo impregnada pelos condicionantes
culturais e históricos, que o impede de enxergar as coisas com absoluta clareza.

Não, o tempo não chegou de completa justiça.


O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

A tonalidade melancólica permanece na segunda estrofe, mas não se trata de melancolia em


estado puro, pois ela também assume matizes de fria constatação de fatos, preanunciando
indignação. A constatação sobre o tempo e o senso de justiça revela as preocupações com assuntos
da coletividade. O vocábulo Ŗfezesŗ e outros termos de carga negativa mostram a sintonia da poesia
com eventos do mundo exterior. O ritmo, embora não seja regular, revela o prolongamento dos tons
de melancolia.
A terceira estrofe apresenta no início a mesma tonalidade das anteriores e anuncia uma
quebra no final.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.


Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que triste são as coisas, consideradas sem ênfase. (grifo meu)

Esta quebra dá fechamento às constatações enumeradas nos versos anteriores: Ŗtempo de injustiçaŗ ,
Ŗde fezesŗ , Ŗmaus poemasŗ ; Ŗsob a pele das palavras a cifrasŗ e Ŗo sol consola os doentes (...).ŗ . E
também introduz o que será desenvolvido nos próximos versos: a poesia resiste ao caos do mundo,
revestindo de beleza o que é feio e triste.

A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, Ŗesta coleção de
objetos de não amorŗ (Drummond). Resiste ao contínuo Ŗharmoniosoŗ pelo
descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso.
Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova
ordem que se recorta no horizonte da utopia.2

1
Antônio Candido. Inquietudes na poesia de Drummond. Rio de Janeiro, 2004.
2
Alfredo Bosi. Ser e tempo da poesia. São Paulo, 2000, p. 169.

708
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A ênfase está no uso da linguagem poética. Não podemos ler este poema de conteúdo social, sem
considerar as questões de metalinguagem. A beleza da poesia é capaz de criar outra realidade, de
comover e transformá-la subjetiva e objetivamente.
Na estrofe seguinte, podemos notar que o tom não é mais de melancolia, mas rancor que se
volta contra si mesmo. A forma como o poeta coloca os tempos verbais, os termos temporais e de
negação revelam essa volta introspectiva.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.


Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.

Para subsequentemente voltar se ao mundo exterior:

Todos os homens voltam para casa


Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Os eventos do mundo exterior e interior são inter-relacionados, o que não reduz o


sentimento de culpa e a consciência do papel social.
Com tom de indignação, o poeta segue a quinta e a sexta estrofes misturando fatos do
mundo e lembranças pessoais. Ele faz menção à vida de jornalista.

Crimes da terra, como perdoá-los?


Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.

Alusão irônica ao poema A morte do Leiteiro1, ŖOs ferozes leiteiros do mal.ŗ, poema dramático e
crítico que denuncia a violência banalizada do mundo moderno. Ele também relembra sua
adolescência conturbada ŖPôr fogo em tudo, inclusive em mim./Ao menino de 1918 chamavam
anarquista.ŗ 2. E por fim ŖPorém meu ódio é o melhor de mim./Com ele me salvo/e dou a poucos
uma esperança mínima.ŗ O ñdio é a revolta, a indignação que constrñi pelo enfrentamento crítico.
Ao assume sua posição contrária ao sistema social opressor, a tensão se desfaz e se transforma num
anúncio comovedor. Através da segunda quebra de tonalidade, a interrupção dos sentimentos
revoltosos se sucede ao anúncio da flor em tons de surpresa e comoção.

Uma flor nasceu na rua!


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

1
Inspirado numa notícia de jornal, narra o assassinato de um leiteiro confundido com um assaltante. ŖHá no país uma
legenda,/que ladrão se mata com tiro.ŗ
2
Segundo Santř Anna, talvez haja uma relação biográfica entre esse verso e a expulsão do jovem Drummond do
colégio, da mesma maneira que seria possível ver uma conexão entre o verso anterior e o incêndio de uma residência
em Belo Horizonte, episódio em que estaria envolvido o poeta. (p. 27-28, 2008).
709
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A contradição entre a flor que acabou de nascer é uma das mais belas imagens da resistência no
livro A rosa do povo. Flor, símbolo da fragilidade, é paradoxalmente a expressão de tudo que
resiste. Embora feia, não perde a sua natureza singela e contraditória. Portanto, não podemos
descartar a ideia de que ela tanto pode ser a metáfora da poesia, quanto de tudo que rompe com a
ordem opressora. Metáfora do povo que sobrevive à precariedade e à injustiça.

Sua cor não se percebe.


Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

A descrição da flor e a repetição de versos qualificativos mostram que, apesar de feia, uma
flor é sempre símbolo da delicadeza. Assim como um poema, mesmo que trate de eventos
desagradáveis, poderá revestir de beleza as coisas tristes do mundo.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde


e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

A flor é a representação do que há de comum, das coisas que passam despercebidas, mas
que, na linguagem do poeta, ganha profundidade e grandeza. Drummond soube carregar de
dramaticidade, através dos tons afetivos, imprimindo uma nova dimensão do real às coisas
perecíveis. A elevação do que é banal, fraco e feio, à categoria elevada: o que resiste, transcende e
permanece.

Nosso Tempo
O poema Nosso Tempo1, dedicado a Oswaldo Alves2, é dividido em oito partes. Ele trata de
um tema recorrente em toda obra de Drummond: o tempo. Mas em Sentimento do Mundo e Rosa do
povo, apresenta uma dimensão mais concreta numa ligação direta com a história social e pessoal do
poeta. O tempo, a fragmentação da matéria e a resistência serão alguns aspectos relevantes.
Na primeira parte, nota-se a relação entre tempo e sociedade com os versos ŖEste é tempo de
partido,/tempo de homens partidos.ŗ E, ao longo de todo poema, o poeta reafirmar sua visão de
mundo, através de repetições de expressões e vocábulos. O tempo é uma matéria fragmentária como
qualquer matéria bruta. ŖA hora pressentida esmigalha-se em pñ na rua.ŗ A condição de miséria dos
homens é denunciada num tom lacônico, através elipses. ŖOs homens pedem carne. Fogo. Sapatos./
As leis não bastam. Os lírios não nascem/ da lei.ŗ . E a ironia mostra que, independente das leis, os
homens estão oprimidos. As leis não garantem justiça e igualdade. Em ŖSão tão forte as coisas!/
Mas eu não sou as coisas e me revolto.ŗ Há uma denúncia ao processo de coisificação do homem, o

1
Drummond. A Rosa do Povo (1945). In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1979. p. 165-170.
2
Prosador da segunda geração de escritores mineiros composto por Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo
Mendes Campos e Hélio Pellegrine. Oswaldo Alves conhecera Drummond 1939. (CANÇADO, p. 213, 1993)
710
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

que reduz o valor humano à coisa comercializável. O poeta, sensível aos acontecimentos do mundo,
coloca-se contrário a esta perspectiva e, através de sua habilidade com as palavras, constrói versos
de grande poder sugestivo. Sua posição é humanista enquanto afirmação dos valores intrínsecos ao
ser humano.

Tenho palavras em mim buscando canal,


são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo, perderam o sentido, apenas querem explodir.

Na segunda parte, a imagem da cisão aparece para retratar o espírito da época.

tempo de gente cortada.


De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Esta imagem do rompimento reaparece no mesmo poema Ŗaparelhos de porcelana


partidosŗ, Ŗossos na rua, fragmentos de jornalŗ. ŖCom suas inquietudes, rupturas, estranhezas, o
estilo anormal atrai a atenção sobre si prñprio.ŗ 1 Assim como no primeiro verso da primeira parte
ŖEste é tempo de partido,ŗ , o da segunda parte ŖEste é tempo de divisasŗ são expressões ambíguas.
Partido e divisas possuem amplas possibilidades semânticas. O termo partido tanto pode ser referir
ao adjetivo, qualidade do que é dividido ou cortado, quanto ao substantivo partidos políticos. O
termo divisa, enquanto adjetivo, tem relação com limite demarcado, e como substantivo é o
distintivo que usam os militares. O poeta quis enfatizar a relação do tempo fragmentado com a
atmosfera política de sua época. O medo e as incertezas tomam conta, se manifestam nas artes e no
comportamento.
O contrate entre a escuridão e a luz anuncia a dualidade de uma luta incessante. O brilho é o
sinal da bondade humana que resiste a opressão e a violência absurda.

Símbolos obscuros se multiplicam.


A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo de estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! (...)

O grotesco das imagens e a construção de versos dissonantes1 dão forma aos horrores da
Segunda Guerra. As imagens da destruição e a opressão aparecem como uma explosão dos afetos.
Ŗa sala grande conduz a quartos terríveis,/ como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido
na mesa, conduz à copa de frutas ácidas,ŗ . E também mais adiante as súplicas.

ó surdo-mundo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,


moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, [
[solidão e asco,

Na quarta parte, trata-se da vida clandestina, as atitudes disfarçadas diante da vigilância, do


medo e da desconfiança de tudo e de todos.

1
Hugo Friedrich. Estrutura da lírica moderna. 1991, p. 150.

711
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

É tempo de meio silêncio,


de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

Na quinta parte, o cotidiano e a alienação das contradições sociais. Mais uma vez o grotesco
reforça o contraste entre realidades distintas. A da classe dominante ŖAs bocas sugam um rio de
carne, legumes e tortas vitaminosas.ŗ E da classe dominada ŖOs subterrâneos de fome choram caldo
de sopaŗ . Esta justaposição de fatos contrastantes revela claramente os tons e perspectivas do
poema. A ironia numa perspectiva crítico social das distorções miséria e consumismo. A
constatação do absurdo.
Como numa imagem cinematográfica, os versos seguem em sequência vigorosas de pessoas
na estação, vista pela janela de um bonde.

Homem depois de homem, mulher, criança, homem, roupa, cigarro, chapéu,


[roupa,
roupa, roupa
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem
imaginam esperar qualquer coisa,

A relação entre a intensidade da vida moderna nas metrópoles, do processo de


industrialização, do cinema e o registro histórico das imagens dos massacres da Segunda Guerra
Mundial. Em todos os versos, o distanciamento das pessoas, o esvaziamento do sentido, a
incomunicabilidade e o individualismo. Ŗe se quedam mudos, ecoam-se passo a passo, sentem-se,/
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa/ já noite, entre muros apagados, numa
suposta cidade, imaginam.ŗ. E a aparição simultânea das coisas mais dispares, ou como um filme
que alinha com rapidez imagens após imagens.1
Na sexta parte, os assuntos de família em versos de 4,5 e 6 sílabas poéticas destoam de todas
as outras que não seguem um padrão, mesmo que precário. Na construção, as mudanças de
comportamento da família contemporânea.
Na sétima, a melancolia e a desesperança como crítica da sociedade e o repúdio ao gosto
burguês. Críticas recorrentes nos artistas modernistas. Ŗminha repugnância total por vosso lirismo
deteriorado,/ que polui a essência mesma dos diamantes.ŗ
Somente na última parte aparece a esperança. A declaração do desejo de ajudar a desmontar
o sistema capitalista, expressando a responsabilidade do poeta perante a sociedade. Drummond,
muito longe de se enquadrar nesta estética do realismo socialista, não dispensou a energia pessoal
no trato de assuntos sociais. Ele imprime um estilo pessoal em sua obra. O que faz dele um poeta
único e em sintonia com o seu tempo.

1
A junção de incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de dissonância, pois gera uma tensão que tende
mais à inquietude que à serenidade. Idem, p. 15.
712
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Considerações finais

A Rosa do Povo é uma obra fundamental da literatura brasileira. Selecionar três poemas para
uma leitura reflexiva é tarefa delicada. Consideração do Poema, A Flor e a Náusea e Nosso Tempo
foram escolhidos porque são profundamente articulados. Neles, o social e a metalinguagem
assumem uma perspectiva crítica com variados tons afetivos.

Consideração do Poema, em tom de palestra, manifesta os pontos fundamentais do livro. A


Flor e a Náusea, além das tonalidades afetivas entre o melancólico e o irônico, há a surpresa e a
devoção. Finalmente, em Nosso Tempo as variações de tons sucedem entre a ironia, a indignação, o
desgosto e a esperança. Em todos os três a perspectiva modernista concilia-se com a visão crítico
social.

A leitura de poesia só verdadeiramente cumpre seu papel quando contribui com um olhar
novo sobre, ao menos, um aspecto da obra literária. É um desafio, frente ao grande volume de
estudos sobre a obra de Drummond. Assim, espero ter contribuído um pouco para a leitura destes
poemas.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad.
Carlos Felipe Moisés; Ana Maria L. Ioriati. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

_______. Céu e inferno. Ensaios de crítica literária e ideologia. São Paulo: Ática, 1988.

BRAYNER, Sônia. Carlos Drummond de Andrade. Coleção Fortuna crítica 1. 2 ed. Civilização
Brasileira: Rio de Janeiro, 1978.
CAMILO, Vagner. Drummond – Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas. São Paulo: Ateliê, 2001.
CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu Ŕ Biografia de Carlos Drummond de Andrade. São
Paulo: Scritta, 1993.
CANDIDO, Antônio. Vários Escritos Ŕ 4 ed. Rio de Janeiro: Duas cidades/Ouro sobre Azul, 2004.
FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna: da metade do século IXI a meados do século
XX. 2. ed. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1991.
GAY, Peter. Modernismo: o fascínio da heresia Ŕ de Baudelaire a Beckett e um pouco mais. Trad.
Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2009
SANTř ANNA, Affonso Romano de. Drummond: o gauche no tempo. 5 ed. Rio de Janeiro:
Record, 2008.

1
Idem, 1991, p. 148.
713
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

IMAGENS DECADENTES NA LITERATURA DE ANTÓNIO PATRÍCIO

Priscila Lira (UEA)1


Otávio Rios (UEA)1

Viver é ir morrendo a beijar a luz.


António Patrício

Introdução

A produção literária portuguesa de fim do século XIX para início do século XX nos deixou
de herança escritores como Eça de Queirós, Raul Brandão e Fernando Pessoa; em meio ao grande
número de autores que se pode citar dessa época, destaca-se também António Patrício, cujas obras
entrecruzam-se nas correntes literárias decadentista, simbolista e saudosista, e seu legado se divide
em dois livros de poemas e cinco peças teatrais, além do livro de contos Serão Inquieto. Cabe
ressaltar que a visível diferença no número de publicações entre os gêneros teatral, lírico e narrativo
aponta não só para uma preferência do autor pela produção dramática, mas também para um
infiltramento de características teatrais em toda sua obra. Em seu conto ŖDiálogo com uma Águiaŗ ,
já no título, percebemos que pode haver tendência para a dramatização, o que se confirma na
estruturação do conto, feita em tom dialogal. Em ŖSuzeŗ , outro conto, podemos notar o nível de
expressividade do narrador, que escreve como se falasse a um público.

Em ambos os textos, permeados pela estética literária decadentista, há a representação da


realidade vista por parte dos intelectuais da época, que estavam desacreditados das promessas de
progresso surgidas no seio do positivismo e demais correntes científicas e filosóficas. Nos contos
em tela são encontradas características que apontam para os sentimentos finisseculares de angústia e
desesperança, como: a) o dandismo presente nas personagens solitárias e repletas de elegância e
arrogância; b) o pessimismo encontrado nos textos por meio de referências a Nietzsche ou da
infelicidade inevitável da cocotte.

O presente artigo integra o projeto de pesquisa ŖEstéticas finisseculares: teoria, crítica e


recepeçãoŗ , que tem como objetivo traçar um painel do sentimento crepuscular em Portugal e
analisar a forma com a qual essa atmosfera foi transposta para a literatura decadentista. Antes da
leitura dos textos escolhidos, define-se as noções de decadentismo e decadência, mostrando que o
primeiro é uma proposta literária resultante do sentimento crepuscular do fim-de-século, ou, como
diz José Carlos Seabra Pereira (1995, p. 65); Ŗo desgarro agônico de quem está ainda emparedado
dentro dum paradigma de que desgostaŗ ; enquanto que a decadência é, no juízo de Matei Calinescu

1
Aluna do 4° período de graduação em Letras Ŕ Orientanda de Iniciação Científica (PAIC), com bolsa da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).

714
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

(1999, p. 37): Ŗmuito mais antiga, e provavelmente tão antiga quanto o prñprio homemŗ . Apesar da
diferença contextual e histórica dos termos, veremos que o sentimento de ruína existe em ambos.

Enquanto no percurso de algumas civilizações temos um declínio que fez o passar do tempo
se tornar um temor constante das sociedades, nos fins do século XIX o que se configurava era uma
decadência espiritual. De acordo com o filósofo Eduardo Lourenço (1993, p. 317), havia um
profundo sentimento de cansaço, de frustração e de desilusão que foi transposto para as artes desse
período. Os três ensaístas guiam teoricamente o desenvolvimento deste trabalho.

O artigo organiza-se em três sessões, a saber: a) noções de decadência, sua definição e


causas; associação do sentimento de decadência do fim de século à estética decadentista e,
posteriormente, a apresentação dos dois contos de penhor decadente a serem estudados; b) análise
propriamente dita da estética literária, permitindo a leitura crítica dos contos escolhidos,
evidenciando, no corpo do texto, como esses traços se figuram dentro das obras, sobretudo por meio
das seguintes características: dandismo e pessimismo.

Preceitos do decadentismo finissecular

Decadência e decadentismo estão permeadas pela mesma noção de declínio, porém surgiram
em diferentes contextos históricos que as levam a possuir características que separam suas
significações e usos. Enquanto decadentismo é uma estética literária resultante do sentimento de
angústia presente no fim de século, decadência pode ser usada para representar o estado de uma
sociedade em vários períodos da história.

Para entendermos o decadentismo devemos encontrar no sentimento de decadência,


características que se igualam e que se diferenciam da atmosfera e da estética literária finissecular.
Não é, por conseguinte, possível entender a proposta artística sem percebê-la dentro do que se pode
designar por temor ao fim-do-século.

Enquanto o século XIX presenciava o advento da ciência, a crença na ordem e progresso, o


crescimento das cidades e a consolidação de uma civilização evoluída, intelectuais europeus
pensavam em um fim de século não tão próspero como estava sendo dito. Se por um lado havia
tamanho desenvolvimento, também se podia notar que a desigualdade e a marginalização da maior
parte da população continuava gerando os Ŗvencidosŗ (Benjamim, 1995). A percepção
intelectualizada de que o positivismo falhou será a fonte para o aflorar da sensação de ruína
finissecular.

O valor de decadência acompanha diversos momentos da história e apresenta-se como um


temor constante desde o princípio da humanidade, como nos mostra Matei Calinescu (1999, p. 137):

1
Professor Assistente de Literatura Portuguesa (orientador).

715
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

se o substantivo latino decadentia, do qual derivam palavras relacionadas nas modernas


línguas europeias (decadence em inglês, décadence em francês, decadenzia em Italiano,
Dekadenz em Alemão, etc.), não foi usado antes da Idade Média, a própria idéia de
decadência é muito mais antiga, e provavelmente tão antiga quanto o próprio homem. O
mito da decadência era conhecido, sob uma forma ou outra, de quase todos os povos
antigos. A destrutividade do tempo e a fatalidade do declínio estão entre os mais relevantes
motivos de todas as tradições mítico-religiosas [...].

Pensamos então, que a decadência não está presente apenas no imaginário das civilizações,
mas passou a ser temida justamente por se encontrar no ciclo vital de todo ser humano e ter-se
tornado inevitável no percurso de algumas sociedades. Essa Ŗfatalidade do declínioŗ associa-se à
apreensão do homem em relação à passagem do tempo, que gera uma sensação de que estamos
sempre indo em direção ao fim. Porém, esse é um fim menos fruto de sensações e teorias como
acontece com o decadentismo. A crise e o fim do Império Romano, assim como as profecias cristãs
de fim do mundo falam sobre um fim material, fatos que marcam, na história da humanidade, o
preceito de decadência como fato consumado, muitas vezes datável e passível de uma análise
estruturada.

Esse declínio estrutural também está presente em momentos da história portuguesa. Sabe-se
que no início do século XIX, Portugal é invadido por tropas francesas e espanholas, o que leva Dom
João e sua corte a partir em direção ao Brasil. A seguir, a metrópole vê extirpar-se do império
ultramarina sua colônia mais importante, fato que marcou a memória nacional, ferida aberta no seio
de uma monarquia que, lentamente, agoniza. Essa decadência, assim como outras crises pelas quais
Portugal passou, como os 41 anos de governo salazarista, elucida a presença da decadência na
história das civilizações, Contudo, os acontecimentos históricos e políticos não devem ser
confundidos com o decadentismo finissecular, embora se possa dizer que deste recebe algum
direcionamento.

Nos fins do século XIX, encontramos um profundo sentimento de desgosto com o caminho
que está sendo tomado pela humanidade, impressão que se limitava ao pensamento intelectual da
época que ia contra às correntes cientificistas e positivistas, marcas daquele tempo. Eça de Queirós,
em ŖA Decadência do Risoŗ, defende que as razões da melancolia finissecular eram justamente o
excesso de desenvolvimento do homem: ŖEu penso que o riso acabou Ŕ porque a humanidade
entristeceu. E entristeceu Ŕ por causa da sua imensa civilizaçãoŗ (Queirñs. s/d. p.223). O excesso de
civilização citado por Eça, causou tal tristeza não por mudar os rumos do mundo ocidental, mas por
não ter chegado a todas as esferas da população e ter desvalorizado a individualidade ao mesmo
tempo em que tornava o homem cada vez mais só e mais um elemento na maquinaria do mundo.

Se por um lado, o século XIX trouxe consigo uma revolução técnico-científica grandiosa,
por outro, as esperanças de um mundo melhor onde as chagas da humanidade seriam curadas não
foram concretizadas. Tal decepção levou a intelectualidade a sentir que não havia mais esperanças,
que o mundo estava perdido, que chegava o fim dos tempos:

716
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Há cem anos, fin de siècle não era uma simples e óbvia constatação cronológica, como
todos os séculos anteriores a podiam ter feito, sem que tal ideia tivesse sido imaginada. Fin
de siècle, se não significava fim do mundo, exprimia para uma parte significativa da
<<intelligentsia>> europeia de então Ŕ e da que repercutia noutros continentes - um sentido
de cansaço, de frustração, de decadência e, sobretudo, de desilusão (Lourenço, 1993, p.
317).

Será essa a decadência encontrada nas propostas literárias de alguns autores do fim do
século XIX e início do século XX. A descrença com a sociedade gerava um vácuo aos pés de quem
não tinha mais em que depositar esperanças ou em quem se apoiar para seguir em frente. Em meio a
essa solidão surge a necessidade de expressar os sentimentos que tanto afligiam os intelectuais e a
escrita decadente nasce como um grito de socorro em meio ao cansaço resultante da euforia causada
pelas promessas de mudança. Não havia outra forma de sobreviver ao fim que não fosse a denúncia,
como dito por Eduardo Lourenço (1993, p. 320-321):

[...] esses tempos eram tão originais que não podiam ainda ser vividos senão
negativamente, pela fuga ao que neles emergia, isto é, o primeiro esboço de uma sociedade
de massas, cuja simples visão provocava uma espécie de náusea, ao mesmo tempo social,
política, espiritual para os que apercebiam essa emergência como o anúncio da morte do
indivíduo.

A indignação com um tempo em que a vida servia simplesmente como uma espécie de
engrenagem para o funcionamento de uma máquina e em que a individualidade tornava-se cada vez
menos valorizada motivou a produção de uma literatura crepuscular, que mostrou um mundo em
ruínas onde suas personagens transitam entre a vida e a morte e andam de mãos dadas com a
solidão. A literatura decadentista nasce para sujeitar a realidade a uma interpretação de quem
enxergava além dos discursos de progresso, como afirma José Carlos Seabra Pereira (1995, p. 65):

o Decadentismo não é o regresso da revolta positiva do Romantismo, mas o desgarro


agônico de quem está ainda emparedado dentro dum paradigma de que desgosta. Por isso,
muitas das suas características se conectam com o ímpeto de sujeitar o real Ŕ tal como era
dado na visão positivista Ŕ a uma desconstrução operada pela estranheza de representação
impressionista e da transfiguração expressionista.

Se há seres cadavéricos na literatura decadente, lugares grotescos ou sombrios, essas


imagens resultam da crítica ao que se estava sentindo. Com o pensamento pragmatista e o senso
comum cada vez mais presentes na sociedade, o indivíduo torna-se menos importante e percebe que
está só em meio a uma multidão amorfa e também solitária:

717
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

o profundo sentimento de angústia Ŕ de desconcerto e de descompasso -, do qual está


embebido o período finissecular, logo ganhou forma nas artes plásticas e na literatura,
traduzindo, em certa medida, o modo de sentir a vida nas grandes metrópoles europeias
(Paris, Londres e Berlim) e, em menor intensidade, nas cidades da periferia da Europa,
como Lisboa e Coimbra (Rios, 2008, p. 160).

Portugal teve sua contribuição com a estética literária finissecular, sendo António Patrício
um de seus expoentes. Suas obras são formadas por imagens que constroem uma literatura onde
vida e morte coexistem. Assim como fazer parte de um mundo em que não se tinha mais esperança,
era uma espécie de morte em vida, suas personagens são como cadáveres que erram pelo mundo em
busca de um sentido ou lamentando a falta deste.

Em Diálogo com uma Águia, o narrador que surge como um ser solitário, porém satisfeito
com seu modo de vida, é convencido por uma ave de que a humanidade não tem mais salvação.
António Patrício, além do pessimismo que envolve todo o seu texto, faz citações diretas a
Nietzsche, filósofo bastante apreciado por seu niilismo e fez estudos sobre a decadência e a ação
desta sobre o homem. Cabe ressaltar que Nietzsche é citado pela Águia (personagem ou alegoria), o
que além de reforçar o sentimento de descompasso, revela a erudição do animal, que viveu grande
parte da sua vida em meio à sociedade.

Por sua vez, em Suze, o narrador melancólico e desesperado conta sua história com uma
cortesã, já morta, que não era como uma prostituta comum. A protagonista é uma espécie de dândi
feminino, seus gestos, suas atitudes, seu vestuário são de uma elegância que encobrem a verdadeira
realidade da cocotte e sua arrogância e indiferença disfarçam a solidão e mesmo o anúncio da
morte.

Figurações da Decadência

É possível encontrar nos contos a forma com a qual o dandismo das personagens se envolve
e se confunde com o pessimismo de seres que fingem não se importar com o mundo e mesmo com a
sua própria existência, mas que, em verdade, sentem-se desesperados ao encontrar a solidão e
perder a identidade em meio a um mundo em ruínas.

No conto ŖSuzeŗ , a cocotte é descrita como possuidora de uma classe e requinte incomuns
entre as cortesãs; é artificial em seu modo de andar e porta-se como alguém superior. Seu ar blasé é
acentuado pela pouca importância dada a coisas aparentemente irrelevantes, uma vez que, para
Suze, tudo são detalhes. Porém, ao se tratar de beleza, mesmo não perdendo seu tom indiferente,
demonstrava atribuir real atenção, como se percebe no fragmento: Ŗ[...] a Suzanne era finíssima, e
se tolerava o conde é porque não via melhor e porque, enfim, o Amieiro não o vestia malŗ (Patrício,
1995, p. 73). A personagem mostra-nos que sua postura aproxima-se mais com a proposta do dândi
que com o comportamento da cortesã.

718
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O dandismo, como nos lembra Ana Cristina Correa Gil (1996, p. 11) é Ŗo artifício e o luxo
como uma arte de viverŗ . O culto à beleza e à artificialidade, a excentricidade, o vestir rebuscado
estão presentes nessa mulher de forma explícita; negar seu dandismo é negar sua existência. Como
um dândi feminino, a personagem parece existir para Ŗcultivar a idéia do beloŗ e Ŗsatisfazer suas
paixões, de sentir e de pensarŗ (Baudelaire, 2002 , p. 41). Suze anda, pensa e age como um dândi:

De começo podiam julgá-la artificial, tão estilizada era a tua graça, tanto o teu requinte
parecia consciente e erudito, traindo-se em tudo: no andar elástico, no dandismo sóbrio, e
até no ruge-ruge da sua voz de alcova e confidência. Mas não: viam-na mal. Ela era assim
sem esforço, naturalmente: ela nascera uma obra de arte (Patrício, 1995, p. 78).

A artificialidade de Suze chama atenção para algo que não é sua condição social. A
decadência (moral) de ser uma prostituta e a solidão (espiritual) resultante de sua profissão são
escondidas por sua aparência e por seus modos. Processo semelhante é presente no ŖDiálogo com
uma Águiaŗ , em que a ave, com seu ar arrogante e alegando alta estirpe, busca mostrar que a ruína
física (velhice) não reflete sua verdadeira identidade, como obeservamos no trecho a seguir:

Eu então requintei-me de pedantismo e perguntei-lhe a rir de que alta estirpe, de que


águias reais, de que família, ela veio a cair nesse poleiro [...] Sacudiu as longas asas
poeirentas e com uma voz de sono começou: -Dřalta estirpe, sim, duma família de águias
antiqüíssima (Patrício, 1995, p. 16).

A águia encontrada pelo narrador habitava um poleiro sujo e seu estado físico era
deplorável. Ainda assim, a ave apresenta-se como superior ao homem com quem conversa: ŖNão
era o impossível realizado dessa carcaça d´águia a falar alto, a falar como eu, que me empedrava
nem sequer o estranhei naquele instante; mas o dolorosíssimo com que ela me chamou isso aí foraŗ
(Patrício,1995, p.16). Essa atitude superior também contribui para a lapidação da figura de dândi,
que não deve jamais se mostrar como ser que sofre ou que é inferior, tal como afirma Baudelaire
(2002, p. 41): ŖUm dandy pode ser um homem sofredor; mas, nesse último caso, sorrirá como
Lacedemñnio sorriu quando foi mordido pela raposa.ŗ O sofrimento do um dândi não pode fazer
parte de sua imagem. Mesmo visível a situação da águia, a personagem age como se nada a afetasse
da mesma forma que a cocotte quando anuncia sua doença parece não se preocupar com o estado de
saúde, mostra-se mais interessada com o animal de estimação (a gata) que estava a amar um gato do
terceiro andar:

na última (carta) contava ela com uma coragem simples, como o mais fútil incidente, que
ia entrar prò hospital pra ser operada. Anuciava-me isto entre o projeto de vestido gris-
taupe, que iria bem à sua tinta de viciosa pálida, e uma chuva de detalhes sobre a gata, a
amar com romance e com luxúria um gato magro do terceiro andar (Patrício, 1995, p.
71).

719
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Suze, doente, age exatamente da forma com a qual sempre agiu, dando mais importância à
beleza dos gatos que à possibilidade da morte. Porém, como vimos no decorrer, as personagens
usam artifícios para mascarar a ruína, atitudes próprias ao dândi, ao mesmo tempo em que é
conhecedor da sociedade, é solitário, fruto de um fim-de-século em que, nas palavras de Ana
Cristina Correa Gil (1996, p. 18):

a solidão provocada pelo afastamento do meio social [...] revela uma hiperconsciência
dolorosa num fim-de-século marcado pela decadência e o pessimismo. Face ao desabar de
crenças religiosas e políticas, o dândi procura a sua própria identidade; ele é um sujeito
dilacerado em constante deambulação, que vive simultaneamente dentro da sociedade e à
margem dela...

As personagens de António Patrício são solitárias. Suze continuava a ser uma prostituta sem
ter a quem se apoiar em sua vida e no momento de sua morte. A imagem que o outro tinha sobre
esta mostra que ninguém realmente a conhecia e o narrador, que parece entender Suze, não pôde
aproximar-se verdadeiramente de sua amada. Já a águia cansada e desesperançada, não possui
família e não vive verdadeiramente entre os homens. Além disso, convence o narrador de que
ambos estão sozinhos e que o mundo está perdido.

O dandismo nasce dentro dessa realidade como uma espécie de escape, o que também ocorre
na realidade finissecular, observando a sensação de ruína sentida pelos intelectuais, presente, como
vimos nos personagens de uma estética decadente, revelando o que Seabra Pereira chamou de
Ŗencruzilhada do fim-de-séculoŗ.

A decadência traz consigo certo pessimismo que em vez de rebaixar as personagens, acaba
por atribui-las um certo poder de sedução com seu interlocutor. Suze atrai homens e a Águia o
narrador. A forma com a qual o pessimismo é usado nos contos é um instrumento dos personagens,
feito para transmitir a ruína e ao mesmo tempo fazê-la parecer tentadora:

Para Nietzsche, a estratégia da decadência é tipicamente a do mentiroso que engana ao


imitar a verdade e ao fazer as suas mentiras ainda mais credíveis do que a própria verdade.
Destarde no seu ódio pela vida, nas mascaradas decadentes como forma de admiração por
uma vida superior, e por causa da sua mestria na arte da sedução, ela é capaz de fazer a
fraqueza parecer-ser com a força, a exaustão com plenitude, a cobardia com coragem. A
Decadência é mais perigosa porque ela sempre se mascara como seu oposto (Calinescu,
1999, p. 161).

É justamente o que ocorre com as personagens de Patrício: usam o pessimismo em seu favor
mascarando o estado do eu para o outro. Quando o narrador diz querer tirá-la do poleiro imundo
onde vive e dar-lhe a oportunidade de retornar à família, a águia responde: ŖEu?!...Sair deste
poleiro, da gaiola? Não sou doida varrida por enquanto. Sair da minha casa, do conforto, přrá
720
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

incerteza da noite, přrñ mistério?... Sou uma águia mas vivi entre homens. Já estou civilizada, meu
senhor...ŗ (Patrício, 1995, p. 28). A ave sugere que sua atual condição é melhor que a liberdade,
mesmo estando experimentando um estado decadente.

Ao dizer que já está civilizada, a águia nos faz lembrar Eça de Queirós defendendo que o
excesso de desenvolvimento é o culpado pela melancolia da sociedade. O pássaro, dizendo-se
civilizado, sente que não pode mais voltar à antiga vida, tal atitude nos remete ao personagem de
Eça de Queirñs (2010), em ŖA Cidade e as Serrasŗ , Jacinto: um homem completamente dependente
da civilização e que gosta do caos trazido por ela ao mesmo tempo em que sofre com as chagas da
sociedade. As personagens de Patrício, assim como o homem finissecular, tornaram-se tão repletos
de civilidade, que se desligar de seus costumes e de sua realidade é algo impossível. Por isso o fim-
de-século causou no intelectual tanta agonia, sentia-se que a ruína era inevitável, o fim dos tempos
realmente havia chegado e não havia alternativas. Resultado dessa percepção foi a estética
decadentista, a fuga do intelectual para um universo onde o crepúsculo visivelmente tomava conta
da realidade, onde a decadência espiritual finissecular transforma-se em um verdadeiro estado
decadente.

Referências bibliográficas

BAUDELAIRE, Charles. "O dandy". In: O pintor da vida moderna. 5 ed. Pósfácio de Teresa Cruz.
Lisboa: Vega/Passagens: 2009. p. 41-45.

CALINESCU, Matei. ŖDecadentismoŗ. In: As Cinco Faces da Modernidade. Lisboa: Vega Editora,
1999. p. 137-175.

GIL, Ana Cristina Correia. Figuras de Dândi na Literatura Portuguesa do Século XIX. Lisboa:
Universidade de Lisboa, 1996.

LOURENÇO, Eduardo. ŖDois Fins de Séculoŗ In: O Canto do Signo: Existência e Literatura
(1975-1993).Lisboa: Editorial Presença, 1993. p. 318-329.

PATRÍCIO, António. Serão Inquieto. Lisboa: Relñgio Dřágua Editores, 1995.

PEREIRA, José Carlos Seabra. História Crítica da Literatura Portuguesa: Do fim de século ao
modernismo. Lisboa: Verbo, 1995.

RIOS, Otávio. ŖHúmus, um Romance em Deriva: Notas Sobre a Problemática do Tempoŗ. In:
Diadorim, 3. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. p. 159-171.

QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. 4° ed. São Paulo: Martin Claret, 2010.

QUEIRÓS, Eça de. ŖA Decadência do Risoŗ. In: Notas Contemporâneas. Porto: Lello e Irmão, s/d.
p. 219-225.

721
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

SOPHIA ANDRESEN E A SANTIDADE DO POETA

Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira (GEPELIP/UFAM)

Resumo: Neste artigo, pretende-se discutir o significado lingüístico-literário da palavra Ŗsantidadeŗ


no poema Santa Clara de Assis, do livro No tempo dividido (1954), e no conto Retrato de Mônica,
do livro Contos exemplares (1962). No primeiro, a mencionada palavra está relacionada com a
atenção para a vida, a procura de descobrir ou experimentar a realidade e a transparência com que
esses dois gestos são expressos através da arte. No segundo texto, a Ŗsantidadeŗ corresponde ao
despojamento de normas que impedem a experiência renovadora, o qual acontece quando o homem
faz uma escolha que o torna integro. Em ambos os textos, há a proposta de interligar a poesia com a
vida.

Palavras-chave: santidade, poesia, Sophia Andresen

Abstract: At this article we intend to discuss the signify linguistic and literary of the Ŗsanctityŗ to
the poet in two texts from Sophia Andresen: the poem Santa Clara de Assis, from the book No
tempo dividido (1958), and the novel Retrato de Mônica, from the book Contos exemplares (1962).
At the first text that word means the attention for the live, the look for discover or experiment the
reality and also the transparence that the both actions are expressed by the art. At the second text
Ŗsanctityŗ means the refuse to obey the norms imposed by the society without think about those
because it interdict new and renovated experiences which happen when the man chooses live
according the integrity. In both of that texts the poet proposes that live and poetry are intimately
connected.

Keywords: sanctity, poetry, Sophia Andresen

Introdução

Sophia de mello Breyner Andresen Nasceu em1919, no período do entre-guerras, marcado


por eventos históricos importantes, como a Quebra da Bolsa de valores de Nova York, a Guerra
Civil Espanhola, a ascensão dos regimes políticos como o fascismo e o nazismo. Período também
marcado pela implantação do socialismo, com a criação da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, o qual se opôs à hegemonia capitalista dos Estados Unidos da América. Dessa
bipolaridade culminou a Guerra Fria. Especificamente em Portugal ocorria a ascensão da ditadura
de Antônio de Oliveira Salazar.

Quando a Segunda Guerra Mundial eclode, em 1939, Sophia Andresen tem 19 anos. Essa
experiência, que termina em 1949, após o lançamento da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki,

722
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

confere a certeza, a muitos intelectuais, de que a crescente destruição engendrada pelo próprio
homem, movido pelo desejo de poder, colocava em perigo o planeta. Para despertar a reflexão a
esse respeito, a poetisa escreve considerável parte de seus poemas, convidando o leitor a olhar a
beleza do mundo, que é construído pelo equilíbrio de forças opostas, equilíbrio que dá o ritmo da
existência das coisas e que nas atitudes do homem pode ser considerado como a ética. Tomando a
harmonia da natureza como exemplo do cuidado do homem consigo mesmo e com os outros,
entende-se o significado de ética.

O mundo configurado segundo a sintonia perfeita é, para Sophia Andresen, a Poesia com
letra maiúscula. Seus poemas, então, seduzem o leitor a procurar o bem viver, sendo necessário,
para isso, atenção com todos os gestos. Por outro lado, os poemas dessa poetisa falam também com
amargura da insensibilidade de grande parte dos homens que os impede de reconhecer sua
separação desse mundo. Para ela, esses homens Ŗtrabalham incessantemente com as fúriasŗ ,
formando assim a Ŗcivilização mutilante e exilanteŗ . Por isso, em alguns artigos e entrevistas, ela
denuncia a péssima qualidade de vida na cidade, a má administração da coisa pública, a corrupção,
a descaracterização da paisagem do litoral, das moradias nas pequenas cidades e vilas, o descuido
com a instrução e a saúde, a Guerra Colonial e até mesmo a dicção da língua portuguesa no próprio
país. A amargura, porém, é superada pela procura da justiça, procura que é semelhante à da poesia.

Terminada a Segunda Guerra, Sophia Andresen tem 26 anos, e seu primeiro livro, Poesia, já
foi publicado, numa edição do autor em 1944, com poemas escritos desde os 13 anos. Alguns dos
outros poemas escritos nessa fase foram também publicados no livro Dia do mar, dessa mesma
década, e nos livros Coral e No tempo dividido, da década de cinqüenta, nos quais a poetisa mostra
a beleza do mundo e sua natureza transformadora, ao mesmo tempo em que critica os homens que
se encontram alienados de tudo isso.

Vida em santidade em oposição à vida mundana

O livro No tempo dividido concentra as imagens da Ŗnoite densa de chacaisŗ. Sua primeira
seção, com nove textos, intitulada Poemas de um livro destruído, foi primeiramente publicada em
1972, na Revista Fevereiro – Textos de Poesia, e passou a integrar este livro desde sua segunda
edição em 1985, sendo a primeira de 1954. A maioria dos poemas trata da perda da pátria da poesia
e, ao mesmo tempo, da pátria portuguesa, numa referência ao descontrole socioeconômico e
político, ao momento de ditadura por que passa a nação, na qual o poeta se sente exilado ou
incompleto, com medo, horrorizado, abandonado e impedido de usufruir o presente. O poema
seguinte testemunha esse tempo: Parece que eternamente sobre a terra/ Choverá desolação e frio/ A
mesma neve de horror desencarnada/ A mesma solidão dentro das casas 1. As imagens mostram um
tempo onde Ŗpareceŗ perdurar o medo e a solidão gerada pelo terror da Ŗdesolaçãoŗ e do Ŗfrioŗ. É o
Ŗtempo da indigênciaŗ , do perigo de a vida perder definitivamente seu significado. Esse poema é,

1
ANDRESEN, S. M. B. No tempo dividido, 2003, p. 13.

723
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

no entanto, o único da série inteiramente marcado pela negatividade. Nos outros, o Ŗtempo
divididoŗ predomina, mas há a invocação do acordo universal, mesmo junto com as contestações
das noções de verdade e de saber. Há também a proposta de dar importância ao gesto de modo a
entender que a ação é única e renovadora, libertando por meio da interação das coisas, as quais
possuem corpo que se basta.1

Na segunda seção de poemas de No tempo dividido, o poeta vence a luta contra o deus
Cronos, porque guarda a poesia Ŗcomo quem recorda a amadaŗ e propõe a vida compartilhada.
Reconhecendo, porém, a destruição no Ŗtempo divididoŗ, ele denuncia essa ruptura e reinventa o
acontecimento, tornando-o alternativa para experimentar o real. É a poesia que ordena ao poeta que
vença o desencanto por meio do fazer artístico, revigorando-se nele para afrontar o Ŗtempo
divididoŗ, como se lê neste poema: Serenamente sem tocar nos ecos/ Ergue a tua voz/ E conduz
cada palavra/ Pelo estreito caminho./ Vive com a memória exacta/ De todos os desastres/ Aos
deuses não perdoes os naufrágios/ Nem a divisão cruel dos teus membros./ No dia puro procura um
rosto puro/ Um rosto voluntário que apesar/ Do tempo dos suplícios e dos nojos/ Enfrente a imagem
límpida do mar.2 A poesia ensina ao poeta a firmeza, a autoridade, a franqueza e a atenção no
emprego da palavra e assim encontrar alguém que tenha a coragem de compartilhá-la. Assim
estimulado, o poeta reafirma sua missão.

Santa Clara de Assis

Eis aquela que parou em frente


Das altas noites puras e suspensas.
Eis aquela que soube na paisagem
Adivinhar a unidade prometida:
Coração atento ao rosto das imagens,
Face erguida,
Vontade transparente
Inteira onde os outros se dividem.3

Segundo a narrativa cristã, Santa Clara é uma das primeiras pessoas que atende ao chamado
de São Francisco para viver segundo a Ŗsantidadeŗ , fazendo de sua vida auxílio aos pobres e
doentes, sendo, por isso, perseguida por sua família. Clara é a imagem do poeta, porque ambos
procuram ser Ŗum com todosŗ . Para Sophia Andresen, a santidade é um estado poético e religioso,
em que as ações se dão em acordo universal, sendo Ŗuma transparência total (...) uma arte de
morrer.4 Indiferentes a esse gesto, os homens que vivem como escravos do trabalho e do dinheiro,
isto é, que estão no Ŗtempo divididoŗ, deixam o poeta à margem, mas este permanece no
compromisso de mostrar a dignidade do bem viver. O bem viver, para a poetisa, é a busca da
sintonia perfeita com a natureza, e esta, por sua vez, exige do homem prudência e justiça em suas

1
ANDRESEN, S. M. B. No tempo dividido, 2003, p. 17. Transcrevemos o poema IX: ŖComo é estranha a minha
liberdade/ As coisas deixam-me passar/ Abrem alas de vazio pra que eu passe/ Como é estranho viver sem alimento/
Sem que nada em nñs precise ou gaste/ Como é estranho não saberŗ.
2
ANDRESEN, S. M. B. No tempo dividido 2003, p. 47.
3
Ibid., p. 42.
4
ANDRESEN, S. M. B. Entrevista a Maria Armanda Passos, 1982, p. 3.

724
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ações particulares e coletivas. Esse pensamento está de acordo com o de vida em sociedade
praticado pela pñlis grega e que, segundo Aristñteles, Ŗé uma espécie de dever para aqueles a quem
a natureza deu a vidaŗ 1. A Ŗsantidadeŗ é, portanto, a ação decorrente da escolha de construir o
destino junto com todos, ainda que a maioria não compartilhe o mesmo sentimento e que tal atitude
implique alguns riscos como o de o artista ser marginalizado por aqueles que não compreendem
esse gesto.

Um dos riscos da Ŗsantidadeŗ que o entrevistador Virgílio de Lemos verifica na obra


andreseniana é o de que Sophia Andresen aproximar seu fazer poético da bruxaria, porque ela
constrói uma ambiência de magia e de mistério. A essa observação de Lemos, a poetisa responde
que prefere não falar sobre isso, porque ela teme as forças sombrias, das quais precisa se aproximar
durante sua atividade poética e ao mesmo tempo evitar dar-lhes voz.2 Então, o poeta aproxima-se do
caos porque dele retira a linguagem com a qual constrói o poema.

Sophia Andresen aprofunda a questão da Ŗsantidadeŗ ao escrever sobre Hölderlin, pois este
não permite que o terrestre, entendido como o viver cotidiano, seja pervertido em mundano. Por
isso, o poeta alemão invoca, decifra e revela o equilíbrio do universo para os homens que vivem nos
Ŗtempos da indigênciaŗ 3, isto é, que se deixam escravizar pela rotina de trabalho em busca de bens
materiais.

No ensaio Hölderlin ou o lugar do poeta, publicado no Suplemento Letras, Artes,


Atualidades, do Jornal do Comércio, em 1967, a poetisa escreve sobre a relação do poeta com a
sociedade burguesa, em que este poeta testemunha o drama de se ver colocado à margem dela e em
sua terra natal, ao escrever poemas nesses Ŗtempos de indigênciaŗ , em que as pessoas renunciam à
vida digna. Segundo a poetisa,

A humanidade fabrica estruturas que a deserdam e a maior parte dos homens aceita esse
roubo de sua herança, considerando que ele faz parte do terrestre. Aceita a perda da sua
pureza, a decadência do seu ser como um preço do estar na terra, como um imposto de
habitação.1

Sophia Andresen escreve ainda que, ao mesmo tempo, porém, a sociedade mundana aceita
os poetas que agem como Ŗpilares duma cultura oficialŗ, enquanto exclui aqueles que se
incompatibilizam com seus Ŗhomens que trabalham incessantemente com as fúriasŗ , por não serem
necessários para tal grupo. Por isso, a poetisa afirma que, na mesma Alemanha onde predomina a
dessacralização, há também a Alemanha romântica, formada por Ŗapenas alguns homensŗ que
inventam o encontro com as coisas terrestres para, assim, descobrirem a inteireza e a liberdade de
viver. Eles mostram o mundo sagrado no qual está a poesia. Dentre eles, Hölderlin que aprendeu em

1
Aristóteles. A política, 2006, p. 53.
2
ANDRESEN, S. M. B. Entrevista a Virgílio de Lemos, 1989, p. 22.
3
ANDRESEN, S. M. B. Hölderlin ou o lugar do poeta, 1967, p. 1 e 11.

725
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

suas leituras da cultura grega que a obra possui Ŗsantidadeŗ e o Ŗterrestreŗ possui dignidade,
ensinando essa lição ao homem moderno. Segundo Sophia Andresen, esse escritor alemão é Ŗo
poeta em estado puroŗ , porque mostra sua Ŗvocação total ao sagradoŗ , quando Ŗdá ao terrestre uma
atenção religiosaŗ . ŖNaquela consciência das coisas e do ser que vem de Homero aos nossos dias,
Hölderlin é um dos testemunhos mais luminosos, mais perfeitos, mais purosŗ. 2 Ela afirma que, na
escrita poética de Hölderlin, Ŗa missão do poeta é invocar, decifrar e mostrar [a beleza que é
inseparável da pureza]ŗ . A pureza desse poeta o torna Ŗapto a leituras das coisas, do gesto criador
que nas coisas se mostraŗ , mas, conforme Sophia Andresen, essa mesma pureza o coloca num
Ŗreino terrívelŗ , porque, por causa dela, a sociedade o abandona, e ele passa a escrever poemas Ŗno
meio deste mundo de fúria estérilŗ .3

Para a poetisa, a Alemanha romântica é a pátria da poesia e, desse lugar, Hölderlin Ŗensinaŗ
que a poesia Ŗé mestra do ser, conhecimento que precede todo conhecimento, escolha que precede
todas as escolhasŗ . Assim, Sophia Andresen concorda com a atitude do poeta alemão de negar tudo
o que torna os homens indignos de viverem com justiça e de propor que eles vivam conforme a
sintonia perfeita de que é modelo a poesia.

As ideias de Sophia Andresen sobre a poesia e o poeta em Hölderlin ou o lugar do poeta são
recorrentes às do ensaio Caminhos da Divina comédia. Em ambos, a poesia é o compromisso de
denunciar a injustiça e mostrar a liberdade e a alegria de bem viver, e o poeta é sua obra e sua vida.
Embora a ensaísta não escreva os termos poesia empenhada nem poeta político no ensaio sobre
Hölderlin, como o faz no outro ensaio mencionado anteriormente a este, fica claro que, nos Ŗtempos
da indigênciaŗ , a poesia exige do poeta a atitude de negação, denúncia e testemunho do
desequilíbrio do homem com a vida. Neste sentido, a poesia é o lugar da transgressão e da
revolução da injustiça para reinventar o acordo entre as coisas.

Na obra andreseniana, a poesia empenhada e o poeta político aparecem com mais


intensidade a partir do livro No tempo dividido, onde o poeta é um exilado que resgata a memória
da pátria da poesia - cuja imagem é a Alemanha romântica no ensaio a respeito de Hölderlin - para
o homem que vive como autômato. Como se lê no poema O que eu queria dizer-te nesta tarde/ Nada
tem de comum com as gaivotas4, o poeta escreve que, ao contrário do que esse homem pode pensar,
a poesia não é atividade alheia à vida, mas sim abertura para refletir sobre esta, pois ela possui
como tema as coisas que são da realidade vivida, jamais de questões que desconhecidas de todos.

O livro Contos exemplares, publicado em 1962, é contemporâneo dos poemas de Livro


sexto, sendo esta a obra com o qual Sophia Andresen ganhou o Prêmio da Sociedade Portuguesa de
Escritores. Ambas as publicações possuem como tema em comum o fato de a escrita poética exigir

1
Id., Hölderlin ou o lugar do poeta, 1967, p. 1/11.
2
Ibid, loc. cit.
3
Ibid, p. 1/11.
4
ANDRESEN, S.M.B. Tarde. No tempo dividido, 2003, p. 24.

726
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

do poeta a mesma atenção moral que é também necessária à própria vida. Em ambos os livros, a
poetisa critica ações que se afastam e outras que buscam tal exigência.

Um exemplo de quem se afasta do gesto moral, poético e vital, é fornecido por Sophia
Andresen num dos textos de Contos exemplares, chamado Retrato de Mônica, em que esta é assim
descrita:

Mônica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de
família, ser chiquíssima, ser dirigente da Liga Internacional das Mulheres Inúteis, ajudar o
marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar
muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostr dela, dizer bem de
toda a gente, toda a gente dizer bem dela, colecionar colheres do século XVII, jogar golfe,
deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstrata, ser
sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de
virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria. 1

O extraordinário na figura de Mônica é o fato de ela desempenhar com pseudoperfeição, isto


é, fingir desempenhar todas as atividades que são cobradas à mulher que vive no pós-guerra. As
máscaras usadas por Mônica revelam sua falta de compromisso consigo mesma e também com os
outros. Um dos motivos da aceitação de usar as máscaras é a ambição que, alimentada pelo desejo
de adquirir objetos para seu exclusivo usufruto, leva alguém a escamotear a realidade. Outro motivo
são as ações automatizadas, que provocam a cegueira, o esquecimento, o engano e a destruição, que
dificultam o questionamento e a reflexão, bem como tolhem a capacidade de discernimento.

Pode-se afirmar que Mônica Ŗtrabalha com as fúriasŗ e isso a obriga a Ŗrenunciar a três
coisas: à poesia, ao amor e à santidadeŗ , conforme escreve o narrador desse conto. A comprovação
de sua recusa à santidade é o relacionamento de Mônica com o ŖPríncipe deste Mundoŗ, uma alusão
a Antônio de Oliveira Salazar, que conduzia uma ditadura em Portugal, desde a década de trinta.
Salazar transmite a idéia de que é o esposo da nação portuguesa e pai dos portugueses. Por esse
motivo, ele pode decidir sobre todas as áreas da vida de seus filhos e os proibe de se rebelarem
contra ele. Mônica, pelo contrário, respalda as ações do ditador: ŖE por isso Mônica está nas
melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes,
admiradora de seus silêncios e de seus discursos.ŗ 2

A falta de compromisso de Mônica consigo própria deve-se a que ela exerce uma violência
contra si mesma para conseguir vantagens materiais, enquanto sua falta de compromisso com os
outros deve-se a que ela ajuda na permanência da ditadura salazarista que, por causa da má
administração pública, provocou miséria social e por causa da censura, assassinou os opositores a
esse regime de exceção. Mônica é mais que omissa, é conivente: ŖPode dizer-se que em cada
edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mônicaŗ .3 A imagem da pedra,
nesse excerto, sugere a colaboração dessa personagem do conto com a ditadura, sua cumplicidade

1
ANDRESEN. Retrato de Mônica. 1999, p. 117.
2
ANDRESEN. Retrato de Mônica, 1999, p. 120.
3
Ibid, loc. cit.

727
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

para dificultar a liberdade de expressão e proibir as iniciativas e as sugestões de mudança dos


intelectuais portugueses que poderiam ter contribuído para orientar administrativa, econômica e
politicamente o país.

Mônica rejeita a santidade quando recusa a poesia, que é a vida segundo a justa regra, sendo
esta, na pólis grega, a partilha dos direitos e deveres na comunidade, mantendo assim o equilíbrio. E
Mônica recusa também a santidade quando rejeita o amor, pois este torna conscientes os gestos da
pessoa consigo mesma, com os membros da família e com os cidadãos, revelando, desse modo, a
necessidade da vida compartilhada. Por causa da negação à santidade que lhe é oferecida, Ŗela,
todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos
seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comumŗ .1 Suas ações de
Mônica são individualistas e fúteis, pois ela nega o sagrado em favor da vida mundana, desligada a
harmonia cósmica.

Assim, o conto Retrato de Mônica é um exemplo do modo como o homem vive desligado de
si próprio e de todos da comunidade de que faz parte mas não participa, enquanto que o poema
Santa Clara de Assis oferece um exemplo do modo como o homem vive ligado consigo e com
todos por que participa da comunidade, estando, por isso, equilíbrio cósmico.

Consideração final

Por meio do poema Santa Clara de Assis e do conto Retrato de Mônica, a poetisa deseja
despertar nos homens a necessidade de cuidar de si e dos outros, levando-os a se interrogarem sobre
suas atitudes na sociedade política. Na obra andreseniana, a santidade é a responsabilidade
assumida pelo artista nas atividades interligadas da arte com a vida, possuindo significado
equivalente ao de compromisso, vocação e destino e, para ser assumida, o artista desempenha
múltiplos papéis. O testemunho do sofrimento das guerras e da ditadura marca sua poesia com essa
exigência ética e política, embora seu pensamento sobre o modo de intervenção se modifique ao
longo de sua obra.

Referências bibliográficas

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Hölderlin ou o lugar do poeta. Jornal do Comércio.


Lisboa, 30-31 dez. 1967. Suplemento Letras, Artes, Actualidades.

_______________________________ Retrato de Mônica. In: Contos exemplares. 33 ed. Braga:


Editora Figueirinha, 1999.

1
Ibid, loc. cit.

728
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

_______________________________ Escrevemos poesia para não nos afogarmos no cais. Jornal


de Letras, Artes e Idéias. Lisboa, 16 fev., 1982. Entrevista a Maria Armanda Passos.

_______________________________ Sophia: Há forças de destruição na minha poesia. Ler:


Livros & Leitores. Lisboa, n. 7, 1989. 21-25. Entrevista a Virgílio de Lemos.

_____________________________ No tempo dividido. Ed. Definitiva. Lisboa: Caminho, 2003.

ARISTÓTELES. A política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes. 2006.

729
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ELIAKIN RUFINO E A POESIA DIDÁTICA, NA DIDÁTICA DA POÉTICA: METAPOESIA E


ESTRATÉGIAS DE ENSINAR POETICAMENTE

Roberto Mibielli (UFRR)

Poetas trabalhando para ensinar através da poesia não representam nenhuma novidade. O
modo como se Ŗensinaŗ através do texto literário, ou Ŗo queŗ e Ŗcomoŗ se busca ensinar é que
podem variar.

Ao discutirmos a questão da proximidade entre poesia (literatura) e educação e as diversas


formas pelas quais a literatura se apropria ou é apropriada pelo discurso pedagógico, assim como os
limites entre ambas, na obra de determinado poeta, entramos, indiretamente, no mérito da função da
literatura e, de quebra, da própria arte. Não é pretensão deste texto discutir esta questão, para lá de
complexa e muito antiga no âmbito das artes. Mas, é preciso que se diga, de passagem, que uma das
funções da literatura (assim como da arte, de maneira geral) é educar, é, segundo Kramer (1998),
fazer com que evitemos o domínio da barbárie.

Ademais, pode-se dizer que muitas são as formas pelas quais uma e outra se imbricam e
tematizam. As mais comuns, a partir do texto literário, são: a educação como temática da
literatura, a partir da qual podemos citar inúmeros exemplos, dentre eles, os textos O Ateneu
(POMPÉIA,1888), ou ŖConto de escolaŗ de Machado (ASSIS, 1896) e diversos poemas, sejam de
Cruz e Sousa (ŖSaudaçãoŗ ) , seja de outros poetas que adotam o tema de modo reminiscente,
crítico, etc...; a literatura com conteúdo didático/moral (da qual Cecília Meireles e Bilac são
exemplos, como veremos adiante); a literatura como formadora de seus próprios leitores (da
qual Machado é um exemplo clássico); a literatura como instauradora de novos processos e/ou
escolas/cânones/identidades (na qual se enquadra a maioria dos manifestos da vanguarda e de
outros movimentos e a metapoesia Ŕ categoria que não deixa de pertencer à anterior, porque
Ŗeducaŗ novos leitores ao mesmo tempo em que se estatui). Do ponto de vista da educação, a
relação é, desde algum tempo, um pouco empobrecedora. Tanto da perspectiva da produção de
textos poéticos, quanto da apropriação e uso/leitura deles em (ou a partir da) sala de aula.
Muitas têm sido as críticas neste sentido, dentre elas destacamos algumas adiante. Há, ainda, os
leitores Ŗautodidatasŗ , dos quais se diz, exageradamente, terem conseguido gostar de poesia Ŗapesar
da escolaŗ .

O processo de ensino, através da literatura, pode ser atribuído a diferentes sujeitos, como a
escola, que se apropria e utiliza a/da literatura e/ou a intenção do próprio autor/livro, percebida
diretamente pelo leitor. Desde as fábulas de Esopo (em 1550 A.C, aproximadamente), e, talvez,
antes mesmo disso, a literatura e a educação sempre andaram de braços dados, sendo, em alguns
casos, recentes, sua proximidade/indissociabilidade tão grande, que a Ŗliterariedadeŗ ou a
Ŗpoeticidadeŗ destes textos tenham podido ser questionadas, em função da carga excessiva de
730
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

discurso pedagógico que traziam, prejudicando, assim, sua dimensão poética. De certo modo, pode-
se considerar, grosso modo, que mais que uma Ŗaberraçãoŗ , ou um Ŗdesvioŗ, este seja um retorno às
origens, uma vez que a literatura no mundo ocidental (leia-se Romano) tem como principal
elemento instituidor, e como origem de suas teorias críticas, uma das figuras utilizadas para o
ensino da retórica, responsável pela construção do adorno do texto retórico.

Em alguns casos, a convivência entre uma e outra (literatura e educação) poderia criar a
ilusão, ahistórica, de que a instituição literária teria surgido, para a ocidentalidade, antes ou
concomitantemente ao texto didático-argumentativo. Livros sagrados, escritos em Ŗversosŗ , ou
Ŗversículosŗ, bem como discursos, finamente adornados de ironia e elementos estetizantes, não
eram raros, assim como não eram raros aforismos e ditos espirituosos (cuja finalidade era
meramente moralizante e/ou educativa), entremeados ao cânone Ŗclássicoŗ , às obras de caráter mais
literário. Esta, no entanto, é uma impressão equívoca, porque embora a arte se confunda, em sua
gênese, com os rituais primevos, o texto mítico, ainda que pudéssemos considerar a narrativa mítica
oral como mera narrativa, dificilmente poderia ser chamada de Ŗliteráriaŗ .

A retórica, por outro lado, como se sabe, tem, na função argumentativa, sua principal
característica, assim como o texto didático, que procura inculcar no Ŗser sem luzŗ (a-lumno, em
Latim; aluno, em português), através de argumentação moralizante, algum juízo e regras do bem-
conviver socialmente, assim como do bem administrar. Embora não sejam a mesma coisa,
dificilmente se pode separá-las, pois a retórica serviu de base à escolástica durante eras. Assim, o
texto literário convive, ao menos teoricamente, desde suas origens (e antes do surgimento da teoria
literária, da história e da própria instituição literatura), com o texto didático-argumentativo de fundo
moral, seja ele retórica aplicada a outro fim, ou, meramente, o texto admoestativo escolar.

Somente com o próprio iluminismo é que o modelo cambiará, aos poucos, tornando o ensino
mais voltado para o conteúdo científico e paulatinamente menos argumentativo e mais ideológico,
iniciando o processo de sepultamento do mundo Ŗclássicoŗ e a disputa, dentro do universo da
inquestionabilidade acadêmica, entre a ciência positiva, reduto burguês, e a religiosidade, esteio da
nobreza. Ao tornar o discurso da ciência inquestionavelmente neutro, do ponto de vista
epistemológico, e elegê-lo como seu Ŗcavalo de batalhaŗ , a academia, ao mesmo tempo em que
modifica o paradigma educativo (antes apoiado na lógica clerical), torna-se, ela mesma, pela via do
discurso científico, inconteste (ainda que o discurso científico encerre em si, ironicamente, a idéia
de duvidar do que se vê, da Ŗnaturalizaçãoŗ das coisas). Este movimento, na verdade, processo
histórico, dissocia, gradativa e definitivamente, dos discursos supersticiosamente moralizantes, a
academia (na verdade o universo escolar, como um todo), tornando também o discurso poético (pela
sua necessária imprecisão), um seu estranho, pela ausência de Ŗverdadeŗ e/ou Ŗcientificidadeŗ .

Na grande maioria das vezes, a prñpria idéia de Ŗensinoŗ se confunde com a idéia de
argumentação, de ideologia e de conteúdo. Para Gramsci (1988), o ensino é, muito mais que uma
forma civilizatória, um ato de domínio, que, paradoxalmente, pode levar à libertação. Para
731
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Althusser (1998), a educação escolar é o braço do estado e seu aparelho ideológico mais eficaz de
inculcação. O ato educativo passa a ser uma Ŗprofissão de féŗ , pelo modelo jesuítico que herdamos,
e o seu Ŗprofissionalŗ, ou seja, aquele que o Ŗprofessaŗ , para sobreviver, assume o nome de
Ŗprofessorŗ (antes, na antiga Roma, magister ou Ŗmestreŗ , o que origina o magistério, depois, por
força do uso cristão do termo, Ŗprofessorŗ ). Professar é um ato de defesa de idéias e crenças, que
tanto pode recair no domínio ideológico, teológico, quanto no filosófico. Talvez por este motivo
seja tão difícil separar a imagem daquele que argumenta, ainda que retoricamente, do professor, do
padre e do filósofo/intelectual.

A linha que distingue estes outros do poeta e, consequentemente, de sua poesia, torna-se,
também, muito tênue, na medida em que a poesia (de extração mais moderna) precisa, para se
firmar, substituindo modelos anteriores, se transformar em manifesto, ou em Ŗprofissão de féŗ . O
homônimo poema bilaquiano, famoso, não leva este título de graça. Nele o poeta traça um programa
da poesia parnasiana, além de desmerecer outros movimentos frente ao leitor, criando, de quebra,
uma espécie de Ŗreceitaŗ para a composição poética própria.

Outros poemas de caráter metapoético e/ou programáticos/manifestos também contribuem


para que os dois universos, o poético e o educativo, se aproximem. Especialmente quando
defendem uma idéia nova, um local, um modo de fazer diferenciado e não canônico, estes poemas
têm a função de anunciar a Ŗboa novaŗ , ao mesmo tempo em que tentam sacramentá-la. O que
transforma a literatura em instauradora de novos processos e/ou escolas/cânones/identidades.

Esta é apenas uma das várias possíveis estratégias Ŗdidatizantesŗ da literatura. Há, como
veremos mais adiante, inúmeras estratégias utilizadas pelos autores para tentar aproximar-se do
leitor, educando-o, seja para que possa compreender seu texto (como faz Machado), seja para o
mundo que o cerca e/ou para que aceite determinada perspectiva ideológica (como fazem alguns
autores da chamada literatura ŖRealistaŗ ) e Olavo Bilac. Além de Machado de Assis, outros autores,
em menor ou maior medida, utilizaram a poesia e/ou sua poética como um instrumento didático
que, quer pela via pedagógica, quer pela via programática/manifesta, procuraram educar seu
público, ao mesmo tempo em que instituíam seu modus faciendi e que estatuíam seu Ŗfazer
poéticoŗ . Fato que nos deu a literatura como formadora de seus próprios leitores.

Para a maioria do público, o quase desconhecido poeta Machado de Assis, segundo Lajolo &
Zilberman (1999), faz perfeitamente o movimento de conduzir seu leitor, tanto de prosa, quanto de
poesia, à condição/nível de leitura que deseja, ou abandona-o, indefeso, em meio a sua ferina ironia.
Assim fez no poema ŖPálida Elviraŗ , em que criticava a leitora romântica de Lamartine, conforme
apontam as autoras, assim também fez em Memórias Póstumas de Brás Cubas (e em muitos outros
textos em prosa), ao dialogar ferrenhamente com o leitor, chegando a construir e desautorizar
sentidos para seu próprio texto.

732
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O prñprio Bilac, de ŖProfissão de féŗ , quando tenta produzir literatura com conteúdo
didático/moral, chega a trabalhar francamente a favor do poder instituído, segundo critica
levantada por Lajolo (1982) em sua tese de doutorado Ŕ Usos e abusos da Literatura na Escola. De
tal forma que seu texto poético, embora em outros momentos seja muito consistente, perde a
poeticidade, esvaziando-se de beleza. Cândido (in Lajolo, 1982, p.12), chega a afirmar a este
respeito que:

Manuel Bonfim, colaborador de Bilac, era mais lúcido na obra individual; mas nos textos
escolares assumia a mesma euforia nacionalista de encomenda, que no poeta parece ter
acabado como segunda natureza, restringindo a sua pedagogia à esfera da moral e do
civismo, cujos limitados valores traduziu com sinceridade.

Este fato poético que faz com que Lajolo (1982, 49 a 52) se questione, adiante, se o ato de se
trabalhar a literatura na escola não seria um ato de Ŗlesa-poeticidadeŗ . De fato, se pensarmos no
modo como, desde tempos imemoriais, a literatura é vista e apresentada em sala de aula, a
impressão pode ser a mesma da autora.

Cecília Meirelles vai mais longe e realiza de modo mais poeticamente competente a sua
busca, na literatura, de um meio didático de transmitir conhecimento, apostando inclusive na
literatura infantil, tanto do ponto de vista da reflexão teórica, como é o caso de Problemas da
Literatura Infantil (Meireles, 1979), quanto literária com os poemas de Ou isto ou aquilo, por
exemplo (Meireles, 2009).

Em alguns casos, o contexto em que o texto literário é produzido funciona como elemento
determinante na questão: Escrever é um impulso, uma necessidade, ou um modo de se fazer
representar perante a sociedade? A presença de elementos da Ŗcor localŗ na composição de um
texto poético e na definição tanto de seu papel perante a sociedade, na e para a qual foi composto,
quanto do escritor/autor por trás dele são formas de determinar uma das possíveis respostas a este
questionamento. Outras vezes, nem a presença deste dado permite uma leitura contextualizada
capaz de apontar os motivos pelos quais se escreve. Quase sempre a construção de um Ŗscenário
típicoŗ , seja ele físico, ideolñgico ou lingüístico, possibilita a identificação do texto com
determinada comunidade, idéias, história ou espaço. Assim é, desde a mais romântica era, que um
poeta se filia/identifica a um movimento, a um local, ou dá a entender que conhece determinada
realidade, intertextura e/ou artifício da produção poética.

O texto metapoético, assim como a poesia “manifestaŗ , têm sido o modo pelo qual
inúmeros poetas têm estabelecido, desde a instituição do Ŗgênio literárioŗ , segundo José Luis Jobim
(in Jobim & Peloso, 2006), um estatuto de produção poética próprio, capaz de revelar, para o
público burguês, os caminhos da construção literária ímpar que defendem. Essa ferramenta de
construção, ou temática, como querem alguns, tem sido utilizada em larga escala no século XX,
especialmente em função das vanguardas e de seu projeto modernista. Além de ser um elemento
capaz de propor ao leitor modos e linhas de interpretação do texto proposto, são, de certa maneira,
733
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

modos de manter a autoria em evidência (e seu poder sobre a produção de sentidos que a leitura de
um texto literário acarreta), frente ao crescente avanço do poder do leitor e da recepção.

Esta tensão, aliás, tão cara à literatura e seus teóricos, não é tão recente como se possa
imaginar, pelo menos não data da recentíssima entrada em cena da estética da recepção e, nem
mesmo, das teorias semióticas da década de sessenta do século XX, estes são apenas capítulos mais
estruturados desta relação tensa no tripé Ŗleituraŗ , Ŗautoriaŗ e Ŗescrituraŗ . Se pensarmos no artifício
da sinestesia como uma tentativa de materialização do leitor, no texto poético, como fruto da
necessidade de controle, por parte do autor, da produção de sentidos, a partir de seu texto, veremos
que, ironicamente, os mesmos mecanismos de controle acabaram por libertar o leitor do jugo
autoral, possibilitando uma percepção maior dos níveis de leitura, já contidos na concepção de leitor
ideal de cada autor. Machado de Assis, por exemplo, ao mesmo tempo em que dialoga com seu
leitor para orientá-lo, sobre o patamar de leitura que deseja, cria as possibilidades para que este
mesmo leitor não se surpreenda, numa prñxima leitura, com o seu texto Ŗtraiçoeiroŗ e se torne mais
consciente das possibilidades de produção de sentidos e níveis de leitura que aquele texto
possibilita, libertando-se, paulatinamente, do jugo autoral.

Do outro lado desta aproximação, nem sempre cômoda, entre escola e literatura a
configuração que se apresenta é o que, para José Luís Jobim, pode ser chamado de uma Ŗimagem
[escolar] do literárioŗ , ou como ele prefere explicar:

ŖEmbora se alegue que o Řobjetoř dos pesquisadores seja a literatura, é interessante


assinalar que não há consenso entre eles sobre a prñpria configuração deste Řobjetoř.
Contudo, mesmo sem consenso, podemos verificar que existem representações dele. E
mais: ao transmitirem institucionalmente aos discentes (que depois, como professores,
retransmitirão aos seus futuros alunos), uma determinada representação de literatura,
depreendida dos autores e obras selecionados, os cursos de Letras são responsáveis pela
criação de uma imagem do literário. Como já afirmei em outra ocasião, o estudo das
convenções, normas e valores que fundamentam a escolha do cânon pode esclarecer esta
imagem: os autores e obras que são valorizados, lembrados, aceitos e incluídos em nossos
programas, bem como os que são desvalorizados, esquecidos rejeitados e excluídos
[equivale dizer: apagados], podem tornar claro o centro e as margens desta imagem, assim
como os fundamentos de sua constituição.ŗ (JOBIM, 1996, p.56)

É necessário que pensemos a questão da apropriação e uso/leitura de poesia em (ou a


partir da) sala de aula, inclusive verificando que imagem a escola tem reproduzido, que autores
têm sido lidos, quais críticas pesam, desde tempos imemoriais, sobre o uso da poesia, como da
literatura em geral, na sala de aula. A principal delas, que diz respeito ao ensino concomitante de
literatura e gramática, tem sido, ao longo das cinco últimas décadas, motivo de vasta contestação
por parte de inúmeros pesquisadores. Afrânio Coutinho, por exemplo, já na década de 50, no seu
discurso de posse na cadeira de Literatura do Colégio Pedro II no Rio de Janeiro (Coutinho, 1952),
denunciava esta forma de ensinar literatura como imprópria. E continuou denunciando ao longo de
sua carreira, como neste texto de 1974 publicado em 1983:

ŖO texto era mero pretexto para comentários filolñgicos sobre a língua do autor. As obras
didáticas e antologias eram fartas de anotações de pé-de-página, exclusivamente de ordem

734
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

filológica. Era um milagre que alguém saísse daquele aprendizado com alguma noção de
natureza literária. Resultava justamente o contrário. Lembram-se todos os da minha geração
o que era a tortura do estudo de Os Lusíadas.ŗ (Coutinho,1983: p.185)

Na sua crítica, Afrânio salienta o fato de que o ensino de literatura devia muito mais à
capacidade individual do aluno, de superar as barreiras impostas pala própria escola, do que às
Ŗantologiasŗ e Ŗobras didáticasŗ da época. O fato de o texto literário ser Ŗpretextoŗ para outras
abordagens que não a literária gerava o duplo desconforto de não favorecer nem ao ensino da
língua, nem ao da literatura. Outros autores e escritores, como Ledo Ivo, Graciliano Ramos e
Ascenso Ferreira, são citados por Lajolo & Zilberman (1999), no Formação da Leitura no Brasil,
como também contrários a este método, por considerarem traumática a sua experiência com a
técnica e os livros didáticos (utilizados e difundidos pela escola), que conservavam este modelo
desde os tempos do Barão de Macaúbas. Esse modelo, exatamente por tratar a literatura como
matéria subordinada e conjugada ao ensino da língua materna, fazia com que o aluno passasse a
odiar Camões, pois a leitura do texto camoniano era mero pretexto para o ensino de gramática.
Outra voz a se erguer contra esta e outras distorções no ensino da literatura é Osman Lins (1977) no
seu Do ideal e da glória: Problemas Inculturais Brasileiros. Estendendo sua crítica a um ensino de
literatura atravessado por princípios teóricos muitas vezes incompreensíveis aos alunos, este autor
questiona a validade do que é ensinado, demonstrando o quanto a literatura é prejudicada, ora pelas
teorias que lhe são imputadas, muitas vezes de modo incompleto e incompreensível pela escola e
pelos cursos de Letras, ora pelo uso secundário que dela se faz no ensino de gramática. Na mesma
linha de argumentação caminha Ligia Chiappini M. Leite no seu A Invasão da catedral (1983), mas
não é a única a sugerir que a leitura literária também é um fator de controle social. Soares (1995),
Lajolo (1982) e Leahy-Rios (2000) vão partilhar de opiniões bastante próximas neste sentido.
Lajolo, por exemplo, dirá que Bilac serviu ao poder, no Brasil, através de sua poesia didática,
funcionando como uma espécie de difusor da ideologia de Estado (1982).

Ainda assim há quem se proponha a incentivar o hábito da leitura de forma crítica, como
possível solução para diminuir distâncias no contexto social. Bamberger (1986) e Aguiar (2004), de
diferentes modos e com propostas diversas, são exemplos notáveis deste tipo de estratégia. Embora
haja, desde algum tempo, quem, como Freire (1982), julgue fundamental o ato de ler, há também
quem questione, como Batista (1998), a qualidade dos textos lidos pelos professores e,
consequentemente, a qualidade dos textos que estes utilizam em sala de aula:

Ŗ(...) é grande a presença, na biblioteca docente, de títulos e autores com baixo grau de
legitimidade cultural: se Paulo Coelho e o seu "O alquimista" se destacam, as listas de
preferências dos professores contam ainda com a presença de Sidney Sheldon, James
Caldwell e Adelaide Carraro, de romances espíritas e de livros de auto-ajuda (de Joseph
Murphy a Lair Ribeiro).ŗ (BATISTA, 1998, p.52)

Em A leitura e o ensino da literatura, Regina Zilberman (1999) dá indicações de que o


problema é mais amplo que apenas a escassez de livros nas bibliotecas escolares (e de professores)

735
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

e as queixas de que os alunos não lêem1, e sugere que se façam estudos mais amplos no sentido de
se entender as realidades locais e propor soluções viáveis para o ensino de literatura.

No caso de Eliakin, poeta radicado em Roraima e um dos líderes do movimento


Roraimeira2, há, com pequenas diferenças, um movimento no sentido de abranger tanto a literatura
como um processo educativo lúdico de criação identitária (que envolve manifestos voltados para a
Ŗcor localŗ e poemas didático-pedagógicos), quanto há um discurso sobre a literatura em sua
produção poética. Dois de seus livros publicados, Escola de poesia e Brincadeira, são dirigidos ao
público escolar e trabalham diretamente uma poesia que trata do cotidiano tanto da sala de aula,
quanto do universo lúdico.

O poeta, por outro lado, não permanece apenas no universo infantil, sua poesia vibra no
ouvido das pessoas, em frases e terminologia que impressiona tanto pelo timbre, quanto pelo
exotismo, buscando propor a construção de uma identidade referenciada na Amazônia roraimense.
Sua poética, embora pareça de simples manejo, retoma algumas das questões programáticas cruciais
do projeto de nossas vanguardas modernas. É nesse entrecruzamento entre uma poesia
programática/manifesta e o poeta didata que analisamos sua obra. Em entrevista de Eliakin Rufino
aos professores Cátia Wankler, Rafael da Silva Oliveira e Carla Monteiro de Souza in ŖIdentidade e
Poesia Musicada: Panorama do Movimento Roraimeira a Partir da Cidade de Boa Vista Como uma
das Fontes de Inspiraçãoŗ , o poeta destaca a atuação da vanguarda Roraimeira no que tange à
mobilização em torno da idéia de criação de um movimento:

No movimento Roraimeira nós tentamos esboçar uma fisionomia cultural pra cá, porque até
então se dizia que aqui não tinha cultura, isso era um comentário recorrente. O grupo
Roraimeira vai reconhecer na cultura indígena a nossa cultura mais ancestral, nossa base,
porque a elite local é racista, é antiíndio, eles passaram 300 anos escravizando os índios.
Nñs somos Řconsumidosř pelo povão, porque a elite rejeita, porque nñs somos prñ-índio.

O poeta também dá claras indicações de saber qual o seu público, o seu consumidor e,
portanto, o seu leitor ideal, ao dizer que é o Ŗpovãoŗ que os consome. Também aponta no sentido de
saber-se um instaurador de uma nova realidade literária, fato que o faz apontar para os horizontes da
semana de arte moderna, ao mesmo tempo em que Ŗorientaŗ seu poder de vanguarda na direção da
criação de uma identidade local.

Talvez a nossa grande contribuição, do Roraimeira, é acabar com a crise de identidade que
Roraima padecia. Eu acho que até o Roraimeira não havia uma arte local mesmo: é a dor e
a delícia de ser pioneiro. Em fevereiro de 1922, São Paulo, Semana de Arte Moderna, é

1
Sobre esta Ŗqueixaŗ , em especial, é preciso que se entenda o quanto a leitura Ŗforçadaŗ , ou melhor, a imposição da
leitura obrigatñria de determinados textos com o fim meramente Ŗavaliativoŗ é, em grande parte, responsável pela
grande ojeriza que alguns alunos têm pela leitura. Neste sentido fazem ressalva, dentre inúmeros outros, Silva (1995) e
Mibielli (2002).
2
Movimento Cultural que, por meio da música, das artes visuais, da dança, da literatura e da fotografia originou a cena
artística de cunho regionalista, a partir dos anos 80, em Roraima.

736
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

uma revolução na arte brasileira. Os modernistas lançam uma grande pedra no lago
tranqüilo da influência européia no Brasil, né? Agora, essa onda só chega em Roraima em
84: o movimento Roraimera é o movimento modernista, que chega aqui em Roraima na
década de 80. Toda a nossa inspiração é modernista: é o Modernismo, é o movimento
modernista... Tardio.

Embora reconheça que o movimento que ele e seus companheiros de Ŗvanguardaŗ propõem
seja Ŗtardioŗ , dá as indicações de que esta criação sñ se tornou possível graças a um projeto que, tal
e qual o modernista, pressupunha a construção de uma identidade a partir da síntese da diversidade
e da pluralidade envolvidas em seu contexto.

Aqui em Roraima vivem brasileiros de todas as partes do país e mais os estrangeiros da


Venezuela e Guiana. A proximidade com o Caribe, a forte influência nordestina em
Roraima, a marcante presença dos povos indígenas e a distância do resto do Brasil, tudo
isso foi configurando um movimento cultural (música, literatura, fotografia, artes plásticas,
dança) que reconhecia e acomodava todas as diferenças e apontava para a diversidade e a
pluralidade como marca da nossa identidade. (Revista Acta Geográfica, ano III, N°6,
Jul./Dez. de 2009. P.27-37)

Diferentemente do projeto das vanguardas de 22, o projeto de identidade para Roraima


propõe, em 1984, uma estética baseada na cultura ancestral, num espaço em que há, ainda, o
conflito pela posse da terra, razão pela qual o poeta denuncia o preconceito das elites locais na
aceitação desta identidade. Mas é através de sua poesia que podemos identificar algumas das
marcas do diálogo que trava com os poemas de Cecília Meireles, por exemplo, ao adotar a mesma
forma inquisitiva, num poema cuja função é semelhante à de ŖLeilão de Jardimŗ de Ou isto ou
aquilo.

carrinho
quem vai querer um carrinho
para poder viajar
a mala cheia de sonhos
a estrada feita de ar?

quem vai querer uma carona?


quem quer me acompanhar?
o meu carrinho pequeno
ainda tem muito lugar

Este poema, integrante de livro com intenções didático-lúdicas (Brincadeira, 1991) traz
ainda a questão da linguagem local, ao reproduzir a coloquial expressão Ŗpara poder viajarŗ , muito
comum no Norte do Brasil, ao invés de Ŗpara viajarŗ , utilizada mais comumente nas demais
Regiões. No livro Escola de Poesia (1990), por exemplo, o poeta retoma o tema pedagógico,
procurando dar à poesia um caráter metapoético ao fazer alusão à Ŗhistñria da poesiaŗ , como um
elemento substitutivo da Ŗhistñriaŗ disciplina escolar, ao mesmo tempo em que propõe a sanha do
poeta, ao falar de alguém que escreve anárquica e compulsivamente, Ŗtodo diaŗ , além dos
Ŗproblemas de matemáticaŗ suas Ŗfantasias de arteŗ .

737
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

caderno
meu caderno tem segredos
escritos por toda parte
problemas de matemática
e fantasias da arte

verdade é que escrevo


no caderno todo dia
não as aulas de história
mas a história da poesia

É preciso notar que o poeta não propõe apenas o alheamento da criança diante do conteúdo
escolar Ŗenfadonhoŗ , mas a gradativa substituição deste pela prática poética, ou, como diria Gianni
Rodari (1999), pelo Ŗñcio criativoŗ , transformando, ou melhor, transpondo a criança leitora do
poema para a condição de poeta, de produtora da poesia. Mas é no poema Ŗburitizeiroŗ , assim como
na maioria dos poemas do livro Poeta de Água Doce, que o poeta associa o seu fazer poético ao
fazer natural, não da criança, mas a uma forma simbiótica de poesia, cuja função é também a de
propor uma estética calcada nos elementos da paisagem local.

buritizeiro
buritizeiro do norte
que nasce em qualquer lugar
nós temos a mesma sorte
viver a vida a cantar
tu cantas com o vento forte
eu canto na calmaria
canto o silêncio do campo
tu cantas na ventania (...)

Nascer Ŗem qualquer lugarŗ é, para a poesia, algo como poder ser transposta/criada por
qualquer criança. Mas o poeta não se limita a tornar a poesia um fato comum, faz mais que isso:
procura torná-la também um fato natural típico da Região Norte ao associá-la à figura de um
Ŗburitizeiro do norteŗ . O apelo à natureza local, associada ao ato poético criativo, continua no
poema ŖMudança de Folhasŗ , no qual o poeta procura se colocar, assim como a poesia, de modo
ainda mais disponível que a natureza.

mudança das folhas


em roraima
não há primavera
somente inverno e verão
mas a flor do meu canto
nasce em qualquer estação (...)

Seus poemas mais antigos já demonstram a necessidade da busca da temática local como
forma de expressão e de formação de uma identidade. Fato que fez com que a elite local, em eterno
conflito com a poesia Roraimeira e seu projeto identitário para Roraima, tenha apelidado,
pejorativamente, a linguagem e a temática encontradas por seus poetas e artistas de Ŗpoesia do iŗ,
ou Ŗlinguagem do iŗ .

738
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

farta fragrância
de fruta no campo
tempo de murici
(Poemas, 1987)

A partir da apropriação de termos indígenas, cuja sonoridade implica na recorrência fonética


de terminações em Ŗiŗ , como é o caso da palavra Ŗmuriciŗ (espécie de fruta da Região) e da palavra
Ŗburitiŗ empregadas freqüentemente em sua poesia, os poetas do grupo Roraimeira, em especial
Eliakin Rufino, buscaram ressaltar não apenas uma identidade, mas uma estética, através de uma
sonoridade cuja origem, além de caracterizada/imbricada pela ancestralidade, aponta para o
convívio harmônico com o complexo contexto sócio-cultural-biológico da Amazônia.

Referências bibliográficas

AGUIAR, Vera Teixeira. Renoir na periferia: o acesso aos bens simbólicos da cultura letrada. In:
PAULINO, Graça; COSSON, Rildo. Leitura literária, a mediação escolar. Belo Horizonte:
FALE/UFMG, 2004: 47-52.

ALTHUSSER, L. P. Aparelhos Ideológicos de Estado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

BAMBERGER, Richard. Como incentivar o hábito da leitura. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1986.

BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Os professores são Ŗnão-leitoresŗ ? In: MARINHO, Marildes;
SILVA, Ceris Salete Ribas da (orgs.) Leituras do professor. Campinas: Mercado de Letras e
Associação de Leitura do Brasil, 1998: 23- 60.

COUTINHO, Afrânio. O Ensino da Literatura. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa


Nacional, 1952.

___. O Processo da Descolonização Literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez e Autores Associados, 1982.

GRAMSCI, Antonio. Intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1988.

JOBIM, José Luís. A poética do fundamento. Ensaios de teoria e história da literatura. Niterói:
EdUFF, 1996.

JOBIM, José Luis. & PELOSO, Silvano. Identidade e Literatura. Rio de Janeiro/Roma de
Letras/Sapienza, 2006.

LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola- Bilac e a literatura escolar na república
velha. Rio de Janeiro: Globo, 1982.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Ática,
1999.

LEAHY-DIOS, Cyana. Educação Literária como Metáfora Social. Desvios e rumos. Niterói:
EdUFF, 2000.
739
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

LEITE, Lígia Chiappini Moraes. Invasão da Catedral: literatura e ensino em debate. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1983.

LINS, Osman. Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1977.

MIBIELLI, Roberto. Arbítrio e Leitura: quando o discurso e a prática da escola interferem no gosto
pela leitura machadiana. In: ALVARENGA, Ana M.; FÁVERO, Osmar (org.). Pesquisas em
Educação, Diferentes enfoques 2: 129-143, 2002.

OLIVEIRA, Rafael da Silva; MONTEIRO, Carla Souza; WANKLER, Cátia Monteiro. Revista Acta
Geográfica, ano III, N°6, Jul./Dez. de 2009. P.27-37

KRAMER, Sônia. Por entre as pedras. São Paulo: Ática, 1998.

RODARI, Gianni. Gramática da Fantasia. São Paulo: Summus, 1999.

RUFINO, Eliakin. Poemas. Boa Vista: Bezerra de Menezes, 1987.

___. Escola de Poesia. Boa Vista: Imprensa Oficial de Roraima, 1990.

___. Brincadeira. Boa Vista: Sesc, 1991.

___. Poeta de Água Doce. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Blocos, 1999.

SILVA, Ezequiel Theodoro. Leitura ou Ŗlei-duraŗ ? In: ABREU, Márcia (org.) Leituras no Brasil:
antologia comemorativa pelo 10°COLE. Campinas: Mercado de Letras e Associação de Leitura do
Brasil, 1995: 23-27.

SOARES, Magda Becker. As condições sociais da leitura: uma reflexão em contraponto. In:
ZILBERMAN, Regina & SILVA, Ezequiel Theodoro (orgs.) Leitura: Perspectivas
Interdisciplinares. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1995: 18-29.

ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 1991.

740
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A PERSONAGEM FRÄULEIN E
A ANÁLISE INTERSEMIÓTICA DE SUAS REESCRITURAS

Rodolfo Pereira da Silva1 (UFC)

Resumo: A mímesis, segundo Stam (2008), constitui-se um diálogo intertextual entre artistas. Nessa
perspectiva, analisaremos a tradução intersemiótica da personagem Fräulein do romance Amar, verbo
intransitivo (1927), de Mário de Andrade, para sua adaptação fílmica Lição de amor (1976), de Eduardo
Escorel; e discutiremos a semiose estabelecida entre as reescrituras do Nu feminino presentes no corpus
estudado. Partimos da hipótese de que a reescritura da personagem Fräulein na adaptação fílmica configurar-
se-ia através da tentativa de quebra da narrativa escopofílica e do apagamento de traços expressionistas Ŕ
estes, todavia, presentes ainda na diegese cinematográfica. A personagem literária é descrita através de
reescritura ecfrástica identificável no Nu feminino e no Expressionismo alemão, em quadros de Rembrandt
van Rijn, e de O grito, de Edvard Munch. Os Nus femininos de Bathsheba por Rembrandt são, por sua vez,
reescrituras pictóricas do relato bíblico. Berger (1999) afirma que o gênero Nu feminino incorpora um
espectador masculino. No filme, há a tentativa de libertar a personagem Fräulein do olhar voyeurista
masculino e da escopofilia (prazer de olhar o corpo feminino), próprias de certas narrativas cinematográficas
Ŗpatriarcaisŗ (Machado, 2008; Mulvey, 1983). Nosso estudo fundamentar-se-á no conceito de Interpretante
(Santaella, 2002) relacionado à Semiótica de C. S. Peirce.

1. Introdução

A obra de arte produz significados a partir dos signos e dos símbolos engendrados pelos
artistas. Através de construções poéticas e suas representações miméticas, as expressões artísticas
são, em si mesmas, produtoras de semioses. Por semiose, entendemos o processo ligado à geração
de sentido, à interpretação dada pelo receptor ou intérprete de uma obra de arte (livro, filme,
pintura, escultura, etc.). Conforme atesta-nos Nöth,

A interpretação de um signo é, assim, um processo dinâmico na mente do receptor. Peirce


introduziu o termo semiose para caracterizar tal processo, referido como Ŗa ação do signoŗ.
Também conceituou semiose como Ŗo processo no qual o signo tem um efeito cognitivo
sobre o intérpreteŗ . (NÖTH, 2008, p. 66).

Segundo Silva (2007), todo processo de criação artística, inclusive literário, apresenta a
chamada heterogeneidade da semiose estética, já que ―toda linguagem artística [...] resulta da
combinação, da interação sistêmica de múltiplos códigos.‖ (2007, p. 80-81). Desse modo,
compreendemos que as diversas linguagens artísticas mantém entre si um permanente e dinâmico
diálogo intertextual e intersemiótico. Concordamos, ainda, com Stam (2008) quando, referindo-se
ao problema de representação mimética do processo artístico, diz que

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará e bolsista CAPES-PROPAG.
741
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

o artista não imita a natureza, mas sim outros textos. Pinta-se, escreve-se ou faz-se filmes
porque viu-se pinturas, leu-se romances, ou assistiu-se a filmes. A arte, neste sentido, não é
uma janela para o mundo, mas um diálogo intertextual entre artistas. As referências
intertextuais podem ser explícitas ou implícitas, conscientes ou inconscientes, diretas e
locais ou amplas e difusas. (STAM, 2008, p. 44).

Assim, o processo criativo dos artistas, a partir da consideração de Stam (2008), indica-nos
que a arte é reescritura. Nesse sentido, no presente estudo, não faremos diferenciação entre o que
chamamos de tradução intersemiótica ou transmutação e reescritura, afinal, ―a tradução é a forma
mais reconhecível de reescritura‖ (Lefevere, 2007, p. 24).

Neste artigo, analisaremos um conjunto de quatro reescrituras, na Pintura, na Literatura e no


Cinema, cujo objeto dinâmico é um trecho da Bíblia. A partir do conceito de interpretante
buscaremos levantar algumas possibilidades de interpretação intersemiótica, demonstrando que a
semiose é um ―processo contínuo, auto-corretivo, vivo e dialógico‖ (Zilocchi, 2001. p. 188).

Em nossa análise, discutiremos a semiose estabelecida entre as reescrituras do Nu feminino


presentes no corpus estudado; para então, analisarmos a tradução intersemiótica da personagem
Fräulein do romance Amar, verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade, para sua adaptação
fílmica Lição de amor (1976), de Eduardo Escorel. Partimos da hipótese de que a reescritura da
personagem Fräulein na adaptação fílmica configurar-se-ia através da tentativa de quebra da
narrativa escopofílica e do apagamento de traços expressionistas Ŕ estes, todavia, presentes ainda na
diegese cinematográfica.

Segundo a constituição triádica do signo de C. S. Peirce, encontra-se no interpretante o


―potencial interpretativo do signo‖ (Santaella, 2002, p. 24). O próprio Peirce aproxima o
interpretante do processo interpretativo do signo (semiose): ―Um signo dirige-se a alguém, isto é,
cria na mente dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Chamo o
signo assim criado o interpretante do primeiro signo.‖ (Peirce apud Nöth, 2008, p. 72). O
interpretante, assim, é um efeito da ação do signo na mente do intérprete. Nesse sentido, o ato
interpretativo do intérprete se configura a partir da Ŗaçãoŗ do interpretante em sua mente. Logo, o
intérprete tem ―o papel de ir desatando os interpretantes dinâmicos possíveis e define a
interpretação como um processo de nutrição dos termos no qual o intérprete é apenas um dos
elementos envolvidos.‖ (Zilocchi, 2001, p. 188).

2. Reescrituras: de Bathsheba a Fräulein

O texto que Ŗiniciaŗ nosso percurso de uma leitura semiñtica e interpretativa encontra-se no
livro bíblico 2º Samuel (Cap. 11, vers. 2-3):

742
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Uma tarde Davi levantou-se da cama e foi passear pelo terraço do palácio. Do terraço viu
uma mulher muito bonita tomando banho, e mandou alguém procurar saber que era.
Disseram-lhe: Ŗé Bate-Seba, filha de Eliã e mulher de Urias, o hitita. Davi mandou que a
trouxessem, e se deitou com ela, que havia acabado de se purificar da impureza da sua
menstruação. Depois, voltou para casa. A mulher engravidou e mandou um recado a Davi,
dizendo que estava grávida. [grifo nosso] (BÍBLIA, 2003, p. 487-488).

O livro 2º Samuel é considerado histórico por retratar ―o estabelecimento da monarquia em


Israel‖ (idem, p. 413), na Antiguidade, e cobriria em sua narrativa o período entre 1100 a 970 a. C.,
até o fim do reinado de Davi. Sua autoria é desconhecida, mas ―certas características literárias [...]
levam a crer que seja uma compilação de várias fontes documentais independentes‖ (ibid.).
Entretanto, nosso recorte limitar-se-á a dois aspectos: o fato de a Bíblia ser considerada um texto
sensível1; e o fato do trecho citado ter sido objeto de reescrituras na tradição pictórica europeia do
Nu feminino.

Ao discutir o gênero Nu na pintura europeia, Berger (1999) afirma que as formas de


representação da mulher delimitar-se-iam a partir do olhar do homem. Segundo o autor, os
primeiros nus descreviam Adão e Eva no Éden, conforme o relato bíblico. Na Renascença, porém,
com o esvaziamento dessa narrativa na iconografia, o Nu passou a ser um único momento, no caso,
o momento da vergonha. Esse sentimento de culpa envolveria, portanto, a figura de um espectador,
transformando, assim, a vergonha em exibição.

Essa mudança nas reescrituras pictóricas do texto bíblico Ŕ nas quais insere-se a história de
Davi e Bate-Seba Ŕ estão relacionadas às variações do interpretante em contextos e tempos
diferentes.

Segundo Berger, o passo seguinte na referida tradição seria a fixação do olhar na mulher
nua, sozinha:

Quando a tradição da pintura foi-se tornando mais secular, outros temas também
ofereceram a oportunidade de pintar nus. Mas em todos eles permanece a implicação de que
o assunto (uma mulher) tem consciência de estar sendo observado por um espectador.
Ela não está nua como ela é.
Ela está nua como o espectador a vê. (BERGER, 1999, p. 51-52)

O espectador masculino poderia ser representado dentro do próprio quadro ou fora dele,
confundido com aquele que contempla a tela ou, ainda, de ambas as formas. Berger apresenta duas
versões de Suzana e os velhos (Figuras 1 e 2), de Jacopo Tintoretto (1518-1594) para mostrar essa
questão. No primeiro quadro, a mulher é observada por velhos senhores, ao fundo, à direita. Além
disso, ela olha furtivamente para o espectador fora da tela. No segundo quadro, mais um elemento Ŕ

1
ŖABíblia caracteriza-se como um texto sensível, tendo em vista que sua tradução pode provocar objeções da parte dos
receptores que esperam a reprodução do ŘOriginalř tal como fora deixado por Deus.ŗ (SIMMS, 1997 apud LOPES,
2008, p. 8). Entretanto, Ŗa sensibilidade de um texto não está nele, mas na forma como o texto é visto. A sensibilidade
não é, portanto, uma propriedade imanente ao texto.ŗ (GOHN, 2001 apud LOPES, 2008, p. 29)

743
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

o espelho Ŕ surge como Ŗespectadorŗ . Entretanto, é a prñpria mulher que olha para si, seu olhar
junta-se aos olhares masculinos, de forma conivente.

Figura 11 Figura 2

Suzana em seu banho (c. 1555) Suzana e os velhos (1560)

Para Berger, olhar o corpo (feminino) nu implicaria a diferenciação entre nu e despido, em


que o primeiro estado (nu) ligar-se-ia à forma como se é visto por uma alteridade; enquanto que o
segundo (despido), relaciona-se à própria identidade:

Estar despido é sermos nós mesmos.


Estar nu é ser visto despido por outros e contudo não ser reconhecido como quem se é. Um
corpo despido tem de ser olhado como um objeto a fim de tornar-se um nu. [...] O nu é
colocado em exibição.
Estar despido é estar sem disfarce.
[...] O nu é uma forma de vestuário. (idem, p. 56)

Desse modo, tal distinção entre nu e despido permite-nos perceber, portanto, que estamos
diante de um interpretante gerado pelo símbolo de um espectador (masculino) que estabelece as
regras ou convenções da representação do nu feminino, a forma como se deve olhar para a mulher,
qual roupa ela deve vestir. Afinal, mesmo com todo o desenvolvimento da história das artes
plásticas e as rupturas conceituais e formais das vanguardas artísticas,

a forma essencial de ver a mulher, o uso básico a que se destina sua imagem, não mudou. A
mulher é representada de uma maneira bastante diferente do homem [...] porque se presume
sempre que o espectador Ŗidealŗ é masculino, e a imagem da mulher tem como objetivo
agradá-lo. (ibid., p. 66)

1
As imagens foram retiradas do site de busca <http://www.google.com.br/imghp?hl=pt-BR&tab=wi>.

744
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A análise de Berger pode ser entendida como o efeito gerado pelo interpretante lógico, que
se dá, de acordo com Santaella:

quando o signo é interpretado através de uma regra interpretativa internalizada pelo


intérprete. Sem essas regras interpretativas, os símbolos não poderiam significar, pois o
símbolo está associado ao objeto que representa através de um hábito associativo que se
processa na mente do intérprete e que leva o símbolo a significar o que ele significa.
(SANTAELLA, 2002, p. 25)

Quanto à representação de Bate-Seba no gênero Nu, consideremos, primeiramente, três


exemplos de reescrituras do relato bíblico produzidas por Memling, Cranach e Massys (Figuras 3, 4
e 5, respectivamente). Percebe-se nos quadros dos século XV e XVI, a construção do Nu feminino
ainda numa fase narrativa, em que a presença de Davi remete diretamente ao texto enquanto objeto
dinâmico. Como apontamos acima, a Bíblia é considerada um texto sensível em função das
recepções conflituosas que suas possíveis traduções podem gerar, ao escapar de regras
interpretativas geradas pelos interpretantes. Nesse sentido, vale observar a perseguição que
provocou banimento do pintor flamengo Jan Massys, sob acusação de Ŗopiniões heréticasŗ , em
1543, segundo consta no portal da Encyclopaedia Britannica1. Todavia, nesse contexto específico,
não temos como assegurar se a heresia estaria relacionada aos textos pictóricos.

Figura 3 Figura 4 Figura 5

Bathsheba (1485) Davi e Bathsheba (1526) Bathsheba observada pelo Rei Davi (s/d)
Hans Memling (c. 1435-1494) Cranach (1472-1553) Jan Massys (1510-1575)

No século XVI, podemos perceber uma mudança significativa na representação do Nu


feminino nos quadros do pintor holandês Rembrandt van Rijn (1606-1669), nas suas reescrituras de

1
Disponível em: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/368625/Jan-Massys>. Acesso em 20 jun. 2010.
745
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Bathsheba (Figuras 6 e 7). Vemos nas pinturas, as personagens femininas como o principal
elemento figurativo como consequência do esvaziamento da narrativa bíblica (objeto dinâmico) em
favor da exibição do corpo nu. As interpretações criariam, assim, outros percursos interpretativos na
representação do corpo feminino na arte ocidental.

Figura 6 Figura 7

Toilette de Bathsheba (1642) Bathsheba no banho (1654)

O escritor modernista brasileiro Mário de Andrade publicou, em 1927, seu primeiro


romance, Amar, verbo intransitivo – idílio, cuja protagonista é Fräulein Elza, uma imigrante alemã
de 35 anos, governanta e professora de piano e alemão, que, no Brasil, acaba por assumir, também,
a profissão de Ŗprofessora de amorŗ para os jovens filhos de famílias burguesas da emergente
cidade de São Paulo, no início do século XX. As famílias de novos-ricos, oriundos do próspero
interior paulista, viam nas aulas de Ŗalemãoŗ um forma de profilaxia social que garantiria a saúde e
a riqueza das gerações vindouras.

O narrador do idílio marioandradiano descreve a personagem Fräulein de modo pictórico


através da técnica chamada ecfrase1 Ŕ que seria, basicamente, a representação por palavras (verbal)
de uma representação visual (imagética) Ŕ que desdobra-se em dois elementos estéticos ligados à
Pintura. O primeiro evidencia uma filiação ao gênero Nu feminino, a partir da representação de
Bate-Seba por Rembrandt. O segundo aparece na narrativa como elemento estruturante na
configuração da estética do grito, à maneira expressionista.

A reescritura literária tem, agora, seu objeto dinâmico nos quadros de Rembrandt. O
interpretante possui a marca do gênero Nu feminino.

1
Heffernan distingue [...] três tipos distintos de tentativas de tradução da pintura para a literatura: a meramente
descritiva; a que se vale do pictorialismo ou da referência a formas e cores para evocar uma imagem; e a icônica, que
procura espelhar numa forma gráfica a forma do objeto que se deseja representar com palavras. [...] A utilização da
ecfrase na literatura leva o meio a refletir sobre os modos de sua própria constituição a partir da reflexão sobre a
constituição da representação num outro meio, o que talvez justifique o interesse dos escritores modernos pela técnica.
(FERREIRA, 2007)

746
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Se este livro conta 51 leitores sucede que neste lugar da leitura já existem 51 Elzas. É bem
desagradável, mas logo depois da primeira cena, cada um tinha a Fräulein dele na
imaginação. Contra isso não posso nada e teria sido indiscreto se antes de qualquer
familiaridade com a moça, a minuciasse em todos os seus pormenores físicos, não faço isso.
Outro mal apareceu: cada um criou Fräulein segundo a própria fantasia, e temos
atualmente, 51 heroínas pra um só idílio.
51, com a minha, que também vale. Vale, porém não tenho a mínima intenção de exigir dos
leitores o abandono de suas Elzas e impor a minha como única de existência real. O leitor
continuará com a dele. Apenas por curiosidade, vamos cotejá-las agora. Pra isso mostro a
minha nos 35 atuais janeiros dela.
Se não fosse a luz excessiva, diríamos a Betsabê, de Rembrandt. Não a do banho que traz
bracelete e colar, a outra, a da Toilette, mais magrinha, traços mais regulares.
Não é clássico nem perfeito o corpo da minha Fräulein. Pouco maior que a média dos
corpos de mulher. E cheio nas suas partes. Isso o torna pesado e bastante sensual. Longe
porém daquele peso divino dos nus renascentes italianos ou daquela sensualidade das
figuras de Scopas e Leucipo. Isso: Rembrandt, quase Cranach. (ANDRADE, 2008, p. 29-
30)

O narrador irrequieto de Amar, verbo intransitivo, ao apresentar a protagonista de sua


história, opta por criar uma imagem sobreposta, a partir dos quadros do pintor holandês, apesar de
preferir um deles. A tela escolhida pelo narrador revela-nos detalhes interessantes quanto à relação
entre a mulher representada (nua) e seu possível observador (espectador masculino). Enquanto a
Bathsheba de 1654 revela uma possível relação com um homem através de uma carta em sua mão,
durante o banho (Figura 8); a Bathsheba de 1642 mantém um evasivo, porém conivente, contato
visual com seu espectador (masculino) que estaria diante da tela Ŕ como Davi (imaginado fora da
tela), como pintor (diante da modelo) e como espectador do Nu feminino. Além disso, o gesto
recatado de esconder os seios também contribui para esta leitura (Figura 9).

Figura 8 Figura 9

Detalhe de Bathsheba (1654) Detalhe de Bathsheba (1642)

Há, ainda, em no romance marioandradiano uma reescritura do quadro O grito, de Edvard


Munch (Figura 10). Tal pintura serve como objeto dinâmico da citação que segue e gera um
interpretante de todo o livro e, mais especificamente, da personagem Fräulein. Em determinado

747
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ponto da narrativa, ela encontra-se na floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro. Diante da exuberância
da natureza brasileira,

Fräulein estacara devorando pela moldura das arcadas o mar. A tarde caía rápida. A
exalação acre da maresia, o cheiro dos vegetais... Oprimem a gente. E os mistérios frios da
gruta... Tanta sensação forte ignorada... a imponência dos céus imensos... o apelo dos
horizontes invisíveis... Abriu os braços. Enervada, ainda pretendeu sorrir. Não pôde mais. O
corpo arrebentou. Fräulein deu um grito. [grifo nosso] (idem, p. 113-114)

Figura 10

O grito (1893), de Edvard Munch

No filme Lição de amor (1976), o diretor Eduardo Escorel retoma a ecfrase da Bathsheba
rembrandtiana no corpo da Fräulein marioandradiana para a transmutação da personagem literária
para a personagem cinematográfica. E, por outro lado, Ŗapagaŗ a referência ao Expressionismo.

Abaixo, temos os fotogramas da Sequência em que a reescritura de Fräulein se efetiva para


tecer algumas considerações acerca do que se verifica no processo de tradução intersemiótica.

Figura 11 Figura 12 Figura 13 Figura 14

Rosto Orelha Boca Olhos e nariz

748
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Figura 15

Toalete de Fräulein

Na década de 1970, a cineasta Laura Mulvey, no texto Prazer visual e cinema narrativo,
critica o cinema clássico hollywoodiano por considerar que sua estrutura narrativa expressa uma
sociedade falocêntrica, a partir da capacidade escopofílica da linguagem cinematográfica. Afinal,
segundo a autora,

Num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido entre
ativo/masculino e passivo/feminino. O olhar masculino determinante projeta sua fantasia
na figura feminina, estilizada de acordo com essa fantasia. Em seu papel tradicional
exibicionista, as mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, tendo sua aparência
codificada no sentido de emitir um impacto erótico e visual de forma a que se possa dizer
que conota a sua condição de Ŗpara-ser-olhadaŗ . [grifo nosso] (MULVEY, 2008, p. 444)

O filme de Escorel foi produzido dentro do contexto da discussão promovida por Mulvey. A
personagem Fräulein, no cinema, também foi criada sob o olhar de um espectador masculino.
Entretanto, não estamos mais como espectadores diante de um Nu feminino. Agora, através do
cinema, entra em questão a escopofilia, como um elemento que configurará o novo interpretante e,
por conseguinte, novas interpretações. O termo escopofilia tem origem na Teoria Psicanalítica de
Sigmund Freud. De acordo com Mulvey (2008), Freud associou a escopofilia ao ato de tomar
pessoas como objetos, através de um olhar fixo, curioso e controlador. Nesse contexto, a atividade
voyuerista (ativa), das crianças ou dos pervertidos, mantém, em si mesma, o prazer em olhar o outro
como objeto (passivo). Mulvey relaciona, por conseguinte, o instinto escopofílico ao cinema em
função da capacidade que a sétima arte tem de ―satisfazer uma necessidade primordial de prazer
visual‖ (Mulvey, 2008, p. 441).

Isso se configura na Sequência de planos estáticos Ŕ close up e plano de conjunto Ŕ que


mostram o Nu feminino de Fräulein, em sua reescritura fílmica (Figuras 11 a 15). Essa montagem de
planos em Lição de amor, confirma, ainda, o que Mulvey chama de congelamento do ―fluxo da
ação em momentos de contemplação erótica‖ (idem).

Porém, em certo momento do filme, o olhar feminino de Fräulein assume o olhar


escopofílico do espectador do filme (Figuras 16 a 19). Enquanto a escopofilia masculina suspende a
narrativa, fazendo do corpo feminino um objeto a ser contemplado.
749
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Figura 16 Figura 17 Figura 18 Figura 19

Carlos toma banho (Fräulein olha Carlos com desejo)

A escopofilia feminina insere-se na narrativa fílmica sem a quebra da ação, porém, neste
caso, o corpo desejado é masculino, embora com traços femininos. Desse modo, entendemos que
Escorel traz novos elementos para o interpretante ao contrapor-se à linguagem clássica do cinema,
que expõe o corpo feminino ao olhar voyeurista masculino.

3. Conclusão

O percurso sígnico aqui apresentado, a partir da perspectiva do conceito de interpretante,


mostra como, em determinados contextos, o processo criativo de artistas interferem nas regras
estabelecidas por interpretantes lógicos que tendem a fixar possíveis interpretações. A mímesis
intertextual e intersemiótica parte de signos cujas interpretações mantém estruturas estéticas e
poetológicas, mas a criatividade aponta para caminhos estruturantes de novas formas e gerando
novos interpretantes ao longo do tempo.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo: idílio. Estabelecimento do texto Marlene Gomes
Mendes. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

BERGER, John. Modos de ver. Tradução de Lúcia Olinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo NVI. Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida,
2003.

FERREIRA, Ermelinda Maria Araújo. A ecfrase como técnica de transcriação intersemiótica.


Disponível em: <http://www.abralic.org/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/complemento/

ERMELINDA_FERREIRA.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2010.

LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Tradução de Claudia


Matos Seligman. Bauru, SP: EDUSC, 2007.

LOPES, Mariú Moreira Madureira. A sensibilidade na tradução bíblica: aspectos lingüísticos e


socioculturais. São Paulo, 2008. 209 p. Dissertação (Mestrado em Letras). Centro de Comunicação
e Letras. Universidade Presbiteriana Mackenzie

750
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail (Org.) A experiência do
cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal; Embrafilme, 2008. p.437-453.

SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 8. ed. Coimbra: Edições Almedina,
2007.

STAM, Robert. A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação. Tradução
de Marie-Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

ZILOCCHI, Ana Maria Domingues. Interpretante, interpretação e intérprete. Galáxia, n. 1, 2001.


Disponível em <revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/download/1055/692>. Acesso em 20
mai. 2010.

Filme

LIÇÃO DE AMOR. Direção de Eduardo Escorel. Manaus. Paramount Pictures. 2005. 80 min: son.
color. DVD.

751
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O EXCEDENTE DE VISÃO NA OBRA O DEUS DAS PEQUENAS COISAS DE ARUNDHATI

ROY 1

Rosa Maria T. Fonseca2 (UEA/FAPEAM)

Considerações Iniciais

Neste trabalho objetivamos verificar a maneira como são constituídos os protagonistas de O


deus das pequenas coisas de Arundhati Roy. O livro conta a história de Rahel e Estha, dois irmãos
torturados por lembranças de uma infância conturbada. Por serem filhos de pais separados num país
marcado pelas diferenças sociais e de castas, os gêmeos sofrem com a exclusão e o desamparo
emocional que a família lhes proporciona. O fator que desencadeia o início da tragédia familiar é o
afogamento da prima inglesa que estava de visita à província de Kerala. Somado a esse fato, a mãe
dos pequenos é flagrada com um homem de casta inferior, o que leva à desintegração total da frágil
família. Somente vinte e três anos depois os irmãos voltam a se encontrar na mesma casa onde a
separação dolorosa ocorreu. As seqüelas do passado, porém, são facilmente observáveis através do
mutismo de Estha e o olhar perdido de Rahel.
Logo de início será apresentado o conceito de excedente de visão, tal como teorizado por
Bakhtin em ŖEstética da criação verbalŗ; já no segundo momento, verificaremos de que modo a
noção de excedente de visão se configura na obra O deus das pequenas coisas, de Arundhati Roy.

1 A concepção de excedente de visão


No capítulo ŖO autor e a personagem na atividade estéticaŗ 3, Bakhtin assim traz o
entendimento do excedente de visão: Ŗo autor não sñ conhece e enxerga tudo o que cada
personagem em particular e todas personagens juntas enxergam e conhecem, como enxerga e
conhece mais que elas, e ademais, enxerga e conhece algo que por princípio é inacessível a elaŗ
(BAKHTIN, 2003, p. 11). É importante observar que no momento em que Bakhtin menciona o
termo autor este não se confunde com o de autor empírico, tal como ele próprio ressalva ao afirmar
que é recorrente a confusão Ŗentre o autor-criador, componente da obra, e o autor-homem,
componente da vida (ibid., p. 31). Além disso, tal como já observado por Tezza (2001, p. 281), para
Bakhtin, o autor-criador é parte inseparável da obra, mas não deve ser confundido com o narrador,
instância narrativa abstrata e gramaticalmente localizável no texto.

1
Trabalho desenvolvido em nosso projeto de Iniciação Científica Ŗ O excedente de visão nas obras O CAÇADOR DE
PIPAS De Kaled Hosseini e O DEUS DAS PEQUENAS COISAS de Arundhati Roy
sob a orientação da profa. Dra. Juciane Cavalheiro.
2
Aluna do Curso Letras da Universidade do Estado do Amazonas, bolsista de Iniciação Científica.

752
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Para Bakhtin (2003), os diferentes modos de relação de uma consciência para com a outra é
que estabelece os tipos de personagens, ou seja, as personagens se definem pela relação que o autor-
criador mantém com elas e as relações que as personagens mantêm entre si.
Sabendo que a relação entre autor-criador e personagens é o que estabelece o objeto estético,
vejamos como se estrutura o conceito de exotopia. Ela se fundamenta no que Bakhtin chama de
excedente da visão humana:

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes
concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. [...] esse
excedente constante de minha visão a respeito do outro, é condicionado pelo lugar que sou
o único a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de dados
circunstanciais Ŕ todos os outros se situam fora de mim (...) o que vejo do outro é
precisamente o que só o outro vê quando se trata de mim (...) (BAKHTIN, 2003, p. 43).

Passaremos agora a verificar de que forma se manifesta o olhar extraposto (tanto do autor-
criador quanto das demais personagens da obra O deus das pequenas coisas para a configuração da
constituição da subjetividade dos protagonistas do romance.

2 O excedente de visão em O deus das pequenas coisas

O deus das pequenas coisas (ODPC) da escritora indiana Arundhati Roy nos apresenta um
mundo repleto de odores, sonhos, cores, desejos reprimidos e punições exemplares. Desde o
primeiro parágrafo somos tragados por um universo mágico onde cores vibrantes de frutas maduras,
sons e perfumes espalham-se naturalmente. Os olhares admirados de duas crianças que ainda não
viram o suficiente para saber que a vida nem sempre é justa nos posicionam de maneira que
podemos vislumbrar histórias de amor e de dor no coração da Índia. A trama se passa num vilarejo
da província de Kerala, na família Kochamma. Mas antes de tudo a história se passa diante dos
olhares observadores do gêmeos bivitelinos, Rahel e Estha, duas crianças que crêem que são uma
sñ. A voz narrativa revela a relação peculiar entre eles: ŖEsthappen e Rahel pensavam em si
mesmos juntos como Eu, e separadamente, individualmente, como Nós. Como se fosse uma rara
espécie de gêmeos siameses, fisicamente separados, mas com identidades conjuntasŗ (ROY, 2008,
pg. 10).

No primeiro capítulo encontramos Rahel que retorna à casa de Ayemenem para encontrar
seu irmão gêmeo, Estha, agora com 31 anos. Ainda morando na casa está sua tia-avó, Baby
Kochamma, responsável direta pela separação dos irmãos ainda na infância.

Tudo começou, segundo o autor-criador, no dia que Sophie Mol, a prima londrina de nove
anos chegou para passar o natal na Índia. Numa tentativa frustrada de atravessar um rio numa
pequena embarcação, a prima morre afogada. Os gêmeos são considerados culpados por haverem
levado a prima ao rio (mas eles só tinham sete anos!). Aproveitando-se da comoção geral causada
pela morte da garota, Baby Kochamma faz com que a mãe do gêmeos, Ammu, seja expulsa de casa
e Estha enviado a seu pai em Calcutá. Rahel fica sozinha na casa de Ayemenem. A trajetória

753
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

solitária e silenciosa dos protagonistas inicia-se com essa tragédia familiar. No momento que
verificamos o encontro dos irmãos já como adultos, eles trazem muitas marcas do que a separação
brusca lhes causou: Rahel é uma mulher de olhar vazio e Estha perdeu a voz, é um ser mudo, quase
invisível, que tenta fechar o mundo para o lado de fora a fim de não ter que conviver com as
lembranças do passado: ŖEstava tudo sereno na cabeça de Estha até Rahel chegar. Mas ela trouxe o
ruído dos trens passando [...] O mundo trancado lá fora durante anos, repentinamente, o inundava,ŗ
(Ibid., p. 22). As lembranças voltavam para Estha. A respeito do comportamento de Estha o autor-
criador nos dá mais informação: ŖEstha ocupava muito pouco espaço no mundoŗ (Ibid., p. 10) ou
era Ŗuma bolha silenciosa flutuando num mar de ruídoŗ (Ibid., p. 19). Ficamos sabendo também que
Estha caminhava horas a fio pelas redondezas de Ayemenem, calado, sem se importar se chovia ou
fazia sol.

Rahel sofreu calada depois que a mãe morreu sozinha e doente num quarto de hotel: ŖRahel
perdeu o rumo. De escola em escola. Passava as férias em Ayemenem, quase inteiramente ignorada
por Chako e Mammachiŗ (Ibid., p. 23). Chako era seu tio, Mammachi sua avñ, os dois Ŗamolecidos
de tristeza, arriados em sua desolação como uma dupla de bêbados num barŗ (Ibid., p. 23). A morte
da prima Sophie Mol ainda pairava sobre a casa: ŖÉ curioso como às vezes a memória da morte
vive por muito mais tempo que a memória da vida que ela roubou [...] a perda de Sophie Mol ia
ficando viva e robusta [...] escoltando Rahel ao longo da infância até a idade adulta.ŗ (Ibid., p. 24)

Muito antes da vinda de Sophie Mol os gêmeos já se sentiam pouco amados. Por essa razão
antagonizavam a prima mesmo sem a conhecer, porque fora ŖAmada Desde o Princípioŗ (ibid, 23).

A preferência que os adultos davam a Sophie Mol era sentida como injusta. A prima, assim
como os gêmeos, era filha de pais separados. A diferença é que era filha do homem da casa, Chako.
Essa pessoa, com suas necessidades masculinas era perdoada com grande facilidade por seus
deslizes. Já a filha separada, Ammu podia ser insultada por estranhos, podia ser chamada de
Ŗveshiaŗ (prostituta), sem que ninguém viesse em sua defesa. Seus filhos, Rahel e Estha, eram
considerados ilegítimos ou bastardos. É óbvio que os gêmeos também notavam a diferença no
tratamento. Não podiam competir com a prima, que além de tudo era branca, tinha olhos azuis,
morava em Londres, usava calça boca de sino e bolsinha go-go: ŖAs meninas brincando. Que
gracinha. Uma cor de praia. Outra marrom. Uma amada. Outra Amada Um Pouco Menosŗ (Ibid., p.
196).

No enterro de Sophie Mol os gêmeos e a mãe são obrigados a manter distância, num canto,
separados do resto da família: ŖEmbora permitissem que Ammu, Estha e Rahel comparecessem ao
funeral, fizeram com que ficassem separados, não junto com o resto da família. Ninguém olhava
para elesŗ (Ibid., p. 13).

As lembranças que Rahel trouxe e que Estha tentara esquecer têm a ver com a morte da
prima e também com outro incidente da mesma época: a morte de Velutha, o intocável.

754
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Na casa onde os meninos e a mãe eram desprezados, o empregado de casta inferior era um
dos poucos que lhes dava carinho e atenção. Mas Velutha comete o erro de sentir-se atraído pela
mãe das crianças e, Ammu, que já o conhecia desde pequeno, retribui esse sentimento. Este seu
segundo erro, muito mais grave por se tratar de um Paravan, não poderia ser perdoado. Por isso o
castigo foi tão cruel. Ammu, pela segunda vez, repudiava as leis dos bons costumes e da moral
indiana para se juntar a um intocável. O amor proibido é descoberto e gera furor. Para salvar as
aparências, Baby Cochamma dá parte de Velutha à polícia acusando-o de haver seqüestrado as
crianças e obrigado Ahmu a manter relações sexuais. Quando Ahmu desmente a história, Baby
Cochamma percebe que será acusada de calúnia ou algo pior. Resolve então manipular o pequeno
Estha, fazendo chantagem, para que ele confirme sua história. Dessa maneira Estha participa da
condenação de Velutha. O garoto carrega desde esse dia a terrível lembrança de olhar no rosto
amado do empregado, Ŗum jovem com a boca de um velhoŗ, por causa dos dentes quebrados com
um chute de um policial. Estha sentia-se responsável pela morte de Velutha por haver pronunciado
um simples Ŗsimř. A punição de Velutha foi exemplar: depois de brutalmente espancado, não
resistiu aos maus tratos. Pagou com a própria vida sua insolência. A mãe dos gêmeos morre anos
depois, sozinha e doente. Rahel não quis escrever a Estha comunicando a morte da mãe. Em sua
cabeça não fazia sentido escrever para si mesma ou para um pedaço de si: ŖRahel nunca escreveu
para ele. Certas coisas não se podem fazer, como escrever cartas para uma parte de si mesmo. Para
seus pés, ou cabelos. Ou coraçãoŗ (Ibid., p. 174).

Observando o comportamento das crianças a partir da separação, podemos notar que suas
chances de serem felizes eram poucas. Depois de tantos traumas e violências, não era estranho que
Estha, por exemplo, se transformasse no ser mudo, que não quis estudar, apesar de ser homem, e
que não queria contato com nenhuma pessoa.

Rahel ligou uma espécie de piloto automático, freqüentou um curso de arquitetura e lá


conseguiu um marido americano, ou melhor, ele a notou. Ela andava pelo mundo como uma
sonâmbula, sem rumo definido. Quase sem sentir foi parar nos Estados Unidos onde anos mais
tarde se separou do marido. Sempre ausente, sua marcante característica era o olhar vazio. Quando
descobre que Estha retornou a Ayemenem decide retornar também. Rahel e Estha ficaram separados
durante vinte e três anos. Agora adultos, se observam mutuamente. As lembranças de Rahel vêm a
tona como flash backs fazendo com que a narrativa do presente prossiga lentamente. A intercalação
do tempo, presente e passado, no início causa estranhamento no leitor. Este, porém, logo se
acostuma com o jogo e passa a esperar impacientemente pelas histórias que lhe são apresentadas
quase que simultaneamente.

O peculiar na relação entre os irmãos é que, mesmo adultos e depois de longa separação,
continuam agindo como se fossem um só. Na página 100 (ROY, 2008) vemos como Estha se despe
em frente de Rahel, como se ela não estivesse lá, sem se importar com sua presença. Ela o observa
com fascinação, admirando seu corpo, sem demonstrar qualquer constrangimento com a nudez do

755
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

irmão. Neste momento temos uma pista de que os irmãos, assim como a mãe, continuarão
contrariando as normas sociais impostas a todos. De fato, eles cometem incesto, mas a união não
tem um caráter puramente sexual. O que os corpos expressam, é o sofrimento guardado durante
anos, coisa que linguagem nenhuma pode exprimir com exatidão. O ato sexual entre os irmãos é
como um grito silencioso de dor em que cada um comparte o que resta de um ser dilacerado pela
separação precoce e brutal a que foram submetidos: ŖQuietude e vazio se encaixaram como duas
colheresŗ (Ibid., p.336). Nenhuma palavra poderia expressar melhor a enxurrada de sentimentos que
afloraram no momento que quebraram as leis do amor: ŖAs leis do Amor foram promulgadas. As
leis determinam quem deve ser amado, e como. E quandoŗ (Ibid., p. 41). Mas essas leis , assim
como as leis discriminatórias das castas, serão rompidas pelo amor proibido, da mesma forma que
Ammu as rompeu ao manter uma relação com o intocável Velutha. A dor dos gêmeos separados à
força, um do outro e da mãe, era impossível de se deixar traduzir por uma linguagem humana. A
união dos seres que há muito tempo deixaram de se comunicar só poderia ser de forma física. O
final inesperado do reencontro entre Rahel e Estha causa perplexidade, mas ao mesmo tempo parece
natural: a pequena família havia sido punida por contrariar as leis da moral indiana. Agora, todos
aqueles que haviam condenado os gêmeos e a mãe à uma existência indigna, ou estavam mortos ou
não eram mais capazes de exercer pressão sobre os únicos sobreviventes da família. Sem tal
pressão, podiam fazer o que quisessem, inclusive cometer incesto.

Entre todos esses aspectos até agora apresentados, a morte de Sophie Moll é o marco de
mudanças radicais na vida dos gêmeos. Nesse dia eles perdem brutalmente a prima londrina, a mãe
e a figura paterna representada por Velutha.

Assim como o amor de Ammu e Velutha foi proibido pelas leis das castas, a relação entre
Rahel e Estha continua sendo tabu, não somente na sociedade indiana. O desespero e o desejo são
sentimentos que prevalecem no caso dos gêmeos. Por isso mesmo podemos interpretar a atitude dos
irmãos como um ato de rebelião final. Ou como uma demonstração de que o amor verdadeiro é uma
arma tão poderosa e incontrolável que nenhum código ou convenção social pode contê-lo.
Infelizmente, em O deus das pequenas coisas o amor parece estar conectado à perda, à morte e à
tristeza. Essa obra dá destaque a duas crianças e suas impressões sobre o mundo. O autor-criador
usa várias técnicas para representar o ponto de vista e a inocência dessas crianças. Uma dessas
técnicas é a forma como elas afirmam coisas que os adultos dizem numa maneira foneticamente
nova, disjuntando e recombinando palavras. Isso para mostrar uma maneira diferente de ver o
mundo: ŖO homem pequeno. Morava numa cara-van, Dum dumŗ ( Ibid., p. 328).

Eles dão significados à palavras e idéias diferentemente dos adultos: Ŗ O sangue quase
nunca aparece num Homem Negro [...] Mesmo assim, cheira. Docenjoativo. Como rosas velhas
numa brisaŗ (Ibid., 319). Eles escolhem um certo sentimento ou idéia que os adultos preferem
ignorar e atribuem a isso novos significados. As crianças usam e repetem essas frases ao longo da

756
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

estória de uma maneira que essa frase parece adquirir independência e novos significados nos usos
subseqüentes.

Se levarmos em consideração o fato de que o discurso escrito é parte integrante de uma


discussão ideológica em grande escala, veremos que isso se confirma em O deus das pequenas
coisas, já que ali o autor-criador comenta, refuta, antecipa as respostas e objeções a uma certa
situação social. Esse autor-criador propõe um ponto de vista baseado em sua relação com outros
sujeitos que lhe conferem acabamento. Faz assim o papel de mediador entre o mundo representado
e a apreensão social e histórica desse mundo. Nessa concepção, apresenta as categorias de tempo,
espaço e casualidade em que estão inseridos os personagens, aspectos aqui vistos indiretamente,
quando situávamos os personagens na ação.

A ação, o agir dos personagens, é o fator que os cria. Conhecemos os personagens Rahel e
Estha a partir de suas ações e pensamentos revelados a nós através das narrações do autor-criador e
dos gêmeos, com predominância de Rahel sobre Estha, como narradora. Estha e Rahel são sujeitos
que sabem do outro o que este não pode saber de si mesmo, ao mesmo tempo que dependem do
outro para saber o que não podem de si. É o olhar que o outro lhes confere. É a relação dos Eus
entre si que faz nascer o sentido.

Algumas considerações finais

A partir dos comentários das personagens envolvidos na trama e da rede de informação que
nos é dada pelo autor-criador, podemos esboçar uma síntese da maneira como as personagens
Rahel e Estha são configuradas. Os gêmeos, assim como os outros personagens que com eles
interagem, são grandes delineadores da constituição de suas subjetividades, a partir de suas palavras
e ações que influem fortemente em suas vidas. Pode-se afirmar que os gêmeos se constituem a
partir do olhar dos outros, de si mesmos e, principalmente, do olhar do autor-criador.

Uma análise dos acontecimentos nas vidas dos gêmeos leva em conta o emaranhado de
razões históricas, sociológica etc. aí envolvidas. Em O deus das pequenas coisas, o autor-criador e
principalmente Rahel relatam a teia de eventos que transformaram a ela e ao irmão nos adultos
perdidos e deslocados na sociedade em que vivem. O contar desses vários acontecimentos desenha
um painel impiedoso das leis de castas fortemente vigentes na Índia dos anos 70. Tudo começa com
a chegada da prima de Londres. Tudo termina com a repetição da contravenção da mãe, que rompeu
um tabu. Os gêmeos, em sua contravenção incestuosa, não sofrem retaliações. A narrativa é
finalizada com o delinear desse último ato e somos deixados a imaginar o final da história. O que o
futuro trará para os gêmeos? Encontrarão um dia a felicidade? As feridas cicatrizarão? O final é
ambíguo e aberto. Cabe ao leitor sintonizar as vozes narrativas e usá-las como melhor lhe convir.
Um novo diálogo se inicia.

757
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Referências bibliográficas

ARUNDHATI, Roy. O deus das pequenas coisas. Tradução José Rubens Siqueira, São Paulo: Cia
das letras, 2008.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes,
2003.

HOSSEINI, Kaled. O caçador de pipas. Trad. Maria Helena Rouanet. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2005.

758
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O MODERNISMO BRASILEIRO: MÁRIO DE ANDRADE E A BUSCA DA IDENTIDADE


NACIONAL

Sônia Maria Vasques Castro (UFAM)

Resumo: Este artigo pretende refletir sobre a questão de identidade nacional à luz da perspectiva de um
modernista, o escritor Mário de Andrade. Para tanto, além da pesquisa bibliográfica, elegeu-se como objeto
de análise o poema Descobrimento, da obra Clã do Jabuti, por considerá-lo representativo do aspecto
estético e ideológico da poesia do autor.

Palavras-chave: Modernismo, Descobrimento, aspecto estético e ideológico, identidade nacional

Abstract: This article is going to reflect of the national identity question in the light of a modernist
perspective, the writer Mário de Andrade. Beside the literature search, the poem Discovery was elected as the
object of analysis, in the work of Clã do Jabuti, as it has been considered representative of the aesthetic and
ideological aspect of the poetry of the author.

Keywords: Modernism, Discovery, aesthetic and ideological aspect, national identity

Introdução

O conhecimento de quem somos, a consciência de nossa formação social e de nossa história


são inquietações que reforçam a necessidade de construção de uma identidade singular para cada
nação. No Brasil, a ideologia nacionalista, aglutinadora do ideário de diversos grupos de artistas,
escritores, políticos e intelectuais, recorrente desde o século XVIII, com os Inconfidentes, atravessa
o século XIX e adentra a Primeira República por meio de projetos modernistas que comungam da
mesma ideia, especialmente nas decadas de 20, 30 e 40.

A literatura, principal veiculadora do Movimento Modernista, adquire nesse momento um


caráter militante, documental, tematizando nossa diversidade étnica, nossas contradições e
pluralidade cultural. Os Ŗdiscursosŗ então produzidos estampam nossas diferenças, ao mesmo
tempo em que promovem o interesse por elas, tanto no erudito quanto no popular.

No bojo do Modernismo, nasce, pois, uma nova configuração do pensamento brasileiro no


que concerne à questão da identidade nacional, pautada na releitura de traços singulares e originais
de nossa cultura. Esses traços seriam capazes de produzir Ŗretratosŗ outros, mais prñximos da
realidade do Brasil. E são esses Ŗretratosŗ que o modernista Mário de Andrade buscou representar
em quase toda a sua produção literária.

Interessado que estava em descortinar o Brasil para si e para os outros brasileiros, o escritor
pôs-se a

759
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗtraçar as coordenadas da cultura nacional, tomando como instrumentação para o


seu conhecimento do povo, as manifestações coletivas. Daí seu interesse em
fenômenos como a língua, os ritos sociais, os folguedos, os cantadores populares, a
literatura de cordel e toda e qualquer manifestação de arte popular que o ajudasse a
compreender o contexto nacionalŗ (Santos e Madeira, 1999, p. 113).

As considerações aqui apresentadas buscam refletir sobre a questão da identidade nacional


enquanto objeto das inquietações do escritor Mário de Andrade, notadamente a sua postura ante a
figura do Outro, brasileiro que comparece no poema Descobrimento, um dos poemas que compõem
Dois poemas acreanos, da obra Clã do Jabuti, de 1927.

Para melhor compreensão de Descobrimento, serão levadas em conta primeiramente


informações sobre Clã do Jabuti, obra de onde o poema é retirado por se considerar que ela
cristaliza o nacionalismo estético, apontado em Mário de Andrade.

A trajetória intelectual do escritor pauta-se num claro propósito de elaborar uma concepção
de cultura brasileira que expresse um jeito de ser típico da nação.

A coleta de registros tão apurados, nos quais comparecem as mazelas e grandezas do país, é
que ganha visibilidade nos versos de Clã do Jabuti, obra que atesta com propriedade os
brasileirismos de Mário.

O livro assume grande importância no conjunto de sua produção literária porque nele
aparece claramente o interesse pela identidade nacional. Esse interesse move as detalhadas
pesquisas do escritor que busca desvendar as matrizes culturais que nos unem. São essas percepções
da realidade brasileira que vão moldando sua forma de interpretar o Brasil.

Como Clã do Jabuti se pretende representativo das coisas do Brasil, nele se acentua o
Ŗnacionalismo estético e pitoresco, que se vale do folclore e da etnografia, em busca de um
brasileiro específico que obsedava os renovadoresŗ (Cândido e Castelo, 2005, p. 103).

O título da obra tenta sintetizar o interesse de Mário pelo nacional, mas sem o tom
nacionalista que ele tanto detestava, conforme confessa em carta a Manuel Bandeira, datada de 06
de abril de 1927:

O Clã, prontinho da Silva, capaz de entrar agora mesmo pra máquina, agora pra quando?...
Já temos nacionalismo por demais e tão besta! Vão julgar meu livro nacionalista, que eu
entrei na onda, sem ter ninguém capaz de perceber uma intenção minha, que eu sou o que
sou, nacionalista não, porém brasileiro... vão me confundir com patriotas de... gente que eu
odeio... Palavra que eu tenho pena de publicar o Clã (Apud Moraes, 2001, p. 340).

Desde a sua gênese, Clã do jabuti traz a marca do nacionalismo. A primeira alusão que
Mário faz à obra, expressa em carta a Manuel Bandeira, no dia 27 de abril de 1924, dá conta de que
760
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

ele está escrevendo uma série de poemas, sobre os quais pede opinião. Informa que estes poemas
brasileiros (grifos do próprio Mário) serão reunidos num livro ao qual pretende dar o nome de As
três raças, embora confesse não gostar do título e ele próprio sugerir, então, Clã do Jabuti.

Na carta-resposta, Bandeira afirma que ficou tão contente com a segunda sugestão e com
alguns poemas que farão parte da obra, que se confessa num estado de indescritível agitação.
Textualmente, ele diz:

Mas Mário, não é um título: É UM POEMA! Que multidão formidável de coisas nessas três
palavras voluptuosíssimas! Clã e jabuti são dois vocábulos que sempre me surpreendem. De
eterna frescura para mim. Mas eu nunca tinha aproximado esse Sílvio e essa Sílvia. Que
felicidade a sua! Não falemos nas Três raças. Título explicativo como Paulicéia
desvairada. Detesto-o. Não que ache graça nos títulos que nada tem a ver com o texto.
Entendo, porém, que o título deve conter a substância do texto (grifo nosso) como uma
interjeição encerra todos os sentimentos e ideias daquele que a profere.

Clã do Jabuti sugere livros. Estou certo que ele só lhe dará ainda inspiração para muita
coisa nacional. Tão brasileiro! Sertãozinho em Recife... As festas... Tachas de
munguzá...Banhos no rio... os peraus...

Isso tudo é para lhe dar ideia de como eu fui profundamente revolvido pela sua assombrosa
associação (Apud Moraes, 2001, p. 121).

Sem perder de vista os brasileirismos, em carta a Manuel Bandeira no dia 29 de setembro de


1924, Mário justifica sua tentativa de nacionalizar a língua explicando que por isso Clã será escrito
com eme (M): Clam. Comenta também a respeito da pontuação, explicando que na obra usou o
mínimo de vírgulas possível porque estas, na maioria das vezes, são preconceitos gramaticais e só
são necessárias quando o discurso não está claro.

No dia 10 de outubro de 1924, Bandeira responde e explica a Mário que Clan deve ser com
ene (N) e não com eme (M), porque essa segunda opção (Clam) é que fica estrangeirada. Aliás, ele
o aconselha a escrever Clan ou Clã porque, já nessa época, o A nasal no fim das palavras
representava-se por AN ou Ã, diferente do português antigo que era com M ou N, conforme a
etimologia da palavra. Outra recomendação de Bandeira é com relação a um conjunto de poemas
intitulado Suíte Polifônica, que ele sugere não deva ser incluído em Clã do Jabuti, a não ser o
poema Maxixe, que ele considera pertencer inegavelmente à obra, já que todo o clã é reunião de
parentes bem chegados. Sobre Suíte Polifônica, Moraes afirma que

enquanto bloco temático de poemas inspirados em contraposições coreográfico-musicais, a


Suíte Polifônica foi sacrificada em Clã di jabuti. Os ritmos importados da moda
(ŖFoxtrotŗ, ŖOne stepŗ, ŖTangoŗ) , cederiam lugar à ŖModaŗ , ao ŖCocoŗ, à ŖToadaŗ , que
passariam a nomear poemas desse livro impregnado de sugestões musicais. A menos que
tenha recebido outro título, Maxixe também foi preterido na versão definitiva do livroŗ
(negrito do autor, 2001, p. 131).

761
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A explicação mais surpreendente para o título da obra é dada pelo próprio Mário, em carta
enviada a Carlos Drummond, no dia 21 de janeiro de 1928. Para deixar claro o tom do nacionalismo
a que se refere, diz que sua intenção em Clã do Jabuti é se pôr contra a ideologia dos grupos que se
pretendiam representativos do Brasil (caso do Anta, do Verde Amarelo, Antropofagia e outros). Ele
explica que a obra não tem a intenção de ser um símbolo, mas que o título é bem significativo, pois
o jabuti é importante e característico no fabulário nacional. Finaliza dizendo que como Clã é
reunião, o livro merece bem por isso um título assim, evocativo dessa besteira de Brasil (Apud
Manfio, 1987, p. 30).

O nacionalismo então, para Mário, é Ŗuma importante dimensão da vida cultural, uma
qualidade a qual vinha aderir a arte, enfim, um conceito estético compreendido em amplo sentido
como capacidade de criação.ŗ (Santos e Madeira, 1929, p. 122).

A respeito do nacionalismo particularizado pelo escritor, Florestan Fernandes, em seu artigo


Mário de Andrade e o folclore brasileiro, diz que em Mário o nacional significa expressividade,
existência de um padrão característico e próprio de uma cultura, o que significa dizer que esse
nacional não tem finalidades chauvinistas. Daí a veemência do escritor em descartar o ufanismo,
que para ele, servia apenas para emoldurar a pátria, reverenciar símbolos, sem levar em conta o
povo, seu legítimo representante. A pátria enquanto lugar da memória social é a grande busca do
escritor, o que justifica seu interesse pela pesquisa etnográfica e pelo contato direto com os
produtores da cultura. Ele estava convencido de que só compreenderia o homem brasileiro e sua
cultura, se compreendesse as especificidades locais, os traços singulares que compõem esse todo.
Daí a cultura ser vista por ele como Ŗentidade autogeradora de seus prñprios horizontes com uma
dinâmica prñpriaŗ (Santos e Madeira, 1999, p. 122), capaz de expressar-se nas mais variadas
manifestações coletivas.

Mário demonstrou estar sempre atento aos sintomas da cultura brasileira, especialmente na
fase que vai de 1927 a 1931, ocasião em que faz suas viagens ao Nordeste e Norte do país
recolhendo dados dos quais resulta O turista aprendiz (1928).

O esforço para mapear tais sintomas faz Telê Porto Ancona Lopez, uma das mais conhecidas
intérpretes de sua obra, afirmar que eles são visíveis na trilogia Clã do jabuti (1927), Amar – verbo
intransitivo (1927) e Macunaíma (1928). Para ela, ŖClã do jabuti valeria como a representação de
elementos populares e do passado, em Amar – verbo intransitivo, o presente urbano e a burguesia, e
em Macunaíma, grupos sociais específicos, totalizando o povo brasileiro, no presente, no passado,
no urbano e no rural, na floresta primitiva e no progresso da grande cidade.ŗ (Apud Santos e
Madeira, 1999, p. 123).

Assim, o nacionalismo como marca em várias obras de Mário, funciona como primeira etapa
de um autodescobrimento: o do cidadão brasileiro, plenamente interessado nas coisas do país.

762
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Por isso, Clã do jabuti proclama o Brasil nos seus variados poemas, caso de O poeta como
amendoim, poema de abertura da obra, que além das inovações modernistas como versos livres,
ausência de pontuação, palavras indígenas (amendoim, curumim) ortografia criada pelo escritor
(geito, dansas), dá a medida do nacionalismo pretendido por Mário. É a melodia do Ŗremeleixo
melado melancñlicoŗ que proclama as palavras de amor do escritor ao Brasil. A identidade do
indivíduo se confunde com a identidade do país, numa manifestação poética de sentimento, de
nacionalidade e não de teorias de cunho patriótico.

Poema como Toada do Pai-do-Mato, Lenda do céu, Coco do Major, Moda da cama de
Gonçalo Pires, seguem pontuando sobre Ŗcoisas do Brasilŗ . Daí o transplante de narrativas
indígenas ou outros motivos nacionais como a mandioca, o açaí, a cana, o mate, o arroz, o feijão, o
café, o milho, etc., ou mesmo o título que é uma alusão aos gêneros musicais da época, o Coco, a
Moda.

Se o nacionalismo se fez representar tão pontualmente em Clã do jabuti tanto no aspecto


estético quanto ideológico, tom mais nobre alcançam os versos de Descobrimento, um dos últimos
poemas da obra, que junto com Acalanto do seringueiro, compõe o que Mário denominou de Dois
poemas acreanos.

O poema aqui transcrito para melhor compreensão de sua mensagem já anuncia desde o
título em que medida vai operar o discurso do sujeito lírico.

Descobrimento

Abancado à escrivaninha em São Paulo


Na minha casa da rua Lopes Chaves
De sopetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando para mim.

Não vê que me lembrei, lá no norte, meu Deus! muito longe de mim


Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido, magro, de cabelos escorrendo nos olhos
Depois de fazer uma pele com borracha do dia
Faz pouco se deitou, está dormindo
Esse homem é brasileiro que nem eu...
(1993, p. 203)

O Descobrimento, que aqui se traduz como um também desvelamento, parece recolher da


memória afetiva do eu lírico a imagem do Outro, e colocá-lo sob a égide da alteridade, num
processo simultaneamente empático e simpático.

O poema inicia com instante de aguda percepção, no qual o eu lírico instaura a figura do
Outro; o ŖHomem lá do norte, magro, pálido, de cabelos escorrendo nos olhosŗ que comparece no

763
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

poema é o motivo de suas inquietações. É o Outro, que, em sua vulnerabilidade, o deixa igualmente
vulnerável, enternecendo-lhe a alma, razão pela qual se confessa Ŗtrêmulo e muito comovidoŗ.

O olhar do eu lírico surpreende a si mesmo, num estado de pura contemplação que transita
entre duas realidades socialmente distintas: a do vanguardista metropolitano Ŗabancado à sua
escrivaninha em São Pauloŗ e a de um seringueiro que Ŗdepois de fazer uma pele com a borracha do
dia, dorme, abrigado na escuridão ativa da noite que caiuŗ . A expressão Ŗlá no norte, meu Deus!ŗ dá
conta do quanto estão geograficamente distantes o Eu e o Outro do poema.

Algumas questões, imbricadas no texto devem ser consideradas: a alteridade, visível no tom
afetuoso com que o eu lírico proclama o Outro como fulcro de suas preocupações ontológicas; os
modos de produção de trabalho e a identidade nacional, tema central da obra Clã do jabuti, de onde
o poema foi extraído.

No que concerne à alteridade é visível a preocupação com o Outro. O eu lírico parece se dar
conta de uma realidade opressiva: Ŗo homem do Norteŗ é o Ŗretratoŗ de um estado de abandono de
uma existência parca e rala, Ŗcujo rosto aparece como epifania da realidade existencial e social que
o envolveŗ (Silva, 1995, p. 62). Sua condição traz à lembrança outros brasileiros, caso dos muitos
ŖSeverinosŗ , cantados nos versos simétricos de João Cabral de Melo Neto, no seu Morte e Vida
Severina, da obra Auto de Natal Pernambucano.

Sem se furtar a percepção, o sujeito lírico se identifica com o Outro, divergindo, pois, do
Ŗpensamento ocidental que, sob a égide da totalidade, cuja marca é o fratricídio, o estado perene de
guerra, a luta de todos contra todos, vislumbrada por Hobbes, se define pela impossibilidade da
alteridadeŗ (Oliveira e Scoralick, 2005, p. 31).

E é a alteridade, uma das marcas do poema, que convoca o Outro, deixando claro que o Eu
não se basta a si mesmo. Por isso, o Eu invoca o Outro e faz dele o fundamento de toda moral e de
toda subjetividade, para, a partir de então, entrar em cena a humanidade e a responsabilidade,
sentimentos estes dos quais o Eu não pode se esquivar.

Assim, por meio de sua sensibilidade, o eu lírico aconchega o Outro no íntimo de suas
emoções. Coloca-se no seu lugar. Sente a si mesmo e ao Outro. Vai ao seu encontro num
surpreendente exercício de alteridade. É o Descobrimento de Mário como cidadão brasileiro,
irmanado com outro brasileiro, um amazônida, distante dos grandes centros, mas também brasileiro,
irmão seu, conforme ele mesmo diz: Ŗ...Não vê que me lembrei, lá no norte, meu Deus, muito longe
de mim... Esse homem é brasileiro que nem euŗ .

Descobrimento, portanto, retoma à questão da identidade nacional, num tom agora mais
filosófico, reflexivo que quase iguala o Outro ao Eu mesmo. É nesse instante que o Outro se
constitui como evento para o eu lírico. O termo evento, segundo Alfredo Bosi, é pois Ŗtodo
acontecer vivido na existênciaŗ (Bosi, 2003, p. 463). Em outras palavras, diz o filñsofo italiano que

764
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗevento é, portanto, não tudo aquilo que acontece, mas aquilo que acontece para alguémŗ . Assim, a
imagem do Ŗhomem lá do Norteŗ é um acontecimento que Ŗenvolve e habita o eu lírico, visto que
ele o situa no seu aqui e o temporaliza no seu agora, concebendo-o sob um certo ponto de vista e o
acolhendo dentro de uma certa tonalidade afetiva.ŗ (Bosi, 2003, p. 463, 464).

O poema exibe ainda dois modos distintos de produção de trabalho: de um lado, o


intelectual, que reflete sobre a dura rotina de trabalho de um homem, dele separado por milhares de
quilômetros. De outro, o seringueiro, acostumado à sua realidade, sem imaginar que seu cotidiano é
tematizado nos versos de um poeta. ŖO homem pálido e magroŗ , exibe por sua prñpria aparência, a
condição subumana em que vive. Como se tal adversidade não bastasse, sua casa é também o
prolongamento de seu desconforto; sem luz elétrica, esse brasileiro, que Ŗhá pouco se deitou,
dorme, na escuridão ativa da noite que caiu.ŗ

Descobrimento, portanto, revela uma tendência que será marcante no escritor: a capacidade
de fundir num movimento único, a pesquisa de seu país e de si mesmo, como se ambos fossem as
duas faces de uma mesma experiência. O poema mostra o esforço de Mário em travar um diálogo
com o Ŗhomem do Norteŗ , a fim de proclamar seus afetos e inquietações a Ŗesse brasileiro que nem
eleŗ .

A dedicação incansável ao povo brasileiro fez de Mário de Andrade não só o expoente


singular do Movimento Modernista, mas acima de tudo, um humanista, cuja magnitude Florestan
Fernandes em seu artigo já citado proclama:

Os antagonismos e as limitações provocaram nele uma reação que é um grito épico de


revolta, o espetáculo mais emocionante aos meus olhos na literatura brasileira como
exigência afetiva e como inquietação Ŕ agitada pela falta de sincronização humana de
milhares de brasileiros que se ignoram recíproca e simplesmenteŗ. (Apud Santos e Madeira,
1999, p. 111).

Consideração final

Clã do Jabuti é uma obra que mostra a preocupação de Mário em compreender o homem
brasileiro de todas as regiões. Seus temas estão relacionados a nossa cultura: a vida cotidiana
urbana; a paisagem diversificada dos lugares do Brasil por onde Mário passa, que desfilam no texto
numa bem elaborada superposição de imagens que encanta o leitor; as praças; as atitudes do homem
urbano; os ritmos musicais; as narrativas da tradição oral; as festas populares, religiosas e profanas,
tudo isso nesse livro de poemas, com o intuito de o poeta refletir sobre nossa formação identitária
complexa e plural.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo
Horizonte: Villa Rica, 1993.

765
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

BOSI, Alfredo. Céu, inferno – ensaios de crítica literária e ideológica. 2 ed. São Paulo: Duas
Cidades; Editora 34, 2003. (Coleção Espírito Crítico).

CANDIDO, Antônio, CASTELO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira –


Modernismo e Antologia. 14 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

MANFIO, Zanotto. Introdução a ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Edição crítica de Diléa
Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Villa Rica, 1993.

MORAES, Marcos Antônio de (org.) Correspondência de Mário de Andrade e Manoel


Bandeira. 2 ed. São Paulo: Edusp; IEB, 2001. (Coleção Correspondência de Mário de Andrade; 1).

OLIVEIRA, Ednilson Turozi de; SCORALICK, Klinger. Emmanuel Lévinas: ética e alteridade.
Discutindo Filosofia. Ano 1, n. 4, 2005.

SANTOS, Mariza Veloso Motta; MADEIRA, Maria Angélica. Literaturas brasileiras: itinerários
no pensamento social e na literatura. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

SILVA, Márcio Bolda da. Rosto e alteridade: pressupostos da ética comunitária. São Paulo:
Paulus, 1995. (Nova Coleção Ética).

766
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

SEMEANDO A LEITURA COM ARTE E CRIATIVIDADE

Suely Barros Bernardino da Silva (UEA)

Introdução

A leitura é o principal meio de conhecimento e integração com outros povos e realidades


distintas, por meio da qual o leitor torna-se cúmplice ou crítico das ideias do autor, valendo-se da
língua para revelar dimensões culturais de uma natureza ou realidade, independente de onde estejam
localizados geograficamente.
A diversidade de gêneros textuais possibilita aos indivíduos o desenvolvimento em
habilidades em leitura, além de ampliar o seu conhecimento de mundo através da informação e
desenvolvimento de competências a partir, também, da interação nas vivências artísticas.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacional (1997), após muitos debates e manifestações


de educadores, a atual legislação educacional brasileira reconhece a importância da arte, na
formação e desenvolvimento de crianças e jovens, incluindo-a como um componente obrigatório da
educação básica. No ensino fundamental a Arte passa a vigorar como ares de conhecimento e
trabalho com as várias linguagens e visa à formação artística e estética dos alunos.

Portanto, acredita-se que através dos diversos gêneros textuais, como poesia, teatro, entre
outros, seja possível desenvolver um trabalho de conscientização do professor sobre a importância
da prática de leitura, por parte dos alunos do Ensino Fundamental, da Escola Estadual Roxana
Pereira Bonessi. Acredita-se que a utilização dos gêneros textuais, em especial o gênero literário
poético e teatral, contribuirão para Ŗaumentar o conhecimento e a vivência do mundo [...]ŗ
(PAIXÃO, 1988, p.32).

A literatura é um elo de comunicação rico em palavras e expressões que encanta o leitor,


qualquer que seja a sua faixa etária. Lucas Macedo (In: TEXEIRA, 2009, p.174) corrobora com
essa afirmação quando escreve que Ŗ[...] por apresentar um mundo esquemático e pouco objetivo, a
obra acaba por fornecer um universo [...] de informaçõesŗ , forçando o leitor a refletir sobre a
temática abordada sem tornar-se cansativa. E que com isso o leitor se significa na obra e a obra,
neste caso a poesia, adquire significados individuais por meio desta interação.

Assim, realizou-se um projeto onde se procurou dar oportunidade para que os alunos
percebessem a leitura como uma atividade prazerosa, cultural e (in)formativa, bem como
proporcionar a interação da escola com o meio externo, envolvendo os pais e a comunidade de
maneira atrativa.

Gêneros textuais e leitura


767
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Despertar para a leitura é uma revelação. Através do livro empreendemos uma viagem pelo
mundo mágico das palavras. A noção de gênero relaciona-se a uma concepção de língua viva, de
língua como uma atividade social e histórica, de língua como produtora da história dos homens. Tal
concepção privilegia a natureza funcional e interativa, em detrimento de aspectos formais e
estruturais da língua. Segundo essa visão, é impossível comunicar-se verbalmente a não ser por
algum gênero, assim como é impossível comunicar-se verbalmente a não ser por um texto
(Marcuschi, 2002).
Ao contrário dos tipos de texto, os gêneros são inúmeros: carta comercial, carta pessoal,
sermão, lista de compras, e-mail, artigo de opinião, artigo de divulgação científica, notícia de
jornal, horóscopo, receita culinária, outdoor, resenha, charge, cartum, edital de concurso, piada,
conto de fadas, conversação espontânea e assim por diante. É importante ressaltar que, com o
passar dos tempos, novos gêneros vão surgindo. Tomem-se como exemplo disso os gêneros
surgidos com os avanços da informática: bate-papo por computador, e-mail, etc.

A fim de exemplificar um pouco melhor essa distinção, tomem-se como exemplo os gêneros
conto de fadas e narrativa de aventura. Dentro de uma classificação que leva em conta tipos
textuais, seria possível classificá-los como Ŗtextos narrativosŗ, uma vez que, grosso modo,
reconhece-se neles a Ŗsuperestruturaŗ do texto narrativo (situação inicial, complicação, fase de
ações, fase de resolução e situação final). Entretanto, esses gêneros possuem grandes diferenças
entre si. Um conto de fadas, por exemplo, apresenta elementos (bosque, floresta, príncipes,
princesas, etc.) muito diferentes dos de uma narrativa de aventuras (piratas, jovens aventureiros,
embarcações, etc.). Assim, cada gênero apresenta conteúdos específicos de ensino a ele
relacionados. Nesse caso, enquanto a noção tipo de texto permite trabalhar apenas com a narrativa
em geral, a noção gênero de texto permite que se englobem as diferenças específicas desses
gêneros. Além disso, esta noção permite trabalhar com elementos do social e do histórico, com a
situação de produção (quem escreve/fala, para quem, em que situação, em que veículo, com que
finalidade), com o conteúdo temático (o que pode ser dizível no gênero), com a construção
composicional (sua forma de dizer, sua organização em geral) e com seu estilo verbal (seleção de
recursos disponibilizados na língua).

Os PCNs sugerem, como referência básica no trabalho com a língua, e sobretudo com o
texto, unidade básica de ensino, segundo o documento, alguns gêneros, cuja seleção faz-se
necessária devido à grande diversidade existente. No entanto, percebe-se que, na prática, confunde-
se gênero textual com tipologia textual. Até mesmo em alguns manuais didáticos isso se evidencia.
Talvez isso se justifique pelo seu dinamismo, plasticidade e difícil definição formal, segundo
Marcuschi (2002). Partindo da idéia de que a comunicação verbal só é possível por algum gênero
textual, busca-se manifestar, nesta visão, a perspectiva de língua como atividade social, histórica e
cognitiva. Também Maingueneau (2002) vê os gêneros do discurso atrelados a condições
específicas e finalidades de cada uma das esferas da atividade humana. Desse modo, não é o aspecto
formal e estrutural da língua que vão determinar o gênero, mas a sua natureza funcional e interativa.
768
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Os tipos textuais são, segundo Marcuschi (op. cit.), definidos pela sua natureza lingüística,
pelo predomínio de uma determinada seqüência de base. Para ele, os gêneros são Ŗuma espécie de
armadura comunicativa geral, preenchida por seqüências tipolñgicas de baseŗ , as quais, segundo
ele, podem ser bastante heterogêneas, mas relacionadas entre si.

Dominar os gêneros do discurso facilita ao locutor a troca verbal e assegura a comunicação.


Entretanto, eles não podem ser vistos como formas prontas a serem preenchidas pelo locutor, já que,
sendo atividades sociais, devem submeter-se a certos critérios, tais como a natureza da informação,
o nível de linguagem, o tipo de situação, a relação entre os participantes do ato verbal e a natureza
dos objetivos a que se propõe. Daí porque dominar esses modelos comunicativos é de vital
importância para o aluno, tanto na produção, como na recepção de textos.

A prática letiva centrada na compreensão do texto, mais comum entre nós, poderia designar-
se por análise e interpretação. Esta prática assenta primeiramente numa leitura do texto, seguida da
colocação de questões pelo professor para avaliar a compreensão obtida. Contudo, quase nada se faz
para explicitamente ensinar o aluno a atingir essa compreensão. Isto é, o professor sanciona a
correção ou incorreção das respostas dadas, mas, diretamente, pouco ou nada ensina sobre o modo
de chegar às respostas certas.

Assim, a aquisição de todo um conjunto de atitudes e procedimentos de que os bons leitores


tiram partido para a construção do sentido do texto, continua a estar dependente de um percurso
moroso de descoberta Ŕ a que nem todos naturalmente chegarão Ŕ do contacto ocasional com essas
formas de atuação, ou da sorte de beneficiarem de circunstâncias privilegiadas, mas raras, de ensino
intencional.

Como proceder então para ensinar a compreensão da leitura? Uma das principais conclusões
que ressalta da imensa investigação realizada sobre a leitura é a de que as crianças pequenas e os
maus leitores não utilizam estratégias de leitura nem com frequência nem com eficácia se não
tiverem ajuda. Leitura é cognição, devidamente coadjuvada de metacognição. Enquanto a cognição
se refere aos processos mentais envolvidos na atividade intelectual, a metacognição refere-se à
tomada de consciência

dos próprios processos cognitivos bem como à capacidade de os regular de forma consciente e
voluntária.

Arte e leitura

O mundo atual é caracterizado por aspectos e contatos com imagens, cores e luzes em
grande quantidade. A arte desempenha um papel potencialmente essencial na educação dos alunos.
As aulas de arte têm como objetivo despertar a compreensão das coisas através dos sentidos e
mostrar como foi retratado o mundo através dos tempos sem a utilização de palavras.

769
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A capacidade do ser humano para entender o mundo através do olhar está adormecida e
deve ser despertada na utilização dos pincéis, do corpo, da voz e de outros materiais e elementos
que estiverem disponíveis no momento de criação.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacional (1997), após muitos debates e


manifestações de educadores, a atual legislação educacional brasileira reconhece a importância da
arte, na formação e desenvolvimento de crianças e jovens, incluindo-a como um componente
obrigatório da educação básica. No ensino fundamental a Arte passa a vigorar como ares de
conhecimento e trabalho com as várias linguagens e visa á formação artística e estética dos alunos.
A área de arte, assim constituída, refere-se às linguagens artísticas como Artes visuais, Música,
Teatro e Dança.

ŖA aceitação da arte como forma de conhecimento humano a ser produzido, apreciado,


contextualizado e veiculado através da educação escolar, atende à necessidade de
enfrentamento dos desafios decorrente das transformações velozes do mundo
contemporâneo [...]. [...] A principal característica da atual legislação é ter desviado o foco
dos conteúdos curriculares em favor do aluno. Ao invés de valorizar os conteúdos como
coisas válidas em si mesmas, foram enfatizadas as competências e habilidades a serem
desenvolvidas na perspectiva do aluno. Tal mudança de ênfase exige correlatas mudanças
metodológicas para o ensino, propondo-se a ênfase na interdisciplinaridade e na
contextualização.ŗ (PCN Ŕ E. M, 1997, p. 01, p. 89)

A criação e a exposição às múltiplas manifestações visuais geram a necessidade de uma


educação para saber ver e perceber, distinguindo-se sentimentos, sensações, idéias, e qualidades
contidas nas formas e nos ambientes.

Nesse sentido, Pillar diz que o olhar de cada um está impregnado com experiências
anteriores, associações, lembranças, fantasias, interpretações etc. O que se vê não é o dado real, mas
aquilo que se consegue captar e interpretar acerca do visto, o que nos é significativo. Desse modo,
podemos lançar diferentes olhares e fazer pluralidade de leitura do mundo.

Ela continua dizendo que, segundo Paulo Freire, aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se, é,
antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender seu contexto, não numa manipulação
mecânica de palavras mas, numa relação dinâmica que vincula Linguagem e realidade. E citando
outro autor, Luis Camargo, ela fala que ele parafraseou Paulo Freire, quando diz que a leitura da
imagem precede a leitura da palavra. Nesse sentido, o primeiro mundo que buscamos compreender
é o da família, a casa onde vivemos, a cidade, o estado, o país. Tudo isso marcado fortemente por
nosso lugar social, nossa origem social. E, ao buscar compreender, estamos fazendo leituras desse
mundo. Leitura crítica, prazerosa, envolvente, significativa, desafiadora. Leitura que, inserida num
contexto social e econômico, é de natureza educativa e política, pois nossa maneira de ver o mundo
é modelada por questões de poder, por questões ideológicas.

770
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Numa perspectiva sociocultural, o corpo expressa a relação do indivíduo com o seu meio. É
ele veículo e conteúdo do indivíduo nas relações que estabelece. Seja no trabalho, no lazer, na
leitura na intimidade das ações orgânicas básicas da sobrevivência, o ser humano tem para si
repertório gestual que significa o seu elo social.

No processo de desenvolvimento, a criança começa usando as mesmas formas de


comportamento que outras pessoas inicialmente usaram em relação a ela. Isto ocorre porque, desde
os primeiros dias de vida, as atividades da criança adquirem um significado próprio num sistema de
comportamento social, refratadas através de seu ambiente humano, que a auxilia a tender seus
objetivos. Isto vai envolver comunicação, ou seja, fala, escrita, expressão...

Nesse paradigma da totalidade, FREIRE(1997, p. 13) alicerça dizendo: ŖCorpo e mente


devem ser entendidos como componentes que integram um único organismo. Ambos devem ter
assento na escola, não um (a mente) para aprender e outro (o corpo) para transportar, mas ambos
para se emanciparŗ

A produção epistemológica sobre corporeidade defende a existência de uma nova ciência do


ser humano autônomo, significando que nela a investigação passará a ser intencional,
simultaneamente física, biológica e antropossociológica. Abandonando rigorosamente o modelo
clássico de racionalidade com a superação de uma aprendizagem dogmática e mecânica para
promover a necessária busca de alternativas e propiciar o avanço do conhecimento.

Para MORIN (2000, p.30), ŖHoje, há que insistir fortemente na utilidade de um


conhecimento que possa servir à reflexão, meditação, discussão, incorporação por todos, cada um
no seu saber, na sua experiência, na sua vida...ŗ

Cabe ao professor construir um ambiente propício para este aprendizado e direcionar o


olhar de seus alunos para essa nova descoberta, utilizando recursos diversos em sala de aula .

É através da observação e da atenção que os alunos terão contato com esse universo
despertado pela educação do olhar.

O desafio é formar novos leitores, despertar essa paixão nos jovens para que possamos ter,
no futuro, cidadãos esclarecidos e conscientes de seu papel na sociedade e no mundo. La Taille
(1992), em discussões psicogenéticas, diz ŖVigotsky define cultura como uma espécie de palco a
negociações. Seus membros estão num constante movimento de recriação e reinterpretação de
informações, conceitos e significados. Considera, assim, a vida social como um processo dinâmico,
onde cada sujeito é ativo e onde acontece a interação entre o mundo cultural e o mundo subjetivo de
cada umŗ.

A Utilização das linguagens artísticas é indispensável para o desenvolvimento da expressão


pessoal social e cultural do ser humano. É uma forma de saber que articula razão e emoção. A

771
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

vivência artística influencia o modo como se aprende, comunica e como se interpretam os


significados da vida. Assim, contribui para o desenvolvimento de diferentes competências e reflete-
se no modo de pensar. Nessa perspectiva, a área de Arte tem uma função importante a cumprir. Ela
situa o fazer artístico como fato e necessidade de humanizar o homem histórico que conhece suas
características tanto particulares quanto universais, tal como se revelam no ponto de encontro entre
o fazer artístico dos alunos e o fazer dos artistas de todos os tempos, que sempre inauguram formas
de tornar presente o inexplicável.

Silva (1996), nos diz que a leitura é um processo de criação e descoberta, dirigido ou guiado
pelos olhos perspicazes do escritor e que a boa leitura é aquela que depois de terminada gera
conhecimentos, propõe atividades e analisa valores, aguçando, adensando, refinando os modos de
perceber e sentir a vida por parte do leitor.

Freitas (1996) afirma que o diálogo permeia tudo. Está na base de todas as relações
humanas. Não é possível construir conhecimento sem ter como referencial o outro.

Nesse sentido, há muito em comum entre Bakhtin e Paulo Freire. Este, via relação
pedagógica como um diálogo no qual educador e educação se tornam sujeitos interativos
mediatizados pelo mundo, considerava a dimensão interlocutiva como princípio básico do processo
de ensino-aprendizagem, em que professor e aluno dialogam como locutor e interlocutor,
praticando, assim, o exercício da democracia.

Com base nos pensamentos dos autores citados, reforça-se a hipótese de que somos capazes
de transformar e construir futuros leitores e cidadãos.

Sendo assim, privilegiar-se-á uma atitude positiva, construtiva, criativa e crítica, junto aos
alunos.

Leitura com inspiração na arte

Foi realizada uma atividade de Leitura, a qual se consistiu em desenvolver um trabalho


sobre a importância do incentivo à leitura, por parte dos alunos do Ensino Fundamental da E.E.
Roxana Pereira Bonessi, situada no bairro Colônia Oliveira Machado, na cidade de Manaus, estado
do Amazonas, utilizando o pequeno acervo da biblioteca dessa escola, além de visita a outras
bibliotecas e livrarias.

O principal objetivo do projeto é oportunizar ao aluno meios que permitam ao mesmo


desenvolver o conhecimento a partir do prazer pela leitura, adotando estratégias de aprendizagem
com a utilização das linguagens artísticas e gêneros textuais, numa proposta interdisciplinar,
contextualizada e transversal, contribuindo para a melhoria qualitativa de um cidadão crítico
transformador, levando o hábito de ler a ser uma ação permanente na escola e em sua vida.

772
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Inicialmente, foi disponibilizado para os alunos o pequeno acervo da biblioteca da E.E.


Roxana Pereira Bonessi. Durante a implementação do projeto, foram desenvolvidas atividades nas
habilidades artísticas: expressão corporal, música, teatro, poesia, história em quadrinhos, artes
visuais e folclore. O trabalho foi realizado na perspectiva da corporeidade, onde se pretende
mostrar a presença do movimento na construção e formação do indivíduo, a partir dos ritmos
amazônicos inseridos na escola, com foco na literatura regional.

Buscou-se uma forma de proporcionar a interação da escola com o meio externo e uso da
biblioteca de forma criativa, objetivando o estímulo à leitura através dos diversos gêneros textuais.
A biblioteca tem por finalidade proporcionar o acesso da população em geral à diversidade de
textos, possibilitando aos indivíduos o desenvolvimento de habilidades em leitura, além de ampliar
o seu conhecimento de mundo através da informação e desenvolvimento de competências a partir
também da interação nas vivências artísticas. Neste contexto, a leitura torna-se um elemento
indispensável para a formação de cidadãos críticos e autônomos, contribuindo para a sua melhoria
qualitativa, consequentemente, da sociedade. Além disso, existe a questão de que aprender a ler
com prazer é aprender a olhar seu saber, sua experiência, sua vida.

Para o estudante, a leitura desempenha um papel fundamental, não só na aprendizagem da


língua portuguesa, mas também de outras disciplinas, como história, geografia, ciências, artes, etc.
E essa necessidade não se restringe à sua vida escolar, prossegue em sua vida profissional uma vez
que as empresas, cada vez mais, privilegiam profissionais com maior habilidade em leitura.

A leitura pode ser vista como uma atividade que transcende a função da escola, portanto, um
instrumento imprescindível para a compreensão do mundo.

Quando da execução de um projeto precursor deste, em outra escola, foi visível o resultado
satisfatório, pois os alunos mostraram-se motivados para a leitura e escrita, além do envolvimento
de pais e professores, funcionários da escola e a comunidade.

O projeto foi realizado com quatro turmas do 5º ano do Ensino Fundamental, devido à
necessidade de um maior repertório de leitura, compreensão e produção textual requeridos a partir
do 6º ano.

Foram aplicadas estratégias no sentido de sensibilizar o(a) professor(a) a desenvolver um


trabalho de leitura com seus alunos através dos seguintes passos:

 Levar os alunos à biblioteca da escola, Biblioteca Infantil Emílio Vaz e Livraria Valer;
 Mostrar os diversos gêneros constantes do acervo (poesia, prosa, lendas, fábula e outros);
 Orientar os alunos sobre como proceder no manuseio das obras e como identificar as que
possam ser de seu interesse;
 Incentivar o aluno a valorizar obras de autores locais e que retratem o meio ambiente, além
de obras e autores em geral;

773
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

 Facultar ao aluno escolher a obra que mais lhe despertou o interesse, fazendo-o registrar
essa escolha;
 Disponibilizar as obras escolhidas pelos alunos para leitura em sala de aula, detalhando as
atividades.
Após a leitura das obras, dividir os alunos em grupos para que cada um conte para os demais
a obras lidas.

No momento seguinte, foi solicitado ao aluno que expressasse a compreensão do livro lido
por meio de desenho, pintura, teatro, poesia, conto, dança, música e história em quadrinhos.

Após essa atividade foram organizadas visitas a uma biblioteca pública e a uma livraria de
Manaus, onde os alunos observaram com interesse todo o ambiente. No retorno à escola foi
elaborado um relatório sobre as visitas, oportunidade em que os mesmos incluíram fotos, pinturas,
desenhos, entre outros, de acordo com as suas habilidades. Essas produções foram expostas na
biblioteca, e em outro espaço reservado na escola.

Considerações finais

A comunicação humana é permeada pela linguagem, seja ela verbal ou não verbal. A partir
dela são recriadas práticas e intenções de óticas do mundo e da sua realidade. Em outras palavras,
trata-se de um fenômeno social que representa uma das formas mais representativas da interação
entre os povos.

Foi observado que houve uma motivação dos alunos para a leitura, pois os mesmos
passaram a procurar livros com mais frequência.

Também foi visto que os pais passaram a ter um maior envolvimento nas atividades
propostas pela escola, inclusive participando das oficinas do projeto.

As visitas aos espaços culturais da cidade, foram, para boa parte dos alunos, o primeiro
contato deles com esses ambientes, nos quais ficaram encantados, e sentiram-se Ŗviajando em um
mundo de magia e sonhosŗ , no dizer de alguns. Outra manifestação que marcou os resultados, foi a
de um aluno que declarou que Ŗa maior arma do mundo é a leituraŗ .

Referências bibliográficas

ANDERSON. Alguns contos e fábulas. São Paulo: Paulus, 1996.

ARAÚJO, Antoracy, Lendas indígenas. São Paulo: Editora do Brasil, 1999.

BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais. 1997.

FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Vigostky & Bahktin. São Paulo: Ática, 1996.

774
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

LA TAILLE, Yves de, et al. Piaghet, Vygiotsky e Wallon: Teorias psicogenéticas em discussão.
São Paulo: Summus, 1992.

MACEDO, Lucas Santos. ŖHistñria e Implicações da literatura na escola: uma introdução ( in:
TEXEIRA, Nincia Célia R. Borges (org). Língua, literatura e ensino: convergências e
aproximações. Guarapuava: Unicentro,2009)

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO,


Ângela Paiva, 2002.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2002.

PAIXÃO, Fernando. O que é poesia. 5 ed. São Paulo: Editora Brasiliense,1988 (Coleção Primeiros
Passos 63)

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Ato de ler. São Paulo: Cortez, 1996.

SIQUEIRA E SILVA, António, et, all. Coleção linguagem e vivência. São Paulo: IBEP, 2001.

775
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A LITERATURA NA SALA DE AULA: SEU CARÁTER ARTÍSTICO, SOCIOLINGUÍSTICO E


CULTURAL
Suênia Kdidija Araújo Feitosa (PIBID/UFRR)

No ano de 2010, na disciplina de Prática de Ensino em Literatura, do curso de Letras da


Universidade Federal de Roraima, observei aulas de literatura lecionadas no ensino médio, na
Escola Estadual Ana Libória, e isto me proporcionou algum conhecimento sobre uma parcela da
realidade do ensino de literatura do nosso Estado.

Com o embasamento adquirido durante o curso e as observações, elaborei um projeto de


ensino-aprendizagem, apresentando uma pesquisa de novos métodos de ensino literário a fim de
torná-lo prazeroso e motivador.

Observei duas turmas de 3° ano do ensino médio. Porém, antes mesmo de efetuar essas
observações, eu já tinha algum conhecimento em relação à forma como a literatura é trabalhada nas
escolas. Com base na minha própria experiência enquanto aluna de ensino médio e através de
depoimentos de alunos e de professores, é possível afirmar que, durante todo o ensino médio o
aluno se vê diante de aulas de literatura que se repetem, seguindo sempre o mesmo roteiro:
conhecer os contextos históricos das obras, identificar seus estilos e gêneros e memorizar suas
características. Esse sistema de ensino literário não é apenas praticado por professores já atuantes na
sala de aula, pois, alguns de meus colegas da Disciplina de Prática de Ensino em Literatura,
elaboraram seus projetos de aula de forma a continuar com esse sistema usual do ensino literário.
Não quero dizer que estão errados, apenas estão envolvidos numa prática corrente, que tem como
vício a fragmentação do ensino literário.

Esta fragmentação no ensino literário, que propõe leituras condensadas, Ŗajudaŗ os alunos do
ensino médio na preparação para o vestibular. Entretanto, o caráter interdisciplinar da literatura é
menosprezado. Neste sentido, o aspecto sociolinguístico e cultural da literatura são reduzidos à
coleta de informações sumárias.

O uso fragmentado das obras literárias por parte dos professores causa nos alunos o
desestímulo e a falta de interesse na leitura. Desta forma, a literatura na sala de aula tem se tornado,
cada vez mais, uma prática maçante para os discentes e até para os docentes.

De acordo com Leahy-Dios (2000, p. 16) a literatura é sustentada por um triângulo


interdisciplinar composto por: língua, cultura e sociologia. Assim, a literatura é essencial ao
processo de educar sujeitos sociais, pois ajuda a formar opiniões críticas na medida em que retrata a
realidade ou uma possibilidade do real, além de dar acesso a bens culturais e promover o
conhecimento profundo da língua.

776
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

É necessário aproveitar a interdisciplinaridade da literatura para contextualizar o seu ensino.


Segundo Mibielli (2009,p.136) Ŗtalvez não seja o conteúdo (histñrico) que importa, mas sua relação
com a vida do alunoŗ. Mas, infelizmente, o que ocorre no ensino de literatura é a descaracterização
do valor social da disciplina. Textos literários são utilizados para fins gramaticais, históricos e
outros que fogem ao que entendo ser o verdadeiro papel da educação literária.

A forma de trabalhar literatura da professora, das duas turmas observadas, apresenta


algumas características que fogem, felizmente, ao quadro geral citado anteriormente. A professora
faz uso frequentemente da dramatização na sala de aula. Podemos considerar esse método como
uma forma de incentivo à leitura. Mas, infelizmente, a maioria dos alunos, acostumados com a
fragmentação do ensino literário, não participa de forma produtiva da atividade, lendo apenas os
trechos dos romances que lhes cabe representar. Não seria necessário apresentar-lhes a importância
e a funcionalidade de tais leituras na íntegra?

Diante de toda essa problemática encontrada no ensino de literatura, considero importante


trabalhar a teoria literária na sala de aula, para que os alunos saibam qual é a função da literatura na
educação, e desse modo poderem compreender os vários aspectos presentes nesta disciplina. Mas,
antes de trabalhar a funcionalidade da literatura na sala de aula, é indispensável encontrar métodos
que estimulem os adolescentes a buscar leituras literárias, e que façam isto por prazer, e não por
obrigação. E, que deste modo, possam encontrar as suas próprias respostas para tal funcionalidade.

Podemos afirmar que este trabalho não é muito fácil, visto que a leitura, tal como tem sido
proposta no ensino médio, não é uma atividade considerada atrativa pelos jovens. Neste sentido,
seria necessário utilizar a teoria literária para despertar no aluno o gosto pela leitura, e não utilizar
essa teoria para propor estudos maçantes de análise literária, que propõe um estudo esmiuçado de
romances. Pois, a intenção de se trabalhar a literatura na sala de aula não deve ser a de formar
teóricos e nem críticos literários, mas mostrar a contribuição da disciplina para a formação do
aluno.

De acordo com Bamberger (2008, p.31) o que leva o jovem a ler não é o reconhecimento da
importância da leitura, e sim várias motivações e interesses que correspondem à sua personalidade e
ao seu desenvolvimento intelectual. Neste sentido, é necessário fugir do uso da teoria literária
como instrumentalização para análise dos textos, e focar primeiro no prazer pela leitura. Deste
modo, utilizar a teoria literária para mostrar a interdisciplinaridade, focando nos aspectos positivos
de algumas leituras, mostrando para o aluno a relação do texto com sua própria experiência de vida.

Talvez, as leituras proposta no ensino médio não sejam as que atendem aos focos de
interesse do aluno. Deste modo, pode-se afirmar que há uma inversão na pirâmide de leituras
indicadas para o ensino fundamental e para o ensino médio. Pois, enquanto alunos com pouca
experiência no o ato de ler estudam a literatura universal na sala de aula, os alunos do ensino médio
têm por obrigação a leitura de obras nacionais.

777
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Não quero dizer que estudar literatura brasileira no ensino médio não seja importante, mas,
ao longo da discussão proposta neste estudo, é viável afirmar que os interesses do aluno devem ser
considerados como elemento fundamental e por esta razão a atração dos alunos pelas leituras deve
ser a preocupação inicial no processo de formar verdadeiros leitores. Neste sentido, a literatura
universal tem uma base mais ampla, e assim tem mais possibilidades de atender aos requisitos
existentes na formação dos interesses e da personalidade dos alunos.

Seria necessário aproveitar o fato de que a literatura no ensino médio pode ser menos
positivista, por não precisar estar ligada a uma rigidez acadêmica, e neste sentido pode ser mais
universalista.

Na pesquisa por metodologias de ensino-aprendizagem me deparei com dois tipos de


educação apresentados por Bordenave (2008, p.10): a educação bancária, e a educação
problematizadora. A tabela abaixo exemplifica as suas diferenças:

Educação Baseia-se na transmissão do Atribui uma importância Como conseqüência, o aluno


bancária conhecimento e da suprema ao Ŗconteúdo é passivo, exímio
experiência do professor. da matériaŗ, esperando memorizador, prefere
que os alunos absorvam manejar conceitos abstratos
e reproduzam fielmente a resolver de forma original
nas provas. problemas concretos da
realidade em que vive.

Educação Uma pessoa só conhece bem A solução de problemas A aprendizagem torna-se


problematizadora algo quando o transforma, implica na participação uma pesquisa em que o
transformando-se ela também ativa e no diálogo aluno passa de uma visão
no processo. constante entre alunos e Ŗsincréticaŗ ou global do
professores. problema a uma visão
analítica do mesmo, através
de sua teorização_para
chegar a uma síntese
provisória, que equivale à
compreensão.

Observando a tabela acima, fiquei preocupada com as informações referentes à contribuição


que a educação tradicional dá à aprendizagem do aluno. Segundo Bordenave (2008, p.10), esta
educação não apresenta bons resultados no processo de ensino.

Bordenave afirma que o principal método utilizado na educação bancária é a exposição oral,
porém ele não aponta somente questões negativas deste método, mas afirma que é necessário
aplicar outras formas de ensino, para que a aula não se torne uma Ŗtorturaŗ .

Sobre a metodologia da educação problematizadora, o teórico explica que há uma


dependência direta entre os objetivos educacionais estabelecidos pelo professor e as atividades de
ensino em que eles serão realizados (2008,p.124). Desta forma, dentre os vários métodos
apresentados pelo teórico, escolhi os seguintes, por apresentam uma estrutura aparentemente
adequada para a minha proposta de estágio:
778
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O teórico dividiu as atividades em cinco grupos, nos quais cada grupo apresenta o desenvolvimento
de uma capacidade:

capacidade de observar, tendo como atividades seminários, simpósios, painéis e escrever o que foi
observado; capacidade de analisar, com as atividades de reflexão, discussão dirigida pelo professor,
painel de discussão, comparação de teorias e trabalho independente supervisionado; capacidade de
teorizar, que contém as atividades de leitura de textos, produção de redação, discussão em pequenos
grupos e reflexão individual ou em grupos; capacidade de sintetizar, tendo como exercícios a
distribuição de tarefas a alunos, de forma individual, para que o todo seja integrado pelo grupo e a
exposição oral pelo aluno; e por último a capacidade de aplicar, com as atividades de exposição de
trabalhos dos alunos, formação de grupos de trabalhos e estudo dirigido.

Percebendo o desconforto dos alunos em relação às aulas de literatura, sempre muito


teóricas, tendo o professor como o transmissor dos conteúdos literários, desenvolvi uma proposta de
trabalho tendo como foco estimular os alunos através dos métodos descritos acima a participarem
de forma protagonizada das aulas.

Esses métodos consistiram em trabalhar a definição da literatura, sua funcionalidade, seus


aspectos artístico, sociolingüístico e cultural.

Porém, podemos aceitar o fato de que trabalhar teoria literária no ensino médio não é uma
tarefa fácil, pois há o risco de transformar as aulas em verdadeira Ŗtorturaŗ para os alunos. Por esta
razão o elemento lúdico esteve presente no planejamento. Sobre esta questão, Mibielli (2009, p.142)
afirma que: Ŗhá que se ter bom senso, saber equilibrar a fruição, captar o possível aprendizado e o
caráter do jogo ou do texto literário, adequando-o à proposta pedagñgica que se temŗ . Neste sentido
é necessário tornar a aula/brincadeira/jogo estimulante, pois sem o interesse o aluno, assim como a
educação, continua na mesma situação. (Mibielli,2009,p.156).

O elemento lúdico esteve presente principalmente nas aulas sobre a definição de arte. A
justificativa para trabalhar tal definição deve-se ao fato de que, durante as observações, me deparei
com a dificuldade dos alunos em lidar com a relação entre a realidade e a representação da
realidade.

Neste sentido, estimulei os alunos a produzirem atividades de desenho e pintura.

Depois de observar as turmas e pesquisar métodos de ensino de literatura a fim de torná-lo


motivador, dei início à prática, propondo tudo o que foi planejado. Como eu havia escolhido duas
turmas para trabalhar, a carga horária para cada classe foi de 15 horas/aula. A primeira aula
planejada foi sobre o conceito de arte. Iniciei a aula perguntado aos alunos o que entendiam por
arte. Algumas respostas foram bem criativas, e outras aludiam a um repetido discurso que afirma
que arte é mera expressão de sentimentos. Depois do diálogo, introduzi o elemento lúdico, fazendo
com que todos os alunos se expressassem através da produção de pinturas e desenhos.

779
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Sobre as acepções dos alunos em relação à arte, na segunda aula utilizei o método da
comparação de teorias, citado por Bordenave (2008,p.124). Segundo o teórico, este método
desenvolve no aluno a capacidade de analisar. Desta forma, distribui entre os alunos dois textos
constando definições de dois teóricos em relação à definição de arte, Ernest Fischer (2007) e
Marilena Chaui (2004). Depois que os alunos fizeram a leitura dos textos, separei a classe em
quatro grupos, de acordo com a teoria que iriam defender, assim, dois grupos defenderam a teoria
de Ernest Fischer e dois grupos defenderam a teoria de Marilena Chaui. Houve um debate muito
produtivo na sala de aula. Pude perceber que os alunos não apresentaram muitas dificuldades em
relação à compreensão dos textos.

A terceira aula (e última descrita neste artigo) nas duas turmas foi sobre teoria da literatura.
Para esta aula utilizei os métodos de leitura de textos e produção de redação, citados por Bordenave
(2008,p.124). De acordo com o teórico, estes métodos desenvolvem a capacidade de teorizar. Mas,
além destes métodos, fiz uso também da exposição oral para explicar a teoria de Terry Eagleton em
relação à definição de literatura. Assim, depois da minha breve explicação, distribui para os alunos
uma apostila contendo textos resumidos de Terry Eagleton (2001) e Cyana Leahy-Dios (2000).

Cyana Leahy-Dios (2000), defende que o papel central da literatura deveria ser o
fortalecimento dos alunos para sua participação ativa e crítica na sociedade, através do exercício
pedagógico de relações dialógicas com textos nas aulas da disciplina, de um ponto de vista teórico e
prático. A teórica afirma ainda que a literatura ajuda a compreender fatos históricos, políticos e
sociais.

Depois que os alunos fizeram a leitura dos textos, pedi que produzissem um texto
respondendo às seguintes questões: o que entendiam por literatura antes da leitura dos teóricos e o
que passaram a entender depois de tais leituras. Com o resultado desta atividade pude comprovar
que muitos alunos realmente não sabiam qual é a função da literatura na educação e tão pouco
conheciam a problemática em relação às várias definições de literatura apresentada por Terry
Eagleton (2001). Um aluno escreveu no seu texto que, antes da leitura dos teóricos, para ele a
literatura resumia-se em Ŗhistorinhas inventadasŗ e por isto ele não atribuía a menor importância à
leitura literária. Mas, afirmou que depois do estudo dos textos, compreendeu a importância da
literatura na escola e gostou particularmente da afirmação de Terry Eagleton: Ŗaliteratura não existe
da mesma forma que os insetosŗ. Este aluno soube expor muito bem sua explicação para esta
afirmação:

―um inseto será inseto para todos que os olharem, mas nem todos podem ler o mesmo livro
e afirmar que é literatura‖.

780
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ao ler tal explicação do aluno, percebi que há realmente a possibilidade de introduzir textos
teóricos no processo de ensino-aprendizagem, proporcionando ao aluno as definições e
funcionalidades do que estudam na sala de aula, já que, infelizmente, muitas vezes os alunos
desconhecem a importância de certos conteúdos em seus processos de educação escolar.

Ao longo das aulas lecionadas nas duas turmas, pude perceber que conquistar a atenção dos
alunos exige muito esforço da parte do professor, por isto, considero muito importante buscar a
inovação no ato de ensinar. E, quando falo em inovação, não me refiro apenas à metodologia. É
necessário também introduzir aos conteúdos ensinados a sua importância para a vida do aluno, pois,
como querer que o aluno atribua importância a algo que ele desconhece a utilidade? Isto foi o que
fiz com a literatura, percebendo que os alunos desconheciam a necessidade do estudo da disciplina.

Em relação à metodologia, procurei fugir da educação tradicional, cuja exposição oral é o


principal método utilizado. Assim, no decorrer das aulas, propus atividades em grupo, debates,
estudo dirigido, e outros, para que o aluno fosse o protagonista no processo de ensino-
aprendizagem, e não apenas um sujeito passivo e exímio memorizador (Bordenave, 2008, p.10).

Referências bibliográfcas

BAMBERGER, Richard. Como Incentivar o Hábito de Leitura. São Paulo: Ática, 2008, 7º edição.

BORDENAVE, Juan Díaz. Estratégias de Ensino-aprendizagem/ Juan Díaz Bordenave, Adair


Martins Pereira.29.ed._Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2004, 13º edição.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: Uma Introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FISCHER, Ernst. A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: LTC,2007.

LEAHY-DIOS, Cyana. Educação Literária Como Metáfora Social: desvios e rumos. Rio de
Janeiro: EDUFF, 2000.

MIBIELLI, Roberto. A lida, o lido e o ludo. In: KOWALCZUK, Vânia Graciele Lezan. (org.).
Inquietações na Educação, v. 1, Boa Vista: Editora UFRR, 2009.

781
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

DIÁLOGOS POSSIVEIS EM UM ANÚNCIO PUBLICITÁRIO: UMA ANÁLISE COM


OLHAR LINGUÍSTICO E LITERÁRIO

Suzana Pinto do Espírito Santo (UFOPA)1

Resumo: Este artigo objetiva analisar um anúncio publicitário de uma marca de café extraído da revista
Veja, vol. 20 de 6 de dezembro de 2006, ancorado na teoria semiótica do texto, a fim de perceber o percurso
gerativo de narratividade que se constrói no texto verbal. O texto publicitário se vale de recursos imagéticos,
por isso, analisamos algumas relações entre os signos linguísticos verbal e não-verbal que se entrelaçam
produzindo efeitos de sentido com um extraordinário poder de persuasão, efeitos estes que nos levaram
abordar os diálogos possíveis construídos numa relação intertextual. Neste estudo, ampliamos nosso olhar
para uma perspectiva literária, considerando que o texto publicitário, ao utilizar-se de inúmeros recursos
visuais, extrapola não só o horizonte da palavra, mas também do próprio código linguístico, neste sentido, o
viés literário explora a linguagem simbólica que manifesta todo seu potencial semântico.

Palavras-chave: percurso narrativo, intertexto, literário.

Abstract: This article aims to analyze an advertisement of the a mark of coffee extracted from Veja
magazine, vol. 20 of 6 December 2006, anchored in semiotic theory of text in order to realize the path of
generative narrative that builds in the verbal text. The advertising text relies on imagery resources, so we
analyze some relations between linguistic signs verbal and nonverbal producing effects that are interwoven
with a sense of extraordinary power of persuasion, these effects that led us to address the possible dialogues
built a relationship intertextual. In this study, we broadened our vision of a literary perspective, considering
that the advertising text, to be used in numerous visuals, goes beyond the horizon of not only voice but also
of the language code, in this sense, the literacy bias explores the language symbolic that expresses its full
potential emantics.

Key-words: narrative journey, intertext, literary.

Introdução

Este estudo visa analisar um anúncio publicitário de café, publicado na revista Veja de 6 de
dezembro de 2006, tomando como base a teoria semiótica do texto, a fim de perceber o percurso
gerativo de narratividade construído no texto verbal levando o leitor ao convencimento. Além
disso, traçamos uma discussão das relações intertextuais denunciadas no objeto deste artigo.

O texto publicitário é tecido com recursos imagéticos e verbais o que possibilita transcender
o significado da palavra. Por esse motivo, este estudo discute não só os aspectos linguísticos, mas
também literários esboçados na liberdade de criação e de usos de símbolos verbais e não-verbais.
Neste aspecto, pretendemos contribuir com a assertiva de que há manifestações literárias em
diferentes formas de mostras de artes.

1
Especialista em Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade Federal do Pará. É Membro pesquisadora do Grupo
de Estudos Linguísticos do Oeste do Pará (GELOPA), da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), cadastrado
no diretório do grupo de pesquisa do Cnpq, sob coordenação da professora Dra. Ediene Pena Ferreira.

782
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Contudo, ressaltamos que não é nosso objetivo apresentar um estudo delimitado dos aspetos
sintáticos e discursivos que envolvem a teoria semiótica, mas assim, nos subsidiamos em tal
reforço teórico para demonstrar que a estrutura da narrativa é usada para persuadir o leitor.

De acordo com Barros (2005, p.11), para construir o sentido do texto, a semiótica concebe o
seu plano do conteúdo sob a forma de um percurso gerativo que se estabelece em três etapas, a
saber: a) nível fundamental no qual a significação surge numa posição semântica mínima; b) nível
das estruturas narrativas que organiza a narrativa do ponto de vista do sujeito; c) nível das
estruturas discursivas em que a narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação. Neste artigo, nos
apoiaremos na segunda etapa, a narratividade, que trata da manipulação, aliando a isso, outros
elementos expostos no objeto de análise a fim de estabelecer relações de cunho persuasivo.

Diante disso, conduziremos para uma análise de construção do sentido onde o foco a ser
atingido é o destinatário por meio da menção a outros textos. Adotamos a visão ampla de
intertextualidade embasada em Paulino (1995) para a qual é um processo que Ŗenvolve todos os
objetos e processos culturais tomados como textoŗ (p. 14). Desse modo, esses aspectos são
observados no anúncio de café que explora diferentes recursos gráficos e visuais construindo
assim, o todo significativo do anúncio publicitário.

1. Discussão teórica

O anúncio publicitário é um gênero textual construído com objetivo de atingir o sujeito


receptor, para isso, o autor se vale da criatividade lançando mão de inúmeros recursos linguísticos
verbais e principalmente visuais com o escopo de elaborar uma significação que interfira de forma
motivadora neste sujeito, a fim de condicionar psicologicamente os desejos do indivíduo.

Como já fora frisado, a busca para compreendermos o sentido estabelecido no anúncio em


foco é auxiliada pela semiótica que tem grosso modo, o texto como objeto de estudo. Conforme
Carvalhal (2006, p.11-12), é uma teoria que:

Explica o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz [...] semiótica trata assim, de
examinar os procedimentos de organização textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos
enunciativos de produção e de recepção do texto.

Um dos mecanismos que encontramos para explorar o anúncio em análise é a


intertextualidade, recurso este bastante utilizado neste gênero de texto, bem como frases curtas,
palavras-chave, linguagem figurada entre outros. Desse modo, um texto sempre se constrói com
contribuição de outros, por isso, consideramos que um discurso interfere ou refere-se a textos que
servem como fonte para o autor.

Tal afirmação é assegurada por Barthes (1974) apud Koch (2008, p. 59) frisando que Ŗtodo
texto é um intertexto, outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou
menos reconhecíveisŗ . O diálogo intertextual pode ser percebido em diferentes manifestações
783
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

literárias e artísticas, desse modo, Carvalhal (2006) discute que o diálogo existente entre os textos
não se manifesta de forma pacifica, pois é um momento que envolve aspectos textuais e extratuais
conflitantes que levam a uma perspectiva de análise intertextual.

A condução deste estudo para uma perspectiva intertextual, apoiada na teoria semiótica,
pode ser adequada por considerarmos que a semiologia possibilita a comparação entre os textos,
assim como propõe Verón (1980, p. 82) apud Koch (2008, p. 61) quando considera que o texto se
caracteriza pela diferença de outro, ou seja, autor afirma que Ŗa noção de intertextualidade não se
refere apenas à verificação de um dos aspectos de produção dos discursos, mas também, a
expressão de uma regra de base do métodoŗ .

Portanto, anúncio selecionado para este estudo constitui um todo de significação com
auxilio de elementos intertextuais. Além disso, a significação se compõe ainda por meio da
estrutura narrativa que caracteriza o percurso gerativo pautado em base semiótica de origem
francesa, fundado por Greimas. Neste sentido, nos delimitaremos no aspecto de manipulação que
se incorpora na narrativa, a qual Barros (2005) apresenta duas etapas hierárquicas que são a
adoção de competência semântica e a adoção de competência modal.

Enfatizaremos principalmente a competência modal pelo fato de ela constituir a


manipulação propriamente dita, pois segundo a autora, é neste momento que o destinador/
manipulador transmite ao destinatário/sujeito os valores modais do querer fazer, do dever fazer,
do saber fazer e do poder fazer. Assim, Barros (2005) afirma que na manipulação, o destinador
propõe um contrato e exerce a persuasão para convencer o destinatário a aceitá-la.

De acordo com Barros (2005), essa manipulação só será bem sucedida quando o sistema de
valores em que ela está assentada for compartilhado pelo manipulador e pelo manipulado havendo
uma cumplicidade entre ambos.

Considerando essas discussões, citamos Barros (2005, p.78) que embasa a relação trazida
neste estudo entre os subsídios semióticos e a intertextualidade:

A semiótica, como se afirmou desde o início, procura hoje determinar o que o texto diz,
como o diz e para que o faz. Em outras palavras analisa os textos da história, da literatura,
dos diálogos políticos, e religiosos, os filmes e as operetas, os quadrinhos e as conversas
de todos os dias, para construir-lhes o sentido, pelo exame acurado de seus
procedimentos e recuperar, no jogo da intertextualidade, a trama ou o enredo da
sociedade e da história. [grifo nosso].

Um dos objetivos desse artigo é mostrar que as artes, em especial a literatura, podem se
relacionar e se manifestar por meios de diversos mecanismos de suporte. É para este sentido que
caminha Carvalhal (2006) relacionando a literatura comparada a outras formas de expressão
humana, o texto literário com outros textos sendo literários ou não, e outras formas de expressão
cultural e artística. Os embasamentos teóricos que justificam as relações linguísticas e literárias

784
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

são corroboradas por Barthes (1977, p. 35) ao enfatizar que a Ŗliteratura e a semasiologia acabam
assim por conjugar-se e por corrigir-se uma a outraŗ .

Neste sentido, consideramos que Ŗas relações entre a literatura e as outras artes encontram
no campo dos estudos semiológicos, nas relações que os sistemas sígnicos travam entre eles,
novas possibilidades de compreensão para essas correspondênciasŗ . (Carvalhal, 2005, p. 49). Com
isso, discorreremos nossa análise para aspectos linguísticos percebidos no anúncio, bem como, as
alusões às outras formas de manifestação artística e da liberdade de criação.

2. Estudo do anúncio publicitário: um olhar linguístico e literário

O anúncio publicitário de uma marca de café publicado na revista Veja de 6 de dezembro de


2006 constitui-se de elementos linguísticos verbais e não-verbais que se conectam em busca de
uma significação. O sentido gerado pela propaganda de café tem a intenção de direcionar o
leitor/consumidor ao convencimento por meio da citação de pessoas que foram reconhecidas na
sociedade para levar o receptor à conclusão de que a escolha do produto seria uma escolha
inteligente.
785
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O texto do anúncio destaca nomes como Santos Dumont, Monteiro Lobato, Carmem
Miranda e JK (Juscelino Kubitschek) e reafirma a forma de persuasão com a frase afirmativa Ŗé, o
café estimula mesmo o cérebro‖. No entanto, os argumentos que levarão o leitor/ consumidor a
ser seduzido pelo produto são apresentados no texto narrativo exposto ao lado de imagens que são
necessárias ao gênero para atrair visualmente o leitor.

É possível perceber o dialogo inclusive com a literatura através da citação do autor da


literatura brasileira Monteiro Lobato. A chamada do texto possibilita ao leitor reportar-se ainda
para o campo musical, por meio da referência à Carmem Miranda, além disso, permite ao leitor
um passeio pela história ao aludir o cientista Santos Dumont e ao ex-presidente do Brasil, JK.
Essas menções a outros elementos sócio-históricos são comuns neste gênero de texto, como
assegura Paulino (1995, p. 50) ŖA propaganda costuma relacionar-se de forma dinâmica com
outros elementos do discurso, especialmente com aqueles mais em vogaŗ .

O uso de nomes que aludem a elementos da história do país nos leva a identificar uma
postura intertextual na medida em que possibilita ao leitor traçar relações entre as diversas formas
de manifestações artísticas, ainda que de forma sutil, com elementos da literatura, da música e da
história. Todas essas referências proporcionam ao discurso uma interação com diferentes ramos
do conhecimento, estabelecendo assim, um caráter intertextual, pois Ŗqualquer texto se constrñi
como um mosaico de citações e é absorção e transformação de um outro textoŗ, Kristeva (1974, p.
60) apud Koch (2008, p. 62).

Para Paulino (1995, p. 50) um anúncio pode formar uma rede intertextual, caracterizada
pela multiplicidade de linguagens e de veículos, envolvendo, por exemplo, literatura, cinema,
música e publicidade, simultaneamente. Com isso, consideramos que nosso objeto de análise traz
relações com outros elementos das artes que podem viabilizar novos modos de compreensão
causados pela relação entre os signos verbal e imagético.

Essas relações estão no campo da semiologia. Desse modo, o objetivo em tecer uma análise
pautada na teoria semiótica do texto e traçando paralelos com referência a intertextualidade, ganha
suporte com a afirmação de que todo texto produz um sentido. Esse sentido é construído pelo
percurso gerativo de narratividade cuja meta é a manipulação.

Barros (2005) comenta que a manipulação é o momento que o sujeito age sobre o outro para
convencê-lo através de alguns mecanismos como: intimidação, sedução, provocação ou tentação.
No caso do anúncio ora analisado, o produtor/fabricante tenta convencer pela sedução, o que pode
ser percebido pelo uso repetitivo do verbo [tomar] ŖSantos Dumont Tomava. Monteiro Lobato
tomava. Carmem Miranda tomava, JK também‖.

O percurso narrativo do texto é elaborado para induzir o leitor/consumidor a uma leitura que
sugere uma transformação quando o discurso adotado é o de consumir o café tipicamente
brasileiro. O texto induz ao convencimento ao usar o discurso de que o leitor terá seu cérebro
786
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

estimulado e sua saúde conservada e, consequentemente produz neste receptor a idéia de ser bem
sucedido. Isto é possibilitado pela ação do produto sobre o sujeito. Desse modo, o percurso
narrativo principal é referente ao estímulo ao cérebro e a preservação da saúde, como é percebido
em: Ŗ(...) benefícios para preservação da saúde... ficamos mais alertos, mais dispostos
fisicamente e com raciocínio mais ágil, sendo a bebida ideal para os estudantes (...)ŗ .

Esse percurso narrativo induz a manipulação do leitor/consumidor que é tomado ainda, pelo
conjunto de imagens que mostram os benefícios do café para os estudantes que podem vir a ser
bem sucedidos como as grandes personalidades brasileiras citadas no inicio da propaganda. Além
disso, o anúncio busca associar essa consequência à qualidade da marca mostrada pela imagem do
produto in natura e do consumo do produto final: uma xícara de café quente.

Portanto, a propaganda busca relacionar diferentes signos para compor o todo significativo
produzindo um sentido para quem o lê. Esse sentido é constituído por elementos semióticos que
nos levaram a perceber o diálogo com outros textos e discursos circulados socialmente, como o
desejo de saúde e de sucesso. Além disso, identificamos que a figura do anúncio pode estabelecer
uma relação com as artes na medida em que o texto e as imagens são montados em uma estrutura
de fundo ilustrada como um quadro neoclássico.

Assim, podemos mencionar conclusivamente que o anúncio em análise traz mecanismos que
permitem a percepção de diálogo com outras artes e outros textos que, cujos Ŗsentidos sñ podem
ser entrevistos por meio do exame tanto dos mecanismos internos quanto dos fatores contextuais
ou sócio-histñricos de fabricação de sentidoŗ (Barros, 2005, p. 12). Considerando essa afirmação,
desenvolvemos justificativas pautadas na estrutura da narrativa, nos elementos sócio-históricos
citados e na composição dos elementos visuais, tornando o texto sincrético, rico mecanismo de
manipulação.

Considerações finais

Procuramos, neste estudo, avaliar a capacidade de persuasão de um anúncio publicitário de


uma marca de café, veiculado na Revista Veja, e os mecanismos utilizados para se chegar a este
objetivo a exemplo do uso de uma linguagem sustentada numa argumentação icônico-linguística.

O estudo do anúncio publicitário nos levou a perceber que os elementos semióticos somados à
intertextualidade permitem que sejam construídas relações de sentido entre a narrativa da
propaganda e os recursos icônicos, tornando possível a idéia de que os vários signos podem se
associar, a fim de estabelecer diálogos com outros textos e até mesmo, com outras formas de
manifestação artística, como notamos na menção à literatura e a musica.

A alusão a grandes nomes das artes, da ciência e da política nos mobilizou a uma análise
intertextual, pois, consideramos o enfoque de Paulino (1995, p. 29) a qual sustenta que a alusão é

787
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

um tipo de intertextualidade fraca, uma vez que se nota apenas uma leve menção a outro texto ou a
um componente seu.

Apesar disso, consideramos que essas alusões sustentam o percurso gerativo de sentido e
ainda, tornam o texto mais atraente para quem o lê, além de mostrar que as artes podem dialogar
flexivelmente em diversas formas expressão artística confirmando nossa hipótese de que é possível
perceber a literatura, a música, a pintura não só no texto poético ou histórico, mas também em
gêneros diferentes de texto a exemplo de um anúncio publicitário.

O suporte semiótico dado para este estudo possibilitou a análise do percurso gerativo de
narratividade que, segundo Greimas (1979) apud Barros (2005), pode ser identificado em qualquer
tipo de texto e percebido numa relação entre os actantes e o objeto-valor, no caso do anúncio, os
actantes são o leitor/consumidor, produto e o publicitário/fabricante.

O discurso encerrado no texto da propaganda pretende manipular o leitor/ consumidor, a fim


de convencê-lo a consumir o produto/café, para isto, a construção do objeto anúncio ousa em
elementos visuais e de criatividade textual. Por isso, o anúncio se torna algo natural e simples que
está envolto na vida social dos sujeitos envolvendo-os por meio de sua linguagem simbólica
carregada de força e poder.

Referências bibliográficas

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2005.

BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, s.d.

CAVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2006.

KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9ª ed. São Paulo: Contexto, 2008.

PAULINO, Graça (org). Intertextualidades: teoria e prática. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1995.

VEJA, São Paulo. Vol. 20, dez. 2006.

788
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

CINEMA E LITERATURA: ESTUDO DA RESISTÊNCIA POLÍTICA EM ŖCABRA-CEGAŗ E


ŖPESSACH, A TRAVESSIAŗ
Tânia Sarmento-Pantoja (UFPA)

Resumo: A narrativa de resistência produzida no Brasil, particularmente, a relacionada à ditadura militar de


1964, apresenta algumas peculiaridades que vem sendo avaliadas a partir de investigações profícuas. Dentre
essas peculiaridades, destaca-se a idéia de que essas narrativas, especialmente as produzidas no interstício
entre o final da década de 60 e os primeiros anos da década de 70, passam por transformações que
nitidamente se colocam em diálogo e em confronto com a existência material, especialmente no que diz
respeito ao desmantelamento das forças revolucionárias. Nesse contexto, nota-se que algumas inscrições
estético-temáticas relativas à resistência Ŕ como conceito e como ethos Ŕ observadas no romance Pessach, a
travessia (1967), de Carlos Heitor Cony e no filme Cabra Cega (2005), de Toni Venturi, pela sua
recorrência, podem ser vistas como produto de alternativas ficcionais, resultantes desse cenário histórico.

Palavras-chave: Literatura; Cinema; Resistência; Narrativa.

A necessidade de um olhar mais detido sobre a noção de resistência se faz adequada,


sobretudo quando o objeto sob investigação são práticas artísticas relacionadas a uma atitude de
confronto, escavada a partir da experiência material, assim como as condições históricas, culturais e
sociais de sua produção. Isso posto, para analisar alguns aspectos agudamente relacionados à
resistência nas narrativas Pessach, a travessia e Cabra-Cega, parto da idéia de que a noção de
resistência, inerente à constituição de uma escrita subversiva, assenta-se sobre um princípio de
oposição, quer seja como atitude que, em essência, é contra-hegemônica em relação ao processo
capitalista-globalizador, como vê Stuart Hall (1997, p. 72-73), quer seja como um ato de oposição,
originariamente ético e não estético, como quer Alfredo Bosi (2002, p.118). Em Hall a resistência
entra como processo na luta cultural, junto com outras categorias conceituais como incorporação,
distorção, negociação, recuperação, etc. Mas é a definição de Bosi que se apresenta mais ampla,
diante dos elementos que se pretende examinar. Para Bosi, o sentido profundo de resistência, é
determinado por uma força de vontade que resiste a uma força alheia. Por sua vez, a intuição, que é
o fundamento da arte, Ŗnão é uma atividade que nasça da força de vontadeŗ (BOSI, 2002, p. 118). A
força de vontade, nesse caso, é secundária. Essa diferença crucial, entretanto, não impede que as
duas possibilidades se encontrem.

Baseando-se em Benedito Croce, Bosi observa que nas potências cognitivas Ŕ às quais a arte
se vincula Ŕ predomina a intuição e a razão, ambas determinadas pelo critério de realidade:
indiferente para a primeira categoria e peculiar para a segunda. Já nas potências da vida prática,
que regem aspectos como a resistência, prevalece o desejo e a vontade, nesse caso, distintas entre si
por um critério de coerência ética, peculiar para a primeira categoria e praticamente ausente na
segunda.
789
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Esses dois conceitos - intuição e resistência - aparentemente inconciliáveis em um modelo


abstrato podem, no entanto, ser colocados lado a lado na existência material. Dessa experiência,
surgem noções como poesia de resistência e narrativa de resistência. No caso da narrativa, na
opinião de Bosi, a resistência ganha contornos no âmbito da seleção dos temas e no processo
inerente à escrita. Assim, a narrativa de resistência transpõe para o sentido estético um sentido ético
que se realiza, especialmente, pelas possibilidades de exploração de valores diametralmente
opostos.

Contudo, para que esse encontro se configure produtivo, a estética precisa fazer jus ao
imperativo ético; necessita, pois, movimentar mecanismos diversos de expressão, capazes de
suplementar e dar visibilidade ao que a ideologia dominante escamoteia. Esse é o fundamento que
torna distinta a literatura de resistência da literatura de propaganda ou literatura engajada. A essa
última resta uma escolha única, qual seja, Ŗapresentar a mercadoria ou a política oficial sob as
espécies da alegoria do bemŗ ( BOSI, 2002, p. 122).

Historicamente, a literatura de resistência surge concomitante ao neo-realismo italiano nas


décadas de 30 e 40 do século XX, por ocasião do engajamento maciço de intelectuais no combate
ao fascismo, ao nazismo e outras formas autoritárias de atuação política. Lukács, Goldmann,
Gramsci, Sartre, e Benjamin são alguns dos principais teóricos da resistência.

Bosi (2002, p. 130; grifos meus) vale-se dos mecanismos de tensão internos à narrativa, cuja
matriz conceitual está em Lukács e Goldman, para avaliar que, na literatura de resistência, a tensão
eu/mundo Ŗse exprime mediante uma perspectiva crítica, imanente à escrita, o que torna o romance
não mais uma variante literária da rotina social, mas o seu avesso; logo, o oposto do discurso
ideolñgico do homem médioŗ.

Em Lukács a idéia de resistência é trabalhada a partir da configuração do romance histórico:


nele, a luta de classes é um dos vórtices da história e nessa condição é alçada a elemento
configurador das transformações sociais, ainda que profundamente dependentes do cotejo do sujeito
individual e coletivo. É dessa circunscrição que surge a idéia de herói problemático, um sujeito que,
através de uma ação livre, Ŗergue-se somente um palmo acima da multidão de seus paresŗ
(LUKÁCS, 2000, p.66) e, assim, se coloca em ruptura com seu mundo, com a resistência surgindo
desse movimento diante da historicidade adversa.

Nesse panorama das investigações acerca das manifestações da resistência em produções


artísticas, assim como outros objetos culturais, não se pode tangenciar a importância de Walter
Benjamin. Ao examinar elementos da modernidade tomando como guia a elaboração de imagens
relacionadas a formas degeneradas e decadentes, como a prostituta, o flâneur, o jogador, o trapeiro,
o homem-sandwich, a mercadoria, Benjamin viu nessas imagens, a fórmula para uma crítica da
razão moderna, identificando muito da capacidade manipulatória da modernidade, devido ao caráter
capitalista que se impõe a ela. Ao refletir sobre categorias como Ŗprogressoŗ, Ŗdesenvolvimentoŗ e
Ŗcivilizaçãoŗ observou nelas a presença da Histñria como processo evolutivo e, como tal,

790
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

homogeneizador e determinista. E sendo o tempo pré-determinado em seus esquemas, não haveria


como o sujeito humano mudar-lhe a rota. Assim, a grande pedra de toque do seu programa
filosófico em relação à resistência foi buscar na teologia os mecanismos de constituição do
absoluto. Daí advém propostas como a de uma Histñria Ŗescrita a contrapeloŗ, em Sobre o conceito
da história (BENJAMIN, 1994, p. 225), ou a de que, a obra de arte deve se concentrar muito mais
em abarcar as relações de produção em que está situada, do que construir uma atitude desafiadora
relativamente a um modo de produção existente (BENJAMIN, 1994, p. 122).

Considero aqui que a resistência, por sua constituição condicionada à oposição, à subversão,
enfim, a um ethos desafiador que aponta para a explosão de algum tipo de continuum coercivo pela
construção de mecanismos de tensão e de desacordo, opera sobre ideais de inspiração utópica.
Lembrando que as utopias partem sempre de um ato de rompimento com uma ordem em vigor em
nome de um ideal que lhe servirá de fundamento de oposição, cuja presença carrega a utopia do
compromisso com a expectativa Ŕ alguns a chamariam de esperança Ŕ de que uma ordem ou
situação ruim será substituída por outra melhor.

No entanto, no limiar entre a história e a ficção esse aspecto pode sofrer oscilações
consideráveis. É o que se observa nas narrativas literárias e cinematográficas que procuraram
abarcar a experiência da ditadura militar de 1964.
Para se ter uma visão mais ampliada do panorama que compõem o tempo em que se deflagra
a ditadura, e compreender suas emanações em diversas produções artísticas, é imprescindível
lembrar que na década de 60, período em que se verifica o golpe militar de 1964, o caráter
revolucionário é parte do Zeitgeist que o compõe. À vista disso, os episódios de reação ao regime
estão em correlação com eventos semelhantes que se sucedem no mundo inteiro. Acontecem
protestos em Paris, que se tornam memoráveis a partir do Ŗmaio de 68ŗ , assim como as
manifestações na Universidade de Berkely (Califórnia, Estados Unidos) e as das cidades de Berlim,
Praga e Tóquio, em que os estudantes ganham as ruas e enfrentam o poder instituído. No entanto,
no caso brasileiro, diante das reações contra a truculência do governo em relação às manifestações
estudantis, não tardaria o contra-ataque do regime e de seus defensores.

Em 1968, uma onda de protestos, em função do recuo de investimentos ligados à educação e


à falta de vagas nas escolas públicas, invade o país gerando cada vez mais conflitos e fazendo a
primeira vítima do movimento, o estudante Édison Lima Souto, atingido por um tiro disparado por
um policial, durante manifestação realizada no dia 28 de março, na Universidade Federal do Rio de
Janeiro. A morte de Souto provoca reações ainda mais exacerbadas. A liderança clandestina da
UNE decreta greve nacional. O velório e o enterro do estudante transformam-se em eventos
públicos, que envolvem passeatas e novos confrontos nas ruas.

Ao mesmo tempo em que ocorrem essas manifestações, o Comando de Caça aos


Comunistas (CCC), organização terrorista de extrema direita, depedra, em São Paulo, o teatro Ruth
Escobar, onde se apresentava a peça Roda Viva, de Chico Buarque de Holanda, ocasião em que

791
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

vários artistas são espancados. Esse incidente nefasto parece ter marcado profundamente a memória
dos segmentos artísticos declaradamente contrários ao regime, a ponto de ser referido em
praticamente todos os estudos dedicados ao período. Dias depois, também em São Paulo, 1240
estudantes são presos ao participarem do 30o. Congresso Clandestino da UNE. Em julho, é lançada
oficialmente na cidade de São Paulo a OBAN, um dos principais instrumentos de repressão do
governo militar. E em 24 de outubro de 1968, em Recife, é metralhada a casa do arcebispo D.
Helder Câmara.

Nesse processo histórico, importa lembrar ainda que no processo de legitimação do Estado
autoritário, em um primeiro momento, os repressores ainda expressam a expectativa de um futuro
democratizado, não muito longínquo. Essa é a fase da Ŗditadura envergonhadaŗ , como a chama Élio
Gaspari, na qual, paralelamente à existência material do aparelho repressor, é também montado um
aparato legal, para revestir o regime de um caráter Ŗdemocráticoŗ que se manteria até 1968. Ao
mesmo tempo, há uma oposição muito forte e cada vez mais barulhenta, em função das várias
denúncias de tortura. Nessa dinâmica de reação, destaca-se o papel do jornal Correio da Manhã,
que toma a decisão editorial de implementar uma ampla campanha de denúncias.

A partir desse momento, os movimentos de resistência ao regime militar de 1964 dividem-se


em duas correntes: uma, revolucionária, que vê o fim da ditadura através da revolução armada e,
outra, pacifista-reformista, que acredita na mobilização sem o uso da guerrilha e da clandestinidade.
Em relação à primeira corrente, é importante destacar que enquanto agência que deveria se impor ao
regime ela fracassa, por um lado, em decorrência do entendimento ambíguo de democracia e, por
outro, em função da franca competência do aparelho repressor do Estado ditatorial que termina por
sufocar completamente a guerrilha na passagem da década de 60 para a de 70, culminando com o
endurecimento das forças repressoras, que perseguiram, torturaram, assassinaram e exilaram grande
parcela dos opositores ao regime durante o decorrer dos anos 70.

Vários romances e filmes produzidos no calor desses acontecimentos e mais recentemente, a


partir de um diálogo aberto entre a ficção e a história, procuraram especular sobre diversos aspectos
relacionados a esses momentos dramáticos. Entre os romances destaco Quarup (1967), de Antônio
Callado e Pessach, a travessia (1967), de Carlos Heitor Cony, como exemplos de romance em que
o apego à idéia de uma solução pela revolução armada ainda é um elemento patente. Por sua vez, os
romances da década de 70 e 80 são norteados pelo tratamento muitas vezes irônico em relação à
impossibilidade da revolução armada, e pelo sentimento agudo de impotência, de imobilidade, e de
crise existencial diante da permanência das velhas estruturas sociais. Como narrativas
representativas desse tratamento, destaco os romances Os novos (1971), de Luís Vilela, As meninas
(1973), de Lygia Fagundes Telles e A festa (1976), de Ivan Ângelo.

Considerando os limites do que me proponho a observar neste trabalho me detenho a partir


de agora na análise dos dois romances representativos da defesa da luta armada, confrontado-os, a
partir de suas singularidades, com uma narrativa de resistência mais recente: Cabra-Cega.

792
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Um elemento crucial nos romances Quarup e Pessach, a travessia é a tendência a refletir


sobre a luta armada relacionando-a a um sentido de passagem carregado de simbologia. No
romance de Callado tem-se o ritual indígena de caráter religioso, o quarup, em que se realiza a
exorcização do morto com o intuito de fazê-lo alcançar o uivat (espécie de paraíso na mitologia
índigena) e permitir aos parentes vivos a purgação da saudade.

Já a noção de pessach circunscreve alegoricamente o romance de Cony. O pessach, também


chamado de Ziman Cherutêm (Data da Libertação), é um ritual que mescla religião e história
nacional. É consagrado à rememoração do êxodo dos judeus que, liderados por Moisés, deixam o
cativeiro egípcio para sempre. Assim, a noite do pessach, em que todo judeu deve comer o pão
ázimo (matzá) e ervas amargas (marror), é uma noite que difere de todas as outras, porque é nela
que se prepara e realiza um ato de memória. Aquele que lembra, diz o escritor Moacyr Scliar (2003,
p. 1) Ŕ em texto sobre a simbologia da noite do pessach na contemporaneidade Ŕ não se coloca à
margem dos dramas de seu mundo, conseqüentemente, também não deve ignorar nenhum daqueles
que ainda não passaram pela Ŗtravessiaŗ e, por isso, ainda não acharam sua Ŗterra prometidaŗ ; estes,
são todos os indivíduos que, de alguma maneira, ainda vivem sob algum tipo de opressão. Uivat,
terra prometida: espaços transcendentes que, na narrativa pós-ditatorial e 60, ligam-se às centelhas
romântico-messiânicas, como representações que são do alcance de etapas máximas, por um
homem que, alcançando-as, alcança também uma nova constituição. Essa nova constituição, por sua
vez, trás as marcas da presença da matéria histórica, pois ela se configura ao final dos dois
romances pelo engajamento do protagonista na luta armada.

Em Pessach, a travessia esse aspecto ganha conotações bem complexas, na medida em que
funciona como solução ficcional para aspectos históricos pouco discutidos, como as dubiedades
ideológicas do Partido Comunista. Para Cony a intenção de ficcionalizar essas dubiedades do
chamado Partidão, resvalam no romance para uma possibilidade histórica radical, mas alternativa
em relação à experiência factual:

No meu livro, faço ficcionalmente uma possibilidade de guerrilha que tinha condições
não de vencer, mas de lutar. Quando essa guerrilha está no momento de se decidir, o
Exército a surpreende e mata todo mundo. Os poucos sobreviventes fogem para o
Uruguai e pensam, Řonde nñs erramos?ř Aí vem a certeza: ŘFomos traídos. Quem nos
traiu? O PCř. Traiu porque não queria que aqueles porras-loucas balançassem o
equilíbrio de forças que havia na Guerra Fria, senão os países que estavam dentro do
território soviético poderiam se voltar contra. Além disso, o PC achava que era mais
importante prestar um favor à ditadura, denunciando esse movimento que estava para ser
deflagrado, recebendo em troca meios de facilitar a publicação de revistas, organizar
simpósios, etc (CONY apud LUCENA, 2001, p.73, grifos meus).

793
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Outro aspecto a ser observado em Pessach, a Travessia é que há certa ênfase no heroísmo,
uma característica com especial relevo na segunda parte da narrativa e estreitamente vinculada ao
processo de Bildung de Paulo. O modelo mais imediato de herói se faz a partir da imagem de
Macedo, um guerrilheiro obscuro e de atitudes severas, líder do grupo em que se encontra o
protagonista. Logo que chega à fazenda e o conhece, as marcas da heroicidade dele provocam
horror em Paulo:

Volto-me. O homem tirara os óculos escuros, passara a fase da importância, da autoridade,


os óculos ajudavam-no a compor o papel de chefe ou de tirano. Em torno de seus olhos, há
cicatrizes antigas, a pele crescera em largas estrias vermelhas e azuis, monstruosas varizes,
pejadas de pus. Os óculos, maiores do que o rosto, têm utilidade: escondem a deformação
que o torna repugnante (CONY, 1997, p. 160).

As marcas teratológicas presentes no corpo mutilado de Macedo seduzem Paulo, na medida


em que lhe provocam um misto de asco e contemplação e a extensão física dessas marcas, co-
referentes da entrega de Macedo à causa da guerrilha armada, o chamam também à ação heróica.
Nesse sentido, compreendo a heroicização do protagonista como recurso substancial nas narrativas
de resistência produzidas na década de 60. Ela ressoa o modo pela quais certas experiências foram
compreendidas pelos indivíduos que dela fizeram parte. Quanto a isso, não se deve esquecer que o
ethos revolucionário, fundamentado em uma atitude de resistência, quase sempre é movido, em
essência, pelo desejo de abolir o sofrimento humano, tornando aquele que a carrega em Ŗdepositário
de um bem absoluto, em detentor de uma solução política universal, suscetível, se posta em ação, de
fazer desaparecer para sempre a infelicidade da sociedade dos homensŗ (ABENSOUR, 1992,
p.211).

Daí provém um sentido de heroicização, de dimensão constitutiva, e que reveste a atitude


revolucionária de um caráter imantador, tão potente, que o heroísmo se torna, antes de tudo, uma
atitude ou domínio discursivo dentro de um campo político. Passível de ser decomposto, o heroísmo
que nasce da atitude revolucionária se constitui de algumas condições elementares, como a re-
criação da liberdade, no sentido de uma retomada da liberdade política; o mergulho do herói em um
estado de passagem cujo processo constitui a emergência deste, do domínio privado para a esfera
pública; a hibris (desmedida) que vem alimentar uma condição humana acima da regularidade, sem
a qual a singularidade e a excepcionalidade da disposição heróica não pode se manifestar; e, por
último, a atorização: na medida em que o herói sai da obscuridade da vida privada, amparado pelo
caráter diferencial de suas atitudes e passa a encenar uma alta idéia de si mesmo, se faz também
ator, no sentido teatral do termo.

Em Pessach, a travessia a constituição de Macedo e, posteriormente, também a de Paulo,


comporta todas essas características. Assim, a insistência de um olhar diferenciado de Paulo em
relação a Macedo, consolidada na relação metafórica entre o homem e o mito, serve de ação
antecipatória para o desfecho dos eventos narrativos no que diz respeito ao chefe, e a sua principal
794
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

função é preparar a recepção para uma finalização glamourosa, que irá definitivamente amparar a
atitude de resistência presente no projeto romanesco:

Para minha surpresa, Macedo me lembra a passagem do mar Vermelho. Deixo-o falar.
Encontrei-o certa tarde, lá na fazenda, examinando meu esboço de romance. Ele pensara no
assunto, o plano de atravessar o mar Vermelho aproveitando a maré baixa, Moisés
conduzindo o povo escravo para a libertação, os quarenta anos de deserto.
Quando acaba, digo que o virá tomar banho e que ele, imenso de corpo, me parecera um
Moisés esculpido em carne (CONY, 1997, p. 305).

Como é possível perceber, do Ŗhomem mutiladoŗ ao ŖMoisés esculpido em carneŗ , a


trajetória é breve em relação às mudanças sofridas por Macedo mediante a percepção de Paulo. Na
medida em que o protagonista abandona o ceticismo e a passividade, e avança no processo de
adesão à militância armada, a recepção dele em relação à imagem do guerrilheiro se transforma
radicalmente; quanto mais se aproxima do final da narrativa, mais sobejam descrições portentosas
de Macedo e, desse modo, a nova dimensão que sua imagem vai adquirindo perante a visão de
Paulo, se deixa representar pela impressão exagerada da compleição física e pelo evidenciamento
das marcas da heroicização, proporcionando-lhe um aspecto de gigante, em carne e atitude, que
culmina com o apoteótico auto-sacrifício:

Possesso, o animal salta na estrada. A massa de músculos e ira joga-se toda para a frente,
parece mesmo um bicho, lubrificado de potência e raiva. Quando se fixa em pé, já está de
braços abertos, uma granada em cada mão. Os soldados param, amontoam-se, Macedo não
parece um inimigo mas um louco, nascido da terra, para vingá-la.
A primeira granada voa e explode entre as duas alas. A segunda explode próxima a
Macedo, não chega a voar três metros, o clarão cinza invade a estrada e ouvimos a rajada de
metralhadora cortando ao meio o corpo do chefe (CONY, 1997, p. 312).

Como dito anteriormente, a constituição de Macedo, com seu corpo heróico-fetichizado,


antecipa e reforça a transformação de Paulo, e a emergência nele da própria constituição heróica.
Sua atitude de se desnudar de um universo pessoal familiar, acomodado e seguro, em nome de uma
Ŗterra da Promissãoŗ a partir da luta, pode ser, da mesma maneira, visto com um gesto de heroísmo
que se espraia sobre sua última decisão, a de desistir da fuga e da salvação certa. Essa, enfim, uma
maneira do herói abandonar o ceticismo que o marca e provar de um dos maiores fundamentos das
utopias e de qualquer ethos que envolva a resistência, aquela esperança já referida anteriormente:

O dia clareia, avermelhado e rude. O sol daqui a pouco pulará no horizonte, expulso do
ventre da terra amanhecida. Dou alguns passos em direção à outra margem. Estou deixando
a terra e penetrando num estranho espaço, sem raízes. Faço uma volta em torno de mim
mesmo, contemplo o que ficou atrás, mundo de chão e céu. O sangue da madrugada torna
fantástico aquele território imenso, feito não apenas de chão e céu, mas de dor e de gente,
de águas e claridades, de prantos e afagos. Estou no vértice do enorme triângulo irregular.
795
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Do outro lado, está o nada, que é pior do que a morte. Sinto uma alegria selvagem quando
abandono a travessia e retorno a margem. A aurora, agora atrás de mim, esquenta com a
vertigem e o clamor de sua luz vermelha um novo corpo que surge, afinal obstinado, lúcido.
Desenterro a metralhadora Ŕ e volto (CONY, 1997, p. 319).

Ao finalizar com essas palavras a narrativa de Pessach, a travessia entrega à recepção a


tarefa de adivinhar o destino de Paulo. A frase ŖDesenterro a metralhadora Ŕ e voltoŗ marca muito
mais do que uma decisão. Para o protagonista funciona como o liame entre uma existência
mesquinha e a lucidez vivenciada em toda a sua plenitude, ainda que por poucos momentos de vida.

Trinta e oito anos depois da primeira edição de Pessach, a travessia, tratamento parecido
pode ser visto nos momentos finais do filme Cabra-Cega (2005), de Toni Venturi.

Tendo como viés temporal o ano de 1971, a narrativa desse filme conta sobre o destino de
Tiago (Leonardo Medeiros), um guerrilheiro, que durante o período da ditadura é baleado em um
confronto com policiais, ao ser flagrado, junto com uma companheira, durante uma ação do grupo
que comanda. A moça é capturada e depois torturada. Tiago consegue fugir e passa a viver na casa
de Pedro (Michel Bercovitch), um Ŗaparelhoŗ improvisado onde ele vai viver dias de clausura. Esse
é o prelúdio para uma relação de descoberta entre ele e outra companheira, Rosa (Débora Duboc),
que vai para o Ŗaparelhoŗ como enfermeira para cuidar dos ferimentos de Tiago. Nessa condição,
ela passa a ser a ponte entre o guerrilheiro e o mundo, entre a extrema amargura e a lucidez, na
medida em que se torna parceira, amante e lenitivo na existência mutilada do rapaz. Essas
reviravoltas no cotidiano de Tiago também funcionam como pano de fundo para que fique claro
que, como último recurso de preservação, a organização armada discute a possibilidade de
abandonar a guerrilha, algo inaceitável para ele.

Desconfiados de uma suposta traição por parte de Pedro, um simpatizante da causa


considerado insuficientemente engajado, e cercados pela polícia repressora, Tiago e Rosa
concorrem para que o final do filme resvale completamente para a recuperação do sentido heróico
antevisto em Pessach, a travessia: após um pedido de perdão adivinhado por gestos, os três, de
armas em punho partem para uma última ação de luta. A linguagem cinematográfica torna nesse
momento espetacular o ato heróico ao mostrar os três personagens saltando em direção à porta que,
aberta e absurdamente iluminada, torna a tudo difuso e compacto: os corpos dos heróis, o espaço, o
tempo.

Diante desse último gesto cabe uma digressão a partir do que diz Idelber Avelar (2003,
p.25): entre as características principais das narrativas pós-ditatoriais de países do Cone Sul, está a
diagnose dos impasses vividos pelo intelectual quanto à construção de uma resposta ao despotismo.
Nesse caso, elas tendem a incorporar, especialmente, a experiência reflexiva da derrota.

796
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O trajeto dessa derrota enquanto experiência social tem sido objeto de investigação em
outros campos. Numa tentativa de desmistificar a idéia que tende a considerar a luta pela revolução
nos anos 60 e 70 como sendo própria dos movimentos políticos que teriam lutado para possibilitar a
democracia Daniel Aarão Reis (1991, p.109-110; 2000, p.53-54) afirma que o cerne da derrota da
luta armada não se deve apenas à competência do aparelho repressor, mas, também, ao fato de que
em seus programas jamais coube um projeto de democratização e, sim, algo muito próximo daquilo
que seria uma ditadura da vanguarda revolucionária. Da parte dessas organizações não haveria,
portanto, a intenção de restabelecer as liberdades democráticas. Em complementação às
contribuições de Reis, observa Elio Gaspari (2002, p. 194):

Ao contrário do que sucedeu nas resistências francesa e italiana ao nazismo e até mesmo na
Revolução Cubana, onde conservadores e anticomunistas se integraram na luta contra a
tirania, as organizações armadas brasileiras não tiveram, nem buscaram, adesões fora da
esquerda. A sociedade podia não estar interessada em sustentar a ditadura militar, mas
interessava-se muito menos pela chegada à ditadura do proletariado ou de qualquer grupo
político ou social que se auto-intitulasse sua vanguarda.

Ao se colocar essas perspectivas como possibilidade de decodificação do heroísmo nas duas


narrativas, é possível compreender o enfrentamento triunfante do guerrilheiro, ainda que solitário,
como a fantasia que poderia ter sido realidade. E que não o foi, não apenas pela competência do
aparelho repressor, mas pela consciência de que algo falhou na maquinaria da resistência armada.

Contudo, independente do rescaldo realizado para dar conta dos mecanismos que levaram a
derrocada da luta e à queda daqueles heróis produzidos no calor do desbunde, a incorporação da
experiência reflexiva da derrota impõe a ambas as narrativas a problematização da atitude do
guerrilheiro a partir de uma condição que mescla resistência e tragicidade. Sendo o trágico, aqui,
visto no limite fundamental de sua manifestação: sob a perspectiva de um agente que se impõe à
uma dada ordem experimentada. A ficção, nesse caso pletora da experiência material não abre mão
do imperativo da imaginação, desse modo, o caráter trágico, representado pelo sacrifício dos
protagonistas funciona nessas narrativas, ao mesmo tempo, como mecanismo de resistência, mas
também como alento atrofiado e nostálgico em relação ao jogo com o real, pois as narrativas de
Pessach, a travessia e Cabra-Cega reclamam, de maneira distorcida e Ŗa contrapeloŗ, pela
possibilidade de que pudesse ser outra a relação da resistência com a história, especialmente a
realizada pela luta armada. Penso que no processo da experiência reflexiva se destaca a busca pela
dignificação da derrota. Daí, talvez a repetição desse gesto heróico atado ao auto-sacrifício. Uma
alternativa, sem dúvida, menos infame em relação às traições e às frustrações pelo que não deu
certo.

Sem dúvida, a presença dos fundamentos heróicos é um aspecto especial na relação entre as
duas produções. Contudo, Pessach, a travessia é narrativa consolidada na década de 60, no calor
dos acontecimentos que imobilizaram a luta armada, e Cabra-Cega é produto de uma leitura
797
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

realizada a partir de certo distanciamento temporal em relação aos eventos históricos que marcaram
aquele momento, e assim sendo, não se pode esquecer que entre ambas há todo um conjunto de
narrativas ficcionais, produzidas na década de 70 e 80, que trataram de maneira desmistificadora a
luta armada, a dissidência dos intelectuais relativamente à ordem estabelecida e o próprio heroísmo.
Sob esse prisma Cabra-Cega pode ser visto como anacrônico em relação ao tratamento observado
em tais obras, mas atual enquanto narrativa de resistência.

Assim, para finalizar, penso que o sacrifício implicado na decisão de Paulo ao final de
Pessach, a travessia ou no de Tiago, Rosa e Pedro em Cabra-Cega, além de funcionar como
alternativa para a história material é o ponto de partida para a suplementação em relação às
incertezas e ambigüidades que dela ressoam, especialmente aquelas cuja compreensão ainda se
apresenta um tanto rarefeita. Nesse sentido, o heroísmo na forma como se apresenta em Cabra-
Cega é menos um anacronismo Ŕ e o é, se visto a partir de um panorama Ŕ do que um ruído em
relação ao tempo de sua produção: tempo de utopias em descrétido, mas, também tempo de remoer
o passado.

Referências bibliográficas

ABENSOUR, M. O Heroísmo e o Enigma Revolucionário. In: Novaes, Adauto (Org.). Tempo e


História. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 205-238.

AVELAR, I. Alegorias da Derrota: A Ficção Pós-Ditatorial e o Trabalho do Luto na América


Latina. Tradução de S. Gouveia. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

BOSI, A. Narrativa e Resistência. In:______. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p. 118-135.

LUCÁKS, G. A Teoria do Romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:
Duas Cidades/Ed.34, 2000.

LUCENA, S. C. de. 21 Escritores Brasileiros: Uma Viagem Entre Mitos e Motes. São Paulo:
Escrituras, 2001.

BENJAMIN, W. Sobre o Conceito da História. In: _______. Obras Escolhidas I: Magia, Técnica;
Arte e Política: Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet.
São Paulo: Brasiliense, 1994; p.222-234

BENJAMIN, W. O Autor Como Produtor. In: ________. Obras Escolhidas I: Magia, Técnica; Arte
e Política: Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1994; p.120-136.

CONY, C. H. Pessach, a Travessia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

798
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

GASPARI. E. A Ditadura Envergonhada: As Ilusões Armadas. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.

HALL, S. Identidades Culturais na Pós-Modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e


Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

SCLIAR, M. Um seder para nossos dias.


In:www.nutrociencia.com.br/upload_files/arquivos/pascoa%2520judaica.doc+%22Moacyr+Scliar.
Acesso em 31 de fevereiro de 2004.

REIS FILHO, D. A. A Revolução Faltou ao Encontro. São Paulo: Brasiliense, 1991.

REIS FILHO, D. A. Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

799
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

DA ORIGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA À CRIAÇÃO DA POESIA EM LÍNGUA


PORTUGUESA

Thyaggo Kauwhê José Leite Mesquita (UFAM)

Resumo: Este trabalho apresenta informações sobre as origens da língua portuguesa, desde a
migração dos povos indo-europeus para o centro e ocidente europeus, estabelecendo dados
históricos e geográficos, no que diz respeito ao desaparecimento dos falares ibéricos, pela
imposição do Latim, pelo Império Romano. Também apresenta, desde tal estabelecimento da língua
latina na Península Ibérica, dados sobre a evolução do Latim Vulgar, ressaltando as influencias
estrangeiras que recebeu após a queda deste império, ao Português, expondo as etapas desse longo
processo, confirmando a existência de uma literatura de cunho oral na península, sendo firmado,
então, no século XII, o Trovadorismo, uma literatura portuguesa, por excelência Ŕ nas cantigas de
amigo Ŕ e influenciada pelos franceses Ŕ cantigas de amor e escárnio e maldizer.

Palavras-chave: literatura, história, língua portuguesa e Império Romano.

Abstract: This paper presents information on the origins of the Portuguese language, from the
migration of Indo-European peoples to the central and Western Europe, providing historical and
geographical data, in relation to the disappearance of the Iberian dialects, by the imposition of Latin
in the Roman Empire. Also present, from such establishment of the Latin language in the Iberian
Peninsula, data on the evolution of Vulgar Latin, emphasizing foreign influences received after the
fall of this empire, the Portuguese, exposing the steps in this long process, confirming the existence
of a literature oral imprint on the peninsula, being signed, then in the twelfth century, the
Troubadour, a Portuguese literature par excellence - the songs of friend - and influenced by the
French - songs of love and scorn and cursing.

Keywords: literature, history, portuguese language and the Roman Empire.

Feliciano Ramos, no compêndio literário História da Literatura Portuguesa, com dados


históricos, geográficos e lingüísticos, trata da origem da língua portuguesa, narrando a tomada da
Península Ibérica pelos romanos, sendo fator iniciante para o ciclo evolutivo do idioma latino ao
português e à sua literatura, esta, tendo como herança a literatura primitiva, oral, que existia na
região. Em seguida, analisa e comenta a origem das modalidades das cantigas trovadorescas: de
amigo, de amor e de escárnio e maldizer, sempre verificando a sua ancestralidade, logo, a influência
sobre a literatura atual. Isto reunido na nona edição de História da Literatura Portuguesa, publicada
em 1967, pela editora Cruz-Braga, na capital de Portugal, Lisboa.

Segundo RAMOS, existiam línguas antes da chegada do Império Romano à Península


Ibérica e que elas caíram em desuso com a colonização da região, o Latim Vulgar sofreu um
profundo processo evolutivo desde a sua instalação na Península e, especificamente na literatura,
portanto, já existia, uma literatura oral anterior ao Trovadorismo.

Antes de tudo, situemos os povos e as línguas ibéricas. Em tempos remotos, meados do


segundo milênio a. C., terminava o ciclo migratório, de leste para oeste, dos povos falantes de

800
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

línguas indo-europeias, entre elas o helênico, o românico, o germânico, o céltico e o eslavo, este
englobando as línguas atuais do oriente europeu. Os celtas, especificamente, ocuparam a Europa
Central e outras regiões, chegando, no século III a. C., a ocupar mais da metade do território
europeu. De acordo com a região ocupada, são denominados celtíberos (celtas ibéricos), gauleses
(na França), bretões (na Grã-Bretanha) e gálatas (na Turquia). Na Ibéria, tal povo foi cada vez mais
suprimido devido à expansão romana, de maneira que nenhuma língua céltica sobrevivesse.
Manteve-se na Galiza, até fins do século VII d.C. e nas regiões da atual Irlanda, Grã-Bretanha e
norte da França: o irlandês é uma língua oriunda do céltico. O mapa situa claramente esses povos no
segundo milênio a. C.:

Algumas línguas da Europa no II milênio a.C.

Povos de línguas indo-européias: germanos, eslavos, celtas, úmbrios, latinos, oscos, dórios.
Povos de origens diversas: íberos, aquitanos, lígures, etruscos, sículos.
Fonte: http://www.linguaportuguesa.ufrn.br/pt_2.1.php. Acessado em 03.07.10, às 22:21.

No século III a. C., de acordo com Feliciano Ramos, Cornélio Cipião, representando o
Império Romano, disputava com Aníbal, general dos cartagineses, o domínio da Ibéria. Os
romanos, para os que ali habitavam, eram os que tinham uma civilização superior a sua, fato que
facilitou a imposição da cultura romana à população indígena e a neutralização ou domínio
metodicamente.

De fato, os variados povos tinham absorvido, completamente, os costumes romanos, a ponto


de deixar de falar sua própria língua para falar a dos vencedores, o Latim Vulgar. Por sua vez, era o
idioma dos soldados, dos viajantes, dos homens de negócio, logo, o domínio romano era expandido
rapidamente na região ibérica, contribuindo para o desuso dos falares locais, embora houvesse
localidades em que tais falares eram irredutíveis à opressão romana, por exemplo, a língua basca Ŕ
dialeto dos íberos. Além disso, as tais línguas ibéricas pré-românicas eram, ou tinham um sistema
lingüístico rudimentar em comparação à língua latina, que, pouco a pouco, tornou-se a língua de
inteligência, dos negócios e da administração.

No que diz respeito à produção cultural, observamos a diferença entre Latim Vulgar e Latim
Clássico. Enquanto este é erudito, sintético, por excelência, escrito (sermo eruditus), aquele é

801
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

popular, vernáculo, analítico, a língua falada do Império (sermo plebeius). Entretanto, tanto um
quanto o outro contribuíram, como observa o filósofo Sêneca e o pedagogo Quintiliano, para o alto
nível cultural ao qual a atual Hispânia chegou. Tal processo de expansão do Império e colonização
da Península resultaria na fixação permanente do latim naquele espaço, continuando seu longo e
profundo processo evolutivo.

Após a queda do Império Romano, povos que habitavam a região da Germânia, atualmente
Alemanha, começam a migrar para os montes Pirineus (cordilheira entre França e Espanha). Os
primeiros são os Alanos, os Suevos e os Vândalos, mas foram os Visigodos que conseguiram
dominar toda a região ibérica no século V:

Fonte: http://www.culturabrasil.pro.br/imagens/invasoesbarbaraseaquedaderoma.jpg. Acessado em 10 de junho de


2010, às 20:03.

Logo, assim como os povos pré-romanos se adequaram, sem conflitos, à cultura romana,
temos os povos pós-romanos, como assinala RAMOS:

Não obstante terem alcançado o domínio da administração peninsular, foram os Visigodos


assás modelados pela cultura luso-romana; quanto ao seu idioma, bem depressa o
esqueceram, dando primazia ao Latim, que logo assimilaram. Venceram no setor político,
mas eram poucos para que pudessem impor a sua língua, que foi facilmente asfixiada pelo
Latim Vulgar. (RAMOS, 1967, p.8).

Um fato curioso é o que garantiu a ampliação da Língua Latina entre esses povos: ŖA
conversão dos Suevos ao Cristianismo, em 448, sob a inspiração do rei Requiário, o primeiro
monarca católico da latinidade, e dos Visigodos no tempo de Recáredo, em 589, ajudou a consolidar
a língua romanaŗ . (ALMEIDA, Fortunato apud RAMOS, Feliciano. Histñria da Igreja em Portugal,
vol. I. p. 58).

O fato de a língua latina ter se sobressaído aos falares estrangeiros, não quer dizer que estes
não contribuíram com aquela. Referente aos aproximadamente 300 anos que, especialmente, os

802
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Visigodos permaneceram na Ibéria, o autor cita uma lista de nomes próprios e palavras de cunho
militar, além de peças de vestuário e utensílios domésticos: Luis, Carlos, Hermenegildo, Gondomar;
guerra, trotar, marechal, galope, dardo, espeto, trégua, espora, estribo; coifa, nastro, feltro, toalha,
frasco, agasalho. Ressaltando que deixaram herança no léxico, mas não influíram no processo
evolutivo do vernáculo romano.

Após essa primeira leva de povos bárbaros, no século VIII, RAMOS afirma que os árabes,
passando pelo estreito de Gibraltar, ocuparam a Península Ibérica, convivendo com o povo nativo,
em duas modalidades (moçárebe-arabizado; mudéjar-cristianizado), por cerca de 700 anos. Os
principais foram os Mouros. Permaneceram na região até meados do século XV, quando foram
expulsos por Afonso III, conforme o mapa abaixo:

Fonte: http://www.prof2000.pt/users/forma.tic/constinternet/cfpvnp/2003/grupo07/muculm1.jpg. Acessado em14 de


junho de 2010, às 15:46.

Confirmando tal tese, Rodolfo Ilari diz:

[...] pela Reconquista, esses reinos ampliaram progressivamente seus territórios à custa dos
árabes, presentes na Península desde o século VIII. Houve, na realidade, várias
reconquistas, que resultaram na formação dos reinos de Portugal, Castela e Aragão; o
processo completou-se em 1492, quando Castela incorporou o ultimo estado árabe, o reino
de Granada. Nessa mesma data, Castela e Aragão uniram-se formando o reino da Espanha.
(ILARI & BASSO, 2007, p. 18).

Assim como os germânicos, os árabes não influenciaram no funcionamento da língua


romana, mas, é claro, deixaram sua contribuição ao léxico do Latim Vulgar. São recorrentes no sul
peninsular, pois estão relacionados à vida campestre, revelando o modo de vida árabe: azeite,
azenha, nora, açude, alface, algodão, acelga, bolota, arroz, álcool, alecrim, além dos vocábulos:
anafil, arrabil, alaúde, adufe, tambor, rabeca, que eram instrumentos de música de alto valor para os
Mouros (mudéjar). E da convivência entre latinos e árabes, surgiram alguns gêneros literários,
sendo o mais importante, a jarcha:

803
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Vayse meu corachón de mib:


ya Rab, ¿si me tornarád?
¡Tan mal meu doler li-l-habib!
Enfermo yed, ¿cuánd sanarád?1

A partir dos fatos ocorridos com o Latim Vulgar (sermo plebeius), originou-se uma língua
viva, popular, com livre evolução, sem preocupações gramaticais. Tal vernáculo encontrava-se
bastante distante da língua romana clássica, conforme os advérbios latine (à latina, ao estilo latino)
e romanice (à romana, ao estilo romano, popular). O autor data do século IX um idioma bem
construído para um instrumento comunicativo, o Romance. É com base neste idioma que RAMOS
afirma a fase mais arcaica do português, o Português proto-histórico, no que diz respeito à fala.
Quanto à escrita, tal fase do português é observada em documentos em Latim Bárbaro, que era um
sistema artificial usado quando os tabeliães não sabiam o Latim Clássico, língua oficial. De fato,
usavam vocábulos característicos da fala, aproximando-os ainda mais à língua corrente,
encontrando, nesses textos, expressões da primitiva fase do português, como árvores, basílica,
cálice, eterna, fundamos, fonte, terra, vila etc.

ŖContudo, nenhuma lei dionisina se conhece que obrigue os notários a usar a língua
nacional. Continua a concorrência entre o português e o latim medieval, com crescente
vantagem para o primeiro. Entregue ao seu destino histórico, o português vai tornar-se o
instrumento glorioso de uma das mais antigas literaturas do Ocidenteŗ (RAMOS, 1967, p.
22).

De acordo com o autor, em meados do século X, simultaneamente a essa dualidade


linguística, houve um conflito entre o conde Nuno Mendes, que governava a região do Condado
Portucalense e o filho de Fernando Magno, o rei Garcia, cujo domínio abrangia simultaneamente a
Galiza e Portugal. Tal conflito conduzira, mais tarde, à independência de Portugal. A partir daí, tal
região ocidental da Península Ibérica (Portugal), volta a ser integrada, assim como as Astúrias e
como a Galiza, ao reino de Leão. Este reino, com o de Castela, estava sob domínio de Afonso VI
que, em 1095, deu como dote, a região do Condado ao noivo, de sua filha, D. Teresa. Com a morte
do marido desta, ela governou a região, subordinando-se aos grandes da Galiza, em desagrado aos
barões de Entre-Douro-E-Minho e ao seu próprio filho, Afonso Henriques, que tomou posse do
Condado, fundando a nação portuguesa, como se observa no mapa abaixo:

1
ŖMeu coração se parte de mim:/Oh, Deus, acaso vai voltar?/Esta dor pelo meu amado dói tanto!/Está doente,
quando há de sarar?ŗ Cf. ILARI e BASSO, 2007, p. 19.

804
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Fonte:http://lh3.ggpht.com/c.alberto.vaz/R9AVZELuJ0I/AAAAAAAAARg/ImRvotdDsLc/APennsulaIbricanosfinaisdo
sculoXIII_. Acessado em 18 de junho de 2010, às 13:08.

RAMOS afirma, especificamente na Literatura, já existir desde antes da expansão do


Império Romano no ocidente uma música popular. Segundo ele, o geógrafo Estrabão, do século
XII, afirma que os povos da Galiza cantavam e dançavam ao som de flautas, nos banquetes. Assim
também faziam os soldados que formaram o exército de Aníbal, ao cantarem canções de sua terra
natal. Seu conteúdo era de cunho não religioso e são cantadas até hoje em romarias ou em trabalhos
no campo.

Assim observa SPINA:

A poesia de Entre-Douro-E-Minho, se se desenvolve sob o estímulo interior e sob as


sugestões formais da poesia lírica da Provença, não nasceu sob esta inspiração, pois as
virtudes poéticas e musicais destas populações do noroeste da Península Ibérica são de uma
ancianidade anterior a todos esses movimentos poéticos da época do feudalismo. Estas
qualidades inatas dos galegos e dos lusitanos do Norte vêm acusadas pelos conhecedores da
região: desde antes de Cristo, com Diodoro Sículo; Estrabão, Sílio Itálico, S. Jerônimo, S.
Martinho Dumiense, o próprio Santo Agostinho referem-se às virtudes artísticas destes
povos, especialmente para a dança e para a música. (SPINA, 1966, p. 13).

Emparelhados aos cânticos litúrgicos, havia os cantos profanos de inspiração religiosa que
perduraram, por longo tempo, de forma oral. Alguns dos quais as moças (raparigas), demonstravam
a saudade do noivo ausente, expressão de alegrias ou suas queixas de amor. Isto posto, os jograis
(nome dado aos que fizeram da música, profissão) afeiçoaram-se e a aperfeiçoaram desta lírica:
Ŗ[...] a poesia cortês da França meridional nas terras galego-portuguesas desde a juventude de D.
Sancho I, vem estimular e aperfeiçoar a primitiva criação poética Ŕ representadas pelas cantigas de
amigoŗ (SPINA, 1966, p. 14), levando-a para a Corte, onde foi recebida com grande simpatia e se
805
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

tornou o centro da cultura profana. A igreja condenava a conduta destes cantores por levaram uma
vida irregular e profana. Tal poesia indígena, popular da península é considerada autóctone, sem
alguma influência provençal, mas sob influência árabe e judaica, provenientes da Andaluzia e
Castela.

Ratificando a afirmação de SPINA, RAMOS afirma que as cantigas de amigo são por
excelência, nacionais e resistiram a todas as influências estrangeiras.

Quando, a princípio, a poesia popular possuiu o advento da escrita, passou-se ao estilo de


composição artística e literária, assinalando, assim, o nascimento da literatura portuguesa, sendo
várias as discussões a respeito da origem do nome que a definirá: Trovadorismo. ŖO trobo profano
seria um canto parodístico e coreográfico, e recebia o nome de versus. As formas litúrgicas
compreendiam a ladainha, a sequência, o hino; as profanas compreendiam o rondel, e influenciaram
com seu fundo popular a rítmica e a métrica litúrgicas.ŗ (NEMÉSIO, apud AZEVEDO FILHO,
1961, p. 9). ŖEstá reconhecido hoje que, pelo menos para a designação do termo artístico, o étimo
tropare é o único aceitávelŗ ( LAPA apud AZEVEDO FILHO, 1956, p. 79).

Referente ao seu conteúdo, o eu - lírico é feminino, remontando à vida militar e religiosa dos
séculos XII e XIII, como a Cruzada de Reconquista e as próprias romarias. Atesta AZEVEDO
FILHO: ŖRealmente, quando a lírica occitânica (do sul da França) penetrou na Galiza e em
Portugal, aí encontrou as cantigas de amigo, poesia primitiva, popular e autóctone, associada à
música e à coreografia, e que tinha a mulher como agente. A mulher era o sujeito do enunciado
poético, ou o sujeito da significação textual, embora o homem fosse o sujeito da enunciaçãoŗ
(AZEVEDO FILHO, 1983, p. 19). A falta de militares na época fez com que os jovens deixassem
sua terra para os campos de batalha, contra os Mouros (domínio árabe), fazendo com que a
namorada ficasse inquieta e triste e tendo como figura opositora, a mãe. A idéia de nacionalidade
das cantigas de amigo é valorada com a referência a ambientes campestres e seus costumes: a
árvores, flores, aves, fontes, vulgares na fauna e flora portuguesas, como se observa na cantiga de
D. Dinis: ŖAi flores, ai flores de verde pinhoŗ. Também percebemos a presença de elementos
marítimos na poesia, referindo-se ao mar. Em barcarolas, citam-se embarcações, o mar e regiões
costeiras, observados na poesia de Martin Codax: ŖMinha irmana fremosa, treides comigoŗ . Além,
ainda, o que a caracteriza como poesia popular é o vocabulário simples na expressão dos
sentimentos ou sinonímia.

Referente à sua forma, as antigas de amigo dividem-se em três: de maestria, ou mestria; de


refrão; e paralelísticas. As primeiras não possuem refrão e o conteúdo ou significado tem a estrutura
da poesia provençal. As segundas são estruturas já populares, mas ainda com feições estrangeiras,
no que diz respeito ao conteúdo. As últimas possuem uma estrutura simples (rimas e estrofes
constantes, além do estilo Ŗleixa pren‖ (SARAIVA & LOPES, 2001, p. 58)) sem influência da
poesia provençal, revelando a influência da própria poesia popular:

806
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Não trouxe a Provença, portanto, a sua língua para a lírica galego-portuguesa, como
ocorrera em relação à Itália [...]. Com efeito, tudo nos indica a existência de uma antiga
lírica peninsular, espécie de lírica pré-trovadoresca, vinda do norte para o sul, ao tempo da
Reconquista, fundindo-se com a técnica poética dos árabes, mas que tem as suas origens
perdidas na noite do tempo. (AZEVEDO FILHO, 2001, p. 19).

A influência francesa não foi tardia na Península. Com o conde Afonso Henriques, filho de
D. Teresa, franceses foram recebidos, por ele, por terem uma vasta carga intelectual. Também, D.
Sancho I admitiu a entrada de franceses, já que Portugal era, na época, pouquíssimo povoado. Tais
relações intelectuais eram cada vez mais favorecidas com as relações comerciais, no século XIII.
Em meados deste século, navios franceses desembarcam no Douro. São tão grandiosas que, mais
tarde, Felipe VI oficializou a rota comercial entre as duas nações. Principalmente, Afonso III viveu
em território francês por 12 anos, trazendo consigo o gosto por tal cultura, animando a imitação da
poesia provençal e protegendo quem a cultivava. Andou por cortes hispânicas, especialmente no
castelo de Afonso X, que foi o centro de irradiação do provençalismo literário.

Cantigas de amor são, segundo RAMOS, uma fusão do lirismo provençal com as canções
populares da Península Ibérica, mas que, ao chegarem na região, sofrem alterações significativas.
Na Provença, há uma vassalagem amorosa. O homem deveria ocultar o nome da mulher, pois esta
seria ocupante da corte e seria uma senhora casada. Em Portugal, a figura idealizada é moça
(rapariga) solteira, o homem apaixona-se por ela, faz-lhe a corte e chega a pensar que a escolhida
poderá vir a ser sua noiva. Há, na verdade, tanto na França quanto em Portugal, um cerimonial
psicológico, onde a paciência, timidez e a discrição são características da poesia amorosa, deveras
desconcertante, revelando a falta de autenticidade das poesias lírico-amorosas, pela falta de emoção.
Em suma, encontramos nas cantigas de amor, elementos eruditos, riqueza de vocabulário, maior
descrição e análise do sentimento amoroso, tudo isso, gerando uma poesia contrafeita e de índole
artificial.

Há, ainda, outra espécie poética que floresceu em meados do século XIII. São as cantigas
satíricas, de tom reflexivo sobre o cotidiano, exprimindo aspereza, indignidade e sentimentos
instintivos, carregadas de humor, relacionadas à maledicência e à imoralidade da vida cotidiana. Os
poetas satíricos pouco se utilizavam de eufemismos, na construção da poesia, entretanto, mais tarde,
ver-se-á alteração semântica das palavras. Estes documentos são reais fontes históricas para o
estudo da vida cotidiana na era medieval. Há alguns poetas que, em suas poesias, ridicularizam as
mulheres, geralmente por serem Ŗvelhas e loucasŗ e, simultaneamente, tratam com humor a teoria
do amor cortês e as exigências da vassalagem amorosa. A exemplo, temos a de João Garcia de
Guilhade: ŖAi, dona fea, foste-vos queixar / que vos nunca louvřen o meu cantar; / mas ora quero
fazer um cantar / em que vos loarei todavia; / e vedes como vos quero loar: / dona fea, velha e
sandia!ŗ .

Em seguida, com a alteração nas preferências e com a preocupação dos monarcas com a
vida política e com os problemas econômicos, acabou por cair em crise a Corte enquanto centro de

807
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

irradiação cultural. Surgiu, então, uma arte burguesa, voltada para aquela sociedade, experiente,
mais ligada à realidade. A produção literária provençal acabou decaindo, a princípio, na Provença, e
depois, entrou em decadência em Portugal. Como exemplo, temos o próprio Afonso X, que, por ter
como língua o castelhano, não dá mais importância à poesia galego-portuguesa. Tudo isto, enfim,
conforme RAMOS, somado à importância dada às novelas de cavalaria, absorvendo a imaginação
do homem medieval, impondo, mais ainda, os valores religiosos, causou o desaparecimento da
poesia trovadoresca.

Referências bibliográficas:

AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. História da Literatura Portuguesa: a poesia dos


trovadores galego-portugueses. Volume I. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro; Edufal: Maceió,
1983, p. 13 Ŕ 32.

ILARI, Rodolfo, BASSO, Renato. O português da gente: a língua que estudamos/ a língua que
falamos. 1ª ed. São Paulo: Contexto, 2007, p. 18 Ŕ 19.

RAMOS, Feliciano. História da Língua Portuguesa. 9ª ed. Lisboa: Livraria Cruz-Braga, 1967, p.
5 Ŕ 65.

SARAIVA, Antônio, LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. 17ª ed., Porto Editora:
Porto - Portugal, 2001, p. 17 Ŕ 69.

SPINA, Segismundo. Presença da Literatura Portuguesa. 2ª ed. Difusão Européia do Livro: São
Paulo, 1966, p. 11 Ŕ 19.

<http://www.linguaportuguesa.ufrn.br>, acessado em 03 de julho de 2010, às 22:06.

<http://www.linguaportuguesa.ufrn.br/pt_2.1.php>, acessado em 03 de julho de 2010, às 22:21.

<http://www.culturabrasil.pro.br/imagens/invasoesbarbaraseaquedaderoma.jpg>, acessado em 10 de
junho de 2010, às 20:03.

<http://www.prof2000.pt/users/forma.tic/constinternet/cfpvnp/2003/grupo07/muculm1.jpg>,
acessado em 14 de junho de 2010, às 15:46.

<http://lh3.ggpht.com/c.alberto.vaz/R9AVZELuJ0I/AAAAAAAAARg/ImRvotdDsLc/APennsulaIb
ricanosfinaisdosculoXIII_>, acessado em 18 de junho de 2010, às 13:08.

808
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

REGIONALISMO E INTERTEXTUALIDADE NAS PRÁTICAS DISCURSIVAS POPULARES


EM AS PELEJAS DE OJUARA: A VERDADEIRA HISTÓRIA DO HOMEM QUE VIROU BICHO,
DE NEI LEANDRO DE CASTRO

Tiago Barbosa Souza (UFC)

Introdução: As Pelejas de Ojuara conta a história do caboclo José Araújo Filho, um caixeiro
viajante que levava uma vida tranquila entre o trabalho e as farras em dias de folga, nas quais bebia
cachaça, tocava viola, improvisava versos e conhecia intimamente as meretrizes dos bordéis das
pequenas cidades por onde passava. Houve uma reviravolta em sua vida quando ele desonrou a
turca Dualiba, Ŗuma mulher chegada ao feio. Mas muito bem servida de bundaŗ (CASTRO, 1986,
p. 16), cujo pai o obriga a desposar. Viveu durante sete anos de submissão entre a exploração do
sogro no armazém, onde era guarda-livros, e as extravagâncias sexuais da exigente esposa, sendo
zombado e chamado de Ŗmanicacaŗ 1 pelas costas por toda a cidade de Jardim dos Caiacós.

No dia em que descobre a zombaria, ao ser caçoado pelo barbeiro da cidade, José Araújo
simplesmente se transforma. Segundo passou a contar o povo, ele mudou de voz, aumentou de
tamanho, ficou mais forte e poderoso. Nesse momento morreu o Ŗmanicacaŗ (CASTRO, 1986, p.
11) para dar surgimento a Ojuara Abaporojucaiba, o destemido cavaleiro do sertão que inicia então
uma saga pelo Rio Grande do Norte, procurando desafios, aventuras, boas histórias, cachaça e
mulheres. A mesma magia de sua transformação ele encontrará nesse vasto percurso de suas
peripécias.

O romance é uma combinação exuberante de crendices, lendas populares, mitos e poesia


oral, magistralmente harmonizados pelo narrador1. Nele, temos contato com as diversas práticas de
perpetuação das lendas antigas. O que nos remete até mesmo à origem ameríndia do caboclo
Ojuara, em cujo discurso são encontrados o vocabulário, as posturas e um exuberante acervo de
lendas tradicionais, todas com teor marcadamente heróico e fantástico. Sobre esse aspecto tratou
Luís da Câmara Cascudo (1984a) em Literatura Oral no Brasil, constatando que nas lendas
indígenas Ŗsentem-se um sabor de História fantástica, vinda de geração a geração, como uma
herança miraculosaŗ , e que nelas Ŗhá um ambiente herñico, quase sempre. Quase sempre o
sobrenatural é indispensávelŗ ( CASCUDO, 1984a, p. 98).

Assim percebemos As Pelejas de Ojuara como representativa dessa rica atmosfera mítica,
inicialmente dos povos indígenas, que foi acrescentada às mitologias clássica ocidental e africana

1
1. Regionalismo: indivíduo covarde, pusilânime, fraco; medroso. 2. Regionalismo: indivíduo imbecil, tolo; bobalhão,
palerma.

809
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

através da colonização européia e que hoje se encontra tão vastamente na literatura oral popular
brasileira. Nesse sentido, encontramos alguns mitos antigos ocidentais latentes nos contos populares
referidos na obra, se compreendermos esse processo como tratou Cascudo (1984a): ŖO mito passa
ao estado de lenda e a lenda se torna conto. […] um conto popular é um fragmento ou material total
de uma lenda, esta de um mito primitivo.ŗ ( CASCUDO, 1984a, p. 104)

Consideramos, então, que a forma como os acontecimentos extraordinários do enredo são


narrados, assim como a caracterização dos seres encantados representam uma particularidade, o que
evidencia o teor regional dos contos na obra. Assim, segundo Cascudo (1984a),

O mito, presente pelo movimento, pela ação, pelo testemunho humano, pode conservar
alguns caracteres somáticos que o individualizem, mas possui costumes que vão mudando,
adaptados às condições do ambiente em que age. Os animais fabulosos são todos assim.
Processos de encantação, desencantação, razões do castigo, fim da punição, forma, marcha,
grunido (sic), canto, rosnado, mudam, de região em região. (CASCUDO, 1984a, p. 52)

Tomando a compreensão de José Maurício Gomes de Almeida (1980), segundo a qual, Ŗa


arte regionalista stricto sensu seria aquela que buscaria enfatizar os elementos diferenciais que
caracterizam uma região em oposição às demais ou à totalidade nacionalŗ (ALMEIDA, 1980, p.
47), entendemos que As pelejas de Ojuara é um romance de traços regionais, pois enfatiza as
crenças, os usos e os costumes de uma região, não só do Rio Grande do Norte, mas de todo o
Nordeste.

Poesia no discurso popular


O contato dos personagens com os diversos gêneros populares

Os personagens parecem estar constantemente envoltos em uma atmosfera poética. Estão


sempre prontos para proferir poemas tirados da memñria ou improvisar. Os Ŗpapudinhosŗ no bar,
para expressar seus sentimentos, encetam repentes. O vaqueiro triste, depois de uma derrota, abóia.
Há sempre um poeta de prontidão para tirar mote e glosa de determinada situação. Nesse ambiente,
mesmo quem não é poeta arrisca citar versos conhecidos, buscados na memória. Diálogos podem se
transformar em pelejas. A narrativa parece facilmente passear entre um folheto de cordel e a
Ŗrealidadeŗ dos personagens.
José Araújo era zombado por causa de um episódio excêntrico: o moleque Zé Pretinho,
responsável por Ŗbrecharŗ o caboclo em sua intimidade com a esposa e repassar o que viu para os
fofoqueiros de plantão da cidade, assistiu ao momento em que Araújo depilava Dualiba com uma
navalha. O ocorrido logo virou uma das glosas do promotor Antônio Gerôncio, mais conhecido por

1
Dado o teor da análise desenvolvida em alguns pontos do presente estudo, uma distinção mostra-se necessária:
convencionamos utilizar o termo Ŗnarradorŗ designando o narrador d‘As Pelejas de Ojuara, e os outros narradores, das
pequenas histñrias encontradas na obra ou os narradores eventuais populares, o termo Ŗcontadorŗ.

810
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Tota de dona Biga, sem as quais Ŗtodos os homens de Jardim dos Caiacñs se suicidariam por tédioŗ
(CASTRO, 1986, p.12). O mote veio de pronto:

O guarda-livros coitado
É barbeiro de buceta. (CASTRO, 1986, p.13)

A prática dessa poesia que está sempre prestes a ser proferida, que flui naturalmente na fala
dos personagens, representa um pouco o ambiente típico do sertão nordestino, onde a expressão oral
tem muita força e a poesia metrificada encanta a todos. Mas o romance de Castro vai além. Por
vezes os diálogos dos personagens permanecem em prosa, mas apresentam uma versificação.
Visualmente, o texto é o mesmo, mas o ritmo gerado por sua leitura revela a métrica.

Os versos na fala do povo

É curioso observar ainda a forma magnífica como o narrador faz Ojuara transitar entre sua
história e os vários contos tradicionais, convivendo nos enredos de cada um deles e dialogando com
seus personagens típicos. Entre esses contos destacam-se ainda histórias de cordéis nas quais o
caboclo ingressa ou, melhor dizendo, as quais se estendem ao caminho de Ojuara. Por exemplo, o
herói encontra Edmundo, não o protagonista do folheto Romance do Pavão Misterioso, de João
Melquíades Ferreira da Silva, mas o fabricante do pavão:

Assim se encontrava [Ojuara], deitado no chão forrado de linho, [...] quando viu um bicho que
se aproximava pelos ares. Era imenso e silencioso. Ojuara levantou-se, todo alerta. O bicho
esquisito percebeu sua presença, [...] e aí mudou de rumo, veio vindo em sua direção.
De perto, a coisa avoante tinha a cauda como um leque, pescoço, cabeça, bico e as asas como
um pavão, voava igual ao vento para qualquer direção. [...]
- Não me diga que você é Evangelista! Ŕ Disse Ojuara.
- Sou Edmundo, o engenheiro que fez o pavão misterioso. Você conhece o Evangelista de
onde?
- Quem não conhece Evangelista, homem? Ŕ Ojuara estava ancho da vida.
- Se você se encontrar com ele não vai reconhecer.
- Que foi que houve?
- Creusa morreu e Evangelista ficou leso da cabeça.
- Mesmo? Morreu de que, a formosa Creusa?
- De parto.
- Triste sina. Depois de sofrer nas unhas do pai, inda morre de parto, a coitadinha.
- A fortuna ia em viagem quando a desgraça já vinha.
- Enquanto a fortuna dorme, a desgraça não descansa.
- O mel por ser bom demais, as abelhas dão-lhe fim.
- Porém não há bem que ature e mal que nunca se acabe.
- Que mal lhe pergunto, como é mesmo a sua graça?
- O meu nome é Ojuara, seu criado sempre às ordens.
- No pavão tem dois lugares. Tá querendo ir embora?
- Tou carecendo, Edmundo. São Saruê é cutuba, mas o sertão é melhor.
- Então vambora, Ojuara. Deixo você no sertão e depois pego o meu rumo. [grifo nosso]
(CASTRO, 1986, pp. 66-67)

Primeiramente, observe-se que Ojuara deixa claro que Ŗtodo mundoŗ conhece Evangelista.
Quer dizer, no meio em que vive o caboclo, não é normal que se ignore a história do Pavão
Misterioso. E isso vai além do conhecimento de uma história ou de um personagem ilustre.
811
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Conhecer Evangelista é participar ativamente de sua construção e da perpetuação de sua história. A


familiaridade com o personagem é como que pessoal, ou como se ele realmente existisse em outro
lugar, mas em todas as épocas, já que se tem consciência também de sua antiguidade. Dessa forma,
Roldão e Carlos Magno passeiam livremente pelo Nordeste brasileiro como guerreiros destemidos,
exemplos vivos de bravura para o homem do sertão. Não espantaria se o herói os tivesse encontrado
também em suas andanças.

A apropriação do folheto pelo narrador permite que ele dê continuidade ao que havia sido
um Ŗfinal felizŗ da histñria, ultrapassando-a. Em certo ponto, o diálogo de Ojuara com Edmundo
parece ingressar em um folheto de fato (passagem destacada no trecho citado anteriormente),
quando eles passam a conversar em versos heptassílabos. Como se a atmosfera poética houvesse
sido trazida pelo Pavão Misterioso e seu condutor, arrebatando os dois personagens que então se
entregam a ela e seguem viagem.

Mitos, lendas, contos: referências no sertão

A permanência do ciclo carolíngio

Sobre o ciclo carolíngio da canção de gesta francesa, que pode ser verificado ainda hoje na
literatura popular, neste caso o cordel, Martine Kunz (2001) esclarece, em seu livro Cordel: a voz
do verso:

Mais de 1200 anos após a Batalha de Roncesvales, travada na Espanha em 15 de agosto de


778, os Pares de França permanecem como modelos de valentia nos versos da literatura de
cordel. Que sejam puras ficções ou que sua existência hesite entre história e lenda, Roldão e
Oliveiros resistem. O sobrinho do Imperador Carlos Magno e seu fiel companheiro
Oliveiros cavalgam, intrépidos e imortais, as sextilhas heptassílabas de Leandro Gomes de
Barros, Antônio Eugênio da Silva, Marcos Sampaio e outros, emblemas de coragem e
altivez, valores em apreço no meio do povo sertanejo. (KUNZ, 2001, p. 73)

As histórias dessas gestas antigas correm pelo sertão nordestino no Brasil, servindo de
exemplo para o cavaleiro bravo, honrado e destemido, exatamente como é Ojuara. Esses
personagens são imortalizados no imaginário popular. E por isso é tão inadmissível que eles sejam
desconhecidos por alguém. Em livro destinado a observar esse tipo de permanência, Mouros
Franceses e Judeus, Câmara Cascudo (1984b) declara que

Não conhecer a História de Carlos Magno era ignorância indesculpável, indigna dos bardos
sertanejos, mesmo analfabetos. Faziam-na ler, folha por folha, escutando, aprendendo,
entusiasmando-se, decorando, repetindo as façanhas, transformando-as em versos, em
perguntas fulminantes e respostas esmagadoras. (CASCUDO, 1984b, p. 46)

Sobre essa permanência da história de Carlos Magno e os Doze Pares de França referida por
Kunz (2001), explicou Cascudo (2005) em Vaqueiros e Cantadores:

812
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

―HISTÓRIA DO IMPERADOR CARLOS MAGNO, E DOS DOZE PARES DE FRANÇA‖.


Traduzida do castelhano em português, era o grande livro de História para as populações do
interior. Nele espalhava-se a velha cavalaria andante com seus lances de heroísmo incrível
e de audácia sobre-humana. Os cantadores aproveitaram-se abundantemente do repositório
de andanças inverossímeis de guerras inacabáveis. Carlos Magno, Roldão, Oliveiros, os
duques, mouros, reis bárbaros, corriam e correm de memória em memória numa
continuidade de admiração profunda. (CASCUDO, 2005, pp. 134-135)

A continuidade dessas lendas adaptadas ao contexto cultural do sertão revela um traço de


universalidade através do arquétipo do herói e dos ideais cavalheirescos que sobrevivem e que se
expressam tão fortemente dentro do ambiente regional típico do sertão nordestino, sobretudo se
considerarmos a contribuição de Lígia Chiappini, que esclarece que Ŗé o espaço histñrico-
geográfico entranhado e vivenciado pela consciência das personagens que permite concretizar o
universalŗ ( CHIAPPINI, 1995, p. 157).

O mito de Eldorado

Em outro momento do enredo, o caboclo já havia viajado pelo ar, quando visitou São Saruê,
um país maravilhoso onde não se conhece a pobreza ou a escassez. Onde as pessoas vivem
basicamente da natureza, que é magicamente exuberante. Com rios de leite e de mel, montanhas de
rapadura, plantas com frutos de água e muitas outras profusas riquezas. Como mostra o folheto de
Manuel Camilo dos Santos1:

O povo em São Saruê


Todo tem felicidade
Passa bem, anda decente,
Não há contrariedade,
Não precisa trabalhar
E tem dinheiro à vontade. (SANTOS apud ABREU, 2005, p. 122)

O curioso é observar que a analogia quase inevitável que se faz com o mito do Eldorado não
se explica somente pela perfeição do misterioso país, ou pela satisfação do povo, mas também pela
sua forma inacessível através da ciência ou com auxílio de qualquer cálculo, mapa ou bússola. A
única forma de acessar São Saruê, assim como Eldorado, é pela Providência. Manuel Camilo dos
Santos, autor e personagem do folheto Viagem a São Saruê viajara com o vento:

Iniciei a viagem
às duas da madrugada
Tomei o carro da Brisa
Passei pela Alvorada
Junto ao quebrar da barra
Eu vi a Aurora abismada.
..........................................

Surgiu o dia risonho


Na Primvera imponente

1
Viagem a São Saruê Ŕ Manuel Camilo dos Santos (PB)

813
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

As horas passavam lentas


O espaço incandescente
Tornava a Brisa mansa
Em um mormaço dolente. (SANTOS apud ABREU, 2005, pp. 120-121)

E assim viajou também Ojuara, montado na mula Buceta:

[...] lá pelas duas da madrugada, chegou aquele vento grosso, levantou uma nuvem de
poeira e […] foi carregando a mula e seu cavaleiro. Era o carro da brisa, veloz que só a
molesta. Ojuara passou pela alvorada e junto do quebrar da barra viu a aurora abismada.
[…] Com o nascer do sol, Ojuara passou do carro da brisa para o carro do mormaço.
(CASTRO, 1986, p. 57)

Além da clara intertextualidade exercida por Castro (1986), colocando Ojuara no lugar de
Manuel Camilo, o personagem do folheto, é preciso questionar nesse ponto a possibilidade de
existência de uma raiz ainda mais profunda, tendo a lenda de São Saruê uma implícita referência o
mito do Eldorado, o qual, para ser acessado, também exige que se deixe levar pela natureza.
Podemos verificá-lo no conto de Voltaire (2004), Candide ou l‘Optimisme1:

jettons-nous dans cette petite barque, laissons-nous aller au courrant; une rivière mène
toujours à quelque endroit habité. Si nous ne trouvons pas des choses agréables, nous
trouverons du moins des choses nouvelles. Ŕ Allons, dit Candide, recommandons-nous à la
Providence. (VOLTAIRE, 2004, p. 78)

Nesse momento, e apenas graças à Providência, o barco é levado pelo rio até atracar em
Eldorado, a terra maravilhosa.

Édipo-Rei

Um dos personagens mais terríveis que Ojuara enfrenta, depois do Diabo, é a Mãe de
Pantanha, uma megera que habita um castelo em terras desconhecidas e que atrai cavaleiros
destemidos à morte em seu leito de cópula. Seu surgimento é contado ao herói através da história de
Pantanha, um menino cheio do que o narrador chamaria de Ŗartes do Tinhosoŗ: por ter falado na
barriga da mãe, a megera o renegou, mandou que o pai o levasse ao alto da serra e o matasse. O pai,
com dó da criança, matou em seu lugar o filhote de uma ovelha no lugar do qual pôs Pantanha. O
garoto cresceu forte com leite de cabra. Segundo o contador da história, Pantanha

[...] atirou no que viu, matou o que não viu, foi fazer um giro, fez um girau, jogou verde,
colheu maduro, ensinou padre-nosso a vigário, foi aos cajús, voltou com as castanhas,
arranjou sarna para se coçar, meteu a mão em cumbuca, brincou com fogo e mijou na rede,
aprendeu com quantos paus se faz uma canoa, choveu no molhado, malhou em ferro frio,
meteu o nariz onde não foi chamado, cagou na gaiola e esperou que a merda cantasse,
cuspiu no prato que comeu, disse dessa água não beberei, jogou água fria em gato
escaldado, botou o carro adiante dos bois, foi com muita sede ao pote, caçou na mata de
onde menos esperava sair coelhos[…] (CASTRO, 1986, pp. 70-71)

1
Candide foi publicado em 1759.

814
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Já adulto, Pantanha encontra um velho cego que lhe descreve o terrível destino de matar o
pai e desposar a própria mãe. A alusão clara que esse conto faz à tragédia do Édipo-Rei, de Sófocles
fica ainda mais evidente quando, cumprindo a sua sina, o personagem vem a Ŗarrancar os prñprios
olhos e correr doidoŗ na vastidão do sertão. (CASTRO, 1986, p. 79)

A recriação de tão antiga história adaptada ao contexto sertanejo ilustra a forma astuciosa e
jocosa como o autor reescreve os vários contos que envolvem o enredo protagonizado pelo caboclo
Ojuara. Para tanto, utiliza vários mecanismos que possibilitam essa aproximação, tais como a
linguagem tipicamente sertaneja, o vocabulário dos personagens, a forma de pensar implícita no
discurso dos interlocutores e, sobretudo, a forma do diálogo em tom semelhante ao de folhetos de
cordel.
Outra referência à tradição clássica é o segundo cavalo do caboclo, Peguassu, que se
deslocava Ŗquase sem arrastar os cascos no chão num chouto deslizanteŗ (CASTRO, 1986, p. 81).
O próprio nome, que, segundo o narrador, Câmara Cascudo teria designado como Pégaso, deixa
claro que se trata do ente mitológico branco, dotado de asas, veloz como o vento, que veio da
mitologia grega para sobrevoar o sertão: ŖO danado daquele cavalo parecia que voavaŗ . (CASTRO,
1986, p. 79)

Personagens históricos aludidos na narrativa

O narrador prossegue então com as referências a folhetos de cordel conhecidos e seus


autores. Como, por exemplo, quando o caboclo monta o Cavalo Misterioso para capturar o famoso
Boi Mandingueiro. História na qual interfere de forma decisiva: o narrador retira o herói do folheto
e em seu lugar coloca Ojuara. Supunha-se que captor do Boi Mandingueiro ganharia a mão de
Leonor, a filha do fazendeiro, mas o vaqueiro que ela ama não é capaz de capturá-lo. É Ojuara
quem o faz, mas dispensa a mão de Leonor, oferecendo-a ao vaqueiro de seu apreço.
O interessante é que o primeiro volume do folheto da História do Boi Mandingueiro e o
Cavalo Misterioso1 leva o nome de seu editor, José Bernardo da Silva Ŕ que, como era comum na
época, Ŗpodia passar a colocar seu nome no lugar do nome do autorŗ simplesmente por ser seu
proprietário, como explica Márcia Abreu (2005, p. 28). Então, o vaqueiro que perde a disputa, mas
ganha a mão de Leonor se chama Jé Bernardo, o que pode representar o gracioso jogo com a
realidade desenvolvido pelo narrador dřAs Pelejas de Ojuara.

O poeta-glosador potiguar Moisés Sesyom figura na obra como um personagem ativo.


Amigo de Ojuara, ele acompanha-o nos bares contando histórias, criando motes e glosas e bebendo
cachaça. Além disso, é constantemente exaltado como sento o maior glosador da região. Até o
etnólogo também potiguar Câmara Cascudo é citado diversas vezes na obra, tendo desenvolvido
pesquisas sobre o caboclo, em momentos onde o narrador suspende a história para esclarecer pontos

1
História do Boi Mandingueiro e o Cavalo Misterioso Ŕ Luis da Costa Pinheiro (RN)

815
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

relativos à lenda do caboclo que virou bicho. Essas pesquisas teriam sido publicadas no livro
ŖOjuara e outros ensaiosŗ . A informação é imprecisa. De toda forma, sendo ou não verdadeira a
existência de tal estudo, declarar que Cascudo se equivocara em alguns desses momentos, diante do
teor risível dessas passagens, é no mínimo duvidoso.

A forma dos contos tradicionais

O contexto de narração de histórias no sertão nordestino

Em As Pelejas de Ojuara, a narração de histórias parece ser a prática mais recorrente entre
os personagens. Todos têm sempre um Ŗcausoŗ a contar. Sempre se está interessado em escutar
algum que seja novo, mais excêntrico, mais fantástico ou mais maravilhoso. Não há quem não pare
o que quer que seja para escutar as histórias:

No caminho para Caiçara do Rio do Vento, […] na primeira bodega aberta àquela hora, já
com alguns papudinhos matando o bicho:
Ŕ Conte seu causo, Tião.
Ŕ Só se você contar um primeiro.
Ŕ Conte o seu, depois eu conto.
Ŕ O da mamada na onça?
Ŕ Não, uma história mais nova.
Foram todos para a mesa da latada, mais arejada e com menos moscas. O bodegueiro arriou
uma garrafa cheia na mesa com parede de imbu. (pp. 132-133)

Percebe-se a importância que o povo dá à narração de histórias, à transmissão de


conhecimento por meio oral, à audição dos mais experientes, em um ambiente onde não só a
oralidade é um dos poucos meios de aquisição de conhecimento, mas, sobretudo, onde essas
práticas estão enraizadas na tradição popular e encantam as crianças assim como os adultos.

Mecanismos de credibilidade nas narrativas populares

Diante da forma como são contadas as histórias populares do sertão, do seu encanto
fabuloso, da sua riqueza de excessos, os ouvintes poderiam levantar suspeitas sobre a sua
veracidade. De fato, pode haver alguém que faça questionamentos em relação à organização dos
pormenores da narrativa, mas este é prontamente repreendido pelos outros, que pouco se importam
com veracidade, e cuja idéia de verossimilhança é composta de forma diferenciada. Uma história
boa, rica, bem tecida e emocionante não necessita de que seus fatos sejam verificáveis. Não se
salientam suas incoerências e anacronismos. O que forma a coesão dessas histórias não se insere em
nenhum conceito fixo.

Entretanto, há um esforço da parte do contador em formular uma narrativa plausível. Por


mais incrível que possa parecer, a história deve ter um fio geral que une os acontecimentos. Para
tanto, utiliza-se um apanhado de fatos cuja veracidade é asseverada pelos ouvintes para embasar o
conto. Assim, os mecanismos de credibilidade dos quais lançam mão esses contadores têm a

816
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

aceitação passiva dos ouvintes e consistem numa simples organização da narrativa mesclada a fatos
do conhecimento do público.

Essa prática fica comprovada em diversas passagens do romance. Ilustremo-no citando o


momento em que o delegado da cidade de Santo Antônio, acompanhado do fazendeiro Ruzivelte,
visita o juiz Acácio Marinho que, em seu discurso pomposo e cheio de rodeios precisa esclarecer o
significado da palavra Ŗrevanchismoŗ , que, segundo ele Ŗquer dizer vingança, desforra. Vem do
francês Revanche, Jean-Jacques Revancheŗ (CASTRO, 1986, p. 186). O juiz prossegue então
explicando:

Corria o ano de 1790, nove meses depois da Revolução Francesa. O populacho, insuflado
por líderes fanáticos, banhava-se no sangue da realeza. Todos aqueles que faziam parte da
corte de Luís XVI iam sendo dizimados. A delação era uma constante. Uma família muito
ligada a Versalhes, pai, mãe, avós e quatro filhos, foi surpreendida na fronteira da Espanha,
quando tentava fugir do país. Não escapou nenhum membro da família, com exceção do
jovem Jean-Jacques, de vinte e cinco anos, que tinha preferido relegar a nobreza, trocar o
sobrenome para Revanche e se unir aos revolucionários de Paris. Entusiasta das idéias de
Robespierre, o jovem Revanche, [...] Esquecendo as origens, tornou-se um juiz favorável às
causas do povo [...]
Somente sete anos depois do massacre de sua família é que o juiz Jean-Jacques Revanche,
cada vez mais prestigiado pela revolução, tomou conhecimento do caso. A partir daí o
homem se transformou. [...] passou a ser um vingador implacável. Empenhou o resto de sua
vida para desvendar a trama que levara à morte seus entes queridos. [...] Suas sentenças
eram curtas e implacáveis: ŘÀ morte pela guilhotina. Revancheř. (CASTRO, 1986, p. 186)

Não é necessária uma pesquisa muito profunda para verificar a falsidade da informação.
Porém, a despeito do fato de Marinho ter se aproveitado da ignorância dos ouvintes da sua história,
é preciso admitir que devido à contundência da forma como é contada e a certa coerência nas
associações feitas, pode-se atribuir veracidade à história como um todo. Contudo, o próprio juiz
revela sua prática:

Acácio Marinho sorriu, satisfeito com o emprego do termo pelo delegado. Logo mais, iria
consultar o dicionário sobre a origem da palavra revanche. Podia até ser que ele estivesse
enganado, mas que a história era bem costurada, isso ninguém podia negar. (CASTRO,
1986, p. 188)

O interessante a se observar é que toda a obra parece ter sido construída sobre esse tipo de
mecanismo de credibilidade. Uma hipótese que levantamos é a de que Nei Leandro de Castro
(1986), em sua pesquisa e sua vivência no sertão potiguar, utiliza o mesmo mecanismo, comum
nesse meio, para formar a coesão e dar credibilidade à sua história. Desse modo, entre diversas
passagens em que o narrador deixa transparecer a sua prática, a citada a seguir o expressa de forma
graciosa. Ele conta que o quarto cavalo de Ojuara era:

[…] muito do baité, que quer dizer feio em sua língua de índio. E Baité ficou o nome do
animal magro, baixinho, desengonçado. Anos depois, o pesquisador Câmara Cascudo,
erudito que só a peste, chamaria aquele pangaré de Baiarte. (CASTRO, 1986, p. 104)

Do mesmo modo, outros fatores comprovam a recorrência dessa prática e seu uso na obra.
Tais como o questionamento do valor da verdade: Ŗo que era mentir? O que era verdade? Se ele, por
817
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

acaso, contasse sua passagem por São Saruê, quem ia acreditar?ŗ (CASTRO, 1986, p. 95); o
enriquecimento da histñria com fatores não necessariamente verídicos: ŖNa boca do mestre [Rique
de Campos], a histñria de Ojuara ia ganhar muitos babados e ficar bem mais arretada, ora se ia.ŗ
(CASTRO, 1986, p. 113); a revelação de uma preocupação em abonar o que é contado: ŖCabe ao
narrador registrar o fato, como o fez, acrescentar um dado que serve de abono à veracidade do
ocorrido.ŗ (CASTRO, 1986, p. 192).
E assim se teriam passado pelo mesmo processo de erudição os nomes dos sete cavalos do
caboclo: a mula Buceta teria se tornado Bucéfalo; Peguassu, Pégaso; Baité, Baiarte; a égua chamada
Orelha por só ter uma, teria sido nomeada Orélia por Cascudo; Pori, que quer dizer Ŗgente miúdaŗ
em Ŗlíngua de índioŗ , Peritoa e assim por diante.

Histórias de Trancoso

ŖO povo denomina estórias de Trancoso aos contos tradicionais, o documentário mais rico
de nossa literatura oralŗ (CASCUDO, 2009, p. 79), explica Câmara Cascudo em Coisas que o Povo
Diz. Gonçalo Fernandes Trancoso foi responsável pela publicação da Ŗprimeira coleção de estñrias
populares em Portugalŗ em 1585. A expressão Ŗhistñria de Trancosoŗ é tomada hoje no sentido de
histñria inverídica graças ao fato de ter passado a ser utilizada em uma oposição entre Ŗa Histñria,
documentada, verídica, oficial, e o conto popularŗ .

Acontece que o termo passou a se estender a um sentido generalizado de história inverídica.


ŖHistñria de Trancosoŗ é então um conto exagerado, inverossímil ou cujas informações não são
fiáveis. Diante das histñrias contadas nřAs Pelejas de Ojuara e até mesmo do enredo principal do
romance, poder-se-ia, portanto, atribuir-lhe tal título. Contudo, é preciso levar em conta que a
prática de exaltação, de exagero, é comum mesmo na poesia oral como um todo, como declarou
Cascudo (2005): ŖUma característica bem marcada na cantoria será o exagero, a teatralidade
espetaculosa e gritante dos cantadoresŗ . (CASCUDO, 2005, p. 178)

Assim sendo, Nei Leandro de Castro revela mais uma vez ter retirado das práticas populares
da região a matéria indispensável para o enriquecimento da obra, tendo conseguido representar a
cultura oral poética do sertão nordestino.

Considerações Finais

As Pelejas de Ojuara é um convite a um mundo onde a poesia está na fala de todos, onde o
misticismo e a fé religiosa guiam as atitudes e os costumes de cada personagem, onde a narração de
histórias Ŕ sempre Ŗbem costuradasŗ com os fatos e as personalidades da tradição popular Ŕ é de
longe a melhor forma de passar o tempo, de instigar o interesse, de enfeitiçar as mentes, de
apaixonar os corações, de fazer sorrir, de dar esperança e, é claro, de ganhar a vida, movendo toda a
engrenagem desse mundo de um povo tão bravo e gentil. A obra mostra o quanto essas histórias
estão enraizadas na fala do povo de uma forma tão própria que as torna perfeitamente identificáveis.
818
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Sem dúvida, não simplesmente por conta dos vários gêneros encontrados nesse ambiente, mas pelas
suas particularidades. Afinal, como declara Abreu (1999),

As apresentações orais de narrativas, poemas, charadas, disputas não são peculiares do


Nordeste brasileiro. Todos os povos a conhecem, principalmente aqueles nas quais a cultura
escrita não é dominante. Índios, negros e portugueses contavam histórias e faziam jogos
verbais oralmente, não sendo portanto de estranhar que esta prática tenha se difundido por
todo o Brasil, assumindo, entretanto formas específicas em cada região. (ABREU, 1999, p.
73)

Além disso, defendemos que o romance é representativo do poder da oralidade popular do


Nordeste. Embora se encontre voltado a públicos diferenciados, com maior ou total predomínio da
escrita, a força da oralidade fica claramente marcada em suas páginas, assim como nos folhetos de
cordel, em que, como explica Kunz (2001),

[…] temos uma escrita que fala, um texto que dialoga. Uma literatura oral, com suas leis
estéticas próprias, solidária e contemporânea de seu público, à escuta dele. Uma literatura
onde o texto é receptáculo da voz, e a palavra de vários autores move-se entre tradição e
criação, para contar um só herói, uma só história. (KUNZ, 2001, p.80)

A pesquisa desenvolvida por Nei Leandro de Castro para a produção de sua obra revela não
só sua ligação com a terra, mas também a sua capacidade de representação da sua região, em toda a
sua riqueza. Sobre isso, nos fala Almeida (1981), a propósito de José de Alencar:

Alencar entrara em contato mais direto com as gestas populares do sertão nordestino e vira
aí material extremamente rico para alimentar seu próprio romance. (ALMEIDA, 1981, p.
50)

Da mesma forma, Castro demonstra ter feito. É essa imersão no contexto sertanejo que
representa uma das possibilidades de caracterização da obra como regionalista. Contudo, Castro não
se restringe à coleta fria e seletiva desse material. Sua obra é plena de poesia e encanto. O passeio
que se faz no divertido ambiente transfigurado por ele em sua fascinante narrativa é o que encanta a
sua leitura. É o que transporta o leitor à sua região, sem, todavia, deixar de lhe romper as barreiras,
elevando à percepção do humano.

Referências Bibliográficas

ABREU, Márcia. Antologia de Folhetos de Cordel: amor, história e luta. São Paulo: Moderna,
2005.
ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro (1857-1945).
Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.

819
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

_________. Histórias de Cordéis e Folhetos. São Paulo: Mercado de Letras: Associação de Leitura
do Brasil, 1999.
CASCUDO, Luís da Câmara. Coisas que o Povo Diz. São Paulo: Global, 2009.
_________, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1984a.
_________, Luís da Câmara. Mouros, Franceses e Judeus: três presenças no Brasil. São Paulo:
Perspectiva, 1984b.
_________, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. São Paulo: Global, 2005.
CASTRO, Nei Leandro de. As Pelejas de Ojuara: a história verdadeira do homem que virou bicho.
2ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
CHIAPPINI, Lígia M. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo. In.: Estudos Históricos. Rio
de Janeiro, vol. 8, nº 15, 1995, p. 153-159.
HOUAISS, Instituto Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Editora
Objetiva, dez. 2009.
KUNZ, Martine. Cordel: a voz do verso. Fortaleza: Museu do Ceará, 2001.
Le Petit ROBERT de la langue française, édition numérique 2009.
LOPES, José de Ribamar. (org.) Literatura de Cordel: antologia. Fortaleza: BNB, 1982.
PROENÇA, Manoel Cavalcanti. Literatura popular em verso: antologia, Tomo 1. Rio de Janeiro:
Casa de Rui Barbosa, 1964.
VOLTAIRE. Candide ou l‘Optimisme. Paris: Pocket, 2005.

820
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O MITO DO CENTAURO E O CINEMA DE PASOLINI

Ulysses Maciel de Oliveira Neto (UFOPA)

Dentre os signos buscados por Pier Paolo Pasolini no campo caótico dos mitos que deram
origem ao imaginário trágico predominante na época da criação e representação das tragédias no
palco grego, o Centauro, personagem do filme Medeia (1970), constitui um dos mais eficazes para a
composição de um campo significativo que impressione os espectadores, para que estes passem a
receber imagens e sons como sinais do conflito entre mito e lógos, mito e razão, sagrado e profano.
O Centauro pasoliniano, homem e animal, mítico e humano é signo da ambiguidade que permeia o
filme e que representa na tela do moderno cinema Ŕ como se fosse um palco grego Ŕ a metamorfose
do ser mítico em ser humanizado. A missão do duplo Centauro em Corinto é lembrar a Jasão que
signos míticos Ŕ o velocino e a própria Medeia Ŕ perdem o sentido de verdade no mundo
dessacralizado da pólis. O Novo Centauro é a força produtiva que representa a síntese resultante do
embate entre as forças antigas e as modernas forças dessacralizadas. Na representação fílmica, a
passagem do mundo bárbaro-mítico da Cólquida e do velocino dourado para o mundo clássico
grego leva o homem moderno da era do cinema à experiência quase catártica das metamorfoses.
Pasolini é como o Centauro de Medeia, que, na sua forma híbrida, nos mostra, através do
lado humano, o que é compreensível. O outro lado, o mítico, não se expressa por palavras, mesmo
porque, se falasse, não o compreenderíamos: o mito é apreensível na narrativa que se faz dele, mas
não compreensível. No cinema de Pasolini, o mito será expresso como imagem e lido pelo
espectador. O fenômeno moderno correspondente ao conflito primordial, que Pasolini representa
como trágico, após expô-lo antropologicamente no filme-ensaio Appunti per un‘Orestiade africana,
também tem origem em mitos ancestrais, como o Édipo desvendado pela psicanálise. Ou como
Cristo crucificado, mito judaico-cristão apresentado por Pasolini em Medeia, pela imagem do
sacrifício do jovem crucificado, que remete aos mitos da ressurreição: um jovem mítico, sacrificado
ao Sol num ritual primitivo no qual se pratica a comunhão do sangue e do corpo. Dessa forma,
Pasolini promove a identificação mítica de duas ressurreições, representadas diferentemente, um
rito primitivo, no domínio da natureza selvagem do homem, e um rito judaico-cristão, no limiar da
razão.
Caracterizar estas complexas relações que se estabelecem entre as ideias sobre o trágico na
Antiguidade, materializadas na tragédia ática, e as obras da modernidade, especificamente o cinema
trágico de Pasolini, exige que se recorra às mais sutis expressões acerca do teatro grego e do
cinema, artes congêneres pelo aspecto cênico, porém muito diferentes, pela dimensão sócio-
histórica em que aparecem. Por outro lado, o palco perdeu a primazia do fenômeno, desde que a
forma original da tragédia perdeu sua referência grega de origem. A tradição pós-clássica soube
experimentar o trágico fora da tragédia, evidência que alicerçou a reflexão dos filósofos idealistas
alemães do século XIX (SZONDI, 2004).

821
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O Centauro pasoliniano, personagem ambíguo do filme Medeia, é o signo que expressa essa
passagem de forma dialética, pasolinianamente falando, pois sendo homem e sendo animal
selvagem, sendo mítico e sendo esclarecido, é o elemento fílmico que representa simbolicamente o
conflito primordial caracterizado pela psicanálise pela dualidade consciente/inconsciente, instâncias
do ser humano cujo encontro gera o terreno propício onde germina o cinema de poesia do diretor
italiano.
O cinema pasoliniano, portanto, valendo-se da dupla natureza da psique humana, apresenta
imagens oníricas (exemplarmente, as de Jasão do duplo Centauro) como se fossem as imagens do
mito e como se a definição do seu significado dependesse da criação de correspondências
simbólicas, que, consideradas em conjunto, acabam por constituir um léxico utilizado pelos que
assistem aos filmes1. Trata-se de uma influência do pensamento freudiano sobre o cineasta italiano,
essencial para alcançar o que Pasolini chama de cinema de poesia. Nesses filmes, a imagem tem um
papel mais importante do que simplesmente encantar ou atrair o olhar do espectador. Ainda que
necessariamente realistas, pois reproduzem algo que, efetivamente, já esteve diante dos olhos no set
de filmagem, são em alguns momentos inacreditáveis, como nos sonhos, formando o elemento
poético que Pasolini descreve em Cinema de poesia... Tais são, dessa forma, as imagens realistas do
Centauro no início do filme Medeia, e também o cenário do país de Medeia, cidade real, porém
incompreensível em sua sacralidade (a câmera é colocada num ponto de vista objetivo, como num
documentário). Essa concepção de imagem cinematográfica se apresenta em todo o cinema de
Pasolini, como a imagem do campo Ŗverde, verdeŗ , dessa forma descrito pelo personagem Ângelo
no final de Édipo Rei, impossível de existir no cinema moderno Ŕ um cinema de prosa Ŕ, a todo o
momento buscando um fim, um final, seja ele feliz ou infeliz. Tal é a África, nos Appunti per
un‘Orestiade africana ou na sua configuração cor-de-rosa que inspira a poesia de Davidson nřO pai
selvagem, roteiro jamais filmado.
Tais imagens são aquelas para as quais o diretor italiano se volta, em busca do que será
metamorfoseado, da imagem fugidia do sonho pra a imagem realista na tela.
O abismo existente entre a mitologia que frequentava o imaginário do homem grego do
século V e a mitologia do homem moderno se materializa numa falta de saber que será preenchida
pela mímesis pasoliniana, para se alcançar a relação possível entre as imagens trágicas apreendidas
na atualidade e a imagem que Pasolini pretendeu criar no cinema. O correspondente simbólico
dessa falta é encontrado na fala do Centauro para Jasão, na terceira parte do filme Medeia, já em
Corinto. O Novo Centauro (o racional) explica para Jasão porque o Antigo Centauro (o mítico) não
fala com ele: ŖEle não fala, evidentemente, porque sua lógica é de tal forma diferente da nossa que
nos seria impossível entendê-lo... Mas eu posso falar por eleŗ .
Analisando-se as versões fílmicas de textos trágicos realizadas por Pasolini, percebe-se que
as imagens, processadas pela imaginação dele e pela mitologia do espectador da era do cinema,

1
Pasolini aponta, por exemplo, a imagem das rodas do trem rapidamente acionadas pelas manivelas, envoltas em
vapor. Esta seria uma imagem do léxico, embora exageradamente cristalizada como clichê, não sendo, portanto,
utilizada no cinema de poesia.

822
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

cooperam produtivamente para efeito da compreensão do trágico hoje. Aquela camada constituída
pela literalidade, ou seja, pela aparência da obra, prima pela racionalidade. Essa camada, na versão
literária da tragédia, é a letra do texto; no cinema é a sequência das cenas que constituem uma
história. Ela é instrumental para o autor e provocação para o leitor ou espectador. Ela estará
presente neste texto como matéria a ser metamorfoseada, assim como o mito para a tragédia clássica
e para o cinema de Pasolini.
Esta passagem do trágico em perspectiva clássica para a representação moderna, via
mímesis do mito, é que não é feita pelos realizadores de filmes da indústria cultural, que se limitam
a transpor caracteres sem substituir mitologias.
A reflexão acima, foi inspirada na definição en passant da tragédia grega feita por Proust:

[...] mesmo nos espetáculos mais indiferentes da vida, nosso olho, carregado de
pensamento, despreza, como faria uma tragédia clássica, todas as imagens que não
concorrem para a ação e retém apenas aquelas que podem tornar inteligível a finalidade1.
(PROUST, 1947, v.3, p. 200)

Os mesmos elementos ação e finalidade, que formam da tragédia uma concepção apenas
observável em seus elementos constitutivos, encontram-se também na Poética de Aristóteles. Esta
questão abre espaço para uma comparação entre os objetos tragédia grega e cinema trágico
pasoliniano: neste, as imagens não concorrem, ipso facto, para uma finalidade objetivamente
definida ou racionalmente inteligível, embora possam ser objeto de análise segundo um método e
conceitos precisamente estabelecidos. Além disso, nos filmes trágicos de Pasolini não existe uma
preponderância da ação trágica, uma vez que a representação mimética por ele realizada parte de
uma instância objetiva Ŕ os textos das tragédias Ŕ e de uma instância mítica não perdida, segundo o
diretor italiano, mas metamorfoseada, isto é, morta e ressurrecta. O que se apresenta nesses filmes é
uma alusão ao modo como o sentimento grego trágico Ŕ o conflito entre a instância mítica recalcada
e a objetividade da pólis Ŕ se pode apresentar na arte cinematográfica moderna, que, para Pasolini,
liga-se à sociedade capitalista e regida pelas racionalidades esclarecidas.
Os mitos metamórficos são centrais para o desenvolvimento de nossa argumentação. A
tragédia grega, que teve como matéria originária as narrativas míticas, mas as metamorfoseou em
texto trágico pela intermediação da razão que se instituiu na sociedade grega, até mesmo como
ideologia inerente à constituição e manutenção da pólis, é representada por Pasolini em seus filmes
míticos pela encenação de metamorfoses concebidas como sínteses dialéticas: as metamorfoses
físicas do Centauro, em Medeia, que primeiramente assume forma humana e depois aparece como
síntese, razão e mito, em dois Centauros que se completam e se antagonizam; a ressurreição da
semente, Ŗmorre a semente e renasce da sementeŗ , como vaticina Medeia, no filme homônimo; a
ressurreição da África socialista e industrial a partir da semente deixada pela África mítica, no filme

1
[...] même dans les spetacles les plus indifférents de la vie, notre œil, chargé de pensée, néglige comme ferait une
tragédie classique, toutes les images qui ne concourent pas à lřaction et ne retient que celles qui peuvent en rendre
intelligible le but. (LES CAHIERS..., 1947, p. 200). Tradução nossa. Faz-se aqui uma identificação entre o but de Proust
e o télos de Aristóteles.

823
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Appunti per un‘Orestiade africana. A metamorfose do pai, em Édipo Rei, de soldado na Itália
industrial, imagem do pai do cineasta, em Laio mítico.
No filme Medeia, a narrativa do Centauro, efetuada em três cenas que se distinguem pelo
tom e pelas modificações físicas da personagem, representa a passagem do relato mítico à tragédia:
o recalcamento do mito pela razão e a sua ressurreição como conflito trágico. É como se a tragédia,
cumprido o ciclo primordial da sua existência, tivesse deixado uma semente do trágico que brota na
modernidade sob a forma da angústia do homem moderno cindido. Essa experiência é ressuscitada
esteticamente na forma dos filmes de Pasolini, pela representação dos rituais da modernidade de
violência e segregação do estranho, visto segundo uma antropologia que leva em conta as origens
míticas dos conflitos.
A revelação pasoliniana faz aflorar o que a tragédia ocultara pela incidência do pensamento:
a imagem do mito. Esta é uma imagem racionalmente impossível, pois o mito não se realiza, a não
ser irracionalmente, na forma de mensagens que, partindo da imaginação do autor, dirigem-se
diretamente à imaginação do receptor. Tais mensagens são interpretáveis somente pela mitologia de
quem as recebe, mas não pela sua langue, porque as imagens do mito são parole. Como afirma
Junito BRANDÃO, em Mitologia grega (v. 1, p. 36, 2007):

[...] o mito é sempre uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações e
que relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a parole, a palavra
Ŗreveladaŗ , o dito.

As imagens realistas do mito apresentadas na segunda parte do filme Medeia já haviam sido
definidas pelo Centauro, em outro ponto do filme: Ŗnão há como os míticos para serem realistas, e
não há como os realistas para serem míticosŗ (PASOLINI, 2002, p. 110). Esta relação, na obra de
Pasolini, entre a imagem poética, exemplificada pela fala de Medeia fílmica, e o mundo
racionalizado, é descrita por Riccardo Pineri da seguinte forma:

Ferida de realidade, em busca de realidade, a imagem poética aparece no momento em que


a vida se retira, a palavra sobrevém no exato momento em que o real se ausenta. ŘFala-me,
terra, faça-me entender sua voz. Eu não me lembro mais da sua voz. Fala-me, Sol! Onde
está o ponto de onde eu possa escutar tua voz? Fala-me, terra; fala-me, Sol. Talvez vocês
estejam a ponto de se perder e não voltar mais? Eu não entendo mais o que vocês dizem!
Fala-me, erva! Tu, pedra, fala-me. Onde está teu sentido, terra? Eu toco a terra com meus
pés e não a reconheço. Eu olho o Sol com meus olhos e não o reconheço 1. (PINERI, 1997, p.
90. A tradução é nossa).

Essa transposição do texto trágico grego para a mitologia do homem moderno, pela via da
morte e ressurreição do mito, resultará numa substituição. O cinema mítico pasoliniano funda esse
conceito relacionando os textos trágicos gregos com os mitos da modernidade e o torna uma
ferramenta eficaz para a realização do processo estético que associará mitologias antigas com

1
As palavras citadas referem-se ao filme Medeia. ŘBlessée de réalité, en quête de réalité, lřimage poétique apparaît au
moment où la vie se retire, la parole survient au moment même où le réel sřabsente. ŘParle-moi, terre, fais-moi
entendre ta voix. Je ne me souviens plus de ta voix. Parle-moi, soleil! Où est le point dřoù je puisse écouter ta voix ?
Parle-moi, terre ; parle-moi, soleil. Peut-être êtes-vous en train de vous perdre et ne plus revenir ? Je nřentends plus ce
que vous dites! Parle-moi, herbe. Toi, la pierre, parle-moi. Où est ton sens, terre ? Je touche la terre avec mes pieds et
je ne la reconnais pas. Je regarde le soleil avec mes yeux et je ne le reconnais pasř !

824
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mitologias modernas numa obra fílmica atual, porém não idealista. Dito por outras palavras, a
retomada de mitos clássicos por Pasolini segue um rumo diferente daquele adotado pelo cinema no
contexto da indústria cultural.
A experiência estética de se deparar com as cenas de Medeia ou de Édipo Rei proporcionará
ao leitor que se debruçar hoje sobre um texto trágico produzido na Antiguidade, a oportunidade de
se desvencilhar dos vícios visuais introduzidos nas nossas retinas pelo cinema idealista e/ou
naturalista e causará uma experiência catártica advinda das condições de existência do homem
moderno diante da sua angústia.
Para se chegar ao cinema pasoliniano e à sua motivação trágica, é necessário considerar três
linhas do trágico: a primeira, parte das violências narradas nos mitos, passa pela punição de
Agamêmnon pelo assassinato da filha Ifigênia, ficcionalizada por Ésquilo na Oréstia, e culmina na
absolvição de Orestes num tribunal humano, tema do filme Appunti per un‘Orestiade africana,
projeto de filmagem da Oréstia que seria realizado por Pasolini na África. Nesses Appunti..., pode-
se dizer que Pasolini faz convergir, no cenário mítico/capitalista da África que se descolonizava e
abandonava um mundo mítico e violento, o que naturalisticamente jamais convergiria: a violência
trágica do mundo antigo (Ŗa incerteza existencialŗ do homem antigo) com a angústia existencial do
mundo moderno. Essas características dos Appunti... indicam que a convergência (a síntese
pasoliniana), como não poderia deixar de ser, se dá no interior da história.
A síntese entre sociedade arcaica e sociedade moderna, pretendida por Pasolini, mas nunca
efetivamente realizada, já se encontrava expressa, mas não resolvida, no texto da tragédia grega.
Essa preexistência antiga já havia sido analisada por MURRAY (1967, p. 12):

Já advertimos que, ao aceitar como um fato o Řcontorno trágicoř no qual toda a vida brota e
logo murcha e morre, Ésquilo afirma apaixonadamente no ŘAgamêmnonř que se trata de
uma ordem moral. Nega-se a crer que uma bem-aventurança ou riqueza, por si mesma,
conduza a uma queda [...] Só a riqueza combinada com a injustiça e a impiedade conduz à
destruição.

Tal cesura que aponta o conflito entre uma ordem mítica apenas recalcada e uma outra, a
política, encontra-se também no texto citado acima, de Massimo Fusillo, como sendo a síntese
pretendida por Pasolini, e estetizada por este, como também Ésquilo expressou na tragédia o
conflito que pressentia e no qual estava imerso.
Essa incerteza existencial pode ser identificada com o trágico, segundo Gilbert Murray:

Este é precisamente o tema do ŘPrometeuř. É-nos mostrado o estado lamentável da


humanidade. Zeus ocultou aos homens os meios de vida, do mesmo modo que lhes ocultou
o fogo. Deixou em liberdade inumeráveis males alados Ŕ o mar e o ar abundam neles e não
há meio de lhes escapar. A vida é dura e jaz sempre sob a sombra da morte. Deste modo
Ésquilo chega à concepção de um Tirano supremo, o inimigo do homem, que rege o
mundo, e à de um campeão da humanidade, que o enfrenta. (MURRAY, 1967, p. 13)

Os Appunti... são apontamentos, não chegando a uma conclusão. A síntese desse conflito
inconciliável exposto pela equação comparativa pasoliniana se dá no filme Medeia, com as palavras
finais que esta personagem profere, dirigindo-se a Jasão, dentre as labaredas: ŖNada mais é possível

825
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

doravanteŗ (PASOLINI, 2002, p. 128). A busca pasoliniana, portanto, se volta para um sentimento
trágico inevitavelmente enraizado no homem, como é a angústia de Jasão, em Medeia, diante do
duplo centauro, signo do homem moderno cindido, no interior do qual, dialeticamente, convivem,
numa síntese, razão e emoção.
Embora a análise das obras empreendida neste artigo busque se apropriar, em um primeiro
momento, da matéria originária trabalhada pelos autores, num segundo momento, o foco se dirige
prioritariamente para o texto, pois se trata aqui, em última instância, de um estudo sobre a mímesis
crítica, ou seja, sobre o conjunto de procedimentos artísticos não literais com vista a realizar uma
obra ficcional. Concordarmos com a abordagem de Most, ao afirmar que:

Mímesis é usualmente traduzido por Ŗimitaçãoŗ, mas de fato este significado central está
mais prñximo de Ŗrealizaçãoŗ : objetos, eventos, ou ações que, porque são divinos, passados
ou canônicos, pertencem a um domínio mais valioso da realidade do que nossa vida
quotidiana, mas estão, por isso mesmo, de alguma forma afastados de nós, impõem sobre
nós a obrigação de restaurar sua realidade; isso é alcançado pelo estabelecimento de um
setor privilegiado no meio de nossas preocupações presentes, no qual nós podemos
reabilitá-los [os objetos, eventos e as ações], iluminando através disso nosso mundo banal
com um pouco de seu esplendor e, ao mesmo tempo, resgatando-os dos perigos da
abstração e da irrelevância1. (MOST, s/d).

Logo, as palavras de Ésquilo na Oréstia não podem ser vistas como premonição. Elas
alcançam a realização moderna do trágico através da estetização da violência, cuja forma moderna
Pasolini encontra em forma originária na cronaca nera, a crônica diária dos jornais, inclusive dos
crimes mais violentos. Para o diretor italiano, então, o gênero cronaca Ŕ narrativa, sem passado,
sem história, na qual os fatos surgem na sua forma naturalizada Ŕ alude ao conflito trágico entre
uma natureza humana inorgânica e a ética da sociedade capitalista e materialista. A estetização
dessas narrativas Ŕ captadas no cotidiano e transformadas em crônica Ŕ em forma de cinema é a
afirmação, por Pasolini, da sua teoria sobre o plano-sequência como algo a ser ressuscitado Ŕ
editado, montado Ŕ em forma de linguagem cinematográfica, atribuindo, dessa forma, significados
às meras cenas naturalistas de uma vida:

Portanto, é absolutamente necessário morrer, porque, enquanto vivemos, falta-nos sentido,


e a linguagem de nossa vida (com a qual nos expressamos, e à qual, portanto, atribuímos a
máxima importância) é intraduzível: um acaso de possibilidades, uma busca de relações e
de significados sem solução de continuidade. A morte realiza uma rapidíssima montagem
da nossa vida: ou seja, seleciona seus momentos verdadeiramente significativos
(imodificáveis por outros possíveis momentos contrários ou incoerentes), e os ordena
sucessivamente, fazendo do nosso presente, infinito, instável e incerto e, portanto,
linguisticamente não descritível, um passado claro, estável, certo e, portanto,
linguisticamente bem descritível (precisamente no âmbito de uma Semiologia Geral). Só
graças à morte nossa vida serve para explicar-nos. Portanto, a montagem realiza, sobre o
material do filme (que é constituído por fragmentos grandíssimos ou infinitesimais, de
tantos planos-sequência como possíveis tomadas subjetivas infinitas), o que a morte realiza
sobre a vida. (PASOLINI, 1985, p. 71)

1
Mimesis is usually translated Řimitationř, but in fact its central meaning is closer to Řactualizationř: objects, events, or
actions which, because they are divine, past or canonical, belong to a more valuable domain of reality than our
quotidian lives but are therefore in some way remote from us, enjoin upon us the obligation to restore their actuality;
this is achieved by establishing a privileged sector within our present concerns in which we can (re-)enact them,
thereby illuminating our banal world with some of their splendour while rescuing them from the perils of abstraction
and irrelevance.

826
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Dessa forma, nos certificamos de que não se trata, nessa interpretação do trágico moderno,
de uma análise das condições de existência do homem hoje Ŕ de uma análise da violência na
sociedade atual, para o que seria mais adequado o gênero documentário Ŕ mas de uma análise
comparativa entre a estetização da violência feita pelos tragediógrafos gregos e a estetização da
violência feita modernamente, em outro meio, o cinema, realizada por Pasolini, levando em conta
que a estetização dessas duas formas originárias é possível devido à mitologia comum que as cerca.
Ou seja, o que Pasolini atualiza é a presença das Erínias como instância irracional constitutiva do
discurso da arte.
O rito grego de passagem da sociedade arcaica, cuja coesão era determinada pela religião e
pelo mito, para a sociedade racionalizada que gerou a tragédia ática, pode ser incompreensível em
sua totalidade pelo homem moderno, que não consegue, como Jasão, entender o Centauro mítico,
embora veja a sua imagem. Por outro lado, a substituição pura e simples de uma pela outra, a
representação da África moderna pela Grécia Clássica, esbarra na complexidade do processo
africano, que incorpora um componente político e econômico (as forças coloniais). Dessa forma, a
representação da tragicidade do quadro africano não pode ser objeto de uma mera adaptação, e a
evocação da Oréstia no cinema pasoliniano se dará segundo a mímesis crítica, que está associada ao
que Pasolini chamou de cinema de poesia.
Pensando no que Pasolini afirmou acerca da estranheza que lhe causava a naturalidade com
que a herança do filho em relação à purgação dos crimes do pai é apresentado na tragédia por um
coro democrático e à luz do que Pasolini ficcionalmente atribui ao jovem Davidson em Pai
selvagem quanto à adesão conflituosa do jovem africano à mitologia paterna, é perceptível que o
trágico pasoliniano constrói-se sobre o fato de a adesão ser compulsória. De outra forma, não
haveria trágico. Como diz Pasolini (1980, p. 3), a culpabilidade do filho é anunciada Ŗcomo se fosse
naturalŗ por um coro democrático. No cinema trágico são muitas as formas de expressar
poeticamente essa forma natural. No filme Medeia, é pela voz e pela figura do Centauro que fala a
Jasão. Nessa fala, o Centauro associa o destino trágico de Jasão a uma sequência de mudanças na
história do pensamento humano, que parte de um passado mítico e chega a um presente racional:
Ŗna verdade não há deus algumŗ, afirma o Centauro.
Dessa forma, ao contrário de uma condenação de Jasão pela sua traição a Medeia, o que
condena o Jasão pasoliniano ao seu terrível destino é a sua hybris, a sua desmedida ambição, a
valorização por ele da materialidade da civilização da razão. Essa exacerbação racionalista faz Jasão
perder seu caráter de herói mítico da epopeia, da mesma forma que deixa de lado a metade poética
das Eumênides, razão do desespero do herói ao ser advertido pelo Novo Centauro, no início da
segunda parte do filme Medeia: Ŗna realidade Ŕ fora dos teus cálculos e da tua interpretação Ŕ você
ama Medeia [...] e não compreende a sua catástrofe espiritual, sua desorientação de mulher do
mundo antigo em um mundo que desconhece tudo aquilo em que ela acreditou um diaŗ (PASOLINI,
2002, p. 117). Esse é o aspecto colonialista, a mesma força que na África de O pai selvagem lança
umas tribos contra as outras e causa o rompimento da síntese idealizada, entre as forças arcaicas e

827
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

modernas, simbolizadas pelas Eumênides e apontada por Pasolini como Ŗeminentemente políticaŗ
na Oréstia.
Jasão, como as forças colonialistas africanas, causa o desequilíbrio entre instinto e razão,
base do tratado mítico selado por Atená. A instância primitiva instintiva, superada mas
remanescente no homem, deve permanecer no inconsciente a fim de ligar o homem à imaginação e
de não torná-lo totalmente materialista. Essa é a missão dos dois Centauros em Corinto, lembrar a
Jasão que ele trouxe da Cólquida dois signos de ancestralidade: o velocino, que ele abandonou por
não ter significado fora da sua terra, e Medeia, que ele ama, mas que rejeita em nome do poder
advindo da aliança política com Creonte. Tudo isso é provado pelo Novo Centauro na sua aparição.
O Novo Centauro é a força produtiva que representa a síntese resultante do embate entre as forças
ancestrais e as modernas forças da razão.
É como se fosse mostrado, nessa passagem do mundo bárbaro-mítico da Cólquida e do
velocino de ouro para o mundo clássico grego, a enorme distância entre mito e lógos e a
impossibilidade da existência de um sem que o outro exista em contrapartida, dupla existência que é
possível na tensão das metamorfoses que, como na África, não estão numa rua de mão única, mas
que existe como síntese no embate das contradições.
A empresa argonáutica, no filme Medeia, é uma empresa civilizatória. Ainda que faça parte
de um ciclo épico, a expedição é imaginada por Pasolini como signo da expansão racionalizadora da
civilização ocidental. Tudo no filme leva a esse significado: a justificativa que o Centauro dá para
Jasão fazer a expedição; a atitude dessacralizada dos argonautas, que saqueiam e desrespeitam as
tradições; o desprezo pelo símbolo fálico dourado que é descoberto numa caverna na Cólquida.
Talvez o maior sinal disso seja a dessacralização do sacerdote do Sol, que antes participara do
sacrifício humano e que é humilhado durante o saque da caverna, sendo empurrado por um dos
argonautas e recebendo uma moeda atirada por eles. Poeticamente, Pasolini retira do caos que é o
imaginário sobre a época herñica da Grécia, o signo Ŗargonautasŗ , e depois trata de fazê-lo
compreensível para o espectador, atribuindo a ele o papel civilizatório. O Centauro impulsiona
Jasão a realizar seu ritual de iniciação na modernidade Ŕ o resgate do velocino Ŕ, para que ele passe
a ser um signo moderno de exaltação da razão, paradigma da nossa sociedade. Depois, em Corinto,
este ser mítico aparece novamente para o herói, agora em forma dupla, para mostrar a Jasão como
ele se afastara dos ensinamentos recebidos em criança passou a ser um homem dividido,
tragicamente moderno.
É significativo, então, o início da Medeia de Pasolini, não já em Corinto, como faz
Eurípides, mas nos primeiros diálogos entre o Centauro e Jasão, que é como uma volta ao caos.
Quem narra para Jasão a sua história é a própria figura mítica. Narra como a empresa dos
Argonautas terá como coroamento a dessacralização do velocino e de Medeia. O sagrado,
entretanto, volta para Medeia por meio de um ritual, seu encontro com o Sol, e por meio de um
sacrifício, a morte dos filhos. A Medeia pasoliniana age por ciúmes, mas, acima disso, age como
sacerdotisa, como instrumento da Ŗjustiça cara a deusŗ, por ela invocada literalmente, tanto no texto
euripidiano como no pasoliniano.
828
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A análise adorniana, além disso, encontrará o pensamento de Pasolini na definição do


momento específico da criação da tragédia grega, um momento histórico conflituoso em que a razão
passa a representar os mitos de forma lógica. Pasolini expressa poeticamente, através das palavras
do Centauro para Jasão, no início do filme Medeia, essa mudança da condição humana: Ŗhoje,
quando você tem cinco anos, eu quero te dizer a verdade sobre você. [...] Mentiras, eis o que eu te
contei. Você não é mentiroso, mas eu, ah! eu, sim; eu me canso de contar mentiras.ŗ
Após narrar para Jasão o mito do velocino Ŕ objeto sagrado que garantia a imutabilidade do
poder real Ŕ o Centauro prossegue:

Diga-me, existe uma única coisa das que nos rodeiam, que não seja inatural? Que não seja
possuída por um deus? [...] Olhe atrás de você! O que você vê? É alguma coisa natural,
talvez? Não, o que você vê atrás de você é uma aparição, essas nuvens que se olham na
água imóvel e pesada desse meio de tarde!... Olhe lá adiante... essa franja negra sobre o mar
brilhante e rosa como óleo. E as sombras dessas árvores... essas roseiras... Para cada ponto
onde pousam seus olhos, se esconde um deus! E se, por acaso, ele não está lá, ele deixou
atrás dele os sinais da sua presença sagrada, seja o silêncio, ou o cheiro da erva, ou a
frescura das águas doces.... (PASOLINI, 2002, p. 109-110)

É o momento também da organização dos mitos em religião e da constituição do poder do


Estado na forma da lei, da ciência e dos rituais litúrgicos. Esse aspecto é notável no filme trágico
que mais toca a questão política e histórica, os Appunti per un‘Orestiade africana, mas também
pode ser notado no roteiro O pai selvagem.
O Centauro, então, é o ser ambíguo por natureza que povoa o imaginário antigo e que é
imposto ao espectador moderno pelo cinema, para que este compreenda o quanto nosso imaginário
recalcado pela razão deve assumir como produtiva a dualidade da nossa natureza psíquica: mito e
lógos convivendo produtiva e dialeticamente como síntese. A estética cinematográfica pasoliniana Ŕ
o cinema de poesia Ŕ elege, como imagem mítica resgatada do inconsciente, o Centauro, imagem
onírica, inexplicável em sua natureza, mas produtiva em seus efeitos estéticos.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. In: A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 1997.


LES CAHIERS MARCEL PROUST. V. 3: Morceaux choisis de Marcel Proust. 39. ed. Paris: Gallimard,
1947.
BARTHES, R. Rhétorique de lřimage. Communications, n. 4, 1964.
ÉSQUILO. Eumênides. In: KURY, A.G. (org. e trad.) Oréstia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
EURÍPIDES. Medeia. Hipólito. As troianas. Trad., apres.: Mário da Silva Kury. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
FUSILLO, M. La Grecia secondo Pasolini. Firenze: La Nuova Italia, 1996.
KITTO, H.D.F. Tragédia grega. Estudo literário. 2 v. Coimbra: Armênio Amado, 1972.
MURRAY, G. Ésquilo como poeta das ideias. In: ÉSQUILO. As suplicantes e Prometeu acorrentado.
Trad.: Napoleão Lopes Filho. Petrópolis: Vozes, 1967.
829
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

PASOLINI, P.P. Lettera del traduttore. In: L'Orestiade di Eschilo tradotta da Pier Paolo Pasolini,
1960. Disponível em: http://www.pasolini.net/teatro_orestiade_traduzPPP.htm.
______. Médée. Trad.: Christophe Mileschi. Paris: Arléa, 2002.
______. Observações sobre o plano-sequência. In: GEADA, E. (org.) Estéticas do cinema. Lisboa:
Dom Quixote, 1985, p. 71-76. Pasolini, Osservazioni sulla piano-sequenza, in Empirismo eretico,
Garzanti, Milano, 1972 (1992), p. 241.
______. [1963] O pai selvagem. Trad. Silvana S. Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1977. 1. ed. italiana: Padre selvaggio. Torino: Giulio Einaudi, 1975.
PINERI, R. Métamorphoses du centaure: La poétique de lřambiguïté chez Pier Paolo Pasolini. In:
BOHLER, O. Pier Paolo Pasolini et l'Antiquité. Colloque Pier Paolo Pasolini. Aix-en-Provence:
Institut de lřimage, 1997.

Filmografia

APPUNTI PER UN'ORESTIADE AFRICANA. Direção, fotografia e narração: Pier Paolo Pasolini. 1970.
Produção: Gian Vittorio Baldi e IDI Cinematografica (Roma). Filmado em 1968-69. Duração: 63
min. Dados disponíveis em: http://www.pasolini.net/.
ÉDIPO REI. Direção e roteiro: Pier Paolo Pasolini. 1967. Produção: Arco Film (Roma). Produtor:
Alfredo Bini. Filmado em abril-junho 1967. Duração: 104 min. 1º Prêmio Festival de Veneza, 1967.
Baseado em Édipo Rei e Édipo em Colono, de Sófocles.
MEDEIA. Direção e roteiro: Pier Paolo Pasolini. Produção: San Marco SpA (Roma), Le Films
Number One (Paris) e Janus Film und Fernsehen (Frankfurt). Produtores: Franco Rossellini; Marina
Cicogna. Filmado em maio-agosto 1969. Duração: 110 min.

830
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A METÁFORA NO DISCURSO LITERÁRIO: O QUE SE ESCONDE POR TRÁS DAS


PALAVRAS

Vanessia Pereira Noronha (UFRR)


Prof. Dr Roberto Mibielli

Introdução

ŖA lñgica da consciência é a lñgica da comunicação ideolñgica, da interação semiñtica de


um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não
sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc, constituem seu único abrigo.
Fora desse material, há apenas o simples ato psicológico, não esclarecido pela consciência,
desprovido do sentido que os signos lhe conferemŗ. ( BAKHTIN)

Ao fazermos uma análise acerca do uso metafórico de forma implícita/explícita, no texto


literário, percebemos claramente as diversas formas de linguagens atribuídas ao texto, de forma que,
o autor usa dessa função alegórica para levar o leitor as perspectivas do contexto literário.

Dessa forma, procuraremos contextualizar as teorias em que o referido assunto, é abordado


levando em consideração o valor das metáforas implícitas/explicitas encontrada nas obras, tendo
em vista que, elas valorizam a construção do texto literário, aproximando então autor/leitor.
Utilizaremos para isso os teóricos da lingüística, no ramo semântico e estilístico, para enfatizar e
legitimar a proposta aqui apresentada. Para FIORIN (2001) Ŗmetáfora é a substituição de uma
palavra por outra, quando houver uma relação de similaridade entre o termo de partida (substituído)
e o de chegada (substituinte)ŗ , dando assim, a eloqüência do texto. Buscaremos com isso, perceber
a presença da metáfora implícita ou explícita nas obras que cito abaixo.

Nosso enfoque principal é o uso da metáfora, em seu sentido implícito/explícito nas obras:
A Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector; A mulher que escreveu a bíblia, de Moacyr Scliar, a
partir das perspectivas de Paul Ricoeur ( A metáfora viva), Matoso Câmara (Contribuição à
Estilística portuguesa) e Michel Bréal (Ensaio de Semântica).

É nesse contexto, que entendemos o uso da metáfora, em suas diversas formas e níveis
semânticos, no qual o mesmo enriquece o texto literário e participa da subjetividade proposta pelo
autor (uma vez queř, a metáfora entrelaça a subjetividade do autor Ŕ que a constrói Ŕ e do leitor, que
a decodifica e faz o texto significar), e é nessa fundamentação de referência que iremos nos basear
para perceber esse uso metafórico nas obras supracitadas. O foco principal é, portanto, o uso dessa
função de metalinguagem no texto literário.

831
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A Metáfora

Sabe-se atualmente nos estudos lingüísticos e literários, que o uso da metáfora é uma forma
antiga muito utilizada pelos gregos como uma forma de alegorização da linguagem, utilizada nas
mais variadas situações. A retórica, como uma arte de falar bem, precisava também de mecanismos
para uma devida expressão.

A função metalingüística ocorre quando o código (no caso, a língua portuguesa) é posto em
destaque. O prefixo meta remete à etimologia grega e significa Ŗmudançaŗ , Ŗposteridadeŗ , Ŗalémŗ ,
Ŗtranscendênciaŗ , Ŗreflexãoŗ , Ŗcrítica sobreŗ (CHALHUB, 1998). A metalinguagem é, portanto, a
reflexão que o código faz sobre si mesmo, é linguagem refletindo sobre as potencialidades da
própria linguagem.

Nessa construção do discurso, presente em todas as formas analisadas nos textos, buscamos
indagações que corroborem com as definições de esclarecimento dos teóricos e que estas se
mostrem percebíveis entre os interlocutores da obra/discurso, em conformidade com a interpretação
de cada uma, e em cada função. Segundo Câmara (1978) essas funções dão significados aos textos e
expressa uma melhor criação de significados.

Trata-se de uma regra, muito mais do que isso, da substituição de uma palavra com forte
tonalidade afetiva a outra mais ou menos neutra neste particular. A relação os significados e
as semelhanças implícitas, que justificam respectivamente as (...) metáforas, que atuam
secundariamente na enérgeia linguística que as cria. (Câmara, 1978, pg.58)

Essa liberdade de variações enriquece a obra a faz também seu uso repleto de significações
por parte da constante atribuição dessas figuras de linguagem, envolvendo assim, a obra, seu papel
cognitivo e sua função literária. E é nesse sentido que iremos buscar a aquisição da metáfora como
um meio de representação do discurso literário.

Segundo Nicola (1947, pg. 437), Metáfora vem do grego meta, 'mudança', 'alteração', e
phora, 'transporte'. Uma mudança de significação de uma coisa pra outra, ou fora da
fundamentação de sua relação com a realidade. Esta passa a estabelecer, então, um elo entre o
discurso literário e o leitor.

832
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O objetivo dos autores em utilizar desse recurso metalingüístico na construção de seus


textos, é, no entanto, dar ênfase as referidas funções no discurso a partir do uso metáforico1,
encontrada nas obras literárias, relacionando-as dentro de um contexto de intertextualidade.

Para Roland Barthes (In CHALHUB, 1986, pg.23)

ŖÀ ordem da metáfora (domínio das associações substitutivas) pertenceriam os


cantos líricos russos, as obras do Romantismo e do Simbolismo, a pintura
surrealista, os filmes de Charlie Chaplin (as fusões superpostas seriam verdadeiras
metáforas fílmicas), os símbolos freudianos do sonho (por identificação); à ordem da
metonímia (domínio das associações sintagmáticas) pertenceriam as epopéias
heróicas, as narrativas da escola realista, (...). À enumeração de Jakobson,
poderíamos acrescentar: do lado da metáfora, as exposições didáticas (mobilizando
definições substitutivas); (...).

Essa relação intertextual se apresenta como uma forma de ruptura nos textos, deixando
espaço para que o leitor possa adquirir e fundamentar sua concepção acerca do texto lido.

Para Baccega (2003):

ŖA sociedade funciona no bojo de um número infindável de discursos que se cruzam, se


esbarram, se anulam, se complementam: dessa dinâmica nascem os novos discursos, os
quais ajudam a alterar os significados. Essa dinâmica tem seu momento mais importante
quando a materialidade do discurso Ŕ texto que circula Ŕ é captada pelo receptor. Este Ŗlê' o
discurso a partir do seu universo, também constituído pelo diálogo estabelecido entre
discursos.ŗ 2

É nessa mesma perspectiva que tentaremos esclarecer, em uma análise, a influência da


metáfora, seja ela usada de forma implícita ou explícita, nas obras literárias que compõem o nosso
corpus, nos pautando, sobretudo na perspectiva de Paul Ricouer (A metáfora Viva), que propõe a
seguinte estrutura para a metáfora:

· A Ŕ o termo a definir (o plano real);

· B Ŕ o comparante (o plano poético);

· C Ŕ o traço comum (o intermediário).

1
Metáfora: emprego de palavra ou palavras em sentido figurado, tomando-se por base a analogia. Para o
significado de analogismos no mesmo dicionário temos que: analogia é o ponto de semelhança entre objetos
diferentes.(Dicionário Soares Amora)
2
Maria Aparecida Baccega. Palavra e Discurso História e Literatura( pg.21) coleções princípios

833
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Assim, a metáfora passou a ser empregada como elemento da teoria literária como forma
figurativa, da argumentação e da elocução do texto literário. Ricoeur (2000) classifica o uso da
palavra dentro da perspectiva do discurso da seguinte forma: Ŗ... a palavra foi destinada a
influenciar o povo, diante do tribunal, na assembléia pública, ou ainda para elogio ou panegírico:
uma arma chamada a dar a vitñria nas lutas em que o discurso é decisivoŗ .

As figuras de linguagem são resultados da necessidade expressiva que temos e da


incapacidade que o nosso espírito tem de abstrair, de reter um conceito, de criar uma idéia fora do
mundo real. Como fator de associação entre dois significados distintos, mas conexos, surge a
metáfora, para manter na memória o que se quer representar, favorecendo, então, o processo de
decodificação que deve ser feito pelo receptor, a fim de apreender a mensagem comunicada pelo
emissor.

Para Bakhtin (2003, pg.294)

Em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo familiar, de amigos e


conhecidos, de colegas, em que o homem cresce e vive, sempre existem enunciados
investidos de autoridade que dão o tom, como as obras de arte, ciência, jornalismo político,
nas quais as pessoas se baseiam, as quais elas citam, , imitam, seguem. Em cada época e em
todos os campos da vida e da atividade, existem determinadas tradições, expressas e
conservadas em vestes verbalizadas: em obras, enunciados, sentenças, etc. Sempre existem
essas ou aquelas idéias determinantes dos Ŗsenhores do pensamentoŗ de uma época
verbalmente expressa...

Para tanto, é compreensível que a metáfora se apresenta como uma forma também, de
discurso, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento caracterizado pelo seu uso de criação de
linguagem. Já que, esse processo se dá por vias de ficção do discurso para com o próprio discurso.

Os múltiplos significados para o uso da metáfora

Dentro dessa perspectiva Ricouer (2000, pg.24), afirma claramente que Ŗa possibilidade de o
discurso metafórico dizer alguma coisa sobre a realidade esbarra na constituição aparente do
discurso poético que parece essencialmente não-referencial e centrado em si mesmoŗ . É clara,
então, uma conceituação por parte do autor que faz menção ao uso característico da metáfora dentro
de uma realidade conceitual da obra literária.

Para o linguista Stephen Ullmann (Apud Ricouer, 1967 ) Ŗhá em todas as línguas artifícios
específicos que ajudam a reforçar a significação emotiva das palavrasŗ . Ele divide esses artifícios
em fonéticos, lexicais e sintáticos, apontando as metáforas Ŕ de caráter implícito e intelectivo Ŕ e a
comparação ou símile Ŕ de cunho explícito, pela presença da conjunção comparativa Ŕ como os
mais potentes meios lexicais utilizáveis sob o ponto de vista emotivo ou expressivo.

834
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ainda, no dizer de Ullmann ( Op Cit 1967 ), temos uma ligação tão íntima da metáfora com
o próprio construir da fala humana que podemos encontrá-la nos mais variados aspectos, entre eles
como fator principal da motivação, como artifício rico em expressividade, como fuga para grandes
emoções e como um meio de preencher espaços no vocabulário1.

Brandão (1989, pg. 21) faz a caracterização de metáfora dentro do discurso literário da
seguinte forma:

(...) a relação metafórica permite praticamente uma equivalência entre toda e qualquer
significação. Este é, portanto, o maior grau de abertura possível. Para os antigos a metáfora
era a mais rica forma de linguagem figurada. Também a mais perigosa, pois se a distancia
entre as significações for muito grande, a expressão corre o risco de se tornar enigmática ou
falsa, suscitando, com isso, a desconfiança do receptor da mensagem; (...).

Essa liberdade de variações enriquece a obra a faz também seu uso repleto de significações
por parte da constante atribuição dessas figuras de linguagem, envolvendo, assim, a obra, seu papel
cognitivo e sua função literária.

Verifica-se, portanto, que nos textos literários existe uma grande quantidade de metáforas,
que às vezes servem até para aproximar o leitor diante dos fatos apresentados pelo autor. Ainda
citando Ricouer (2000, pg. 23)

A poesia não é a eloqüência. Ela não visa à persuasão, mas produz a purificação das
paixões do terror e da piedade. Poesia e eloqüência desenham assim dois universos de
discursos distintos. Ora, a metáfora tem um pé em cada domínio. Ela pode, quanto à
estrutura, consistir apenas em uma única operação de transferência do sentido das palavras,
mas, quanto á função, ela dá continuidade aos destinos distintos da eloqüência ... ; há,
portanto, uma única estrutura da metáfora, mas duas funções: uma função retórica e uma
poética.

A Metáfora tem sido muito discutida tanto na área da estilística literária quanto na da
filosofia, da lingüística e da semântica. Tais ciências interrogam-se sobre a natureza do fenômeno
metafórico e procuram estabelecer critérios classificatórios. No entanto, notamos que a metáfora
inclina-se mais para a criação literária, em especial, a poesia, daí ser considerada a figura
eminentemente Ŗpoéticaŗ .

1
A metáfora possui dois termos Ŕ aquilo de que falamos - e um outro com que comparamos o que foi enunciado Ŕ cuja
terminologia varia entre os autores, mas que podem ser simbolizados pelas letras A e B. Assim: A teria a denominação
de teor, termo comparado, termo evocado e termo metaforizado . B, em relação a A, seria o veículo, termo comparante,
termo evocador ou referente e termo metaforizante, respectivamente. O aspecto ou traço que A e B têm em comum,
Ullmann ( 1967 ) designou como fundamento da metáfora. Paul Ricouer ( A metáfora Viva)

835
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Portanto, o uso desse recurso é visto como um processo pelo qual o signo desenvolve suas
potencialidades, alcançando a pluralidade de significados. E a poesia só destrói a linguagem
corrente para reconstruí-la num plano superior. Mesmo assim, ela volta em certo momento como
forma de ruptura da própria linguagem.

(A paixão segundo G.H)

A Paixão segundo G.H, de Clarice Lispector, foi escrito em 1964. O livro representa o que
havia de mais moderno entre os textos publicados na época, e que marca uma nova forma de
escrever, utilizando-se de novos elementos estilísticos para com o texto literário. O livro reflete
histórias comuns, que se passam no nosso País, e tem como destaque os conflitos pessoais
vivenciados pela personagem G.H., não deixando de evidenciar também, as lutas de classes e as
relações de dominação estabelecidas entre opressores e oprimidos.

A percepção ideológica de um ser que se considera superior a outro é o ápice do texto de


Clarice, e o cotidiano da personagem passa então, a fazer parte dessa nova forma de agir, pensar e
refletir sobre as coisas Ŗmundanasŗ do dia a dia de G.H. A forma de ver o outro passa, então, a ser a
forma de se ver em uma sociedade tapada pela própria personagem. Domínio exercido por ela.
Característica essa, que iremos chamar aqui metaforicamente de Ŗespelhoŗ social utilizado pela
personagem para se Ŗenxergarŗ como ela é, e não como os outros pensam que ela é.

No decorrer do romance há várias passagens em que G.H reflete sobre o seu mundo,
deixando para trás o mundo de Janair (a empregada), e que mesmo assim, a vida da empregada
passa a influenciar em todos os aspectos de sua vida.

A linguagem utilizada por Clarice Lispector em A Paixão Segundo G.H, centraliza a ordem
de seu texto nos passos da personagem central. Já que G.H. sofre por tentar se ver como aquela
pessoa que foi sua empregada, e mais que isso: ter um mínimo de identificação com ela.

O plano metafísico em que a obra se insere transmite ao leitor a mesma repugnação sofrida
por G.H, tendo em vista, o denso movimento refletido pelo livro. A repulsa da personagem passa a
ser sua própria existência. Fato esse que vai ser representado pelo uso da Metáfora em todo o
romance.

As formas de metáfora encontradas em A paixão segundo G.H, refletem no que é o ser da


própria personagem, a reflexão que repassa ao leitor sobre o que ela mesma está prestes a fazer, ao
se ver angustiada com a sua própria existência. Fato este que se explicita na sua busca por um outro
ser, que não seja ela naquele mesmo instante.
836
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O momento, a realidade em que está inserida G.H, metafisicamente, corrobora com a idéia
de que qualquer movimento tiraria a personagem de seu momento, o momento que ela precisa para
poder Ŗenxergarŗ o outro. É a partir desse momento que G.H passa também a se ver como mero
reflexo de seus atos cotidianos, e passa a perceber-se totalmente mascarada para com seus próprios
olhos.

Ao refletir sobre o que pensava Janair, que G.H. viaja entre os dois mundos; compara,
descreve, analisa, aceita a empregada como uma forma de achar sua própria aceitação:

ŖSñ que ter descoberto súbita vida na nudez do quarto me assustara como se eu descobrisse
que o quarto morto era na verdade potente. Tudo ali havia secado Ŕ mas restara uma barata.
Uma barata tão velha que era imemorial. O que sempre me repugnara em baratas é que elas
eram obsoletas e, no entanto atuais. A Paixão segundo G.H (pp.47/48)

Nesse trecho Clarice se utiliza dos dados que sabe a respeito da vida desse bicho. É alguém
que leu, pesquisou, e teve, apesar da repugnância, certa Ŗinvejaŗ das baratas por elas existirem a
tanto tempo, e em tantos lugares, sem perder a sua vitalidade nojenta. Foi essa mesma barata,
repugnante aos olhos da personagem, que a fez refletir sobre a existência do ser humano:

Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali
estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos dentro
de uma lama – era lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva, era
uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade. A
Paixão segundo G.H (pg.57)

É essa identidade que G.H. procura dentro de si, na verdade que nem sempre é verdadeira
para ela e para o outro, mas que vai ser definidora de sua concepção de vida, e do outro que está a
sua volta. Prova disso é a utilização da barata como recurso metafórico (explícito), já que fica claro
o tipo de expressão representada, parte, portanto, da estrutura proposta por Paul Ricouer. Onde tem
a partir de sua representação e de sua personalidade, de seu meio e suas atitudes com o outro;
revelando assim, seus medos diante dos fatos que o cercam.

A mulher que escreveu a Biblia

No livro a Mulher que Escreveu a Bíblia, Moacir Scliar tentou metaforicamente apresentar
uma personagem que serviria de base para sua histñria real, pois, a Ŗfeiúraŗ de uma personagem
como esta não estava em relação ao físico totalmente e sim a outras características em que o autor
tentou demonstrar em sua obra.
837
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Logo de início temos essa passagem:

A feiúra é fundamental, ao menos para o entendimento desta história. É feia, esta que vos
fala, Muito feia. Feia contida ou Feia furiosa, feia envergonhada ou feia assumida, feia
modesta ou feia orgulhosa, feia triste ou feia alegra, feia frustrada ou feia satisfeita Ŕ feia
sempre feia. A mulher que escreveu a bíblia, A mulher que escreveu a bíblia (pg.19)

O texto de Scliar já começa, atribuindo significados a sua personagem, ou seja, a metáfora


da Ŗfeiaŗ em questão. Podemos perceber que essa maneira de utilizar-se de um adjetivo para dar
características a personagem é também uma forma de utilizar-se dos recursos metalingüísticos. No
trecho acima poderíamos considerar como um tipo de metáfora explicita, porém, se formos ver com
clareza o texto, não define esse tipo de feiúra atribuído a personagem; ela é apenas muito feia.
Porém, não totalmente, já que apresenta outras qualidades, que até então nenhuma outra
personagem tem; o dom de saber ler e escrever..

Outra metáfora encontrada logo de inicio foi o Ŗusoŗ do espelho na qual a feia passa a de
fato concretizar sua angustia diante dos acontecimentos em sua vida. Ou seja, o espelho é ai
representado como a realidade; sem espelho não se pode ver nem o belo nem o feio. Pois, é nesse
contexto que a feia passa a se ver como feia por ser uma representação do espelho.

O espelho é, o começo de tudo, o começo de uma história que a partir de agora tomou lances
diferentes na construção do texto de Skliar. Assim:

Eu não sabia que minha irmã tinha um espelho. Ninguém sabia que minha irmã tinha um
espelho. Mais: ninguém sabia que havia um espelho em casa. A mulher que escreveu a
bíblia, (pg.19)

Nesse trecho podemos perceber o quanto foi desesperador para a personagem além de se
sentir feia, se sentir enganada por alguém ( entra nesse caso outro paradoxo; melhor ser feia do que
enganada), no caso da irmã supostamente bonita, que se utilizava do espelho para admirar-lhe. Ela
queria e tinha o direito de se ver também, mesmo sabendo do que poderia acontecer; ela já sabia o
que ia estar refletido no espelho, após 18 anos de vida (a imagem de alguém que se acha feia).

Tinha de procurar um refúgio, algo que fizesse por um momento esquecer de seu destino,
ou, esquecer de sua suposta feiúra: Dessa forma:

(...). E quando a encontrei, logo soube que era aquilo que procurava.

838
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Uma pedra. Uma pequena pedra.

Diferente de outras pedras da montanha, aquela era lisa, suave ao tato. A mulher que
escreveu a bíblia (...)(pg.32)

(...) O certo é que a pedra Ŕ pelo tamanho, pelo formato ovóide, e, sobretudo pela lisura Ŕ
servia perfeitamente para o que eu queria. Essa pedra substituiria o amante que eu, feia,
nunca teria. Introduzida na vagina, faz-me-ia gozar. A mulher que escreveu a bíblia
(pg.33)

A pedra, além de refúgio se tornaria metaforicamente seu artifício, sua referência para o
sexo, os desejos incultos que lhe acalentavam; a pedra era algo neutro, algo que, com certeza não
repararia em sua estética humana.

Como vimos o texto apresenta fortes características de metáforas na construção do texto


literário, o mecanismo proposto dessa metalinguagem no romance consubstancia-se através de uma
maior significação utilizado pelo autor do texto.

Considerações finais

Com esse nosso trabalho, podemos perceber que, além de existir uma infinidade de
metáforas nos textos literários, há a representação de cada uma comparada com seus usos e
manifestos próprios em cada discurso, em cada voz do texto. Seja ela de forma implícita ou
explicita.

Em todas as obras analisadas percebemos de alguma forma o uso da metáfora de forma


implícita/explicita, enriquecendo mais ainda o discurso literário, as obras foram aqui analisadas em
forma de fragmentos para não estender o assunto, Os fragmentos foram analisados de acordo com a
estrutura de Ricouer (2000), A – (o plano real), B – (o plano poético), e C – (o intermediário).

De qualquer modo, as expressões metafóricas numa língua, numa obra literária, refletem a
intenção do autor, do falante em manifestar a sua emoção, a sua maneira de ver e avaliar os fatos, os
acontecimentos de sua sociedade, como também de estabelecer as diversas características de tudo
que nos cerca.

Por fim, encontramos a metáfora implícita/explicita em todos os textos, percebemos


também sua função e seu valor estético para com a abordagem de cada autor. Seu sentido próprio e
sua expressividade no que se refere obra/leitor.

Referências bibliográficas

BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso: História e Literatura (Coleção princípios),


editora atica, 2003.

839
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

BAKHTHIN, Michail: Marxismo e Filosofia da Linguagem. (Trad.) Michel Lahid eYara


Frateschi Vieira, 11ºed. - São Paulo. Ed. hucitec, 2004

_________________.Estética da criação verbal (Trad.) Paulo Bezerra; 4º ed. - São Paulo :


Martins Fontes, 2003

BRANDÃO, Roberto de Oliveira: As figuras de linguagem. Editora atica,1989.

CHALHUB, Samira. A metalinguagem Ŕ Editora Á tica- 1986- Série Princípios.

BARROS, Diana Pessoa de; FIORIN, José Luís. Dialogismo.Polifonia,Intertextualidade Ŕ


Editora da Univrsidade de São Paulo, 1994 (ensaios de cultura, 7)

BRÉAL, Michel. Ensaio de Semântica: ciência das significações (Trad.) Aída Ferraz Ŕ São Paulo:
EDUC, 1992.

CÃMARA JUNIOR, Joaquin Mattoso. Contribuição à Estilistica portuguesa Ŕ 3º ed.: Rio de


Janeiro, 1978

FIORIN, José Luís. Elementos de Análise do Discurso Ŕ 10º ed. - São Paulo: Contexto,
2001(Coleção Repensando a Língua portuguesa).

FOUCAULT, Michel: A Arqueologia do saber (Trad.) Luiz Felipe Baeta Neves Ŕ 7º ed. - Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H; Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

RICOUER, Paul. A metáfora viva. (Trad.) Dion Davi Macedo, - São Paulo, 2000.

SCLIAR, Moacir. A Mulher que Escreveu a Bíblia: São Paulo; Companhia das Letras, 1999

http://www.unicamp.br/~boaventu/page19e.htm

840
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O CINEMA NA LITERATURA OU A LITERATURA NO CINEMA: ASPECTOS DA


NARRATIVA DE RESISTÊNCIA ŖEM CÂMARA LENTAŗ DE RENATO TAPAJÓS

Veridiana Valente Pinheiro - UFPA/CNPq


Tânia Sarmento-Pantoja Ŕ UFPA (Orientadora)

Resumo: Com o objetivo de observar as ressonâncias de um determinado período histórico/cultural, o da


ditadura militar de 1964, o trabalho em questão parte da relação entre literatura e cinema e de seus efeitos, na
composição do romance Em Câmera lenta (1977), do paraense Renato Tapajós.

Palavra-chave: Literatura. Cinema. Narrativa de resistência. Renato Tapajós.

Considerações iniciais1

Tomo a relação entre literatura e cinema como fundamento para analisar a composição do
romance Em Câmera lenta (1977), do paraense Renato Tapajós, em particular, como os efeitos
dessa relação ligados à constituição das impressões de realidade se articulam com vistas a remeter a
um determinado aspecto da história do país: o regime militar de 1964 e os mecanismos de repressão
impostos aos indivíduos ligados à resistência.

Michel Foucault analisa a repressão como sendo uma poderosa Ŗmecânica do poderŗ ,
tratando-o como uma questão propriamente histórica, como podemos perceber no fragmento a
seguir: Ŗse falam com tal profusão e há tanto tempo, é por que essa repressão está bastante firmada,
possui raízes sñlidas, pesa sobre o sexo de maneira tão rigorosaŗ (FOUCAULT, 1988. p. 15). Para
esclarecer melhor o que entendo como sendo tais mecanismos repressivos, tomo o conceito
foucaultiano de dispositivo, tal qual encontramos em suas obras a História da Sexualidade e a
Microfísica do Poder2. Inicialmente, dispositivo aparece em História da sexualidade, como traço
essencial que permite ao analista estabelecer relações entre poder, sexo e a história do ocidente.
Posteriormente, se faz presente em Microfisica do Poder, para dar conta de como se constituem os
aparatos jurídicos do tribunal, das prisões e das punições cotidianas, refletindo como tais aparatos
moldam as estruturas cognitivas do sujeito, com vistas a disciplinar o individuo para a vida em

1
O presente trabalho é fruto das investigações realizadas nos projetos de pesquisa Narrativa de Resistência: Formas,
Performances e trajetos na Amazônia, coordenado pela Profª. Tânia Sarmento - Pantoja. Especiais agradecimentos são
dirigidos a Katyane Cabral Marinho, Graduada em Letras e voluntária no segundo projeto referido, a minha orientadora
Tânia Sarmento- Pantoja, ao professor colaborador Augusto Sarmento, ao Carlos Augusto Carneiro Costa mestrando
em Literatura da USP - Universidade do estado de São Paulo.
2
Em suma o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes
elementos (FOUCAULT, 1989. p. 244)

841
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

sociedade. Funcionando como instrumento de análise os dispositivos são as estratégias, as


estruturas, os mecanismos e as ferramentas de coerção e disciplina.

Dessa forma, o poder assume aspectos repressivos, na medida em que aparecem processos
de rupturas que visam a negação do poder. Nesse sentido, é da historicidade citada anteriormente
que destaco determinados aspectos repressivos, como as prisões, as torturas, os assassinatos e as
perseguições policiais que comprometiam a integridade moral, física e psicológica dos militantes de
esquerda que realizaram a resistência ao regime ditatorial de 64 e que se fazem presentes na
narrativa de Em câmera lenta.

2. O lento olhar em câmera sobre a coerção e a disciplina

Em uma primeira incursão da obra, tomei como ponto de partida o título da narrativa. Sua
sugestividade através do titulo Em Câmera Lenta, propõe desenvolver a idéia que dará sentido a um
conjunto de aspectos ocorridos, como ressonâncias1 a serem decifradas a partir de um viés histórico.
Assim, quando analisamos a expressão Ŗem câmeraŗ descobrimos a ação que circula a narrativa,
reforçada pela escolha da preposição Ŗemŗ, que auxilia na demonstração, de forma simbñlica, do
movimento da câmera, que podemos conceber como: Ŗum olho pelo fato de, de maneira objetiva,
registrar o mundo pró-filmico sem transformá-lo. [...] Ŗé um nome para a maneira como olhamos e
como conhecemos a um dado momentoŗ (AUMONT, 2003. p. 40-41). Nesse sentido, câmera é um
instrumento de propulsão do real, um modo de dizer ou de olhar para o real. No caso, esse olhar se
realiza a partir da perspectiva do personagem Ele, que busca descrever os fatos milimetricamente,
ocorridos como em um filme, em que os confrontos entre os militares e os militantes contrários ao
regime de 64 e as palavras, são transformados em imagens visuais pelo leitor.

Em Câmera Lenta tem inicio, com apresentação de um discurso autoral-biográfico e


apresenta também um resumo do romance, salientando as principais discussões abordadas, entre
elas, aspectos morais e políticos são apresentados na narrativa e a forma como o romance denuncia
a violência repressiva e a tortura vivida pelos militantes no período da ditadura de 1964 no Brasil.
Dando continuidade a esta análise verificamos o adjetivo Ŗlentaŗ , entendido aqui como algo que
anda ou procede um acontecimento, ou seja é este adjetivo que molda todo o olhar produzido pela
câmera pois, é ela que controla a velocidade dos acontecimentos principalmente em relação à
demarcação do tempo consciente e inconsciente da narração durante a focalização do personagem
Ele.

1
No caso, a emergência de aspectos relacionados ao processo de resistência em um dado período histórico,
especificamente aqui neste trabalho, o da ditadura militar de 1964.

842
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

A narrativa do romance parte de uma simulação: uma voz bio-gráfica que finge ser o autor
do romance dá início à narrativa. A técnica narrativa utilizada para constituir essa voz é a do
narrador focalizador, que assume duas focalizações: a primeira é a partir do olhar do personagem
Ele, em que a voz tem traços autorais, a segunda é a partir do olhar do pai da personagem Ela. Esses
sujeitos da focalização encadeiam-se, assumindo ora um, ora outro a voz do discurso, ou seja, além
de encadeados esses Ŗolharesŗ se deixam perceber como se fosse um olhar através de uma câmera
cinematográfica.

No primeiro capitulo é apresentada a cena de um confronto urbano contra a policia em que o


líder é atingido e uma companheira é apanhada pelos militares. O militante ferido é levado para um
aparelho1, como descrito no seguinte fragmento:

ŖSe eles vierem e atirarem as balas pegarem no peito, na cabeça. [...] agora não dá mais
para fazer nada nem por ela nem por ninguém e o que fecha a garganta é o cerco, as armas
sem nome, as mãos sem nome, as peles vazias que se movem como se fossem gente, o
isolamento; cada dia mais perto, há quinze dias nunca admitiria isso, embora já o soubesse
há muito tempo [...] Nada deu certo [...] mas pouca gente entendeu, nem podia entender e
agora estamos sozinhos, vinte, trinta, sei lá.ŗ (TAPAJOS, 1977. p. 14).

A partir desta cena que observo também como é mostrada a exterioridade da solidão sofrida
pelos militantes nos aparelhos através do olhar do focalizador Ele. Tal solidão é observada como
uma metáfora do inicio da decadência do movimento. Assim, a narrativa vai sendo descrita com a
abertura de questionamentos como estes: por que lutamos? Que resultados terá a nossa luta contra o
regime? Por que a luta só terá sentido com a morte dos revolucionários? E, esses questionamentos
são lançados ao leitor como uma espécie de reflexão de análise sobre a ação do grupo armado e, ao
mesmo tempo sobre a vida e o propósito que levou pessoas a abrirem mão de sua vida para lutarem
contra o regime militar.

As personagens centrais da ação da narrativa são Ele, Ela, o Venezuelano e Marta. O


Venezuelano assume a liderança do grupo de estudantes, mas, é outro personagem, Ele, que assume
um papel de grande importância no romance, pois, na medida em que o narrador direciona a
focalização do discurso para este personagem, a forma cinematográfica é apropriada pela forma
literária, particularmente quanto ao aspecto da focalização. Desse modo, a relação entre cinema e
literatura se realiza aqui especificamente no nível da expressão. E, se propaga através dos diversos
âmbitos significativos da narrativa do romance, muito especialmente o âmbito da relação entre
ficção e história. Esse processo de apropriação tem como efeito entre outras coisas o de tornar mais
evidente a impressão de realidade. Como num filme as imagens que vão se constituindo no romance
adquirem maior capacidade de envolver e, em algumas situações, de chocar o receptor da obra.

1Esconderijo disfarçado, onde ficavam escondidos os militantes que caiam na clandestinidade.

843
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Um exemplo de como se dá tal conexão é a cena em que através do olhar do personagem Ele
o narrador descreve a decolagem de um avião:

Ŗo avião correu pela pista e ele, prendendo a respiração, observou a beleza daquela corrida,
a força contida se transformando em vôo, a massa de alumínio vibrando, transfigurada
numa ave feroz, de músculos distendidos, agressiva. Sentiu a mão de Marta em seu braço, a
voz dela vindo de muito longeŗ (TAPAJOS, 1977. p. 27).

Como dito anteriormente a impressão de realidade se torna mais densa a partir do recurso
narrativo adotado. A descrição em detalhes de cenas com nitidez de cor e a descrição do espaço
também se faz presente no fragmento abaixo:

ŖA avenida ladeada de mangueiras, como um grande túnel, eu lembro. No meio da tarde, o


sol filtrado pela copa das árvores, os poucos carros e as pessoas que passavam, sem pressa
carregando calor. Casas antigas de grandes janelas abrindo diretamente para a rua, alguns
jardins cercados por antigas grades, as grandes portas de madeiraŗ (TAPAJÒS, 1977. p. 28)

A riqueza de detalhes faz da leitura do romance uma Ŗviagemŗ forjada como se fosse um
conjunto de imagens cinematográficas, dispostos e ordenados em seqüenciais cinematográficas, que
tornam reconhecíveis, por exemplo, elementos de um bairro de Belém do Pará da década de 60, a
Cidade Velha. É como se o leitor estivesse vendo partes do bairro através de uma câmera, ou
assistindo essa imagem num filme. Tais seqüências são descrita em ordem linear dos
acontecimentos descritos: primeiro, o formato da rua comparada a um túnel, segundo, os objetos
que a embelezavam como a copa das árvores dando uma outra tonalidade aos raios de sol, refletido
nas pessoas que transitavam sem pressa a avenida ladeada composta de casas antigas ornamentadas
de lindos jardins.

Além disso, a idéia de fingimento, produto do flerte entre literatura e cinema é percebido no
âmbito do discurso com o uso de uma espécie de vocativo: ŖComo em câmera lentaŗ , como se
observa a seguir:

ŖComo em câmera lenta: ele percebeu que a rua estava bloqueada por uma batida policial.
Olhou para os lados e percebeu que não havia por onde escapar: atrás, outros carros já
paravam, cortando a possibilidade de manobrar e fugir pela contramão. Parou o carro
lentamente. Um policial aproximou-se e pediu os documentos. Ele os entregou; o policial; o
policial examinou-os lentamente. Estavam em ordem. Com os documentos nas mãos, o
policial deu a volta no carro, olhou pela janela onde ela estava, examinando o interior do
carro para ver se havia algo de suspeito. Ela sorriu timidamente, como que acanhada com o
exame. No banco traseiro, um outro companheiro segurava uma maleta escura; o policial
pediu para ver o que tinha na maleta e na maleta tinha uma metralhadora; ela se voltou para
trás. Sua mão descreveu um longo arco em direção ao banco traseiro, mas interrompeu o

844
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

gesto e desceu suavemente na abertura da bolsa, escondida entre os dois bancos da frente,
um pouco atrás do freio de mão.ŗ( TAPAJOS, 1977. p. 56-57).

A citação acima também nos mostra situações diretamente relacionadas aos elementos
históricos igualmente apropriados pela narrativa literária. O fragmento resulta de uma re-
memoração do personagem Ele, relatando o dia em que um policial estava fazendo revista de rotina
na rua e os militantes, sem saber da situação, são abordados e termina ocorrendo um violento
confronto entre eles.

Desse modo, encontramos Em Câmera Lenta Ŕ além de aspectos relacionados às questões


políticas do final dos anos 60, as ações armadas da guerrilha sobre a violência da repressão e da
história interior o romance Ŕ a descrição da vida na clandestinidade: seu cotidiano, sua vida pessoal,
seus amores, suas crenças, seus medos, seus gestos. Um olhar penetrante na vida e na intimidade
dos jovens militantes que enfrentaram e se imolaram na guerra contra a ditadura militar. Nesse
sentido, tais técnicas cinematográficas descritas acima dão-nos a possibilidade de leituras referentes
à emergência da resistência no romance.

O uso da cinematografia é um recurso utilizado pelo autor para que o leitor Ŗvejaŗ de uma
forma Ŗpsico-imagéticaŗ 1 os acontecimentos narrados pelo escritor, assim a ficção aproxima-se do
real, como observado no seguinte fragmento da narrativa:

ŖComo em câmera lenta: o policial pediu para ver o que tinha na maleta e na maleta tinha
uma metralhadora; ela se voltou para trás. Sua mão descreveu um longo, em direção ao
banco traseiro, mas interrompeu o gesto e desceu suavemente na abertura da bolsa,
escondida entre os dois bancos da frente, pouco atrás do freio de mão. O rosto impassível
olhava para a maleta que o outro segurava, mas os dedos se fechavam sobre a coronha do
revólver que estava na bolsa. E num movimento único, corpo, rosto e braço giravam
novamente, o cabelo curto sublinhado o levantar da cabeça, os olhos, agora duros,
apanhado de relance a imagem do policial que bloqueava a portaŗ (TAPAJÒS, 1977. p. 25-
26).

É a partir deste fragmento que observamos também que essa forma Ŗpsico-imagéticaŗ se
funde aos mecanismos de punição e vigília, descritas por Foucault, Ŗo terror enquanto suporte do
exemplo: medo físico, pavor coletivo, imagens que devem ser grafadas na memória dos
espectadores, como a marca na face ou no membro do condenadoŗ .(FOUCAULT, 2008. p. 91). Os
dispositivos de repressão se destacam no romance de Renato Tapajós, porque os acontecimentos
narrados vão se tornando mais reais na imaginação do leitor, aproximando-o do que realmente
aconteceu em um dado momento da história do país.

1
É a partir desse termo, que defino a imagem mental que pode ser produzida pelo leitor durante a leitura do romance.
845
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Considerações finais

Assim, utilizando aspectos cinematográficos o autor apresenta a visão ficcional através da


qual a linguagem literária, ao flertar com a linguagem cinematográfica, trás a tona um conjunto de
aspectos que podem ser compreendidos como próprios dos dispositivos de repressão 1. Essa
proximidade entre literatura e cinema visa, entre outros aspectos, a busca por uma sensação de
realidade, mas como se trata da ficcionalização de um real insólito, pela catástrofe e pela
imensidade do trauma que carrega, essa sensação de realidade é, ao mesmo tempo, rasurada pela
fragmentação, este produto das técnicas de narração e focalização anteriormente descritas. É nesse
lusco-fusco, nessa fenda entre literatura e cinema, entre a sensação de realidade pretendida e ao
mesmo tempo desfigurada que o discurso ficcional se impõe para mostrar o Ŗjogo de rarefaçãoŗ
comum a todo discurso, segundo Foucault (1996. p. 70).

No romance de Tapajós tal processo de rarefação tem a função de re-fazer, tornar menos
densa as imposições a que estão sujeitados certos personagens, não somente do ponto de vista da
individualidade, como também da sua presença no tecido social da qual fazem parte. É dessa
maneira que o personagem Ele se apropria do discurso da narrativa para falar em nome de uma
sociedade que protesta contra o regime autoritário.

Ao se apropriar da narrativa enquanto voz, Ele provoca a diluição da densidade dos


discursos envolvidos. Nesse processo, a linguagem cinematográfica é apropriada pela literatura,
com o intuito de transcender a realidade em que os discursos que precisam ser des-densificados
estão rarefeitos, como observado na descrição do seguinte fragmento do romance:

ŖE, no entanto, eu via tudo através de uma intensa elaboração: até as coisas mais banais
tinham um encanto quase mágico. Não é a distancia nem o tempo. Era a maneira de ver, de
revestir os gestos com uma gravidade solene e emprestar as vozes um eco literário [...] Toda
beleza era triste por que não decifrada Ŕ a avenida, a praça e a praia, aparência de um mundo
subterrâneo. Um mundo desconhecido, um mundo que eu precisava conhecer, para
transformá-lo. Ou destruir-me. [...] (TAPAJÒS, 1977. p. 30-31).

Nesse sentido, a resistência é produto desse convite perscrutador que Ele faz ao leitor.
Assim, Em Câmera lenta não é sñ uma narrativa de resistência, funciona também como Ŗecoŗ das
incertezas e ambigüidades dos militantes que de forma selvagem renunciaram as suas vidas, sua
família, seus anseios, para lutarem por uma visão utópico-ideológica em que acreditavam naquela
época.

1
A tortura é antes de tudo um choque, uma surpresa, capaz de causar no indivíduo torturado medo, tendo ele a sensação
o tempo todo de ser vigiado ou perseguido. (MATOSO, 1986. p. 11)

846
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Referências bibliográficas

TAPAJÒS, Renato. Em câmera lenta: romance. Ed. Alfa-Omega. 2ª edição. São Paulo. 1977.

BOSI, A. Narrativa e Resistência. In: _. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p. 118.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Edições Loyola. São Paulo. 1996

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 35ª
edição. Rio de Janeiro: Vozes, 2008 Ŕ 288 p.

BUARQUE, Aurélio. Minidicionário da língua portuguesa. Coordenação de edição, Margarida


dos Anjos e Marina Ferreira. 4ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

AUMONT, Jacques. Dicionário teórico e critico de cinema. Tradução Eloisa Araújo Ribeiro. São
Paulo: Papirus, 2003.

FOULCALT, Michel. A Microfísica do Poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio


de janeiro: Edições Graal, 1979.

MATOSO, Glauco.O que é tortura. Nova cultural: brasiliense. São Paulo. 1986.

Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Organização Thomas Bonnici,


Lúcia Osana Zolin. Eduem Maringá. 2003.

847
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

LUIZ COSTA LIMA E A REVISÃO DA MÍMESIS

Victor de Oliveira Pinto Coelho (PUC-Rio) 1

Resumo: O objetivo é apresentar a revisão da noção de mímesis feita por Luiz Costa Lima: na
mímesis está sempre presente uma tensão entre semelhança/reiteração e diferença. Começaremos
pela estética da recepção alemã, com destaque para a estética do efeito de Wolfgang Iser e mais
especificamente sua última fase, em que se dedica a uma antropologia literária com a distinção entre
Ŗficções explicativasŗ e Ŗficções literáriasŗ . Daí, procederemos à exposição da antiga noção grega
de mímesis já do ponto de vista da revisão costalimeana: desloca-se o estudo da metafísica para a
teoria da cultura: a mímesis é tomada enquanto imitação na medida em que a ordem cultural não
admite Ŗfissurasŗ , e por isso impõe sua reiteração. A isto se liga a noção de controle do imaginário.
Será destacado o estudo do autor sobre Aristóteles e Kant. Por fim, uma breve exposição da noção
de sujeito fraturado e a crítica à vanguarda moderna que Ŗaceitaŗ a mímesis enquanto imitação para
propor seu completo descarte.

1. Estética da recepção e a tensão entre ficção e controle do imaginário

Na Alemanha Ocidental do pós-Segunda Guerra tornou-se difundida a chamada crítica


imanentista, que, à semelhança do new criticism anglo-saxônico, considerava a obra apenas em sua
face textual, desprezando os elementos histórico-sociais (Costa Lima, 2002, p. 12). A obra mais
significativa do período foi Literatura européia e Idade Média latina, de Ernst Curtius, no qual o
autor se concentrava na pesquisa dos topos e advogava a neutralidade dos estudos literários. Mas tal
proposta apaziguadora não podia eliminar a tensão proveniente de dois fatores: primeiro, o
desprestígio da tradição da Bildung, já que naquele contexto de pós-guerra a noção de formação
pela herança cultural se tornara um problema; segundo, o reconhecimento de que os textos possuem
conteúdos também portadores de significado, reconhecimento que se via reduzido à busca de um
sentido tido como o correto, sob a tutela de uma estrutura universitária ainda dominada pelo
mandarinato. Disso decorria uma pergunta inquietante, que abriria espaço para a chamada Ŗquerela
das interpretaçõesŗ : Ŗuma vez encontrado, por que o sentido haveria de mudar, se as letras, as
palavras e as frases do texto permeneciam as mesmas?ŗ Ŕ indagação que partia do reconhecimento
de que havia de fato mais de uma interpretação para determinado texto, o que implicava a
necessidade Ŗde explicitar os pressupostos requeridos para realizar o ato de interpretaçãoŗ (Iser,
1999, p. 22).

1
Doutorando em História Social da Cultura pela PUC-Rio.

848
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Passou-se, então, a valorizar a articulação entre (i) intenção do autor, (ii) a mensagem da
obra e (iii) o valor manifestado na conciliação harmoniosa, critérios que serão Ŗo pano de fundo
para a teoria do efeito estéticoŗ (idem, p. 24). Abre-se o caminho para a pesquisa do efeito estético e
dos vazios internos ao texto, próprios ao jogo do como se (cf. Costa Lima, 2002), que será
aprofundada pela estética do efeito de Wolfang Iser. Tais vazios são lugares de efeito a serem
preenchidos/interpretados pelo leitor. Tais vazios independem da intencionalidade do autor e
relacionam-se tanto com o enredo da obra como também a esse preenchimento pelo receptor.
Podemos tomar como exemplar, por bem conhecida, a suposta traição de Capitu a Bentinho na
memória do narrador de Dom Casmurro. Se vivêssemos numa sociedade extremamente
conservadora poderíamos pensar que o próprio debate sobre Capitu ter traido ou não o marido não
teria sido possível: nenhuma autoridade, política ou acadêmica, permitiria sequer que tal vazio fosse
reconhecido e houvesse o debate Ŕ à parte a (inadequada) desconfiança do narrador, ou melhor, à
parte ao Ŗdescuido do autorŗ de deixar espaço para tal tipo de dúvida. Mas, neste caso, já sabemos
que tal vazio foi tranformado num clichê ou uma charada dentro de um debate estéril. Além disso,
os vazios não se constituem apenas de Ŗlacunasŗ , mas também, p. ex., de elementos que se repetem
Ŕ como a figura espectral da corda na obra de Graciliano Ramos, especialmente no romance
Angústia Ŕ, que, da mesma forma que as lacunas, demandam interpretação.

A estética da recepção surge então como alternativa àquele imanentismo burocratizante e


também ao domínio do marxismo reflexológico praticado na Alemanha Oriental. Importantes
também para o impulso da estética da recepção foram os protestos estudantis no final da década de
1960, motivados tanto pelo combate à estrutura universitária arcaica quanto por um conflito de
gerações Ŕ eram jovens que questionavam o passado de seus pais, que preferiam silenciar sobre o
período nazista, e os detentores do saber oficial, para os quais o nazismo teria sido um Ŗdesvio
histñricoŗ .

Com a adoção de uma perspectiva antropológica por parte de Iser a abordagem da dimensão
do vazio textual torna-se mais clara, pois sua articulação com o fora-do-texto (alternativamente às
abordagens imanentista e reflexológica) é esclarecida, assim como o papel do imaginário Ŕ cujo
estudo é desenvolvido e aprofundado por Costa Lima ao longo de sua revisão da mímesis e em
especial na sua teorização do controle do imaginário. Iser diferencia dois tipos de ficção: ficções
explicativas, correspondentes ao campo cultural, e ficções artísticas. As primeiras são necessárias
para lidar com a entropia social ao proporcionar sentido e fortalecer os laços sociais, estabelecendo
o mínimo de valores e normas para o convívio em sociedade. Mas, vivemos num Ŗhiato de
informaçãoŗ : entre Ŗo que nosso corpo nos diz e o que precisamos saber para funcionar, há um
vácuo que nos cabe preencher, e o preenchemos com informação (ou desinformação) propiciada por
nossa culturaŗ . A cultura, enquanto Ŗficção explicativaŗ , emerge portanto Ŗdesse vazio constitutivoŗ
(Iser, 1999, p. 154-155). Já as ficções literárias, como construções do tipo como se, assinalam que a
realidade Ŗse encontra posta entre parêntesesŗ (idem, p. 167). São transgressoras, pois Ŗatuam como
meio de desorganizar e desestruturar os seus campos de referência extratextuaisŗ , constituindo
849
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Ŗinstrumentos de exploraçãoŗ (idem, p. 168). Trata-se de um jogo textual, no qual o texto deixa de
ser fixado ao referente sem, contudo, tornar-se auto-referente: a ficção se refere ao mundo Ŕ quer
dizer, ao mundo dos valores, no qual se incluem os critérios de verdade Ŕ para colocá-lo entre
parêntesis, em perspectiva, que por sua vez é um pôr-se à distância necessário a qualquer apreciação
ou juízo crítico.

Diante da rebeldia da imaginação o condicionamento cultural pode se tornar uma forma de


controle socialmente estabelecida. É neste sentido que se dá a elaboração, por Costa Lima, da noção
de controle do imaginário para o estudo de um fenômeno de longa duração que tal noção permite
apreender. Antes de mais nada, imaginário é o que Ŗsobraŗ entre a realidade e a representação feita,
a imagem no pensamento Ŕ movida pelo desejo Ŕ que não se liga diretamente à percepção
sensorial.1 Contudo, todo exercício de imaginação deve se enquadrar nos padrões definidores da
verdade (sejam religiosos, científicos...) para não ser visto negativamente (Ŗmentiraŗ , Ŗerroŗ ,
Ŗdevaneioŗ, Ŗfalsidadeŗ , Ŗenganoŗ ), sendo essa a Ŗprisãoŗ da ficção até a modernidade. Assim,
mesmo um ser imaterial como um anjo deverá ser representado segundo padrões normativos, tácitos
ou não, aos quais se ligam signos e símbolos por sua vez submetidos aos valores configuradores da
Verdade. Neste sentido, como formulou em seu último livro (2009), aprofundando o estudo anterior
(cf. Costa Lima, 2007), o autor define como controle do imaginário o controle estético-politico ou
político-estético exercido sobre a imaginação. Em circunstâncias em que as autoridades fazem valer
os instrumentos de censura fica clara Ŕ pois explicitada Ŕ a relação entre poder e valores; mas, e nos
momentos de normalidade, de ausência de qualquer tipo de crise, em que o poder e certos valores
consolidados não são diretamente questionados (diferente, pois, do próprio contexto em que se
origina a estética da recepção)? É essa indagação que leva o autor a valorizar, no campo teórico-
metodológico, a ponte entre hermenêutica e sociologia histórica. Esta ponte, a nosso ver,
proporciona um aprofundamento da noção de Ŗinconsciente textualŗ presente em obra anterior:
apoiando-se em Iser, Costa Lima defendera que devemos trabalhar a intenção autoral ultrapassando
os critérios nacionalistas (história da literatura) ou simplesmente sociológicos, aceitando

o desafio de indagar da literatura como modalidade discursiva. Pode-se falar, sem excesso
metafórico, em um inconsciente textual, i. e., textualmente configurado, sem o entender
como um prolongamento do inconsciente autoral. Sem negar que traumas ou acidentes
marcantes da vida do autor interfiram na seleção que opera, o decisivo agora é que Ŗo
imaginário exprime a condição de sua representabilidadeŗ (Costa Lima, 2006, p. 288).

Com a formulação do livro mais recente (2009), podemos pensar que no inconsciente textual
se dá a tensão entre, de um lado, o desejo-imaginação e a mobilização da forma (cf. item seguinte)

1
Cf. em especial o cap. 3 da primeira parte (ŖO imaginário e a imaginaçãoŗ) de seu livro mais recente (Costa Lima,
2009). Para a breve exposição desde trabalho baseamo-nos em algumas das obras do autor, ficando ausentes outras tão
importantes na caminhada da reflexão do autor sobre mímesis e sujeito, como Mímesis e modenidade e Limites da Voz.

850
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

e, de outro, a fixação-reiteração dos símbolos e valores Ŕ tensão que se dá simultaneamente entre a


própria ficção artística e as normas político-culturais.1

O estudo sobre o controle do imaginário se articula à revisão da noção de mímesis.


Tomemos de início o conceito moderno de representação. A representação, mesmo que suponha a
correspondência com a realidade, não se confunde com (não é a) coisa/ser representada/o Ŕ seja
esta(e) um objeto material (representado objetivamente), seja um ser imaterial mas tido como real
segundo os valores culturais Ŕ como o exemplo já sugerido da representação de um anjo. Pelo
controle Ŕ como também o será o racionalismo Ŕ, a representação deve ser fiel ao referente. O
mesmo raciocínio vale para a mímesis. A partir de sua elaboração fundadora na Grécia antiga, a
mímesis será tomada enquanto imitação. Para os gregos, o universo estava Ŗprontoŗ, não havia para
eles concepção de criação de algo que já não estaria dado de antemão (o mundo das imagens
originais, pra Platão, ou a potência, para Aristóteles). Assim, com os gregos, o aspecto da
semelhança/reiteração cobre mais radicalmente o da diferença, não cabendo mesmo noção alguma
de Ŗcriatividade humanaŗ .

A revisão da mímesis feita por Costa Lima pode ser entendida seguindo-se três passos.
Primeiro, reconhecer a história da mímesis enquanto pura reiteração. Segundo, afastar o Ŗhorizonteŗ
da mímesis das afirmaçãos metafísica e/ou ontológica para pensá-lo enquanto horizonte cultural, o
qual inclui as próprias concepções metafísicas; ou seja, desloca-se a mímesis Ŕ historicamente
configurada enquanto imitação da substância (metafísica) Ŕ de sua reificação reiteradora para a
perspectiva da elaboração crítico-teórica. Terceiro, tal concepção revista da mímesis rearticula-se à
teoria da ficção e pode configura-se também numa proposta de criação artística. É sobre o segundo
ponto que nos deteremos no próximo item, atendo-nos à reflexão que Costa Lima desenvolve sobre
dois autores fundamentais: Aristóteles e Kant.

2. Mímesis em Aristoteles e em Kant: destacando a dimensão do imaginário

Tomemos uma colocação de Hans Blumenberg: ŖSe um dia a natureza perdesse sua
constância eidética [isto é, essencial, ideal], também a doutrina aristotélica da Řarteř perderia seu
fundamentoŗ (Blumenberg, 1957, p. 20). Quer dizer, a reflexão aristotélica não pode ser
desvinculada do horizonte metafísico de seu tempo. Como em Platão, Ŗa mímesis supõe um ato de
adequação ou correspondência entre a imagem produzida e algo anterior Ŕ em Platão, anterior e
superior Ŕ que a guiaŗ (Costa Lima, 2000, p. 34).

Contudo, como aponta Costa Lima, na Poética Aristóteles não procederia à subordinação
platônica do mímema ao eidos, pois a obra mimética seria uma transposição que captaria sobretudo

1
As ficções literárias também rompem com a dimensão pragmática do discurso (isto é, o proclamar algo tendo em vista
um ato ou objetivo a ser cumprido), e podem colocar os próprios automatismos pragmáticos em perspectiva. O fictício
Ŗtem uma dimensão pragmática prñpriaŗ, pois tematiza os prñprios hiatos, nunca completamente eliminados pelas
ficções explicativas, trazendo-os para o interior do próprio texto. Com isso, subverte o automatismo dos rituais e
padrões cotidianos (Costa Lima, 2006, p. 283).

851
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

uma forma. O autor destaca uma passagem importante da Poética: ŖTemos prazer em olhar as
imagens mais cuidadas das coisas cuja visão nos é dolorosa na realidade, por exemplo as formas de
animais perfeitamente ignóbeis ou de cadáveresŗ (Poét., 48 b 9-12) (idem, p. 34). Ou seja, aqui a
mímesis artística respeita a forma (a pura representação de Ŗanimais perfeitamente ignñbeis e de
cadáveresŗ ), por outro lado, seu efeito no receptor é diverso e mesmo oposto do que ocorreria numa
situação em que alguém se depara realmente com animais ignóbeis ou cadáveres. Assim, ao lado do
lastro comum Ŕ subordinação a algo anterior Ŕ haveria na mímesis aristotélica um acentuado grau de
liberdade, seja pelo seu ato de feitura, seja pelo efeito que causa (idem, p. 34-35). Se por um lado
Costa Lima concorda com os autores em que se apóia (Dupont-Roc e J. Lallot) no sentido de se
evitar ver em Aristóteles um esboço de uma estética do sublime, já que a perspectiva aristotélica
não era estética, por outro lado, ele diz que isso Ŗnão nos impede de notar a nítida diferenciação da
mímesis artística: ela sobretudo não se confunde com a reprodução de um pré-dado senão que, pelas
operações lñgicas que estabelece, provoca um efeito diferenciado no receptorŗ . Mesmo que não
tomasse Ŗa mímesis como sinônimo da arte, já para Aristóteles não é idêntica a resposta do receptor
diante de uma cena da natureza ou diante de um quadroŗ (idem, p. 35).

Portanto, é importante perceber aqui esse Ŗdescolamentoŗ da forma que, mediante a


elaboração artístico-fictícia, desprende-se da função reiteradora para possibilitar um efeito que
escapa de qualquer previsibilidade Ŕ lógica ou moral. Neste sentido, é importante destacar como o
autor desenvolve a reflexão iluminando a articulação da mímesis aristotélica com a metáfora e a
verossimilhança.

Vejamos primeiro o caso da metáfora. Ela se apresenta como o artifício mais nitidamente
mimético: através da analogia, permite ver o semelhante Ŕ assim, já não se trata de um processo de
imitação ou repetição. A metáfora Ŗé possibilitada por um jogo de analogia entre o sentido comum
de um termo e o salto que executa o agente bem dotado. Essa analogia supõe que o salto metafórico,
desfazendo-se da aparência habitual de um objeto ou fenômeno, o aproxima de sua essência
(ousía)ŗ . A ousía Ŗé tão-sñ a Řprimeira forma de que se revesteř [...] o Ser, sendo-lhe impossível
confundir-se com este, sobretudo se se houver preferido expô-lo sob o princípio da analogiaŗ . Ou
seja, trata-se de uma forma, e não da conservação de uma unidade de significação da qual nenhuma
analogia permitiria dar conta. ŖOu seja, a metáfora, porque depende da analogia, não é apropriada
para a compreensão da essência de algoŗ , quer dizer, Ŗpara a apreensão da unidade primeira do Ser,
ambição máxima da Metafísica (idem, p. 36-37). Enfim, Ŗpor meio do salto metafñrico, a imagem
abre outra cena pra a verdade; é sua colaboradora e não sua mera sombraŗ (idem, p. 36). Por isso,
Ŗa mímesis é válida quanto a certo fenômeno particular, passível de ser encenado, mas não cabe
para a explicação propriamente filosñfica do mundoŗ (idem, p. 37). Então, qual seria o grau de
colaboração com a verdade? Costa Lima destaca um trecho da Poética:

ŖEm certos casos, não há nome existente para designar um dos termos da analogia, mas não
se exprimirá menos metaforicamente a relação. Por exemplo, lançar o grão é semear, mas
852
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

para a luz que vem do sol não há nome; entretanto, essa ação é para o sol o que o semear é
para o grão, de modo que se pôde dizer: semeando a luz divinaŗ (idem, p. 38).

A falta do nome concerne ao universo do léxico, observa o autor, que indaga a seguir se tal
vazio, Ŗa ser ocupado pela metáfora-catacrese, diria também respeito à physisŗ . Por sua concepção
substancialista, Aristóteles é levado a manter a catacrese subordinada à analogia. Por si, o mundo é
pleno. Daí a restrição de sua própria concepção de mímesis.1 Dito de outra forma, se a mímesis
aristotélica não imita a natureza, Ŗnão é menos correto que o filñsofo a encerrava no interior do
trabalho de categorias com que pensava a natureza em geral. [...]. Sua posição, em suma, era
ambígua (idem, p. 42).

Agora, o papel da verossimilhança. O autor destaca duas passagens da Poética que considera
imprescindíveis, em que o próprio Aristóteles acaba por destacar o papel do receptor: é também
Ŗverossímil que muitas coisas se produzam também contra o verossímilŗ .2 O verossímil (eikos)
Ŗaponta para a importância do receptor, enquanto este reconhece a dinâmica do efeito, e, ao mesmo
tempo, aponta para o caráter antes tortuoso do que reto do acesso à ousía (cf. 56 a 24)ŗ (idem, p.
39). A mímesis aristotélica, por estar sujeita a uma expectativa interna, não poderia ser normativa,
pois Ŗembora eleja e aconselha topoi, ao tomar o terror e a piedade como partes indispensáveis do
efeito trágico, implicitamente descarta a eficiência de uma fórmula para alcançá-los; enquanto
impõe tortuosa e áspera estrada, exige a capacidade inventiva, tanto do artista como do receptorŗ
(idem, p. 39). O autor, então, recorda que isso difere da interpretação da mímesis elaborada pelo
menos desde o Renascimento, que, enquanto imitatio, se tornou explicitamente normativa, e isso,
para o autor, pode ter contribuído decisivamente para Ŗa distorção a que foi submetido o papel da
verossimilhançaŗ (idem, ibidem). O autor toma como exemplo uma obra de Robortello, em que o
necessarium passa a cobrir todo um campo do tratado aristotélico em que antes ele disputava com o
eikos (idem, ibidem). Para isso certamente contribuiu o cristianismo, pois Ŗa concepção de um Deus
único, onipotente e magnânimoŗ não poderia ser Ŗconciliável com a legitimação de um sistema
filosófico que acatava a validade do engano, a suspensão provisória da verdade como maneira de
emocionalmente experimentá-laŗ (idem, p. 40).

Em suma, cabe destacar que, na filosofia aristotélica, o mímema, se era explicado por uma
potencialidade interna da physis, por outro lado Ŗadmitia a geração de um objeto, uma obra plástica
ou teatral, diferente do objeto real a que corresponderiaŗ , e é assim que a tragédia Ŗé uma mímesis

1
ŖConquanto a Řplatonização de Aristótelesř tenha classicamente simplificado a fecundidade da Metafísica e
emprestado a seus resultados uma certeza que se revela falsa, não é menos verdade que a concepção clássica da mímesis
era restringida, pelo viés essencialista que a atravessava. Esse viés a tornava prisioneira dos quadros da physis. I. e., se a
imagem perdia a conotação platônica de aparência enganosa, seu resgate se prendia à exploração que cumpriria da
potência (energeia) inerente à aparência atualizada (ergon). Ou seja, como o mímema não é cópia, sua atualização da
aparência lança mão do que está atrás de ergon, de sua potência (idem, p. 41-42).
2
ŖDupont-Roc e Lallot definem o verossímil como Řuma forma atenuada da necessidade (ananké), sob o ângulo
subjetivo da expectativařŗ (idem, p. 38-39).

853
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

(que, pela) piedade e o terror, provoca uma depuração deste gênero de emoções (Poét., 49 a 24-28)ŗ
(idem, p. 42), estando submetida ao calendário e ao horizonte cultural da polis.

Vejamos agora como o autor trata a questão a respeito da Terceira Crítica kantiana. Se se
podia Ŗpensar que a imitação fosse legítima no âmbito do juízo determinante, onde um cientista é
capaz de transmitir o que descobriuŗ , diferente Ŗseria na ambiência do juízo de reflexão, onde a
experiência estética se cumpriráŗ (Costa Lima, 2000, p. 45). É importante termos em conta a
distinção entre forma e substância, como foi destacada na reflexão sobre Aristóteles, e veremos que
a imagem, que emerge enquanto forma mais Ŗsoltaŗ na representação artística no filósofo grego,
reemerge na reflexão de Costa Lima sobre a dimensão da imaginação na reflexão kantiana.

Ou autor destaca uma passagem da ŖEstética transcendentalŗ , na Primeira Crítica, em que


Kant escrever a respeito da representação (Vorstellung): a Ŗrepresentação de um corpo na intuição
não contém nada do que se pudesse atribuir a um objeto em si mesmo, mas apenas o fenômeno de
algo e o modo como somos afetadosŗ . Isso quer dizer que Ŗa Vorstellung inequivocamente declara
o modo como recebemos os objetos e não as propriedades dos mesmosŗ . No âmbito da Primeira
Crítica, para que a representação assuma então validade cognoscitiva, Ŗserá preciso que a
sensibilidade, por meio da imaginação produtiva, ofereça uma primeira síntese do fenômeno dado
às categorias do entendimento, que transformarão esta síntese em conceito abarcador de fenômenos
semelhantesŗ . Ou seja, Ŗpara que se estabeleça um juízo determinante, a Vorstellung depende da
intervenção da faculdade de cogniçãoŗ (idem, p. 46; grifo orig.). Mas o importante é perceber que a
Primeira Crítica já afasta a confusão entre a representação e a propriedade dos objetos. Segundo
Costa Lima, o desenvolvimento do conceito se expande até que, na Terceira Crítica (da faculdade
de juízo), alarga-se o papel destinado à reflexão, sendo que tal mudança Ŗtem a ver com o papel que
a imaginação passará a estar investida. De submissa ao entendimento, ela se abre ao campo das
idéias; de passiva, far-se-á ativa, de reprodutiva, produtoraŗ . No entanto, a imaginação produtora
não se torna rival do entendimento, pois traz uma carência: Ŗao se libertar de sua posição servil, a
imaginação se mostra capaz de executar as operações do entendimento, sem entretanto conhecer o
que faz (idem, p. 47).

Na acepção kantiana, observa o autor, uma idéia é produto da razão, enquanto que o
conceito é um enunciado que agarra a fenomenalidade do objeto. No júizo de reflexão, há o
destaque da idéia de fim, que Ŗnão faz parte da matéria fenomênica e não tem a capacidade de
esclarecer a realidade material do objetoŗ . Ela é Ŗum suplemento com que a razão contribui para
que as coisas tenham sentidoŗ (idem, p. 48). Mais que isso: ao falar sobre a graça de plantas, flores
e animais, Kant admite sua inutilidade em favor de um fim que seria o de uma contemplação
externa. Esta, Ŗmais até do que uma suplementação de sentido, aponta para uma forma específica de
relacionamento com o mundo. Ela não visa a seu domínio Ŕ pois o entendimento é também uma
forma de domínio Ŕ senão que supõe uma experiência de consonância e desafioŗ (idem, p. 49). Está
aí a Ŗfinalidade sem fimŗ prñpria do juízo de reflexão estético, que Ŗsignifica que o contemplador se

854
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

contenta com sua pura forma; toma-a como condição suficiente para a postulação de uma certa
intencionalidade. A Řfinalidade sem fimř é por isso correlata ao interesse desinteressadoŗ (idem,
ibidem).

O juízo de reflexão abrange, portanto, os juízos teleológico e estético sem que estes
configurem duas partes independentes da Terceira Crítica. ŖKant se impunha autonomizar a
experiência do belo face à do bem, a estética em relação à moralŗ. Contudo, Ŗnão se dedicava
menos em, ao mesmo tempo, articular a arte à moral, o sensível ao supra-sensívelŗ (idem, p. 50). O
supra-sensível se coloca como uma finalidade abarcadora do mecânico na natureza, que é, por outro
lado, indemonstrável. Ele se articula com a diferenciação entre o belo e o sublime: enquanto o
primeiro Ŗse cumpre no jogo harmonioso entre imaginação e entendimentoŗ , o sublime, Ŗnão tendo
o recorte de uma forma determinada, não admite a síntese do jogo livre das faculdades e ultrapassa
a capacidade de entendimentoŗ (idem, ibidem). Se no campo do sensível é possível a diferenciação
entre o belo e o bom, por outro lado a presença do supra-sensível impõe a reunificação do belo com
a moralidade, assim como resolve o problema causado pelo caráter de indeterminação do sublime
(idem, p. 50-51). ŖO desconforto inicial que, segundo Kant, o sublime provoca converte-se em
sensação de algo agradável exatamente porque a Řoutra naturezař que produz exige do contemplador
a constituição de uma síntese mais ampla e mais alta, que só se cumpre com uma hipótese de
sentido que abrange... o supra-sensívelŗ (idem, p. 53). Assim, a arquitetônica kantiana supõe o que
Ŗpara o pensamento religiosamente orientado era um pressupostoŗ: a reunificação do sensível e do
supra-sensível. Neutraliza-se, pois, Ŗa autonomia concedida ao estéticoŗ (idem, p. 51). Portanto, a
imaginação que escapa à síntese do entendimento é ligada ao sublime e remetida ao supra-sensível
Ŕ o horizonte moral faz com que a semelhança/reiteração prevaleça sobre a diferença.

E se essa arquitetônica for descartada em favor da pura Ŗfinalidade sem fimŗ da arte? Aqui
entramos no terceiro ponto (ou Ŗpassoŗ ) da reflexão costalimeana sobre a mímesis, como exposto no
final do item anterior. Contra o pensamento anti-representacional, imanentista e/ou autoral sobre a
arte, o caminho proposto por Costa Lima é diverso: trata-se de ver a referência estética não
enquanto Ŗfixa e Řnaturalř Ŕ seja a alcançável por uma concepção de natureza, seja a estabelecida
[...] por uma intencionalidade do criador Ŕ mas sim uma referência móvel, histórica e culturalmente
cambianteŗ (idem, p. 54). ŖPor mais radicais que sejam as formas de diferença, elas sempre mantêm
um resto de semelhança, uma correspondência, não necessariamente com a natureza mas sim com o
que tem significado em uma sociedade, com a maneira como a sociedade concebe a própria
naturezaŗ (idem, p. 56). Com isso, o autor aproxima das teorizações sobre as formas de
classificação da sociedade de E. Durkheim e Marcel Mauss. ŖToda classificação implica uma ordem
hierárquica de que nem o mundo sensível, nem nossa consciência nos oferecem o modeloŗ
(Durkheim) (idem, ibidem), ordem que se constitui no

fundo de semelhança (homoiosis) sobre o qual operam as diferenças da mímesis. A obra de


arte circula porque a Ŗoutra naturezaŗ que a enforma encotnra um parâmetro nem natural,
855
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

nem consciente: a forma de classificação da sociedade em que se elabora ou em que é


recebida. A mímesis não tem pois um modelo, mas traz em si um outro que a alimenta, com
que dialoga, que aparece como resto que se mantém sob o arabesco da diferença, que o
motiva, se não o orienta (idem, p. 57).

3. O sujeito fraturado e a manutenção do ostracismo da ficção pelas vanguardas modernas

A noção de representação-efeito (a mímesis da arte) se liga a uma nova concepção de sujeito,


defendida pelo autor: a de sujeito fraturado. Diferencia-se do sujeito heterodirigido Ŕ o sujeito
Ŗpréŗ -moderno, cuja indentidade é definida de antemão pelos valores em torno da família, clã,
comunidade Ŕ sem contudo confundir-se com a noção moderna de um sujeito auto-centrado,
partindo mesmo da crítica a ela.

Com Descartes configura-se o cogito (Ŗpenso, logo existoŗ ), ao qual se liga um indivíduo
sujeito a uma dupla forma de controle: racionalista e teológica (neste caso, porque fundamenta o
sujeito e sua capacidade de conhecimento a Deus, pois não deixa de reconhecer nele uma alma).
Mas, na medida em que parte da oposições entre representação geométrico-matemática e imagem, a
mente e afetos, o próprio esconjuro da dimensão do afeto e das paixões revela que o sujeito humano
é mais complexo que supõe o cogito, assim como demonstra o limite da própria razão (idem, p. 92-
93).

Da obra de Kant, Costa Lima se concentra no sujeito da apercepção transcendental para


desenvolver o argumento. Em Kant, a ênfase no fenomênico se liga ao exame das condições
transcendentais do conhecimento. A intuição é anterior à experiência empírica e pontual, sendo pura
receptividade. ŖE, conquanto sua forma possa residir a priori na capacidade de representação [...] de
cada um, pela qual cada um se habilita a acolher o diverso das representações, ela não indica senão
como Řosujeito é afetadořŗ (idem, p. 100). O diverso das representações, por sua vez, Ŗdepende de
uma ligação (Verbindung), que não é produzida pelos sentidos e, portanto, sendo deles
independente, não pode estar contida na forma pura da intuição sensívelŗ , e é Ŗum ato de síntese,
que depende do acordo, na verdade da subordinação da intuição (Anschauung) ao entendimento
(Verstand)ŗ (idem, p. 100-101). Porém, como já se infere no que foi exposto no item anterior,
embora não negue o infinito qualitativo (a esfera divina), ŖKant reserva sua indagação para além do
entendimentoŗ , tornando-o, Ŗpois, problemático. O entendimento tem um alcance menor que a
capacidade de propor questões, propriedade da razãoŗ , e assim a Ŗfinitude do homem passa a se
manifestar na disparidade de sua razão face a seu entendimentoŗ (idem, p. 103). Além disso, não
mais funciona Ŗa estratégia de distinguir a falibilidade humana da onipotência do Deus para
encontrar algo desta no interior daquele. Por isso mesmo o infinito condizível com a ação do
entendimento passa a ser da mera ordem do quantitativo, i. e., pertence e integra o mundoŗ. A
conseqüência é que, Ŗcomo parte do mundo, as palavras perdem sua bíblica vinculação com o
Criador. Sem ter consciência do que fazia, Kant afirmava pois a arbitrariedade Ŕ ou imotivação Ŕ do
signoŗ (idem, ibidem). Diferente do cogito, que ressalta o sujeito, o Ich denke (Ŗeu pensoŗ ) Ŗsupõe o

856
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

trabalho da consciência do sujeitoŗ , consciência ligada ao processo de produção simbñlica, à


unidade transcendental, e não a um eu empírico, mecanicamente regido (idem, p. 104). Assim,
ŖKant não desmaterializa ainda mais o sujeito senão que introduz, embora não fale a palavra, a
presença do simbólico, i. e., de algo da ordem do intelectual que, entretanto, se perfaz no material e
nele se configuraŗ . Portanto, Ŗa unidade do sujeito é alcançada por uma figura lñgica, formal, a que
já não corresponde uma substânciaŗ (idem, p. 104-105).

Além disso, a dificuldade que Kant encontra em definir o papel da imaginação Ŕ como foi
exposto Ŕ Ŗmostra, é certo que indiretamente, a tendência controladora exercida pelo pensamento
moderno sobre a imaginaçãoŗ (idem, p. 174; grifo orig.). ŖO iluminista que persiste em Kant é
responsável pelo mal-estar. E, a seu lado, sua alma fiel ao pietismoŗ. Kant, Ŗpor conseguinte, não é
tão-só aquele que enuncia um sujeito fraturado senão que ele próprio encarna essa fraturaŗ (idem,
p. 178; grifo orig.).

Por fim, a opção pela referencialidade ligada (transgressivamente) ao horizonte cultural,


comentada no final do item anterior, cumpre dois importantes papéis: abre a teoria estética para um
conhecimento histñrico ao mesmo tempo em que a Ŗsalvaŗ de uma concepção auto-referencial (ou
anti-referencial) limitadora. Esta concepção é limitadora porque, (i) sem se referir a nada que não
seja ela mesma, a arte perde justamente qualquer possibilidade de efeito sobre o receptor, e (ii)
Ŗsimultaneamente, investe aquele que a propõe, enquanto filñsofo, teñrico ou mero crítico
pragmático, da condição de ser a consciência bastante para julgá-la. I. e., torna o seu proponente no
árbitro da qualidade do objetoŗ ; em suma, Ŗo imanentismo anti-representacional nos traz
potencialmente de volta aos critérios normativos pré-kantianosŗ (idem, p. 55).

Se acerta ao Ŗliberar a Figuraŗ (Deleuze), o anti-representacionalismo implica desprezar o


verossímil em favor unicamente da intervenção do sujeito e da afirmação de uma nova modalidade
de necessário Ŕ pois, rejeitando a mímesis em sua acepção tradicional de imitação, mantém a
sujeição do pensamento, digamos, Ŗsérioŗ a uma concepção objetivista e a parâmetros e normas
externos, na mesma medida em que impõe um novo veto à imaginação e à ficção. Isto porque sua
rejeição da representação e do sujeito implica (i) a perda da dimensão da recepção, que não seja
uma resposta privada/projetiva, por isso mantenedora do primado da semelhança (conversão da
obra de arte no já conhecido ou sua adequação à psicologia individual); (ii) a manutenção, não
assumida, do sujeito criador, produtor de uma obra supostamente autônoma de qualquer influência
externa, mundana Ŕ como se fosse um cogito criativo; e (iii) uma nova forma de
controle/normatividade sobre a arte Ŕ que não deve representar nada.

Referências bibliográficas

857
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

BLUMENBERG, Hans. 1957. ŖImitação da naturezaŗ . Contribuição à pré-história da idéia do


homem criador. Tradução de Luiz Costa Lima, sob supervisão de Doris Offerhaus e de Fernando
Rodrigues, de: ŖNachahmung der Naturŗ . Zur Vorgeschichte der Idee des schöpferischen Menschen
Ŕ originalmente publicado na revista Studium generale, 10, 1957. Mimeo.

COSTA LIMA, Luiz. 2000. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.

___________. 2002. Prefácio à 2a edição. In: JAUSS, Hans Robert... et al. (seleção, coordenação e
tradução de Luiz Costa Lima). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, p. 9-36.

___________. 2006. História.Ficção.Literatura. São Paulo: Cia. das Letras.

___________. 2007. Trilogia do controle. Rio de Janeiro: Topbooks.

___________. 2009. O controle do imaginário & a afirmação do romance: Dom Quixote, As


relações perigosas, Moll Flandres, Tristam Shandy. São Paulo: Companhia das Letras.

ISER, Wolfgang. 1999. Teoria da recepção: reação a uma circunstância histórica / O que é
Antropologia Literária?. In: ROCHA, J. C. de Castro (org.). Teoria da ficção: indagação à obra de
Wolfgang Iser. Rio de Janeiro: EdUERJ, p. 19-33; 145-178.

858
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O NORTE IMPOSSÍVEL Ŕ A BUSCA DA IDENTIDADE NOS ROMANCES DE MILTON


HATOUM

Victor Leandro da Silva (UFAM)

A crise identitária na contemporaneidade e suas implicações na obra hatouniana

Dentre os problemas suscitados pelas narrativas de Milton Hatoum, a identidade aparece


como um elemento de elevada significação para as tramas, visto que esta perpassa os três romances
hatounianos (Relato de um certo Oriente (2002), Dois irmãos (2003) e Cinzas do norte (2005)),
criando um efeito de unidade que permite tratar os três livros como uma obra conjunta.

Mas, que tipo de identidade está-se abordando e que problemas os romances discutem? É
óbvio que um termo tão amplo como identidade não pode ser tratado em suas mais diversas
acepções, nem tampouco discutido indefinidamente. Portanto, é preciso que se delimite o campo em
que a identidade assume relevância dentro das obras analisadas.

Nos romances hatounianos, a identidade, para além de suas elucubrações conceituais, será
discutida a partir da crise em que está inserida na contemporaneidade, a qual está relacionada com a
fragmentação dos paradigmas identitários vigentes até o início do século XX.

Durante muito tempo, a identidade era tida como algo acabado e definido, por conta de seus
referenciais, que se apresentavam ao indivíduo como modelos incontestáveis sob os quais ele
deveria articular-se no mundo. A religião, o estado, a família, constituíam instituições inabaláveis e
que permitiam que cada um pudesse situar-se por meio delas. Porém, a modernidade trouxe
questionamentos que colocaram estes paradigmas em xeque. Uma ética humanista foi posta em
lugar da moral religiosa. As organizações sociais se complexificaram, tirando a família de sua
condição hegemônica, enquanto que os estados, antes soberanos, cederam cada vez mais espaço às
investidas de órgãos internacionais que buscam estabelecer uma ordem unicizante, regida pela
lógica do capitalismo. Tais eventos da modernidade tiveram vários desdobramentos, os quais
incidiram decisivamente na formação do cenário das identidades contemporâneas.

Com isso, cresceu ainda mais o movimento por uma identidade única, global, que liquidasse
as diferenças definitivamente. Porém, este mesmo movimento produziu uma contradição ética, pois,
ao propor um ethos individualista e egocêntrico, também defende as idiossincrasias do indivíduo, as
quais irão contrapor-se aos valores globalizantes. Nesse ponto, o projeto de unicização das
identidades encontra um grande obstáculo.

859
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O que decorre dessas contraposições é que, no que tange à identidade, o quadro que se
apresenta no mundo contemporâneo aponta para uma inegável crise. E é sobre esta crise que trata a
obra hatouniana, por meio dos diversos problemas levantados no decorrer das narrativas.

Assim, a pergunta fundamental a ser feita é de que maneira os processos de construção da


identidade irão manifestar-se na obra de Hatoum, e por meio de que recursos literários a crise de
identidade contemporânea irá emergir nos romances.

Partindo daí, verificaremos nas obras a aparição de elementos desterritorializantes que


permitem aflorar um cenário de crise identitária, em especial a supressão do regionalismo, e que
possibilitarão o surgimento de diversas problematizações, marcadas principalmente por dicotomias:
a oposição entre o cristianismo e o islamismo, mais presente em Relato, o rigor ético árabe e o
sensualismo amazônico, uma das tônicas de Dois irmãos, o idioma português e o do Líbano,
problema que surge nos dois primeiros romances de Hatoum e que se relaciona com a questão da
linguagem enquanto determinante identitária; as relações entre patrão e empregado, que algumas
vezes se assemelham muito mais às de senhor e escravo, e o problema da origem, constante nas três
obras, que vem afirmar a dificuldade do homem de situar-se perante suas próprias raízes.

Porém, em nenhum outro ponto as questões acerca da identidade ganham proporções tão
intensas quanto nas personagens, para as quais rumam os dilemas trazidos pela trama e que se
convertem nas mais diferentes inquietações. E, dentre essas personagens, algumas assumem uma
posição de maior importância, por encerrarem uma maior gama de discussões sobre a identidade.
São os narradores, e sua busca por restabelecer a ordem pela escrita; Omar e Yakub, ícones da
identidade e diferença; e o artista Mundo, para quem o universo é um campo infinito de
experimentações.

Os narradores: a escrita como resistência

Conforme dito anteriormente, há um movimento global na contemporaneidade que busca


apagar todas as diferenças em nome de uma ordem única que oblitere as diversidades culturais.
Contudo, esse movimento também criou uma resistência, grupos que lutam para impedir a
fragmentação de seus valores e a consequente perda de suas identidades. Os narradores hatounianos
são um exemplo dessa resistência.

No Relato, a narradora inominada, mas não inominável, resolve voltar a Manaus para tentar
esclarecer, por meio do diálogo com o irmão, residente em Barcelona, Espanha, os passos dados por
sua família e por ela própria, iniciando a busca por uma visita à casa de Emilie, a mulher que a criou
e a matriarca da família. Porém, já no início da trama, os acontecimentos parecem mostrar que sua
procura será inglórie. Emilie está morta. Morreu no exato momento em que a narradora preparava-

860
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

se para visitá-la. Um telefonema selou o último gesto da mulher que tanto ansiava pelo retorno
daquela que somente pôde ouvir seus sussurros do outro lado da linha.

Assim, a pessoa que poderia melhor conceder à narradora as respostas de que precisava não
estava mais entre os vivos. Resta-lhe, então, rememorar os eventos passados e tentar perceber seu
sentido, o que a leva aos primórdios de suas lembranças, aos limites extremos de sua memória,
situados naquela Ŗcidade imaginária, fundada numa manhã de 1954ŗ (Hatoum, 2002, p. 12).

Porém, somente a reordenação de suas reminiscências não é o bastante para alcançar seu
objetivo. A identidade não pode ser obtida somente pela análise das experiências pessoais. Ela é
uma convergência destas com elementos da cultura em que se está inserido, das pessoas com quem
se convive, do lugar e do tempo que se frequenta. Desse modo, a narradora vai dando voz àqueles
que têm algo a dizer sobre sua história, que vivenciaram mais intensamente aquilo de que ela teve
somente uma vaga rememoração, e que podem também elucidar segredos por ela desconhecidos e
que são essenciais para seus propósitos. E é aí que aparecem as narrativas de Hakim, filho de
Emilie, do fotógrafo Dorner, do patriarca da família e de Hindié Conceição, amiga da matriarca,
formando uma rede esparsa de depoimentos, os quais cabe à narradora organizar e conceder-lhes a
devida ordem, e é isto que ela busca fazer por meio de sua narrativa.

Lavo, de Cinzas do norte, e Nael, de Dois irmãos, são dois cronistas de seu tempo. Porém,
enquanto este está mais preocupado em descrever o microcosmo que é a casa onde mora, em busca
de uma identidade que esteja ligada a suas origens familiares, Lavo estende essa análise ao processo
histórico pelo qual passa a cidade, relatando alguns de seus desdobramentos: o crescimento
desenfreado do perímetro urbano, a proliferação das favelas e dos bairros pobres e a decadência das
economias rurais, exemplificada na Vila Amazônia, antigo polo da Juta e império em declínio do
patriarca Jano. Ainda assim, a narrativa de Lavo, tal como a de Nael, não deixa de constituir-se num
drama familiar, que retrata os conflitos vividos por, além dele mesmo, Jano, Alicia, Mundo,
Ranulfo e Arana, numa trama em que os embates entre as identidades de cada uma dessas
personagens trará efeitos indeléveis para todas elas.

Assim, a aproximação das narrativas também encerra uma unidade de destinos. Nael e Lavo
são dos dissidentes que lutam contra a ordem estabelecida, que rejeitam as imposições feitas por
esta e tentam manter sua subjetividade mesmo frente à tentativa global de unicização dos valores. É
esse posicionamento que leva Nael a resistir a uma maior proximidade com Yakub, seu possível pai
e adepto do modo de vida capitalista, preferindo tornar-se professor em Manaus, e também com que
Lavo, mesmo sendo advogado, recusasse a ser um bajulador, considerando mais proveitoso atender
pessoas de baixa renda. Ao final, eles não cederam e preservaram sua dignidade.

Porém, a resistência a este processo trouxe graves consequências. Os dois tornaram-se


solitários, não constituíram família nem tiveram filhos. Nael, ao fim, não conseguiu chegar a uma
solução definitiva sobre o problema de sua origem. E Lavo, que tanto procurava dar sentido ao

861
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

universo a sua volta, encontrou unicamente desordem, e viu suas frágeis certezas esvaírem-se diante
da desfiguração da Manaus de sua infância, da destruição da família e do império de Jano, da
ascensão de Arana e dos militares, do desaparecimento de Mundo e da amargura de Ranulfo. Estes
resultados mostram que as personagens envolvidas não conseguiram obter uma unidade identitária
que lhes permitisse criar raízes, estabelecer-se no mundo, ou compreender a realidade que os rodeia.
Por conta disso, recolheram-se à solidão e à finitude de seu nome.

Mas é na narradora do Relato que estes efeitos se mostram mais evidentes. Ela, que termina
o romance numa clínica de repouso após uma crise neurológica, é quem assume claramente o
propósito de colar os fragmentos perdidos de sua história, de reuni-los através da escrita, e de
edificar com isso a sua identidade Ŗgravei várias fitas, enchi de anotações uma dezena de cadernosŗ
(Hatoum, 2002, p. 165). Também é através dela que temos explícita a impossibilidade de atingir tal
intento:

Mas fui incapaz de ordenar coisa alguma. Confesso que as tentativas foram inúmeras e
todas exaustivas, mas ao final de cada passagem, de cada depoimento, tudo se embaralhava
em desconexas constelações de episódios, rumores de todos os cantos, fatos medíocres,
datas e dados em abundância (Hatoum, 2002, p. 165).

Desse modo, o que pôde foi somente tentar moldar os múltiplos discursos através de sua
voz, porém esta:

Se debatia entre a hesitação e os murmúrios passados. E o passado era como um


perseguidor invisível, uma mão transparente acenando para mim, gravitando em torno de
épocas e lugares situados muito longe de minha breve permanência na cidade (Hatoum,
2002, p. 166).

Nesses trechos, fica evidente a ideia de uma identidade repartida, e a procura incessante por
reordená-la. Mas esta, por mais que se tente, não pode ser reconstituída. Cabe apenas ao indivíduo
tentar construir a sua voz própria, a qual deve lhe permitir organizar-se diante do porvir. Entretanto,
ainda que se enverede por tal caminho, esta nova voz continuará hesitante, e não deixará de olhar
para trás, para as diversas vozes perdidas do passado e que ainda ecoam em seu discurso. Com isso,
a identidade permanece em suspenso, dividida entre a memória e o novo tempo que se anuncia.

Omar e Yakub: identidade e diferença

Os dois irmãos que protagonizam o segundo romance de Hatoum resultam de um complexo


processo de construção identitária. Os dois decorrem da procura pela elaboração da imagem do
862
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

imigrante árabe radicado na Amazônia. Mas, a despeito de terem sido criados numa mesma matriz
familiar e cultural, os irmãos acabaram optando por seguir caminhos bastante diversos.

Apesar disso, para que se torne possível compreender a formação tanto de Omar quanto de
Yakub, é preciso que se pensem os dois como estando diretamente relacionados. Do contrário, a
análise de ambos será incompleta. Isto ocorre porque eles estão ligados por uma relação de
identidade e diferença, que são dois termos que aparecem sempre atados um ao outro.

Segundo Kathryn Woodward (2008), a identidade é relacional, e está marcada pela


diferença. Assumir uma determinada identidade significa negar diversas outras, ou seja, impor um
limite para as diferenças. No caso dos dois irmãos, cada qual funciona como o limite do outro.
Yakub é a diferença de Omar, ao mesmo tempo que Omar é a diferença de Yakub.

No entanto, suas identidades não estão articuladas a um sentido cultural, mas sim
ontológico. Para Heidegger, a identidade é definida não pela tradicional fórmula A=A, pois esta
indica a concordância do ser com outro, o que é contrário à ideia transmitida pelo termo designativo
do princípio de identidade, que é tò autó, que quer dizer o mesmo. Assim, o mais adequado, afirma
Heidegger, é tomar a identidade como algo dado em apenas um elemento A, que é, como diz o
filñsofo, Ŗele mesmo o mesmoŗ (Heidegger, 2006, p. 38). Portanto, a fñrmula mais correta para o
princípio de identidade é A é A, que expressa a concordância do ser consigo próprio.

Desse modo, a identidade em Omar e Yakub se expressará no sentido de mesmidade, numa


concordância do ser com ele mesmo, e não com algum outro ente externo. Porém esta identidade
será constantemente delimitada pelo outro, o irmão, que constituirá o campo de sua diferença. Isto
sem serem necessariamente opostos, somente imiscíveis e diferenciados entre si.

E que identidades são essas? Atentando-se inicialmente para Yakub, teremos a imagem do
estrangeiro. Esta consiste numa atitude de estranhamento para com as pessoas e os lugares que o
cercam. Yakub, que teve o rosto marcado pela violência do irmão, mesmo sem ter feito algo que a
justificasse, fora punido e enviado para a terra natal de seus pais, de onde voltou cinco anos depois,
sem dizer qualquer palavra sobre o que vivera por lá. Ao regressar, foi recebido com espanto pelos
seus, que o consideravam Ŗum rudeŗ (Hatoum, 2003, p.29) como dizia o prñprio pai. Ele, que
passou muito tempo em lugares distantes e sendo um visitante, agora era um estrangeiro em sua
própria casa.

Não se sentia à vontade e rejeitava os divertimentos comuns aos da sua idade. Voltou-se
para os estudos e, por meio destes, conseguiu um meio de sair de Manaus, partindo novamente para
o exílio, desta vez definitivo, em São Paulo.

Assim, a imagem que se constrói dele é a de um indivíduo que renega a todos os processos
de identificação, e que é movido unicamente pelo sentimento de vingança contra Omar, de quem
tenta a todo custo minar quaisquer possibilidades de êxito, ainda que isso seja pesaroso para sua

863
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

família, em especial sua mãe, que, por conta desse ódio desmedido, vê-se obrigada a deixar sua
casa, bem como a assistir resignadamente à derrocada do filho predileto.

Yakub, corroído pelo ressentimento, pela vontade de revanche por uma ferida aberta na
infância e que não cicatrizou nunca, termina exilado, ou, como disse sua mãe, a propósito de seu
casamento, Ŗescondido em São Paulo, longe da família, que nem um bichoŗ (Hatoum, 2003, P.
249). Nem árabe, nem imigrante, nem manauara, nem paulista, nem nada. Somente o estrangeiro.
De realizações, somente uma verdadeiramente efetiva. Conseguiu suplantar Omar.

Já o irmão, este é um símbolo da decadência. Deixou-se sucumbir pela voluptuosidade e


sensualismo amazônicos, e acabou desconstruindo-se, inebriado em ilimitados prazeres sensoriais.
Ele é a representação do confronto entre o rigoroso ethos árabe, presente na sua educação familiar, e
a moral dos trópicos, dois modelos de formação de identidade que, quando postos em conflito,
resultaram na queda de Omar.

Jamais teve grandes realizações ou deveres na vida. Nasceu e cresceu sob as asas da mãe,
retirando dela tudo quanto precisava para subsistir. Seu irmão sabia disso, e por esse motivo tomou
o lar onde eles moravam, para que o caçula não pudesse mais retornar aos cuidados maternos.
Como resultado, sua imagem foi se enfraquecendo, apagando-se, até que este se tornasse uma
sombra, um espectro, como pode ser muito bem percebido na cena final do romance.

Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar invadiu o meu refúgio. Aproximou-se do meu
quarto devagar, um vulto. Avançou mais um pouco e estacou bem perto da velha
seringueira, diminuído pela grandeza da árvore. Não pude ver com nitidez o seu rosto. Ele
ergueu a cabeça para a copa que cobria o quintal. Depois virou o corpo, olhou para trás: não
havia mais alpendre, a rede vermelha não o esperava. Um muro alto e sólido separava o
meu canto da casa Rochiram. Ele ousou e veio avançando, os pés descalços na aguaçal. Um
homem de meia-idade, o caçula. E já quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que
ele confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava, uma só. O perdão.

Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a
chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva.
Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora (Hatoum, 2003, p.265-266).

Este último exemplo de visibilidade mostra o que se tornaram as identidades desses dois
antagonistas. Elas não conseguiram fixar-se enquanto um sistema de representações seguro, que os
ratificasse no mundo, ficando apenas como projetos de possíveis identidades. Por conta disso,
Yakub permaneceu no isolamento. Quanto a Omar, restou-lhe aceitar o processo de fantasmagoria
no qual se viu inserido, e que o degradou até que ele se convertesse nesta evanescente figura que
vagueia pela cidade praticamente invisível, à margem de tudo e de todos.

864
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Mundo e a diluição do indivíduo

Como seu próprio nome indica, Mundo é a mais abrangente das personagens hatounianas.
Ele é a convergência de diversas identidades, todas elas procurando um espaço no qual possam
afirmar-se.

Kathryn Woodward considera que a identidade é um sistema simbñlico, e que Ŗa


representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e
coletivasŗ (Woodward, 2008, p. 17). Logo, a identidade pode ser obtida através da assimilação de
um ou mais sistemas de representação.

Em Mundo, temos a confluência de alguns desses sistemas, cada qual buscando fixá-lo em
seu modelo. Porém, nenhum destes paradigmas foi capaz de abarcá-lo. Ele sempre escapou a todos
eles, posto estarem inevitavelmente aquém de seus anseios, e serem incapazes de representá-lo em
todas as usas manifestações.

Mundo, o artista, o incompreendido. O subversivo que desde cedo rejeitou as convenções, e


não quis tornar-se herdeiro de seu suposto pai, Jano, que queria moldá-lo até que se tornasse a sua
reprodução perfeita. Porém este resistiu a suceder-lhe, pois execrava a ideia de ter a mesma vida
que o patriarca, confinado a uma existência pautada no lucro e no acúmulo de poder. Ainda assim,
teve de se submeter a inúmeras vontades de Jano, do qual dependia financeiramente. Frequentou a
escola até muito tempo depois de suas pretensões, e chegou mesmo a ensaiar a carreira entre os
militares, por quem tinha abominável repulsa. Foi somente com a morte do proprietário da Vila
Amazônia que ele se viu livre para seguir o único caminho que realmente lhe apetecia, o da criação
artística.

Seguindo por esta via, encontrou Arana, que de início fora se mestre. Mas não tardou muito,
e Mundo percebeu quais eram as verdadeiras intenções de seu preceptor, as quais ele constatou não
sem uma ponta de decepção.

No seu conflito com Arana, Mundo manifesta sua convicção artística, que é não só contrária
à prostituição da arte, a sua conversão em objeto de puro comércio, mas também partidária de uma
arte que não estivesse presa a nenhum modelo estético pré-estabelecido, como ele viria a expor em
uma de suas missivas a Lavo ŖArana bem que tentou inocular na minha cabeça o veneno de uma
Ŗarte amazônica autêntica e puraŗ , mas agora estou imunizado contras as suas preleções. Nada é
puro, autêntico, original...ŗ (Hatoum, 2005, p.238).

Nesse embate, evidencia-se a diferença que há entre o artesão e o artista. O primeiro imita,
fabrica em série, e utiliza-se do exotismo para tornar atrativo o objeto que produz. Ele se limita a
copiar o estereótipo de arte de sua região e reproduzi-lo indefinidamente. Já o artista, este
permanece em busca do novo, do inusitado, de sua criação. Não se prende a convenções, e entende
a arte como um exercício libertário.

865
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

E este espírito de liberdade, que Mundo tanto valoriza em seu ofício, também é levado para
sua existência, refletindo-se profundamente em sua conduta sexual. Jano sempre desconfiara que o
filho não tivesse grande atração por mulheres, e até incumbiu Lavo de fazer com que Mundo se
aproximasse do outro sexo, oferta que Lavo recusou de forma discreta. Nesta recusa, pode-se
vislumbrar outro motivo, que é o seu envolvimento com Mundo. Durante todo o romance, os dois
são retratados como amigos muito próximos, inseparáveis, fazendo com que se forme uma certa
tensão sexual hesitante entre eles, que nunca se revela abertamente, embora paire como uma nuvem
pela obra inteira. Assim, a hipótese de um relacionamento carnal entre Lavo e Mundo surge como
uma possibilidade aberta pela narrativa.

Contudo, a simples classificação de Mundo como homossexual não é suficiente para revelar
as nuances de sua sexualidade. Em dado momento da narrativa, Lavo descreve o encontro de
Mundo com mulheres que frequentavam os prostíbulos e bares da cidade Ŗmeu amigo deixava a
farda no bar recanto, comprava cerveja, espetinhos de peixe e macaxeira cozida, e se divertia com
as mulheres, anônimo, até os últimos acordes da madrugadaŗ (Hatoum, 2005, p. 138). Mais uma
vez, a identidade de Mundo foge a delimitações, inserindo-se no campo da multiplicidade.

Assim, Mundo, mesmo trazendo consigo uma carga de sistemas simbólicos ascendentes,
rejeitou a todos eles como determinantes identitárias, mostrando-se além dessas especificações.

Sobrou, por fim, a arte. Mas o que é ser artista, senão a negação de todos os paradigmas, em
nome de uma liberdade contínua, de criação e de experiência ilimitada? Seu estado artístico era
justamente o que o impedia de fixar-se num modelo, de cristalizar-se numa forma definitiva, posto
que a arte, como ele próprio afirmou, é a negação da identidade pura e autêntica, um exercício
constante de iconoclastia.

Logo, para Mundo, somente alcançando a totalidade de experiências e representações, é que


ele poderia chegar a si mesmo. Por isso é que ele abandonou a cidade de origem e depois a mãe, em
busca de alcançar o maior número de experimentações possível. Passou por Rio de Janeiro,
Alemanha, Espanha, Inglaterra. Porém, em vez de acúmulo, o que ele viu foi seu ser despedaçar-se
em cada uma das experiências que tinha, até sua completa extinção. Mundo era o mundo todo, e
diluiu-se nele.

Na trajetória dessa personagem, temos a negação de um projeto de identidade totalizante.


Esta, para ser construída, não requer somente que se legitimem os sistemas identitários em
ascensão, ou que se harmonizem os antigos modelos de identidade com esses. O processo que leva a
um sistema identitário é bastante difícil, e exige que se assumam determinadas representações em
detrimento de outras, as quais muitas vezes são impostas por contingências, independentemente das
volições do indivíduo. A isto, Mundo resistiu com veemência. Queria envolver tudo, não excluir
nada, converter a diversidade do mundo em arte. Porém, tal propósito lhe foi negado
peremptoriamente, por meio de seu fim trágico. Mais uma vez, assim como em outras narrativas de

866
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Hatoum, a ideia de uma identidade definitiva permanece distante, muito além das possibilidades do
homem contemporâneo.

Referências biliográficas

HATOUM, Milton, Relato de um certo oriente. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

HATOUM, Milton, Dois irmãos. São Paulo: Cia das Letras, 2003.

HATOUM, Milton, Cinzas do norte. São Paulo: Cia das Letras, 2005.

HEIDEGGER, Martin, Que é isto, a filosofia: Identidade e diferença. Rio de Janeiro: Vozes; São
Paulo: Livraria Duas Cidades, 2006.

WOODWARD, Kathryn, Identidade e diferença: uma introdução conceitual. In: Tomaz Tadeu da
Silva (org.), Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Rio de Janeiro: Vozes,
2008.

867
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

LITERATURA E MÚSICA: UMA ANÁLISE COMPARADA DO CONTO A TERCEIRA


MARGEM DO RIO DE GUIMARÃES ROSA E DA MÚSICA A TERCEIRA MARGEM DO RIO
DE CAETANO VELOSO

Wanúbya Campelo (Mestranda / UFPA- Bolsista CAPES)

Resumo: Esta comunicação pretende mostrar os resultados de uma análise comparativa do conto
ŖA Terceira Margem do Rioŗ presente no livro Primeiras Estórias (1962), de Guimarães Rosa e da
música ŖA Terceira Margem do Rioŗ, do disco Circuladô Vivo (1992), de Caetano Veloso. Para
tanto, fez-se uso da mobilidade da literatura comparada, como forma de investigação, situando os
objetos analisados, colocando-os em relação e explorando o nexo entre eles além de suas
especificidades. Buscou-se interrogar o texto literário de Guimarães Rosa na sua interação com
outra forma cultural e artística, já que para Eliot ŖNenhum poeta, nenhum artista, tem sua
significação completa sozinhoŗ (1989, p. 39), é preciso situá-lo, por contraste ou comparação, para
valorizá-lo. Sendo assim, percebe-se que o texto de Guimarães Rosa, é inovador por possibilitar
uma outra leitura, uma revitalização da tradição instaurada, inclusive inspirando outras formas
artísticas, como a música. Neste diapasão, aproximou-se a obra literária de Rosa com a musical de
Caetano Veloso no intuito de interpretar questões mais gerais das quais as obras ou procedimentos
literários são manifestações concretas. Para a feitura dessa análise tivemos como suporte téorico os
conceitos comparativos de Tânia Franco Carvalhal, René Wellek e T.S. Eliot.

Palavras-chave: Literatura Comparada; Guimarães Rosa; Caetano Veloso.

Abstract: This comunication would like to show the results of a comparition analize of the short
story ŖA Terceira Margem do Rioŗ that is present in the book Primeiras Estórias (1962), of
Guimarães Rosa between the music ŖA Terceira Margem do Rioŗ, of the album Circuladô Vivo
(1992), of Caetano Veloso. For this, we used the comparitive literature, to investigate, situating the
analized objects, putting they in relaction and explorating the sence between they, therefore their
specificitys. We try to do the interrogation of the literature text of Guimarães Rosa in their
dialogue with another cultural and artistic form, for Eliot ŖNo one poet, no artist, have their all
signification aloneŗ (1989, p. 39), itřs necessary making a comparition to valorize theirselves. We
see in Guimarães Rosa, a new way of read, a revitalization of the tradition, that inspires anothers
artistics forms, like the songs. We make an aproximation of Rosařs literature and Caetanořs song in
order to interpratate the literature procedure. To do this analize we have how theorical ways the
concepts of Tânia Franco Carvalhal, René Wellek e T.S. Eliot.

Key-words: Comparitive Literature; Guimarães Rosa; Caetano Veloso.

1. Guimarães e Caetano: uma leitura de revolucionários

João Guimarães Rosa, foi um médico, diplomata e grande escritor brasileiro. È natural de
Codisburgo, Minas Gerais. Foi do interior de seu Estado, do sertão, que esse escritor inspirou-se
para criar muito do seu mundo rosiano, baseando-se não só na natureza, mas nas pessoas e nas
experiências com as quais tinha contato, ele resignificou o conceitto do regionalismo moderno, que
vai muito além da esteriotipização e da tipificação do homem sertanejo, suas estórias traziam
868
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

experiências que podiam ser cabíveis e experimentáveis em uma âmbito universalizante. O sertão é
o palco das ações dos seus personagens. Daí, então, lembrarmos as sábias palavras do jagunço
Riobaldo (Grande Sertão: Veredas) de que o ŖO sertão é do tamanho do mundoŗ 1. Para Guimarães
Rosa , é mediante a criação da linguagem que o poeta renova o mundo, pois, na verdade, todo poeta
é também um revolucionário, por que ao libertar a língua da estrutura tradicional, estará
automaticamente liberando o homem de suas categorias arcaicas de pensamento e o estará
induzindo a enxergar a nova realidade de seu tempo. Esse seu estilo rico e singular inspirou muitos
outros autores e artistas. Suas obras deram margem à outras resignificações e releituras, como no
caso do cantor Caetano Veloso.

Caetano Veloso é uma das mais inexplicáveis personalidades brasileiras, um artista


camaleônico cuja força sempre esteve na capacidade de escapar às classificações. E, também,
alguém que não cansou de se auto-explicar a ponto de parecer esgotar o que de novo se poderia
dizer a seu respeito. Iniciou a carreira interpretando canções de bossa nova, sob influência de João
Gilberto, um dos ícones e fundadores do movimento bossa nova. Colaborou com os primórdios de
um estilo musical que ficou conhecido como MPB (música popular brasileira), deslocando a
melodia pop na direção de um ativismo político e de conscientização social. O nome ficou então
associado ao movimento hippie do final dos anos 1960 e às canções do movimento da Tropicália.
Trabalhou como crítico cinematográfico no jornal Diário de Notícias, dirigido pelo diretor e
conterrâneo Glauber Rocha. A obra adquiriu um contorno pesadamente engajado e intelectualista e
o artista firmava-se sendo respeitado e ouvido pela mídia e pela crítica especializada.

Primeiras Estórias é um livro de contos de João Guimarães Rosa publicado em 1962.


Contém 21 contos que se passam, em sua maioria, em um ambiente rural não específico. Suas
personagens apresentam sempre dons fora da normalidade como crianças paranormais, santos,
loucos e bandidos. Dentre os contos mais importantes está A Terceira Margem do Rio.

Circuladô Vivo é um álbum de Caetano Veloso lançado em 1992, produzido pelo próprio
cantor e por Jacques Morelenbaum. É composto por dezenove faixas e a sua décima é intitulada
também A Terceira Margem do Rio.

Nesse diapasão, busca-se então, aproximar esses dois revolucionários, um da linguaguem e o


outro da música. Cada um de seu de modo, tráz à tona discussões caras ao sentimentos mais
profundos da humanidade. Aproximar ambos, não é uma tarefa difícil, já que notamos em Caetano
Veloso um eco, uma intertextualidade com o texto de Rosa. Dessa forma, faremos uma comparação
desse conto de Guimarães Rosa com a música homônima de Caetano Veloso, para verificarmos os
pontos em comum e como a música faz esse percurso, essa apropriação da obra literária; quais são,

1
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. p.74.

869
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

então, as possibilidades de leituras diferentes do conto que a precedeu, que ela pode nos dar.
Pesquisaremos como Caetano Veloso revitaliza a tradição rosiana instaurada, no que concerne a
feitura e hermenêutica de seu conto.

Para essa interpretação teremos como referêncial teórico os pressupostos da Literatura


Comparada. Nesse sentido, far-se-á uma leitura hermenêutica das obras apresentadas, por meio de
uma metodologia dialógica e discursiva.

2) Comparação : uma leitura revitalizada

Comparar diferentes manifestações artísticas, não significa dizer que temos em uma,
geralmente a mais recente, o sentido da dívida ou da influência sofrida em relação à anterior. Na
verdade, entendemos esse processo como uma natural reescritura dos textos.

O nascimento da Literatura Comparada (com a concepção de comparação entre literaturas)


coincide com o da própria literatura, bastou que elas emergissem para o comparativismo manifestar-
se. Portanto, o nascimento das literaturas grega e romana é também um possível epicentro do
nascimento da Literatura Comparada (enquanto perspectiva). Apesar de ter despontado há milhares
de anos, a Literatura Comparada (como disciplina) surge de uma maneira Ŗsistematizadaŗ somente
no século XIX e ambientada no continente europeu, com a proposta de estabelecer a influência
entre autores, servindo de instrumento para mostrar a possível força (literária ou não) de um país
sobre outro. Do século XIX até meados do século XX, o vocábulo que melhor define a Literatura
Comparada, isto é, sua palavra-chave, é influência, pois ela representa uma ferramenta de afirmação
de um país e de culturas nacionais.
É, então, a partir dos anos 50 e 60 do século passado, que René Wellek vem ajudar a
estruturar a Teoria da Literatura como disciplina e introduz uma ruptura com o comparativismo
tradicional. Esse estudioso propõe que a Literatura Comparada represente uma leitura profunda de
um texto, sem levar em conta Ŗsomente fatores que lhe são extrínsecosŗ 1, ou seja, ele atribui ao
contextualismo, que é tão importante para os comparatistas que o precedem, menos importância.
Na atualidade, a Literatura Comparada vem ampliando o âmbito de sua pesquisa,
fazendo com que o lugar do texto literário na sociedade possa ser revisto, alterando, assim, o viés
tradicional; passa-se, então, a estudar a relação entre literatura e vida cultural, outras artes (ou
manifestações do conhecimento da esfera humana) e seu público. Enquanto que em seus primórdios
a Literatura Comparada encontra-se muito ligada ao nacionalismo, criando possibilidades de
submissão cultural, atualmente suprimiu-se o vocábulo Ŗinfluênciaŗ de seu léxico, deslocando sua
atenção para um campo de estudo muito mais abrangente, o qual rompe com fronteiras culturais e
busca firmar, ao invés de um confronto entre obras e autores, referências que o texto literário cria a
partir de um ponto de vista internacional. Esta nova visão tem como objetivo traçar um perfil
sucinto da disciplina Literatura Comparada desde o século XIX até os dias de hoje. Procurar-se-á

1
WELLEK, René.ŗO nome da literatura comparadaŗ . In: COUTINHO, Eduardo F. E CARVALHAL, Tânia
Franco.(org.). Literatura Comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 180.
870
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

estabelecer as características peculiares a certas correntes comparatistas, buscando um confronto


entre elas em cima de seus aspectos, de seus discursos críticos e dos questionamentos que propõem.
Paul Van Tieghem foi o grande expoente da chamada Ŗescola francesaŗ , cuja
metodologia baseava-se em três elementos: o emissor (ponto de partida da passagem de influência),
o receptor (ponto de chegada) e o transmissor (intermediário entre o emissor e o receptor), sendo
que essa tendência mostra-se muito contextualista, uma vez que sua preocupação primeira não é a
estrutura interna do texto, e sim o contexto que o envolve. Em Crítica Literária, História Literária,
Literatura Comparada, Van Tieghem revela a pertinência que tem o contexto, no caso o emissor,
em uma análise comparativista:

Aquela obra, aquele conjunto de obras que você leu com interesse, examinou e
julgou, qual foi a sua origem, o que as ocasionou, qual o seu destino, em resumo,
sua história? Este escritor que lhe agrada, como foi sua carreira, breve ou longa,
brilhante ou obscura, abundante em publicações ou marcada por um único livro
que é uma obra-prima? Sob que influências se formou, como se desenvolveu seu
talento, que relações manteve com alguns de seus contemporâneos dos quais você
leu certas produções? (VAN TIEGHEM, 1994, p. 90).

T. S. Eliot, na Inglaterra, refletindo sobre os conceitos de influência e originalidade, acaba


por produzir o ensaio Tradição e talento individual, introduzindo, assim, conceitos que
repercutiram nas modernas concepções de Literatura Comparada. Em consonância com o
pensamento de Eliot, a tradição não é reprodução, mas uma representação dialética que envolve um
senso histórico, permeada pelo passado e pelo presente.

Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu
significado e a apreciação que deles fazemos constituem a apreciação de sua
relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso
situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um
princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico. É necessário que
ele seja harmônico, coeso, e não unilateral (ELIOT, 1989, p. 39).

Sendo assim, não se atendo mais a um comparativismo positivista e factualista, a atual


Literatura Comparada reviu sua terminologia a fim de adequar esse campo de estudo às
transformações de um mundo que deu voz à diversas e interessantes culturas que ficaram caladas
por muito tempo assistindo à hegemonia dos países europeus ocidentais.

3) Literatura e música em uma análise comparada


A Terceira Margem do Rio de Guimarães Rosa é uma narrativa em tom sério, altamente
simbólica e de natureza filosófica.
Nenhum leitor preparado entenderá a história por si mesma. O leitor sensato irá se perguntar
o que ela quer significar. À primeira vista, temos um chefe de família que um dia resolve sair de
casa para morar dentro de uma canoa, em pleno rio, nunca mais retornando a nenhuma de suas
margens, criando, por conseguinte, uma terceira margem.

871
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Parece correto pensar que outras interpretações serão possíveis, talvez essa atitude possa
querer significar a inquietude do ser na sua busca de um sentido para a existência. Insatisfeito com o
mundo que o cerca, alguns homens arriscam-se a criar um outro mundo, no qual julgam poder
encontrar sentido o sentido de viver. Esses homens, que optam pela atitude radical de fazer a
experiência do novo, arcam, como opai arcou, com a impressão dos outros, sendo visto como
loucos, e assim, são marginalizados, encontrando a solidão como companheira de sua aventura
arrojada.
O título do conto pode estar indicando isso: a terceira margem do rio não existe, ela precisa
ser inventada, como foi pelo pai que pagou o preço de tê-la inventado com a marginalidade, a
solidão e a incompreensão dos homens.
Deve-se entender a atitude do filho, o narrador da história, quando ao final pensa em suceder
o pai, já velho, na sua corajosa atitude existencial, como um símbolo da covardia da maioria dos
homens em evitar o mergulho no novo, no nunca tentado.
Em A Terceira Margem do Rio não há espaço para o tom anedótico, ficamos frente a frente
com uma das mais belas metáforas escritas em língua portuguesa sobre a coragem de inventar o
sentido da existência. Até por que ele não existe mesmo, sendo pura construção humana, construção
que de nós exige saltar fora da mesmice, do lugar comum, em que estamos aprisionados pelas
repetições de nossos hábitos cotidianos.
Já em A Terceira Margem do Rio, de Caetano Veloso temos uma certa repetição, que nem
de longe pode ser tomada por ingênua, pois ela busca dar continuidade, quer modificar, quer
subverter, enfim quer atuar com relação ao texto de Guimarães Rosa.
Observemos a letra de Caetano Veloso e Milton Nascimento:

Oco de pau que diz:


Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira

Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai

Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai

872
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Meio a meio o rio ri


Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio riu, ri
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai

Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai

Nela percebemos não só a assimilação do texto de Guimarães Rosa, por uma mera questão
de similitude, mas sim uma tranformação da forma de apreensão dos mesmos temas recorrentes no
texto literário.
Aqui também temos a questão do estranhamento, da inquietação em relação ao mundo
exterior, se escutarmos a melodia da canção podemos verificar esse esse ritmo marcado por uma
espécie de batida recorrente, como se fosse um fado que vai sendo carregado, essa situação
inusitada que aparece no conto nos é retratada aqui também, e como no texto literário tráz o mesmo
desconforto em relação a não resolução do problema. Nesse sentido, a música, arte de
contemplação, por excelência, nos leva a caminhos tão pertubadores quanto o literário.

4) Conclusão

O presente artigo não apenas preocupou-se em demonstrar as inquietações de Guimarães


Rosa e de Caetano Veloso, mas sim em ampliar essa direção de possíveis pesquisas e discussões
posteriores que possam engrandecer e enriquecer o meio acadêmico não só com um tipo de visão
da Literatura Comparada, por exemplo, mas com uma colaboração científica de áreas afins,
utilizando-se de conceitos de interdisciplinaridade, que investiguem a situação dos objetos que
analisa, colocando-os em relação e explorando entre eles além de suas especificidades.

Espero que este estudo possa ter interrogado de forma específica o texto literário de
Guimarães Rosa e sua interação com a música de Caetano Veloso, trazendo uma correlação entre o
descontentamento da inadaptação do narrador do conto enquanto ser provido de uma certa
consciência Ŕ inconsciência do mundo e da proposta de Caetano de ver a realidade não como uma

873
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

totalidade hermética, mas sim como um caminho que conduza a liberdade de tê-la, utilizando sua
música com caráter questionador.

Sendo assim, a relação feita entre o Escritor e o Músico não foi movida apenas por um Ŗar
de semelhançaŗ entre eles, mas comparei com o intuito de interpretar questões mais gerais das quais
as obras são manifestações concretas .Em ŖA Terceira margem do Rioŗ de Caetano Veloso
vislumbrei Guimarães Rosa e as suas questões existencialistas vendo o homem como ser livre para
projetar a própria vida. Dessa forma fiz esse relação entre literatura e música e desejo ter
demonstrado a proposta de transacionalizar as duas expressões artísticas enriquecendo as pesquisa
acadêmicas com um artigo que buscou ler uma obra de arte não só por uma óptica literária, mas
também relacionada a outras artes.

Referências bibliográficas

ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: ELIOT, T. S. Ensaios. São Paulo: Art Editora, 1989.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. p.74.

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1962. 176 p.

VAN TIEGHEM. Crítica literária, história literária, literatura comparada. In: COUTINHO, Eduardo
F.; CARVALHAL, Tânia Franco (Orgs.). Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro:
Rocco, 1994.

WELLEK, René.ŗ O nome da literatura comparadaŗ . In: COUTINHO, Eduardo F. E


CARVALHAL, Tânia Franco.(org.). Literatura Comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro:
Rocco, 1994. p. 180.

874
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

UM MERGULHO NO PROFUNDO ESPELHO DE NARCISO EM DEZEMBRO, E FLORIAM,


DE ASTRID CABRAL

Yasmin Serafim (UFAM)

A ideia desta comunicação surgiu a partir de uma única frase do conto Dezembro, e floriam,
na qual se afirma que os copos-de-leite Ŕ personagem principal do texto Ŕ não se inclinam em
direção ao rio na intenção de beber a sua água, mas para verem-se espelhados na superfície dela. É a
partir desta relação com o mito de Narciso, estabelecida desde o início do texto, que podemos
entender a interação das flores do conto com o córrego que habitam. Nessas águas, reflete-se o
embate entre o receio da morte e a realização da vaidade. Assim, analisaremos a representatividade
do rio e, posteriormente, de todas as águas que aparecem no conto, como integrantes e influentes no
futuro da personagem.

A narrativa de Dezembro, e floriam percorre, entre idas e vindas cronológicas Ŕ mais adiante
explicadas Ŕ, os momentos de espera dos copos-de-leite pela chegada do verão e o temor que os
aflige quando a estação chega. Para eles, o verão significa que, ao desabrocharem, finalmente,
poderiam ver o mundo, contudo, desabrochar também significa morrer. O rio, na beira do qual estão
dispostos, é o elemento que os leva à relação dialetal da vaidade em que quem se vê também tem a
necessidade de mostrar-se. Não só como elemento da vaidade, no rio, as flores também espelham o
seu próprio futuro, nele se encontram todas as flores que depois da morte foram carregadas pelo
vento ou simplesmente caíram nele. Assim, o rio guarda o reflexo do céu, da morte e da beleza,
compondo em um só espaço um mundo inteiro.

O mito do narciso

O texto de Junito Brandão em Mitologia Grega esclarece o seguinte sobre o mito de


Narciso: de uma relação amorosa entre o rio Céfiso e a ninfa Liríope, nasce Narciso. Tendo nascido
uma criança com beleza acima do ordinário até mesmo para os deuses, Liríope procura Tirésias para
saber do futuro do filho, por quanto tempo ele poderia viver com aquela beleza que afrontava a
todos, e recebe o seguinte vaticínio: Ŗse ele não se vir...ŗ (BRANDÃO, 1987, p. 176). Um certo dia,
o jovem sai para caçar e, ao passar por um rio e abaixar-se para beber água, a profecia se concretiza.
Narciso não consegue mais deixar de admirar seu próprio reflexo espelhado na superfície do rio.
Quando os caçadores que o acompanhavam vão a sua procura, encontram apenas uma flor
desconhecida à beira do rio, àquela passam a chamar flor de narciso.

Entre Narciso e os copos-de-leite já temos a relação com a água e com as flores desde a sua
gênese, Narciso nasce de um rio e de uma ninfa chamada Liríope Ŕ nome que remete a Lírio Ŕ;

875
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

também no fim da vida, mito e conto confluem para água e flor, fechando um ciclo nas duas
histórias.

Outro ponto comum às duas histórias é o seu fio condutor: a profecia ou a intuição de um
destino fatídico. Tirésias prevê, dentro da escuridão da sua cegueira, a causa do fim da personagem
mitológica, em Dezembro, e floriam, os próprios copos-de-leite, enquanto fechados no escuro do
próprio botão, sabem que desabrochar significa morrer. Os dois se relacionam em um grau maior
por terem profecias que recaem sobre eles em consequência de um mesmo elemento: a beleza.
Narciso era de uma beleza incontestável, a ponto de causar, até, a inveja dos próprios deuses.
Diversos trechos do conto relatam a perfeição do branco das flores Ŕ branco inigualável em
qualquer outro elemento da natureza Ŕ, do seu formato e do sentimento de paz e fascinação que
causavam a qualquer um que os visse. A questão que cabe a essa beleza fora do normal é que isto se
torna uma quebra do métron Ŕ a medida de cada um Ŕ, e isso é uma ofensa aos deuses, que, por esta
razão, devem ser compensados pela punição desse mortal.

Também nessa ligação entre conto e mito temos as flores: Narciso dá nome à flor em que se
transforma, e esta, na cultura grega, era associada à morte, tanto que era habitualmente plantada em
túmulos simbolizando o Ŗsorvedouro da morteŗ (BRANDÃO, 1987, p. 174). Mas essa morte
figurava apenas como um sono, pressupondo que após haveria um acordar, reforçando a ideia do
ciclo no conto e no mito.

O mergulho no reflexo

A ambientação do texto acontece toda ao redor de águas, a primeira que temos é o córrego,
por vezes, de águas claras, outras, de águas escuras Ŕ ou como classificaria Bachelard: águas
profundas. Posteriormente, temos através do reflexo no rio, as nuvens no céu Ŕ água em forma de
vapor Ŕ, a chuva que despenca ao fim da história e a que corre em forma de seiva dentro dos copos-
de-leite. Portanto, vê-se que tudo está envolto pelas mais diversas formas de representação da água.
E é a partir dela que desenvolvemos a nossa interpretação do conto. Para nos ajudar, uso o já
brevemente citado, Gaston Bachelard no seu livro A Água e os Sonhos.

As águas claras que nos são apresentadas logo no início do conto recebem características
que criam um espaço ordinariamente bucólico: a água corre lenta e mansa, tem um frescor cantante
e renovado, é onde o sol se esconde, os copos-de-leite veem o seu reflexo e se vê espelhado o céu
de nuvens brancas e andorinhas voando. Bachelard se reporta a esse tipo de cenário da seguinte
forma: Ŗos fenômenos da água iluminada por um sol de primavera proporcionam assim metáforas
comuns, fáceis, abundantes, que sustentam uma poesia subalternaŗ (BACHELARD, 2002, p. 21).
Mas não é dessa Řfacilidadeř que se serve a narrativa; a imagem inicial é a construção da perfeição
que logo em seguida será destruída, é a sua transformação em uma ameaça e não em um benefício

876
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

àquele que pertence a ela. Ter essa harmonia sinestésica aumenta a crueldade quando se descobre o
que há por trás de todo o encanto.

A outra face do mesmo rio é a água que aparece durante a noite, não se sabe o que se
esconde dentro dela, a não ser o limo Ŕ estudado mais tarde Ŕ que para os copos-de-leite
representam a própria morte, que, por fim, é mais um mistério. A informação que Bachelard nos
fornece sobre esse tipo de água é a que: Ŗ[a] água [profunda] já não é uma substância que se bebe; é
uma substância que bebe, ela engole a sombra como um xarope negroŗ (BACHELARD, 2002, p.
57). E é exatamente isto que os copos-de-leite sentem ao mirá-la durante a noite, a morte parece ser
mais iminente e estar prestes a sugá-los para as profundezas do rio.

As nuvens brancas que os copos-de-leite v eem passear no céu, inicialmente, só compõem


o cenário primaveril do livro, mais tarde, no fim do texto, elas se transfiguraram em uma chuva
repentina que irá cair apenas pelo período suficiente para molhar os copos-de-leite e permitir que a
luz, ao entrar em contato com a superfície das flores, seja mais incisiva e dê início à dor da punição
prevista.

A última forma da água é a que se mistura com os nutrientes da terra para formar a seiva,
que, no conto, compõe a própria essência da flor. Portanto, a água, aqui, está carregando consigo o
alimento da planta, ao mesmo tempo que traz consigo a água do rio que é o prenúncio da sua morte.
Esta aproximação de funções opostas produz um ciclo que abarcará não só os elementos aquáticos,
mas todos os outros presentes no texto, gerando uma cadeia cíclica.

Junto com a explicação sobre o mito de Narciso e a relação com o conto demonstrei como a
água forma um ciclo na vida dos copos-de-leite, presente no seu nascimento e na sua morte. A
sequência que se evidencia nas constantes demarcações dos meses do ano e a falta de linearidade
em que eles são citados Ŕ primeiro fala-se em janeiro, em seguida em novembro e, por fim, em
dezembro Ŕ realça a ideia de renovação do ciclo de um ano e da falta da necessidade de uma ordem,
pois não existe um antes e um depois, apenas fatos. Os dias e as noites se seguem, influenciando no
aspecto da água que sempre escurece com a noite, mas com o sol sempre a iluminar o próximo dia.
Maior, por importância e não por duração, está o ciclo de vida e morte da planta, assim é, porque
pra ela Ŕ em seu narcisismo Ŕ é a sua vida que mais importa. Há sempre o sol que nasce no dia
seguinte, há sempre a primavera ou o verão no futuro, mas a sua única existência está se acabando.
Na iminência da morte, a escuridão é cada vez mais forte e amedrontadora, o sol cada vez mais
intenso e vulnerabilizante. Para um olhar externo, a vida dos copos-de-leite completam o ciclo
quando morrem e caem na água que um dia irá alimentar outros copos-de-leite. Porém, para eles, a
vida é uma linha reta na qual se segue em frente. O rio do conto seria o de Heráclito para e na visão
dos copos-de-leite, porém em uma visão externa desse cosmos, não é isso que ocorre, posto que o
rio que reflete essas flores engloba tudo, sempre retornando e renovando os mesmos fatos.

877
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O espelho profundo

Agora, passemos a outra função da água: a de espelhar, ou seja, duplicar tudo que nela se vê.
Para Bachelard, o espelho que se forma na água é diferente do espelho feito de vidro, e para melhor
explicar essa ideia apresento a seguinte declaração:

[o]s espelhos são objetos demasiado civilizados, demasiado manejáveis, demasiado


geométricos; são instrumentos de sonho evidente demais para adaptar-se por si mesmo à
vida onírica.O espelho aprisiona em si um segundo mundo que lhe escoa, no qual ele se vê
sem poder se tocar e que está separado dele por uma falsa distância, que pode diminuir mas
não transpor.(2002, p.23-24)

Enquanto quem se admira Ŗ[d]iante da água que lhe reflete a imagem,[...] sente que sua
beleza continua, que ela não está concluída, que é preciso concluí-la.ŗ (2002, p.23-24)

Assim, a diferença destas duas superfícies refletoras está no devaneio que elas permitem. O
espelho de vidro oferece uma barreira física que cerceia a imaginação da integração entre objeto e
imagem, além de possuir um reflexo muito nítido, sem abertura para suposições, criações ou
mistérios. Já o espelho líquido oferece a ilusória possibilidade do encontro com o refletido.

Os copos-de-leite começam esperando o sol que anunciará o verão e, consequentemente, o


tempo de florir. O que eles veem no córrego é o próprio reflexo e o reflexo do mundo a sua volta,
que se movimenta para a chegada da nova estação. No entanto, ainda não expliquei o que mais
causa temor: o limo. Esta personagem é a mais envolta de mistério, não se sabe como ele chega ou
em que momento aparece. A única certeza que se tem é a de que está por toda parte, como a Ŗface
da morte que se mostravaŗ (CABRAL, 1998, p. 108), personificando a morte sempre à espreita.

Com a consciência inevitabilidade da morte, ver-se por completo é uma tentação à qual as
flores resistem, durante o que elas chamam de via-crúcis de todas as manhãs. Até que em um
determinado momento o sol se intensifica, as outras flores se abrem e o verão chega. Os copos-de-
leite cedem e se abrem para o mundo, recebendo toda a luz num estado inicial de êxtase em que
tudo é claro, cheio de cores e perfumes. Contudo, dura pouco; logo em seguida são tomados pelo
sentimento de que agora sñ o que resta é a morte: Ŗvelavam imñveis, compungidos, o tempo que
morria neles, as orlas das folhas estorcendo-se de cansaço e calor. Testemunhavam a exaustão de
cálices entornando flores murchas sob a severidade do solŗ (CABRAL, 1998, p.111). É isso que
veem ao seu redor, é isso que começam a ver no reflexo do rio. O limo que antes era um elemento
misterioso, agora, é uma realidade, ao olhar seu reflexo no rio, nele veem também o limo a sua
espera. Agora, com a luz sabem que as outras flores caem no rio depois de mortas e na sua morte se
transformam em limo. A luz, que lhe deu o conhecimento do mundo, também passa a expor os
copos-de-leite aos olhos cobiçosos do homem e da morte. E a escuridão que, antes, acobertava o
limo, agora, protege os copos-de-leite.
878
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Com esse breve retorno, já nos é possível explicar o papel dos reflexos dentro deste conto:
ver o próprio reflexo é enxergar uma imagem similar a si, mas que ao mesmo tempo não é o objeto
de origem. Disto originam-se os duplos, que, quando surgem na água, são frágeis, pois qualquer
perturbação na superfície pode desfazê-los. No córrego, tudo se duplica: o céu, os pássaros, as
flores, a própria luz. Todos os elementos assumem uma duplicidade de representações, às
identidades, não é mais permitido que sejam unas. O mundo ganha uma nova representação de si, e
para uma personagem narcísica ela é o centro desse mundo. No conto, ela será não só o centro, mas
a que transmite a percepção que tem dele.

Apesar de o reflexo ocorrer na superfície, o novo mundo tem profundidade, ilusória, é


verdade, mas que convence as personagens da sua existência. Para elas, a terra do fundo do rio pode
parecer se misturar com as nuvens do céu ou com os pássaros refletidos. Narciso foi enganado por
essa ilusão, os copos-de-leite também se narcisam e se entregam ao desabrochar na intenção de
encontrar o auge da própria beleza, por acreditar que aquele mundo que veem no rio é o verdadeiro.
O que poderia nos conduzir a uma interpretação embasada nos pensamentos de Platão sobre mundo
sensível e mundo ideal, é refreado quando se percebe que, nessa história, na verdade, não há
diferença entre o mundo refletido nas águas e o mundo acima delas, não se trata de um mundo
sensível ou mundo ideal, porque não há um verdadeiro e a sua cópia. Vejamos:

ŖImobilizando a imagem do céu, o lago cria um céu em seu seio. A água, em sua jovem
limpidez, é um céu invertido em que os astros adquirem uma nova vida.ŗ (BACHELARD, 2002,
p.50) No conto, não temos um lago, mas as suas águas calmas podem ser igualadas na qualidade
refletora e, por isso, podemos atribuir a elas a capacidade de criar um mundo próprio.

Além disso, continuando com Bachelard, podemos justificar não só a criação, mas também
uma independência desse outro mundo nas suas ações a partir do momento que existe o reflexo: Ŗo
lago é um grande olho tranquilo. O lago recebe toda a luz e com ela faz um mundo. Por ele o
mundo é contemplado, o mundo é representado. Também ele pode dizer: o mundo é minha
representação. [...] [E]le prñprio ilumina suas imagens.ŗ (BACHELARD, 2002, 30). A vontade de
ser visto do lago Ŕ posto que isso é comum a todos os que veem Ŕ dá autonomia na presença da luz,
a mesma que deu o conhecimento para os copos-de-leite.

Estes entram neste novo mundo submerso nesse espelho profundo e se tornam seus
demiurgos, por serem o seu centro, e, concomitantemente, seus servos pela dependência e pela
subjugação ao futuro que ele os reserva. O poder que esse mundo exerce é tão grande, que o mundo
considerado objeto original do reflexo é englobado por ele. A necessidade de ser visto que os
copos-de-leite têm advém deste mundo que creem fazer parte.

A vontade de ver, ver-se e mostrar-se os sacrificou. Como foi dito, pela beleza
extraordinária é preciso pagar um preço, seja aos deuses ou à própria natureza. E a chuva que
despenca no fim da história é o anúncio disso, a água encharca a terra ao redor das flores e as

879
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

próprias flores, o bastante para que tudo seja rodeado de água, interpenetrando os dois mundos: o da
água e o de fora dela. Enquanto o sol ilumina tudo, e os seus raios recaem sobre as gotas de água
acumuladas nos copos-de-leite reproduzindo tantos outros mundo, que, como o do rio, são tão
independentes e tão cruéis quanto ele: Ŗcaíam os raios como setas nas pocinhas espelhadas sobre os
copos-de-leite [...]. A luz se refletia gerando brilhantes como um punhado de estrelas precoces[...].
Mas os brilhantes eram ásperos e agudos. Doíam. Doíam.ŗ (CABRAL, 1998, p.112)

Nesta interpenetração de cosmos, já não importa quem é olho e quem é objeto deste olhar.
Os mundos se unem atravessados por um mesmo fato, aqui, personificado: a morte. Ela ultrapassa
os mundo sem respeitar o limite pela superfície da água. Limite tênue e quase indiscernível, como
deve ser o limite entre mundos paralelos e co-dependentes. O limo, ou a morte, habita o fundo do
rio, que, inversamente seria o céu, e é exatamente de cima que os copos-de-leite pressentem a sua
chegada quando cai a noite. Assim, os dois mundos que se apresentam são ligados pela morte, que
se utiliza da água presente nos dois para entrar em ação. Na hora em que agir, os dois mundos
deixam de existir. Se o limo, finalmente, derrotar os copos de leite, perde-se o olho que vê o
reflexo, se qualquer elemento de fora da água entrar em contato com ela, a água se turva e também
não há mais reflexo. Os dois lados, portanto, precisam um do outro, mas para que não deixem de
existir devem respeitar a ilusória linha que os separa.

A morte dos copos-de-leite há de vir. ŖMortalha de veludo, o limo os aguardavaŗ


(CABRAL, 1998, p.112)

Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Martins Fontes: São Paulo, 2002.

BRANDÃO, Junito. Mitologia grega (vol. II). Vozes: Petrópolis, 1987.

CABRAL, Astrid. Alameda. 2. ed. Editora Valer: Manaus, 1998.

OS PRÉ-SOCRÁTICOS: fragmentos, doxografia e comentários. 5. ed. São Paulo: Nova Cultural,


1991. (Os pensadores).

PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

880
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

O TEATRO MÍTICO DE MÁRCIO SOUZA


Zemaria Pinto (UFAM)

Embora ociosa para alguns, a discussão a respeito da especificidade do texto de teatro


atravessa milênios e oscila ao sabor das teorias em voga. Antes de falar, então, sobre o teatro mítico
de Márcio Souza, permito-me estabelecer alguns parâmetros essenciais para delimitar a abrangência
desta análise:

1 Ŕ O texto dramático é literatura, sim. Sem renegar o bom Aristóteles e seus prosélitos,
antes, complementando-os, afirmo que os gêneros literários, hoje, podem ser
arquivados sob os títulos Poesia, Prosa de Ficção e Drama; neste último, arquiva-
se o texto teatral;

2 Ŕ O texto de teatro, entretanto, só é literatura quando aprisionado nas páginas de um


livro. Sobre o palco, ele adquire outra dimensão, passando a ser um componente Ŕ
em alguns casos, o mais importante; em outros, nem tanto Ŕ do espetáculo;
3 Ŕ No geral, o texto dramático guarda total homologia com os outros gêneros, podendo
ser apresentado em prosa ou em verso, e mantendo uma estrutura básica, formada
por enredo, fábula, personagens, ambiente e tempo;
4 Ŕ O texto dramático alicerça-se na fala das personagens. Sem fala não há texto
dramático. Mas há teatro. De outra forma: um texto dramático formado só de
didascálias, sem falas, não é literatura. Mas pode ser teatro;
5 Ŕ Em síntese, texto de teatro é literatura, mas teatro é espetáculo. Com falas ou sem
falas.
Então, esclareça-se que as tentativas de análise aqui perpetradas levam em conta unicamente
os textos impressos, esquecendo-se o autor, temporariamente, dos muitos espetáculos a que assistiu
nos últimos trinta e tantos anos, em que esses textos foram encenados. Aliás, as peças de Márcio
Souza, mesmo as que têm suporte musical, dão ênfase ao texto, na melhor tradição ocidental.
O leitor mais atento perceberá, na divisão das peças em blocos, a influência de Sábato
Magaldi. Não se trata de emular simplesmente o grande crítico, mas de, tomando emprestada sua
ideia, quando da organização do Teatro Completo de Nelson Rodrigues, identificar os caminhos
comuns das onze peças publicadas de Márcio Souza. Assim, sem abdicar do sagrado direito ao
arbítrio, mas apontando a ênfase onde ela se mostra mais densa, e sem preocupações cronológicas
quanto à escritura ou encenação, mas buscando um nexo temporal no cerne dos textos, dividi a obra
dramática de Márcio Souza em quatro blocos: peças míticas, tragédias amazônicas, chanchadas
amazônicas e peças cariocas.

881
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

As peças míticas reúnem os textos que tratam da mitologia índia do rio Negro, em cuja foz
foi plantada a cidade de Manaus. Dessana, Dessana representa o mito da criação do mundo, como o
povo Dessana conseguiu preservá-lo. Jurupari, a guerra dos sexos baseia-se na visão Tariana do
mito desse herói-civilizador, uma personagem de importância messiânica para os povos do rio
Negro. A maravilhosa história do sapo Tarô-Bequê é uma comédia que trata de lendas do povo
Tucano, envolvendo bichos e gente comum. Longe da condição de mito, mas não da mitologia.
A Paixão de Ajuricaba, a primeira peça de Márcio Souza levada à cena, abre o capítulo das
tragédias amazônicas, com a história ficcional do herói. A rigor, aliás, é a única tragédia do grupo.
Pequeno teatro da felicidade, ambientada durante a guerra entre cabanos e legais, trata da tragédia
coletiva, da mesma forma que Contatos amazônicos de terceiro grau, uma alegoria do poder
destruidor da colonização.
Homenageando as origens cinéfilas do autor, agrupei entre as chanchadas amazônicas a cota
da sua obra que seria, talvez, mais apropriado chamar de farsas históricas. Mas soaria muito
helênico. As Folias do Látex é uma alegre análise sobre nossas origens e nosso caráter. A resistível
ascensão do boto Tucuxi, baseada em fatos cruelmente reais, mostra a arte da politicalha amazônica
nos anos pós-Vargas/Maia. Tem piranha no pirarucu é um painel risonho e franco da Manaus pós-
moderna.
Finalmente, o bloco das peças cariocas traz os dois textos de Márcio Souza ambientados fora
do Amazonas e com uma temática menos endógena: O elogio da preguiça, comédia, e Ação entre
amigos, drama. O pano de fundo é o Brasil brasileiro dos anos 60, 70 Ŕ do século passado!
Deuses, heróis, bufões Ŕ e também gente comum: é nesse universo que o teatro de Márcio
Souza se consubstancia. Utilizando-se de uma linguagem de grande carga poética, especialmente
nas peças míticas e na tragédia de Ajuricaba, com expressões e palavras muitas vezes
desconhecidas mesmo dos nativos urbanos, o texto impõe-se naturalmente, pela sua própria
coerência interna. Entretanto, ao contrário do que o leitor apressado pode estar presumindo, não se
trata de um Ŗteatro regionalistaŗ . Mas essa discussão terá seu tempo certo.

Dessana, Dessana ou O começo antes do começo (SOUZA, 1997, p. 47-90)1, encenada pela
primeira vez em 1975, é uma recriação do mito dessana da criação do mundo, tal como esse mito
chegou à segunda metade do século XX, tendo como ponto de partida a versão de Feliciano Lana,
primo de Luiz Lana, coautor de Antes o mundo não existia, publicado em 1980. Em entrevista à
antropóloga Berta Ribeiro, Luiz Lana afirma que a decisão de escrever o livro foi tomada após notar
que os rapazes de sua tribo, entre eles Feliciano, estavam divulgando as histórias sagradas de forma
equivocada (KUMU; KENHÍRI, 1980, p. 9-10). O próprio Luiz Lana, assistindo aos ensaios da
peça de Márcio Souza, teve oportunidade de sugerir mudanças no texto (SOUZA, 1984, p. 34),
possivelmente eliminando ou corrigindo o que julgava não estar de acordo com a tradição que ficou

1
Com relação aos três textos analisados, limitar-me-ei a citar sua inserção no volume mencionado nas Referências,
abstraindo que as citações, diretas e indiretas, estão contidas naquele intervalo.

882
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

estabelecida a partir da publicação de seu livro, que tem parceria de Firmiano Lana, seu pai Ŕ aliás,
o verdadeiro repositório das histórias contadas Ŕ, e texto definitivo de Berta Ribeiro.
A encenação começa com o diálogo, em pleno caos urbano de Manaus, entre a personagem
Dessana e o coro. Dessana, em contraponto com o coro, funciona como narrador do mito, elo entre
o presente e o eterno. Ele invoca o mito do começo do mundo, fazendo aparecer, vivida por quatro
atrizes, Yebá-Beló, a que surgiu das coisas invisíveis, a não-criada, a avó do mundo, mais velha que
o nada. Essa múltipla representação feminina do deus criador é uma alusão ao domínio matriarcal.
Yebá-Beló faz surgir os quatro trovões, seus irmãos: o Trovão da Casa do Rio, o Trovão da Casa da
Noite, o Trovão da Casa do Sul e o Trovão do Wapuí-Cachoeira. Observe-se, no nome do terceiro
trovão, a influência branca. Na sequência, como os trovões revelam-se incompetentes, a avó do
mundo faz surgir Sulãn-Panlãmin, o incriado, que tem por missão criar o mundo. Este recebe a
ajuda do Trovão Avô do Céu, que lhe fornece a matéria para a criação do mundo. Do grupo de
homens e mulheres inicialmente criados, que brincam como crianças, Sulãn-Panlãmin escolhe
Boleka, o primeiro chefe dessana. Para que a criação fosse completada, era preciso que Boleka
levasse homens e mulheres a atravessar o lago de leite. Surge então o homem branco, armado com
um fuzil, tentando usurpar a liderança de Boleka e de Sulãn-Panlãmin, mas estes não permitem que
ele embarque na barriga do Trovão-Cobra-Barco, que era o próprio Trovão Avô do Céu:

Ŕ Adeus, adeus
pobre branco,
ficarás para sempre
longe de teus irmãos.
Serás tão diferente de nós
como a pedra é da água
e o pássaro é do peixe.

O segundo ato representa as festas, os rituais e os trabalhos manuais desenvolvidos pelo


povo dessana. Mostra ainda o nascimento de Jurupari, filho da Filha do Trovão, que, virgem, comeu
o fruto de uma árvore proibida. Quando a representação mítica termina, Dessana, responsável por
aqueles momentos mágicos, de volta ao caos urbano, é expulso de cena por um policial.
O mito da criação é um mito cosmogônico, símbolo do fim do caos e do advento de uma
nova ordem. Faz parte, juntamente com os mitos de origem, do grupo de mitos a que Mircea Eliade
chama de Ŗhistñrias verdadeirasŗ , que explicam a origem de algo, para discernir das Ŗhistñrias
falsasŗ , as lendas e os contos populares (ELIADE, 1986, p. 15-19). Toda cultura minimamente
desenvolvida tem a sua cosmogonia. Como os dessanas não tinham originalmente uma escrita, seus
mitos chegaram até nós pela transmissão oral, sofrendo influências diversas no meio do caminho,
especialmente após o contato com o homem branco. O professor Marcos Frederico Krüger, ao
analisar o livro dos Lana, observa:

(...) seus valores culturais foram alvo da sanha devastadora dos missionários, no inevitável
conflito entre as civilizações aborígine e adventícia. O catolicismo nada assimilou dos

883
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

mitos amazônicos; o inverso, porém, aconteceu frequentemente, como se pode constatar em


diversas narrativas coletadas. (KRÜGER, 2003, p. 49)

Concebido como uma cantata, o texto de Dessana, Dessana é lírico e reverente, sem
dispensar um leve toque de humor, mantendo-se distante da armadilha do misticismo. Com relação
à linguagem, uma outra armadilha quando tratamos da representação de uma cultura diversa da
nossa, Márcio Souza, como de resto em todas as suas obras onde os índios são protagonistas, opta
pela Ŗtraduçãoŗ para uma linguagem muito prñxima à da plateia, que, embora rica em símbolos,
jamais resvala no caricatural.

Do mito cosmogônico passamos ao mito de origem, do herói-civilizador. Jurupari, a guerra


dos sexos (SOUZA, 1997, p. 91-152), encenada pela primeira vez em 1979, é a versão Tariana do
mito, em três atos. Para Camara Cascudo, Jurupari Ŗé, geograficamente, o mito mais prestigioso,
com vestígios vivos em quase todas as tribosŗ (CASCUDO, 1988, p. 420). A força do mito é a
provável responsável pelo ardil missionário de classificá-lo como um demônio, na concepção cristã.
Ironicamente, uma autoridade católica, D. Frederico Costa, em documento de 1909, defende o herói
da desonra que seus pares tentaram lançar-lhe, enumerando os oito mandamentos de Jurupari e
concluindo que tanta reserva moral não caberia num espírito maligno (CASCUDO, 1983, p.76-77,
apud COSTA, 1909, p.52-54). Ainda para Câmara Cascudo, Jurupari Ŗé o legislador divinizado, que
se encontra como base em todas as religiões e mitos primitivosŗ (CASCUDO, 1988, p. 420).
A ação de Jurupari se passa num tempo mítico, anterior ao que possa ser admitido como
História, mas sem que esta possa negá-lo de todo. Uma peste dizima os homens da tribo, deixando
apenas alguns velhos, entre eles um pajé, que, para Naruna, a matriarca, era apenas Ŗuma raiz, uma
planta antigaŗ . Desoladas, as mulheres vão banhar-se no lago Muypá, que lhes era proibido, por ser
o lago sagrado onde Ceucy, a estrela, banhava-se todos os dias, Ŗlavando o suor de seus amantesŗ .
Para surpresa das mulheres, o velho pajé lhes aparece no corpo de um jovem belo e forte,
anunciando um castigo por haverem ignorado a interdição: Ŗpelo crime cometido, a geração que
nascerá amanhã excluirá a mulher para sempre de tudo o que for sério e graveŗ . Ele mergulha no
lago e desaparece entre as mulheres. Depois de passadas dez luas, Ŗtodas as mulheres pariram ao
mesmo tempoŗ. N aruna deu à luz uma menina, a quem chamou Ceucy da Terra.
Adolescente, Ceucy, ainda virgem, come uma fruta proibida e o sumo dessa fruta escorre-
lhe pelo ventre, fecundando-a. Dez luas passadas, nasce Jurupari. O recém-nascido desaparece
como por encanto e seu choro é ouvido próximo à árvore do fruto proibido. Ceucy deixa-se ficar
junto à árvore e, durante algum tempo, sempre que adormece, sente o filho sugar-lhe o seio. Vinte
anos decorrem até que ele reapareça para assumir o lugar que lhe fora reservado. Aos poucos, sua
liderança vai sendo imposta aos homens, a quem fala sobre a música, a agricultura do milho, da
mandioca e da banana, e sobre o novo tempo em que eles assumirão os destinos da tribo. Essas
informações devem pertencer somente aos homens: são os segredos de Jurupari. Numa das reuniões
proibidas às mulheres, Ceucy, que ouvia escondida, é descoberta e recebe o castigo de morte do

884
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

prñprio filho. Naruna foge com as outras mulheres para o Ŗlago de águas verdesŗ , recebendo os
homens uma vez por ano.
Mas Naruna não desiste de conhecer os segredos de Jurupari, que só os iniciados dominam.
Este, por sua vez, aplaca a tensão dos homens prometendo que dentro em breve as mulheres
voltarão. A jovem Diádue, a serviço de Naruna, consegue seduzir o maduro e experiente Uálri, que
é condenado a morrer pela traição. O Ŗsegredoŗ revelado às mulheres é o conhecimento erñtico de
Uálri: Ŗele agiu com uma sabedoria nova e não resumiu o amor em poucos gestosŗ . As mulheres,
então, retornam, deixando Naruna e algumas poucas que lhe permaneceram fiéis. Jurupari ensina
aos homens acerca das flautas sagradas:

Ŕ Minhas flautas farão os desejos ondularem como ramagens saudando o tempo, na alta
copa da mata, esvaindo todo o travo das frustrações na torrente distante espumando na
descida. E os homens crescerão sem medo, como o trêmulo pássaro parado na margem
antes do ocaso.

O terceiro ato começa mostrado um outro legado de Jurupari: os adornos. Os homens vão ao
encontro anual com as últimas defensoras do matriarcado. Jurupari, pela primeira vez, vai junto. No
encontro com Naruna dá-se o inevitável: ele a mata. Quando retornam, ainda sob os reflexos do
incêndio que consome a maloca de Naruna, Jurupari e Diádue fazem amor, mas ele a adverte:

Ŕ Esta será a nossa primeira e última noite. Quando os séculos se consumarem eu voltarei a
te encontrar e viveremos juntos. Eu mergulharei em ti e repousarei das minhas fadigas e
sustos.

Pela manhã, Diádue transforma-se num lago. Antes, entretanto, Jurupari revelara-lhe um
último segredo: o Trovão Avô do Mundo queria casar-se e incumbira-o de encontrar a mulher
perfeita. Ele precisava continuar sua busca por uma mulher paciente, que soubesse guardar segredo
e não fosse curiosa...
Sem um Luiz Lana por perto, Márcio Souza trabalhou à vontade as inúmeras variantes do
mito de Jurupari e deu-lhe uma formatação literária condizente, amarrando-o com sua concepção
anterior da criação do mundo e com outras histórias, como a das Amazonas, que seriam as
guerreiras lideradas por Naruna. O mito de Jurupari é uma Ŗhistñria verdadeiraŗ e explica a origem
de vários costumes e práticas: a música, a agricultura, os adornos, o patriarcado. Mas sua fama de
legislador deve-se aos mandamentos coligidos por D. Frederico Costa:

1º A mulher deverá conservar-se virgem até a puberdade;


2º Nunca deverá prostituir-se e há de ser sempre fiel ao seu marido;
3º Após o parto da mulher, deverá o marido abster-se de todo trabalho e de toda comida,
pelo espaço de uma lua, a fim de que a força dessa lua passe para a criança;
4º O chefe fraco será substituído pelo mais valente da tribo;
5º O tuxaua poderá ter tantas mulheres quantas puder sustentar;
6º A mulher estéril do tuxaua será abandonada e desprezada;
7º O homem deverá sustentar-se com o trabalho de suas mãos;
8º Nunca a mulher poderá ver Jurupari a fim de castigá-la de algum dos três defeitos nela
dominantes: incontinência, curiosidade e facilidade em revelar segredos. (CASCUDO,
1983, p.76-77, apud COSTA, 1909, p.52-54)

885
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Sobre o oitavo mandamento, que é também o epílogo da peça, Stradelli o apresenta como o
desfecho da aventura humana de Jurupari, numa missão que lhe fora atribuída pelo Sol: o de
procurar a mulher perfeita, que não tivesse nenhum daqueles defeitos (CASCUDO, 1967, p. 58,
apud STRADELLI, 1890).
A despeito do título, que pode levar o leitor incauto a pensar na Lisístrata, de Aristófanes,
Jurupari, a guerra dos sexos é um texto dramático, de alta densidade poética, perpassado de um
erotismo sutil, que, quando necessário, se escancara, sem cair na vulgaridade. O sexo é mostrado
como um índice de civilidade, muito além da mera função reprodutora. Jurupari, por outro lado, é
uma personagem atormentada, desprovida de humanidade, centrada na sua missão, como um herói
grego consciente de seu destino, previamente traçado pelos deuses.

Das Ŗhistñrias verdadeirasŗ passamos a uma Ŗhistñria falsaŗ , A maravilhosa história do sapo
Tarô-Bequê (SOUZA, 1997, 153-195), pela qual o prñprio Márcio Souza diz ter Ŗuma predileção
especialŗ (SOUZA, 1984, p. 42). Tarô-Bequê, encenada pela primeira vez em 1975, encerra um
paradoxo na sua própria estrutura: embora em ritmo de comédia, trata-se de uma tragédia, ou,
segundo o prñprio autor, Ŗuma comédia moral para criançasŗ , concebida de acordo com a tradição
do povo Tucano. A opção pelo tom de comédia confirma a recomendação aristotélica de que estas
tratem de Ŗpessoas inferiores; não, porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma
espécie do feioŗ (ARISTÓTELES,1988, p. 23-24). Tarô-Bequê traz animais antropomorfizados
como personagens, com exceção de Cainhamé, o Pai do Mato, um ente com poderes sobrenaturais.
Em outra oportunidade, comentando o texto de A maravilhosa história do Sapo Tarô-Bequê,
chamei a atenção para a inversão dos postulados europeus, onde bruxas más transformam gente em
bicho. Na peça de Márcio Souza, um sapo transforma-se no guerreiro Tarô-Bequê e um cipó é
metamorfoseado na Moça Juruti. O final, trágico, repõe a ordem original, quebrando a hegemonia
do Ŗfinal felizŗ das fábulas europeias. A aproximação entre as lendas tucanas e conhecidas
passagens da mitologia grega Ŕ os mitos de Prometeu, no episódio do roubo do fogo, e de Orfeu e
Eurídice, na descida à Maloca dos Mortos Ŕ, nos remete novamente a Mircea Eliade, ao referir-se às
Ŗmitologias primitivasŗ :

Elas foram transformadas e enriquecidas ao longo dos tempos, sob a influência de outras
culturas superiores, ou graças ao gênio criador de certos indivíduos excepcionalmente
dotados. (...) Apesar de suas modificações ao longo do tempo, os mitos dos Ŗprimitivosŗ
refletem ainda uma condição primordial. Além disso, nas sociedades Ŗprimitivasŗ os mitos
estão ainda vivos e fundamentam e justificam todos os comportamentos e atividades
humanas. (ELIADE, 1986, p. 12)

A fábula de Tarô-Bequê é plena de aventura e suspense. Atendendo a um pedido insistente


do sapo, Cainhamé acaba por ceder e transforma-o num guerreiro. Mas um homem solitário não
está completo: Cainhamé, então, de um cipó, de tamanho entre o queixo e os pés de Tarô-Bequê,
faz surgir a Moça Juruti. Tudo estaria muito bem se Juruti, cansada de comer carne crua, não
exigisse do noivo que lhe trouxesse o fogo, guardado pelo Urubu-Rei, caso contrário o casamento
não se consumaria. O ex-sapo não resiste ao desafio da amada. Fingindo-se de morto, Ŗuma
886
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

deliciosa carniça de genteŗ , Tarô-Bequê é levado pelo vaidoso Urubu-Rei até a casa deste, acima
das nuvens, para que sua cozinheira, Dona Mucura, possa com ele preparar um repasto ao patrão.
Após cegar o Urubu-Rei com pimenta, Tarô-Bequê apossa-se do fogo e montado no ex-guardião
foge de volta para casa, ameaçando queimar-lhe as penas do rabo. Mas a Mucura tem seus contatos
e consegue não só descobrir tudo sobre Tarô-Bequê como chegar antes à casa onde Juruti esperava
ansiosamente pelo noivo.
À maneira da madrasta de Branca de Neve, Dona Mucura se disfarça e inocula em Juruti um
conhecido veneno Ŕ coca-cola Ŕ, desacordando-a e sequestrando-a em seguida. Ao chegar em casa e
não encontrando Juruti, Tarô-Bequê pede ajuda a Cainhamé, que, com seus poderes, descobre que
a jovem encontra-se prisioneira do Urubu-Rei e da Mucura, na Maloca dos Mortos. Acompanhado
de Dona Surucucu, prima de Cainhamé, Ŗdescendente da vigésima geração da cobra-trovão que
trouxe no ventre os avós-primeiros para a terraŗ , Tarô-Bequê, com o disfarce de um amigo do
Urubu-Rei, penetra na Maloca dos Mortos, com uma restrição explícita: em hipótese alguma a
palavra Ŗnãoŗ poderá ser pronunciada. Depois de muito caxiri, que embebeda não sñ o Urubu-Rei e
Dona Mucura, mas também a aliada Surucucu, Tarô-Bequê discute com Juruti sobre se devem ou
não levar a cobra junto com eles. Juruti insiste que sim, Tarô-Bequê se nega. Juruti volta a insistir e
Tarô-Bequê grita a plenos pulmões a palavra proibida. Como castigo por violar a interdição, Tarô-
Bequê retorna à forma de sapo e Juruti se transforma num pé de tajá.
As palavras finais de Cainhamé encerram a comédia com um travo de iniludível tristeza:

Ŕ Pobre Juruti! Pobre Tarô-Bequê!


Nenhum lamento para eles é necessário.
(....) No sapo que poreja, vejam um amante desesperado.
Ele, o sapo, lerdo e pesado, um amante cheio de perseverança.
E nelas, nas folhas dos tajás, a amada não saciada.
O resto é essa poeira que acompanha nas margens do rio
o caminho de nossos desejos.

Representando a sabedoria ancestral, Cainhamé, diligente protetor da natureza, é o


repositório de todas as tradições, melhor dizendo, de todos os conhecimentos de sua gente. A sua
linguagem é a única a manter-se sempre em alta tensão poética, deixando claro ao público/leitor a
sua ascendência sobre os demais, mocinhos ou vilões. Ao subnominá-lo como Pai do Mato, Márcio
Souza toma emprestado um título usualmente empregado para nomear espíritos malignos, como o
Curupira, ou monstros, como o Mapinguari. Fazendo uma inevitável analogia com o percurso
histñrico da Mãe dřÁgua Ŕ que de serpente traiçoeira mudou-se em lânguida ninfa, graças às
contaminações que o imaginário popular sofreu ao longo dos séculos Ŕ, é muito simpático
reconhecer no sábio e ponderado Cainhamé o antes temível Pai do Mato. Sem dúvida, um título de
nobreza.
O lado cômico da histñria é garantido pelas interferências críticas à Ŗcivilizaçãoŗ , com
gagues relacionadas a acontecimentos recentes, de domínio da plateia, sempre olhados como

887
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

movimentos do colonizador no sacro espaço do mito. Assim, os tempos mítico e atual se cruzam e
se interpenetram, num movimento articulado, garantindo para este o riso e para aquele a reflexão.

Tarô-Bequê sustenta-se em duas colunas mestras: o roubo do fogo, quando o herói leva a
melhor, e a ida à Maloca dos Mortos, onde sua pretensão de virar gente se esvanece. Quanto ao
simbolismo do fogo Ŕ assim como em Jurupari, quando o incêndio da maloca de Naruna
representava a purificação, o começo de uma nova era Ŕ, aqui ele tem dois significados
complementares, essenciais à metamorfose pretendida por Tarô-Bequê:

1 Ŕ exprime o seu desejo de conhecimento, pois Ŗnão basta moldar um feixe de nervos
feito gente para isso ser genteŗ , como já o alertara Cainhamé;
2 Ŕ simboliza o desejo sexual reprimido dos noivos, pois é preciso ter o fogo em casa
para que o casamento seja levado a termo e se perpetue; por outro lado, a carne
assada ou cozida é um índice de civilidade, tanto quanto a instituição do casamento.

Em ambos os casos, o fogo é iluminação, metáfora do conhecimento humano, sempre


em mutação. O mito de Prometeu aqui representado ilustra a humana Ŗvontade de intelectualidadeŗ
(BACHELARD, 1990, p. 104); isto é, a vontade de saber, de ir além do conhecido, sem temer a
barreira imposta por pais, mestres ou governantes.
A descida à Maloca dos Mortos, que evoca de modo direto o mito de Orfeu e Eurídice, é
recorrente na literatura universal, desde Homero. A Maloca dos Mortos guarda uma relação direta
com o inferno cristão de Dante e com os Infernos visitados por Ulisses e Eneias, na Odisséia e na
Eneida, respectivamente. A simbologia é clara: se o sapo conseguisse sair daquele lugar interdito
aos humanos carregando o fogo, ele teria merecido sua nova condição de homem, pois Cainhamé o
prevenira, logo no início da aventura, que ele não seria Ŗaceito por nenhuma comunidade de
homens por não ter nascido de mulherŗ . O fracasso de Tarô-Bequê é um signo da queda cotidiana
do homem, o que não é necessariamente o triunfo do Mal; antes, ele deixa-se vencer por si mesmo,
pela sua falta de qualidades, sua incompletude. Demasiado humano.

O teatro mítico de Márcio Souza é uma amostra da riqueza e diversidade dos mitos
amazônicos. Uma das finalidades deste trabalho era mostrar as relações interculturais entre os mitos
nativos e os mitos universais Ŕ não apenas gregos e latinos, mas também judaico-cristãos. Onde
termina a originalidade e começa a contaminatio, não cabe aos Estudos Literários identificar Ŕ
talvez à Antropologia. Importante também era demonstrar que os textos servem de veículo para a
Ŗrepresentação espetacularŗ de rituais, costumes, origens do artesanato, da música, do patriarcado e
até de técnicas agrícolas Ŕ como preconizado pela Etnocenologia, uma disciplina bem posterior à
elaboração dos textos (GREINER; BIÃO, 1999).

888
Anais do II Colóquio Internacional Poéticas do Imaginário Manaus, 15 a 17 de setembro de 2010

Márcio Souza inscreve-se, hoje, entre os grandes dramaturgos deste país, ainda que sob o
risco de ser tachado de Ŗregionalistaŗ por uma crítica cosmopolitamente provinciana. Sem entrar
nos meandros teóricos, posso garantir que o regionalismo é uma questão de perspectiva: como diz
Aldisio Filgueiras, parceiro constante de Márcio Souza, Manaus não é longe; longe é o Rio de
Janeiro, São Paulo, Tóquio, Paris... O dramaturgo Márcio Souza é universal na medida em que suas
peças refletem a intricada relação entre o homem contemporâneo, com suas práticas e hábitos
sociais e mentais, e as perspectivas históricas mais diversificadas Ŕ do tempo mítico à
temporalidade mais banal; da leitura dos jornais de hoje, por exemplo. A floresta amazônica de
Márcio Souza é tão universal quanto as províncias de Balzac e de Gogol e os sertões de Graciliano
Ramos e de Guimarães Rosa, no que esses autores transcendem a mera geografia para se inserir
como repositórios das mais recônditas experiências humanas.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. In: A poética clássica. Tradução: Jaime Bruna, 2. ed. São Paulo: Cultrix,
1988.
BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. Trad. Norma Telles, São Paulo:
Brasiliense, 1990.
CASCUDO, Luis da Camara. Dicionário do folclore brasileiro. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, São
Paulo: EDUSP, 1988.
_____________. Geografia dos mitos brasileiros. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo:
EDUSP, 1983.
_____________. Em memória de Stradelli. 2. ed. Manaus: Governo do Estado do Amazonas, 1967.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Tradução: Vera da Costa e
Silva et al. 2. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Tradução: Manuela Torres, Lisboa: Edições 70, 1986.
GREINER, Christine; BIÃO, Armindo (Org). Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo:
Annablume, 1999.
KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. Manaus: Valer / Governo do Estado do
Amazonas, 2003.
KUMU, Umúsin Panlõn; KENHÍRI, Tolamã. Antes o mundo não existia. Introdução e texto final:
Berta Ribeiro. São Paulo: Cultura, 1980.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Trad. Victor Jabouille, Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1992.
SOUZA, Márcio. O palco verde. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984.
_____________. Teatro I. São Paulo: Marco Zero, 1997.

889

Você também pode gostar