Você está na página 1de 222

Letras Vernáculas . Módulo 5 .

Volume 4

LITERATURA COMPARADA III


O Teatro de Língua Portuguesa
Inara de Oliveira Rodrigues

Ilhéus, 2013
Universidade Estadual de
Santa Cruz

Reitora
Profª. Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro

Vice-reitor
Prof. Evandro Sena Freire

Pró-reitor de Graduação
Prof. Elias Lins Guimarães

Diretor do Departamento de Letras e Artes


Prof. Samuel Leandro Oliveira de Mattos

Ministério da
Educação
Letras Vernáculas | Módulo 5 | Volume 4 - Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

1ª edição | Agosto de 2013 | 462 exemplares


Copyright by EAD-UAB/UESC

Todos os direitos reservados à EAD-UAB/UESC


Obra desenvolvida para os cursos de Educação a
Distância da Universidade Estadual de Santa Cruz -
UESC (Ilhéus-BA)

Campus Soane Nazaré de Andrade - Rodovia Ilhéus-


Itabuna, Km 16 - CEP: 45662-000 - Ilhéus-Bahia.
www.nead.uesc.br | uabuesc@uesc.br | (73) 3680.5458

Projeto Gráfico e Diagramação


Jamile A. de M. C. Ocké
Sheylla Tomaz Silva

Capa
Sheylla Tomaz Silva

Impressão e acabamento
JM Gráfica e Editora

Ficha Catalográfica
EAD . UAB|UESC
Coordenação UAB – UESC
Profª. Drª. Maridalva de Souza Penteado

Coordenação Adjunta UAB – UESC


Profª. Drª. Marta Magda Dornelles

Coordenação do Curso de Licenciatura em


Letras Vernáculas (EAD)
Profª. Ma. Ângela Van Erven Cabala

Elaboração de Conteúdo
Profª. Drª. Inara de Oliveira Rodrigues

Instrucional Design
Profª. Ma. Marileide dos Santos de Oliveira
Profª. Ma. Cibele Cristina Barbosa Costa
Profª. Drª. Cláudia Celeste Lima Costa Menezes

Revisão
Prof. Me. Roberto Santos de Carvalho

Coordenação de Design
Me. Saul Edgardo Mendez Sanchez Filho
SUMÁRIO

AULA 1
COMPONDO FIOS PARA A LEITURA DE TEXTOS DRAMÁTICOS......... 13
1 INTRODUÇÃO.................................................................................. 15
2 A ESPECIFIDADE DOS TEXTOS LITERÁRIOS DRAMÁTICOS ................... 15
2.1 Perspectiva histórica da literatura dramática................................ 16
2.2 Para a leitura de textos literários dramáticos................................ 42
ATIVIDADES...................................................................................... 46
RESUMINDO...................................................................................... 48
REFERÊNCIAS . ................................................................................. 49

AULA 2
NO COMEÇO ERAM OS AUTOS... E ELES CONTINUAM EM CENA......... 51
1 INTRODUÇÃO.................................................................................. 53
2 o teatro de gil vicente: tradições e legados........................... 54
3 DE AUTOS E OUTROS ATOS NA CENA BRASILEIRA .............................. 67
3.1 O Auto de Natal Pernambucano: a esperança na vida severina....... 69
ATIVIDADES...................................................................................... 79
RESUMINDO...................................................................................... 81
REFERÊNCIAS.................................................................................... 81

AULA 3
O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS............. 83
1 introdução.................................................................................. 85
2 a comédia no classicismo português......................................... 85
2.1 O Renascimento Português e a Comédia de Sá de Miranda
e de Camões................................................................................. 86
2.2 As comédias de António José da Silva, O Judeu............................ 93
3 A COMÉDIA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX........................................... 96
3.1 A crítica de costumes de Martins Pena e de Artur de Azevedo......... 96
ATIVIDADES...................................................................................... 102
RESUMINDO...................................................................................... 103
REFERÊNCIAS.................................................................................... 104
AULA 4
DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX...................... 107
1 INTRODUÇÃO.................................................................................. 109
2 OS NOVOS OLHARES ROMÂNTICOS................................................... 110
2.1 Elementos da tragédia em Frei Luís de Souza............................... 110
2.2 Dramas românticos de Gonçalves Dias e José de Alencar............... 116
3 OS CHOQUES E ANTIDRAMAS DO MODERNISMO................................. 124
3.4 O Modernismo dramático de Fernando Pessoa.............................. 124
3.5 Literatura dramática no Modernismo brasileiro............................. 143
ATIVIDADES...................................................................................... 151
RESUMINDO...................................................................................... 154
REFERÊNCIAS.................................................................................... 155

AULA 5
O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE................................................. 159
1 INTRODUÇÃO.................................................................................. 161
2 O TEXTO DRAMÁTICO NOS ANOS 1940/1950...................................... 162
2.1 Do Neorrealismo ao Épico em Portugal........................................ 162
2.2 O engajamento na dramaturgia brasileira.................................... 168
2.2.1 Sobre promessas de vida e histórias de morte:
Santareno e Dias Gomes................................................................ 172
ATIVIDADES...................................................................................... 185
RESUMINDO...................................................................................... 186
REFERÊNCIAS.................................................................................... 187

AULA 6
CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS........................................................ 189
1 INTRODUÇÃO.................................................................................. 191
2 A LITERATURA DRAMÁTICA BRASILEIRA NA ATUALIDADE .................... 192
3 PANORAMA DA ATUAL LITERATURA DRAMÁTICA PORTUGUESA............... 197
4 A LITERATURA DRAMÁTICA NOS PAÍSES AFRICANOS .......................... 204
ATIVIDADES...................................................................................... 216
RESUMINDO...................................................................................... 218
REFERÊNCIAS.................................................................................... 219
APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA

Além de gêneros do modo narrativo, como os romances, os contos, as novelas, e do


modo lírico, com seus sonetos, canções, cantigas, para citarmos alguns, a literatura também
se compõe de tragédias, comédias, dramas, autos, e outros gêneros do modo dramático.
Nesta disciplina, vamos estudar as principais especificidades desses últimos textos que
se correspondem muito diretamente com a arte teatral, visando ao reconhecimento de
importantes obras literárias dramáticas em língua portuguesa. Essa seleção foi organizada
a partir de uma linha diacrônica (sequencial), que permite a compreensão da historicidade
dos textos, em um eixo sincrônico (simultâneo) de abordagem por temáticas afins. Desse
modo, nosso estudo possibilitará um diálogo dinâmico entre passado e presente, sempre
tendo por horizonte as incontornáveis relações da arte literária com a história, assim
como um diálogo dos textos selecionados entre si, permitindo a riqueza dos diferentes
contornos da intertextualidade. Fazemos, entretanto, uma importante observação: como
em todo processo seletivo, há sempre certa dose de subjetividade daquele que escolhe,
considerando-se a infinidade de textos disponíveis para este estudo. Fica, portanto, a
certeza de que esta é apenas uma porta de entrada para muitas outras desse universo
tão vasto e instigante dos textos dramáticos escritos em nossa língua, com seus diferentes
falares e olhares sobre o mundo, sobre a arte e sobre nós mesmos.
Boas leituras e ótimo estudo!
A AUTORA

Profª. Dra. Inara de Oliveira Rodrigues

Inara de Oliveira Rodrigues possui graduação em História


pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1987), mestrado em
Letras (Teoria da Literatura) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (1996) e doutorado em Letras (Teoria da Literatura) pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2000). Atualmente
é professora do Curso de Letras e do PPGL Mestrado em Linguagens e
Representações da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC - Ilhéus-
BA). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Outras Literaturas
Vernáculas, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura e
História, Literatura Portuguesa, Identidade, Literatura Brasileira, Leitura.
DISCIPLINA

LITERATURA COMPARADA III:


o teatro de língua portuguesa
Profª. Drª. Inara de Oliveira Rodrigues

EMENTA
Análise comparativa de textos dramáticos paradigmáticos das literaturas
de Língua Portuguesa.

Carga Horária: 45 horas


aula

1
COMPONDO FIOS PARA
A LEITURA DE TEXTOS
DRAMÁTICOS

Objetivo:
• Compreender os principais aspectos que caracterizam
os textos dramáticos e reconhecer os principais aspectos
da literatura dramática do mundo ocidental, a partir do
estabelecimento de um repertório básico de elementos
para a análise das obras literárias dramáticas.
COMPONDO FIOS PARA A LEITURA DE TExTOS DRAMáTICOS

1
Aula
1 INTRODUÇÃO

Quais são as principais características dos textos


dramáticos? Ou, de outro modo, o que diferencia os textos TEXTO: vem do la-
dramáticos de outros textos literários? Essas questões se- tim texere (construir,
tecer), cujo particípio
rão respondidas a seguir, somando-se a elas uma perspecti- passado textus tam-
bém era usado como
va histórica sintética sobre o desenvolvimento da literatura
substantivo, e signifi-
dramática no Ocidente, numa tradição que vai dos gregos cava ‘maneira de te-
cer’, ou ‘tecido’, e ainda
aos nossos contemporâneos. A partir desse conhecimen- mais tarde, ‘estrutura’.
to de base, vamos ainda nos orientar por certos elementos A partir do século XIV,
a evolução semântica
fundamentais que permitirão a análise das obras literárias da palavra atingiu o
sentido de “tecelagem
dramáticas. ou estruturação de pa-
lavras”, ou ‘composi-
ção literária’, e passou
2 A ESPECIFIDADE DOS TEXTOS LITERÁRIOS a ser usado em inglês,
proveniente do francês
DRAMÁTICOS antigo texte.

Fonte: www.diciona-
Para nos situarmos no amplo universo da literatu- rioetimologico.com.
br
ra dramática, vamos, inicialmente, reconhecer os primeiros
passos do teatro ocidental e seus desdobramentos principais
até a contemporaneidade. Nessa trajetória, revisitaremos os
aspectos essenciais da Poética, de Aristóteles, pois esse foi o
texto que fundamentou as características de dois gêneros de
grande importância na constituição da dramaturgia ociden-
tal: a tragédia e a comédia. A partir desses marcos, vamos
nos deter em alguns elementos de análise para o estudo de
obras literárias dramáticas.

UESC Módulo 5 I Volume 4 15


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

2.1 Perspectiva histórica da literatura


dramática

Quando recuamos no passado em busca das origens


do teatro no mundo ocidental, encontramos, de modo re-
corrente, a referência a Téspis como o poeta que acrescen-
tou um ator na cena, antes apenas marcada pelo canto coral,
isso por volta do ano de 550 a.C. Estabelecia-se, assim, o
início do diálogo que, via de regra, é considerado o elemen-
to-chave da estética teatral e, por conseguinte, do texto dra-
mático (RYNGAERT, 1995).

saiba mais

Figura 1. Fonte: <professorfabioartes.blogspot.com.br/2011/11/conteudos-6-ano-vespertino.html>

Téspis (610-550) foi um teatrólogo e ator grego nascido em Icárias [...], conside-
rado o inventor de tragédia e do monólogo, além de reconhecido como o primeiro
ator do mundo ocidental [e o] primeiro produtor teatral. [...] foi ele quem introduziu

16 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

1
Aula
novidade, como um ator atuando independente, criando o conceito de monólogo,
ou dialogando com o Coro, como também máscaras, maquiagens e mudanças em
outros procedimentos padrões. Até então, o ator era chamado de hipocritès, ou
seja, fingidor, mas com a invenção do diálogo, a esse ator propriamente foi dado
o nome de protagonista, termo ainda hoje empregado para nomear o personagem
principal de uma peça. Conta-se que viajou pela Grécia empurrando uma carroça
que ficaria conhecida como o Carro de Téspis, seu transporte e seu palco, indo de
uma festividade para outra. Onde estacionava, fazia suas exibições, especialmente
peças envolvendo tramas moralistas, realçando os aspectos negativos do compor-
tamento humano. Essa iniciativa e sua dramatização particular deu origem à ex-
pressão ator tespiano. [...] Ousou ao apresentar-se munido de máscaras e vestindo
uma túnica para interpretar em monólogo o deus Dionísio, na Grande Dionisíaca
da Grécia Antiga, em Atenas, (534 a.C.). A sua ousadia maior estava no fato de
que o papel de um deus era reservado aos sacerdotes ou aos reis. No mínimo tal
atrevimento representava um desrespeito às autoridades da cidade como o arconte
e o legislador. Porém, o sucesso foi tão avassalador que nada lhe aconteceu além
da ovação popular. Com essa histórica apresentação lançava então, o monólogo, o
papel do protagonista, os fundamentos da tragédia grega e o deuteragonismo, [ou
seja] a arte de interpretar de uma só vez dois personagens distintos, usando duas
máscaras, uma no rosto e outra na nuca.

Fonte: Disponível em: http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/TespisAt.html. Acesso em jan./2012.

Importa entendermos que “teatro é antes de tudo di-


álogo, ou seja, de que nele a palavra do autor é mascarada
e partilhada entre vários emissores” (RYNGAERT, 1995,
p. 12). Isso não significa, entretanto, que outras formas de
apresentação dos textos dramáticos não tenham também
importante tradição, como é o caso do monólogo. Ainda
assim, nesse caso, se estabelece um diálogo muito próximo
entre a cena e o público.
Mais relevante, entretanto, é compreendermos a in-
dependência do texto em relação à representação teatral:

Um bom texto de teatro é um formidável


potencial de representação. Esse potencial
existe independentemente da representa-
ção e antes dela. Portanto, esta não vem
completar o que estava incompleto [...].
Trata-se de uma operação de outra or-
dem, de um salto radical numa dimensão

UESC Módulo 5 I Volume 4 17


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

artística diferente, que por vezes ilumina


o texto com uma nova luz, por vezes o
amputa ou o encerra cruelmente (RYN-
GAERT, 1995, p. 25).

Desse modo, não podemos perder de vista que a lei-


tura do texto dramático é uma ação que basta a si mesma,
que não necessita da representação “estando entendido que
[também] ela não se realiza [sem] a construção de um pal-
co imaginário [...] num movimento que apreende o texto a
caminho do palco” (RYNGAERT, 1995, p. 25).
atenção
Essa “autonomia” do texto dramático em relação à ence-
Enfatizamos que, neste
nosso estudo, prioriza- nação foi afirmada por Aristóteles em sua famosa obra, Poética.
mos a literatura dramá-
tica, pois o teatro é uma
Nela, o filósofo grego expõe o seguinte:
arte que tem suas espe-
cificidades e precisa ser
Quanto ao espetáculo cênico, decerto
considerado sob outras
perspectivas ligadas pro- que é o mais emocionante, mas também
priamente ao processo é o menos artístico e menos próprio da
de encenação. Entretan- poesia. Na verdade, mesmo sem repre-
to, não deixaremos de
fazer algumas observa-
sentação e sem atores, pode a tragédia
ções sobre a arte teatral manifestar seus efeitos; além disso, a re-
em língua portuguesa, alização de um bom espetáculo mais de-
pois entendemos que
pende do cenógrafo que do poeta (ARIS-
essa inter-relação entre
os textos e a(s) cena(s) TÓTELES, 1993, p. 45).
possui uma confluência
incontornável. Isso por-
que, mesmo quando, no Verificamos, assim, que o texto dramático é o funda-
teatro, a textualidade se
vale de muitas outras lin-
mento da poesia (do grego poiesis, o fazer literário, a lite-
guagens que colocam em ratura), enquanto a arte teatral tem sua dinâmica própria
suspenso ou até repu-
diam a expressão verbal, e compõe relevante expressão artística, mas não se con-
essa negação do texto
literário dramático, de
funde com o estudo da literatura dramática: “Espetáculo
todo modo, não deixa de teatral e teatro podem ser considerados sinônimos, e se
significar reflexões sobre
a literatura dramática. confundem como expressão artística específica” (MA-
Em outras palavras e de
GALDI, 1985, p. 12). Reforcemos a ideia, contudo, de
forma ainda mais sintéti-
ca: literatura dramática é que, quando lemos uma obra literária dramática, nossa
uma arte e teatro é outra
– mas transitaremos, por imaginação vai “a caminho do palco”, como vimos com
vezes, entre as duas por Ryngaert (1995).
entendermos que elas
possuem uma associação Para entendermos melhor essa última afirmati-
que vale a pena conside-
rar.
va, apresentamos um fragmento da tragédia Édipo Rei,

18 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

de Sófocles, considerada por Aristóteles como o melhor

1
exemplo do gênero.

Aula
você sabia?

“No tempo de Péricles à frente do Estado entre 443 e 429 a.C., a grande Dionisíaca [festa ao
deus Dionísio] era uma festividade de sete dias de duração. O primeiro dia era dedicado ao
proágon, apresentação de todos os participantes no recinto coberto do Odeon. No segundo
dia, uma procissão, pompé, se dirigia para o âmbito sagrado do templo de Dioniso, onde
se sacrificava um touro, seguindo-se às provas ditirâmbicas, que consistiam em concursos
corais por coros de homens e rapazes. O terceiro dia se reservava à comédia, com cinco
dramaturgos na competição. Do quarto ao sexto dia, com cinco representações diárias,
havia o festival de tragédias - três tragédias e um drama satírico fálico pela manhã e uma ou
duas comédias à tarde. Três dramaturgos competiam, cada um com três tragédias e um drama
satírico. No último dia, reunia-se a ekklesia, ou assembléia pública, para a entrega dos prêmios,
com ampla discussão sobre o desenrolar do festival. A preparação para o concurso era feita
algum tempo antes do festival. As peças eram cuidadosamente selecionadas pelo primeiro
leitor profissional do teatro, o funcionário público ou arconte, que também escolhia o intér-
prete principal ou protagonista”.

Fonte: TOLLENTINO, Cristina. Teatro Grego - parte I - O Festival de Teatro de Atenas e suas convenções. Disponível
em: http://www.caleidoscopio.art.br/ Acesso em mar./2012.

ÉDIPO
Oh! Ai de mim! Tudo está claro! Ó luz, que eu te veja
pela derradeira vez! Todos agora sabem: tudo me era in-
terdito: ser filho de quem sou, casar-me com quem me
casei... e... e... eu matei aquele a quem eu não poderia
matar!

Desatinado, ÉDIPO corre para o interior do palácio; reti-


ram-se os dois pastores; a cena fica vazia por algum tempo.

O CORO
Ó gerações de mortais, como vossa existência nada vale
a meus olhos! Qual a criatura humana que já conheceu
felicidade que não seja a de parecer feliz, e que não tenha re-
caído após, no infortúnio, finda aquela doce ilusão? Em face
de teu destino tão cruel, ó desditoso Édipo, posso afirmar
que não há felicidade para os mortais.

Entra um EMISSÁRIO, que vem do interior do palácio:

UESC Módulo 5 I Volume 4 19


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

você sabia? EMISSÁRIO


O mito de Édipo, que foi Ó vós, que sereis sempre os chefes mais respeitados
eternizado pela tragédia
homônima de Sófocles, deste país, se ainda prezais a família de Lábdaco, ides
serviu de base para o
conceito psicanalítico de
ouvir tristes notícias, receber profundos golpes, e sofrer
Freud sobre o Complexo lutuosos desgostos! Creio que nem as águas do Íster,
de Édipo, cuja definição
pode ser a seguinte: nem as do Fásio seriam bastantes para purificar esta ca-
“Conjunto organizado
sa, tais e tantos são os crimes que nela se praticaram! Sa-
de desejos amorosos
e hostis que a criança bereis de novas desgraças, voluntárias, e não impostas;
sente em relação aos
pais. Sob a sua forma e os males que nós próprios nos causamos são precisam
dita positiva, o comple- ente os mais dolorosos!
xo apresenta-se como
na história de Édipo-
Rei: desejo da morte
do rival que é a perso-
CORIFEU
nagem do mesmo sexo Nada falta, ao que já sabemos, para que nos sintamos to-
e desejo sexual pela
personagem do sexo dos profundamente penalizados. No entanto, dize: que
oposto. Sob a sua for-
ma negativa, apresen-
novas calamidades nos anuncias?
ta-se de modo inverso:
amor pelo progenitor
do mesmo sexo e ódio EMISSÁRIO
ciumento ao progeni-
Uma coisa fácil de dizer, como de ouvir: Jocasta, a nossa
tor do sexo oposto. Na
realidade, essas duas rainha, já não vive.
formas encontram-se
em graus diversos na
chamada forma com- CORIFEU
pleta do complexo de
Édipo. Segundo Freud, Oh! Que infeliz! Qual foi a causa de sua morte?
o apogeu do complexo
de Édipo é vivido entre
os três e os cinco anos, EMISSÁRIO
durante a fase fálica;
o seu declínio marca a Ela resolveu matar-se... E o mais doloroso vos foi pou-
entrada no período de
latência. É revivido na
pado: vós não vistes o quadro horrendo de sua morte.
puberdade e é supera- Dir-vos-ei, no entanto, como sofreu a infeliz. Aluci-
do com maior ou menor
êxito num tipo especial nada, depois de transpor o vestíbulo, atirou-se em seu
de escolha de objeto. O
leito nupcial, arrancando os cabelos em desespero. Em
complexo de Édipo de-
sempenha papel funda- seguida, fechou violentamente as portas, e pôs-se a cha-
mental na estruturação
da personalidade e na mar em altos brados por Laio, recordando a imagem
orientação do desejo do filho que ela teve há tantos anos, o filho sob cujos
humano. Para os psica-
nalistas, ele é o princi- golpes deveria o pai morrer, para que ela tivesse novos
pal eixo de referência
da psicopatologia” (LA-
filhos, se é que estes merecem tal nome! Presa da maior
PLANCHE; PONTALIS, angústia, ela se lastimava em seu leito, onde, conforme
1992, p. 77).

20 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

dizia, tivera um a dupla e criminosa geração. Como

1
teria morrido, não sei dizer, pois Édipo, aos gritos,

Aula
precipitou-se com tal fúria, que não pude ver a morte
da rainha. Todos os nossos olhares voltaram-se para
o rei, que, desatinado, corria ao acaso, ora pedindo
um punhal, ora reclamando notícias da rainha, não sua
esposa, mas sua mãe, a que deu a luz a ele, e a seus fi-
lhos. No seu furor invocou um deus, — não sei dizer
qual, pois isto foi longe de mim! Então, proferindo
imprecações horríveis, como se alguém lhe indicasse
um caminho, atirou-se no quarto. Vimos então, ali,
a rainha, suspensa ainda pela corda que a estrangula-
va... Diante dessa visão horrenda, o desgraçado solta
novos e lancinantes brados, desprende o laço que a
sustinha, e a mísera mulher caiu por terra. A nosso
olhar se apresenta, logo em seguida, um quadro ain-
da mais atroz: Édipo toma seu manto, retira dele os
colchetes de ouro com que o prendia, e com a ponta
recurva arranca das órbitas os olhos, gritando: “Não
quero mais ser testemunha de minhas desgraças, nem
de meus crimes! Na treva, agora, não mais verei aque-
les a quem nunca deveria ter visto, nem reconhecerei
aqueles que não quero mais reconhecer!” Soltando
novos gritos, continua a revolver e macerar suas pál-
pebras sangrentas, de cuja cavidade o sangue rolava
até o queixo e não em gotas, apenas, mas num jorro
abundante. Assim confundiram, marido e mulher, nu-
ma só desgraça, as suas desgraças! Outrora gozaram
um a herança de felicidade; mas agora nada mais resta
senão a maldição, a morte, a vergonha, não lhes fal-
tando um só dos males que podem ferir os mortais.

CORIFEU
E o desgraçado rei está mais tranquilo agora?

UESC Módulo 5 I Volume 4 21


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

EMISSÁRIO
Drama – do grego Ele grita que lhe abram as portas; que mostrem a todos
drama, “peça, ação,
os tebanos o parricida, o filho que... nem posso repetir-
feito” (especialmente
relativo a algum gran- vos, cidadãos, as palavras sacrílegas que ele pronuncia...
de feito, fosse positivo
ou negativo); de dran: Quer sair, em rumo do exílio; não quer continuar no
“fazer, realizar, repre- palácio depois da maldição terrível que ele mesmo pro-
sentar”.
feriu. No entanto, ele precisa de um guia, e de um apoio,
Fonte: Origem das palavras.
Site de etimologia. Disponível pois seu mal é grande demais para que sozinho o supor-
em:
<http://origemdapalavra. te. Ele aí vem, e vo-lo mostrará. Ides ver um espetáculo
com.br/palavras/drama/>
Acesso em mar. 2012. que comoveria o m ais feroz inimigo...

Entra ÉDIPO, ensanguentado, e com os olhos vazados.

CORIFEU
Ó sofrimento horrível de ver-se! Eis o quadro mais hor-
ripilante que jamais tenho presenciado em minha vida!
Que loucura, — ó infeliz! — caiu sobre ti? Que divinda-
de levou ao cúmulo o teu destino sinistro, esmagando-
te ao peso de males que ultrapassam a dor humana? Oh!
Com o és infeliz! Não tenho coragem, sequer, para vol-
ver meus olhos e contemplar-te assim; no entanto, eu
quereria ouvir-te, interrogar-te, e ver-te! Tal é o arrepio
de horror que tu me causas!

ÉDIPO
(Caminhando sem rumo certo) Pobre de mim! Para on-
de irei? Para que país? Onde se fará ouvir a minha voz?
Ó meu destino, quando acabarás de uma vez?!...

Para o começo de nossa leitura, devemos considerar que


as partes em itálico, chamadas de didascálias ou rubricas, são
as indicações do autor para a contextualização das cenas. Por
meio dessas indicações, podemos compor (“imaginar”) o cená-
rio, a situação das personagens etc. Nesse sentido, ao lermos o

22 Letras Vernáculas EAD


COMPONDO FIOS PARA A LEITURA DE TExTOS DRAMáTICOS

texto, vamos elaborando a sua representação – como se en-

1
xergássemos o palco e o desdobrar das ações representadas. Didascália: Tudo o

Aula
Desse modo, Aristóteles afirma que mais importante que no texto dramáti-
co não se destina a ser
do que os caracteres (as “marcas” características que sinalizam dito pelas personagens
e que, na representa-
as personagens), da melopeia (forma como falam e a música ção cénica, desaparece
que os acompanha), e mais importante do que o próprio es- enquanto discurso e
surge diante dos es-
petáculo é o MITO, ou seja, o arranjo das ações, a trama a ser pectadores como ação
ou presença física (ob-
dramaticamente apresentada.
jetos, guarda-roupa,
cenário...). As didas-
saiba mais cálias, que são a voz
direta do dramaturgo,
diferenciam-se visual-
mente do resto do tex-
to por estarem escritas
entre parêntesis ou
por estarem impres-
sas em itálico, ou de
qualquer outra forma
que marque bem que
se trata de um texto à
margem das falas das
personagens. Tais indi-
cações cumprem uma
dupla função: situam
o diálogo, a ação, num
contexto imaginário
[...] (aproximando-se
do papel da descrição
no género narrativo)
e, [no âmbito] da re-
Figura 2: Aristóteles e Platão.
Fonte: <brasilescola.com/filosofia/a-estetica-na-filosofia-platao-aristoteles.htm> presentação, fornecem
instruções àqueles que
Aristóteles foi discípulo de Platão (século V a.C.), mas discor- transformam o texto
dou do seu mestre em muitos aspectos. Um deles, que mais em espetáculo (ence-
nos importa aqui, trata da concepção sobre a arte literária. nadores, atores, ce-
Para Platão, o mundo se divide entre o plano sensível e o nógrafo...). A segunda
plano das ideias, sendo esse último o mundo da verdade, função evoca o signifi-
das essências, apenas alcançado com o pensamento lógi- cado da palavra grega
co, filosófico. Assim, o mundo sensível é cópia imperfeita que está na origem do
do mundo das ideias e a arte, por sua vez, é cópia da cópia, termo “didascália” - di-
ou seja, como ele afirma no livro X da sua obra República, a daskália (“instrução”)
arte (literária) está três vezes distante da verdade. Por isso, e do verbo didáskein
em sua república ideal, não seriam admitidos os poetas. Já (“ensinar”).
para Aristóteles o que existe é apenas o plano sensível, o
mundo em que vivemos. E, nesse mundo, a arte é benéfica, Fonte: E-dicionário de
pois, como ele registra na Poética, o homem sente prazer termos literários Carlos Ceia.
Disponível em:
com a imitação (também no sentido de criação) e com ela http://www.edtl.com.pt/
aprende como agir, com ela tem bons e fundamentais exem- index.php?option=com_
plos de conduta. ee&task=viewlink&link_
id=741&Itemid=2.

Para um estudo dos principais aspectos da Poética, Acesso em mar./2012.

apresentamos, a seguir, um quadro sintético de suas partes:

UESC Módulo 5 I Volume 4 23


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

Poética, de Aristóteles, segundo a estrutura dos capítulos

Capítulo Proposição

1 Definição de mímese (= imitação/criação)

Apresentação de uma teoria dos gêneros poéticos – diferenças de meio


(ritmo, linguagem e harmonia); objeto (imitação de homens que praticam
alguma ação – indivíduos de alta ou baixa índole - Homero imitou homens
1a3 superiores; a Comédia imita homens piores e a Tragédia imita homens
melhores do que são); modo (por narrativa, como Homero; ou mediante
as pessoas imitadas agindo elas mesmas; por drama – imitação de agen-
tes – drontas).

Origem da poesia, a arte poética e seus gêneros (a tragédia e a comédia)


= o imitar é congênito no homem e por imitação aprende todas as no-
4e5 ções; e os homens se comprazem no imitado; sobre a Comédia: imitação
de homens inferiores pelo ridículo, torpeza inocente; as diferenças entre
Tragédia e Epopeia.

Conceito de tragédia; definição de seus elementos essenciais: “É a Tragé-


dia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa exten-
são, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos
6
distribuídas pelas diversas partes (do drama), imitação que se efetua não
por narrativa, mas mediante atores e, que, suscitando o terror e a pieda-
de, tem por efeito a purificação das emoções” [= CATHARSIS, catarse].

Definição da estrutura do mito; descrição de seus elementos constituin-


tes: espetáculo cênico, melopeia, e elocução; caráter e pensamento; mito
(composição dos atos). São essas as seis partes da tragédia. Dessas, a
mais importante é o mito: trama dos fatos, pois a tragédia não é imitação
de homens, mas de ações e de vida. A finalidade da tragédia são as ações
7e8 e o mito; o espetáculo cênico é o mais emocionante, mas também é o
menos artístico; mesmo sem representação e sem atores pode a Tragédia
manifestar seus efeitos; além disso, a realização de um bom espetáculo
depende mais do cenógrafo do que do poeta; a importância da ordem das
ações – a grandeza e a necessidade do “todo”, que deve ser consequen-
temente ordenado.

Distinção entre História e mito; descrição dos conceitos de verossimilhan-


ça e de necessidade: “Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é sim,
o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível
segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o
historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa [...], diferem sim
9
em que diz um as coisas que sucederam e outro as que poderiam suceder.
Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história,
pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular”; o po-
eta deve ser mais fabulador do que versificador, porque ele é poeta pela
imitação e porque imita ações .
Apresentação da tipologia de mito: mitos simples e complexos (nesse últi-
10 mo caso, quando a mudança se faz pelo Reconhecimento ou pela Peripécia
ou por ambos conjuntamente).

24 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

Descrição da estrutura do mito – elementos qualitativos: peripécia – mu-

1
tação dos sucessos no contrário, de acordo com verossimilhança e neces-
11 sidade; reconhecimento é a passagem do ignorar ao conhecer; a melhor

Aula
forma de reconhecimento é a que se dá com peripécia. Terceira parte do
mito é a catástrofe.

Apresentação das partes quantitativas da tragédia: prólogo, episódio,


êxodo, coral (párodo e estásimo). Prólogo – parte completa que antecede
12
o coro; episódio é uma parte completa entre dois corais; êxodo é parte a
que não sucede o coro.

Descrição da situação trágica e do herói trágico (O efeito trágico): a tra-


gédia deve se dar na situação do homem (o herói trágico) que não se
distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, não é por
13 e 14 ser vil ou malvado, mas por força de algum erro e devem gozar de grande
reputação e fortuna (como Édipo). O terror e a piedade podem surgir do
efeito cênico, mas também podem derivar da íntima conexão dos atos, e
este é o procedimento preferível e o mais digno do poeta.

Descrição dos caracteres – bons; convenientes; semelhança, coerência –


15 exemplos; importância da verossimilhança e da necessidade. O desenlace não se
deve dar por deus ex-machina*, nem pelo irracional.

Descrição do reconhecimento e dos tipos de reconhecimento: menos inventivo, por


16
sinais; os melhores são pela própria intriga.

A composição e o processo de composição: a diferença entre a epopeia e a


17 e 18 tragédia: extensão x brevidade dos episódios. A importância do nó e desenlace;
o coro deve fazer parte da ação (à maneira de Sófocles).

O pensamento (dianóia) e a elocução (lexis): Pensamento – retórica – efeitos


produzidos pela palavra: demonstrar, refutar, suscitar emoções; o pensamento
19
se revela pelo discurso; elocução: ao ator compete saber o que é uma súplica,
ordem, explicação, etc.

A elocução (expressão): partes e tipos: letra, sílaba, conjunção, nome, verbo,


19 a 22 [artigo], flexão e proposição. A metáfora: consiste em transportar para uma coisa o
nome de outra; qualidade da elocução é a clareza sem baixeza, sem termos vulgares.

A epopeia e a tragédia sob a regência das mesmas leis: as semelhanças, as


23 e 24
diferenças.

A crítica: proposição de normas: “na poesia é de preferir o impossível que persuade


25 ao possível que não persuade”. Cinco críticas – representações impossíveis,
irracionais, imorais, contraditórias ou contrárias ás regras da arte.

Conclusão: a superioridade da tragédia sobre a epopeia: a Tragédia é superior


26 porque contém todos os elementos da epopeia e mais o espetáculo e a melopeia,
[produzindo a catarse = purgação dos sentimentos, emoções].
Fonte: ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. 2. ed. Bilíngue Grego-Português. São Paulo:
Ars Poética, 1993.

UESC Módulo 5 I Volume 4 25


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

* “Expressão latina, significa literalmente ‘deus da máquina’ ou ‘deus de dentro da máquina’;


alude a um instrumento mecânico utilizado na tragédia clássica e que permitia a uma divin-
dade ou ser sobrenatural descer sobre o palco, oferecendo dessa forma uma saída para uma
situação aparentemente irresolúvel; hoje em dia a expressão é geralmente utilizada num
sentido mais lato, para designar uma resolução forçada ou fácil dos acontecimentos numa
obra”. Fonte: E-dicionário de termos literários de Carlos Ceia. Disponível em: <http://www.
edtl.com.pt>. Acesso mar./2012.

Desse quadro, devemos destacar a definição aristo-


télica de tragédia (cap. 6), considerada pelo filósofo grego
como a mais completa das artes miméticas, sendo seu maior
exemplo a tragédia de Sófocles, Édipo Rei, conforme referi-
mos anteriormente. Isso porque, para Aristóteles, a tragédia
(cap. 26) possui todas as partes da epopeia e mais a encena-
ção, sendo que produz, como principal efeito sobre o recep-
tor (leitor ou espectador), a catarse, ou seja, uma purificação
das emoções. São, por vezes, controversos os diferentes en-
tendimentos dos especialistas sobre o sentido desse termo,
entretanto, de modo geral, podemos compreender a catarse
como uma vivência emocional que, por meio dos sentimen-
tos de terror (diante dos castigos severos ou da autopunição
do herói) e de piedade (pois o herói não erra por maldade ou
falta de caráter, pelo contrário, muitas vezes seu maior erro
é o orgulho, a certeza de estar tomando a decisão correta),
permitem aprender com os erros alheios e aliviar as tensões
cotidianas. Desse modo, o leitor/receptor do texto ou da
encenação trágica pode retomar seu equilíbrio emocional e,
assim, manter-se um cidadão apto a exercer suas obrigações
sociais.
Considerando-se a situação do herói trágico, deve-
mos entender que se trata de uma luta contra seu destino
(moira) e com a força dos deuses: “As noções de moira e
ananké (necessidade) apresentam o destino humano como
imutável e mostram o cosmos como algo organizado onde
não se pode intervir sob pena da instalação do caos” (COS-
TA; REMÉDIOS, 1998, p. 8).
Devemos também compreender os seguintes aspec-

26 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

tos do mito trágico: “Procurando guiar-se pelo próprio caráter

1
(ethos), mas subordinado ao gênio mal (dáimon), o herói in-

Aula
corre na falha trágica (harmatia), impulsionado pela desmedida
(hybris); a conjugação desses elementos envolve o herói num
acontecimento aterrorizante [...]” (PASCOLATI, 2009, p. 106).

saiba mais

Sófocles “nasceu [em] Colono, nas imediações


de Atenas, provavelmente em 495 a.C., e mor-
reu na mesma cidade, no ano 406 a.C. Sem-
pre interpretava suas próprias peças, exerceu
importante papel na vida pública, foi por vinte
e quatro vezes vencedor de concursos dramá-
ticos e escreveu mais de cem tragédias. O seu
tema constante é o destino humano – o destino
do herói que sofre e é destruído”. Outros dois
dos maiores dramaturgos gregos foram Ésqui-
lo (525/6-456/5 a.C.) e Eurípedes (485-406
a.C.). O primeiro “é considerado o mais antigo
dos poetas trágicos cuja obra chegou até nossos
Figura 3: Tragediógrafos gregos: Ésquilo, Sófocles e
dias. Aristóteles sustentava que foi ele o ver- Eurípides. Óleo sobre tela de Jean Auguste Dominique Ingres.
dadeiro criador da tragédia ática à qual deu di- Estudo para o quadro “Apoteose de Homero” – 1866// Angers, Musée
des Beaux-Arts © Kathleen Cohen, World Art Database.
mensões literárias e sociais”. Já Eurípedes foi um Fonte: http://greciantiga.org/img/index.asp?num=0910
renovador do teatro grego, com suas peças de
fundo psicológico. Sugerimos a consulta deste site, no qual se encontram mais informações
sobre esses autores e também a reprodução integral de algumas de suas principais tragé-
dias.

Fonte: Encontros de dramaturgia. Disponível em: <www.encontrosdedramaturgia.com.br>. Acesso em jan. 2012.

Essa conjugação encontra-se na tragédia de Sófocles,


Édipo-Rei, por isso, também, para Aristóteles, ela representava
o maior exemplo do gênero.
Quanto à comédia, Aristóteles anuncia na Poéti-
ca que fará um tratado sobre esse gênero, mas o que nos
chegou foram apenas as indicações que ele assinalou na sua
conhecida obra. Por meio dessas indicações, entendemos
a comédia em contraponto com a tragédia: se esta última
trata de ações de homens elevados, aquela trata de homens
comuns, de caráter não elevado, que provoca o riso pelo
ridículo: “o ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódi-
na e inocente, que bem demonstra, por exemplo, a máscara
cômica, que sendo feia e disforme, não tem [expressão] de
dor” (ARISTÓTELES, 1993, p. 34-35).

UESC Módulo 5 I Volume 4 27


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

Assim, “ao contrário da tragédia e da epopeia, cujos


assuntos são extraídos dos mitos ou da matéria histórica, o
alvo da comédia é o cotidiano das pessoas comuns. [...] [Ao
provocar o riso], o texto cômico conta com a cumplicidade
do público [...] e tem uma função crítica” (PASCOLATI,
2009, p. 107).
Considerado um dos maiores comediógrafos gregos,
Aristófanes nasceu (em torno de 455 a.C.) e morreu (por
volta de 375 a.C.) em Atenas. De suas 44 comédias, resta-
ram 11: Os acarnenses (425 a.C.), Os cavaleiros (424 a.C.),
As nuvens (423 a.C.), As vespas (422 a.C.), A paz (421a.C),
As aves (414 a.C.), Lisístrata (411 a.C.), As tesmoforiantes
(411 a.C.), As rãs (405 a.C.), As mulheres na Assembléia (392
a.C.) e Pluto (388 a.C.). Acarnenses, Cavaleiros, Vespas, Paz
e Lisístrata tratam da vida política; Nuvens, Tesmofóriantes e
Rãs criticam a vida intelectual; Aves, Mulheres na Assembléia
e Pluto são alegorias, ou comédias de fuga (“classificação”
feita por STARZYNSKI, 1967, citada em RIBEIRO JR.,
2012.).
Boa parte da produção literária de Aristófanes foi
elaborada e encenada na época em que, no final do século V, a
sociedade ateniense encontrava-se em crise “motivada pela de-
cadência do sistema democrático posto em prática por Péricles,
em virtude da extensa Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.),
que opôs as duas maiores potências da Grécia, Atenas e Esparta,
e das deficiências internas decorrentes dessa guerra fratricida”
(GERVÁSIO, 2011, p. 156). Desse modo, “a comédia aris-
tofânica trouxe à cena não somente situações do cotidiano
cívico, mas também temas outros, como a religião, a litera-
tura, a educação, pertencentes todos ao universo da cidade”
(GERVÁSIO, 2011, p. 157).
Para conhecermos um pouco mais da comédia clássi-
ca, vamos estudar As nuvens, de Aristófanes, encenada ori-
ginalmente em 423 a.C. A peça desenvolve-se a partir do
seguinte roteiro:

28 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

[Trata-se das] peripécias de Estrepsíades,

1
velho camponês de costumes rústicos, e
de seu filho Fidípides, jovem amante de

Aula
cavalos. Esse rapaz é fruto da união de um
homem sem quaisquer aspirações culturais,
rude, portanto, com uma mulher de hábitos
da aristocracia citadina ateniense, que não se
preocupava com gastos. Desse modo, ainda
que Estrepsíades desejasse educar o filho se-
gundo os princípios da educação tradicional,
Fidípides, herdeiro dos hábitos advindos de
sua mãe, era amigo dos cavaleiros de classe
elevada e nem por um momento se mostrava
comedido ao fazer gastos demasiados pela
loucura que tinha por cavalos, tornando,
com isso, seu pai vítima fácil dos credores
(GERVÁSIO, 2011, p. 159).

Tentando se livrar das dívidas, o velho Estrepsíades


resolve encaminhar o filho, Fidípides, para a escola de Só-
crates (o “Pensatório”), na qual se desenvolvia o pensamento
dos sofistas, capazes de, pela retórica, transformar o certo
em errado, o justo em injusto: desse modo, ele pretendia en-
ganar os seus credores. “Lá, é apresentado por Sócrates às
Nuvens, as verdadeiras causadoras dos trovões e das chuvas
(e não Zeus, o deus maior dos gregos)” (KURY, 1995, p. 8).
Já aí está uma crítica ferrenha de Aristófanes às mudanças
que aconteciam em Atenas: as transformações na educação,
na religiosidade, até na arte teatral, pois além de Sócrates, re-
presentante maior da filosofia seguida por Platão, o comedi-
ógrafo não poupa recriminações às peças de Eurípedes, como
se verá no excerto selecionado.
Conservador, portanto, Aristófanes desenvolverá as
ações da peça até o ponto de demonstrar os resultados funes-
tos dessas modificações pelas quais passava a sociedade de seu
tempo: Fidípedes aprende a trocar o Raciocínio Justo pelo In-
justo e, assim, livra a família de suas dívidas, porém, pelas mes-
mas lições, o filho passa a espancar o pai e fundamenta-se em
argumentos retóricos para provar sua justiça em praticar tal ato.

UESC Módulo 5 I Volume 4 29


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

Esses momentos da comédia As nuvens e seu desfecho encon-


tramos no trecho a seguir:
(Dando um grito de dor e de terror, Estrepsíades pula para fora de casa, perse-
guido de perto por Fidípades, que empunha um mortífero bastão.)
Estrepsíades Ai! Ai! Socorro! Ai! Ai! Ai! Em nome
Dos deuses, me ajudai!
(Dirigindo-se ao público)
Oh! Meus senhores!
Amigos! Conterrâneos! Tios! Tias!
Pais, irmãos e parentes, socorrei-me!
Ele está me batendo! Ai! Ai! Que dor!
Minha cabeça como está doendo!
(A Fidípades)
Espancas o teu próprio genitor?
Fidípades E com o maior prazer, meu caro pai.
Estrepsíades Estais ouvindo? O bruto até confessa!
Fidípades Não só confesso, mas também proclamo.
Estrepsíades Malfeitor ordinário! Filho ingrato! Bastardo!
Fidípades Agora estás me elogiando!
Estrepsíades Bate em teu próprio pai!
Fidípades Com muito gosto.
E acho que foi muito merecido.
Tenho uma boa justificativa.
Estrepsíades Que justificativa pode haver
Para um filho espancar o próprio pai?
Fidípades Aceitarás uma demonstração
da Lógica nos princípios baseada?
Estrepsíades Uma demonstração? Estás dizendo
Que és capaz de provar segundo a Lógica
Um fato tão chocante?
Fidípades Exatamente.
E mais: tu podes escolher a Lógica:
A Lógica socrática ou pré-socrática.
À tua escolha.
[...]

30 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

Estrepsíades Gostaria de ouvir! Duvido muito!

1
[...]

Aula
E agora, senhor, eu gostaria
Corifaios (a Que esclareças o coro começando
Estrepsíades) A nos contar teu insucessozinho
Desde que começou.
Estrepsíades Às vossas ordens.
Tudo foi feio de princípio ao fim.
Como sabeis nós dois nos reunimos
Para comemorar. Nossos costumes
Devem ser respeitados. Não há nada
Melhor do que uma música pra festa
Alegrar. E assim sendo eu lhe pedi
Para pegar a lira, e uma canção
Entoar, pois seria um bom começo:
Por exemplo, “A Tosquia do Carneiro”
De Simonides, ou outra semelhante.
Sabe o que respondeu o malcriado?
Que cantar no jantar era antiquado,
Obsoleto, tolo, desusado,
Só pelos velhos inda tolerado.
Fidípades Tu tiveste o que muito merecias.
Ora essa! Querendo que eu cantasse
De barriga vazia! Era demais!
Estrepsíades Pois foi assim. Negou-se e começou
A zombar do meu gosto e de mim mesmo.
Tentei conter a raiva, simplesmente,
E contei até dez, pra não brigar.
Pedi-lhe, então, depois, que me cantasse
Qualquer coisa de Ésquilo, e o grosseirão
Me respondeu que considera Ésquilo
“Poeta de estatura colossal”.
Sim. “O mais colossal, pretencioso.
Pomposo, palavroso e bombástico
Sensaborão da história da poesia”.

UESC Módulo 5 I Volume 4 31


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

E tive tanta raiva que custei


A me conter, porém, rilhando os dentes,
Consegui esboçar leve sorriso
E lhe dizer: “Pois muito bem, meu filho.
Canta-me algo de uma dessas peças
Que estão na moda e que de tanto gostas.”
Ele então recitou... O quê? Eurípedes!
Uma dessas tragédias pegajosas
Onde há, nada mais, nem nada menos,
Um irmão que atarraxa a própria irmã!
Foi demais, foi demais, senhoras minhas!
Levantei-me de um pulo, ébrio de raiva,
E não pude deixar de injuriá-lo
Em altos brados, e ele, de seu lado
Insultou-me também e, mais que isso,
Espancou-me. Espancou o próprio pai!
[...]
Fidípades Tu provocaste, pai!
Estrepsíades Desnaturado!
Eu te criei com amor e com cuidado.
Quando eras bebê, eu te mimava.
Acompanhei os teus primeiros passos,
Dei-te a mão com carinho, te amparei,
Para depois de grande me espancares.
Ensinei-te a falar, com todo o empenho,
Para depois de grande me insultares.
[...]
Fidípades Senhores! A Eloquência é coisa boa,
Muito melhor até do que esperava.
Oh! O arrebatamento do discurso!
Oh! A volúpia da articulação!
Mas sobretudo o ático prazer
De poder à vontade subverter
A ordem da Moral seguida e aceita!
[...]

32 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

Encontro-me em perfeitas condições

1
De demonstrar irrefutavelmente

Aula
A total conveniência filosófica
De espancar o meu pai.
Estrepsíades Por Zeus, meu filho,
Aos malditos cavalos volta logo.
Prefiro uma cocheira a uma paulada.
Fidípades Por óbvios motivos não tomando
Em consideração a pueril
Intervenção, eu continuo assim
Minha demonstração. Responde agora:
Quando eu era pequeno me bateste?
Estrepsíades É claro. Eu tinha de te educar.
Bati porque te amava.
Fidípades Muito bem.
Uma vez que tu mesmo reconheces
A sinonímia de espancar e amar,
É mais do que natural que eu, agora,
Por minha vez, com muito amor, te espanque.
Mais que isso, aliás: com que direito
Tu podes me espancar e pretenderes
Que eu não possa fazer a mesma coisa.
O que pensa que sou? Que sou escravo?
Não nasci, como tu, um homem livre?
Que me dizes, então?
Estrepsíades Mas...
Fidípades Mas o quê?
“Poupas a vara e estragas a criança”?
este é o teu argumento? Pois, se for
Eu posso responder com outro ditado:
“Os velhos são crianças que cresceram”.
É lógico, portanto, que os velhos
Merecem muito mais ser espancados,
Porquanto, experientes como são,
São menos desculpáveis que as crianças.

UESC Módulo 5 I Volume 4 33


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

Estrepsíades Mas não é natural! É ilegal!


Honrarás pai e mãe. Tal é a lei.
Fidípades E quem fez essa lei? Um homem igual
A mim, a ti, um homem igual a nós.
Um homem que lutou por seu projeto
Até poder persuadir o povo
Que o transformasse em lei. Somente isso.
Pelo mesmo motivo, o que me impede
De uma lei nova apresentar, mandando
Que os pais sejam espancados pelos filhos?
Não seria vingança, é evidente.
Estou mesmo inclinado a sugerir
Uma anistia que retroagisse
Favorecendo os pais, e garantindo
Uma compensação pelas pancadas
Que, por acaso, houvessem recebido
Antes que fosse promulgada a lei.
Se, apesar disso tudo, não estás
Ainda convencido, todavia,
Argumento com a própria Natureza.
Por exemplo: observa como os galos
Se comportam entre si. Vivem brigando
Filhos com pais, sem vãs hierarquias.
E em que a sociedade galinácea
Se difere da nossa: tão somente
Porque a nossa tem leis e ela não.
Estrepsíades Se estás disposto a imitar os galos,
Por que não vais, então, comer titica
E dormir no poleiro?
Fidípades Ora! Porque...
Porque não há no caso analogia.
Se duvidas de mim, pergunta a Sócrates.
Estrepsíades Deixa os galos pra lá. Mas te aconselho
A não bateres mais em mim, pois isso
Vai acabar é te prejudicando.

34 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

Fidípades Prejudicando-me? Eu duvido.

1
Aula
Estrepsíades Então,
Presta atenção no que estou te dizendo:
Quando eras menino eu te bati.
Mas um dia terás, também um filho,
Nele descontarás o que tiveste.
Se, porém, me bateres, o teu filho
Naturalmente seguirá o exemplo
E contigo fará o que me fazes.
Fidípades E se eu não tiver filho? Nesse caso
Eu ficarei privado de bater
Em qualquer um. E agora, o que me dizes?
(Há um silêncio prolongado, pois o argumento causou profunda impressão
em Estrepsíades).
Estrepsíades Tenho de confessar que tens razão.
(Para o público.)
Falando para a geração mais velha,
Sou obrigado a confessar, senhores,
Derrotado saí. Meu douto filho
Conseguiu demonstrar a sua tese:
Deve ser espancado o pai faltoso.
Fidípades Naturalmente. Eu ia me esquecendo,
De uma questão final, muito importante.
Estrepsíades Qual é? O funeral?
Fidípades Muito ao contrário.
Eu acho até que vais ficar contente.
Estrepsíades Mais do que já estou? Acho difícil...
Fidípades Segundo dizem, “O sofrimento gosta
De companhia”. E terás, meu pai.
Em tua desventura, companhia.
Vou espancar também minha mãezinha.
Estrepsíades Bater em tua mãe?! Isso é pior,
Dez mil vezes pior!
Fidípades Tu achas mesmo?

UESC Módulo 5 I Volume 4 35


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

E se eu provar, por Lógica socrática,


Isso também, então o que dirias?
Estrepsíades O que eu diria? Digo agora mesmo:
Se tal coisa provares, eu permito
Que juntes tua Lógica nojenta,
E o teu Pensamental e dentro Sócrates,
E enfie tudo no lugar devido!
(Dirigindo-se ao Coro das Nuvens – os corifaios)
Ó Nuvens, fostes vós que me arrastastes
A esta situação em que me encontro.
Ser assim enganado! Mentirosas!
Corifaios Foste tu o culpado, Estrepsíades.
O único culpado foste tu.
Não foi feita por nós a tua escolha,
Porém por tua própria improbidade.
Estrepsíades Por que, então, em vez de aconselhardes
Um pobre ignorante a se afastar
Do mal, muito ao contrário, o incitastes?
Corifaios Porque é assim mesmo que nós somos:
Insubstanciais nuvens onde o homem
Constrói as suas frágeis esperanças,
Brilhantes, tentadoras, mas formadas
De puro ar, miragens do desejo.
E assim agimos nós, indiferentes.
Seduzindo e atraindo os homens vãos
Nos desonestos sonhos da ambição
Que, como sonhos, logo se desfazem.
E o sofrimento lhes ensina então
A respeitar os deuses, e a temê-los.
Estrepsíades Não vou elogiar o vosso método,
Mas fiz mal em lograr os meus credores,
Eu confesso que fiz.
(A Fidípades)
E tu, meu filho?
Vamos vingar de Cairefonte e Sócrates
Por nos ludibriarem? Vens comigo?

36 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

Fidípades Achas mesmo que posso te ajudar

1
Contra o meu Mestre de Filosofia?

Aula
De modo algum!
[...]
(Sai Fidípades.)
Estrepsíades Ó asno, ó toleirão desmiolado,
Ó imbecil que fui, deixando os deuses,
Para seguir a Sócrates! Cretino!

(Pega o bastão de Fidípades e furiosamente despedaça o modelo de universo em


forma de fogão, em frente ao Pensamental. Depois, corre em direção à sua própria
casa e cai de joelhos diante da estátua de Hermes).

Grande Hermes, te imploro, grande Hermes:


Esquece a justa ira e compadece
Deste desventurado que te implora!
Compadece de mim, dá-me um conselho.
Achas que eu devo demandar, ou não?
(Encosta o ouvido junto à boca do deus, como se estivesse ouvindo um
conselho sussurrado.)
O quê?... Hum... Hum... Sei... Hum... Não demandar.
Pode continuar!... É mesmo?... É mesmo?
Eu sei... Por fogo no Pensamental...
Com a fumaça expulsar os charlatões...
Incinerar as falsificações!
Vou fazer! Vou fazer! Muito obrigado!
(Grita para o seu escravo)
Vem cá depressa, Xântias, com uma escada
E com um machado! Bem depressa!
[...] Ó deuses! Vou queimar esses tratantes
Pra pagar o que comigo fizeram,
Ou meu nome não é Estrepsíades!
(Sobe na escada até o telhado, e, furioso, põe fogo nos barrotes e traves com a
tocha, enquanto Xântias levanta as telhas com o machado. A fumaça se espalha
em nuvens, e todo o telhado parece estar em chamas, enquanto dentro do Pen-
samental se ouvem os primeiros sinais de alarme e confusão.)

UESC Módulo 5 I Volume 4 37


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

Primeiro Alu- Fogo! Fogo! Socorro!


no (de dentro)
Estrepsíades Vou torrá-los!

(Quando Xântias pára, para olhar o espetáculo, Estrepsíades lhe passa a tocha,
toma-lhe o machado e começa a dar machadadas nos barrotes, freneticamente.)
Primeiro Patife, o que fizeste?
Aluno (sai correndo do Pensamental e olha para o telhado)
Estrepsíades Estou apenas
A Lógica aplicando a este telhado. [...]

(Arquejando e tossindo desesperadamente, Sócrates sai do Pensamental, seguido de


perto por uma incrível procissão de Alunos, magros e pálidos como defuntos, todos
gritando de medo. Atrás de todos, cacarejando como dois galos amedrontados, vêm
Filosofia e Sofisma.)
Sócrates O que é isso, patife, descarado?
O que fazes aí no meu telhado?
Estrepsíades Estou andando no ar, e contemplando
O nosso Sol de cima para baixo.
Sócrates (sufocado pela fumaça e transtornado pela raiva.)
Atrevido! Safado! Eu... Eu... Ui! Ui!
Estou... Ui! Sufoca... Ui! Sufocado!

(Enquanto Sócrates cai, sufocado por um acesso de tosse, Estrepsíades e Xântias


descem a escada, vindos do telhado. Depois, Cairefonte, inteiramente coberto
de fuligem e cinza, e com o manto pegando fogo, sai do inferno Pensamental.)
Cairefonte Ai! O Pensamental virou um forno!
E eu virei cinza! Ai!
Estrepsíades (espancando-o com um bastão, enquanto Xântias chicoteia Sócrates)
Quem te mandou
Os deuses blasfemar? Quem te mandou
Espionar a Lua lá no céu?
Corifaios Vamos! Chibateai-os, espancai-os,
Pelos seus crimes, mas principalmente
Por se atreverem a blasfemar os deuses!

38 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

1
(Estrepsíades e seus escravos espancam Sócrates e seus seguidores, até que todos

Aula
os pensadores, seguidos por Filosofia e Sofisma, correm apavorados para fora de
cena. O Pensamental desaba, com grande barulho, transformado em uma ruína
em chamas).

Coro Agora, sem mais tardança,


Vamos sair, sem mais essa.
Acabou a nossa dança
E acabou também a peça.
(Vagarosa e majestosamente, o Coro se retira).
Fonte: Distribuído por www.oficinadeteatro.com. Acesso em jul./2012. (Sublinhados nos-
sos).

Observando a estrutura formal do texto, vemos que


são mantidos os versos, as rimas, e que as didascálias apenas
têm a função de indicar sentidos gerais do ambiente e da si-
tuação das personagens. O maior enfoque recai mesmo so-
bre os diálogos entre pai e filho, operando o coro como uma
voz a sintetizar as questões apresentadas na peça. O humor
fica por conta do jogo verbal empreendido e das situações
ridículas a que se submete Estrepsíades. Sobre esse aspecto
do humor da peça é preciso não perder de vista o seguinte:
“os alvos das críticas mordazes do comediógrafo eram de
conhecimento do público em geral, pois, sem sombra de dú-
vidas, era preciso ter conhecimento da situação para poder
rir” (GERVÁSIO, 2011, p. 171).
Agora, propomos a você um exercício: releia os versos
sublinhados e responda: encontramos, nessa passagem, uma
justificativa para o título da obra: As nuvens?

Explique:

UESC Módulo 5 I Volume 4 39


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

Ao considerar a sua resposta, lembre-se que a comédia


é um gênero marcado pela crítica – nesse caso, a crítica de
Aristófanes dirigia-se aos novos rumos da educação atenien-
se. Entretanto, não podemos desconsiderar que Sócrates não
foi um sofista e desenvolveu suas bases filosóficas posterior-
mente a essa ‘escola’. Platão, seu principal discípulo, foi um
severo crítico do pensamento sofista. Provavelmente, então,
como pensam alguns historiadores, o Sócrates de Aristófanes
cumpre o papel de uma caricatura do filósofo quando jovem,
“anterior à fase do magistério filosófico que influenciará Pla-
tão, Antístenes, Xenofonte e outros pensadores” (PESSA-
NHA, 1987, na contracapa da coleção Os pensadores – Só-
crates).
Além da tragédia e da comédia, que foram as gran-
des expressões da época clássica, quando se entendia que o
mundo (grego) era governado pelos deuses, todos sujeitos
às determinações do destino, outros gêneros marcaram o
percurso da dramaturgia em âmbito histórico alargado. Já
na Idade Média, foram recorrentes os mistérios, milagres,
farsas e “não era raro que um drama religioso contivesse ce-
nas de farsa” (RYNGAERT, 1995, p. 8).
Shakespeare (1564-1616), o grande nome inglês da
literatura e do teatro dramático renascentista, reelaborou a
tragédia e a comédia, sendo o dramaturgo de clássicos como
Romeu e Julieta, Hamlet, Rei Lear, Sonhos de uma noite de
verão, entre tantas outras obras que se eternizaram e con-
tinuam recebendo releituras e adaptações variadas em dife-
rentes meios (cinema, hipermídia etc.).
A tragicomédia, em que se misturam personagens de
caráter elevado com personagens inferiores na mesma ação
ou em ações paralelas, teve grande desenvolvimento no sé-
culo XVII. Já, com o Romantismo, afirma-se o drama que,
de acordo com Victor Hugo, ambicionava representar uma
perspectiva totalizante do mundo. No prefácio de sua peça
Maria Tudor, de 1833, escreveu:

40 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

Seria a mistura, no palco, de tudo o que

1
na vida está misturado [...] seria o riso, as
lágrimas, o bem, o mal, o alto, o baixo, a

Aula
fatalidade, a providência, o gênio o acaso,
a sociedade, o mundo, a natureza, a vida;
e por cima de tudo isso sentiríamos pairar
algo grande! (apud RYNGAERT, p. 8).

Nessa perspectiva, o mundo deveria caber no


teatro e o teatro seria a máxima expressão da vida. Essa pers-
pectiva será reafirmada, revisada e problematizada na literatura
dramática contemporânea, na qual, de modo geral, não há pre-
ocupação com a definição de gêneros. Pelo contrário, ao longo
dos anos de 1960 e 1970, a arte dramática passou a desconsi-
derar o texto em nome da “teatralidade ancorada no corpo e
na imaginação do ator” (RYNGAERT, 1995, p. 28). E, atual-
mente, a literatura dramática abre-se às mais diversas formas
de expressão textual e de concepções sobre o próprio teatro.
Ao longo de nosso estudo, aprofundaremos essas questões.
Torna-se, assim, muito importante termos
claro que as mudanças que se vão efetivando na compreen-
são do que deve ser tematizado, como deve ser representa-
do, e as variações de forma e gênero da literatura dramática
são atravessadas pelas mudanças históricas e culturais que se
processam nas diferentes realidades sociais.

saiba mais

Embora nosso objetivo seja o estudo sobre a literatura dramática em língua portuguesa,
consideramos relevante que você conheça algumas expressões e qualificativos da arte
teatral:
COMMEDIA DELL’ARTE: popular expressão teatral que vigorou na Itália dos séculos XV
ao XVII, expandiu-se “‘por toda a Europa e exerceu decisiva influência na posteridade.
[Seu] fundamento é a improvisação, isto é, o ator tornar-se o autor do espetáculo que vai
oferecendo. Mesmo a existência de lazzi, achados cômicos, e a preservação dos canovacci,
roteiros seguidos pelos intérpretes, não invalidam a ideia de que os diálogos se conjuga-
vam de acordo com a fantasia do momento” (MAGALDI, 1985, p. 26). “A família da Com-
media dell’arte expandiu-se de tal maneira que todo mundo já travou relações com seus
membros, freqüentemente sem saber de quem se trata. Arlequim, Colombina, Brighela, o
Doutor e tantas outras máscaras pertencem ao folclore universal” (MAGALDI, 1989, p. 86).
BOULEVARD: “Utiliza-se a expressão teatro de boulevard a propósito sobretudo da comédia
ligeira, sem pretensões intelectuais e destinada a divertir o público (seria pleonasmo chamar
esse público de burguês ou pequeno-burguês)” (MAGALDI, 1985, p. 100).

UESC Módulo 5 I Volume 4 41


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

saiba mais

HAPPENING: “O objetivo dos realizadores de happenings (acontecimentos, na tradução li-


teral) é atingir uma totalidade [existencial]. [...] [Suas principais características são]: existe
aqui e agora, transgride a lei da passividade, é a concretização de um sonho coletivo (não
de um espetáculo), pratica uma espécie de regresso aos instintos (sobretudo ao instinto da
vida), intensifica a sensibilidade, a festividade e agitação social [...]” (MAGALDI, 1985, p.
111).

2.2 Para a leitura de textos literários dramáticos

Quando efetivamos a análise de um texto literário dra-


mático, podemos nos valer de diferentes proposições teórico-
críticas, do mesmo modo como efetivamos a leitura analítica
de toda e qualquer obra literária. Assim, são muitas e varia-
das as maneiras de proceder a abordagem textual, que va-
riam conforme os interesses do analista e de acordo com
as igualmente variadas possibilidades de leitura que o texto
“abre”. Para fins metodológicos básicos, entretanto, vamos
apresentar certos elementos que podem nos orientar nesse
percurso de reconhecimento das obras literárias dramáticas
(RYNGAERT, 1995).
• O título: como em toda criação literária, o título é um
elemento revelador de sentidos, mesmo que não no-
meie diretamente a temática ou algum aspecto central
do tema ou, ao contrário, revele-se como irônico ou
paródico. Para Ryngaert, o título “possui em si uma
dinâmica, um embrião da narrativa, o esboço de uma
moral ou o anúncio de um desfecho; pode indicar um
projeto de acordo com uma tradição cultural ou ma-
nifestar ruptura” (p. 37). Por isso, toda a atenção ao
título é sempre bem-vinda quando efetivamos a análi-
se de um texto dramático.
• A indicação do gênero que se segue ao título (ou sua
ausência): normalmente na forma de subtítulo, a indi-
cação do gênero do texto fornece as mesmas “pistas”
que o título, indicando uma tradição ou uma paródia
etc..

42 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

• A estruturação de suas partes (ou inexistência de-

1
las): muitas vezes, a forma como são nomeadas as

Aula
partes de um texto já indicam que se trata de de-
terminada proposição estética. Por exemplo, quan-
do uma obra literária dramática é dividida em atos,
já sabemos que se trata de uma prática tradicional:
normalmente, mas não rigidamente, contam-se cin-
co atos para a tragédia e tragicomédia e três para co-
média, divididos em cenas de acordo com entrada/
saída das personagens. A partir do século XVIII,
passa-se também a falar em quadros - concepção
pictórica da cena (ou seja, as cenas assemelham-se
a pinturas). Já autores contemporâneos tendem a
nomear as partes dos seus textos como sequências,
fragmentos, movimentos, partes etc.; ou nem as no-
meiam, passando a indicar somente uma sequencia-
lidade através de títulos e/ou números (como nos
textos de Brecht, que conheceremos adiante). Pode-
se também observar se apontam para um processo
de continuidade ou descontinuidade temporal e es-
pacial.
• O material textual: também é muito importante
atentarmos para a forma como se apresenta o tex-
to - se em diálogos, com falas alternadas, tendo ou
não os discursos a mesma extensão; se em pequenos
ou grandes monólogos ou até mesmo somente em
monólogos alternados ou um único monólogo — aí
muitas vezes reside o peso das personagens, a inten-
cionalidade pragmática do texto (os efeitos preten-
didos pelo texto sobre o leitor), a estética a que se
vincula (por exemplo, se é mais ou menos ligado a
uma concepção tradicional da arte dramática).
• Do material textual fazem parte as didascálias:
quando inexistentes, indicam que todo “peso” de
sentido deve ser atribuído ao texto destinado às

UESC Módulo 5 I Volume 4 43


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

personagens; quando são quantitativamente supe-


riores ao próprio texto a ser representado, indicam
claramente uma posição muito mais narrativa e de
valorização da “quebra” de ilusão cênica. Além disso,
as didascálias são importantes indicadores espaciais,
pois determinam a existência de espaços bem demar-
cados, detalhados ou, ao contrário, deixam toda loca-
lização muito vaga e imprecisa, o que também ocorre
com a determinação temporal. Por meio das rubricas,
portanto podemos definir onde e quando se passa o
texto, mas, se não há nenhuma indicação de espaço e
tempo, também isso significa um sentido: a proposta
do texto de ser “universalizado”, de valer para todas
as épocas e lugares, por tratar-se (por exemplo) de
uma reflexão sobre a condição humana.
• A estruturação do enredo e dos caracteres: a forma
como estão “arranjadas” as ações, a maneira como
agem as personagens, são os mais fortes indicativos
estéticos e pragmáticos do texto. Inclusive a ine-
xistência de um enredo propriamente dito ou até
mesmo de personagens enquanto personalidades,
também dizem muito da proposta da obra dramá-
tica. No caso de uma comédia, por exemplo, deve-
mos observar os elementos propiciadores do riso;
no caso de um drama, os elementos que propiciam
o conflito, enfim, como afirmou Aristóteles, toda
nossa atenção maior deve estar voltada para o mito,
para o arranjo das ações.
• A intriga: no caso do estudo do mito (Aristóteles),
devemos identificar a progressão exterior de uma
ação dramática para chegarmos ao reconhecimento
do conflito central do texto, sem que se percam de
vista as várias implicações contextuais que estão em
jogo e a maneira como provocam seus efeitos (ca-
tarse, reflexão etc.).

44 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

• - O discurso das personagens: observando como

1
se organiza o discurso das personagens, podemos

Aula
verificar as relações entre os enunciadores, entre as
palavras e seus emissores, o modo como as dizem
e por que dizem; nesse caso, podemos perceber se
as falas vão no sentido do esperado ou se rompem
com o código previsível, por exemplo; também as
oposições e semelhanças entre elas devem ser obser-
vadas, assim como a formação ou não de duplos por
diferenciação ou complementaridade. você sabia?

• O nome das personagens: esse é um elemento mui-


to revelador em toda obra literária, pois o nome
das personagens estabelece o jogo das identidades
representadas no texto; e do mesmo modo, se não
são nomeadas, podem estar tipificadas, quer dizer,
podem corresponder a tipos sociais (a fofoqueira, o
esperto, o tolo etc.; ou profissionais, como o juiz, o
Imagem 4: Máscaras Gregas.
padre, o comerciante etc.). Fonte: <http://migre.me/b2j8T>

Para o teatro grego, a


Combinadas essas várias redes de sentido do texto persona é a máscara,
o papel desempenhado
literário dramático, abrem-se as possibilidades para suas nu- pelo ator, e não a per-
sonagem esboçada pelo
merosas interpretações. Como afirma Ryngaert (1996, p. autor dramático. O ator
147): “uma pista de leitura pede para ser desenvolvida, am- é somente um intérpre-
te que não se confun-
plificada, imaginada e, no entanto, revisitada e verificada. O de com a ficção e que
o público não assimila
leitor não passa acima do texto, expõe-se nele”.
imediatamente a uma
Desse modo, a leitura do texto literário dramático per- encarnação da perso-
nagem textual (RYNGA-
mite, como toda obra literária, o nosso conhecimento sobre ERT, 1995, p. 126).
outras realidades, sobre diferentes culturas. Nesse sentido de
alteridade (de encontro com o outro) também aprendemos
a sonhar outros mundos possíveis e, sobretudo, reencontra-
mos criticamente a nós mesmos.

UESC Módulo 5 I Volume 4 45


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

ATIVIDADES

1. Leia o texto integral da tragédia Édipo Rei, de Sófo-


cles, (disponível no site http://www.dominiopubli-
co.gov.br). Observe a seguinte “dica” do professor
Jean-Pierre Ryngaert (que é docente titular no Ins-
tituto de Estudos Teatrais da Sorbnonne, Paris III):
Pratique a leitura em voz alta dos textos dramáticos,
pois “trata-se de um exercício precioso, mesmo que
não nos consideremos em absoluto atores [...]. Es-
sas leituras constituem tentativas de dizer, que privi-
legiam a materialidade do texto durante os primei-
ros contatos, em que convém ser sério sem se levar
a sério e, por que não, encontrar prazer no que se
faz” (p. 49-50).

2. Leia o texto integral da tragédia Hamlet, de William


Shakespeare (disponível em http://www.elivros-
gratis.net/livros-gratis-william-shakespeare.asp).

3. Considere a seguinte abordagem:


O trágico nasce do confronto do herói
com uma fatalidade, inevitável e insolúv-
el, geralmente provocada pelo conflito
do homem com algo que lhe é superior
(princípio moral, preceito religioso). [...]
Em linhas gerais, pode-se dizer que a ação
do herói trágico clássico é impulsionada
pelo desejo de cumprir um dever a qualquer
custo ([...] o rei Édipo deve livrar a cidade
da peste e encontrar o assassino de Laio).
Já o trágico moderno é marcado pelo con-
flito entre o dever e o querer do herói; [nas
peças de Shakespeare], o trágico surge da
tensão entre o dever e o querer do herói,
abrindo caminho para novas concepções
do trágico e novas formulações da tragédia
(PASCOLATI, 2009, p. 107).

46 Letras Vernáculas EAD


Compondo Fios Para a Leitura de Textos Dramáticos

Destacamos, a seguir, o famoso monólogo do prínci-

1
pe Hamlet. Após a leitura das peças Édipo-Rei e Hamlet, e

Aula
após a leitura do trecho seguinte da referida peça shakespe-
ariana, responda:
a. Por que esta questão (“ser ou não ser”) não seria
adequada ao rei Édipo?
b. Selecione trechos da peça de Sófocles que demons-
trem a hybris (o que ultrapassa as medidas, a desmedida, a
transgressão) do herói e explique os critérios de sua seleção:
c. Compare os finais de Édipo e de Hamlet e desen-
volva um comentário sobre a dimensão do trágico em cada
um deles:
“Hamlet – Ser ou não ser, eis a questão.
Qual será a atitude mais nobre: suportar o
fardo e as agressões de um destino injusto
ou se levantar em armas contra um mundo
de desventuras e acabar com elas resistin-
do? Morrer, dormir, nada mais; dizer que
dormindo podemos curar os sofrimentos
do coração e os mil conflitos que con-
stituem a natural herança da carne, é, na
verdade, a solução que desejamos. Morrer!
Dormir; dormir, sonhar, talvez? Eis o pon-
to de interrogação. Quais serão os sonhos
que teremos no sono da morte, quando
escaparmos ao torvelinho da vida. Esta é
a reflexão que prolonga a vida miserável;
pois se assim não fosse, quem suportaria
as humilhações de nossa época, as injúrias
dos opressores, as afrontas dos poderosos,
as agonias do amor desprezado, a lentidão
da justiça, a valorização da mediocridade,
se estivesse em suas mãos obter sossego na
ponta de um punhal? Quem suportaria tão
dura carga, gemendo e suando ao peso de
uma vida de trabalho, se não fosse o medo
de alguma coisa após a morte, terra mis-
teriosa de onde nenhum viajante jamais
regressou? É isto que nos inibe a vontade,
nos fazendo aceitar os males conhecidos,
com medo de encontrarmos outros que
não conhecemos. A consciência nos faz

UESC Módulo 5 I Volume 4 47


Literatura Comparada III: o teatro de língua portuguesa

a todos covardes. Nossas resoluções mais


firmes empalidecem perante o débil clarão
de nosso viciado raciocínio e é assim que
nossas ações, com tais reflexões deixam de
ser ação... Agora, silêncio!”

Disponível em: www.tesctheatre.org.br/.../cur-


so_de_dramaturgia__completo_.doc/. Acesso em
jan./2012.

4. Pesquise quem foi Aristófanes e elabore uma sin-


tética biografia sobre este importante comediógra-
fo grego (não esqueça de indicar a(s) fonte(s) de sua
consulta):

5. Leia a comédia Lisístrata, de Aristófanes (disponível


em 213.13.123.56/biblioteca/livros/teatro/lisistrata.
pdf) e elabore um comentário sobre a forma como
são apresentadas as personagens, como se desenro-
lam as ações, a adequação do título da peça, se são ou
não importantes as didascálias:

6. Com base no seu comentário anterior, responda:


que elementos são caracterizadores do gênero co-
média nessa peça de Aristófanes? O que ele está
criticando com seu texto?

RESUMINDO

Nesta aula, tratamos dos principais aspectos que caracterizam


os textos literários dramáticos. Assim, retomamos o estudo
básico da Poética de Aristóteles, definimos os elementos
fundamentais da tragédia e da comédia, e assinalamos, de
modo introdutório, outros relevantes gêneros dramáticos.

48 Letras Vernáculas EAD


COMPONDO FIOS PARA A LEITURA DE TExTOS DRAMáTICOS

1
REFERêNCIAS

Aula
COSTA, Ligia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luíza Ritzel.
A tragédia: estrutura e história. São Paulo: Ática, 1988.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicaná-
lise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
MAGALDI, Sábato. O texto no teatro. São Paulo: Pers-
pectiva, 1989.
______. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 1985.
PASCOLATI, Sonia Aparecido Vido. Operadores de leitura
do texto dramático. In: BONNICI, T.; ZOLIN, L. O. Teo-
ria Literária – abordagens históricas e tendências contem-
porâneas. Maringá: Eduem, 2009.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro.
São Paulo: Martins Fontes, 1996.

UESC Módulo 5 I Volume 4 49


Suas anotações

...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
..................................................................................................................
..................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
....................................................................................................................
aula

2
NO COMEÇO ERAM
OS AUTOS...
E ELES CONTINUAM
EM CENA

Objetivo:

• Estudar os principais elementos dos textos dramáticos de


língua portuguesa na transição da Idade Média para
a Idade Moderna, com destaque para os autos de Gil
Vicente. Reconhecer a atualização do gênero em peças
brasileiras contemporâneas.
No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

2
Aula
1 INTRODUÇÃO

Gil Vicente foi o primeiro dramaturgo que escreveu


textos dramáticos em língua portuguesa. Isso não significa
que antes dele não se realizassem, em Portugal, diferentes
expressões artísticas relacionadas à arte teatral, mas coube
a esse autor o mérito de dramatizar a vida portuguesa, tan-
to em textos ainda muito marcados pelos valores medievais
quanto em obras de forte espírito satírico. Essa dupla face
de Gil Vicente, como artista defensor de valores herdados
do mundo medieval e, ao mesmo tempo, um homem de seu
tempo, humanista, crítico ferrenho da hipocrisia social, fez
dele um nome muito singular no conjunto da literatura por-
tuguesa. Seu teatro, muito vivo e envolvente, demarcou-se
pela simplicidade formal e pelo humor corrosivo que não
poupava a quase nenhum setor da sociedade de seu tempo.
Nesta aula, vamos retomar alguns aspectos do teatro
vicentino para, principalmente, demonstrarmos a sua força
expressiva, que permitiu a permanência de seus textos na
dramaturgia em língua portuguesa. Como legado incontor-
nável, a arte de Gil Vicente continua servindo de referência
ao teatro contemporâneo. No caso da dramaturgia brasilei-
ra, veremos como João Cabral de Mello Neto atualizou o
auto medieval em sua peça Morte e vida Severina.

UESC Módulo 5 I Volume 4 53


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

2 o teatro de gil vicente: tradições e


legados

pouco se sabe sobre o nascimento e a vida de Gil Vi-


cente, mas, por dados contidos em sua própria obra e em al-
gumas cartas e documentos familiares, estima-se que tenha
nascido entre 1465 e 1470. Viveu, assim, sob os reinados de
D. Manuel e de D. João III, quando Portugal passava “à fase
decisiva de transformação da sociedade portuguesa em con-
sequência dos descobrimentos e é essa mutação histórica que
inspira grande parte de sua obra” (SARAIVA, 1975, p. 6).
Nesse contexto, a posição de Gil Vicente foi de crí-
tica ao expansionismo português, pois julgava nefasto o re-
sultado do enriquecimento fácil por parte dos navegadores,
que levava a um relaxamento dos costumes, a uma desvalo-
rização do trabalho do agricultor e, inclusive, à degeneração
da família, como se pode ler no Auto da Índia. Nessa his-
tória, um comerciante integra uma armada para navegar em
busca das especiarias e deixa em casa a esposa que, apenas
acompanhada de uma aia, passa a divertir-se com amantes.
Vamos relembrar alguns trechos:

FARSA CHAMADA AUTO DA ÍNDIA


Figuras: Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido

À farsa seguinte chamam Auto da Índia. Foi fundada sobre que uma mulher, estando
já embarcado pera a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desaviado e que
já não ia; e ela, de pesar, está chorando. Foi feita em Almada, representada à muito
católica Rainha D. Lianor, era de 1509 anos.
MOÇA Jesu! Jesu! que é ora isso? A
É porque se parte a armada? B
AMA Olhade a mal estreada! B
Eu hei-de chorar por isso? A
MOÇA Por minh’ alma que cuidei C
e que sempre imaginei, C
que choráveis por nosso amo. D

54 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

AMA Por qual demo ou por qual gamo, D


ali, má hora, chorarei? C
Como me leixa saudosa! A
Toda eu fico amargurada! B
MOÇA Pois por que estais anojada? B
Dizei-mo, por vida vossa. A
AMA Leixa-m’, ora, eramá, C

2
que dizem que não vai já. C

Aula
MOÇA Quem diz esse desconcerto? D
AMA Disseram-mo por mui certo D
que é certo que fica cá. C
O Concelos me faz isto.
MOÇA S’eles já estão em Restelo,
como pode vir a pêlo?
Melhor veja eu Jesu Cristo,
isso é quem porcos há menos.
AMA Certo é que bem pequenos
são meus desejos que fique.
MOÇA A armada está muito a pique.
AMA Arreceio al de menos.
Andei na má hora e nela
a amassar e biscoutar,
pera o o demo o levar
à sua negra canela,
e agora dizem que não.
Agasta-se-m’o coração,
que quero sair de mim.
MOÇA Eu irei saber s’é assim.
AMA Hajas a minha benção.
Vai Moça e fica a Ama dizendo:

AMA A Santo António rogo eu


que nunca mo cá depare:
não sinto quem não s’enfare
de um Diabo Zebedeu.
Dormirei, dormirei,
boas novas acharei.

UESC Módulo 5 I Volume 4 55


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

São João no ermo estava,


e a passarinha cantava.
Deus me cumpra o que sonhei.
Cantando vem ela e leda.
MOÇA Dai-m’alvíssaras, Senhora,
já vai lá de foz em fora.
AMA Dou-te uma touca de seda.
MOÇA Ou, quando ele vier,
dai-me do que vos trouxer.
AMA Ali muitieramá!
Agora há-de tornar cá?
Que chegada e que prazer!
MOÇA Virtuosa está minha ama!
Do triste dele hei dó.
AMA E que falas tu lá só?
MOÇA Falo cá co’esta cama.
AMA E essa cama, bem, que há?
Mostra-m’essa roca cá:
siquer fiarei um fio.
Leixou-me aquele fastio sem ceitil.
MOÇA Ali eramá!
Todas ficassem assi.
Leixou-lhe pera três anos
trigo, azeite, mel e panos.
AMA Mau pesar veja eu de ti!
Tu cuidas que não t’entendo?
MOÇA Que entendeis? Ando dizendo
que quem assi fica sem nada,
coma vós, que é obrigada...
Já me vós is entendendo.
AMA Ha ah ah ah ah ah!
Est’era bem graciosa,
quem se vê moça e fermosa
esperar pola irá má.
Hi se vai ele a pescar
meia légua polo mar,

56 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

isto bem o sabes tu,


quanto mais a Calecu:
quem há tanto d’esperar?
Melhor, Senhor, sé tu comigo.
À hora de minha morte,
qu’eu faça tão peca sorte.
Guarde-me Deus de tal p’rigo.

2
O certo é dar a prazer.

Aula
Para que é envelhecer
esperando pelo vento?
Quant’eu por mui nécia sento
a que o contrário fizer.
Fonte: Disponível em: http://www.bibvirt.futuro.usp.br. Acesso em jan. 2012.

NOTAS (adaptadas ou citadas de SARAIVA, 1975, p. 27 a 30):

A criada (Moça), aflita pelo choro da patroa “Ali muitieramá!”: expressão aproximada
(Ama), supõe que a tristeza seja motivada pela de “Era só o que faltava!”. Com os dois versos
partida do patrão na armada para a Índia: “tra- seguintes, completa-se o seguinte sentido: “a
ta-se da armada que saiu de Lisboa [da praia do maior parte dos que partiam para a Índia não
Restelo] em 1506, sob o comando de Tristão da regressavam mais; a Ama exprime o desagrado
Cunha”. por ver a Moça admitir a possibilidade de re-
gresso”.
Expressão da 3ª linha: “Olha a tola!”
“E que falas tu lá só?”: nos dois versos ante-
gamo: marido enganado, traído.
riores a esse, a moça fala em aparte (como se
Má hora: “locução de sentido vago mas de- falasse sozinha ou se dirigisse ao público, de
preciativo, oposto a ‘embora’. maneira dissimulada em relação a outra per-
sonagem com quem contracena). Trata-se de
anojada: desgostosa, chorosa. um comentário irônico da moça, criticando a
falta de virtudes da ama.
Leixa-me ora eramá: “deixa-me em paz! Era-
má é o mesmo que má hora”. “Mostra-m’essa roca cá:/siquer fiarei um
fio./Leixou-me aquele fastio sem ceitil: “o
desconcerto: disparate.
fiar era uma ocupação permanente da mu-
Concelos: “referência a Jorge de Vasconcelos, lher casada. [...] A jura da ama é, portanto,
funcionário régio encarregado de abastecer e um protesto contra as obrigações domésticas.
despachar as naus que partiam para a Índia”. [...] [Fastio era o marido, e ceitil era a “sexta
parte de um real:] a mais pequena moeda da
vir a pêlo: voltar atrás. época”.

Ver Jesus Cristo: ir para o céu. “O sentido “Todas ficassem assi/ Leixou-lhe pera três
é, pois: assim tivesse eu certeza de ir para o anos/trigo, azeite, mel e panos”: em novo à
Céu, como a tenho de que o embarcado não parte, a criada está criticando a ama, desmen-
volta”. tindo sua situação de penúria: “três anos foi,
efetivamente, a duração da viagem da armada
a pique: pronta para partir. de Tristão da Cunha. O marido abastecera a

UESC Módulo 5 I Volume 4 57


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Arreceio al de menos: “receio que, à ultima casa de gêneros para esse período; era, por-
hora, falte alguma coisa e não parta”. tanto, pessoa com certo nível econômico”.
“a amassar e biscoutar,/pera o demo o levar/
esperar pola ira má: esperar pelo marido. As-
à sua negra canela,/e agora dizem que não”:
sim, o sentido desta estrofe pode ser assim enten-
“Os embarcados deviam partir abastecidos
dido: se ela não espera o marido quando vai pes-
de alimentos para muitos meses. O biscouto
car (engano-o em qualquer oportunidade), tanto
era o pão torrado, que a ama preparou para a
mais em distância e tempo tão longos (Calecut =
viagem. [...] Canela = Índia” [pois a canela
Índia).
era uma das principais especiarias vindas da
Índia]. E ela acha que pode ter trabalhado em
vão, se ele não partir. qu’eu faça tão peca sorte: tenha tão má sorte.

“Santo Antonio era o santo das coisas perdi-


Quant’eu por mui nécia sento/ a que o con-
das; a Ama pede-lhe que nunca lhe ache (de-
trário fizer: esses versos podem ser lidos assim:
pare) o marido”.
“na minha opinião, quanto a mim, considero que
quem não s’enfare: quem não se aborreça. é muito estúpida quem fica esperando pelo ma-
leda: alegre. rido”.

Nessa primeira passagem, observamos a composição


da obra, designada pelo autor como uma farsa, gênero que
estudaremos adiante, em redondilha maior e estrofes de no-
ve versos. As rimas garantem a marcação sonora do texto,
numa continuidade rítmica que demonstra o seu dinamis-
mo (como assinalado nas duas primeiras estrofes, a título de
exemplo, o sistema das rimas é ABBACCDDC, constante
ao longo de todo o texto).
Nesses diálogos da Ama com a Moça, ou nos apartes
da criada, vemos a crítica de Gil Vicente ao comportamento
das mulheres que, deixadas por seus maridos, são facilmente
desvirtuadas do papel social que deveriam exercer naquele
tempo. Interessante é notarmos que a criada representa, de
certo modo, a voz da consciência virtuosa que a patroa não
tem. Entretanto, devemos saber que “há uma longa tradição
de farsa medieval sobre o tema do adultério feminino, e a ela
se liga esta veia vicentina, mas impressiona a extraordinária
vivacidade destas figuras” (SARAIVA, 1996, p. 202).
Dentre essas figuras, destaca-se o Escudeiro como
tipo sempre criticado por Gil Vicente:

[Trata-se] de um género de parasita ocio-


so e vadio [...]. O Escudeiro imita os pa-

58 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

drões da nobreza, toca guitarra, verseja,


faz serenatas [...] pavoneia-se de bravo e
cavaleiro, espera o seu ‘acrescentamento’
que o instalará de vez na nobreza. Mas não
trabalha, passa fome, tem medo [...] Essa
parasitagem faminta, que tendia multipli-
car-se com a decadência da baixa nobreza
e de seus ramos desqualificados, levantava
protestos por parte de burgueses e artí-

2
fices. [...] Gil Vicente se faz eco de um

Aula
sentimento popular, mas cabe perguntar
em que medida ele visa, através do Escu-
deiro, o próprio ideal da vida nobre, [pois]
os fidalgos também aparecem duramente
atacados nos autos (SARAIVA, 1996, p.
200).

Na passagem seguinte, encontramos essa crítica do


dramaturgo português ao tipo do Escudeiro, o personagem
Lemos, um dos amantes da patroa, principalmente por meio
da voz da Moça, que ironiza a situação decadente do rapaz,
dando a entender que somente por interesse ele se acerca da
Ama:

AMA Um Lemos andava aqui


meu namorado perdido.
MOÇA Quem? O rascão do sombreiro?
AMA Mas antes era escudeiro.
MOÇA Seria, mas bem safado;
não suspirava o coitado
senão por algum dinheiro.
AMA Não é ele homem dessa arte.
MOÇA Pois inda ele não esquece?
Há muito que não aparece.
AMA Quant’ eu não sei dele parte.
MOÇA Como ele souber à fé.
Que nosso amo aqui não é,
Lemos vos visitará.

UESC Módulo 5 I Volume 4 59


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

LEMOS Hou da casa!


AMA Quem é lá?
LEMOS Subirei?
AMA Suba quem é.
LEMOS Vosso cativo, Senhora.
AMA Jesu! Tamanha mesura!
Sou rainha porventura?
LEMOS Mas sois minha imperadora.
AMA Que foi do vosso passear,
com luar e sem luar,
AMA toda a noite nesta rua?
LEMOS Achei-vos sempre tão crua,
que vos não pude aturar.
Mas agora como estais?
AMA Foi-se à Índia meu marido,
e depois homem nascido
não veio onde vós cuidais;
e por vida de Constança,
que se não fosse a lembrança...
MOÇA Dizei já essa mentira.
AMA Que eu vos não consentira
entrar em tanta privança.
LEMOS Pois agora estais singela,
que lei me dais vós, Senhora?
AMA Digo que venhais embora.
LEMOS Quem tira àquela janela?
AMA Meninos que andam brincando,
e tiram de quando em quando.
LEMOS Que dizeis, Senhora minha?
AMA Metei-vos nessa cozinha,
que me estão ali chamando.
CASTELHANO Ábrame, vuessa merced,
que estoy aquí a la verguença!
[...]
AMA Calai-vos, muitieramá
até que meu irmão se vá!

60 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

Dissimulai por i, entanto.


Ora vistes o quebranto?
Andar, muitieramá!
LEMOS Quem é aquele que falava?
AMA O Castelhano vinagreiro.
LEMOS Que quer?
AMA Vem polo dinheiro

2
do vinagre que me dava.

Aula
Vós queríeis cá cear
e eu não tenho que vos dar.

NOTAS (adaptadas de SARAIVA, 1975, p. 37 a 40):

rascão do sombreiro: vadio de chapéu. que lei me dais vós, Senhora?: “que tipo
de relações vamos ter?”
tão crua,/ que vos não pude aturar: ele
achou-a tão pouco amável que não sen- Digo que venhais embora: “Digo que
tiu mais vontade de lhe fazer a corte. sejais bem-vindo”.
Metei-vos nessa cozinha,/que me estão
e por vida de Constança: a Ama jura ali chamando: a Ama trata de esconder
sobre a própria vida – ficamos sabendo, o amante Lemos na cozinha, enquanto o
assim, que ela se chama Constança, ter- outro, o Castelhano, atira pedras em sua
mo sinônimo de ‘fidelidade” (constân- janela para entrar.
cia), o que causa efeito cômico por não Abra-me vuessa merced,/que estoy
ser esse o caráter da Ama que, muito aquí a la verguença: “Deixe-me entrar,
pelo contrário, é infiel ao marido. senhora, pois estou passando vergonha
aqui em público”.
Dizei já essa mentira: A moça, em
aparte, assinala a falsidade da Ama em Dissimulai por hi, entanto/ Ora vistes
dizer-se virtuosa. o quebranto? “Disfarce, ou já vistes o
que pode acontecer de mau (quebranto
privança: privacidade. = mau-olhado)/’.

Já na passagem em que o marido regressa, além da hi-


pocrisia que mantém o casamento, o autor desvela sua críti-
ca sobre a situação de Portugal diante da expansão marítima:

UESC Módulo 5 I Volume 4 61


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

MOÇA É noss’amo, como rima!


AMA Teu amo? Jesu, Jesu,
Alvíssaras pedirás tu.
MARIDO Abraçai-me minha prima.
AMA Jesu, quão negro e tostado!
Não vos quero, não vos quero.
MARIDO E eu a vós a si, porque espero
serdes mulher de recado.
AMA Moça, tu que estás olhando,
vai muito asinha saltando,
faze fogo, vai por vinho
e a metade dum cabritinho,
enquanto estamos falando.
Ora como vos foi lá?
MARIDO Muita fortuna passei.
AMA E eu, oh quanto chorei,
quando a armada foi de cá.
E quando vi desferir
que começastes de partir,
Jesu, eu fiquei finada,
três dias não comi nada,
a alma se me queria sair.
MARIDO E nós cem léguas daqui
saltou tanto sudueste,
sudueste e oés-sudueste
que nunca tal tromenta vi.
AMA Foi isso à quarta-feira,
aquela logo primeira?
MARIDO Si, e começou n’alvorada.
AMA E eu fui-me de madrugada
a nossa Senhora d’Oliveira.
E com a memória da cruz
fiz-lhe dizer uma missa,
e prometi-vos em camisa
a Santa Maria da Luz.
E logo à quinta-feira

62 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

fui ao Spírito Santo


com outra missa também.
Chorei tanto que ninguém
nunca cuidou ver tal pranto.
Correstes aquela tormenta?
Andar...
MARIDO Durou três dias.

2
AMA As minhas três romarias

Aula
com outras mais de quarenta.
MARIDO Fomos na volta do mar
MARIDO quasi a quartelar:
a nossa Garça voava
que o mar se espedaçava.
Fomos ao rio de Meca,
pelejámos e roubámos
e mui risco passámos:
a vela, árvore seca.
AMA E eu cá esmorecer,
fazendo mil devações,
mil choros, mil orações.
MARIDO Assi havia de ser.
[...]
MARIDO Lá vos digo que há fadigas,
tantas mortes, tantas brigas
e perigos descompassados,
que assi vimos destroçados
pelados como formigas.
AMA Porém vindes vós mui rico?...
MARIDO Se não fora o capitão,
eu trouxera, a meu quinhão,
um milhão vos certifico.
Calai-vos que vós vereis
quão louçã haveis de sair.
AMA Agora me quero eu rir
disso que me vós dizeis.
Pois que vós vivo viestes,

UESC Módulo 5 I Volume 4 63


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

que quero eu de mais riqueza?


Louvado seja a grandeza
de vós, Senhor que mo trouxestes.
A nau vem bem carregada?
MARIDO Vem tão doce embandeirada.
AMA Vamo-la, rogo-vo-lo, ver.
MARIDO Far-vos-ei nisso prazer?
AMA Si que estou muito enfadada.
Vão-se a ver a nau e fenece esta farsa.

NOTAS (adaptadas/citadas de SARAIVA, 1975, p. 48 a 50):


minha prima: forma de tratamento afetuoso, usado de maneira independente à
relação de parentesco.

mulher de recado: mulher cumpridora de seus deveres, fiel.

fortuna: tempestade
e prometi-vos em camisa: prometer o equivalente do peso (sem vestuário) em
cera.
rio de Meca: mar Vermelho
a vela, árvore seca: navegação sem velas ou com as velas fechadas.
Se não fora o capitão,/eu trouxera, a meu quinhão,/um milhão vos cer-
tifico: “Cada elemento da tripulação tinha o direito de trazer consigo certa
quantidade de mercadoria (a quintalada); se era pimenta, fazia-se a venda
na Casa da Índia e recebia metade (a outra metade era para o rei); no caso
de se tratar de outros gêneros, a venda era livre. A quantidade era propor-
cional à patente, e era o capitão do navio que fiscalizava o peso das quin-
taladas. Um milhão: um milhão de reais [moeda daquele tempo], o que
também se chamava conto, era a mais alta unidade de contagem (=conto);
era uma quantia muito elevada [...]”
quão louçã: que elegante

Nos versos destacados, “Fomos ao rio de Meca,/ pe-


lejámos e roubámos” e em “tantas mortes, tantas brigas/ e
perigos descompassados”, encontra-se a crítica de Gil Vi-

64 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

cente ao processo de enriquecimento dos comerciantes:

O sentimento popular faz vibrar os autos


vicentinos, mas também salta aos olhos
que esse sentimento popular se cristaliza
em torno de valores tradicionais. Gil Vi-
cente aceita-os, como tinha de aceita-los
o povo. O grupo deveras inovador nessa
época, e perigoso para a hierarquia feudal,

2
não era o do camponês nem o do artesão,

Aula
mas sim o do mercador (SARAIVA, 1996,
p. 203).

Se considerarmos que “a viagem de 1506 teve obje-


tivos comerciais e não militares” (SARAIVA, 1975, p. 50),
podemos concluir que ao referir as lutas e os roubos prati-
cados pelos portugueses, o que se acentua é a contestação de
Gil Vicente à ação dos portugueses nas Ìndias. Além disso,
demonstra, com os versos seguintes sobre as mortes, bri-
gas e perigos, que a cobiça acarretava muito mais danos ao
povo português do que possíveis aspectos positivos, prin-
cipalmente quando esses ficavam concentrados na mão de
uma minoria que desestabilizava a ordem conservadora da
sociedade estamental portuguesa.
Sobre esse último aspecto, o contexto histórico-so-
cial português à época de Gil Vicente, não podemos esque-
cer o seguinte: “a exploração econômica do ultramar faz-se
grandemente em regime de monopólio da Coroa”. Assim,
embora tenha obtido avanços, a burguesia rural e comer-
cial portuguesa continuou perdendo espaço para a nobre-
za, pois “as expansões econômicas foram absorvidas como
renda feudal, sob formas variadas, [...] o que dificultou a
acumulação de capital propriamente dito e seu posterior in-
vestimento na agricultura e, em geral, na produção interna”
(SARAIVA, 1996, p. 171).
Assim, podemos compreender que o teatro vicentino
respondeu, a seu modo, às novas configurações do mundo
social de seu tempo, sendo que o Auto da Índia é considera-

UESC Módulo 5 I Volume 4 65


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

do a sua primeira obra mais elaborada. Antes dela, Gil Vicente


encenou alguns monólogos:

A primeira peça vicentina, o Auto da visita-


ção, é o simples monólogo de um vaqueiro,
destinado a festejar o nascimento de um
príncipe (o futuro D. João III), e filia-se di-
retamente em representações de outro poeta
palaciano, o castelhano Juan del Encina, cuja
linguagem dialetal imitava. A corte portugue-
sa era bilíngue, sendo castelhanas as esposas
dos reis de Portugal no século XVI. Por via
dos contatos entre as cortes peninsulares, Gil
Vicente [...] conhecia familiarmente os po-
etas de língua castelhana. [...] Mas, à medida
que vai avançando e enriquecendo as suas
formas e repertório teatral, [o autor] integra
novos elementos da tradição europeia [como
sermões burlescos, fantasias alegóricas, mis-
térios de origem francesa e inglesa, romances
de cavalaria, etc.] (SARAIVA, 1996, p. 192).

Os méritos criativos de Gil Vicente estão justamente em


sua capacidade de se servir dessa tradição e a ela incorporar
sempre novos elementos, capazes de responder a questões de
sua realidade histórico-cultural. Nesse sentido, adaptou, inclu-
sive, em muitas de suas obras, histórias e tipos humanos que
figuravam em contos orais da Península Ibérica.
No caso da peça que estudamos, é interessante anotar-
mos que se trata de uma “farsa a que chamam Auto da Índia”.
Considerando-se essa apresentação do texto, “’auto’ parece ser
a designação geral para qualquer texto de teatro de Gil Vicen-
te. [...] A mudança de designação [corresponde] a uma ma-
neira diferente de ocupar teatralmente o tempo e o espaço”
(MATEUS, 1984, p. 12). Essa mudança deveu-se, sobretudo,
ao fato de que, neste texto vicentino, há uma história completa
contada, não se trata de um episódio ou alguns episódios en-
cenados sem um “enredo” que sustente as ações representadas.
E deve-se atentar também para o fato de que, com exceção do
personagem Castelhano, todos os demais personagens falam

66 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

em português: “E um português que produz efeito de real pró-


ximo, de real contemporâneo do momento da representação.
O teatro gera um clima que [recria] o cotidiano e menciona
gentes e lugares conhecidos pelo espectador” (MATEUS,
1984, p. 13).
Com relação ao gênero farsa, “na sua forma mais sim-
ples, reduz-se a um episódio cômico colhido em flagrante na

2
vida da personagem típica” (SARAIVA, 1996, p. 195). Na far-

Aula
sa, “a história corre em contos dialogados no palco, sem qualquer
preocupação de unidade de tempo, e sem qualquer compartimen-
tação de quadros ou atos a marcar descontinuidades temporais”
(SARAIVA, 1995, p. 196). No caso de Gil Vicente, são exemplares,
além do Auto da Índia, as farsas Auto de Inês Pereira, Farsa dos Al-
mocreves, Quem tem farelos?, O clérigo da Beira, para citarmos as
principais.
Assim, mesmo marcado pela simplicidade, por uma arte
ainda de traços medievais, o teatro vicentino conseguiu grande vi-
vacidade e, por isso, permaneceu no tempo, para além da impor-
tância de sua história como precursor da literatura dramática em
Língua Portuguesa. Ainda hoje, suas peças ganham sabor de atua-
lidade quando questionam aspectos da vida humana como as falsas
virtudes, a falsa modéstia, os interesses egoístas e muitos outros.

3 DE AUTOS E OUTROS ATOS NA CENA


BRASILEIRA

A literatura dramática brasileira só se inicia, de fato,


com a Independência do país; antes disso, apenas se registram
expressões esparsas (COUTINHO, 2004).
Considera-se que o início de manifestações teatrais re-
alizadas no Brasil foi marcado pela atividade jesuítica. A ca-
tequese dos índios era o objetivo maior dos autos do padre
Anchieta:

UESC Módulo 5 I Volume 4 67


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Colocar junto não só a representação religiosa


como a língua européia: tal foi o trabalho a que
se dedicaram os jesuítas e os conquistadores
a partir da segunda metade do século XVI no
Brasil. As representações teatrais, feitas no in-
terior das tabas indígenas, comportam [...] um
diálogo escrito metade em português e outra
metade em tupi-guarani, ou, de maneira mais
precisa, o texto em português e sua tradução
em tupi-guarani. [...] Pouco a pouco, as repre-
sentações teatrais propõem uma substituição
definitiva e inexorável: de agora em diante, na
terra descoberta, o código lingüístico e o có-
digo religioso se encontram intimamente liga-
dos, graças à intransigência, à astúcia e à força
dos brancos. Pela mesma moeda, os índios per-
dem sua língua e seu sistema sagrado e recebem
em troca o substituto europeu (SANTIAGO,
2000, p. 14).

Esse processo de aculturação violenta, portanto, con-


tribuiu de maneira muito profunda na desestruturação e eli-
minação de muitas culturas indígenas e sabemos o quanto a
situação dos índios continua sendo um dos grandes problemas
não resolvidos em nosso país. A ele somam-se as profundas
desigualdades que ainda exigem muito das políticas públicas e
dos movimentos sociais, sendo que a arte teatral e a literatura
dramática brasileiras, ao longo de sua história, não deixaram de
contemplar essas perspectivas críticas.
Nesse sentido, vamos estudar, a seguir, um auto escrito
na década de 50 do séc. XX: mantendo os principais elemen-
tos formais do gênero de tradição medieval, o poema Morte e
Vida Severina: Auto de Natal Pernambucano, de João Cabral
de Mello Neto direciona seu olhar crítico para a situação de
injustiça social vivida no nordeste brasileiro. Ainda que, ob-
viamente, com outros esquadros e compassos, de certo modo
podemos encontrar nesse texto um legado importante da tra-
dição de Gil Vicente.

68 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

3.1 O Auto de Natal Pernambucano: a esperança


na vida severina

Assim como os períodos históricos só se de-


limitam retrospectivamente, assim também os
movimentos artísticos e literários só passam à
história depois que as mudanças a que deram

2
origem, já estabilizadas no âmbito da geração
que as promoveu, transferem-se às gerações

Aula
seguintes como herança cultural (NUNES,
2007, p. 142).

Publicado em 1956, o poema dramático Morte e vida


severina, que tem por subtítulo Auto de Natal pernambuca-
no, do escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto, foi
encenado pela primeira vez dois anos depois, “por um grupo
amador, o Norte Teatro Escola do Pará, que o levou a palcos
do Recife por ocasião do 1º Festival Nacional de Teatros dos
Estudantes. A montagem valeu a João Cabral o Prêmio de Me-
lhor Autor Teatral daquele ano” (ARAÚJO, 2006). O reco-
nhecimento e a ampla divulgação da obra, entretanto, ocorre-
ram em 1965, “quando foi encenado no teatro da PUC-SP e do
Rio de Janeiro e posteriormente no Festival Universitário de
Nancy (França), com música de Chico Buarque de Holanda”
(ARAÚJO, 2006).
para conhecer

Morte e vida severina já fora encenado em 1958


sem muito sucesso por Walmor Chagas e Cacil-
da Becker. Porém, a identificação com a realida-
de do país e a predileção por um autor nacional
foram as razões que levaram o grupo de teatro
universitário TUCA a escolher o texto de João
Cabral de Melo Neto. Às 21 horas do dia 11 de
setembro de 1965, a estreia. Uma hora depois,
dez minutos de aplausos e a angústia dá lugar
ao alívio. No dia seguinte, jornais publicam crí-
ticas elogiosas à peça. O auditório Tibiriçá esta-
va inaugurado, porém, a partir daquela data, o
nome torna-se outro: TUCA [Teatro da Univer-
sidade Católica de São Paulo]. (SOUZA; Revista
CULT, 132).
Imagem 6 Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/
home/2010/04/registros-de-uma-historia>.

UESC Módulo 5 I Volume 4 69


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Começaremos nosso estudo pelo título desta obra ca-


bralina: sabemos que Severino é um dos mais recorrentes
nomes nordestinos e é essa a designação do protagonista
– no título, porém, há a passagem do substantivo próprio
para a condição de adjetivo: a situação de Severino torna-se,
ao longo do texto, uma qualidade de vida, a vida Severina,
além de podermos aludir à equivalência com o sentido de
severidade, de dificuldade. A vida, entretanto, vem nome-
ada depois da morte, pois o padecimento seria o primeiro
destino da maioria da população mais empobrecida do Nor-
deste, diante da opressão social; no texto, entretanto, res-
surge a esperança na vida a partir da solidariedade e da luta
dos trabalhadores por justiça social (ABDALA JÚNIOR;
CAMPEDELLI, 2000) – assim, a vida sucede e sobrepõe-se
à morte.
Com relação ao personagem central, é impor-
tante reconhecer o seguinte:

[trata-se] de uma figura exemplar, como


costumam ser, nos autos, as personae dra-
matis (personagens, máscaras dramáti-
cas), que representam tipos e encarnam
princípios, num plano alegórico, de sig-
nificado religioso-ético. O bem e o mal, o
pecado e a graça nos mistérios, como figu-
rações típicas, são substituídas, no Auto
de Natal pernambucano, pela Vida e pela
Morte [...]

A exemplaridade de Severino, na sua trajetó-
ria, consiste na sua persistência em tentar melhor sorte na
cidade, partindo do sertão para o Recife, buscando as águas
do Rio Capibaribe, sem corromper-se ao longo do caminho.
A figura do rio é importante, pois, de certo modo, o trajeto
do retirante é o mesmo caminho do rio, conforme poema
homônimo de João Cabral, publicado em 1953, no qual há
uma antropomorfização das águas do Capibaribe – é ele que
tudo vê e sente, como quando se depara com o agreste:

70 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

A mesma dor calada,


o mesmo soluço seco,
mesma morte de coisa
que não apodrece mas seca.

2
Na seca, a marca da pobreza do povo:

Aula
Eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga;
que os distinga na morte
que aqui é anônima e seguida.
São como ondas de mar,
Uma só onda, e sucessiva.
Imagem 7: Rio Capibaribe
Fonte: http://static.panoramio.com/photos/original/6713035.jpg

De forma ampla, pode-se reconhecer que a “viagem”


do rio e a do retirante têm um mesmo fundo contextual e
crítico: a grande propriedade exploradora. No caso de “O
rio”, porém, a ênfase recai no sistema das usinas que substi-
tuem os engenhos, na monocultura da cana que tudo devora
pela “boca” da usina, enquanto em Morte e vida severina,
“particulariza-se mais o fenômeno da grande propriedade
territorial, sendo o latifúndio expressamente referido co-
mo dado material mais próximo, fonte de tensões dramá-
ticas que a existência dos indivíduos interioriza” (NUNES,
2007, p. 60). Assim, podemos entender que a situação social
opressora “marca” os retirantes e, no caso do poema dramá-
tico em estudo, cabe ao protagonista relatar essa sua histó-
ria, que ao longo do texto vai sendo confirmada como uma
história coletiva, de todo um povo.

UESC Módulo 5 I Volume 4 71


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Vamos acompanhar a apresentação de Severino:



O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR
QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,


como não tenho outro de pia,
como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,

72 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

morremos de morte igual,


mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,

2
e até gente não nascida).

Aula
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

Dividida em monólogos e diálogos, essa trajetória de


Severino atinge o clímax dramático quando ele, entendendo
que já não tem saída, decide por fim a sua vida afogando-
se no Rio Capibaribe. A explicação de tanta desesperança
é marcada no diálogo que estabelece com seu José, “mestre
carpina”, e se interrompe com a notícia do nascimento de
uma criança.

O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM
DOS CAIS DO CAPIBARIBE

— Nunca esperei muita coisa,


é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário
de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,

UESC Módulo 5 I Volume 4 73


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

não seria diferente


a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida,
esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca,
dentro da cuia, a farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a vida.
E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida,
coroas de baronesa
junto com flores de aninga,
e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila
(que o rio, aqui no Recife,
não seca, vai toda a vida).
[...] [Diálogo com Seu José, mestre car-
pina]
— Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.
— Seu José, mestre carpina,

74 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

e quando é fundo o perau?


quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar,
por que ao puxão das águas
não é melhor se entregar?
— Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira,

2
porque senão ele alaga

Aula
e devasta a terra inteira.
— Seu José, mestre carpina,
e em que nos faz diferença
que como frieira se alastre,
ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?
— Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.
— Seu José, mestre carpina,
e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais,
se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?
— Seu José, mestre carpina,
que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal
apodrece a sua vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada à vista?
— Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata,
mas tanto lá como aqui
jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de comprá-la.
— Seu José, mestre carpina,
e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho
que é cada dia adquirida?

UESC Módulo 5 I Volume 4 75


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

espera poder um dia


comprá-la em grandes partidas?
— Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga:
não é que espere comprar
em grosso tais partidas,
mas o que compro a retalho
é, de qualquer forma, vida.
— Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?
saiba mais

Segundo o profes- UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O


sor Benedito Nunes
(2007, p. 61), “É a
HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ
alegoria natalina do
pastoril, forma dra- — Compadre José, compadre,
mática folclórica arrai-
que na relva estais deitado:
gada ao estrato rural
de nossa sociedade, conversais e não sabeis
e particularmente ati- que vosso filho é chegado?
vo no Nordeste, que Estais aí conversando
se decompõe no Auto
de Natal pernambu-
em vossa prosa entretida:
cano”. Quando se es- não sabeis que vosso filho
tabelece a parte do saltou para dentro da vida?
auto dentro do Auto, Saltou para dento da vida
são retomados “os
tradicionais quadros e
ao dar o primeiro grito;
personagens do pas- e estais aí conversando;
toril ou pastoral [que pois sabei que ele é nascido.
podem ser reconheci-
dos cena a cena]: uma
mulher do povo substi- Desse momento em diante, “Severino retira-se da
tui o anjo da Anuncia-
ção; os vizinhos, com ação [...] e passa a presenciar uma outra – a comemoração
seus elogios, tomam natalina – representada para ele e apresentada ao espectador
o lugar dos anjos que
guardam e adoram o como um auto de Natal dentro do Auto propriamente dito
menino, e, com seus
presentes o dos reis
[...]” (NUNES, 2007, p. 61).
magos; o mocambo é Se, de um modo geral, a comemoração de recorte re-
o presépio do Menino-
Deus e seu José, São ligioso acaba servindo para uma acomodação e neutralização
José” (p. 62).
dos conflitos sociais, apontando para a transcedência da vi-
da, no caso do poema em estudo essa função ideológica não
se confirma. O que se apresenta é uma dimensão irônica e

76 Letras Vernáculas EAD


No Começo Eram os Autos... E Eles Continuam em Cena

crítica pela situação do contexto em que se dá o nascimento:


a criança nasce entre os habitantes pobres do mangue, “cujo
destino, segundo as previsões das ciganas que vêm ler-lhe a
sorte, partilhará da penúria comum” (NUNES, 2007, p. 63).
Essa penúria consiste na manutenção da vida severina até a vida
adulta, quando, então, o menino recém-nascido poderá elevar
sua condição para a de operário – continuará, sendo, portanto,

2
um trabalhador explorado.

Aula
[...] (Fala de uma das ciganas:)

Minha amiga se esqueceu


de dizer todas as linhas;
não pensem que a vida dele
há de ser sempre daninha.
Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de ofício,
bem mais sadia que os mangues,
tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui, vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.

O que assim se desvela é o caráter de que essa “sina”,


esse “destino” da vida severina pode ser ultrapassado pela cons-
cientização dos fatores da opressão social. Dito de outro modo: no
provável percurso do retirante ao operário, denuncia-se o sistema
de exploração a que o trabalhador brasileiro, sobretudo o que fica

UESC Módulo 5 I Volume 4 77


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

abandonado de políticas públicas efetivas é submetido.

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE


ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA

— Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.

E não há melhor resposta


que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

assim encerra-se este auto, no qual o canto à vida


não se transforma em esperança acomodada: transforma-se
em conhecimento para a mudança, efetivado tanto por meio
da leitura quanto da representação cênica.

78 Letras Vernáculas EAD


NO COMEçO ERAM OS AUTOS... E ELES CONTINUAM EM CENA

ATIVIDADES

1. Sobre os autos vicentinos:


Leia o Auto da Barca do Inferno (disponível no site www.domi-
niopublico.br) e responda a partir da seguinte citação:

2
“Na obra vicentina, o realismo mais estreme

Aula
vizinha com a mais solta fantasia e com o
mais refinado simbolismo; semelhantemente,
de auto para auto, e com freqüência dentro
do mesmo auto, acotovelam-se personagens
irreais (mitológicas, alegóricas, lendárias) e
personagens diretamente arrancadas à vida
real [...]” (REBELO, 1991, p. 23).

a. Que personagens ligam-se à realidade – e o que


representam – e quais figuras cênicas são retiradas do
plano da fantasia?
b. De que modo esse jogo entre o real e a fantasia, da forma
como foi elaborado por Gil Vicente, permite que ele seja
considerado como “o último dramaturgo medieval e o
primeiro dramaturgo moderno” em Portugal (RABELO,
1991, p. 25)?

2. Sobre Morte e vida Severina:


Escute a música “Funeral de um lavrador”, composta por Chico
Buarque com versos de Morte e vida Severina e responda:

a. Qual é o tema central da música? Esse tema pode ser


considerado como um dos pontos fundamentais da
crítica à realidade social presente no auto de João Cabral
de Melo Neto? Explique:

b. Releia o diálogo entre Severino e mestre carpina; que


resposta, no âmbito de uma perspectiva sociológica e/
ou histórica, você daria a seguinte questão colocada pelo
protagonista?

UESC Módulo 5 I Volume 4 79


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

— Seu José, mestre carpina,


que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?

3. Vamos conhecer, em linhas gerais, outro importante


auto da literatura brasileira: O auto da compadeci-
da, de Ariano Suassuna. Para isso: Leia o texto, veja
o filme.

Do mesmo modo que o texto de João Cabral de Melo


Neto, esse auto também foi escrito na década de 1950 e tema-
tiza a situação da desigualdade social brasileira, com enfoque
sobre a região nordestina. O texto gira em torno da dupla João
Grilo e Chicó, suas aventuras e desventuras, e culmina numa
representação alegórica do Juízo Final, cena na qual intercede
Nossa Senhora, sobretudo em favor dos humildes e humilha-
dos.

a. Selecione trechos em que se percebe a perspectiva crí-


tica do texto em relação: à corrupção dos representan-
tes da igreja; à situação de exploração do homem pobre
nordestino; ao autoritarismo da figura dos coronéis; ao
sentido de violência quando há desassistência do Esta-
do:
b. Elabore um comentário sintético sobre esta obra dra-
mática, confirmando a seguinte afirmativa: em O auto
da compadecida, “a concepção de mundo aproxima e
mescla o elevado e o rebaixado, o popular e o erudito, as
hierarquias sociais, o divino e o humano, o sagrado e o
profano” (BROSE, 2010, p. 65):
c. Aproxime a resposta anterior com as principais carac-
terísticas do teatro vicentino e responda: também neste
texto de Ariano Suassuna encontramos um legado do
teatro de Gil Vicente? Explique:

80 Letras Vernáculas EAD


NO COMEçO ERAM OS AUTOS... E ELES CONTINUAM EM CENA

RESUMINDO

Nesta aula, estudamos os principais aspectos das pri-


meiras expressões da arte literária dramática em língua por-
tuguesa, autos de Gil Vicente. A partir do reconhecimento
dos aspectos mais importantes da dramaturgia vicentina,

2
podemos estabelecer relações com autos contemporâneos,

Aula
destacando-se o poema dramático Morte e vida Severina, de
João Cabral de Melo Neto, bem como o Auto da Compade-
cida, de Ariano Suassuna.

REFERêNCIAS

ARAÚJO, Adriana de F. B. A oposição sertão/cidade do


ponto de vista do retirante de Morte e vida Severina. Dis-
ponível em:
www.letras.ufrj.br/ciencialit/garrafa11/v1/adrianaaraujo.
html. Acesso em ago. 2012.
BROSE, Elizabeth R. Z. O auto da compadecida – trans-
textualidade do sério-cômico. In: MITIDIERI, André Luis;
SILVA, Denise Almeida (Orgs). Texto dramático. Frederi-
co Westphalen: URI;FW, 2010.
GERVÁSIO, Tharlles Lopes. Cadernos do CNLF, Vol. XV,
Nº 5, t. 1. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011, p. 156.
NUNES, Benedito. João Cabral: a máquina do poema. Or-
ganização e prefácio de Adalberto Müller. Brasília: Editora
da Universidade de Brasília, 2007.
REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1991.
RIBEIRO JR., W. A. Aristófanes. Portal Graecia Antiqua,
São Carlos. Disponível em www.greciantiga.org/arquivo.
asp?num=0196. Acesso em: 25/10/2012.

UESC Módulo 5 I Volume 4 81


Suas anotações

...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
..................................................................................................................
..................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
....................................................................................................................
aula

O RISO SÉRIO DAS


COMÉDIAS E SEUS
DESDOBRAMENTOS

Objetivo:

• Reconhecer os aspectos mais importantes do gênero


comédia no Classicismo português, com destaque para
as obras de Sá de Miranda, Camões e António José
da Silva. Compreender as principais características da
comédia brasileira no séc. XIX.
O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

3
1 introdução

Aula

Nesta aula, estudaremos os aspectos mais relevantes
da comédia, introduzida em Portugal por Sá de Miranda, no
século XVI, e desenvolvida também por Camões. Posterior-
mente, colocaremos em cena a situação da literatura dramá-
tica portuguesa quando a Inquisição era uma infeliz realidade
para a sociedade portuguesa do século XVII, contexto em
que António José da Silva, o Judeu, produziu importantes
obras teatrais. Por fim, apresentamos as questões mais rele-
vantes relacionadas às comédias brasileiras de Martins Pena e
Artur de Azevedo.

2 a comédia no classicismo português

Em linhas muito gerais, sabemos que no Renasci-


mento se torna mais fraco o domínio eclesiástico na cultu-
ra. A burguesia começa a frequentar as Universidades e, aos
poucos, vão arrefecendo os valores medievais e afirmam-se
valores novos, como antropocentrismo, e nova perspectiva
econômica no sistema capitalista que iniciava, com o mer-
cantilismo.

UESC Módulo 5 I Volume 4 85


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Nesse contexto, desenvolveu-se o Classicismo, com a


retomada da mitologia pagã, da perfeição estética, da pureza
das formas. A Antiguidade, os valores greco-romanos passam
a definirem-se como marcos para os ideais do Bem, da Beleza
e da Verdade, assim grafados em maiúsculas como essências a
serem alcançadas pela imperfeição humana. A natureza, nesse
quadro, torna-se símbolo da plena harmonia do Universo e es-
paço.
Em Portugal, o início do Classicismo registra-se em
1527, com retorno do escritor Sá de Miranda da Itália, quando
introduziu o novo conceito de poesia: o chamado doce estilo
novo, ou medida nova: trata-se do verso decassílabo (já usado
por Dante e Petrarca), e de outras formas poéticas de origem
clássica, como os sonetos, as odes (de exaltação), as éclogas
(amorosas, pastoris), as epístolas, entre outras. Por esse retor-
no ao mundo clássico, Sá de Miranda intenta renovar a arte
dramática portuguesa, contrapondo-se ao teatro vicentino:
propondo a superação do teatro simples e com traços ainda
medievais, escreve comédias de acordo com a tendência nor-
mativista da leitura sobre a Poética, de Aristóteles.
Com igual sentido de retomada do mundo clássico, Ca-
mões desenvolveu comédias que, no entanto, não se igualaram à
sua reconhecida obra lírica e à grandiosidade d’Os Lusíadas. Essas
comédias camonianas foram denominadas de Autos, mas, ao con-
trário dos textos de Gil Vicente, balizaram-se pelas normas clássi-
cas.

2.1 O Renascimento Português e a Comédia de Sá


de Miranda e de Camões

Francisco Sá de Miranda nasceu em 1481 e morreu em


1558. Fidalgo, gozava de regalias na Corte, mas viveu a maior
parte de sua vida na quinta, como dizem os portugueses (ou
seja, na fazenda ou sítio = propriedade rural) de Tapada, no

86 Letras Vernáculas E AD
O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

Minho. Formado em Direito, deixou a convivência urbana e


refugiou-se no Português rural em função de incompatibi-
lidades com membros do governo monárquico. Passou, en-
tão, a criticar a felicidade fácil advinda do grande comércio,
que, segundo ele, deixava o setor produtivo desamparado,
além de ser também um crítico das guerras de colonização
(África), dispendiosas e que não visavam nada mais do que
o enriquecimento da Corte e da Igreja (SARAIVA; LOPES,
1999).
Dentre suas comédias, destaca-se a peça Os Estran-
geiros. Para acompanhar o estudo a seguir, acesse o site:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/

3
pv000004.pdf>.

Aula
Você encontrará a versão integral do texto e a sua lei-
Figura 8: Sá de Miranda
tura será fundamental para o bom êxito desta nossa aula. Fonte: http://www.ovilaverdense.
com/images/stories/sa%20miranda.

Vejamos alguns tópicos importantes: jpg

• A ação se localiza na Itália convencional, representan-


do o mundo corrupto que nela se agita (amores com-
prados/fingidos, com alcoviteiras, cortesãs, militares
fanfarrões, criados astuciosos e crédulos enamora-
dos), mas retrata, como aparece no Prólogo, o que é
próprio da Comédia: “uma pintura da vida comum”,
que por artifício estlístico, transporta-se, aplica-se ao
mundo português da primeira metade do século XVI.
Existe a polêmica sobre até que ponto as propostas de
Sá de Miranda não seriam uma provocação direta aos
Autos de Gil Vicente, contra sua popularidade, pois,
na dedicatória do autor ao Infante Cardeal Dom Hen-
rique, deixou registrado que “a Comédia qual é, tal vai,
aldeã e mal ataviada”.
• Propondo-se a seguir as normas estabelecidas para a
comédia, Sá de Miranda adaptou seu texto do seguinte
modo:

UESC Módulo 5 I Volume 4 87


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

• Das partes qualitativas:


1. Mito, ou seja, o enredo das ações: trata-se do caso de
Truão - sm.: amor de Amente por Lucrécia, cortejada pelo Doutor
1 Saltimbanco que,
na Idade Média, di- que tem posses e é velho. Em meio à situação de ins-
vertia o público com
graças e momices.;
tabilidade na Itália, o protagonista e seu aio são espa-
2 Indivíduo, ger. de nhóis (os estrangeiros), e, depois, fica-se sabendo que
aparência grotesca,
empregado pelos reis também é esse o caso de Lucrécia. O romance não é
da Antiguidade para
visto com bons olhos pelo aio, que sabe o quanto o
divertir a corte com
graças e zombarias; pai vai censurar o rapaz por gastar dinheiro ao invés
BOBO; BUFÃO.: “Na-
quela época, o cargo de prosseguir sua viagem (está de passagem pela Itá-
de truão correspondia lia). O protagonista, entretanto, conta com o auxílio
até certo ponto ao dos
censores da república de Calídio, que propõe artimanhas para que ele engane
romana.” (Alexandre
Herculano, O bobo);
o pai. Procurando tirar lucro da situação, aparecem os
3 Ator cômico que intermediários do casamento de Lucrécia: as alcovitei-
geralmente trabalha
com gestos espalha- ras, o truão Devorante, outros servidores. Como rival
fatosos e faz comici-
dade de caráter sim-
de Amente, aparece Briobris, soldado romano fanfar-
ples, popular; 4 Bobo, rão, que não ganha nada com a história. O final é fe-
palhaço: “Não tinha
rosto com que apare- liz, sendo o castigo devido a Amente por parte do pai
cer, nem roupas - bu-
recebido por Calídio. Outro desdobramento releva-se
fão, truão, tranca...”
(guimarães Rosa, ‘ sobre a situação de Lucrécia: ela era protegida do Dou-
Darandina’, in Primei-
ras estórias); 5 Indi- tor que abusou de sua situação de protetor, querendo
víduo inconveniente, casar-se com a moça; no final, contudo, ela reencontra
dado a graçolas.
Fonte: Dicionário Au- o pai que a procurava e fica livre para receber Amente.
lete Digital.
A ação é fragmentada e o enredo básico apresenta as
oposições entre amor x dinheiro, moralidade x ines-
crupulosidade, ser x parecer. A comicidade, a partir do
enredo das ações, se dá pela sátira aos costumes, no
embate dessas oposições apontadas, a partir dos recur-
sos empregados como, principalmente, as conversas
paralelas, nas quais se complementam jogos de duplo
sentido. No final, porém, prevalece a virtude, o amor
genuíno.
2. Caracteres e Pensamento: os personagens, em geral,
são homens inferiores: inferioridade por falha, que le-
va ao ridículo. No caso de Amente, sua falha é o amor

88 Letras Vernáculas EAD


O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

desmedido, inconsequente e quem paga por seus erros


é Calídio, pois, afinal, o criado é que demonstrou ver-
dadeira falta de caráter.
Enquanto comédia de costumes, os personagens são
tipificados, como é o caso do Doutor, que parece an-
tecipar uma das personagens da Comédia Dell’Arte:
representa o tipo pedante, vaidoso e com certa dose
de ingenuidade, uma mistura de fanfarrão e bufão;
além dele, há Calídio como uma espécie de Arlequim:
pertencente ao grupo dos criados, é ao mesmo tempo
esperto e estúpido; e, ainda, os demais intermediários
casamenteiros e o soldado fanfarrão.

3
Lucrécia, que é o mote de toda a ação, nunca aparece

Aula
em cena: ou seja, como objeto de desejo do herói, bas-
ta que seja indicada.
Os duplos, que provocam o humor, se estabelecem
nas oposições de complementaridade de caráter en-
tre os amos e os servos: Amente/Cassiano; Galbano/
Vidal; Amente/Calídio - e entre os próprios criados:
Calídio - impostura; Cassiano: sobriedade na manu-
tenção da tradição.
A comicidade pelos caracteres também se apresenta na
gula de Devorante (como já indica o nome - e é tam-
bém gula por conseguir viver de favores) e na fanfar-
ronice de Briabris, o soldado (a base de Sá de Miranda,
aqui, é Plauto e sua obra O soldado fanfarrão, na qual
o personagem tem uma arrogância proporcional a sua
falta de inteligência.

3. Elocução - recursos da fala provocadores do riso: nes-


se caso, há os jogos de palavras e sentidos, como são
exemplos o diálogo de Alda e Ambrósia, que Cassiano
escuta e comenta de forma “complementar, bem como
na trova de Devorante, gozando das surras de Calídio,
mas falando em sentido figurado, entre muitos outros.

UESC Módulo 5 I Volume 4 89


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Também não se deve deixar de notar que o latim do


Doutor marca seu pedantismo e, ao mesmo, sua po-
sição social. E há os sentidos que ficam subtendidos,
como os de conotação sexual (reler, na página 25 do
referido site, especialmente, a passagem em que Cas-
siano comenta a carta de Lucrécia).

Com relação às partes quantitativas, podemos ve-


rificar que se trata de uma comédia em cinco atos, com a
seguinte distribuição:
• A já mencionada “DEDICATÓRIA”, na qual consta
a defesa do autor pela comédia e um jogo de senti-
dos com o título e situação dos estrangeiros. A peça
é dedicada ao Infante Cardeal Dom Henrique, filho
de D. Manuel e tio-avô de D. Sebastião, que subiu ao
trono em 1578, dois anos antes da chamada Unifica-
ção Ibérica (eufemismo empregado para a situação do
domínio da monarquia espanhola sobre a portuguesa,
que foi de 1580 a 1640).
• O referido PRÓLOGO: da tradição latina, como em
Plauto, tem a função de situar a ação, mas não antecipa
acontecimentos. Também como o autor latino, é qua-
se uma “poética’ da comédia (ou seja, funciona como
a chamada Parabase), pois há um comentário sobre o
possível receio do público português com a novidade
da Comédia, há esclarecimentos sobre a posição do
autor em relação às guerras e à situação de Portugal –
que vivia uma fragilizada situação de paz, e a referên-
cia crítica aos Autos, compreendidos como criações
dramáticas esgotadas (o que, como mencionado, aca-
ba sendo uma efetiva crítica a Gil Vicente). Ainda no
Prólogo, o autor situa a ação em Palermo, na Itália,
mas afirma língua portuguesa.
• Os EPISÓDIOS desenrolam-se com a presença de
párodos (coros) estilizados, que parecem ser a função

90 Letras Vernáculas E AD
O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

dos solilóquios (cenas em que personagens ficam so-


zinhos no palco) como na cena 2 do Ato 1, ou 5 do
Ato 5, por exemplo.
• O ÊXODO: ou seja, o final da ação, com a cena 7 e o
comentário do REPRESENTADOR.

Apesar da sua proposta de renovar o teatro portu-


guês seguindo o que havia de mais atual no seu tempo sobre
a literatura dramática, a maioria dos historiadores e críticos
da Literatura Portuguesa considera que Sá de Miranda aca-
bou criando um texto muito atrelado às normas e, por isso,
marcado por certa artificialidade de estilo. Assim, mesmo

3
reconhecendo-se as louváveis intenções do autor, ele não

Aula
conseguiu superar o teatro tão vivo e espontâneo de Gil Vi-
cente.

Por sua vez, Luis de Camões escreveu os textos Fi- para conhecer
lodemo; Anfitriões e El-rei Seleuco. Reunidas no livro Teatro
Completo (2005), a prefaciadora Theresa Passos esclarece
que, nessas peças, definidas como Autos pelo autor, «Ca-
mões escolheu para os seus textos dramáticos a estrutura do
auto peninsular, entrelaçando nesta elementos estilísticos e
formais tomados de outras fontes» (p. 9-10).
O tema central das três peças é o mais recorrente para
o poeta português: o amor. De modo geral, os textos variam
diálogos em verso e em prosa e não apresentam divisões en-
Figura 9: Luiz de Camões
tre atos ou cenas. No caso de El-rei Seleuco, por exemplo, a Fonte: pt.wikipedia.org

Para leitura dos textos


prosa estende-se pela terça parte da peça: “Assim, ainda que dramáticos camonia-
a temática seja inspirada em temas clássicos, Camões pro- nos, acessar os seguin-
tes links: para Filode-
cura fazer uma estruturação formal que ultrapasse as fontes mo: http://www.nead.
unama.br/biblioteca-
de todo o teatro, inclusive aquele que obedecia às conven- virtual/livros/pdf/Auto-
ções do seu tempo” (PASSOS, disponível em: triplov.com/ ChamadodeFilodemo.
pdf; para a leitura de
letras/teresa_ferrer/camoes.htm). El-rei Seleuco: http://
www.falares.hpg.com.
Sobre esse aspecto, devemos entender que, como
br.
dramaturgo, Camões procurou “conciliar os dois espíritos

UESC Módulo 5 I Volume 4 91


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

da Idade Média e da Renascença, pelo modo como aliou as


formas populares do auto [...] com temas mitológicos imi-
tados pelos autores greco-romanos” (BRAGA, citado por
REBELLO, 1991, p. 33). De todo modo, em sua obra, fica
muito clara a superação da vontade dos deuses pela ideia da
força da natureza – perspectiva claramente renascentista.
Outro registro importante é sobre a língua, no caso,
as línguas utilizadas por Camões nos seus textos dramáti-
cos: “é curioso como usa indiferentemente o português ou o
castelhano (línguas faladas oralmente, sem distinção, entre
camadas populares, nobres e também igualmente utilizadas
pelos escritores)” (PASSOS).
Sobre a forma como foram divulgadas essas obras,
é interessante sabermos (PASSOS) que tanto Anfitriões
quanto Filodemo foram impressos somente sete anos após
a morte do autor “e inseridos numa colectânea com vários
outros dramaturgos seus contemporâneos como António
Prestes ou Anrique Lopes… E El-Rei Seleuco é apenas
publicado por Paulo Craesbeeck em 1645, sessenta e cinco
anos após a morte de Luís de Camões”.

saiba mais

“Os Anfitriões datam, ao que se crê, dos anos de estudante [de Camões] na Uni-
versidade de Coimbra, cujos estatutos [exigiam] a representação anual obrigatória
de uma comédia de Plauto ou Terêncio. Tais representações tê-lo-iam levado a eleger
o tema de uma das mais célebres comédias plautinas [...]. Uma narração de Plutarco
(que Camões teria conhecido através de referência que lhe é feita no Espelho dos ca-
sados de João de Barros, impresso em 1540), e talvez os Trionfi, de Petrarca, estão
por sua vez na base de El-rei Seleuco, representado em Lisboa entre 1542 e 1549,
em casa de um fidalgo da Corte de D. João III. Quanto ao Filodemo, que se sabe
ter sido levado à cena na Índia, em 1555, por ocasião das cerimônias de investidura
do governador Francisco Barreto, é uma comédia romanesca [...]. De estrutura mais
complexa que as suas antecessoras, nos seus cinco actos contesta-se sutilmente o
‘regimento do mundo’, estigmatizam-se as diferenças de casta e opõe-se ao amor
contemplativo o amor “pela activa”, que zomba das hierarquias e dos preconceitos
– ao mesmo tempo que por eles fluentemente circula aquele admirável lirismo que
impregna toda a obra do maior poeta de que a história da literatura porruguesa se
ufana” (REBELLO, 1991, p. 33).

92 Letras Vernáculas EAD


O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

O que realmente se destaca, entretanto, e o que deve-


mos ter bem presente em relação à literatura dramática camo-
niana, é que suas peças foram marcadas por “qualidades humo-
rísticas e sarcasmo social [...] para fazer uma inclemente crítica
social aos costumes e aos modos de ser da sociedade do seu
tempo” (PASSOS). De todo modo, foram obras da juventude
do autor e, como a maioria dos críticos reconhece, não chegou
a alcançar o brilho de sua lírica e de sua épica.

2.2 As comédias de António José da Silva, O


Judeu

3
Aula
Antônio José da Silva, o Judeu (Rio de Janeiro, 1705/
Lisboa, 1739), foi um importante nome do teatro português
do século XVIII, considerado autor de óperas de cunho popu-
lar. Sua obra, de tons cômicos e críticos, desenvolveu-se numa
época de difíceis e complexas relações em Portugal: enquanto
na Europa anunciava-se e afirmava-se o luminismo e Libera-
lismo, nas terras portuguesas a Inquisição atravessava os mo-
mentos mais cruentos de sua História, perseguindo judeus e
cristãos-novos.
Esse era o período de reinado de D. João V, cuja corte
vivia de maneira luxuosa, com ostentação, alimentando-se “dos
fabulosos lucros do ouro do Brasil. Esta [aparência de riqueza]
ofuscava, na verdade, as misérias de uma sociedade desestru-
turada do ponto de vista social e economicamente degradada”
(CARDOSO, 2008).
Nascido no Brasil, António José da Silva vinha de uma
família que aqui se refugiara do Santo Ofício: “durante algum
tempo milhares de judeus tinham vivido em paz em terras bra-
sileiras. Mas, em 1711, tinha António José seis anos, toda a sua
família é obrigada a abandonar o Rio de Janeiro e a regressar a
Portugal na seqüência de uma intensificação da atividade inqui-
sitorial [...]” (CARDOSO, 2008).

UESC Módulo 5 I Volume 4 93


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

saiba mais Em Coimbra, estudou na Faculdade de Direito, po-


O crítico Silvio Rome- rém não chegou a concluir os estudos, sendo encarcerado
ro, na sua História da
Literatura Brasileira, e duramente torturado pela Inquisição, já havia prendido
de1888, entendia que
António José da Silva
também sua mãe e irmão. Pouco se sabe de sua vida depois
deveria ser visto tam- disso; o que se registra é que, em 1733, no Teatro do Bairro
bém como autor brasi-
leiro; e Machado de As- Alto de Lisboa, “representa a sua primeira ópera, A vida do
sis concedeu a ele um
breve estudo, em 1879,
grande D.Quixote de La Mancha e do gordo Sancho Pança”
na Revista Brasileira, (CARDOSO, 2008).
defendendo sua espon-
taneidade e criativida- Devemos saber que o teatro espanhol, nesse período,
de, ainda que possuísse
vivia o que se passou a chamar seu “Siglo de Ouro” (Século
alguns desequilíbrios
em suas composições, de Ouro), e Portugal sentiu profundamente essa influência:
definidas pelo escritor
brasileiro como verda- “O teatro de A. J. da Silva não podia, pois, deixar de refle-
deiras farsas. tir influências notórias da comédia espanhola do séc. XVII,
nomeadamente dos seus maiores expoentes, Lope de Vega e
Calderon” (CARDOSO, 2008).

saiba mais

“Desde o período da dominação castelhana, que o pujante tea-


tro espanhol do Siglo de Oro se impusera em Portugal, aliás, um
pouco por toda a Europa, e a produção teatral de raiz nacional
era insignificante e muito influenciada pelo modelo espanhol.
Há mais de um século que, pelos pátios das comédias, (recintos
teatrais encaixados em espaços interiores do casario da cidade,
em forma de ferradura, nos quais o público se posicionava no
chão, em frente do palco, ou em galerias dispostas à volta do
espaço) passavam as companhias do país vizinho apresentando
um reportório que fazia grande sucesso junto do público popu-
lar, da burguesia e da nobreza arruinada que frequentavam o
Bairro-Alto” (CARDOSO, 2008)
Não deixe de ler, na íntegra, esse texto de João Paulo Seara
Cardoso. Disponível em:
<http://www.marionetasdoporto.pt/joao-paulo-seara-cardoso/73-ha-na-gloria-
padecer>.

As óperas joco-sérias, como António José da Silva


definia sua obra, eram apresentadas, via de regra, por mario-
netes – feitos de madeira, arame e cortiça, as personagens
ganhavam vida. Com esse tipo de proposta cênica, o Judeu
consolida-se como um autor barroco, pois:

como criador vive em pleno o espírito dos

94 Letras Vernáculas EAD


O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

tempos e, assim, aspira a uma nova arte


teatral, menos vinculada à retórica e mais
voltada para o deleite dos sentidos, que
marcará definitivamente o teatro portu-
guês. É na forma e na estrutura dramática
que o Judeu inova. Por um lado escre-
vendo em prosa, uma novidade [...]; por
outro, incorporando a música na intriga
dramática, criando um modelo original
de transição entre a comédia espanhola e
o melodrama italiano e dando início, de
forma incipiente, ao projeto da ópera na-
cional (CARDOSO, 2008).

No teatro de António José da Silva, as marcas do

3
Barroco se (re)apresentam por meio “do recurso ao mara-

Aula
vilhoso, de diálogos engenhosos ao serviço de intrigas que
propiciam malabarismos de ilusão que deleitam os especta-
dores e os surpreendem a cada passo” (CARDOSO, 2008).
Uma curiosidade importante, que marca a obra desse
singular dramaturgo português, é o fato de suas peças não
terem sido editadas por ele:

Ainda em vida do autor seriam publica-


das, por Isidoro da Fonseca, o Labirinto
de Creta (1736), as Variedades de Proteu e
as Guerras de Alecrim e Manjerona, ambas
em 1737. Após a sua morte, o editor Fran-
cisco Luís Ameno, homem culto da Lisboa
setecentista, poeta, conhecedor de línguas
e tradutor de Goldoni e Metastásio, viria a
fazer justiça à grandeza de António José,
reunindo, em 1744, toda a sua obra em
dois volumes intitulados Teatro Cómico
Português (CARDOSO, 2008).

Nesse processo de publicação, estudos posteriores


demonstraram que há diferenças significativas entre o tex-
to original do autor e as posteriores edições de sua obra,
abrandadas dos termos fortes e licenciosos que divertiam o
público.

UESC Módulo 5 I Volume 4 95


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

você sabia? Em 18 de outubro de 1739, depois de nova e pro-


... que Antônio José ou
o poeta e a inquisição,
longada prisão e tortura, António José da Silva foi morto,
de Gonçalves de Ma- queimado, como era praxe nas cerimônias macabras do San-
galhães, foi “a primei-
ra tragédia de assunto to Ofício. Entretanto sua obra manteve-se viva e autores
nacional, representada
como Gonçalves de Magalhães (António José ou o Poeta e
por companhia nacional
(João Caetano estreou a Inquisição, de 1836), Camilo Castelo Branco (O Judeu,
o espetáculo em 1838)
[e que] adaptava ao novela histórica de 1866) e Bernardo Santareno (O Judeu,
Brasil as lições do Ro- teatro épico de 1966), entre outros escritores, trataram des-
mantismo”? (MAGALDI,
2004, p. 13). se autor-personagem com a atenção e a justiça merecida.

leitura recomendada
Para aprofundar o seu
3 A COMÉDIA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX
conhecimento sobre
este importante autor
do teatro português, 3.1 A crítica de costumes de Martins Pena e de
recomendamos a leitu-
Artur de Azevedo
ra de Concerto barroco
às óperas do Judeu, de
Francisco Maciel Silvei-
ra (São Paulo: Pers- Luis Carlos Martins Pena (Rio de Janeiro, 5 de no-
pectiva, 1992). Nesse
vembro de 1815 — Lisboa, 7 de dezembro de 1848) inicia
texto são discutidas
as várias facetas do sua dramaturgia com a comédia de costumes, e costumes
Judeu, inclusive ques-
tionando a possibilida- de um Brasil ainda muito rural, como são exemplos os seus
de de ter sido o dra- títulos O Juiz de paz na roça; A família e a festa na roça,
maturgo não um herói
destemido contra as podendo-se reconhecer nesses textos, que obtiveram grande
forças da reação con-
servadora (do Estado
sucesso de público, a forma desse viver na roça, as comidas,
e da Igreja), mas um os hábitos de convivência e seus falares. Mais tarde, em suas
homem marcado pe-
las contradições de peças, “o campo cede lugar à cidade, a descrição cuidadosa
seu tempo, que, enfim,
sempre concluía seus
ao movimento e teatralidade, a comédia de costumes à farsa
textos com finais feli- (COUTINHO, 2004, p. 15).
zes.
Para muitos críticos, a importância desse autor foi
a de ter descrito tipos que marcaram a tradição do teatro
cômico popular brasileiro: “o matuto ingênuo, o estrangeiro
esperto e embromador, a velha ranzinza, o malandro simpá-
tico ficaram para sempre em nossos palcos”.
Selecionamos, a seguir, um trecho da comédia Quem
casa quer casa, de 1845:

96 Letras Vernáculas EAD


O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

QUEM CASA, QUER CASA


Provérbio em 1 ato
A cena passa-se no Rio do Janeiro, no ano de 1845.
ATO ÚNICO
Sala com uma porta no fundo, duas à direita e duas à esquerda; uma mesa com o que
é necessário para escrever-se, cadeiras, etc.
CENA I
PAULINA e FABIANA. PAULINA junto à porta da esquerda e FABIANA no meio
da sala mostram-se enfurecidas.

PAULINA, Hei de mandar!...


batendo o pé
FABIANA, Não há de mandar!

3
no mesmo

Aula
PAULINA, Hei de e hei de mandar!...
no mesmo
FABIANA Não há de e não há de mandar!...
PAULINA Eu lhe mostrarei. (Sai.)
FABIANA Ai, que estalo! Isto assim não vai longe....... Duas senhoras a
mandarem em uma casa.... é o inferno! Duas senhoras? A se-
nhora aqui sou eu; esta casa é de meu marido, e ela deve obe-
decer-me, porque é minha nora. Quer também dar ordens; isso
veremos...
PAULINA, Hei de mandar e hei de mandar, tenho dito! (Sai.)
aparecendo à porta
FABIANA, arre- Hum! Ora, eis aí está para que se casou meu filho, e trouxe a
pelando-se de raiva mulher para a minha casa. É isto constantemente. Não sabe o
senhor meu filho que quem casa quer casa... Já não posso, não
posso, não posso! (Batendo com o pé:) Um dia arrebento, e
então veremos! (Tocam dentro rabeca.) Ai, que lá está o outro
com a maldita rabeca... É o que se vê: casa-se meu filho e traz a
mulher para minha casa.... É uma desavergonhada, que se não
pode aturar. Casa-se minha filha, e vem seu marido da mesma
sorte morar comigo... É um preguiçoso, um indolente, que para
nada serve. Depois que ouviu no teatro tocar rabeca, deu-lhe a
mania para aí, e leva todo o santo dia – vum, vum, vim, vim! Já
tenho a alma esfalfada. (Gritando para a direita:) Ó homem,
não deixarás essa maldita sanfona? Nada! (Chamando:) Olaia!
(Gritando:) Olaia!

UESC Módulo 5 I Volume 4 97


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

CENA II
OLAIA, entrando Minha mãe?
pela direita
FABIANA Não dirás a teu marido que deixe de atormentar-me os ouvidos com
essa infernal rabecada?

OLAIA Deixar ele a rabeca? A mamãe bem sabe que é impossível!

FABIANA Impossível? Muito bem!..

OLAIA Apenas levantou-se hoje da cama, enfiou as calças e pegou na


rabeca – nem penteou os cabelos. Pôs uma folha de música
diante de si, a que ele chama seu Trêmolo de Bériot, e agora
verás – zás, zás! (Fazendo o movimento com os braços.) Com
os olhos esbugalhados sobre a música, os cabelos arrepiados,
o suor a correr em bagas pela testa e o braço num vaivém que
causa vertigens!

FABIANA Que casa de Orates é esta minha, que casa de Gonçalo!


OLAIA Ainda não almoçou, e creio que também não jantará. Não ouve
como toca?

FABIANA Olaia, minha filha, tua mãe não resiste muito tempo a este mo-
do de viver...
OLAIA e estivesse em minhas mãos remediá-lo...
FABIANA Que podes tu? Teu irmão casou-se, e como não teve posses para
botar uma casa, trouxe a mulher para a minha. (Apontando:) Ali
está ela para meu tormento. O irmão dessa desavergonhada vinha
visitá-la frequentemente; tu o viste, namoricaste-o, e por fim de
contas casaste-te com ele... E caiu tudo em minhas costas! Irra,
que arreio com a carga! Faço como os camelos...
OLAIA Minha mãe!
FABIANA Ela, (apontando) uma atrevida que quer mandar tanto ou mais
do que eu; ele, (apontando) um mandrião romano, que só cuida
em tocar rabeca, e nada de ganhar a vida; tu, uma pateta, inca-
paz de dares um conselho à boa jóia de teu marido.
OLAIA Ele gritaria comigo...

98 Letras Vernáculas EAD


O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

FABIANA Pois grita tu mais do que ele, que é o meio das mulheres se faze-
rem ouvir. Qual histórias! É que tu és uma maricas. Teu irmão,
casado com aquele demônio, não tem forças para resistir à sua
língua e gênio; meu marido, que como dono da casa podia pôr
cobro nestas coisas, não cuida senão na carolice: sermões, terços,
procissões, festas, e o mais disse, e sua casa que ande ao Deus da-
rá... E eu que pague as favas! Nada, nada, isto assim não vai bem;
há de ter um termo... Ah!

Nessas duas cenas temos uma síntese do que foi em


parte o teatro de Matins Pena: oposições dramáticas basea-

3
das em brigas, em insultos, falta de compostura. “A comba-

Aula
tividade é, de resto, a maior arma destas criaturas medíocres
em tudo, exceto em discutir, enganar, em mentir, em usar
expedientes escusos” (COUTINHO, 2004, p. 15).
Outro nome importante desse período foi o de Ar-
tur Nabantino Gonçalves de Azevedo (São Luís, 7 de julho
de 1855 — Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1908). Segundo
alguns críticos, Artur de Azevedo “já nasceu homem de te-
atro. Aos nove anos escreveu e representou, com os irmãos,
o seu primeiro drama, aos onze a sua primeira tragédia [...].
Aos vinte anos, [...] adapta aos costumes brasileiros uma
opereta do autor francês Lecocq, sob o título de a Filha de
Maria Angu [...]” (COUTINHO, 2004, p. 25). A peça foi
um sucesso e marcou a obra do autor; pois, a partir desse su-
cesso, seus textos, de modo geral, baseavam-se em enredos
fáceis, de atos ligeiros e burlescos, mas, se assim agradavam
o público menos exigente, nem por isso deixou de represen-
tar grande vivacidade com seus improvisos.
Dentre seus textos mais conhecidos, destaca-se A
capital federal, encenada em 1897. Destacamos a seguinte
passagem desse texto:

UESC Módulo 5 I Volume 4 99


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

A CAPITAL FEDERAL
ATO I
Quadro I

(Suntuoso vestíbulo do Grande Hotel da Capital Federal. Escadaria ao fundo. Ao


levantar o pano, a cena está cheia de hóspedes de ambos os sexos, com malas nas
mãos, e criados e criadas que vão e vêm. O gerente do hotel anda daqui para ali na
sua faina.)

— Cena I —
Coro e Coplas - De esperar estamos fartos
Os Hóspedes Nós queremos descansar!
Sem demora aos nossos quartos
Faz favor de nos mandar!
Os Criados
De esperar estamos fartos!
Precisamos descansar!
Um hotel com tantos quartos
O topete faz suar!
Um Hóspede Um banho quero!
Um Inglês Aoh! Mim quer come!
Uma Senhora Um quarto espero!
Um Fazendeiro Eu estou com fome!
O Gerente Um poucochinho de paciência!
Servidos todos vão ser, enfim!
Eu quando falo, fala a gerência!
Fiem-se em mim!
Coro Pois paciência, uma vez que assim quer a gerência!
Coplas - O Gerente
—I—
Este hotel está na berra!
Coisa é muito natural!
Jamais houve nesta terra
Um hotel assim mais tal!
toda a gente, meus senhores,
Toda a gente, ao vê-lo, diz:
Que os não há superiores

100 Letras Vernáculas E AD


O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

Na cidade de Paris!
Que belo hotel excepcional
O Grande Hotel da Capital Federal!
Coro Que belo hotel excepcional, O Grande Hotel da Capital Fe-
deral!
O Gerente
— II —
Nesta casa não é raro
Protestar algum freguês:
Acha bom, mas acha caro
Quando chega o fim do mês.
Por ser bom precisamente,

3
Se o freguês é do bom-tom

Aula
Vai dizendo a toda a gente
Que isto é caro mas é bom.
Que belo hotel excepcional!
O Grande Hotel da Capital Federal!
Coro Que belo hotel excepcional, etc...
O Gerente Vamos! Vamos! Aviem-se! Tomem as malas e encaminhem
(Aos criados.) estes senhores! Mexam-se! Mexam-se!...
(Vozeria. Os hóspedes pedem quartos, banhos, etc... Os criados respondem. Tomam as
malas, saem todos, uns pela escadaria, outros pela direita.)

Este texto, em sua versão integral, também se en-


contra disponível no site www.dominiopublico.gov.br e será
muito importante que você realize esta leitura para com-
preender devidamente que, ao reunir variados tipos - “o
fazendeiro simplório, deslumbrado com a cidade, presente
nos palcos de Martins Pena; a mocinha ingênua; a cocote es-
panhola” (COUTINHO, 2004, p. 27), Artur de Azevedo,
aliando o estilo de vaudeville francês (teatro de variedades)
à farsa brasileira, conseguiu unificar sua obra com intensa
teatralidade. Sobretudo, entretanto, é importante reconhe-
cer que, com seus textos, fechava-se a cena do século XIX:

UESC Módulo 5 I Volume 4 101


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

[Com o final do século XIX] o teatro,


minado pela concorrência do cinema,
do gramofone, do rádio, do esporte, irá
perder sua importância como centro da
vida social do país, lugar onde as mulheres
exibiam-se, os homens tramavam negócios
ou discutiam política, e onde a opinião
pública, nos intervalos ou no término do
espetáculo, tinha ensejo de se manifestar
livremente, transformando os camarotes
e frisas em outras tantas tribunas popu-
lares, como na campanha abolicionista
(COUTINHO, 2004, p. 27).

saiba mais
Um nome singular na dramaturgia do século XIX foi o do escritor gaúcho José Joaquim de
Campos Leão, mais conhecido por seu pseudônimo Qorpo-Santo, “que ficou esquecido por
cem anos, quando descobriu-se um autor original, de perspectiva moderna e olhar crítico.
Foi precursor do Teatro do Absurdo e esteve muito além de seu tempo. Torna-se professor
primário passa a lecionar em escolas públicas, fixando-se na capital da província. Também
chega a exercer a função de delegado de polícia. Em 1862, as autoridades escolares passam
a suspeitar de sua sanidade mental, e Qorpo-Santo é obrigado a internar-se. Em 1868 é
considerado inapto para continuar lecionando e também para a administração de seus bens
e família. Em jornal que ele mesmo funda, A Justiça, protesta veementemente contra a de-
cisão da justiça, que o torna inapto. No mesmo período cria a Enciclopédia ou Seis Meses de
Uma Enfermidade, composta por nove tomos, dos quais só se conhecem seis atualmente.
é considerado um trabalho revolucionário e desnorteante na época. No IV volume, publica
todas as suas comédias que hoje conhecemos. A Edição, impressa em tipografia própria, foi
lançada em 1877. Qorpo-Santo rompeu com os padrões da época e, no provinciano final do
século XIX, esteve mais próximo de nossos tempos, do que no qual viveu”
Fonte: http://www.encontrosdedramaturgia.com.br/?page_id=987.

ATIVIDADES

1. Comparando a forma (a organização das partes, a pro-


posta cênica – personagens, cenários etc.) da comédia
As nuvens, de Aristófanes, com Os estrangeiros, de Sá
de Miranda, ou Filodemo, de Camões, encontram-se
muitas similaridades? Comente.

2. Desenvolva um comentário sintético sobre os mais


importantes aspectos da obra de António José da Sil-
va, o Judeu.

102 Letras Vernáculas EAD


O RISO SÉRIO DAS COMÉDIAS E SEUS DESDOBRAMENTOS

3. Faça uma breve pesquisa sobre a situação da realida-


de socioeconômica brasileira no final do século XIX
e estabeleça relações com o contexto das comédias de
Martins Pena e Artur de Azevedo.

4. Para que você perceba os jogos de cena, as peripécias


que, afinal, representavam uma perspectiva crítica so-
bre a realidade social de parte da sociedade carioca,
propomos a leitura integral do texto de Martins Pena
citado, disponível no site www.dominíopublico.gov.
br. Depois da leitura, responda:
• além das oposições entre nora e sogra, genro e so-

3
gra, que outros conflitos são apresentados na peça?

Aula
• Esses conflitos nos permitem reconhecer alguns
valores sociais daquela época? Explique:
• Por fim, qual a relação do texto com seu titulo
(“Quem casa quer casa?)’

5. Acesse o site http://www.encontrosdedramaturgia.


com.br/?page_id=987 e leia a peça As relações naturais,
de Qorpo Santo. Posteriormente, elabore uma sinopse
sobre o texto, como se essa sinopse fizesse parte de
um anúncio em jornal sobre a chegada da peça em sua
cidade.

RESUMINDO

A comédia, enquanto gênero baseado nas perspec-


tivas formais do mundo clássico, teve como precursor, em
Portugal, Sá de Miranda. Também Camões desenvolveu o
gênero, ainda que nomeasse seus textos de autos, seguindo
a tradição lusitana. Cômicas igualmente foram as peças de
António José da Silva, o Judeu, dramaturgo perseguido pela
Inquisição, que renovou o Barroco português com suas co-

UESC Módulo 5 I Volume 4 103


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

médias de marionetes. No Brasil, no século XIX, Martins


Pena e Artur de Azevedo desenvolveram textos cômicos, no
estilo do teatro de variedades, aliados a composições pró-
prias, demarcadas por obras cujo humor recaía nos costu-
mes de uma sociedade que ainda tinha no teatro o principal
veículo para se (re)conhecer, encontrar e rir de si mesma.

REFERêNCIAS

CARDOSO, João Paulo Seara Cardoso. Há na Glória Pa-


decer: reflexões sobre a vida e a obra de António José da Sil-
va, o Judeu. Disponível em: http://www.marionetasdoporto.
pt/joao-paulo-seara-cardoso/73-ha-na-gloria-padecer.
COUTINHO, Afranio. Evolução da Literatura Dramática.
In: ______. A literatura no Brasil – relações e perspectivas
– conclusão. v. 6. São Paulo: Global, 2004. p. 10-44.
PASSOS, Teresa Ferrer. A arte da comédia em Luís de Ca-
mões. Disponivel em: triplov.com/letras/teresa_ferrer/ca-
moes.htm.
REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1991.
SARAIVA, José António; LOPES, Óscar. História da Lite-
ratura Portuguesa. Porto: Porto, 1999.
SILVEIRA, Francisco Maciel . Concerto barroco às óperas
do Judeu. São Paulo: Perspectiva, 1992.

104 Letras Vernáculas EAD


Suas anotações

...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
..................................................................................................................
..................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
....................................................................................................................
aula

DE QUE PRANTO VIVEM OS


DRAMAS NO SÉCULO XIX

Objetivo:
• Apresentar as principais questões implicadas na estética
romântica e na estética modernista, no Brasil e em
Portugal, em relação aos gêneros do modo dramático.
DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

1 INTRODUÇÃO

Na primeira metade do século XIX, a estética ro-


mântica afirmava seus princípios, propugnando, de variadas
formas, uma valorização das características nacionais, locais,
sem abrir mão da dimensão “universal” que deveria revestir
toda obra capaz de elevar os espíritos humanos. Com a li-
teratura dramática não foi diferente: veremos que autores
como Garrett, em Portugal, Gonçalves Dias e José de Alen-

4
car, no Brasil, esforçaram-se por renovar o teatro nacional,

Aula
desenvolvendo peças que fossem capazes de “traduzir” a
ansiedade por mudança de seu tempo, nas suas respectivas
realidades histórico-sociais.
A segunda metade do século XIX e a transição para
o século XX foram períodos, de modo geral, pouco revela-
dores em termos de arte dramática nesses mesmos países.
Com o Modernismo, já nos primeiros anos do século XX
em Portugal, e na segunda década, no Brasil, também não
se chegou a realizar uma efetiva mudança nesse quadro, em-
bora se deva reconhecer a importância da proposta antidra-
mática de Fernando Pessoa no teatro, por um lado, e, por
outro, sua alta dramaticidade existencial ao se (des)perso-
nalizar nos seus muitos heterônimos. No Brasil, autores co-
mo Álvaro Moreyra e Oswald de Andrade, numa realidade
posterior à da Semana de 22, também buscaram reavivar a
arte dramática, mas seu empenho acabou sendo reconheci-
do bem depois. É o que passaremos a estudar a seguir.

UESC Módulo 5 I Volume 4 109


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

2 OS NOVOS OLHARES ROMÂNTICOS

2.1 Elementos da tragédia em Frei Luís de


Souza

Considerado o iniciador da estética romântica em


Portugal, Almeida Garrett (1799-1854) – cuja obra poéti-
ca, em seus principais aspectos, já foi estudada na discipli-
na Literaturas de Língua Portuguesa: História, Sociedade e
Cultura - desempenhou importante papel de renovação no
teatro lusitano. Não devemos esquecer que o Romantismo
português foi marcado pelas disputas políticas entre liberais
e conservadores, sendo o liberalismo a principal bandeira
dos românticos. Com essa perspectiva ideológica, a serviço
do governo liberal de Passos Manuel, Garrett recebeu a in-
cumbência de revitalizar a vida teatral do país e assim o fez
com a criação da Inspeção Geral dos Teatros, do Conserva-
tório de Arte Dramática e do Teatro Nacional D. Maria II.
Tal atenção especial à dramaturgia, naquele momen-
to, deveu-se, sobretudo, ao papel importante que o teatro
desempenhava no século XIX: tratava-se de uma das formas
artísticas capazes de reunir maior número de público, um
público letrado e burguês. Entretanto, a cena teatral portu-
guesa estava dominada por companhias estrangeiras – “so-
bretudo francesas – repertórios também de origem estran-
geira ou então descaradamente plagiados, [que] não podiam
corresponder ao impulso de nacionalismo cultural que o
liberalismo e o romantismo articuladamente propugnavam”
(REIS, 1990, p. 20). Ou seja, o teatro representava um espa-
ço privilegiado para colocar em cena os valores, as perspec-
tivas críticas e políticas dos românticos liberais, dentre os
quais Garrett foi um grande expoente. Nesse sentido, pos-
tulava uma dramaturgia capaz de levar ao questionamento
da história portuguesa, no sentido de revigorá-la enquanto
leitura de um passado marcado por conquistas populares,

110 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

por lutas que elevaram o orgulho nacional, afirmando-se


essa vertente, comumente chamada como primeira geração
romântica, no nacionalismo. Por isso releva-se a importân-
cia da presença de figuras históricas ou literárias em suas pe-
ças: “Gil Vicente, Bernardim Ribeiro e a Infanta D. Beatriz
(em Um Auto de Gil Vicente, de 1838); Nuno Álvares Perei-
ra (n’I Alfageme de Santarém, de 1841); D. João de Portugal
e Manuel de Souza Coutinho (no Frei Luís de Souza, 1843)”
(REIS, 1990, p. 45).
Assim, sobre a obra de Garrett, devemos lembrar que
foi marcada e moldada no entrecruzamento muito direto
com sua vida, como era comum ao pensamento romântico,
para o qual não havia fronteiras nítidas entre o homem, o
escritor e a sua criação literária. Por isso as marcas biográfi-
cas da literatura garrettiana são sempre muito fortes, como
é o caso exemplar dessa peça de teatro que vamos estudar.
Além disso, precisamos considerar que Garrett, como ini-

4
ciador do Romantismo, ainda estava muito impregnado das

Aula
convenções e valores estéticos clássicos, daí a necessidade
de observamos uma questão central na análise de Frei Luís
de Souza: trata-se, sem dúvida, como veremos, de um drama
atenção
romântico, mas com muitos traços e fundamentos da tragé- Para que você possa
dia clássica. acompanhar e ter um
efetivo aproveitamen-
Para compreendermos devidamente esse texto literá- to desta aula, leia, pri-
meiramente, a versão
rio dramático de Almeida Garrett, iniciaremos com alguns
integral da peça Frei
esclarecimentos a respeito de seu contexto histórico: a peça Luís de Souza, de Al-
meida Garrett, disponí-
foi escrita em 1843, mas a história representada desenrola- vel em:
se no início do século XVII, quando efetivamente viveu o http://web.portoedito-
ra.pt/bdigital/pdf/NT-
protagonista que dá nome ao texto: Manuel de Souza Cou- SITE99_FreiLuisSou.
pdf.
tinho, que se tornou o Frei Luís de Souza. O enredo do dra-
ma, portanto, está baseado em fatos reais, históricos: vivia-
se o tempo da dominação espanhola em Portugal, quando
também a peste bubônica espalhava-se pela Europa.

UESC Módulo 5 I Volume 4 111


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

saiba mais

A dominação espanhola em Portugal ficou conhecida como


União Ibérica, ocorrida como consequência da morte de D. Se-
bastião na batalha de Alcácer-Quibir: sem ter deixado herdeiros,
o sucessor do jovem rei foi o Infante Cardeal D. Henrique, que, já
ancião, logo veio a morrer. “Com o fim dos Avis, de imediato dois
partidos surgiram. O partido nacional, que tinha magras esperan-
ças de vir alcançar o trono, congregou-se ao lado de D. Antônio, o
prior do Crato, que aos olhos de muitos se desqualificava por ser
bastardo (o que porém não o impediu de pegar em armas para
reclamar a coroa de Portugal). Do outro lado, formou-se o partido
castelhano, majoritário, que entendia ser bem melhor naquelas
circunstâncias, entregar os louros a Felipe II da Espanha (filho
de mãe portuguesa e neto de D. Manoel o Venturoso). Era desejo
antigo dos reis espanhóis abocanhar Portugal. Eis que agora surgia
aquela oportunidade. Felipe II não a deixou passar. [...] O Duque
de Alba, comandante espanhol, invadira Portugal em nome de Feli-
pe II, para bater o prior do Crato. Em Alcântara, em 3 de agosto de
1580, foi-se a última esperança de manter Portugal longe da mão
do castelhano. D. Antônio, o prior do Crato, derrotado, refugiou-
se no exterior, na Inglaterra da Rainha Isabel. O caminho estava
livre para a triunfal chegada do futuro rei. Felipe II da Espanha iria
se tornar Felipe I de Portugal. Devido com ao rebate de peste em
Lisboa, decidiu-se reunir os Estados Gerais (nobreza, clero e povo)
na cidade de Tomar, ao norte da capital, [...]. Felipe II, vindo da
cidade fronteira de Badajoz, aceitou perante aquela assembléia
- aberta de 16 de abril até 23 de abril de 1581 - o princípio de
um rei, duas coroas, jurando manter a autonomia administrativa
e jurídica dos portugueses. Portugal seria governado por um vice-
rei indicado por ele, Felipe II, mas os cargos públicos, no Reino e
nas possessões ultramarinas, seriam preenchidos com gente da
casa, por portugueses. O interesse maior do monarca não eram
as rendas e tenças de Portugal ou do seu império colonial, mas
manter a tão querida integridade política da Península Ibérica. O
que pareceu a maioria dos portugueses bem razoável. Assim é de
se entender a entusiasmada recepção que os lisboetas fizeram a
Felipe II quando ele, finalmente, desembarcou da galera imperial,
nas proximidades do Paço de Lisboa, em 24 de abril de 1581[...]”.
Os seus sucessores entretanto, Felipe III e Felipe IV, não con-
seguiram, entretanto, manter a grandiosidade do poder exercido
pelo rei anterior. “A isso, a estes ‘reis que sonhavam que eram
reis’, somou-se a desastrosa Guerra dos Trinta Anos (1618-1648),
para sugar os últimos recursos da dinastia Habsburgo [...]. Os
anos de 1640-1 foram particularmente fatídicos para a Espanha.
[...] E, como pá de cal na Unidade Ibérica, em 1º de dezembro
de 1640, deu-se a rebelião bem sucedida do Duque de Bragança
em Portugal, apoiada de longe pelo Cardeal Richelieu da França.
Proclamando-se Rei de Portugal como D. João IV, Portugal recupe-
rara a autonomia pondo fim ao quem os historiadores românticos
chamaram, com o seu reconhecido exagero, de “cativeiro”, “noite
longa”, ou ainda de “submissão” ao castelhano. Durante 60 anos,
de 1580 a 1640, Portugal estivera ligado à Espanha. E o Brasil
Colonial também. A grandeza da Espanha, entrementes, fora-se
para sempre”.
Fonte: HISTÓRIA, por Voltaire Schilling, disponível em:
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/500br/uniao_iberica.htm.

112 Letras Vernáculas EAD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

Nesse quadro, desenrola-se a trama da peça mais fa-


mosa de Garrett: Manuel de Souza Coutinho é marido de
D. Madalena de Vilhena, supostamente viúva de D. João,
importante nobre que teria morrido na batalha de Alcácer-
Quibir, mas cujo corpo nunca fora encontrado (numa alu-
são direta ao rei D. Sebastião e, consequentemente, ao mito
sebastianista). Eles têm uma filha, D. Maria, cujo preceptor
é Telmo, o mesmo que serviu a D. João durante toda a vida
até seu desaparecimento. O conflito reside, principalmen-
te, na seguinte situação: sempre atormentada com o fato de
nunca terem encontrado os restos mortais do marido, D.
Madalena é uma mulher dividida entre o grande amor que
sente pelo seu segundo marido e o remorso de não ter con-
tinuado à espera do (improvável) retorno do seu primeiro
esposo. Esse remorso causa-lhe apreensão principalmente
por causa de sua filha, pois a menina poderia ser fruto de um
casamento ilegítimo.

4
Para entendermos o drama vivido por D. Madalena,

Aula
precisamos considerar que o fato de o corpo do marido não
ter sido encontrado, mesmo após alguns anos, significava
uma possível esperança de retorno de D. João; e que, ocor-
rendo esse retorno, ela estaria em situação de adultério, o
que significava também a condição de a filha ser considerada
bastarda. Daí podemos perceber por que a protagonista, já
na primeira cena, apresenta-se angustiada. Essa tensão vai
ganhando amplitude durante o desenrolar dos acontecimen-
tos, e chega ao clímax quando, enfim, disfarçado de romei-
ro, D. João retorna. O desenlace não pode ser outro a não
ser o final das duas famílias: Maria, a filha, que sempre tivera
saúde frágil, morre quando os pais decidem entrar para a
vida religiosa – ela tornando-se Soror e ele o Frei Luís de
Souza. Assim, eles “morrem” para a vida social, mas salvam
seus valores e princípios morais.
Podemos, já com essa síntese, perceber os traços trá-
gicos que estruturam o texto, destacando-se os seguintes:

UESC Módulo 5 I Volume 4 113


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

• todos os personagens são de condição elevada, nobres


que possuem distinção em sua sociedade;
• a fábula (mythos) é organizada segundo as regras da ve-
rossimilhança e necessidade e, nesse sentido, desenvolve-
se com peripécia (mutação de uma situação no seu con-
trário) e reconhecimento; o clímax leva à catástrofe pela
fatalidade dos acontecimentos: a revelação da verdade
(que D. João está vivo) provoca a destruição das perso-
nagens. Entretanto,
• como a hybris de D. Madalena, ou seja, o crime de des-
medida de quem age para além da limitada condição hu-
mana, foi ter levado às últimas consequências o seu amor
por Coutinho; e justamente nessa desmedida também re-
side a hybris do personagem que dá nome ao texto; logo,
trata-se de uma catástrofe que nos provoca terror (phóbos
- pela crueldade do Destino, que gera castigo tão severo)
e piedade (éleos - pois não houve abalo em sua moral, em
seu caráter; eles pagam por seu amor desmedido). “Esse
efeito purificador e pedagógico da tragédia gera a catarse
(kátarsis)” (MENDES, 1983, p. 59).

Trata-se, porém, de uma drama romântico, se entender-


mos que, apesar desses traços trágicos, a ordem sociocultural
na qual se desenrola a peça e no tempo em que é escrita gira em
torno do capitalismo mercantil e dos valores cristãos: a fatali-
dade trágica é, assim, atenuada pela certeza romântica de que o
sacrifício em vida é condição para a boa imortalidade da alma; o
amor não concretizado em vida o poderá ser, na sua plenitude,
na dimensão eterna etc.
Além disso, deve-se atentar para um personagem es-
pecialmente: Telmo Pais. A sua crise de consciência leva-o a
debater-se enquanto indivíduo dividido pelo amor a seu amo,
que também criou desde menino, e o amor maior que sente
pela nova filha, D. Maria. Esse conflito interior é típico da al-
ma romântica, imersa em culpa e paixão (paixão no sentido do

114 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

amor “passional”, dilacerante, ainda que de ordem paternal,


nesse caso):

Cena III, 4:
TELMO: [...] Meu honrado amo, o filho
de meu nobre senhor, está vivo... o filho
que eu criei nestes braços... Vou saber
novas certas dele, no fim de vinte anos
de julgarem todos perdido ; e eu, eu que
sempre esperei, que sempre suspirei pela
sua vida... – era um milagre que eu espe-
rava sem o crer! – eu agora tremo... É que
o amor destoutra filha, desta última filha,
é maior e venceu... venceu... apagou o
outro... Perdoai-me, Deus, se é pecado.

Nesse dilema, seu maior castigo é a morte da menina


e a certeza da “morte” afetiva de D. João – nesse conflito,
perde-se em amargura.
Também o dilema de D. Madalena é um conflito de

4
consciência cristã: ela admite, em certa altura (II, 10), que

Aula
“o pecado estava-me no coração”, pois apaixonara-se por
Coutinho já na primeira vez que o viu, ou seja, trata-se do
romântico “amor à primeira vista”, só que, no caso da nobre
senhora, um amor “pecaminoso” pelas regras da Igreja, pois
ela ainda era casada. Conflito interior, portanto, escondido
“no segredo da sua consciência, na profundeza de seu foro
íntimo, onde ela tem acesso. Só ela e ... Deus” (MENDES,
1983, p. 31).
Muitos outros elementos podem ser analisados nes-
te texto dramático de Garrett, e daí sua grandeza. Por fim,
devemos lembrar que, para muitos especialistas da obra do
autor, a intenção desse escritor português era, com Frei Luís
de Souza, e enquanto homem romântico, homem das letras
e de ação concomitantemente, levar à reflexão um público
burguês que o julgara pelo mesmo crime: o amor desmedi-
do. Trata-se de uma série de analogias que podem ser esta-
belecidas entre a peça e sua vida:

UESC Módulo 5 I Volume 4 115


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

[Trata-se] da vivência do próprio autor, nas


suas relações com Luísa Cândida Minosi, a
esposa de quem se separou, com Adelaide
Pastor Deville, com quem passou a viver, e
com a filha sobrevivente, Maria Adelaide,
objeto de desvelos e dos cuidados do pai.
(MENDES, 1983, p. 64).

A referência à “filha sobrevivente” deve-se ao fato de


que Adelaide, a mãe, morreu de tuberculose, e assim “D. Maria
[tinha] de ser forçosamente inteligente e linda, [e frágil]” para
“teatralizar a querida menina órfã [...] que lhe ficara e tanto
receava perder (SALGADO JÚNIOR, 1960, apud MENDES,
1983, p. 64).
Desse modo, ao dar a público Frei Luís de Souza, Gar-
rett apropria-se da história portuguesa e, sobretudo, da sua
própria história, para os efeitos pedagógicos a que se propu-
nha: afirmar a grandiosidade da pátria, com os vultos nobres
que encena, bem como do sentimento amoroso, que deve ser
superior às contingências sociais, ainda que o preço a pagar se-
ja alto; o que, por isso mesmo, eleva ainda mais a dignidade e
heroicidade dos amantes.

2.2 Dramas românticos de Gonçalves Dias e José


de Alencar

O teor nacionalista dos românticos confirma-se tam-


bém na produção literária dramática brasileira. Gonçalves Dias,
a exemplo de Garret, propugnava igualmente uma renovação
do teatro no Brasil e, com a forte impressão gerada por Frei
Luís de Souza, que assistiu enquanto estudava em Portugal,
tratou de escrever a peça Leonor de Mendonça, “para a qual
todos os dias desde às 9 da manhã às 2 da tarde estou enca-
fuado na Biblioteca revolvendo Crônicas velhas das primeiras
edições” (DIAS apud MARTINS, 1992, p.355).
O resumo dessa peça teatral pode ser assim apresentado:

116 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

Como o drama de Garrett, Leonor de Men-


donça parte de um episódio autêntico da
história portuguesa: o jovem Alcoforado ama
a Duquesa de Bragança com o amor puro,
elevado e sem esperança, que tanto atraía a
ficção romântica; a Duquesa, cuja vida fora
salva por ele em circunstâncias perigosas,
tem-lhe o amor de gratidão e dos sentimen-
tos, não o do coração, menos ainda o dos
sentidos. O Duque, entretanto, alimenta
tenebrosas suspeitas e pensa confirmá-las ao
surpreender-lhes um encontro noturno de
despedida, antes da partida do cavalheiro para
a África (MARTINS, 1992, p. 356).

Entretanto, nada substituirá a sua leitura completa: por-


tanto, mãos à obra! Vamos parar aqui, por enquanto, até você
terminar de ler todo o texto que se encontra no site www.do-
miniopublico.gov.br.

4
Aula
Então? Concluída a leitura? O que achou da cena final?
Sem dúvida, trata-se, como podemos perceber, de um
texto com muitos ingredientes da tragédia (todos os persona-
gens têm caráter elevado, são nobres de diferentes estratos; o
enredo se move pela fatalidade etc.), mas marcadamente ro-
mântico pelos ideais propostos.

saiba mais

ANTÔNIO GONÇALVES DIAS (1823‑1864) “nasceu em Caxias, no


Maranhão, filho de pai português e mãe cafuza. Estudou em Coim-
bra, onde obteve o grau de bacharel em Direito em 1844. De volta ao
Brasil, exerceu a docência e funções públicas, incluindo a diplomacia
na Europa. Faleceu na costa do Maranhão, no naufrágio do navio no
qual regressava da Europa, onde fora em busca de tratamento de
saúde”.
(Verbete de Paulo FRANCHETTI para o site: www.brasiliana.
usp.br/node/375).
Sua contribuição ao teatro efetivou-se com quatro textos
dramáticos, escritos entre 1843 e 1846: Patckul; Beatriz
Cenci; Leonor de Mendonça; e Boabdil; entretanto, apenas
a terceira foi publicada em vida do poeta, as demais ficaram
conhecidas em suas Obras Póstumas, de 1869.

UESC Módulo 5 I Volume 4 117


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Importante estudo sobre esta obra encontra-se em


artigo de Décio Almeida Prado, publicado na revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, da USP, de 1970, do qual
destacamos alguns aspectos. Fica o convite para que você se
aprofunde nessa leitura: o link é o seguinte: http://www.ieb.
usp.br/catalogo_eletronico/.
Seguindo: para Prado (1970), Leonor de Mendon-
ça carrega-se de tons românticos principalmente na figura
do jovem Alcoforado que incorpora a imagem do herói ro-
mântico, com linguagem lírica e capaz de sacrifícios últimos
apenas pela sinceridade de seu amor, ainda que não corres-
pondido:

Esse é o paradoxo da sua posição dentro


da peça: ele é, ao mesmo tempo, o mais
culpado, se o julgarmos por suas ações, e
o mais puro moralmente, se atentarmos
ao seu caráter. A contradição, apenas apar-
ente, desfaz-se se levarmos em conta a na-
tureza implacável do amor romântico, que
tudo vence e tudo leva de roldão: -“Que
doido aquele!... – exclama Paula ao saber
de sua paixão proibida. “Enlouqueceis,
Senhor?”, pergunta-lhe D. Leonor, em
face de suas primeiras tímidas insinuações,
a que ele responde com a mesma incerteza:
“Que sei eu, Senhora Duquesa, eu mesmo
não sei o que digo”. A imagem da loucura
retornará a seus lábios, como justificativa,
no momento gravíssimo da declaração de
amor: “mas dizei, dizei ao menos que vos
compadeceis da minha loucura, e que não
amaldiçoareis ao mísero que se deixou ren-
der por um amor insensato!” (PRADO,
1970, s/p.).

Assim, o que se encontra na figura desse personagem


é a caracterização típica do herói romântico, entretanto, ao
mesmo tempo, coube a ele todo desfecho nefasto do dra-
ma. De igual modo, e isso é o mais interessante, também

118 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

há duplicidade de sentidos nas condutas de D. Leonor e de


D. Jaime, o Duque. Ela, porque, apesar de não ter come-
tido efetivamente nenhum deslize, permite e se compraz,
ainda que sem alarde nem para sua consciência, com a corte
do rapaz, o que se justificaria pela forma fria com a qual
sempre foi tratada pelo marido. Esse, por sua vez, embora
tenha todos os motivos aparentes para condenar a esposa,
age de maneira demasiadamente cruel para uma situação de
cumprimento de justiça, de acordo com os padrões da épo-
ca. Essa crueldade poderia ser explicada pela imposição do
casamento a D. Jaime, que por vocação preferiria pertencer
aos quadros da Igreja – à vingança estaria somada uma dose
de ódio pelo destino, incorporado em D. Leonor.
Desse modo, parece ser este o convite de Gonçalves
Dias: em lugar do julgamento simples e tão fácil ao compor-
tamento dos indivíduos, o reconhecimento das limitações
e contradições humanas e nisso residiria a grandeza desse

4
texto (PRADO, 1970).

Aula
Outro relevante nome do Romantismo brasileiro que
não deixou de escrever para o teatro, pelas questões que já
estudamos (gênero mais concorrido na época, com grande
público, caráter pedagógico etc.) foi José de Alencar. Aqui
vamos conhecer alguns dos principais aspectos de sua prin-
cipal peça, a mais conhecida e comentada: O demônio fami-
liar, que você também encontra em versão integral no site
www.dominiopublico.gov.br. Então, vamos iniciar a leitura
desse texto?
Leitura concluída, continuemos com nosso estudo,
cujo principal foco será reconhecer o nacionalismo presente
nesse texto dramático alencariano.
Vamos começar situando a literatura dramática de
José de Alencar no contexto de sua produção artística:

Ao teatro, Alencar dedica, e não comple-


tamente, apenas quatro anos de sua ativ-
idade literária: entre os vinte e oito e os

UESC Módulo 5 I Volume 4 119


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

trinta e dois anos (1857–1861), nas quais


leva à cena uma ‘revista de costumes’ (Rio
de Janeiro, verso e reverso, 1857), duas co-
médias abolicionistas (O demônio famil-
iar, 1857; Mãe, 1861), uma versão “para
o brasileiro” da Dama das Camélias (As
asas de um anjo, 1860), com dois apên-
dices pré-naturalistas, sempre sobre o
tema do amor-culpa e do amor pago (O
crédito, 1857; A expiação, representada
em 1868, mas escrita muito antes), e, por
fim, um trabalho histórico-dramático (O
jesuíta, 1861, mas representado apenas em
1875) juntamente com exercícios menores
(como o libreto de ópera, depois musica-
do por Elias Álvares Lobo, A noite de São
Paulo). (STEGAGNO-PICCHIO, 1997,
p. 234).

Para muitos estudiosos da obra alencariana, essa sua


incursão à literatura dramática se fez pelo irrecusável apelo
do teatro como arte então privilegiada do grande público
burguês que se formava e que havia de ser “doutrinado” na
perspectiva dos valores românticos:

Alencar estrutura as suas peças de maneira


maniqueísta, o que lhe permite um duplo
movimento: ao mesmo tempo em que faz
a crítica ao que considera moralmente
errado na vida social brasileira, propõe
caminhos para o seu aprimoramento. [...]
Enquanto dramaturgo, Alencar pôde di-
rigir-se quase que diretamente ao seu pú-
blico, revelando-lhe as vantagens de uma
organização social com base nos valores
éticos da burguesia. Como um capitalismo
incipiente proporcionara a formação de
uma classe média de profissionais liberais,
comerciantes e negociantes na década de
1850, o teatro tornou-se por excelência o
espaço adequado para o dos problemas da
vida urbana (FARIA, 1998, p. 53).

120 Letras Vernáculas EAD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

Para este estudo panorâmico sobre a obra dramática


de José Alencar, vamos nos deter no texto O demônio fa-
miliar, traçando alguns de seus principais aspectos que nos
permitem reconhecer a importância e os limites da criação
teatral deste que é considerado justamente como um dos
maiores nomes do Romantismo brasileiro. Nesse sentido,
nossa primeira observação deve ser feita sobre a “classifica-
ção” dessa peça como “abolicionista”, ponto nada pacífico
nos estudos críticos sobre o autor. Vamos, então, adentrar
no mundo do texto a partir dos elementos de análise que
nos são já conhecidos:
• Considerando o título – esse “demônio familiar” é Pe-
dro, um serviçal muito ligado à figura das comédias
europeias do criado enganador, trapaceiro e esperto,
que tenta sempre fugir de seu trabalho para se “dar
bem” de algum modo. O fato desse serviçal ser um
escravo doméstico, situação ainda vigente no Brasil da

4
segunda metade do século XIX, e o responsável pelas

Aula
confusões da intriga, o que ficamos sabendo logo no
início da peça, conduz o leitor/espectador à valoração
depreciativa estampada no título. Essa condução, en-
tretanto, levanta muitas questões sobre o caráter mais
ou menos conservador do texto diante da escravidão
naquele momento da vida social brasileira. Voltaremos
a isso.
• Se observarmos as partes constitutivas da peça, confir-
mamos se tratar de uma comédia dividida em quatro
atos, mas sem grande mobilidade de cenários, sendo que
o material textual não apresenta muitas didascálias, prio-
rizando-se o diálogo.
• A intriga tem como base as ardilosas trapalhadas de
Pedro, o escravo de Eduardo, médico liberal, que colo-
cam em risco a felicidade de dois casais e desvelam os
valores sociais daquele tempo. Essa é uma das questões
importantes para a proposição estético-literária de Jo-

UESC Módulo 5 I Volume 4 121


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

sé de Alencar: desenvolver uma comédia moralizante,


tendo como referências fundamentais Molière e Du-
mas Filho, ou seja “duas escolas – a clássica e a realista.
Dois objetivos, a moralidade e a naturalidade. A ‘alta
comédia’ seria, em suma, um daguerreótipo – mas um
‘daguerreótipo moral’” (PRADO, 1974, p. 29).

Trata-se assim, nesse texto de Alencar, de fazer uma


fotografia da realidade vivida então, daí a referência ao da-
guerreótipo, o antigo aparelho fotográfico, mas uma repro-
dução capaz de demonstrar os maus hábitos sociais, a falta
de virtude dos casamentos arranjados e o seu contraponto,
a grandeza das uniões baseadas no amor mais sincero. Esse
intento moralizante, entretanto, acabou por tornar o texto
pouco ágil, considerando-se os grandes discursos de Edu-
ardo, representante dos melhores ideais burgueses. É por
meio desse personagem que se eleva, também, o tom crítico
à situação dos escravos domésticos – quando, por fim, são
esclarecidas as tramoias de Pedro, o castigo de seu amo é a
concessão da carta de alforria, com a seguinte consideração:

EDUARDO – [...] Eu o corrijo, fazendo


do autômato um homem; restituo-o à so-
ciedade, porém expulso-o do seio de minha
família e fecho-lhe para sempre a porta de
minha casa. (A Pedro) Toma: é a tua carta
de liberdade, ela será a tua punição de hoje
em diante, porque as tuas faltas recairão
unicamente sobre ti; porque a moral e a lei
te pedirão uma conta severa de tuas ações.
Livre, sentirás a necessidade do trabalho ho-
nesto e apreciarás os nobres sentimentos que
hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a
mão). (Grifos nossos)

É nesse ponto que as opiniões divergem, pois, para


alguns críticos, esta peça de José de Alencar eleva seu au-
tor na cena brasileira pela virtude abolicionista (Machado
de Assis assim se posicionou); mas, para outros, o aspecto

122 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO xIx

conservador é que se sobressai. Vejamos algumas leituras a


esse respeito:

O enredo desta comédia, para o público


contemporâneo do autor, era uma espécie
de alerta (contra os escravos domésticos,
e sua má influência nos lares burgueses).
E, contudo, um alerta que não figura soz-
inho na peça, mas entremeado da defesa
lógica de uma solução viável e efetiva –
apresentada pelo raisonneur de Alencar, a Raisonneur: figura do
teatro francês, expres-
personagem Eduardo, ao entregar a Pedro sa a visão moralista
sua carta de alforria, libertando-o e liber- central do texto, pon-
tando-se desta convenção social tão con- tua os valores ideo-
lógicos seguidos pelo
traditória aos ideais de um país moderno e
autor.
em vias de evolução (tanto política quanto
social). (TARDIN, 2010, s/p.).

Na visão de Flávio Aguiar, essa peça é


abolicionista, mas de modo conservador:
olha a escravidão enquanto “mal social”,

4
embora esse olhar se aproxime mais do
senhor branco e sua pureza familiar que

Aula
dos inconvenientes para o negro escravo.
O movimento da peça aponta para uma
melhor forma de organização social, tida
como mais civilizada e libertadora frente à
prisão moral da escravidão, porque além de
o escravo ascender ao mundo do trabalho
livre, o senhor também ficaria livre daquele
escravo e dos inconvenientes causados por
suas intrigas (MORAES, s/d, s/p).

Agora, releia o trecho citado do final da peça e reflita


novamente sobre os seus possíveis sentidos: por um lado,
a liberdade não acaba sendo a condenação de Pedro? Essa
condenação traz implícita a ideia de que o escravo gozava
de privilégios por... ser escravo! Como se ele pudesse não
o ser se não o quisesse. Por outro lado, não podemos ler o
texto fora de seu contexto – e a moralidade pretendida com
o ato de Eduardo se traduzia em efetiva elevação social do
seu criado – logo, a escravidão doméstica (pelo menos a do-

UESC Módulo 5 I Volume 4 123


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

méstica) era vista, por Alencar, como um atraso ao país.


Portanto, no questionamento a alguns valores sociais do
Brasil de seu tempo, se expressa o nacionalismo alencariano.
Essa perspectiva nacionalista se apresenta seja nesse centro da
intriga, pelo fim da escravidão doméstica, seja pela afirmação
do amor nas relações familiares, ou ainda na própria afirmação
da língua nacional, nas passagens em que o personagem Aze-
vedo é criticado por seu francesismo exagerado – pois elevar o
país ao conhecimento da Europa, sim, era um objetivo impor-
tante, mas com uma leitura própria e afirmativa de sua cultura:

O ponto de partida de Alencar é a Europa. É


de lá que ele recebe a inspiração primeira, os
instrumentos de trabalho, a forma e parte do
conteúdo teatral. Mas o ponto de chegada é
o Brasil. Disfarçado em comédia, O demônio
familiar é, na verdade, uma longa reflexão so-
bre a sociedade brasileira, com o fim de elim-
inar-lhe as contradições, de unifica-la social-
mente e moralmente (PRADO, 1974, p. 57).

Agora, nosso convite é para que você retome a peça – re-


leia o texto a partir dessas considerações e elabore seu comentá-
rio crítico, considerando que, se hoje esse tipo de comédia não
produz mais os seus efeitos previstos, foi uma expressão artística
muito importante para sua época. E, por meio da ótica dramática
de Alencar, conhecemos mais a história e a cultura do nosso país.
Realmente não é pouco.

3 OS CHOQUES E ANTIDRAMAS DO MODERNISMO

3.4 O Modernismo dramático de Fernando Pessoa

Na segunda metade do século XIX, a chamada Gera-


ção de 70, da qual fizeram parte Eça de Queirós, Antero de
Quental, Oliveira Martins, entre outros, não desconsiderou

124 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

a importância da literatura dramática e do teatro, de modo


geral, como arte necessária à elevação do gosto do público
burguês lusitano (REBELLO, 1991). Na sua proposição en-
gajada do Realismo/Naturalismo, entretanto, o romance foi
o gênero escolhido como potencialmente voltado às diretri-
zes estético-políticas que defendiam:

Ao contrário do que sucedera com as ge-


rações imediatamente anteriores, nenhum
verdadeiro dramaturgo saiu de suas filei-
ras: Eça, de quem alguns romances foram
por outros adaptados à cena, e Ramalho
Ortigão limitaram-se a traduzir obras do
repertório romântico e espanhol [...] (RE-
BELLO, 1991, p. 72).

Alguns escritores do período tentaram certa investi-


da no cenário dramático, como Teófilo Braga (com Auto por
desafronta, de 1869, sobre a vida de Gil Vicente), Teixeira de

4
Queirós (autor de O grande homem, 1881, sátira política pre-

Aula
tensamente com traços naturalistas) e Guilherme de Azevedo
(com Rosalino, de 1877, uma contundente crítica à burguesia
lisboeta). Trataram-se, contudo, “de experiências isoladas [...],
[evidenciando] a permanência do legado romântico, que iria
aliás prolongar-se por muito tempo ainda na cena portuguesa
(REBELLO, 1991, p. 72).
Já nos primeiros anos do século XX, ganham a cena
portuguesa peças representadas pelo grupos Teatro Livre e Te-
atro Moderno, esse uma dissidência daquele, com o intuito de
renovar a dramaturgia em Portugal. Porém, “de valor desigual,
por vezes [eram] excessivamente panfletárias e discursivas,
[no combate à] a moral convencional e denúncia às injustiças
sociais [...] (REBELLO, 1991, p. 76).
Assim, somente quando, em 1915, é publicada a re-
vista Orpheu, marco inicial do Modernismo português,
encontra-se uma efetiva renovação dos questionamentos
sobre a literatura dramática em Portugal. Nessa revista, em

UESC Módulo 5 I Volume 4 125


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

seu primeiro número, publicou Fernando Pessoa o seu “dra-


ma estático em um quadro”, O marinheiro, escrito em 1913
(REBELLO, 1991, p. 87), que passaremos a conhecer em
suas linhas principais.
Para isso, leia, primeiramente, a seguir, o trecho ini-
cial da peça:

O Marinheiro
Drama estático em um quadro
Fernando Pessoa
Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao
centro ergue-se, sobre uma mesa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro to-
chas aos cantos.
À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita,
dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar.
Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de
costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado
da janela. É noite e há como que um resto vago de luar.
PRIMEIRA Ainda não deu hora nenhuma.
VELADORA
SEGUNDA Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco
deve ser dia.
TERCEIRA Não: o horizonte é negro.
PRIMEIRA Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que
fomos? É belo e é sempre falso...
SEGUNDA Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa?
PRIMEIRA Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do passa-
do... As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim,
tenho estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme,
outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei
por que é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que
se dá qualquer cousa?... (uma pausa).
A MESMA Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta
pena...

126 Letras Vernáculas EAD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

SEGUNDA Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.


TERCEIRA Não. Talvez o tivéssemos tido...
PRIMEIRA Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso
de nos esquecermos! ... Se passeássemos?...
TERCEIRA Onde?
PRIMEIRA Aqui, de um lado para o outro. Às vezes isso vai buscar sonhos.
TERCEIRA De quê?
PRIMEIRA Não sei. Porque o havia eu de saber? (uma pausa)
SEGUNDA Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era
menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A
janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... Muitas
vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não
sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca
fosse...
PRIMEIRA Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única
de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de outras terras é
belo?
SEGUNDA Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos

4
dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...(uma

Aula
pausa)
PRIMEIRA Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?
SEGUNDA Não, não dizíamos.
TERCEIRA Por que não haverá relógio neste quarto?
SEGUNDA Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterio-
so. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós podería-
mos falar assim se soubéssemos a hora que é?
PRIMEIRA Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na alma...
Estou procurando não olhar para a janela. Sei que de lá se veem,
ao longe, montes... Eu fui feliz para além de montes, outrora...
Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer
pedia que não mas tirassem... Não sei o que isto tem de irreparável
que me dá vontade de chorar... Foi longe daqui que isto pôde ser...
Quando virá o dia?...

TERCEIRA Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira... sempre, sem-
pre, sempre... (uma pausa)

UESC Módulo 5 I Volume 4 127


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Nessa espécie de monólogo a três vozes está estrutu-


rado o texto que, logo se pode entender, não se trata efeti-
vamente de um texto dramático, se por drama se definir um
gênero de ação. No modernismo de Fernando Pessoa, sua
originalidade criadora tentou, justamente, criar o antidrama,
o drama sem ação:

Chamo teatro estático àquele cujo enredo


dramático não constitui ação – isto é, onde
as figuras não só não agem porque nem se
deslocam nem dialogam sobre desloca-
rem-se, mas nem sequer têm sentidos ca-
pazes de produzir uma ação; onde não há
conflito nem perfeito enredo (PESSOA
apud SEABRA, 1991, p. 28).

Assim, se não há ação, o que se dramatiza nessa peça


é a própria linguagem: “Não parece sequer que Pessoa tenha
concebido este drama como representável: ele destina-se
mais a ser lido do que a ser visto, ou antes, a ser visualizado
através das palavras” (SEABRA, 1991, p. 28). Nesse senti-
do, é interessante observarmos aquela indicação das didas-
cálias sobre o ambiente em que se passa o texto: “[...] quase
em frente a quem imagina o quarto [...]” – nesse imaginar
parece localizar-se o endereçamento do autor ao seu leitor,
principalmente, muito mais do que a um possível encenador.
Ainda sobre essa questão do espaço, à qual podemos
somar a do tempo, fica bem evidente que não há marcação
temporal (há a passagens das horas em uma madrugada in-
definida) nem espacial, definida para além das indicações
mínimas do lugar em que se encontram as personagens. Ao
contrário, o que se afirma é somente a fluidez de sentidos no
jogo das palavras, como verbaliza a primeira veladora: “Não
dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso
de nos esquecermos!”. Toda a peça, entretanto, está baseada
nessa “falsidade” e se levarmos um pouco adiante o senti-
do “falso” das palavras, podemos cair no campo da ficção,

128 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

que outro não é do que o do “fingimento” – fingir, fazer


de conta, criar, eis o campo semântico da ficcionalidade. E
toda arte literária, seja ela dramática, ou lírica, ou narrativa,
não se afirma nesse “fingimento”? Lembremos os versos de
Pessoa: “O poeta é um fingidor/ finge tão completamente/
que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”. De
certo modo, portanto, podemos relacionar esse sentido do
fingimento enquanto criação como elemento também afir-
mado na dramaturgia pessoana: é na arquitetura das pala-
vras, nos seus sentidos e não sentidos que se estabelece toda
a arte literária, o que não seria diferente em relação ao texto
dramático.
Continuando nossa leitura, vamos conhecer mais um
pouco do texto a partir do ponto em que paramos anterior-
mente:

SEGUNDA Contemos contos umas às outras... Eu não sei contos nenhuns,


mas isso não faz mal... Só viver é que faz mal... Não rocemos pela

4
vida nem a orla das nossas vestes... Não, não vos levanteis. Isso se-

Aula
ria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho... Neste momento
eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia
estar tendo... Mas o passado — por que não falamos nós dele?
PRIMEIRA Decidimos não o fazer... Breve raiará o dia e arrepender-nos-
emos... Com a luz os sonhos adormecem... O passado não é senão
um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho. Se olho para o
presente com muita atenção, parece-me que ele já passou... O que é
qualquer cousa? Como é que ela passa? Como é por dentro o mo-
do como ela passa?... Ah, falemos, minhas irmãs falemos alto, fale-
mos todas juntas... O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser
cousa... Sinto-o envolver-me como uma névoa... Ah, falai, falai!...
SEGUNDA Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo... Parece-me que
entre nós se aumentaram abismos... Tenho que cansar a ideia de
que vos posso ver para poder chegar a ver-vos... Este ar quente é
frio por dentro, naquela parte que toca na alma... Eu devia agora
sentir mãos impossíveis passarem-me pelos cabelos — é o gesto
com que falam das sereias... (Cruza as mãos sobre os joelhos. Pau

UESC Módulo 5 I Volume 4 129


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

sa). Ainda há pouco, quando eu não pensava em nada, estava pen-


sando no meu passado.
PRIMEIRA Eu também devia ter estado a pensar no meu...
TERCEIRA Eu já não sabia em que pensava... No passado dos outros talvez...,
no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... Ao pé da casa
de minha mãe corria um riacho... Por que é que correria, e por que
é que não correria mais longe, ou mais perto?... Há alguma razão
para qualquer cousa ser o que é? Há para isso qualquer razão ver-
dadeira e real como as minhas mãos?...
SEGUNDA As mãos não são verdadeiras nem reais... São mistérios que ha-
bitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, te-
nho medo de Deus... Não há vento que mova as chamas das velas,
e olhai, elas movem-se... Para onde se inclinam elas?... Que pena
se alguém pudesse responder!... Sinto-me desejosa de ouvir mú-
sicas bárbaras que devem agora estar tocando em palácios de ou-
tros continentes... É sempre longe na minha alma... Talvez porque,
quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela
mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado
as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo
para que nunca mais ninguém olhasse...
TERCEIRA — As vossas frases lembram-me a minha alma...
SEGUNDA É talvez por não serem verdadeiras... Mal sei que as digo...Repito-
as seguindo uma voz que não ouço que mas está segredando... Mas
eu devo ter vivido realmente à beira-mar... Sempre que uma cou-
sa ondeia, eu amo-a... Há ondas na minha alma... Quando ando
embalo-me... Agora eu gostaria de andar... Não o faço porque não
vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se quer fazer... Dos
montes é que eu tenho medo... É impossível que eles sejam tão pa-
rados e grandes... Devem ter um segredo de pedra que se recusam a
saber que têm... Se desta janela, debruçando-me, eu pudesse deixar
de ver montes, debruçar-se-ia um momento da minha alma alguém
em quem eu me sentisse feliz...
PRIMEIRA Por mim, amo os montes... Do lado de cá de todos os montes é
que a vida é sempre feia... Do lado de lá, onde mora minha mãe,
costumávamos sentarmo-nos à sombra dos tamarindos e falar de ir

130 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

ver outras terras... Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas
aves, uma de cada lado do caminho... A floresta não tinha outras
clareiras senão os nossos pensamentos... E os nossos sonhos eram
de que as árvores projetassem no chão outra calma que não as suas
sombras... Foi decerto assim que ali vivemos, eu e não sei se mais
alguém... Dizei-me que isto foi verdade para que eu não tenha de
chorar...
SEGUNDA Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla da minha saia era
fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas... Eu era peque-
na e bárbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente parece-
me que durmo... Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a nin-
guém... O mar era grande de mais para fazer pensar nelas... Na vida
aquece ser pequeno... Éreis feliz, minha irmã?
PRIMEIRA — Começo neste momento a tê-lo sido outrora... De
resto, tudo aquilo se passou na sombra... As árvores viveram-no
mais do que eu... Nunca chegou nem eu mal esperava... E vós irmã,
por que não falais?

4
TERCEIRA Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer.

Aula
As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao
passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo,
e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me
gente... Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não
sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um
amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si pró-
prio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura,
através do mistério de falar... E, afinal, quem sabe se eu sou assim e
se é isto sem dúvida que sinto?...
PRIMEIRA Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em nós!...
Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso... Falai, por-
tanto, sem reparardes que existis... Não nos íeis dizer quem éreis?
TERCEIRA O que eu era outrora já não se lembra de quem sou... Pobre da feliz
que eu fui !... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha
alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a minha som-
bra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes, onde eu
molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranqüilas dos meus

UESC Módulo 5 I Volume 4 131


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

dedos... Às vezes, à beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me...


Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na água... Ti-
nham um sorriso só deles, independente do meu... Era sempre sem
razão que eu sorria... Falai-me da morte, do fim de tudo, para que
eu sinta uma razão para recordar...
PRIMEIRA Não falemos de nada, de nada... Está mais frio, mas por que é que
está mais frio? Não há razão para estar mais frio. Não é bem mais
frio que está... Para que é que havemos de falar?... É melhor can-
tar, não sei porquê... O canto, quando a gente canta de noite, é
uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no quarto e o
aquece a consolar-nos... Eu podia cantar-vos uma canção que can-
távamos em casa de meu passado. Por que é que não quereis que
vo-la cante?
TERCEIRA Não vale a pena, minha irmã... quando alguém canta, eu não posso
estar comigo. Tenho que não poder recordar-me. E depois todo o
meu passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago
comigo e que não vivi nunca. É sempre tarde de mais para cantar,
assim como é sempre tarde de mais para não cantar... (uma pausa)
PRIMEIRA Breve será dia... Guardemos silêncio... A vida assim o quer. Ao pé
da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá e assentava-me à beira
dele, sobre um tronco de árvore que caíra quase dentro de água...
Sentava-me na ponta e molhava na água os pés, esticando para bai-
xo os dedos. Depois olhava excessivamente para as pontas dos pés,
mas não era para os ver. Não sei porquê, mas parece-me deste lago
que ele nunca existiu... Lembrar-me dele é como não me poder
lembrar de nada... Quem sabe por que é que eu digo isto e se fui eu
que vivi o que recordo?...
SEGUNDA À beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não podemos ser o
que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre
ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a espuma chia,
parece que há mil vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser
fresca a quem a julga uma... Tudo é muito e nós não sabemos na-
da... Quereis que vos conte o que eu sonhava à beira-mar?
PRIMEIRA Podeis contá-lo, minha irmã; mas nada em nós tem necessidade de
que no-lo conteis... Se é belo, tenho já pena de vir a tê-lo ouvido. E
se não é belo, esperai..., contai-o só depois de o alterardes...

132 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

SEGUNDA Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso, porque sem dúvida nada
é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que eu dei por
mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esque-
cido que tinha pai e mãe e que houvera em mim infância e outros
dias — nesse dia vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse
em ver, a passagem vaga de uma vela. Depois ela cessou... Quando
reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não sei onde
ele teve princípio.. . E nunca tornei a ver outra vela... Nenhuma das
velas dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela,
mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar...
PRIMEIRA Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que vistes...
SEGUNDA Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto qual-
quer... Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer por-
to...
PRIMEIRA Por que é que me respondestes?... Pode ser... Eu não vi navio ne-
nhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos dele para não ter
pena... Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar...

4
Aula
Nessa continuidade do texto, podemos perceber ain-
da mais claramente o que já apontamos: o quanto, em lugar
de uma ação, é a própria linguagem dramatizada que está em
cena. A ficcionalidade ganha o espaço da reflexão proposta
pela peça: como personagens, as veladoras colocam em cena
a dúvida sobre sua existência e reforçam a importância do
“sonhar’, do contar histórias: “Contemos contos umas às
outras”, diz a segunda veladora; e a terceira, a certa altura,
reflete: “As minhas palavras presentes, mal eu as digo, per-
tencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde,
rígidas e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as
minhas palavras parecem-me gente...”.
Finalizemos nossa leitura – e, enfim, “entra em cena”
o marinheiro que dá título à peça (já reserve uma resposta
para o sentido desse título: por que o destaque fica com o
marinheiro?).

UESC Módulo 5 I Volume 4 133


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

SEGUNDA Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha lon-


gínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas pas-
savam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, nau-
fragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio
de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a
sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua
uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de
paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de
se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta
falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das
grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento
e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas
estrelas.
PRIMEIRA Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as minhas mãos
estendidas à sombra de um sonho como esse!...
TERCEIRA Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece palavras que as
sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... Dizei, mi-
nha irmã, dizei... Meu coração dói-me de não ter sido vós quando
sonháveis à beira-mar...
SEGUNDA Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho con-
tínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de
sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já
tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de
ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os
crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta,
e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num
grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas
mocidades a suposta... (uma pausa)
PRIMEIRA Minha irmã, por que é que vos calais?
SEGUNDA Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre... Toda a
hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber... Quando
falo de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso
faz com que me compadeça de mim própria e sinta demasiadamente
o coração. Tenho então uma vontade lacrimosa de o ter nos braços
para o poder embalar como a um filho... Vede: o horizonte empali

134 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

deceu... O dia não pode já tardar... Será preciso que eu vos fale ainda
mais do meu sonho?
PRIMEIRA Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não pareis de contar,
nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para quem encos-
ta a cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçais as mãos. Isso
faz um ruído como o de uma serpente furtiva... Falai-nos muito mais
do vosso sonho. Ele é tão verdadeiro que não tem sentido nenhum.
Só pensar em ouvir-vos me toca música na alma...
SEGUNDA Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo contar. À me-
dida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a
escutar... (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo). Três
não... Não sei... Não sei quantas...
TERCEIRA Não faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... Não faleis em
quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas coisas realmen-
te vivem e vêem e escutam... Voltai ao vosso sonho... O marinheiro.
O que sonhava o marinheiro?
SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta) — Ao princípio ele criou as

4
paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as traves-
sas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma — uma a uma

Aula
as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou
depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria
e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa gen-
te, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas
passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas
paisagens e as vai vendo... Depois viajava, recordando, através do
país que criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve ti-
nha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um lugar
onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde
embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os
amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de como
ele o tivera — nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio
se pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?...
Causa-me tanta pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto,
aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos...
TERCEIRA Continuai, ainda que não saibais porquê... Quanto mais vos ouço,
mais me não pertenço...

UESC Módulo 5 I Volume 4 135


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

PRIMEIRA Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história ter fim?
Em todo o caso falai... Importa tão pouco o que dizemos ou não
dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso mister é inútil
como a Vida...
SEGUNDA Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o
marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria
verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não exis-
tia para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de
sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara... Toda a
sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia
ser que outra vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem de
uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que
lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer
podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como
todos, um momento, podem crer... Ó minhas irmãs, minhas irmãs...
Há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse... Qualquer
coisa que explicaria isto tudo... A minha alma esfria-me... Mal sei se
tenho estado a falar... Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para
que eu saiba que estou aqui! ante vós e que há coisas que são apenas
sonhos...
PRIMEIRA (numa voz muito baixa) — Não sei que vos diga... Não ouso olhar
para as cousas... Esse sonho como continua?...
SEGUNDA Não sei como era o resto.... Mal sei como era o resto... Por que ha-
verá mais?...
PRIMEIRA E o que aconteceu depois?
SEGUNDA Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?... Veio um dia um
barco... Veio um dia um barco... — Sim, sim... só podia ter sido as-
sim... — Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava
lá o marinheiro.
TERCEIRA Talvez tivesse regressado à pátria... Mas a qual?
PRIMEIRA Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia alguém?
SEGUNDA Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma coisa? (uma
pausa)
TERCEIRA Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso sonho, que
tenha havido esse marinheiro e essa ilha?
SEGUNDA Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário.

136 Letras Vernáculas EAD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

PRIMEIRA Ao menos, como acabou o sonho?


SEGUNDA Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o
não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo
não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?.. Não me faleis
mais... Principio a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é...
Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um
horror que desconheço... Quem teria eu ido despertar com o sonho
meu que vos contei?... Tenho um medo disforme de que Deus tives-
se proibido o meu sonho... Ele é sem dúvida mais real do que Deus
permite... Não estejais silenciosas... Dizei-me ao menos que a noite
vai passando, embora eu o saiba... Vede, começa a ir ser dia.. Vede:
vai haver o dia real...Paremos... Não pensemos mais... Não tentemos
seguir nesta aventura interior... Quem sabe o que está no fim dela?....
Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite... Não falemos mais dis-
to, nem a nós próprios... É humano e conveniente que tomemos,
cada qual, a sua atitude de tristeza.
TERCEIRA Foi-me tão belo escutar-vos... Não digais que não... Bem sei que não

4
valeu a pena... É por isso que o achei belo... Não foi por isso, mas

Aula
deixai que eu o diga... De resto, a música da vossa voz, que escute
ainda mais que as vossas palavras, deixa-me, talvez só por ser música,
descontente...
SEGUNDA Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens que pensam can-
sam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam pro-
vam-no, porque mudam com tudo... De eterno e belo há apenas o
sonho... Por que estamos nós falando ainda?...
PRIMEIRA Não sei... (olhando para o caixão, em voz mais baixa) — Por que é que se
morre?
SEGUNDA Talvez por não se sonhar bastante...
PRIMEIRA É possível... Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e es-
quecer a vida, para que a morte nos esquecesse?...
SEGUNDA Não, minha irmã, nada vale a pena...
TERCEIRA Minhas irmãs, é já dia... Vede, a linha dos montes maravilha-se... Por
que não choramos nós?... Aquela que finge estar ali era bela, e nova
como nós, e sonhava também... Estou certa que o sonho dela era o
mais belo de todos... Ela de que sonharia?...
PRIMEIRA Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que servem os

UESC Módulo 5 I Volume 4 137


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

sonhos...(uma pausa)
SEGUNDA Talvez nada disto seja verdade... Todo este silêncio, e esta morta, e este
dia que começa não são talvez senão um sonho... Olhai bem para tudo
isto... Parece-vos que pertence à vida?...
PRIMEIRA Não sei. Não sei como se é da vida... Ah, como vós estais parada! E
os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente...
SEGUNDA Não vale a pena estar triste de outra maneira... Não desejais que nos
calemos? É tão estranho estar a viver... Tudo o que acontece é inacre-
ditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo... Vede, o céu
é já verde... O horizonte sorri ouro... Sinto que me ardem os olhos,
de eu ter pensado em chorar...
PRIMEIRA Chorastes, com efeito, minha irmã.
SEGUNDA Talvez... Não importa... Que frio é isto?... Ah, é agora... é agora!...
Dizei-me isto... Dizei-me uma coisa ainda... Por que não será a única
coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um
sonho dele?...
PRIMEIRA Não faleis mais, não faleis mais... Isso é tão estranho que deve ser
verdade. Não continueis... O que íeis dizer não sei o que é, mas de-
ve ser de mais para a alma o poder ouvir... Tenho medo do que não
chegastes a dizer... Vede, vede, é dia já... Vede o dia... Fazei tudo
por reparardes só no dia, no dia real, ali fora... Vede-o, vede-o... Ele
consola.. Não penseis, não olheis para o que pensais... Vede-o a vir,
o dia... Ele brilha como ouro numa terra de prata. As leves nuvens
arredondam-se à medida que se coloram.. Se nada existisse, minhas
irmãs?... Se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa nenhu-
ma?... Porque olhastes assim?...(Não lhe respondem. E ninguém
olhara de nenhuma maneira.)
A MESMA Que foi que dissestes e que me apavorou?... Senti-o tanto que mal
vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu, ouvindo-o segunda
vez, já não tenha tanto medo como dantes... Não, não... Não digais
nada...Não vos pergunto isto para que me respondais, mas para falar
apenas, para me não deixar pensar... Tenho medo de me poder lem-
brar do que foi... Mas foi qualquer coisa de grande e pavoroso como
o haver Deus... Devíamos já ter acabado de falar... Há tempo já que
a nossa conversa perdeu o sentido... O que é entre nós que nos faz
falar prolonga-se demasiadamente... Há mais presenças aqui do que

138 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

as nossas almas.. O dia devia ter já raiado.. Deviam já ter acordado...


Tarda qualquer coisa... Tarda tudo... O que é que se está dando nas
coisas de acordo com o nosso horror?... Ah, não me abandoneis...
Falai comigo, falai comigo... Falai ao mesmo tempo do que eu para
não deixardes sozinha a minha voz... Tenho menos medo à minha
voz do que à idéia da minha voz, dentro de mim, se for reparar que
estou falando...
TERCEIRA Que voz é essa com que falais?... É de outra... Vem de uma espécie de
longe...
PRIMEIRA Não sei... Não me lembreis isso... Eu devia estar falando com a voz
aguda e tremida do medo... Mas já não sei como é que se fala... Entre
mim e a minha voz abriu-se um abismo... Tudo isto, toda esta con-
versa e esta noite, e este medo — tudo isto devia ter acabado, devia
ter acabadode repente, depois do horror que nos dissestes... Come-
ço a sentir que o esqueço, a isso que dissestes, e que me fez pensar
que eu devia gritar de uma maneira nova para exprimir um horror de
aqueles...

4
TERCEIRA Minha irmã, não nos devíeis ter contado essa história. Agora estra-

Aula
(para a nho-me viva com mais horror. Contáveis e eu tanto me distraía que
SEGUN- ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente. E
DA) parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram
três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam.
SEGUNDA São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. Deus
talvez saiba porquê... Ah, mas por que é que falamos? Quem é que
nos faz continuar falando? Por que falo eu sem querer falar? Por que
é que já não reparamos que é dia?...
PRIMEIRA Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me a gritar
dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha vontade para a
minha garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que
alguém possa bater àquela porta. Por que não bate alguém à porta?
Seria impossível e eu tenho necessidade de ter medo disso, de saber
de que é que tenho medo... Que estranha que me sinto!... Parece-
me já não ter a minha voz... Parte de mim adormeceu e ficou a ver...
O meu pavor cresceu mas eu já não sei senti-lo... Já não sei em que
parte da alma é que se sente...Puseram ao meu sentimento do meu
corpo uma mortalha de chumbo... Para quefoi que nos contastes a

UESC Módulo 5 I Volume 4 139


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

vossa história?
SEGUNDA Já não me lembro... Já mal me lembro que a contei... Parece tersido
já há tanto tempo!... Que sono, que sono absorve o meu modo de
olhar para as coisas!... O que é que nós queremos fazer? o que é que
nós temos idéia de fazer? — já não sei se é falar ou não falar...
PRIMEIRA Não falemos mais. Por mim, cansa-me o esforço que fazeis para fa-
lar... Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis...
A minha consciência bóia à tona da sonolência apavorada dos meus
sentidos pela minha pele... Não sei o que é isto, mas é o que sinto...
Preciso de dizer frases confusas um pouco longas, que custem a di-
zer... Não sentis tudo isto como uma aranha enorme que nos tece de
alma a alma uma teia negra que nos prende?
SEGUNDA Não sinto nada... Sinto as minhas sensações como uma coisa que se
sente... Quem é que eu estou sendo?... Quem é que está falando com
a minha voz?... Ah, escutai...
PRIMEIRA Quem foi?
e
TERCEIRA
SEGUNDA Nada. Não ouvi nada... Quis fingir que ouvia para que vós supusés-
seis que ouvíeis e eu pudesse crer que havia alguma coisa a ouvir...
Oh, que horror, que horror íntimo nos desata a voz da alma, e as
sensações dos pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando
tudo em nós pede silêncio e o dia e a inconsciência da vida... Quem
é a quinta pessoa neste quarto que estende o braço e nos interrompe
sempre que vamos a sentir?
PRIMEIRA Para quê tentar apavorar-me? Não cabe mais terror dentro de mim...
Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me toda no lodo
morno do que suponho que sinto. Entra-me por todos os sentidos
qualquer coisa que nos pega e nos vela. Pesam as pálpebras a todas as
minhas sensações. Prende-se a língua a todos os meus sentimentos.
Um sono fundo cola umas às outras as idéias de todos as meus ges-
tos. Por que foi que olhastes assim?...

140 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

TERCEIRA Ah, é agora, é agora... Sim, acordou alguém... Há gente que acorda...
(numa voz Quando entrar alguém tudo isto acabará... Até lá façamos crer que
muito lenta todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo... É dia
e apagada) já. Vai acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois
feliz, porque acreditais no sonho...
SEGUNDA Por que é que mo perguntais? Porque eu o disse? Não, não acredi-
to...
Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três ve-
ladoras quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras.
Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia.

Fonte: texto disponível em:


http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/upload/e_livros/clle000163.pdf. Acesso em
jan./2012

Concluída nossa leitura, vamos problematizar mais


alguns aspectos de O marinheiro, seguindo as orientações
do professor José Augusto Seabra, no seu livro Fernando

4
Pessoa ou o poetodrama (1991). Retomemos as personagens:

Aula
[...] as três Veladoras só aparentemente
são personagens distintas. As suas falas
retomam-se umas às outras ao longo do
drama, numa espécie de solilóquio obses-
sivo, reduzindo-se a três vozes que entre
si ecoam, até que sua própria identidade
se dissolve: ‘Quem é que eu estou sendo?
Quem é que está falando com a minha
voz?’ (SEABRA, 1991, p. 29).

E quanto ao marinheiro? Já elaborou sua resposta so-


bre as possíveis motivações do título? Vamos adiantar, en-
tão, que esse parece ser, enfim, o único personagem efetivo
do texto, personagem “simbólico e mítico, evocado através
do sonho” (Idem, ibidem). Nesse sentido, você não con-
corda com a ideia de que essa evocação pelo sonho evidencia
o quanto é muito tênue o limite entre a ficção e o real? E
indo mais além, não está nessa peça de Fernando Pessoa uma

UESC Módulo 5 I Volume 4 141


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

constante pergunta ao sentido da nossa existência: afinal, o


que somos? De que matéria somos feitos? Existimos para
além das lembranças que temos sobre nós e que, muitas ve-
zes, nos foram contadas por outros? Existimos fora do senti-
do da alteridade (do outro). Enfim, são questionamentos que
vão ganhando densidade ao longo da peça, amplificando-se no
terror das veladoras diante da possibilidade do Nada, do não
sentido da existência. Esse clímax, aceitando-se as vozes das
personagens como a voz de um coro, permite-nos definir a di-
mensão da literatura dramática pessoana como essencialmente
trágica (SEABRA, 1991). Em um comentário em inglês, as-
sim se reporta o poeta português ao seu O marinheiro: “O fim
desta peça contém o mais sutil terror intelectual jamais visto.
Uma cortina de chumbo tomba quando elas não têm mais na-
da a dizer uma às outras, nem mais nenhuma razão para falar”
(PESSOA apud SEABRA, 1991, p. 31 – trecho traduzido pelo
autor).
Para finalizar nosso breve estudo sobre este drama
de Fernando Pessoa, cabe lembrarmos o sentido da palavra
personagem: persona, que na sua origem etimológica e his-
tórica, como vimos, remete a máscara – as máscaras do tea-
tro grego. No caso da poética pessoana, devemos considerar
que essa dramatização sem drama, no sentido de ação, foi
muito além de sua escrita dramatúrgica: revelou-se na sua
própria dispersão nas máscaras dos heterônimos. Cada um
deles formando “individualidades distintas”, cada uma como
“espécie de drama, e todas elas juntas um outro drama: um
drama em gente em vez de atos” (PESSOA apud REBELLO,
1991, p. 87). Ou dito de outro modo, também pelo próprio
Pessoa: “Trata-se simplesmente do temperamento dramático
elevado ao máximo; escrevendo em vez de dramas em atos e
ação, dramas em almas” (apud SEABRA, 1991, p. 34).

142 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

3.5 Literatura dramática no Modernismo


brasileiro

De um modo geral, quando falamos em Modernismo


no Brasil, logo nos reportamos à famosa Semana de 1922,
durante a qual a arte brasileira – no campo da literatura, das
artes plásticas e da música, principalmente – foi motivo de
questionamentos e de novas proposições estéticas. Naquele
momento, tratavam de romper com certa tradição acade-
micista e procuravam inovar a linguagem artística de forma
própria, a partir do legado das grandes manifestações das
vanguardas do final do séc. XIX início do XX.
A literatura dramática, porém, e a arte teatral, de
modo amplo, não tiveram a mesma atenção nesse período,
entre outros aspectos, pelo fato de que as companhias e os
espaços de encenação priorizavam o bom retorno financeiro
propiciado por atuações fáceis, ancoradas em grandes cele-

4
bridades do momento, com comédias e farsas estrangeiras,
sobretudo, que garantiam um bom público. Renovar, sacu-

Aula
dir e transformar essa situação era tarefa das mais difíceis e
foi preciso algum tempo para que ocorresse alguma modi-
ficação nesse panorama. Assim, somente no final dos anos
de 1920 e durante a década de 1930 é que se registram pre-
ocupações “com a modernização da dramaturgia e do espe-
táculo teatral, com Renato Viana, Álvaro Moreyra, Flávio
de Carvalho, Antônio de Alcântara Machado e Oswald de
Andrade, espíritos sintonizados com as conquistas moder-
nistas” (FARIA, 1998, p. 114).
Desses autores, destacamos dois: Alvaro Moreyra e
Oswald de Andrade.
O primeiro escreveu, em 1925, a peça Adão, Eva e
outros membros da família, dividida em quatro atos, “cons-
truída com linguagem, personagens e problemas que de fato
não tinham ainda aparecido na dramaturgia brasileira” (FA-
RIA, 1998, p. 110). O enredo pode ser assim apresentado de
maneira sintética:

UESC Módulo 5 I Volume 4 143


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Um mendigo e um ladrão, enriquecidos,


tornam-se homens poderosos na sociedade.
“Um”, como proprietário de uma agência de
informações, e “Outro”, como dono de um
jornal. A “Mulher”, no primeiro ato uma
viciada em cocaína e nos seguintes uma rica
e bem-sucedida atriz, torna-se amante do
“Outro”. Mas “Um”, traindo o amigo, con-
vence-o a abandoná-la e a toma para si. No
momento do acerto de contas, as duas per-
sonagens trocam insultos, porém logo põem
os interesses financeiros acima das questões
pessoais. Sócios, fundam mais um jornal
(FARIA, 1998, p. 111).

saiba mais

“Álvaro Moreyra (ÁLVARO Maria da Soledade Pinto da Fonseca Velhinho Rodrigues


MOREIRA da Silva), poeta, cronista e jornalista, nasceu em Porto Alegre, RS, em 23 de
novembro de 1888, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12 de setembro de 1964. Era
filho de João Moreira da Silva, autor teatral, cronista e poeta, e de Maria Rita da Fonse-
ca. Simplificou o longo nome de família para Álvaro Moreyra, com y (para que esta letra
“representasse as supressões”). [Foi] para o Rio de Janeiro em 1910, onde concluiu o
curso de Direito. Tornou-se amigo de Felipe d’ Oliveira e Araújo Jorge. Entre 1912 e 1914
esteve em Paris e viajou também à Itália, à Bélgica e à Inglaterra. De volta ao Brasil,
encetou a carreira jornalística no Rio, tendo sido redator de várias publicações: Fon-Fon,
Bahia Ilustrada, A Hora, Boa Nova, Ilustração Brasileira, Dom Casmurro, Diretrizes e Para
Todos. Admirador da arte cênica, fundou no Rio, em 1927, o “Teatro de Brinquedo”, o
primeiro movimento estruturado no país de renovação do teatro. Em 1937, apresentou
à Comissão de Teatro, do Ministério da Educação e Cultura, um plano de organização de
uma “Companhia Dramática Brasileira”, que foi aceito. Com ela, Álvaro Moreyra excur-
sionou aos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, e fez temporada de três meses
no Teatro Regina, do Rio de Janeiro. [...] Quarto ocupante da Cadeira 21 da Academia
Brasileira de Letras, eleito em 13 de agosto de 1959, na sucessão de Olegário Mariano e
recebido pelo Acadêmico Múcio Leão em 23 de novembro de 1959”.
Fonte: Site da Academia Brasileira de Letras. Disponível em:
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=115&sid=229.

É interessante notar essa forma de representar as perso-


nagens: “Um, “Outro”, “Mulher”, para citarmos os principais,
que, na peça, sugerem a sua constituição como máscaras ou
marionetes, “já que no desfecho se resignam a ‘morrer’: ‘Cor-
taram os nossos fios. Tivemos início, meio e fim. Contamos
uma história. Fim...’ (FARIA, 1998, p. 110).
Com a importância histórica de ter tentado renovar a
cena brasileira, a peça foi encenada no Rio de Janeiro em 1927
com montagem realizada “pelo Teatro de Brinquedo, grupo

144 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

amador idealizado pelo próprio Álvaro Moreyra, que con- saiba mais

tou com a colaboração de sua mulher, a atriz e declamadora Sobre o grupo Teatro
do Estudante, assim
Eugênia Moreyra, Joracy Camargo, Di Cavalcanti, Brutus declarou seu criador,
Paschoal Carlos Mag-
Pedreira, Alvarus e vários outros” (FARIA, 1998, p. 112). no: “Esse teatro de
Sobre os objetivos e o nome dado ao grupo, assim se pro- jovens imediatamen-
te obteve ressonância
nunciou o autor: nacional. Que fez ele?
Impôs a presença de
um diretor como res-
Eu sempre cismei um teatro que fizesse sor-
ponsável pela unidade
rir, mas que fizesse pensar. Um teatro com artística do espetácu-
reticências... Um teatro que se chamasse lo. Valorizou a contri-
Teatro de Brinquedo e tivesse como única buição do cenário e
dos figurinistas traba-
literatura uma epígrafe do velho Goethe:
lhando sob a orienta-
“Humanidade divide-se em duas espécies, ção do diretor. Exigiu
a dos bonecos que representam um papel melhoria do repertó-
aprendido e a dos naturais,espécie menos rio e maior dignidade
artística. [...] Impôs
numerosa de entes que nascem, vivem e a fala brasileira no
movem-se segundo Deus as criou...” Um nosso palco infestado
teatro de bonecos? Sim. Mas supondo de sotaque lusitano.
Abriu caminho, serviu
que nessa estação do século XX, os bone-
de exemplo” (apud
cos, de tal maneira aperfeiçoados, dessem FARIA, 1998, p. 115).
a sensação de gente de carne, osso, alma,

4
Já sobre o grupo Os
espírito... Por que de brinquedo? Porque Comediantes, deve-

Aula
mos saber que, para
os cenários imitam caixas de brinque-
muitos críticos, sua
dos, simples, infantis (MOREYRA apud importância esteve em
RIEGO, 2006, p. 81). modificar o panorama
brasileiro, “em que o
intérprete principal
O grupo, entretanto, teve vida breve, conseguindo assegura o prestígio
popular da apresen-
realizar apenas mais uma montagem, o que não diminui sua tação independente-
mente do texto, do
importância nesse contexto da vida teatral brasileira. De to- resto do elenco e dos
do modo, somente no final dos anos de 1930 desenvolveu- acessórios [transferin-
do] para o encenador
se de modo mais efetivo a renovação do teatro no país com o papel de vedete”
(MAGALDI apud FA-
a atuação de dois grupos amadores do Rio de Janeiro: “o RIA, 1998, p. 115).
Teatro do Estudante, criado por Paschoal Carlos Magno,
em 1938, e Os Comediantes, grupo que estreou em 1940 e
que contou com o trabalho de intelectuais como Santa Rosa,
Brutus Pedreira e Adacto Filho” (FARIA, 1998, p. 114).
Quanto a Oswald de Andrade, muitos críticos consi-
deram que coube a ele “a mais genial tentativa malograda de
um teatro modernista, daquele teatro que poderia ser e não
foi [...]” (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 506). Três são

UESC Módulo 5 I Volume 4 145


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

as principais criações de seu repertório dramático: O homem e


o cavalo, de 1934; A morta, em 1937, e O rei da vela, escrita em
1933 e publicada em 1937. Trata-se, portanto, de uma incursão
mais tardia de Oswald na dramaturgia se considerada a sua atu-
ação como poeta e ativista da Semana de 1922, o que só con-
firma os limites da renovação teatral (de modo amplo) naquele
momento. Importa sabermos, também, que a encenação de O
rei da vela só aconteceu em 1967, pois no ano de sua publicação
instaurava-se a ditadura do Estado Novo que censurou a peça,
além de outros fatores importantes: “um exame dos espetácu-
los realizados no Brasil, na década de 1930, permitirá concluir
sem dificuldade que não havia lugar para serem montadas as
suas peças” (MAGALDI, 2004, p. 8), o que nos leva a concluir
que “Oswald pagou o tributo de estar muito à frente de seu
tempo [...]. Foi preciso esperar 30 anos, desde a sua publicação,
para que O rei da vela irrompesse na montagem do Teatro Ofi-
cina, dirigida por José Celso Martinez Correa, como espantosa
obra de vanguarda” (MAGALDI, 2004, p. 8).
Vamos acompanhar um resumo da peça apresentado por
Sábato Magaldi:

Escrita a partir de 1933, depois da crise de


1929 (que o arruinara), da Revolução de 1930
e da Revolução Constitucionalista de 1932
(quando ele já aderira ao comunismo), O rei
da vela representa a análise furiosa feita por
Oswald da realidade brasileira e das classes
dominantes a que pertencia por origem e cu-
jos reveses tornaram tão agudo o seu conhe-
cimento dos problemas.
[...]
Que personagens exprimiriam melhor esse
retrato sem retoques do Brasil? Antes de todo
o mundo, o industrial incipiente de um país
subdesenvolvido, fabricante do único produ-
to de consumo certo – a vela que acompanha
todos os mortos. E a vela simboliza também a
outra profissão de um país hipotecado – a ag-
iotagem, esperança de devedores contumaz-
es, entre os quais se incluía o próprio Oswald.

146 Letras Vernáculas EAD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

A esse industrial de vela e agiota Oswald deu


o nome de Abelardo, para enriquecê-lo com
a conotação do famoso amante do século
XII, um dos símbolos do amor desesperado
e romântico, vítima da sociedade, ao tentar
quebrar-lhe as barreiras, no amor de Heloí-
sa. Se há Abelardo, é claro que Heloísa deve
estar a seu lado, como na história. Só que o
século XX não admitiria efusões românticas
e Oswald faz a paródia do amor puro e per-
feito. Heloísa é filho do Coronel Belarmino,
aristocrata rural de São Paulo, arruinado com
a crise do café, e tentando, com a aliança da
burguesia urbana em ascensão, a saída que
não traz um Banco Hipotecário, sempre adi-
ado. Esse é o painel das classes dominantes
brasileiras, [cada vez mais tributárias] da
norte-americana (não mais da inglesa), e o
tabuleiro de forças precisava conter a figura
indefectível de um Mr. Jones, presidindo os
negócios (nesse universo, tudo é negócio).
Essas são as peças-mestras do jogo armado

4
por Oswald, que preferiu desmontar a engre-
nagem nos seus elementos fundamentais, em

Aula
vez de escamoteá-la com criaturas menos ex-
emplificativas (MAGALDI, 2004, p. 66-67).

Conhecido, assim, o núcleo central desse texto dramá-


tico de Oswald de Andrade, vamos ler um fragmento do tex-
to, fazendo o convite para que você leia o texto integral (para
adiantar sua leitura, sugerimos que acesse o site books.google.
com.br/books?isbn=8525036692, para conhecer todo o 1º ato
de O rei da vela).
É interessante assinalarmos a dedicatória da peça:

“A Álvaro Moreyra
e
Eugênia Álvaro Moreyra
na dura criação
de um enjeitado – o teatro
nacional,
O.A.
São Paulo, junho de 1937”

UESC Módulo 5 I Volume 4 147


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Ao dedicar a obra ao casal Álvaro Moreyra, confirma-


se o reconhecimento de Oswald de Andrade a seus colegas de
ofício na tentativa de “criação” de um teatro efetivamente na-
cional. Nesse sentido, O rei da vela explicita a crítica oswal-
diana ao atraso do país, fruto principalmente das falcatruas da
elite dirigente, com apoio governamental, num contexto con-
turbado, como foi apontado por Sábato Magaldi. Vamos ler o
seguinte trecho:

Heloísa (mos- Por que que você tem esse quadro aí...
trando a Giocon-
da)
Abelardo I A Gioconda... Um naco de beleza.
O primeiro sorriso burguês...

Heloísa Você é realista. E por isso enriqueceu magicamente. Enquanto


os meus pais, lavradores de cem anos, empobreceram em dois...

Abelardo I Trabalharam e fizeram trabalhar para mim milhares de seres du-


rante noventa e oito... (Silêncio absorto).

Heloísa Dizem tanta coisa de você, Abelardo...


Abelardo I Já sei... Os degraus do crime... que desci corajosamente. Sob o
silêncio comprado dos jornais e a cegueira da justiça da minha
classe! Os espectros do passado... Os homens que traí e assassi-
nei. As mulheres que deixei. Os suicidados... O contrabando e a
pilhagem... Todo o arsenal do teatro moralista dos nossos avós.
Nada disso me impressiona nem impressiona mais o público... A
chave milagrosa da fortuna, uma chave yale... Jogo com ela!
Heloísa O pânico...
Abelardo I Por que não? O pânico do café. Com dinheiro inglês comprei
café na porta das fazendas desesperadas. De posse de segredos
governamentais, joguei duro e certo no café-papel! Amontoei
ruínas de um lado e ouro do outro! Mas, há o trabalho constru-
tivo, a indústria... Calculei ante a regressão parcial que a crise
provocou... Descobri e incentivei a regressão, a volta à vela... sob
o signo do capital americano.
Heloísa – Ficaste o Rei da Vela!

148 Letras Vernáculas E AD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

Abelardo I Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes.


O Rei da vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer
em criança pensando nas histórias das negras velhas... Da vela
pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa... As em-
presas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pode pa-
gar o preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão
previdente. Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores.
(Indica o mostruário). Para o Mês de Maria das cidades caipiras,
para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite,
para a hora de estudo das crianças, para os contrabandistas no
mar, mas a grande vela é a vela da agonia, aquela pequena velinha
de sebo que espalhei para o Brasil inteiro... Num país medieval
como o nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade
sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional!
Heloísa (Sonhan- Meu pai era o Coronel Belarmino que tinha sete fazendas, aquela
do) casa suntuosa de Higienópolis... ações, automóveis... Duas filhas
viciadas, dois filhos tarados... Ficou morando na nossa casinha
de Penha e indo à missa pedir a Deus a solução que os governos
não deram...

4
Abelardo I Que não deram aos que não podem viver sem empréstimos.

Aula
Heloísa Meus pais... meus tios... meus primos...
Abelardo I Os velhos senhores da terra que tinham que dar lugar aos novos
senhores da terra!
Heloísa No entanto, todos dizem que acabou a época dos senhores e dos
latifúndios...
Abelardo I Você sabe que o meu caso prova o contrário. Ainda não tenho o
número de fazendas que seu pai tinha, mas já possuo uma área
cultivada maior que a que ele teve no apogeu.
Heloísa Há dez anos... A saca de café a duzentos mil-réis!
Abelardo I Estamos de fato num ponto crítico em que podem predominar,
aparentemente e em número, as pequenas lavouras. Mas nun-
ca como potência financeira. Dentro do capitalismo, a peque-
na propriedade seguirá o destino da ação isolada nas socieda-
des anônimas. O possuidor de uma é mito econômico. Senhora
minha noiva, a concentração do capital é um fenômeno que eu
apalpo com as minhas mãos. Sob a lei da concorrência, os fortes
comerão sempre os fracos. Desse modo é que desde já os latifún-
dios paulistas se reconstituem sob novos proprietários.

UESC Módulo 5 I Volume 4 149


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Heloísa Formidável trabalho o seu!


Abelardo I Não faça ironia com a sua própria felicidade! Nós dois sabemos
que milhares de trabalhadores lutam de sol a sol para nos dar farra
e conforto. Com a enxada nas mãos calosas e sujas. Mas eu tenho
tanta culpa disso como o papa-níqueis bem colocado que se enche
diariamente de moedas. É assim a sociedade em que vivemos. O
regime capitalista que Deus guarde...
Heloísa E você não teme nada?
Abelardo I Os ingleses e americanos temem por nós. Estamos ligados ao
destino deles. Devemos tudo, o que temos e o que não temos.
Hipotecamos palmeiras... quedas d’água. Cardeais!
Heloísa Eu li num jornal que devemos só à Inglaterra trezentos milhões
de libras, mas só chegaram aqui trinta milhões...
Abelardo I É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países infe-
riores têm que trabalhar para os países superiores como os po-
bres trabalham para os ricos. Você acredita que New York teria
aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais
bonitas da Terra se não se trabalhasse para Wall Street de Ribei-
rão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria? Eu sei que sou um
simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem!
Mas não me queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha
e você...

Fonte: ANDRADE, Oswald. Literatura comentada. Seleção de textos, notas, estudos biográfico e histórico
por Jorge Schwartz. São Paulo: Abril, 1980, p. 77-78.

150 Letras Vernáculas EAD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO xIx

Encontramos muito claramente, nesse diálogo, a crí-


tica mordaz de Oswald de Andrade à sociedade capitalista.
O personagem Abelardo incorpora o oportunista que trata
de enriquecer a qualquer custo: “Abelardo não investe em ne-
nhum campo que possa significar progresso. A vela simboliza
o atraso, a permanência da superstição, o medo religioso para-
lisador...” (MAGALDI, 2004, p. 74). Agora, sua vez: selecione
trechos desse fragmento do 1º Ato que desvelam a perspectiva
de crítica social e política do autor em relação ao Brasil dos
anos de 1930:

Desenvolva suas respostas em arquivo à parte.


Retomaremos esse tópico nas atividades, logo a seguir.

Encerramos este estudo com as seguintes considera-


ções de Sábato Magaldi (2004, p. 10): “Quando o Oficina
lançou O rei da vela, com um sucesso que se estendeu até a

4
excursão do elenco pelo Brasil, em 1971, não era mais possí-

Aula
vel pôr em dúvida a excelência do texto. A posteridade fez a
Oswald a justiça que ele não teve em vida. A única vantagem
é que esse juízo costuma ser duradouro”.

ATIVIDADES

1. Sobre a peça de Garrett, Frei Luís de Souza:

a. Elabore uma descrição básica das personagens princi-


pais (D. Madalena, D. Maria, D. João, Manuel de Sou-
za Coutinho e Telmo Pais) com passagens do texto,
reafirmando, assim, uma das marcas trágicas do dra-
ma: o de serem figuras de caráter elevado:
b. Selecione trechos da peça que exemplifiquem a parte
sublinhada da seguinte afirmação: “a fábula (mythos)

UESC Módulo 5 I Volume 4 151


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

é organizada segundo as regras da verossimilhança e


necessidade e, nesse sentido, desenvolve-se com pe-
ripécia (mutação de uma situação no seu contrário) e
reconhecimento” e justifique suas escolhas:
c. Por que a História era tão importante como “ingre-
diente” em muitas tramas românticas, a exemplo desse
texto literário dramático português?

2. Sobre os textos literários dramáticos de Gonçalves


Dias e José de Alencar:

a. Selecione do prefácio escrito por Gonçalves Dias na


sua peça Leonor de Mendonça um posicionamento crí-
tico do autor em relação aos valores sociais que pode
ser considerado como justificativa para o título desta
sua obra literária dramática (ou seja, por que ele esco-
lheu Leonor como a figura chave do drama a ponto de
nomeá-lo?):
b. Leia, a seguir, a avaliação de Machado de Assis sobre a
peça de José Alencar, O demônio familiar; posterior-
mente, selecione trechos da peça que condizem com a
leitura de Machado e, por fim, elabore um comentário
próprio sobre o nacionalismo alencariano nesta sua
obra literária dramática:

Parece-nos ter compreendido bem a sig-


nificação do personagem principal d’O
Demônio Familiar; esta foi, sem dúvida,
a série de reflexões feitas pelo autor para
transportar ao teatro aquele tipo emi-
nentemente nosso. Ora, desde que entra
em cena até o fim da peça, o caráter de
Pedro não se desmente nunca: é a mesma
vivacidade, a mesma ardileza, a mesma ig-
norância do alcance dos seus. atos; se de
certo ponto em diante, cedendo às ad-
moestações do senhor, emprega as mes-

152 Letras Vernáculas EAD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO XIX

mas armas da primeira intriga em uma


nova intriga que desfaça aquela, esse novo
traço é o complemento do tipo. Nem é só
isso: delatando os cálculos de Vasconcelos
a respeito do pretendente de Henriqueta,
Pedro usa do seu espírito enredador, sem
grande consciência nem do bem nem do
mal que pratica; mas a circunstância de
desfazer um casamento que servia aos in-
teresses de dois especuladores dá aos olhos
do espectador uma lição verdadeiramente
de comédia.
[...] não falta ainda que apreciar n’O
Demônio Familiar, como, por exemplo,
os tipos de Azevedo e de Vasconcelos,
as duas amigas Henriqueta e Carlotinha,
tão brasileiras no espírito e na linguagem,
e o caráter de Eduardo, nobre, generoso,
amante.
[Publicado na “Semana Literária”, seção
do Diário do Rio de Janeiro, 6, 13 e 27
mar.1866].

4
Aula
3. Sobre o teatro no Modernismo português e brasileiro:

a. Selecione trechos de O Marinheiro e comente-os, res-


pondendo a questão seguinte: podemos dizer que, de
certo modo, esse antidrama pessoano trata da “ficção
dentro da ficção” (SEABRA, 1991, p. 29)?
b. Leia, a seguir, a primeira rubrica do 1º Ato de O rei da
vela e responda: nessa marcação do espaço, na apre-
sentação dos detalhes do escritório de Abelardo já en-
contramos o tom de crítica social que o autor imprime
na peça? Complemente sua resposta com os comen-
tários feitos sobre outras passagens do texto a respei-
to dessa mesma temática (a crítica social e política de
Oswald de Andrade como marca de sua dramaturgia):

Em São Paulo. Escritório de usura de Abe-


lardo & Abelardo. Um retrato da Giocon-
da. Caixas amontoadas. Um divã futurista.

UESC Módulo 5 I Volume 4 153


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Uma secretária Luís XV. Um castiçal de


latão. Um telefone. Sinal de alarme. Um
mostruário de velas de todos os taman-
hos e de todas as cores. Porta enorme de
ferro à direita correndo sobre rodas hori-
zontalmente e deixando ver no interior as
grades de uma jaula. O prontuário, peça de
gavetas com os seguintes rótulos: MAL-
ANDROS – IMPONTUAIS – PRON-
TOS – PROTESTADOS – Na outra di-
visão: PENHORAS – LIQUIDAÇÕES
– SUICÍDIOS – TANGAS.
Pela ampla janela entra o barulho da manhã
na cidade e sai o das máquinas de escrever
da antessala.

RESUMINDO

Estudamos, nessa aula, os principais elementos ca-


racterizadores do drama romântico em Portugal e no Brasil,
com especial atenção à peça que é considerada, por muitos
críticos, como a obra-prima de Garrett, Frei Luís de Souza
e, nela, as marcas do trágico que convivem com o drama
burguês. De modo semelhante, enfocamos as peças de dois
nomes considerados os maiores do Romantismo brasileiro,
Gonçalves Dias e José de Alencar, demonstrando a impor-
tância e os limites de suas proposições dramáticas num país
recém-independente e carente de autonomia artística-cul-
tural, embora a buscasse. Esse limite de renovação da arte
teatral persistirá ainda no início do Modernismo brasileiro,
mas novas tentativas de ultrapassagem serão realizadas por
autores como Álvaro Moreyra e Oswald de Andrade, ainda
que no final dos anos de 1920 e 1930, respectivamente. Já
em Portugal, o Modernismo trouxe à cena uma textualidade
antidramática na peça O marinheiro, de Fernando Pessoa,
mas não podemos esquecer que a própria poética pessoana
personificou a dramaticidade existencial do poeta.

154 Letras Vernáculas EAD


DE QUE PRANTO VIVEM OS DRAMAS NO SÉCULO xIx

REFERêNCIAS

ALENCAR, José de. O demônio familiar. Disponível em:


www.dominiopublico.gov.br.

ANDRADE, Oswald. O rei da vela. In: ______. Literatura


comentada. Seleção de textos, notas, estudos biográfico e
histórico por Jorge Schwartz. São Paulo: Abril, 1980, p. 77-
78.
DIAS, Gonçalves. Leonor de Mendonça. Disponível
em: dominiopublico.gov.br.
GARRETT, Almeida. Frei Luís de Souza. Disponível
em: http://web.portoeditora.pt/bdigital/pdf/NTSI-
TE99_FreiLuisSou.pdf.
MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São
Paulo: Global, 2004.
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira.
São Paulo: T.A. Queiroz, 1992. v. II.

4
MENDES, João Daniel Marques. Introdução à leitura do

Aula
Frei Luís de Souza. Coimbra: Almedina, 1983.
MORAES, Vera. O demônio familiar – comédia de costu-
mes no teatro alencariano. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/acl/revistas/ColecaoDiversos/Jose-
Alencar/VeraMoraes.pdf
PESSOA, Fernando. O marinheiro. Disponível em:
http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/clubedeleituras/
upload/e_livros/clle000163.pdf.
PRADO, Décio de Almeida. Leonor de Mendonça de
Gonçalves Dias. Revista do IEB, São Paulo, n.. 08, 1970.
p. 91 a 106. Disponível em: http://143.107.31.231/Acer-
vo_Imagens/Revista/REV008/Media/REV08-06.pdf.
______. Os demônios familiares de Alencar. Revista do
IEB, São Paulo, n. 15, 1974, p. 27-57. Disponível em:
http://143.107.31.231/Acervo_Imagens/Revista/REV015/Me-
dia/.pdf.

UESC Módulo 5 I Volume 4 155


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

REBELLO, Luiz Francisco. História do teatro. Lisboa: Im-


prensa Nacional/Casa da Moeda,1991.
REIS, Carlos. Literatura Portuguesa Moderna e Contem-
porânea. Lisboa: Universidade Aberta, 1990.
RIEGO, Christina Barros. O teatro brasileiro nas revistas
literárias e culturais do Modernismo: 1922 – 1932. Revista
Letras, Curitiba, n. 68, p. 69-85, jan.-abr. 2006, Ed. UFPR.
SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o poetodra-
ma. São Paulo: Perspectiva, 1991.
STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da Literatura
Brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
TARDIN, Bruno Oliveira. O “demônio” de Alencar e a dra-
maturgia brasileira – um ensaio crítico. Mafuá, Revista de Li-
teratura em Meio Digital, UFSC, ano 8. n. 13, 2010. Disponí-
vel em: http://www.mafua.ufsc.br/numero13/ensaios/bruno.
htm.

156 Letras Vernáculas E AD


Suas anotações

...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
..................................................................................................................
..................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
....................................................................................................................
aula

O PALCO DA SOCIEDADE EM
CRISE

Objetivo:

• Reconhecer os principais aspectos histórico-culturais da


dramaturgia brasileira e portuguesa no período de
1940 à década de 1970, destacando-se o caráter
político e social das obras dos mais relevantes autores
desse período e suas consequentes propostas estéticas,
com ênfase sobre o teatro épico.
O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

1 INTRODUÇÃO

Dos anos quarenta ao início da década de sessenta


do século XX, efetivava-se, de forma crescente, a interna-
cionalização do capital oriunda da conjuntura mundial do
pós-guerra, que levou à polarização político-econômica da
chamada Guerra Fria. No Brasil, o crescimento urbano per-
mitiu o desenvolvimento da classe média e o país ‘moderni-
zava-se’, embora muito aos moldes do sistema norte-ame-
ricano, quando os EUA passaram a despontar como nova

5
potência mundial.

Aula
As contradições entre campo e cidade, as limitações
da pequena burguesia urbana, a necessidade de mudanças
conjunturais foram alguns dos temas caros aos novos dra-
maturgos que se voltavam a um texto dramático crítico, em
diferentes gêneros. Autores como Nelson Rodrigues, Jorge
Andrade e Guarnieri, para citarmos alguns dos mais impor-
tantes desse período, renovaram a dramaturgia brasileira.
De igual modo, na esteira do teatro épico, que estudaremos,
os textos dramáticos de Boal visavam à conscientização po-
pular diante da injustiça, da opressão e dos desmandos de
toda ordem, quando nosso país enfrentava os anos violentos
da ditadura militar.

UESC Módulo 5 I Volume 4 161


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Já em Portugal, despontava o movimento neorrealista


e sua proposta estético-política de revolução social por meio
da arte. Nos anos de 1950, mais especificamente, verificam-
se diferentes perspectivas políticas na vida portuguesa e bra-
sileira: nesta última, a política desenvolvimentista de Jusce-
lino Kubitschek com seu slogan “50 anos em 5”, privilegiava
o crescimento econômico, via industrialização, mas a reboque
do capital estrangeiro, gerando-se um processo inflacionário
que aumentou a tensão social entre capital x trabalho. A reali-
dade portuguesa, por sua vez, era a de continuidade do regime
salazarista, ditadura apoiada pela conservadora elite agrária do
pais, que freava o crescimento industrial e sustentava a manu-
tenção do sistema colonial.
Diante desse quadro, Portugal e Brasil apresentavam,
em comum, sérias desigualdades sociais e regionais, marcadas
na acentuada disparidade entre a vida urbana e o meio rural
ou interiorano. A representação do embate desses dois mo-
dus vivendi é um dos pontos temáticos dos textos dramáticos
de Bernardo Santareno e Dias Gomes, que escreveram, res-
pectivamente, A promessa, em 1957, e O pagador de promes-
sas, em 1960, que estudaremos nesta aula. Estabeleceremos
um diálogo entre essas duas peças significativas da literatura
dramática portuguesa e brasileira, apontando suas aproxima-
ções e distanciamentos quanto à temática, ambientação e ca-
racterização das personagens.

2 O TEXTO DRAMÁTICO NOS ANOS 1940/1950

2.1 Do Neorrealismo ao Épico em Portugal

A dramaturgia portuguesa ganhou renovado impulso


com a inauguração do Teatro-Estúdio do Salitre, em 1946,
revelando novos autores e atores, entre os quais destacaram-
se os escritores neorrealistas, como Alves Redol (Maria

162 Letras Vernáculas E AD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

Emilia, de 1946; Forja, de 1949), Pedro Bom (A menina e a


maçã, 1947; Para lá da máscara, 1950), Luiz Francisco Re-
bello (O mundo começou às 5 e 47; O dia seguinte, 1953),
para citar-se apenas alguns expoentes (REBELLO, 1991).
Sobre o Neorrealismo português, precisamos saber
que se tratou de um movimento artístico-político preocu-
pado em combater, via arte literária, a opressão, a injus-
tiça e toda forma de exploração desencadeada pelo siste-
ma capitalista. Questionando as diretrizes do Realismo/
Naturalismo, então em voga no Portugal dos anos trinta
do século passado, assentadas basicamente na concepção
positivista, o Neorrealismo caracterizou-se, assim, pela
busca de uma arte literária engajada, preocupada não só
em denunciar os problemas de seu tempo - quando se vi-
via a afirmação da ditadura salazarista - como em apontar
possíveis caminhos de mudança.
Outro aspecto sempre salientado nos estudos sobre
o Neorrealismo é o seu direcionamento à construção de tex-
tos literários em que as personagens, suas ações e interações,
bem como suas órbitas espaciais e temporais situam-se no
âmbito privilegiado do coletivo sobre o individual. Não é
difícil entender que as razões para esse privilégio estão an-

5
coradas, justamente, nas prerrogativas ideológicas do mo-

Aula
vimento neorrealista, ou seja, na intencionalidade estético-
política de afirmação de um humanismo renovado, que tem
por base a noção de solidariedade e organização coletiva dos
despossuídos como fundamentais para a transformação da
realidade social.
Ao longo dos anos de 1950, de modo geral, a tônica
neorrealista se manterá atuante na dramaturgia portuguesa,
desembocando, a partir dos anos de 1960, e apesar da censu-
ra do governo ditatorial de Salazar, no teatro épico, de acor-
do com as proposições de Bertold Brecht. Assim, antes de
continuarmos a estudar os principais aspectos da literatura
dramática em Portugal nesse período, precisamos conhecer

UESC Módulo 5 I Volume 4 163


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

mais detidamente as importantes contribuições desse autor


alemão para a dramaturgia ocidental.
O termo teatro épico foi usado inicialmente por
leitura recomendada Erwin Piscator (1893-1966), mas foi Bertold Brecht (1898-
Para estudo mais apro- 1956) quem desenvolveu uma teoria e uma práxis consisten-
fundado, sugerimos a
te sobre a matéria:
leitura de O teatro épi-
co, de Anatol Rosenfeld
[São Paulo: Perspectiva, Trata-se de um estilo anti-ilusionista, cuja
1994], no qual o autor
aborda os mais impor-
essência consiste na apresentação, não das
tantes aspectos dos relações interpessoais, mas das que decor-
gêneros literários para rem de determinantes sociais. [...] As téc-
explicar o sentido dessa
nicas do teatro épico incluem a utilização
espécie de épico na dra-
maturgia. Além disso, de canções, narração, projeções, além de
Rosenfeld demonstra a uma exposição através de enredo episódi-
presença de elementos co, o que evita o processo de identificação
épicos desde o próprio
teatro grego até a mo-
entre espectador e personagem, ao mesmo
dernidade, chegando à tempo em que fortalece a participação in-
teoria de Brecht. telectual do espectador (VASCONCEL-
LOS, 2001, p. 195).

Ao romper com a ilusão cênica, o objetivo do teatro


épico é, portanto, levar o público à reflexão crítica, mas por
uma via diferente da aristotélica – ao invés de proporcionar
a identificação pelo “imitado”, possibilita um distanciamen-
to que implica em tomada de posição. Ou seja, no lugar da
catarse, que permite ao espectador sair satisfeito, conforma-
do e passivo, a intenção de Brecht é levar ao inconformis-
mo, de modo que as emoções sejam elevadas ao raciocínio
(ROSENFELD, 1994, p. 148). Nesse processo, destaca-se o
materialismo dialético como fundamento e método de aná-
lise da realidade social, a partir do qual se edificam as obras
brechtniana, como Mãe Coragem (1939); O senhor Puntila
e seu Servo Matti (1940/1941); O círculo de giz caucasiano
(1944/45).
Sinteticamente, podemos perceber as diferenças en-
tre as formas do teatro dramático e do teatro épico do se-
guinte modo:

164 Letras Vernáculas EAD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

Forma dramática do teatro Forma épica do teatro


Atuando, Narrando,
envolve o espectador numa
ação cênica, torna o espectador um observador,

gasta-lhe a atividade, despertando sua atividade,

possibilita-lhe emoções. força-o a tomar decisões.

Prioriza o reconhecimento de Questiona visão de mundo.


uma vivência.
O espectador permanece em face de,
O espectador identifica-se, convive. estuda.
O homem é pressuposto como O homem é objeto de pesquisa.
conhecido.
O homem é mutável, visto como pro-
Visão essencialista do homem
(imutabilidade). cesso.
Tensão visando ao desenvolvimento.
Encadeamento pleno das cenas.
Cada cena por si.
Visão orgânica do drama
(ênfase no crescimento). Prerrogativa da montagem.

Desenvolvimento linear. Desenvolvimento em curvas.

Necessidade evolutiva. Estruturação em saltos.

O pensar determina o ser. O ser social determina o pensar.

5
Emoção Raciocínio.

Aula
[Adaptado de: ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 149].

Em Pequeno Organon (1948), Brecht apresenta uma


síntese da teoria épica, defendendo que “mesmo didático, [o
teatro] deve continuar plenamente teatro e, como tal, diver-
tido” (ROSENFELD, 1994, p. 151), mas esse divertimento
deve propiciar “o olhar épico da distância”, para podermos
nos desacostumar com uma realidade que parece natural e,
ao contrário, exige atenção crítica e desalienada.
Por essa perspectiva crítica de cunho marxista é que

UESC Módulo 5 I Volume 4 165


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

o teatro épico foi tão bem recebido e dinamizado na drama-


turgia portuguesa de herança neorrealista com nomes como
o de José Cardoso Pires, por exemplo, e sua peça O render
dos heróis (1960).
Esta “narrativa dramática”, como define o autor, di-
vide-se em três partes, antecedidas de um Prólogo, com um
final em que se anuncia “uma apoteose grotesca» (PIRES,
1970, 231). No texto são revisitados acontecimentos histó-
ricos do século XIX, especialmente o levantamento popular
que ficou conhecido como Maria da Fonte, contra o gover-
no de António Bernardo da Costa Cabral, em 1846. Essa
retomada histórica se estabelece como uma crítica às rela-
ções autoritárias de poder, demonstrando as possibilidades
da resposta popular em levantes e movimentos de contesta-
ção. Fica claro, desse modo, tratar-se de uma volta ao pas-
sado para uma reflexão sobre o presente, quando em Portu-
gal se intensificavam os desmandos da ditadura salazarista,
considerando-se, sobretudo, o início da guerra de libertação
colocada em marcha pelos países africanos de colonização
portuguesa, como Angola e Moçambique.
saiba mais
Para aprofundar estudos sobre esta peça de José Cardoso Pires, recomenda-se a leitu-
ra da Dissertação de Márcia Regina Rodrigues, disponível no site Domínio Público, com
o título “Traços épico-brechtianos na dramaturgia portuguesa: O render dos heróis, de
Cardoso Pires, e Felizmente há luar, de Sttau Monteiro” (UNESP-Araraquara, 2010].
Nesse trabalho, fica-se conhecendo melhor o contexto histórico no qual se insere o
texto dramático de Cardoso Pires, conforme exemplificam as seguintes passagens:
Sobre a Revolta de Maria Fonte: “De acordo com Oliveira Marques (1998), historica-
mente, [esse movimento] passou por duas fases: a primeira foi deflagrada pela revolta
popular, com duração de apenas um mês (Abril-Maio de 1846), tendo como resultado
a demissão de António Bernardo da Costa Cabral, do Governo; a segunda, chamada
Patuléia, bem mais longa e configurada como guerra civil, teve duração de oito meses
(Outubro de 1846 a Junho de 1847), sendo finalizada com intervenção estrangeira –
apoiada pelo governo de Lisboa. O fim da revolta trouxe como consequência o regresso
dos Cabrais” (p. 58).// Sobre os Cabrais: “António Bernardo da Costa Cabral, nomeado
ministro do Reino pela Rainha em 1842, era o verdadeiro dirigente do Governo, presi-
dido pelo Duque da Terceira. Costa Cabral foi um estadista autoritário e o seu governo
“estabeleceu no País um regime de repressão e de violência, embora a imprensa con-
tinuasse livre” (OLIVEIRA MARQUES, 1998, p. 40). Segundo Oliveira Martins (1895, p.
268), depois da Maria da Fonte e da Patuléia, “Costa-Cabral – o conde de Thomar: era
mais que um homem: era um systema e um phantasma”. António Bernardo da Costa
Cabral era apoiado por seu irmão, José Bernardo da Silva Cabral, por isso a designação
popular de governo dos Cabrais ou Cabralismo” (p. 58).

166 Letras Vernáculas EAD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

Para compreendermos melhor essa ideia de que em


O render dos heróis encontramos as principais proposições
de Brecht para o teatro épico, vamos tomar como exemplo
a cena de abertura da peça. Trata-se da narração da primeira
ação da Revolta:

Na noite de quinze para dezasseis de Abril


um povo dos confins do Alto Minho de-
ixou casas, deixou tudo, e espalhou-se pela
serrania bárbara. Fazia luar, um luar negro,
se assim se pode dizer. Cá em baixo tudo
escuro e torvo: carvalhos velhos, torcidos,
carvalhos dos tempos do Dilúvio, urzes e
medronheiros pelados e cobertos por uma
espécie de ferrugem da terra que lembrava
cinza e mundos devastados. Depois o ro-
lar das águas nas profundezas das brechas;
depois os fossos de silvedo, os labirintos dos
lobos e as bocarras dos desfiladeiros – tudo
tornava a noite medonha e traiçoeira. Um
pano negro, a serrania. E diante do pano ne-
gro aparecem-nos as primeiras figuras em
debandada [...]. Salta a velha do bordão, foge
a outra, desvairada, espanta-se a cabra, e não
há quem não procure uma saída [...]. (Con-
ta-se que certa mocinha, na ânsia do deses-
pero, se quis lançar a um barranco – isto é:

5
do palco para baixo – e que a muito custo
foi salva por aquela multidão tresnoitada

Aula
que, bem ou mal, sempre conseguiu escapar
à ameaça do feroz cornetim) (CARDOSO
PIRES, 1978, p. 11-13).

Apenas as duas referências ao cenário – “Um pano


negro, a serrania” e “do palco para baixo” – indicam que não
se trata de um romance ou conto, mas de um texto dramá-
tico. Desse modo, o prólogo destina-se, certamente, a um
narrador, “apesar de não haver nenhuma indicação na peça
de como esse prólogo deve ser de fato encenado. [De igual
modo], todos os outros textos de mesmo caráter narrativo
que aparecem geralmente no início de cada parte ou de cada

UESC Módulo 5 I Volume 4 167


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

cena podem ser narrados, na encenação, por uma personagem


qualquer que assume o papel de narrador” (RODRIGUES,
2010, p. 60).
Por esse caráter narrativo do texto, pela quebra da ilusão
cênica ao ser colocado no palco um narrador ou os persona-
gens exercerem essa função, costuma-se designar esta peça de
Cardoso Pires como o primeiro texto dramático português que
se aproximou do teatro épico. Assim, o espectador é levado
a refletir sobre a realidade histórica que se descortina diante
de seus olhos e que permite, afinal, uma reflexão sobre o seu
presente.
Após a Revolução dos Cravos, ocorrida em 25 de abril
de 1974, a redemocratização política permitiu maior expansão
do teatro português. Foram definidas leis de incentivo que pro-
porcionaram o impulso para criação de novos centros culturais,
bem como “estímulo a companhias já existentes – Grupo 4,
Teatro-Estúdio de Lisboa, Comuna, Cornucópia, Bonecreiros,
Casa da Comédia, Teatros Experimentais do Porto e de Cas-
cais [entre outros]” (REBELLO, 1991, p. 98). Desse modo, a
cena portuguesa renovou-se por uma diversidade de caminhos
e propostas artísticas.

2.2 O engajamento na dramaturgia brasileira

Nos anos quarenta, chegam ao Brasil diversos direto-


res, cenógrafos e atores estrangeiros que propõem uma reno-
vação na arte teatral. Com o polonês Zbigniev Ziembinski, foi
fundada a companhia “Os comediantes”, em 1941; e, em 1948,
funda-se o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), com a parti-
cipação de diretores italianos como Adolfo Celi, Gianni Rato,
entre outros (STEGAGNO-PICCHIO, 1997, p. 683).
Foi sob a direção de Ziembinski que, em 1943, estreou
Vestido de Noiva, peça que deu notoriedade a Nelson Rodri-
gues, embora sua estreia como dramaturgo tenha ocorrido, sem

168 Letras Vernáculas E AD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

tanto sucesso, em 1939, com A mulher sem pecado. Expondo


as mazelas, as hipocrisias e o falso moralismo da conservadora
classe média carioca, a obra rodrigueana marcou seu lugar na
dramaturgia nacional.
Em Vestido de noiva, no entanto, mais do que a crueza
da linguagem, o que causou positivo espanto foram as novida-
des cênicas:
A representação plástica em três planos (re-
alidade, alucinação e memória) do delírio de
uma jovem mulher [Adelaide]. Em estado
de choque provocado por um acidente au-
tomobilístico, enquanto é operada (plano da
realidade, presente), ela revive a sua história
(plano da memória, do passado) ao mesmo
tempo em que o público é arrastado, quase
com violência, para o conhecimento dos pro-
cessos mentais que se realizam em seu cére-
bro, do qual as personagens surgem como
[...] materializações da lembrança (plano de
alucinação, possibilidade) (STEGAGNO-
PICCHIO, 1997, p. 684).

para conhecer

”Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca


fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da
fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre
fui) um anjo pornográfico.”

5
Nelson Falcão Rodrigues nasceu da cidade do Recife - PE,

Aula
em 23 de agosto de 1912, e faleceu no Rio de Janeiro em 21
de dezembro de 1980. Em 1916, sua família mudou-se para
o Rio de Janeiro, cidade que foi o cenário mais constante de
sua obra. Além do teatro, foi escritor de contos e romances e
dedicou-se ao jornalismo, escrevendo sobre futebol e sobre
comportamento, como na sua conhecida e polêmica coluna
“A Vida Como Ela É…”. No site da Fundação Nacional de Artes
(FUNARTE) encontram-se muitas e importantes informações
e reflexões sobre a arte dramática de Nelson Rodrigues. Con-
sulte:
Figura 1: Nelson Rodrigues http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/nelson-
Fonte: http://novapaulista.files.wordpress.
com/2012/06/nelson-rodrigues-1.jpg rodrigues/bate-papo-em-torno-da-obra-de-nelson-rodrigues/.

De modo geral, e por interesse de âmbito didático so-


bretudo, pode-se dividir a obra de Nelson Rodrigues em três
grandes linhas temáticas:

UESC Módulo 5 I Volume 4 169


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Peças psicológicas – A mulher sem pecado;


Vestido de Noiva; Valsa n. 6; Viúva, porém
honesta; Anti-Nelson Rodrigues; Peças míti-
cas – Álbum de família; Anjo Negro; Doro-
téia; Senhora dos Afogados; Tragédias cari-
ocas: A falecida; Perdoa-me por me traíres;
Os sete gatinhos; Boca de Ouro; Beijo no
asfalto; Bonitinha, mas ordinária; Toda nu-
dez será castigada; A serpente (MAGALDI,
1981, p. 9).

Não devemos esquecer, contudo, que, como toda di-


visão de uma obra (e essa foi realizada quando da publica-
ção do Teatro Completo de Nelson Rodrigues), os critérios
não são definitivos e, de certo modo, pode até levar a um
empobrecimento do universo do escritor. No caso do autor
carioca, é preciso entender que em suas peças psicológicas
encontram-se elementos míticos e trágicos; nas míticas, res-
soam componentes psicológicos e certas marcas das tragé-
dias que, por sua vez, assimilaram “o mundo psicológico e
o mítico das obras anteriores. Poucos dramaturgos revelam,
como Nelson Rodrigues, um imaginário tão coeso e origi-
nal, e com um espectro tão amplo de preocupações psicoló-
gicas, existenciais, sociais e estilísticas” (MAGALDI, 1981,
p. 9).
saiba mais Outro nome que merece destaque é o de Jorge An-
Aluízio Jorge Andra-
drade, que estreou, em 1955, sua mais conhecida peça, A
de Franco nasceu em moratória. Nesse texto dramático, ganha destaque a situação
Barretos-SP em 1922
e faleceu em 13 de da aristocracia paulistana falida com a crise do café e o pro-
março de 1984, em
gressivo empobrecimento e proletarização das gerações se-
São Paulo. Dentre
suas principais obras guintes dos velhos fazendeiros (STEGAGNO-PICCHIO,
destacam-se: O te-
lescópio; Senhora da 1997, p. 685).
boca do lixo; A esca- Podemos considerar que a proposta desse autor foi
da; Ossos do Barão; O
Sumidouro. criar “um teatro que refletisse a realidade brasileira, através
de sua história e seu povo. [Desse modo], Jorge Andrade
acabou por escrever um conjunto de textos, organizado
num único corpo, composto por dez peças, conhecido co-

170 Letras Vernáculas EAD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

mo o ciclo Marta, a Árvore e o Relógio” (AZEVEDO, 2001,


p. 51).
Também voltado a retratar a realidade brasileira,
Gianfrancesco Guarnieri destacou-se por colocar em ce-
na as contradições do desenvolvimento econômico do país,
que reservava aos trabalhadores os mais altos ônus, gerando
uma sociedade excludente e injusta. Sua estreia, em 1958,
com Eles não usam Black-tie, marcou o início exitoso de sua
carreira como dramaturgo.
saiba mais
“Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri nas-
ceu em Milão, filho de músicos antifascistas que decidiram mudar-se
para o Rio de Janeiro em 1936, quando ele tinha dois anos. Na dé-
cada de 50, mudam-se para São Paulo, onde ele se torna líder estu-
dantil e começa a fazer teatro amador com Oduvaldo Vianna Filho.
Em 1955, eles criam o Teatro Paulista do Estudante, com orientação
de Ruggero Jacobbi. Um ano depois, unem-se ao Teatro de Arena de
São Paulo, fundado e dirigido por José Renato. Durante dois anos,
atua nos espetáculos “Escola de Maridos” e “Dias Felizes”, direção
de José Renato, e “Ratos e Homens”, dirigido por Augusto Boal. Em
1958, durante uma crise do Teatro de Arena, o texto “Eles Não Usam
Black-Tie”, escrito por Guarnieri, é o escolhido para driblar a situa-
ção econômica deficitária. O público recebe bem a estreia do novo
dramaturgo que coloca em cena, pela primeira vez na história do teatro brasileiro, a vida de
operários durante uma greve. A montagem, dirigida por José Renato, transforma-se num
sucesso estrondoso e Guarnieri passa para a história como um autor preocupado com a rea-
lidade, com densidade dramática, e coragem em abordar problemas sociopolíticos”. Escreveu
mais de vinte peças teatrais, dentre as quais destacam-se, além da já citada, as seguintes:
1965- Arena Conta Zumbi; 1971- Castro Alves Pede Passagem; 1973- Um Grito Parado no
Ar; 1976- Ponto de Partida; 1979- Crônica de um Cidadão sem Nenhuma Importância; 2001-

5
Luta Secreta de Maria da Encarnação. Faleceu em 22 de julho de 2006.

Aula
Fonte: http://www.spescoladeteatro.org.br/enciclopedia/index.php/Gianfrancesco_Guarnieri.

Na peça de estreia, que em 1981 ganhou versão cine-


matográfica de Leon Hirszman, o núcleo dramático encon-
tra-se nos desencontros de uma família operária: Otávio, o
pai, é um operário e líder grevista; Tião, seu filho, questiona
a posição do pai e não adere a seus valores. Desse embate,
emergem os conflitos da sociedade brasileira em suas con-
tradições nas relações entre capital x trabalho.
Considerando-se o conjunto da obra desse autor,
podemos perceber que se trata de uma proposta inovadora:

UESC Módulo 5 I Volume 4 171


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

[em termos] de linguagem de palco, am-


parada no apelo popular da música, sufi-
cientemente flexível para abraçar a um
só tempo o documento histórico e o co-
mentário moderno bordado à sua volta –
alguma coisa, quanto aos objetivos, entre
o teatro documentário e o teatro épico,
mas com soluções próprias e originais
(COUTINHO, 2004, p. 36).

Ainda no final dos anos de 1950, estreou a obra


Barrela, de Plínio Marcos, dramaturgo e escritor que ficou
mais conhecido nos anos de 1960, sobretudo com a peça
Dois perdidos numa noite suja (1966), uma das mais ence-
nada do autor e que recebeu, também, versões cinemato-
saiba mais
gráficas. Igualmente reconhecidas são as peças Navalha na
Para conhecer mais o
escritor Plínio Mar- carne (1967) e O Abajur Lilás (1969). Uma de suas tiradas
cos e sua obra, aces-
conhecidas informa sobre os problemas que enfrentou com
se o site: http://www.
pliniomarcos.com/ a ditadura militar: “Fui perseguido pela censura, mas fiz por
teatro/2perdidos.htm.
merecer”.


2.2.1 Sobre promessas de vida e histórias de
morte: Santareno e Dias Gomes

Vamos agora estudar duas peças importantes no con-


junto da literatura dramática desse período histórico que es-
tamos enfocando. São elas A promessa (1957), do português
Bernando Santareno, e O pagador de promessa (1959), do bra-
sileiro Dias Gomes.
Dividida em três atos e três quadros, A promessa, de
Bernardo Santareno (pseudônimo de António Martinho do
Rosário - 1920/1980), põe em cena a vida de uma aldeia, cuja
ambientação, segundo as didascálias, “resuma os usos e cre-
dos dos pescadores portugueses: não apenas os duma certa
região [...], mas os da costa em geral”. O cenário principal é
a casa dos protagonistas, o casal José e Maria do Mar, onde

172 Letras Vernáculas EAD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

também moram o pai, Salvador, e o irmão caçula do marido.


A temporalidade externa, no entanto, não é marcada, quer
dizer, não ficamos a saber exatamente de que época específi-
ca se trata, o que nos leva a trazer a peça para o presente em
que ela foi publicada.
A trama gira em torno do descontentamento de Ma-
ria do Mar com a promessa feita pelo marido para que Sal-
vador retornasse com vida de uma tempestade que causou
muitos naufrágios. Realizado o que todos consideraram um
milagre, a sobrevivência do velho pai, o filho mais velho tra-
tou de colocar em prática o prometido: a abstinência sexual
dele e da mulher, então recém-casados.

saiba mais
Bernardo Santareno (Santarém, 18-11-1920 – Lisboa, 29-08-1980) é o pseudónimo lite-
rário de António Martinho do Rosário, cujo exercício da medicina (em Psiquiatria) conciliou,
durante anos, com a escrita para teatro, alcançando, desde a sua estreia nos anos sessen-
ta, um papel de primeiro plano no teatro português. Entre registos realistas, de tonalidade
mais naturalista ou com traços épicos, a sua escrita foi essencialmente de denúncia, atenta
à realidade do país e visando uma consciência social, o que lhe valeu a proibição de algumas
das suas peças e a perseguição pelo regime salazarista.
A promessa foi publicada pela primeira vez em 1957, numa edição de autor, juntamente
com dois outros textos de teatro [...]. Levada à cena pelo Teatro Experimental do Porto
em 1957, a peça foi rapidamente retirada de cena, por força da censura, só voltando a ser
autorizada a sua subida aos palcos dez anos depois.
Fonte: Disponível em: http://cvc.instituto-camoes.pt/teatro-em-portugal-textos-lista/2158-
a-promessa.html.

5
Aula
Mesmo tendo aceitado e sendo parte do que prome-
teram a Nossa Senhora, Maria do Mar não consegue refrear
seu desejo e sua irritação diante da obstinação do compa-
nheiro em manter a palavra dada à Santa. Começa, inclusive,
a sentir-se rejeitada e passa, assim, a rejeitar as virtudes reli-
giosas do marido:

SALVADOR – [...] Vai falar com o pa-


dre, Maria do Mar: promessas assim, não
devem fazer-se. Mas se, num momento
de aflição, um pobre mortal as faz... deve
mudá-las. Vai ter com o senhor Prior, Ma-
ria do Mar! [...] Vocês não são santos!...
MARIA DO MAR - (Desdém e raiva) É.

UESC Módulo 5 I Volume 4 173


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Ele é. O seu filho quer ser santo! (SAN-


TARENO, , p. 14-15).

As discussões na família começam a ser frequentes,


contando a moça com a ajuda e anuência da mãe, Rosa, que,
quando chega de visita na casa da filha, conta as novidades:
os conflitos armados decorrentes da repressão ao contraban-
do, que vai se tornando uma alternativa para a difícil situa-
ção dos trabalhadores do mar. Segundo Rosa, entretanto, os
moradores da aldeia não aderiram à prática ilegal, combatida
a tiros pela polícia. Durante um desses tiroteios, próximo à
casa da família protagonista, onde estão todos reunidos, o
clima é de comoção geral. Explicita-se, então, a situação e
o sentido dos nomes das personagens principais, a começar
por Salvador: o sobrevivente do mar, que não salvou mas foi
salvo, queixa-se de sua condição de inválido:

SALVADOR – (A tentar erguer-se, com


as muletas.) Se eu pudesse ... (deixa-se
cair) não, não posso... não presto! ... Ai,
tia Rosa, eu já estou morto... (SANTAR-
ENO, p. 23).

O irmão caçula de José, Jesus, aparece para se inteirar


dos acontecimentos, mas é cego e não pode ajudar direta-
mente a ninguém, embora seja sensitivo, aproximando-se
do oráculo grego ou dos adivinhos cegos que são os únicos
a verem as verdades humanas mais profundas do destino hu-
mano. Quanto à Maria do Mar, não só renega a pureza que
lhe impõe a promessa e a aproximação (até pelo nome) com
a Virgem Maria, como rejeita o mar, em vários momentos
do texto. José, inicialmente, mantém a postura de máxima
fidelidade aos seus princípios religiosos até o momento em
que também se rebela.
A rebeldia de José, seu descontrole e mudança de ca-
ráter (de postura) efetiva-se quando entra em cena António
Labareda, um dos caçados pela polícia, que, ferido, ganha

174 Letras Vernáculas E AD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

abrigo na casa de Maria do Mar e José. Trata-se do elemento


desencadeador do máximo desequilíbrio que levará ao clí-
max da ação dramática: com a marca do fogo no nome, o
forasteiro despertará o desejo de Maria e os ciúmes de José.
Já Dias Gomes, em O pagador de Promessas, põe em
cena a história de Zé do Burro que, acompanhado de sua
mulher Rosa, dirige-se à cidade de Salvador, distante 42 qui-
lômetros da região onde mora, cujo percurso é feito a pé,
carregando uma cruz que pretende colocar no altar da Igreja
de Santa Bárbara, como pagamento da promessa feita a es-
sa santa por ter salvado seu burro Nicolau. Observa-se, na
apresentação do texto, a definição da época atual como o
tempo das ações. A tensão dramática se estabelece quando,
ao informar o padre de seus objetivos, o protagonista vê-se
repentinamente num jogo de forças e interesses que lhe são
alheios, incompreendido por ter lançado mão de um recurso
católico para salvar o animal, ainda mais porque estabeleceu
sua tarefa sagrada em um terreiro de candomblé, a partir do
sincretismo que aproxima Iansã de Santa Bárbara.
para conhecer

“Dias Gomes (Alfredo de Freitas D. G.), romancista, contista e


teatrólogo, nasceu em Salvador, BA, em 19 de outubro de 1922.
Faleceu em São Paulo no dia 18 de maio de 1999. [...] Estreou

5
no teatro profissional em 1942, com a comédia Pé-de-cabra, en-
cenada no Rio de Janeiro e depois em São Paulo por Procópio

Aula
Ferreira, que com ele excursionou por todo o país. Em 1959, es-
creveu a peça O pagador de promessas, que estreou no TBC, em
São Paulo, sob direção de Flávio Rangel e com Leonardo Vilar no
papel principal. Dias Gomes ganhou projeção nacional e interna-
cional. A peça, traduzida para mais de uma dúzia de idiomas, foi
encenada em todo o mundo. Adaptada pelo próprio autor para o
cinema, O pagador de promessas, dirigido por Anselmo Duarte,
recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962. [...]
Em 1964, Dias Gomes foi demitido da Rádio Nacional, da qual
era diretor-artístico, pelo Ato Institucional n. 1. [...]. A partir de
então, participou de diversas manifestações contra a censura e em defesa da liberdade de
expressão. Ele próprio teve várias peças censuradas durante a vigência do regime militar.
[...] Apesar da censura, não interrompeu a produção teatral, e várias peças suas foram en-
cenadas entre 1968 e 1980, destacando-se Dr. Getúlio, sua vida e sua glória (Vargas), em
parceria com Ferreira Gullar, encenada no Teatro Leopoldina, de Porto Alegre, em 1969; O
bem-amado, encenada no Teatro Gláucio Gil, do Rio de Janeiro, em 1970; O santo inquérito,
no Teatro Teresa Rachel, do Rio, em 1976; e O rei de Ramos, no Teatro João Caetano, em
1979. Em 1980, em decorrência da decretação da Anistia, foi reintegrado aos quadros da
Rádio Nacional, e trabalhos seus, como Roque Santeiro, foram liberados para apresentação”.
Fonte:http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=448&sid=231.

UESC Módulo 5 I Volume 4 175


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Isolado em sua convicção e princípios, Zé do Burro


não pode contar com a adesão de Rosa, sua mulher e compa-
nheira de jornada, que acaba seduzida pelos encantos fáceis de
Bonitão, um agenciador da prostituição local. Entretanto, o
protagonista ganha a simpatia dos negros e populares que não
aceitam as imposições da Igreja Católica, porém estes também
são impotentes para resolver o conflito que vai tomando pro-
porções inesperadas, principalmente com as artimanhas de um
repórter que, por meio de manchetes sensacionalistas, trans-
forma Zé do Burro em um agitador revolucionário:

GUARDA – Vejam! Primeira página com


retrato e tudo! (Mostra o jornal a Rosa, que
corre ansiosamente). [...]
ZÉ – [...] Afinal, o que diz aí?
GUARDA – [...] “O novo Messias prega a
revolução”.
ZÉ – (Estranha) Revolução? [...]
GUARDA – É, revolução. Está aqui. (Con-
tinua) “Sete léguas carregando uma cruz,
pela reforma agrária e contra a exploração do
homem pelo homem”. (Entreolham-se sem
entender).
ZÉ – Eu bem achei que aquele camarada não
era certo da bola...
(GOMES, 2002, p.88)

Nesse desencontro de perspectivas, o próprio nome do


protagonista já “acentua certo teor quixotesco e a obra de Cer-
vantes, como se sabe, baseia seu humor no tema do herói me-
dieval, perdido no mundo moderno” (ROSENFELD, 1996, p.
75). No entanto, o caráter resoluto e cristalino do pagador de
promessas de Dias Gomes o aproxima mais do herói trágico.
A partir dessa constituição dos protagonistas, percebe-
se que tanto o texto dramático português quanto o brasilei-
ro estruturam-se a partir dos principais elementos da tragédia
grega. A esse respeito, são similares as avaliações de dois im-
portantes estudiosos dessas obras, Sábado Magaldi e Anatol
Rosenfeld:

176 Letras Vernáculas E AD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

Os recursos mais remotos desse teatro são


tributários da ideia de destino, bebida na
tragédia grega, da qual não se separam, por
compreensível metamorfose, os mistérios da
Páscoa e da Natividade, na religião cristã. (p.
452). [A Santareno interessam] as emoções
violentas, os encontros fatais, os presságios
determinantes, os instintos desencadeados.
Tudo acontece numa atmosfera imantada,
em que o homem comunga com a natureza
e os animais. [...] É evidente que tal visão do
mundo se ajusta mais aos aglomerados primi-
tivos, que não conheceram ainda o desen-
raizamento do processo civilizador. Por isso ,
a maioria das peças se passa entre pescadores,
nos povoados rústicos e no meio de Campi-
nas, onde a vida se resume a um quase diálogo
com a natureza (MAGALDI, 1989, p. 452).

[...] O pagador de promessas é uma das raras


peças brasileiras modernas em que aparece
um verdadeiro ‘herói trágico’, de certo cunho
mítico. Distinguem-no a simplicidade e a in-
flexibilidade quase monumentais e a pureza
elementar das suas reações, bem condizentes
com o mundo primitivo de onde provém ao
invadir a cidade [...] (ROSENFELD, 1996, p.

5
52).

Aula
A partir desse embate entre a realidade das forças primi-
tivas diante do mundo degradado, desvela-se o alto preço que
as vidas prometidas e resgatadas impõem: a justeza de princí-
pios dos heróis vai de encontro a um mundo que não comporta
mais condutas determinadas, pautadas pela irredutibilidade da
palavra, assumida como própria afirmação do indivíduo, sem o
reconhecimento de sua dimensão e sentido simbólico.
Desse modo, tendo-se em vista o desenrolar das ações
dramáticas, estabelece-se o que se define como crise de identi-
dade: a ação conjunta de um duplo deslocamento, a descentra-
lização dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo sociocul-
tural quanto de si mesmos.

UESC Módulo 5 I Volume 4 177


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Pode-se admitir, nos textos dramáticos em foco, a rele-


vância da concepção de sujeito sociológico, que reconhece a
importância dos outros, o peso da alteridade, por meio da qual
os valores, sentidos e símbolos do mundo por ele habitado são
mediados. Assim, do sujeito centrado no Iluminismo, dá-se
um salto da individualização para a interação entre o indiví-
duo e a sociedade. Embora o “eu real” permaneça, sua postura
é terminantemente modificada pelo diálogo contínuo com o
mundo exterior.

para conhecer

A concepção de sujeito sociológico, bem como do sujeito cen-


trado do Iluminismo é do teórico Stuart Hall (Kingston/Jamaica,
03/02/1932), quando reflete sobre as mudanças que levaram ao
atual sujeito pós-moderno. Vamos ler a passagem em que ele
define essas concepções:
“Para os propósitos desta exposição, distinguirei três concepções
muito diferentes de identidade, a saber, as concepções de identida-
de do: a) sujeito do Iluminismo; b) sujeito sociológico; e c) sujeito
pós-moderno. O sujeito do Iluminismo estava baseado numa con-
cepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de
ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que pela primeira
vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que
permanecendo essencialmente o mesmo — continuo ou ‘idêntico’ a
Figura 4: Stuart Hall
Fonte: socialniteorie.cz ele — ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu
era a identidade de urna pessoa. Direi mais sobre isto em seguida,
mas pode-se ver que essa era uma concepção muito “individualis-
ta” do sujeito e de sua identidade (na verdade, a identidade dele: já que o sujeito do Ilumi-
nismo era usualmente descrito como masculino).
A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a
consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas
era formado na relação com ‘outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o
sujeito os valores, sentidos e símbolos — a cultura — dos mundos que ele/ela habitava.
[...] De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão,
a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um
núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo
contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem.
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o ‘interior’ e o ‘exte-
rior’— entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a ‘nós próprios’
nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e va-
lores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com
os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura
(ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os su-
jeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais
unificados e predizíveis.

178 Letras Vernáculas EAD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

Argumenta-se, entretanto, que são exatamente essas coisas que agora estão ‘mudando’. O
sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornan-
do fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham
as paisagens sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as ‘ne-
cessidades’ objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças
estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos proje-
tamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma iden-
tidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel’: for-
mada transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. E definida historicamente, e não
biologicamente” (HALL, 2006, p. 10-13).

Se a identidade é a responsável pela estabilização e


localização do sujeito, o que se percebe nos heróis masculi-
nos das peças de Santareno e Dias Gomes é o conflito per-
manente entre, por um lado, na obra do primeiro, a força da
tradição afirmando o reconhecimento de José como sujeito,
inicialmente integrado ao meio; e, no segundo, a incomu-
nicabilidade irredutível de Zé Burro com as representações
sociais do mundo urbano.
Quanto às figuras femininas centrais, se Maria do
Mar sente-se responsável pela promessa feita, isso não a
impede de externar seu descontentamento e de desafiar sua
posição identitária como mulher honrada e fiel aos princí-
pios do marido e, por extensão, do grupo social a que per-

5
tence. Rosa, por sua vez, não está presa ao prometido pe-

Aula
lo companheiro, mas a ele sente-se ligada como forma de
reconhecer-se, ainda que venha a efetivamente sucumbir aos
seus desejos, mesmo sob o peso da culpa de ter, principal-
mente, traído uma identificação com os princípios de Zé do
Burro, os quais reconhece como “puros” e legítimos.
O clímax de A promessa se dá quando Maria do Mar
decide seguir sua vida ao lado de Labareda, em confidên-
cia que faz a Jesus, na madrugada do domingo da Páscoa,
enquanto José realizava as atividades de sacristão junto
do Prior da aldeia. Em face do pedido de Jesus para que a
cunhada não se vá encontrar com o forasteiro, Maria do Mar
responde firme:

UESC Módulo 5 I Volume 4 179


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Maria do Mar: - Isso é que vou. E já! Está


resolvido. Mas fica descansadinho, ra-
paz: ele não me toca! A Maria do Mar só
morde o anzol de sua livre vontade. Vou.
E sabes para quê? Para lhe dizer que se vá
embora, que vá esperar-me lá na terra dele.
Eu irei logo que possa. Amanhã! Quem
me dera, quem me dera! Irei ter com ele.
Mas primeiro quero falar com teu irmão
Zé. Estás a ouvir? Eu não intrujo ninguém,
não preciso disso: sou clara como a espu-
ma do mar! Mas gosto do Labareda e hei-
de viver com ele... (SANTARENO, 1966,
p. 91).

Enquanto Maria está fora, chega José perguntando


pela mulher, dizendo que a viu para o lado oposto da Igreja
onde ele estava. Deduz e pergunta ao pai e ao irmão se ela
teria ido encontrar-se com Labareda; possesso, trata com
brutalidade o pai, desdiz sua promessa e a própria santa:

JOSÉ – Cale-se meu pai! Vossemecê não


presta, pai. Não serve para nada. Para
nada deste mundo, ouviu? Aqui, sempre
fechado nesta casa, e nem a minha honra
... nem a honra da sua família, foi capaz
de guardar! (Num urro feroz, para a ima-
gem do oratório). Acabou-se, acabou-se a
promessa! Mentiste-me, atraiçoaste-me,
tu também. Mas vais ver, vais ver como eu
sei tirar a desforra! Tu, santa, tu também
não prestas: és de barro, não falas, não
ouves... Mentiradeira! Acabou-se, já não
te quero! Estás a ouvir-me, santa? Olha,
cuspo-te... Enganaste-me... Não te quero
ver mais! (Atira pela janela, a imagem para
o mar). Que te beba o mar ruim! (SAN-
TARENO, 1966, p. 94).

Essa atitude de José pode ser entendida como a revol-


ta do indivíduo contra as crenças asfixiantes, contra o peso
de uma tradição obscurantista (MAGALDI, 1996). Segue-

180 Letras Vernáculas E AD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

se a essa situação o momento realmente crítico, quando a


personagem, ao sair, carrega sua espingarda e, ao voltar, sujo
de sangue, encontrando todos juntos, inclusive sua mulher,
revela ter castrado e matado Labareda.
Maria do Mar já havia afirmado para Salvador e Jesus
que, enfim, não teve coragem de seguir seu desejo e ao ser
questionada sobre o porquê de sua desistência, responde:

Maria do Mar - Eu sei lá... Olhe, tive


medo! Foi lá em riba, quando ia a passar
no cemitério: estão lá os corpos do meu
pai, dos meus avós, da minha gente toda...
Não pude ir para diante: tive respeito, tive
medo!... Até o mar parecia que gritava:
Perdida! Perdida! (SANTARENO, 1966,
p. 98).

No entanto, já era tarde e, depois da revelação, sozi-


nho, o casal entrega-se a uma furiosa luta de posse, desejo
e raiva: “(Maria do Mar e José rolam pelo chão. Durante mo-
mentos, só ruídos animais, ferozes)” (p. 103).
O final da peça é marcado pelo cortejo de Labareda,
acompanhado à distância por um Jesus perplexo e alheio a

5
tudo, e a ordem de prisão a José, que se entrega sem resis-

Aula
tência, enquanto Maria do Mar, juntamente com a mãe e
Salvador, fecha-se em casa.
Por último, o “coro final das velhas, que maldizem
a heroína e a responsabilizam pela tragédia. Depois de pro-
meterem-lhe um feitiço, encerram a peça fazendo, em sua
porta, o sinal-da-cruz” (MAGALDI, 1996, p. 462).
Devemos lembrar o quanto à mulher, na sociedade
patriarcal, foi imputada a culpabilidade dos “desregramen-
tos” familiares, pois cabia a ela o zelo e a imagem maternal
da retidão e da abnegação (de desejos, vontade própria etc.).
Assim, nesse texto, encontramos essa dimensão crítica: em-
bora acabe se submetendo à ética de seu grupo, ao preceito

UESC Módulo 5 I Volume 4 181


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

da honra, a rebeldia de Maria do Mar é a responsável pelo


trágico fim dos dois homens: a morte de Labareda, e a morte
social de José (MAGALDI, 1996).
Em síntese, estabelece-se, n’A Promessa, a ideia de que a
oposição entre o indivíduo que tenta se rebelar contra o grupo
retrógrado que o circunda em limites sufocantes se transforma
em uma luta inglória. Ou por outra, a promessa violada não
libertou as forças naturais e limitadamente humanas das per-
sonagens; o que se afirma, enfim, é a permanência do peso da
tradição no rompimento com o sagrado.
Já em O pagador de promessas, o final trágico de Zé
Burro mostra a inadequação do protagonista a seu tempo,
podendo-se compreender a sua incapacidade de transformar
seus atos em efetiva ação política:

Da sua consciência de herói de traços primiti-


vos decorre a força empolgante de Zé do Bur-
ro, enquanto representativo das virtualidades
humanas (integridade absoluta, mantida com
sua firmeza de rocha contra todos os obstácu-
los), mas também a sua fraqueza operativa no
mundo moderno. Ele poderia ser líder, mas só
de movimentos míticos inconsequentes. Dis-
tribuindo terras, não poderá fazê-lo, de acordo
com a simplicidade do herói mítico, conforme
princípios objetivos de justiça social mas por
impulso pessoal e intransferível [...] (ROSEN-
FELD, 1989, p. 74).

Essa irredutibilidade do protagonista de Dias Gomes


faz com que seu extremismo aproxime-se da falha grega, a
“cegueira” do herói trágico, mas permeado da realidade de-
corrente de suas convicções profundas, ligadas aos “padrões
arcaicos do sertão. A estas convicções ele não pode renun-
ciar sem renunciar à sua dignidade e, portanto, à sua própria
substância humana que se afirma no cumprimento do impe-
rativo, para ele absoluto” (MAGALDI, 1989, p. 58).
Desse modo, pode-se reconhecer nessa impossibili-
dade de renúncia de Zé do Burro o quanto o conceito de

182 Letras Vernáculas E AD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

identidade unificada constrói-se por uma “narrativa do eu”.


Tal narrativa estrutura-se, entre outros aspectos, por meio
da relação do homem com o espaço. No caso do herói de
Dias Gomes, ele não consegue transitar na cidade, onde, no
seu microcosmo, a praça central, ocupam posições os co-
merciantes, os negros, a polícia, a igreja, com suas beatas e
romeiros. Trata-se de um convívio frágil, que é desequilibra-
do pela permanência de um interiorano decidido a ocupar
esse lugar, mas incapaz de reconhecer e aderir à elasticidade
dos papéis sociais. Com o desequilíbrio, instaura-se o con-
flito – que a cena final da peça mantém em suspenso: a der-
rota de Zé do Burro foi sua vitória, mas como a sua ação, e
a dos populares, não comportava efetivamente um projeto
ou denúncia social, não se forja exatamente um mártir e sua
morte passa a significar, muito mais, a incontornável extin-
ção de uma singularidade:

ZÉ (Decidido Não! Ninguém vai me levar preso! Não fiz nada pra ser preso!
a resistir)
DELEGADO Se não fez não tem o que temer, será solto depois. Vamos à
Delegacia.
ROSA Não, Zé, não vá!
GUARDA É melhor... na Delegacia o senhor explica tudo.

5
DEDÉ Não caia nessa, meu camarado.

Aula
ZÉ Agora eu decidi: só morto me levam daqui. Juro por Santa
Bárbara, só morto.
SECRETA (Vê a faca na mão de Zé-do-Burro) Tome cuidado, Chefe, que
ele está armado! (Observa a atitude hostil dos capoeiras). E es-
sa gente está do lado dele!
COCA Estamos mesmo. E aqui vocês não vão prender ninguém!
DELEGADO Não vamos por quê?
MANOELZI- Porque não está direito!
NHO
DELEGADO Estão querendo comprar barulho?
COCA Vocês que sabem...
DELEGADO Não se metam, senão vão se dar mal!

UESC Módulo 5 I Volume 4 183


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

SECRETA E é melhor que se afastem.


ROSA Zé!
ZÉ Me deixe, Rosa! Não venha pra cá!

(Zé-do-Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja. Sobe um ou dois degraus,


de costas. O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que
a faca vá cair no meio da praça. Zé-do-Burro corre e abaixa-se para apanhá-la. Os
policiais aproveitam e caem sobre ele, para subjugá-lo. E os capoeiros caem sobre os
policiais para defendê-lo. Zé-do-Burro desapareceu na onda humana. Ouve-se um
tiro. A multidão se dispersa como num estouro de boiada, Fica apenas Zé-do-Burro
no meio da praça, com as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à
igreja e cai morto).
ROSA (Num grito) Zé! (corre para ele)
PADRE (Num começo de reconhecimento de culpa).
Virgem Santíssima!
DELEGADO (Para o Secreta) Vamos buscar reforço. (Sai, seguido do Secreta
e do Guarda).
O Padre desce os degraus da igreja, em direção do corpo de Zé-do-Burro.
ROSA (Com rancor) - Não chegue perto!
PADRE Queria encomendar a alma dele...
ROSA Encomendar a quem? Ao Demônio?

O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada. Bonitão surge na ladeira. Mestre
Coca consulta os companheiros com o olhar. Todos compreendem a sua intenção e
respondem afirmativamente com a cabeça. Mestre Coca inclina-se diante de Zé-do-
Burro, segura-o pelos braços, os outros capoeiras se aproximam também e ajudam a
carregar o corpo. Colocam-no sobre a cruz, de costas, com os braços estendidos, como
um crucificado. Carregam-no assim, como numa padiola e avançam para a igreja.
Bonitão segura Rosa por um braço, tentando levá-la dali. Mas Rosa o repele com um
safanão e segue os capoeiras. Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira. Intimidados, o
Padre e o Sacristão recuam, a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz,
sobre ela o corpo de Zé-do-Burro. O Galego, Dedé e Rosa fecham o cortejo. Só Minha
Tia permanece em cena. Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça.

MINHA TIA (Encolhe-se toda, amedrontada, toca com as pontas dos dedos o
chão e a testa) Êparrei minha mãe!
E O PANO CAI LENTAMENTE.

184 Letras Vernáculas EAD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

Textos demarcados em um tempo e espaço reconhe-


cíveis, A promessa, de Santareno, e O pagador de promessas,
Reificação: conceito
de Dias Gomes, revelam, apesar disso, uma dimensão mais cunhado pelo teórico
húngaro georg Lukács
ampla, ao apontarem para temas que assinalam as angústias (1885/1971) em His-
de nossa condição humana (no plano da sociedade ociden- tória e Consciência de
Classe (1923), refere-
tal judaico-cristã): seja enfocando o conflito do indivíduo se, de modo sintético,
à coisificação da socie-
diante das forças da conservação de um imaginário religioso dade capitalista: em
e social que coíbe seus desejos; seja pela trágica situação de nome do lucro (mais-
valia), o valor de troca
homens e mulheres isolados e marginalizados por não “assi- se sobrepõe ao valor
de uso, estabelecen-
milarem” os valores de uma sociedade reificada.
do-se a mercadoria
como base do sistema
e, assim, as relações
de trabalho se tornam
alienadas, os homens
ATIVIDADES se tornam “coisas”.

1. O excerto a seguir integra a obra Pequeno Organon


para o Teatro, de Bertold Brecht. Após sua leitura, e
retomando os principais aspectos do teatro épico de-
senvolvidos nesta unidade, responda: como se pode
definir, de maneira sintética, as proposições centrais
da teoria brechtniana?

Necessitamos de um teatro que não nos

5
proporcione somente as sensações, as idé-

Aula
ias e os impulsos que são permitidos pelo
respectivo contexto histórico das relações
humanas (o contexto em que as ações se
realizam), mas, sim, que empregue e sus-
cite pensamentos e sentimentos que des-
empenhem um papel na modificação desse
contexto (BRECHT).

2. Leia uma das peças de Nelson Rodrigues e elabore


uma sinopse do enredo, destacando a importância da
dramaturgia desse autor:

3. Comparando as duas “promessas” das peças estudadas


de Santareno e Dias Gomes:

UESC Módulo 5 I Volume 4 185


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

a. elabore um quadro sintético sobre suas principais se-


melhanças e diferenças em relação à situação dos pro-
tagonistas masculinos e femininos;
b. desenvolva um comentário sobre as motivações cen-
trais de cada peça em relação à crítica social que apre-
sentam:

RESUMINDO

Nesta aula, foram apresentados alguns dos principais


autores/obras da dramaturgia brasileira e portuguesa das
décadas de 1940 a 1970, demonstrando-se as preocupações
sociais e a crítica política como principais fios condutores
desses textos. Por essa dimensão crítica, ganhou destaque
entre os dramaturgos de Portugal e do Brasil a teoria teatral
de Bertold Brecht, o teatro épico. Para explicitar o diálogo
entre obras dramáticas desses dois países, realizou-se a aná-
lise comparativa entre as peças A promessa, de Santareno, e
O pagador de promessas, de Dias Gomes.

186 Letras Vernáculas EAD


O PALCO DA SOCIEDADE EM CRISE

REFERêNCIAS

AZEVEDO, Elizabeth. O uso da rubrica na obra de Jorge


Andrade. In: Sala Preta. Revista do ECA/USP, v. 1., n. 1.,
São Paulo, 2001, p. 49-57.

GOMES, Dias. O pagador de promessas. 36. ed. Rio de


Janeiro: Ediouro, 2002.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernida-


de. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

MAGALDI, Sábato. O texto no teatro. São Paulo: Pers-


pectiva, 1989.

ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno tea-


tro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996.

SANTARENO, Bernardo. A promessa. 3. ed. Lisboa: Áti-


ca, 1966.

VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário de teatro.


Porto Alegre: L&PM, 2001.

5
Aula

UESC Módulo 5 I Volume 4 187


Suas anotações

...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
..................................................................................................................
..................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
...................................................................................................................
....................................................................................................................
aula

CENÁRIOS
CONTEMPORÂNEOS

Objetivo:

• Compreender as principais tendências da literatura


dramática em língua portuguesa na atualidade.
CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

1 INTRODUÇÃO

O Brasil do início dos anos de 1970 experimentava um


dos momentos mais opressores do regime militar, enquanto
em Portugal, em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cra-
vos colocava fim à ditadura de António de Oliveira Salazar.
As transformações posteriores à redemocratização portugue-
sa implicaram na independência das colônias que possuía na
África: assim, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Ver-
de e São Tomé e Príncipe tornaram-se países independentes.
Nesta aula, vamos conhecer os principais percursos
da literatura dramática e do teatro, de modo alargado, reali-
zados nesses países de língua portuguesa a partir da década
de 1970 até a atualidade. Por certo, trata-se de um painel
6

muito genérico sobre tema tão vasto, mas, reafirmando o


Aula

que colocamos na “Apresentação” desta disciplina, por meio


dele você está convidado a aprofundar seus estudos, com-
plementando a leitura das obras e autores aqui citados e des-
cobrindo outros nomes e títulos que vêm se revelando neste
dinâmico e tão importante cenário da dramaturgia em nossa
língua.

UESC Módulo 5 I Volume 4 191


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

2 A LITERATURA DRAMÁTICA BRASILEIRA NA


ATUALIDADE

Os anos de 1970 são conhecidos, no Brasil,


como os “anos de chumbo”, pois, com o Ato Institucio-
nal nº 5, que suprimia todos os direitos políticos dos cida-
dãos, a ditadura militar chegava ao seu momento mais duro
e opressor. Os rigores da censura atingiam todos os setores
da comunicação e da cultura e, assim, o teatro também foi
diretamente atingido: “qualquer referência crítica a um ou
outro aspecto da realidade brasileira, a mínima alusão ao cli-
ma de sufoco e insegurança em que estávamos mergulhados
bastava para que uma peça teatral fosse proibida” (FARIA,
1998, p. 165).
Somente a partir de 1975 houve uma maior tranquili-
dade, com a lenta distensão política prometida pelo regime,
mas a repressão continuava a mesma, apenas disfarçada com
algumas liberações. É o caso, por exemplo, de, nesse mesmo
ano, a censura ter proibido a representação da peça Rasga co-
ração, de Oduvaldo Vianna Filho, e permitido a representa-
ção de Gota d’Água, de Chico Buarque de Holanda e Paulo
Pontes. Sobre essa peça, devemos saber que se trata de um
intertexto que os autores fizeram com a tragédia Medéia, de
Eurípedes:

[...] uma mulher abandonada se vinga do


ex-amante, envenando os filhos e comet-
endo suicídio. Mas o enredo surgia rechea-
do por tipos colhidos na paisagem carioca,
especificamente num conjunto residencial
do subúrbio. Por meio de versos trabal-
hados com muita competência, músicas
extraordinárias e situações exemplares,
os autores descarnaram os mecanismos
de dominação que regem as relações so-
ciais entre os poderosos e os subalternos.
O enorme sucesso de Gota d’Água foi
uma demonstração cabal de que a plateia
brasileira estava novamente aberta a esse

192 Letras Vernáculas EAD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

tipo de dramaturgia que se apresentava


como reflexão crítica (FARIA, 1998, p.
170).

Voltada igualmente ao questionamento da realida-


de do país, em 1978 foi encenada Murro em ponta de faca,
de Augusto Boal, sobre a situação dos exilados brasileiros,
“representados por três casais que se refugiam no Chile de
Allende, mas que são obrigados a fugir [novamente] da di-
tatura de Pinochet. Na bagagem, levam principalmente as
imagens dos amigos mutilados e mortos, as lembranças da
violência policial [ ...], as marcas da derrota política” (FA-
RIA, 1998, p. 172).
Sobre este dramaturgo, Augusto Boal, devemos sa-
ber que foi o responsável pela criação de uma poética teatral
destinada à conscientização política sobre as relações de po-
der: o “Teatro do Oprimido”. Sobre sua proposta estética e
política assim ele se posicionou em 1974:

[...] todo teatro é necessariamente políti-


co, porque políticas são todas as atividades
do homem, e o teatro é uma delas. Os que
pretendem separar o teatro da política,
pretendem conduzir-nos ao erro – e esta
é uma atitude política. [...] o teatro é uma
arma. Uma arma eficiente. Por isso, é ne-
cessário lutar por ele. Por isso, as classes
dominantes permanentemente tentam
apropriar-se do teatro e utilizá-lo como
instrumento de dominação. Ao fazê-lo,
modificam o próprio conceito do que seja
6

o ‘teatro’. Mas o teatro pode igualmente


Aula

ser uma arma de libertação. Para isso é ne-


cessário criar as formas teatrais correspon-
dentes. É necessário transformar. [e isso
vem] atualmente ocorrendo em [muitos]
países da América Latina: a destruição das
barreiras criadas pela classe dominante.
Primeiro se destrói a barreira entre atores
e espectadores: todos devem representar,
todos devem protagonizar as necessárias

UESC Módulo 5 I Volume 4 193


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

transformações da sociedade. [...] Depois,


destrói-se a barreira entre os protagonistas
e o Coro: todos deve ser, ao mesmo tempo,
coro e protagonistas [...]. Assim tem que
ser a ‘Poética do Oprimido’: a conquista
dos meios de produção teatral (BOAL,
1983, p. 14).

Podemos perceber que se trata de uma proposição de


dramaturgia filiada ao teatro épico de Brecht, destinada ao
questionamento da realidade social e ao próprio papel do te-
atro como meio de produção cultural. Nesse sentido, com
muitas variações temáticas e formais, a cena brasileira viven-
ciou, nos anos de 1970 e 1980, uma retomada crítica do pro-
cesso histórico por que passou o país, reeditando e finalmen-
te apresentando peças que tinham sido censuradas.
Para outros críticos, como Sábado Magaldi (2004, p.
314), “talvez o marco da contemporaneidade [do teatro bra-
sileiro] caiba ser definido como o ano de 1978, pelo lança-
mento de Macunaíma e pelo fim do Ato Institucional nº 5”.
Isso porque, segundo Magaldi, iniciou-se, nesse momento, a
fase de domínio dos “encenadores a partir da montagem de
Antunes Filho para a adaptação cênica da ‘rapsódia’ de Mário
de Andrade” e, com o abrandamento do regime, registrou-se
“uma mudança na linha da dramaturgia [...]” (Idem, ibidem).
Essa mudança processou-se, sobretudo, com os novos pres-
supostos que passaram a orientar a teoria dramática:

O reconhecimento do teatro como arte


autônoma, embora devedora de várias for-
mas artísticas, e não mera ilustração da lit-
eratura, provocou importantes mudanças
práticas. Admite-se hoje que, se o drama-
turgo é o autor do texto, o encenador é o
autor do espetáculo. E, pela autoria com-
pete-lhe assumir uma criação. Criação sui
generis, já que fundada em outra, mas que
tem o direito à plenitude (MAGALDI,
2004, p. 316).

194 Letras Vernáculas EAD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

Nessa perspectiva, José Possi Neto pode ser conside-


rado o primeiro encenador a obter êxito com a montagem,
em 1974, da peça De braços abertos, de Maria Adelaide Ama-
ral: “Ele soube inocular no placo uma atmosfera mágica, em
que a luz dirigia a flexibilidade dos movimentos, evitando os
prosaicos pormenores realistas, para instaurar a fluência do
sonho” (MAGALDI, 2004, p. 318).
Muito outros encenadores, entretanto, merecem ser
citados, dentre os quais se destacam Cacá Rosset, diretor do
grupo Ornitorrinco, criado em 1977; José Celso Martinez
Corrêa, importante nome da cena brasileira, diretor do Tea-
tro Oficina; Antônio Abujamra; Celso Nunes; Fauzi Arap;
Bia Lessa e tantos mais.
O caminho do atual teatro brasileiro, contudo, vem
procurando ajustar todas as dimensões de sua plenitude
artística e cultural: “O encenador [...] deseja o equilíbrio
com os outros elementos do espetáculo. A harmonia de to-
das as funções é o ideal perseguido” (MAGALDI, 2004, p.
322).
Assim, devemos reconhecer também outros nomes
relevantes da dramaturgia contemporânea brasileira como
Ivo Bender, Naum Alves de Souza e “chega-se a dois drama-
turgos de suma relevância para o atual panorama do teatro
brasileiro: Bosco Brasil e Samir Yazbek” (ÉBOLI, 2010, p.
18). Em relação ao primeiro, devemos saber que:

Bosco Brasil nasceu em São Paulo, no


ano de 1960, e formou-se em Teoria do
6

Teatro – Dramaturgia e Crítica Teatral –


pela Escola de Comunicação e Artes da
Aula

Universidade de São Paulo. É considera-


do um dos expoentes da nova geração de
dramaturgos brasileiros, tendo integrado
o movimento de renovação dramatúrgica
da década de 90, destacando-se a partir da
estréia de Budro, peça com a qual rece-
beu os Prêmios Shell e Molière de melhor
autor no ano de 1994. Em 1995, funda o
Teatro de Câmara de São Paulo, na Praça

UESC Módulo 5 I Volume 4 195


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Roosevelt, com repertório integralmente


dedicado à dramaturgia contemporânea.
De suas criações dramatúrgicas destacam-
se: Atos e omissões (1995), Qualquer um
de nós (1995), O acidente (1995), Os cov-
eiros (1998), Novas diretrizes em tempos de
paz (2001), Blitz (2001) e Cheiro de Chuva
(2002). [...] O autor é o primeiro brasileiro
a ser publicado na coleção Palco sur Scène,
que apresenta em edição bilíngue a nova
produção em dramaturgia brasileira e fran-
cesa (ÉBOLI, 2010, p. 19).

Considerando-se dois de seus textos, Cheiro de Chu-


va e Novas diretrizes em tempos de paz, pode-se observar que
a sua dramaturgia é marcada por transformações, alterações
e deformações do tempo e do espaço, por alternâncias de
monólogos e diálogos, colocando em relevo os conflitos das
relações humanas: “O sentido de dualidade e a relação de
alteridade [se] transformam em chave para a expressão de
questionamentos particulares e existenciais [e] surgem nes-
ses textos como base fundamental para o desenvolvimento
da narrativa dramática de Bosco Brasil” (ÉBOLI, 2010, p.
24).
Com relação a Samir Yazbek, também paulista, nas-
cido em 1967, trata-se de um autor, ator e diretor teatral
formado no Centro de Pesquisa Teatral do SESC-CPT,
coordenado por Antunes Filho. “De sua criação literária,
destacam-se os dramas Uma família à procura de um autor
(1988), Arquipélago (1994), Antes do fim (1998), O fingidor
(1999) – texto com o qual recebe o Prêmio Shell de drama-
turgia de melhor autor – A terra prometida (2001), A entre-
vista (2004), e O invisível (2006)” (ÉBOLI, 2010, p. 25). Os
trabalhos mais recentes do autor incluem, ainda, Diálogos
das Sombras (2007); A Noite do Barqueiro (2009) e As Folhas
do Cedro (2010).
Em comum, esses dois dramaturgos, Bosco Brasil e
Samir Yazbek, possuem os desafios da criação estética, no

196 Letras Vernáculas E AD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

âmbito teatral, num tempo em que tudo é possível, “tudo é


reproduzível, o espaço expressivo é imenso, o tempo e su-
as variantes é o protagonista” (ÉBOLI, 2010, p. 28). Nesse
sentido, pode-se dizer que essas questões se alargam para to-
da dramaturgia brasileira contemporânea: trata-se de como
expressar “a multiplicidade e a possibilidade de diferentes
caminhos a serem percorridos na busca de uma construção
individual e, consequentemente, coletiva e representante de
uma época” (ÉBOLI, 2010, p. 29).

3 PANORAMA DA ATUAL LITERATURA


DRAMÁTICA PORTUGUESA

Com a redemocratização de Portugal após a Revolu-


ção dos Cravos de 25 de abril de 1974, o teatro português,
livre da censura e das amarras criativas impostas pela ditadu-
ra salazarista, abriu-se a variados caminhos e possibilidades:

[Ocorreram] rupturas verificadas no nível


da escrita e da produção teatral, a refor-
mulação das relações entre o teatro e o
público, a abertura a novos espaços em
detrimento da cena tradicional ‘à italiana’,
a acentuação do divórcio entre o teatro
empresarial e o teatro independente, o
declínio crescente daquele e a progressiva
ascensão deste – tudo isso apesar da in-
definição de uma política para o setor [...]
(REBELLO, 1991, p. 99).
6
Aula

Essa renovação, contudo, não significou crescimento


da literatura dramática portuguesa propriamente, pois per-
maneciam em cena principalmente “textos de proveniência
estrangeira ou quando portugueses, selecionados de entre
os clássicos” (REBELLO, 1991, p. 99). Devem ser citados
alguns nomes, entretanto, que colaboraram para a renovação
da dramaturgia em Portugal nesse período pós-revolução:

UESC Módulo 5 I Volume 4 197


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

é o caso de Jaime Salazar Sampaio, Prista Monteiro, Jaime


Gralheiro, Virgílio Martinho, Luiz Francisco Rebello, José
Saramago, Helder Costa, Carlos Coutinho, Júlio Valarinho
(idem, ibidem).
Devem igualmente ser citados grupos de atuadores
independentes ou voltados ao teatro infantil, como, no pri-
meiro caso, o grupo Comuna e, no segundo, O Bando, di-
rigido por João Brites e, ainda, o teatro musicado, no qual
se destaca o nome de João de Freitas Branco (REBELLO,
1991, p. 103-4).
Dentre os destacados nomes da dramaturgia portugue-
sa nos anos de 1990 até a atualidade, encontra-se o de Luísa
Costa Gomes. Dessa dramaturga, reproduzimos, a seguir, a
primeira cena de sua peça A vida em Vênus:

A Terra, no futuro não muito distante, é um planeta em que as pessoas veem televisão
e jogam jogos de vídeo o tempo todo. Assim que nascem, é-lhes implantado no cére-
bro um chip de televisão e um terminal de multibanco [terminal de autoatendimento
bancário]. Os programas das escolas são programas de televisão. Os testes avaliam os
conhecimentos que os meninos têm dos jogos de vídeo e de computador. As pessoas não
têm curiosidade, não pensam, não conversam, não passeiam, não têm amigos. Veem
televisão e fazem compras. MIGUEL, por acaso, encontra num canto do sótão uns
“objectos” do passado, que não sabe o que são nem para que servem. Aquele passa a ser
o seu “tesouro” e o seu segredo. Os objectos intrigam-no e ele começa a fazer perguntas
a si próprio e a procurar as respostas. Entretanto, chega de Vénus o tio Zabulão, que vai
ser muito importante para o ajudar a decifrar aquele mistério. Porque a vida em Vénus
é bastante diferente da vida aqui na Terra. Bastante diferente, mesmo.

Personagens MIGUEL; JOAQUIM; ADÃO e EVA, pais de MIGUEL e


JOAQUIM; ZABULÃO, irmão de ADÃO; MADALENA,
mulher de ZABULÃO; XPTO, um robô; ANTUNES, o robô
gerente do Banco; SCHLOPF, o “venusiano”; PASSAGEIROS
DO AUTOCARRO [autocarro = ônibus]
CLIENTES DO SUPERMERCADO; CONVIDADOS DA
FESTA; VÁRIOS ROBÔS DOMÉSTICOS

198 Letras Vernáculas EAD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

Cena I
(Todos em palco, vestidos de igual. Quanto mais figurantes, maior o efeito de unifor-
midade e “cinzentismo”. Camisola [= camisa ou camiseta] cinzenta, calças cinzentas,
ténis, chapéu, gorro ou touca cinzenta. Na camisola trazem um grande número colado.
Todos trazem óculos escuros que são pequenos écrans [= telas] onde se projecta a tele-
visão. Todos usam auriculares [fones de ouvido] brancos. ADÃO tem umas grandes
luvas cinzentas. O número na camisola dele é o 990. No meio da “multidão” cinzenta,
estão três ROBÔS também cinzentos. Os actores estão todos muito próximos uns dos
outros. Olham para a frente, apáticos, a ver as suas televisões privadas. Ouve-se uma
“música” constituída por um único som contínuo, que depois se transforma em duas
notas. De vez em quando um dos figurantes sai do torpor, abana a cabeça e grita “mu-
da!” para mudar de canal. ADÃO vai entretido a ver um programa, ZABULÃO quer
conversar).

ZABULÃO Então? Estás bom?


ADÃO (encolhe os ombros) - Cá estamos.
ZABULÃO Estão todos bem? (Espera resposta de ADÃO, que não vem) A
Eva? Os meus sobrinhos? Devem estar crescidos… (ADÃO
não responde, olha em frente, concentrado na televisão) Já não os
vejo há quatro anos, desde que…
PRIMEIRO (abana a cabeça) Muda!
PASSAGEIRO
SEGUNDO (abana a cabeça) Muda!
PASSAGEIRO
ZABULÃO E tu? Que é que tens comprado?
ADÃO (maçado) – Ferraris.
ZABULÃO Mas quantos Ferraris é que já tens?
ADÃO Estás louco? Achas que eu sei contar? Tens cada uma, tu!
6

ZABULÃO Peço desculpa.


Aula

ADÃO Filhos sei que tenho dois, porque são poucos, mas mais que is-
so… Uma pessoa com a minha classe!
ZABULÃO Claro, já me tinha esquecido.
ADÃO Daqui a nada vais perguntar-me a idade, se calhar!
ZABULÃO Tens cento e cinquenta anos, isso sei eu.
TERCEIRO (abana a cabeça) Muda!
PASSAGEIRO

UESC Módulo 5 I Volume 4 199


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

ZABULÃO Eu sou mais velho dois anos. A nossa encarregada de educação


estava sempre a chamar-me a atenção para isso. Eu é que tinha
de dar o exemplo, porque fui feito dois anos antes. (O autocar-
ro [= ônibus] pára. Três passageiros encaminham-se para a porta
abraçados uns aos outros, como se estivessem com medo de sair. Os
outros empurram-nos para fora).
ADÃO (sempre distraído a ver televisão) Que será feito da nossa encar-
regada de educação?
ZABULÃO Está muito bem, fui visitá-la, vive numa praia em Vénus. Trans-
formou-se em…
ADÃO (interrompe, desinteressado da resposta) Mas houve uma altura
em que não foste dois anos mais velho, pois não?
ZABULÃO …sereia. Transformou-se em sereia e está feliz da vida.
(Pausa)
PRIMEIRO Muda! (Abana a cabeça)
PASSAGEIRO
SEGUNDO Muda! (Abana a cabeça)
PASSAGEIRO
ZABULÃO Sim, houve uma altura em que fui mais novo do que tu, foi quan-
do pus a cabeça nova.
ADÃO Ficaste mais novo e ficaste mais parvo.
ZABULÃO A cabeça era mesmo uma porcaria. Não volto a comprar cabeças
da Nike. Mas as cabeças que eles têm em Vénus…
ADÃO (desinteressado) Sereia é o quê? Tem a ver com música?
ZABULÃO Pôs um rabo de peixe para nadar mais depressa.
ADÃO Peixe? Não sei o que é.
QUARTO Muda! (Abana a cabeça)
PASSAGEIRO
ZABULÃO E novidades, para além dos Ferraris? Estive fora tanto tempo,
mas parece-me que está tudo…
ADÃO Estiveste fora?
ZABULÃO … na mesma. Sim, estive em Vénus, quatro anos!
ADÃO Olha, não dei por nada.
ZABULÃO Que é que estás a ver?
ADÃO O programa com uma bola. E tu?
ZABULÃO O programa com uma bola no gelo.

200 Letras Vernáculas EAD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

ADÃO O meu é melhor.


ZABULÃO Então e Lamborghinis? Em quantos é que já vais?
(ADÃO boceja)
ADÃO Compro para aí dois por dia. Às vezes mais um.
ZABULÃO E onde é que pões esses carros todos?
ADÃO Comprei outro parque de estacionamento.
ZABULÃO Quantos parques já tens?
ADÃO (zangado) - Os meus robôs é que fazem essa chatice das
contagens. Ganhaste cá uns hábitos em Vénus! [= ficaste com
uns hábitos estranhos depois de viver em Vênus].
ZABULÃO E andas de autocarro [=ônibus]?
ADÃO Com os engarrafamentos que há, claro. É mais rápido. Olha,
vamos descer na próxima paragem.
ZABULÃO Não, espera lá, a tua casa ainda não é aqui.
ADÃO (olhando pela janela) - Não é aqui? Tens a certeza? Olha que eu
não posso enganar-me na paragem, depois não sei voltar para
casa! (O autocarro pára, saem mais três passageiros, sempre agar-
rados uns aos outros, como se tivessem medo de sair do autocarro e
os outros empurram-nos para fora).
ZABULÃO Pois, é natural. As paragens são todas iguais. É tudo muito ver-
dinho, o céu sempre azul celeste, fazem só vinte modelos de
árvores, as nuvens…
ADÃO (ansioso) - Mas que paragem era aquela?
ZABULÃO Em Vénus as nuvens não são feitas por computador, como aqui.
São todas diferentes.
ADÃO Isso é tudo muito confuso. Vê lá o meu número na camisola!
ZABULÃO Tu sais na paragem 9-9-0, é o que diz a tua camisola. Aquela era
6-6-0.
6

ADÃO É que nunca mais encontro o caminho para casa! (Dá uma pan-
Aula

cada ao de leve na cabeça). Tenho impressão que o GPS ava-


riou… (Outra pancada na cabeça, ansioso) Estou com o GPS
avariado!
ZABULÃO Não te preocupes, leva o meu. (Dá-lhe um mapa).
ADÃO (cada vez mais ansioso, remexendo no mapa sem perceber como é
que aquilo se lê) Mas que raio de coisa é esta? O que é que queres
que eu faça com isto?

UESC Módulo 5 I Volume 4 201


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

ZABULÃO É um mapa! Serve para….


ADÃO Não! Não! Não quero saber! Não me digas!
ZABULÃO Mas não queres saber porquê?
ADÃO Já sei tudo o que preciso de saber! Não tenho espaço para mais
nada!
ZABULÃO Mas não consegues chegar a casa sozinho sem o GPS?!
ADÃO (nervoso, agarrando-se ao irmão) Pois não! Pois não!
ZABULÃO Deixa, eu levo-te lá.
PRIMEIRO (abana a cabeça) Muda!
PASSAGEIRO
SEGUNDO (abana a cabeça) Muda!
PASSAGEIRO
TERCEIRO (abana a cabeça) Muda!
PASSAGEIRO
(Fonte: Disponível em: http://www.luisacostagomes.net/teatro.htm)

Pelo trecho selecionado, podemos entender a pro-


posta crítica da autora: refletir sobre os avanços da tecno-
logia e a mecanização da vida humana. Nesse sentido, des-
taque alguma passagem que mais lhe chamou a atenção e
comente os motivos de seu destaque:

para conhecer

Para conhecer mais so-


bre essa autora, acesse
o site: http://www.lui-
sacostagomes.net/te-
atro.htm e leia, inclu-
sive, mais um trecho
de “A vida em Vênus”.

202 Letras Vernáculas EAD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

Outros nomes importantes são: Eduarda Dionísio,


Carlos J. Pessoa, A. Dasilva O., Abel Neves, Jorge Silva Me-
lo e Mário de Carvalho. Esses autores, entre muitos outros
relevantes dramaturgos portugueses, de diferentes modos
lançam um olhar crítico sobre a realidade atual e esta parece
ser a marca distintiva do teatro português contemporâneo:

Creio ser este olhar [...] o traço mais mar-


cante de uma dramaturgia que, saída de
uma violenta opressão, de uma absoluta
necessidade de usar toda a espécie de dis-
farces (formais e temáticos) para sobre-
viver, ousa agora configurá-lo em discur-
sos e ações para serem realizados em cena.
Essas diversas orientações ou caminhos da
escrita de teatro [...] possuem, talvez, um
denominador comum: abdicaram de “en-
sinar” ao espectador o sentido do real, (em
tempos como os nossos não são credíveis
verdades universais) e insistem em con-
vidá-lo a percepcionar, com persistente es-
tranheza, a banalidade, os estereótipos, a
violência, o sofrimento, a ausência de sen-
tido presentes nos fragmentos/ estilhaços
do mundo representado (BRILHANTE,
2003).

saiba mais
Acesse http://www.youtube.com/watch?v=sJGfg-lTS6E e assista a um vídeo com a divulgação
da peça Provavelmente uma pessoa, de Abel Neves. No comentário de apresentação, fica-
mos sabendo um pouco mais sobre esse texto dramático: “Arredores de Lisboa. Um quintal
na margem sul. Dois casais, pequenos comerciantes. Gente vulgar! Numa noite de Verão,
o insólito. Aparece um corpo estatelado no chão do quintal. Quem será? De onde terá vin-
do? Como é que veio aqui parar? Pela cor da pele é um africano. Mas também pode ser um
brasileiro ou... Provavelmente é uma pessoa! Alguém vindo de longe para inadvertidamen-
6

te transtornar a quietude de uma noite de Verão num quintal da margem sul. Podia muito
bem ter caído ali ao lado, na esplanada do café! Alguém que podia ter ido cair noutro sítio
Aula

qualquer! Mas logo ali no quintal ao rés da oliveira ! Um estranho e inquietante tema, onde
consciências e cumplicidades se confrontam atormentando vidas emocionalmente instáveis
onde se cruzam sinais de diferentes identidades e se produzem contraditórios de sociabilida-
de. Contextos onde se desencadeiam gestos inconscientemente recortados no desrespeito e
violência. E tudo isto ao pé de nós, no quintal de um vizinho ou num café de bairro na região
da grande Lisboa. Provavelmente uma pessoa é um exercício irónico sustentado por uma
escrita prenhe de realidade rebuscada em acontecimentos factuais, sob o olhar ora divertido
ora trágico de um dos mais representativos dramaturgos portugueses no nosso tempo”.
Encenação: Gil Salgueiro Nave Cenografia e Figurinos: Luís Mouro Sonoplastia: Helder F.
Gonçalves Interpretação: Fernando Landeira, Pedro da Silva, Rui Raposo Costa, Sónia Bote-
lho e Vânia Fernandes Desenho de luz: Jay Collin

UESC Módulo 5 I Volume 4 203


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

3 A LITERATURA DRAMÁTICA NOS PAÍSES


AFRICANOS

Quando nos referimos aos países africanos que têm


o português como língua oficial, não devemos esquecer que
estamos tratando de realidades muito distintas: Angola, Ca-
bo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe
são países que, embora possuam uma história colonial que
os aproxima, apresentam muitas particularidades históricas
e socioculturais que não podem ser desconsideradas.
Nesse sentido, conhecer a literatura dramática desen-
volvida nesses países é tarefa que aqui apenas parcialmente
podemos realizar, ficando o convite para que você aprofun-
de seus estudos sobre cada uma delas. De um modo geral,
os principais aspectos que devemos considerar são os que
a seguir apresentamos a modo de síntese, construindo um
painel apenas sinalizador da potencialidade artística que es-
sas literaturas possuem.
Em Angola, a atividade teatral teve início com as
ações doutrinárias da Igreja, desenvolvidas por padres mis-
sionários, a fim de converter a população local. Mais tarde,
em meados do século XX, companhias portuguesas per-
correram o país, mas somente a partir dos anos de 1960 se
desenvolve, junto à literatura “de combate” contra a colo-
nização, um teatro local, com perspectivas socialistas. De
um modo geral, segundo Neves (s/d), essas três linhas de
percurso estão “presentes, em maior ou menor grau, na evo-
lução teatral de todos os países africanos de língua portu-
guesa” (www.instituto-camoes.pt/revista/teatros.htm).
Somente em 1976, um ano após a independência do
país, foi criada, em Luanda, capital de Angola, a Escola de
Teatro e Dança, que “deu novo impulso à produção e monta-
gem de textos dramáticos de autores como Costa Andrade,
Ruy Duarte Carvalho ou António Van-Dúnem, produção
essa que sobreviveu às dificuldades provocadas pela guerra

204 Letras Vernáculas EAD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

civil, demostrando a vitalidade da tradição teatral angolana”


(NEVES, s/d).
Sobre esse momento pós-independência, destaca-se
que

a expressão teatral, no país acabado de


nascer e que se dizia socialista, era insti-
tucional e por vezes engajado no discurso
político. De existência efémera e activi-
dade irregular, surgiram alguns grupos.
Ligados à Secretaria de Estado da Cultura,
por exemplo, houve o GAT (Grupo de
Animadores de Teatro), o GIT (grupo de
Instrutores de Teatro) e o GET (Grupo
Experimental de Teatro). Dessa altura era
também o Kapa-Kapa, grupo tutelado pela
UNTA (Central Sindical) e, como indício
de grupos independentes, o Tchinganje e o
Xilena (LANÇA, s/d).

Durante os anos oitenta e os conflituosos anos 90,


em meio à sangrenta guerra civil, a cena teatral angolana viu-
se muito reduzida, mas se destacaram grupos como Júlu,
(1992), Etu-Lene (1993), Miragens (1995), de Henrique
Artes (2000), um dos mais importantes atualmente, assim
como o Elinga Teatro, de José Mena Abrantes, o Pitabel
(2001), entre outros.
O percurso do teatro em Moçambique segue, gene-
ricamente, essas mesmas etapas. Durante a época colonial,
apenas podiam ser encenadas, cantadas e dançadas as ex-
pressões artísticas do colonizador português, o que só se
6

alterou com as lutas pela independência, quando o teatro,


Aula

como, aliás, a literatura em geral, tornou-se arma de com-


bate pela liberdade política e cultural. Em 1975, quando o
país conquistou sua autonomia política, o teatro continuava
exercendo esse papel conscientizador, durante a afirmação
do governo socialista, mas a guerra civil que se seguiu, ter-
minada apenas em 1992, deixou marcas traumáticas e perdas
enormes.

UESC Módulo 5 I Volume 4 205


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

Nesse contexto de luta, bem como na atualidade, a


expressão teatral do país continua em busca de sentidos para
a construção de sua moçambicanidade, ou seja, a sua identi-
dade cultural. Com esse propósito, destacam-se as ativida-
des da atriz Lucrécia Paco, fundadora do grupo Mutumbela
Gogo, em 1986 (GOMES, 2011). Em entrevista, a atriz su-
blinha as características do teatro em seu país:

Nosso teatro não é de escrita, porque a


tradição africana é baseada na oralidade.
Nosso grupo opta por fazer adaptações de
obras, contos, crônicas. Trabalhamos muito
com Mia Couto, por exemplo. Buscamos e
adotamos um processo de retextualização,
passando esses textos escritos, para o teatro.
Trabalhamos também com improvisação e,
mais tarde, com a dramatização. Vamos con-
tinuamente acompanhar os problemas de
nosso país.
[...]
Nós vamos buscar formas de representação
baseadas na oralidade, em nossas danças, no
nosso gestual, na nossa tradição. Também
buscamos esses elementos tradicionais. Te-
mos uma dança, o Mapiko que é puro teatro.
Nós nos apropriamos dele para usar em cena.
Tudo que é linguagem teatral a gente busca.
Há um expressar típico de determinadas
regiões. Se vamos fazer uma peça com base
na improvisação, vamos buscar também de-
stas histórias um ponto de partida. Auscul-
tamos e compomos os personagens. Por
exemplo, precisávamos de informação para
a montagem de uma peça que fizemos sobre
crianças que vivem na rua. Mas não havia tex-
to, nem romance. Então conversamos com
as crianças, trabalhamos com elas e partimos
da realidade para a cena (PACO, citada por
GOMES, 2011).

Essa busca pelo registro artístico de formas tradi-


cionais moçambicanas vem combinada, muitas vezes, com
a tradição do teatro europeu, garantindo uma originalidade

206 Letras Vernáculas E AD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

própria. É muito importante, nesse sentido, ultrapassarmos


a ideia de uma África exótica, distante, incompreensível
– Moçambique, como de resto os demais países africanos
de língua portuguesa, vive, na contemporaneidade, os seus
desafios de construção identitária. A declaração do ator e
escritor Rogério Manjate é muito interessante sobre esse
aspecto:

Uma vez num festival em Zurique apre-


sentamos “Os meninos de ninguém”, cin-
co dias esgotados, as pessoas iam lá para
ver danças, o exótico, o africano selvagem,
que é o que vêm habitualmente dos africa-
nos que aparecem por lá. Ficaram quedos:
de onde vocês são? Estudaram na Europa?
[...] Porque era o teatro que eles conhe-
cem, mas, com uma dose africana na ex-
pressão, no ritmo - música e danças, por
acaso urbanas, o rap. E o grande desafio
para nós é termos de abordar temas sociais
actuais, que a priori são óbvios, e termos
de transcender através da arte... (MAN-
JATE, s/d).

Esse empenhamento do teatro moçambicano é re-


gistrado, igualmente, por Alvim Cossa, do Teatro de Opri-
mido. Para esse ator, a cena teatral moçambicana apresenta
muitas carências, que vão da infraestrutura à formação de
profissionais na área. Entretanto, nos anos de 1990, apesar
de todas as dificuldades “aconteceu um boom no nosso tea-
tro. Em todas as esquinas, nos bairros e ou quarteirões havia
6

pelo menos um grupo de teatro, o que ajudou a despertar


Aula

a sociedade para os benefícios sociais e culturais que uma


modalidade como esta tem” (COSSA, s/d). Assim, a partir
desse crescimento quantitativo, o que hoje se demarca do
teatro em Moçambique é, para Cossa, uma crescente quali-
dade, atestada pelo reconhecimento artístico de muitos gru-
pos importantes do país.
Em Cabo Verde, foi na década de setenta, após o

UESC Módulo 5 I Volume 4 207


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

período colonial, que um “grupo de jovens amadores do


Liceu do Mindelo se lançou numa experiência teatral bem
sucedida, que serviu de exemplo a posteriores companhias”
(NEVES, s/d). Assim como em Moçambique e demais pa-
íses africanos, o teatro cabo-verdiano possui uma “ligação
profunda à tradição oral e ao espírito musical dos seus habi-
tantes” (NEVES, s/d). Ao considerar as principais questões
ligadas ao teatro de seu país, assim se colocou o diretor tea-
tral João Branco:

Existirá um Teatro Nacional? Atingiu o te-


atro cabo-verdiano a sua maturidade? Po-
demos inscrever em Cabo Verde um Teatro
Moderno? O que é ser Moderno, hoje em
dia? Que palavras-chave? Ilhas, miscigena-
ção, sol, mar, partidas e regressos, o crioulo,
são ingredientes que compõem o teatro ca-
boverdiano. Também aquilo que desejamos
ainda não alcançámos. Será isso algum dia
possível, sendo o Teatro a arte da constante
insatisfação, da utopia, do inalcançável, do
tornar visível o invisível? (BRANCO, s/d).

A partir desse questionamento, o que o diretor afir-
ma é o desafio constante da atividade teatral em Cabo-Verde
para desenvolver-se de forma crescente e cada vez mais reco-
nhecida. Entretanto, hoje, ainda não existe profissionalismo
nessa área no país – as ações são todas de grupos amadores,
experientes, contudo, pela persistência em manter viva sua
arte. E há outra característica importante, há uma “dicoto-
mia geográfica, explicada pelo facto de os grupos teatrais
mais activos se concentrarem principalmente em S. Vicente
e Santo Antão, ilhas vizinhas, também no teatro; nas ilhas
do Fogo, Brava, Maio, Sal, Boavista e S. Nicolau tem-se feito
muito pouco no campo teatral” (BRANCO, s/d). A es-
sa dicotomia soma-se outra, de acordo com João Branco:
o fato de, apesar do crescente número de grupos teatrais
nessas ilhas citadas, ainda ser relativamente baixo o número

208 Letras Vernáculas E AD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

de apresentações por ano. Nesse sentido, ganha muita im-


portância um festival que acontece sempre em setembro na
Ilha do Mindelo:

A criação da Associação Mindelact,e as


suas actividades, de 1995 até hoje, [...]
constituída por pessoas interessadas no
desenvolvimento do Teatro em Cabo
Verde – conseguiu dar uma outra dimen-
são ao teatro nas ilhas. [...] conseguiu,
nestes anos de existência, tornar-se deci-
sivo para dar alguma consistência ao teatro
caboverdeano, que caminha, na minha
opinião, a passos largos para a maturi-
dade. A título de informação é importante
referir que o primeiro festival com a sigla
Mindelact ocorreu em 1995, ainda com
um carácter regional, participando ap-
enas grupos teatrais de S. Vicente e Santo
Antão. No Mindelact 96, o Festival teve
um cunho nacional pois já participaram
14 grupos teatrais oriundos de 5 ilhas do
país, a saber, Sal, S. Nicolau, Santo An-
tão, Santiago e S. Vicente, esta última com
mais de metade do total dos grupos par-
ticipantes. Em 1997, o Festival foi orga-
nizado conjuntamente com a III Estação
da Cena Lusófona (um programa de inter-
câmbio entre os países lusófonos, impor-
tante parceiro da Associação Mindelact)
e, pela primeira vez, trouxe ao Mindelo
grupos oriundos de outros países, como
o Brasil, Portugal e Angola. Desde então
nunca mais parou e hoje é o mais impor-
6

tante evento teatral da África Ocidental.


Para além disso, a Associação tem pro-
Aula

movido acções de formação, juntamente


com as Câmaras Municipais, no sentido
de incentivar cada vez mais pessoas para o
teatro. A Mindelact tem ainda implantado
um importante projecto editorial, com a
edição de uma revista semestral, “Minde-
lact – Teatro em Revista”, e que tem sido, e
visa continuar a ser no futuro, uma impor-
tante fonte documental e de estudo sobre

UESC Módulo 5 I Volume 4 209


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

o nosso teatro, com artigos de opinião, de


estudo retrospectivo, de relatórios sobre
acções várias na área da formação, com
referência a todos os espectáculos que são
apresentados em território nacional, com
informações sobre os grupos teatrais em
actividade e seus espectáculos, com arti-
gos de apoio sobre as mais diversas áreas
de estudo, como a representação, encena-
ção, iluminação, entre outros. De destacar
ainda o Centro de Documentação e Inves-
tigação Teatral do Mindelo, que promove
o tratamento, conservação, catalogação e
digitalização de todo o material referente
ao teatro cabo-verdiano (BRANCO, s/d).

Nessas palavras do diretor, fica o convite para co-


nhecermos mais sobre o teatro cabo-verdiano por meio da
Mindelact Teatro em Revista. E registramos alguns dos mais
reconhecidos grupos de teatro desse país: Grupo de Tea-
tro do Centro Cultural Português do Mindelo; Grupo de
Teatro da Alliance Française de Mindelo; Grupo de Teatro
Pedras Vivas do Calhau; Marionetas do Centro Cultural
Português; TIM - Teatro Infantil do Mindelo; Grupo de
Teatro Dionísios; Grupo Atelier Teatrakácia; Companhia
de Teatro Solaris.
Em São Tomé e Príncipe existem duas representações
populares “do ciclo das histórias de Carlos Magno, nome-
adamente A Tragédia do Marquês de Mântua e do Impera-
dor Carloto Magno, em São Tomé, e o Auto de Floripes, no
Príncipe, apresentado tradicionalmente em 15 de agosto,
Dia de São Lourenço” (SEIBERT, 2010). Trata-se de ex-
pressões teatrais que exemplificam a “crioulização cultural e
do teatro sincrético” (idem). A primeira dessas expressões é
conhecida por tchiloli, “palavra crioula sinónima de teatro
e [que] deriva etimologicamente do português tiroliro (pí-
faro), a flauta transversal que se toca durante o espectácu-
lo” (idem). O tchiloli é a manifestação cultural que possui
maior divulgação e que está mais bem documentada do ar-

210 Letras Vernáculas EAD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

quipélago “pois, desde os anos de 1960, e apareceram vários


livros e trabalhos áudio-visuais sobre esse teatro popular,
não apenas em português, mas também em inglês, francês e
alemão” (idem).
Os grupos de tchiloli são conhecidos na ilha por
tragédias e, segundo Gerhard Seibert (2010), “têm cerca de
trinta elementos cada um, e pertencem todos a uma deter-
minada localidade de forros (assim se chamam os crioulos
nativos de São Tomé). Dentro de certos limites dramatúr-
gicos, cada tragédia representa uma versão própria da pe-
ça”. Apenas os homens podem participar dos espetáculos,
assumindo, portanto, até mesmo os papéis femininos, e é
interessante sabermos, também, que as personagens, “o
guarda-roupa e os textos transmitem-se no seio das famí-
lias” (SEIBERT, 2010).
Vamos conhecer melhor essa expressão cultural do
teatro são-tomense:
O tchiloli baseia-se num texto escrito por
volta de 1540 por Baltazar Dias, um dra-
maturgo cego, madeirense da escola de Gil
Vicente (1465-1536). O seu drama inspi-
ra-se em seis romances cas-telhanos que,
por sua vez, derivam do ciclo carolíngio
do século XI. Este teatro medieval conta
a história de Dom Carloto, filho e herd-
eiro do imperador Carlos Magno, que as-
sassina o seu melhor amigo, Valdevinos,
sobrinho do marquês de Mântua, durante
uma caçada, porque se apaixonou por Sib-
ila, a esposa de Valdevinos. O crime leva
as duas famílias e os seus representantes a
6

debaterem questões de lei, de justiça e de


Aula

governação. Os temas chave desse drama


são a traição e a igualdade perante a lei. O
imperador é confrontado com o dilema
de escolher entre [...] o interesse nacional
e o seu amor paternal. Finalmente, o seu
filho é condenado à morte e executado na
fortaleza imperial. [...] [Existem vários
grupos em atuação e] segundo informa-
ções da Direcção Nacional da Cultura,

UESC Módulo 5 I Volume 4 211


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

em 2007, permaneciam 12 tragédias. Ger-


almente um espectáculo tem a duração de
cerca de seis horas e é apresentado em terra
batida num quintal ou numa praça pública,
ao ar livre, durante a gravana (estação seca),
sobretudo por ocasião das festas anuais dos
santos católicos das vilas e de outras fes-
tividades. A influência africana, em termos
da noção de tempo, estendeu as poucas pá-
ginas do texto original para representações
bem mais longas. O palco rectangular, aberto
pode ser visto de todos os lados. Os especta-
dores participam activamente no espectáculo
através de comentários durante as cenas. [...]
A maior parte dos versos de sete sílabas de B.
Dias são utilizados sem quaisquer alterações,
contudo, textos adicionais de prosa em por-
tuguês moderno foram integrados na repre-
sentação. Estes dominam as partes relativas
à investigação criminal e aos procedimentos
legais. Em contraste com o texto original, os
textos modernos são constantemente adapta-
dos e improvisados pelos actores. Enquanto
o argumento da peça assume a sua importân-
cia, a dança, a pantomima e a música não são
menos relevantes no contexto do espectá-
culo. Todo o tchiloli é uma mistura de dança
e pantomima. Uma orquestra composta de
tambores de diferentes tamanhos, um sino,
flautas de bambu e sucalos (chocalhos) - in-
strumento local feito por um pequeno cesto
contendo sementes - fornecem a música que
acompanha os actores dançando de um lado
para o outro. A música é caracterizadamente
monótona, uma única melodia é retomada.

Sobre a introdução do Tchiloli em São Tomé e Príncipe,


existem diferentes versões, mas “não existe nenhum documen-
to sobre a introdução ou a apresentação do tchiloli em São To-
mé anterior ao final do século XIX” (SEIBERT, 2010).
Quanto a Guiné-Bissau, o teatro, no país, vem ganhan-
do crescente desenvolvimento e o apoio da Cena Lusófona,
entidade criada pelos países de língua portuguesa para o inter-

212 Letras Vernáculas EAD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

câmbio e apoio de ações teatrais e culturais, tem sido muito


importante. Entre os grupos que merecem destaque estão
Os Fidalgos, o KCena, o P-Stage. Esse último vem produ-
zindo o espetáculo As Orações de Mansata (2007), de Abdu-
lai Sila, um dos nomes mais importantes da literatura gui-
neense. A peça de sua autoria em referência consiste “numa
livre adaptação de Macbeth, de Shakespeare, à realidade afri-
cana, com direção de Antônio Augusto Barros (Coimbra)
e participação de atores portugueses, brasileiros (integran-
tes do Bando de Teatro Olodum), angolanos, guineenses e
são-tomenses” (informativo do TEATRO VILA VELHA).
Nesse mesmo informativo ficamos sabendo que

Criado pela Cena Lusófona, o projeto P-


STAGE é uma parceria com a Companhia
de Teatro Elinga (Angola) e com a ONG
AD-Ação para o Desenvolvimento (Gui-
né-Bissau), tendo ainda como associados
o Centro de Intercâmbio Teatral de São
Tomé (São Tomé e Príncipe), o Teatro Vila
Velha (Salvador, Brasil), as companhias de
teatro profissional A Escola da Noite e
Companhia de Teatro de Braga (Portugal)
e o Centro Dramático Galego (Espanha)
(Informativo do TEATRO VILA VEL-
HA).

Assim, deve-se registrar esse importante intercâmbio para conhecer


entre os países de língua portuguesa que, entretanto, precisa
ser ainda muito mais intensificado, em todos os níveis, mas
sobretudo no âmbito cultural.
6

Para encerrarmos esta unidade, reproduzimos um


Aula

trecho do referido texto dramático de Abdulai Sila, As ora-


ções de Mansata, primeira peça escrita por um autor guine-
ense, que aponta questões importantes e desafiadoras para o
futuro de Guiné-Bissau: Figura 5: Abdulai Sila – autor
guineense

UESC Módulo 5 I Volume 4 213


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

As Orações de Mansata
(Fragmento da cena 1 do 6º acto, pp.: 98-100)
YEWTA YAWTA Espera aí, que não estou a entender tudo isso... O que é que
nós, que já estamos assim tão velhos e cansados, que não vamos
certamente assistir à chegada dessa paz e do progresso, temos a
ver com tudo isso? Não há nada que possamos fazer.
AMAMBARKA Há uma coisa que vocês, vocês três que aqui estão, podem fazer
para que tudo isso, a paz, a estabilidade, o progresso e a felicida-
de, todas as nossas ambições, sejam realidade...
YEWTA YAWTA Ah, sim? E que coisa é essa? Vocês ouviram isso? (olha para os
dois companheiros)
AMAMBARKA Um acto muito simples... Tão simples que acho que vão fazê-
lo ainda hoje. Um acto que eu não esquecerei nunca, pelo qual
serão devidamente recompensados.
YEWTA YAWTA Surpresa número dois. De que estás a falar agora, Amambarka?
AMAMBARKA Estou a falar de como chegar àquela mulher...
DJINNA HARA Que mulher?
AMAMBARKA Mansata! (os três Homens-Grandes não conseguem esconder a
surpresa. Trocam olhares durante alguns instantes) Quero que
me levem até junto de Mansata.
DJINNA HARA E quem é... Mansata?
AMAMBARKA Isso vocês sabem melhor do que eu... Foi dela que falaram no
outro dia, lembram-se, naquele dia em que prometeram ajudar
Mwankeh... É ela que apareceu nos búzios, que você, Yewta Ya-
wta, você mesmo lançou. É a ela que se referiram quando fala-
ram de uma mulher muito sofisticada, poderosa demais. Pro-
meteram ajudar Mwankeh, hoje ele não está, vão-me ajudar a
mim. Preciso desses poderes, não para benefício pessoal, mas
para fazer progredir a Nação. Com esses poderes, não vamos
pedir esmola a nenhuma outra nação ou instituição estrangeira,
vamos ser auto-suficientes, respeitados em todo o mundo, ter
tudo o que precisamos. Com esses poderes, vamos construir
hospitais, estradas, pontes, casas bonitas em todo o lado, para
toda a gente... Vamos ter escolas para as crianças, universidades
em todo o país, para todos os jovens, rapazes e meninas, estuda-
rem e serem grandes Homens, cientistas de valor, com conhe-

214 Letras Vernáculas EAD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

cimentos profundos da ciência e da tecnologia que vão fazer


inveja aos brancos! Vocês não querem a paz e a prosperidade
para a nossa querida Nação? Não querem escolas para as nossas
crianças, para os vossos netos e bisnetos? Não querem ter hos-
pitais com equipamento moderno, medicamentos gratuitos e
médicos bem formados para vos tratar? Não desejam ter luz em
casa e nas ruas? Não querem nada disso? Nada? Reparem numa
coisa: hoje é o branco que tem todos os poderes do mundo. Se
precisarmos de viajar, temos que pedir ao branco, tem que ser
com o carro ou o avião que o branco construiu; se precisarmos
de construir casas grandes e bonitas tem que ser com modelos
e materiais do branco; até falar com os nossos semelhantes ago-
ra só pode ser na língua do branco... Eles têm todos os pode-
res. Mas todos! Qualquer dia, se não tomarmos as providências
necessárias, pode dar-lhes na gana usar esses poderes para nos
escravizar de novo. E vamos todos, jovens e velhos, homens e
mulheres, ser cativos deles... Não, não posso acreditar que não
queiram ver esta nossa querida Nação, todo o nosso querido
povo, a viver como os brancos vivem na terra deles... Ou será
que acham que o preto não tem direito ao bem-estar? Só o bran-
co é que tem? Foi isso que Deus disse? Não, Deus disse que
somos todos iguais, somos todos filhos d’Ele, com os mesmos
direitos. E se é assim, porquê é que só o branco tem poderes
neste mundo? (faz uma ligeira pausa para observar os seus in-
terlocutores) Meus amigos, mostrai-me o caminho que leva a
Mansata e juro por Deus que farei acontecer aqui e em todo o
lado o que Deus desejou para todos os Seus filhos. Ajudai-me
6

a aceder a esses poderes que Mansata anda a distribuir a torto e


Aula

a direito, a gente que não o merece e nem sabe o que fazer com
eles... Eu sou o Supremo Chefe da Nação, sei como e onde apli-
car esses poderes... Dai-me esses poderes de Mansata...

KAMALA Mansata é um mito...


DJONKO

AMAMBARKA Não acredito!

UESC Módulo 5 I Volume 4 215


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

KAMALA Mansata é um mito... Não existe!


DJONKO
AMAMBARKA Mansata existe, os poderes existem!
KAMALA Puro mito!
DJONKO
Fonte: Disponível em:
http://www.triplov.com/guinea_bissau/abdulai_sila/oracoes_de_mansata/index.
htm. Acesso em jan./2012.

ATIVIDADES

I. Sobre a literatura dramática brasileira contemporânea:

1. Leia a peça Gota d’Água, de Chico Buarque de Holanda


e Paulo Pontes (disponível em: http://mouraria.reino-
dosacores.org/arquivos/Gota%20D’%C3%A1gua%20
-%20Chico%20Buarque%20e%20Paulo%20Pontes.
pdf).
a. Ouça a música que dá nome à peça (disponível no you-
tube com Chico Buarque, Simone ou Bibi Ferreira).
b. Leia o artigo de Isabel Jasinski sobre a impor-
tância da música na peça (disponível em: http://
mouraria.reinodosacores.org/arquivos/Gota%20
D’%C3%A1gua%20-%20Chico%20Buarque%20
e%20Paulo%20Pontes.pdf).
Elabore um comentário sobre: o tema da peça; o que
representam os principais personagens; a importância
da música para o espetáculo; a relação da peça com o
contexto sociopolítico que representa.

2. Sobre a peça Novas diretrizes em tempos de paz, de Bosco


Brasil (disponível em: http://www.ingresso.ufu.br/sites/

216 Letras Vernáculas EAD


CENÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

default/files/certificacao/Teatro_Novas_diretrizes_pa-
ra_tempos_de_paz_Bosco_Brasil.pdf):
a. Considere a seguinte afirmativa: “Inicialmente, perce-
be-se a referência direta ao drama A vida é sonho, do
espanhol Calderòn de La Barca, através do nome da
personagem do interrogador” (ÉBOLI, 2010, p. 24). A
peça espanhola é do século XVII. Pesquise sobre esse
texto dramático e indique os possíveis sentidos do jogo
intertextual estabelecido por Bosco Brasil, explicando o
tema central da peça brasileira.
b. Pode-se perceber, na peça, um jogo entre as identidades
do interrogador e do imigrante polonês; você concorda
que, nesse jogo, parece se estabelecer “uma luta [entre
eles] para não deixar que a relação provoque a temida e
vital inversão de papéis”? (ÉBOLI, 2010, p. 24) Expli-
que.
c. De que modo, portanto, a partir das respostas anterio-
res, podemos entender que Novas diretrizes em tempos
de paz dialoga com a realidade contemporânea?

II. Sobre a atual literatura dramática portuguesa:

a. Pesquise na internet sobre estes autores e suas princi-


pais obras: Eduarda Dionísio, Carlos J. Pessoa, A. Da-
silva O., Abel Neves, Jorge Silva Melo e Mário de Car-
valho.
b. Elabore “verbetes” descritivos sobre cada um, compon-
6

do uma espécie de minidicionário de autores da litera-


Aula

tura portuguesa atual (NÃO ESQUEÇA de informar


os devidos créditos = referências).

III. Sobre a literatura dramática dos países africanos de língua


portuguesa:
a. Investigue na internet e faça uma relação de pe-
ças dramáticas angolanas e moçambicanas, com

UESC Módulo 5 I Volume 4 217


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

seus respectivos autores; selecione uma de cada


país que achar mais interessante e desenvolva um
comentário justificando seu interesse (indique
os respectivos temas, a composição das persona-
gens, a composição das cenas etc.):
b. No que consiste o tchiloli? Explique suas caracte-
rísticas e importância cultural:
c. Explique quais são os objetivos de Amambarka,
personagem do texto dramático As orações de
Mansata, do guineense Abdulai Sila, ao propor a
busca pela figura mística que dá nome à peça.

RESUMINDO

A literatura dramática em língua portuguesa per-


corre, atualmente, muitos caminhos: dos questionamentos
majoritariamente sociopolíticos que marcaram os tempos de
luta contra as ditaduras (no Brasil, em Portugal, em Angola,
em Moçambique, em Cabo Verde, em Guiné-Bissau e em
São Tomé e Príncipe), passou-se a uma variedade temática
que continua questionando a realidade social e política, mas
abarca também problemáticas identitárias, reflexões sobre
sentidos da memória, das inter-relações atuais entre tempo e
espaço, das relações e conflitos humanos diante da fragmen-
tação dos papeis sociais, entre muitos outros. A cena teatral,
por sua vez, conhece hoje muitas possibilidades e várias pro-
postas artísticas prescindem do texto dramático. Podemos
reconhecer, entretanto, como vimos nesta aula, que a lite-
ratura dramática continua sendo um campo fundamental na
arte contemporânea e que o teatro é uma expressão cultural
viva e imprescindível para o (auto)conhecimento humano.

218 Letras Vernáculas EAD


CENáRIOS CONTEMPORÂNEOS

REFERêNCIAS

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido – e outras poéticas


políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

BRANCO, João. Tendência do Teatro em Cabo Verde -


com os pés nas ilhas e os olhos nas estrelas. 2010. Disponí-
vel em: http://www.buala.org/pt/palcos/
tendencia-do-teatro-em-cabo-verde-com-os-pes-nas-ilhas-
e-os-olhos-nas-estrelas. Acesso em jan./2012.

BRILHANTE, Maria João. Caminhos da escrita dramática


em Portugal no final do século XX. Publicado por Centro
de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universi-
dade de Lisboa. 2003. Disponível em: http://www.fl.ul.pt/
cet-publicacoes/cet-edicoes-online/cet-artigos/682. Acesso
em jan./2012.

COSSA, Alvim. Entrevista. Disponível em: http://nan-


diiwe.blogspot.com.br/2013/03/teatro-de-mocambique-
celebra-se-hoje-27.html. Acesso em jan./2012.

ÉBOLI, Luciana. Teatro e escrita: novos olhares sobre a dra-


maturgia brasileira. In: SILVA, Denise Almeida; MITIDIE-
RI, André Luis (Orgs). Texto dramático. Frederico Wes-
tphalen, RS: URI/FW, 2010.

FARIA, João Roberto. O teatro na estante. Estudos sobre


dramaturgia brasileira e estrangeira. São Paulo: Ateliê Edi-
torial, 1998.
6
Aula

GOMES, Christiane. Entrevista com Lucrecia Paco. Se-


tembro de 2011. Disponível em: http://omenelick2ato.
com/entrevistas/lucrecia-paco/. Acesso em jan./2012.

LANÇA, Marta. Breve história do teatro em Angola. Dis-


ponível em: http://www.buala.org/pt/palcos/breve-histo-
rial-do-teatro-em-angola. Acesso em jan./2012.

UESC Módulo 5 I Volume 4 219


Literatura comparada III: o teatro de língua portuguesa

MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São


Paulo: Global, 2004.

MANJATE, Rogério. Entrevista. Disponível em: http://


www.palavrarte.com/
entrevistas/entrev_rogeriomanjate.htm. Acesso em
jan./2012.

NEVES, António Loja. Os Teatros, as Luzes e as Sombras.


Viagem muito rápida pelas histórias do teatro dos países
africanos de língua portuguesa a que se juntou Timor. Dis-
ponível em: http:// www.instituto-camoes.pt/revista/tea-
tros.htm. Acesso em jan./2012.

REBELLO, Luiz Francisco. História do teatro. Lisboa: Im-


prensa Nacional/Casa da Moeda,1991.

Seibert, Gerhard. Carlos Magno no Equador - A intro-


dução do “Tchiloli” em São Tomé. Revista Palcos, S. Tomé e
Príncipe, 24 agosto 2010. Disponível em: www.buala.org/pt/
palcos/carlos-magno-no-equador-a-introducao-do-tchiloliem-
sao-tome. Acesso em jan./12.

TEATRO VILA VELHA. Informativo. Disponível em:


http://www.teatrovilavelha.com.br/noticias-gerais/755-in-
tegrantes-do-bando-de-teatro-olodum-vao-a-guine-bissau-
para-montar-espetaculo-inspirado-em-macbeth-de-shakes-
peare. Acesso em: jan./2012.

220 Letras Vernáculas E AD


Suas anotações

.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
.......................................................................................................................
......................................................................................................................
......................................................................................................................
......................................................................................................................
......................................................................................................................
......................................................................................................................
......................................................................................................................
.......................................................................................................................

Você também pode gostar