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e LODOIS

Uma lingüística aplicada


transgressiva*

Alastair Pennycook

á apresentei em outras publicações (Pennycook, 2001, 2003a,


2004a) minha visão da lingüística aplicada crítica (LAC). Naqueles
textos, focalizei os modos diferentes de ser crítico e os diversos
domínios do trabalho crítico. Por um lado, sugeri também que pre­
cisamos distinguir cuidadosamente pelo menos quatro significados
ão termo crítico: crítico no sentido de desenvolver distância crítica e objetivi­
dade; crítico no sentido de ser relevante socialmente; crítico seguindo a tra­
dição neomarxista de pesquisa; e crítico como uma prática pós-moderna
problematizadora. Por outro lado, esses modos diferentes de fazer um trabalho
crítico podem ser identificados em domínios diferentes da lingüística aplicada
(LA), da análise do discurso crítica (ACD) ao letramento crítico, da pedagogia
crítica a abordagens críticas da tradução. Ao colocar esses trabalhos sob a
rubrica de LAC, meu objetivo não foi nem estabelecer nem definir LAC como
uma disciplina, um domínio, ou um campo fixo, mas J em vez disso, � a
possibilidade de vislumbrar a práxis em movimento que é a LAC.

Entendo a LAC como urna abordagem mutável e dinâmica para as ques­


tões da lingua_gem em contextos múltiplos, em vez de como um método,
uma série de técnicas, ou um corpo fixo de conhecimento. Em vez de ver
a LAC como uma nova forma de conhecimento interdisciplinar, prefiro
compreendê-la como uma forma de antidisciplina ou conhecimento
transgressivo, como um modo de pensar e fazer sempre problematizador.
Isso quer dizer não somente que a LAC implica um modelo híbrido de
pesquisa e práxis, mas também que gera algo que é muito mais dinâmico.

O original em inglês foi uaduzido por Luiz Paulo da Moita Lopes.


oposi ção ou d a
tr ansgressáo, dilrrcntl'.'ml'nte da
m cxis1cn1e J que se opóe. A stionamento dos limites que
to Davies (1999: 141) lamenta a cr ítica à LA e os mo vimentos em direçao ura de categorias e que
ralo, envolve hibrid ização, mist m d esafio ab erto e
de uma concepção interdisci plinar da área q ue "rej eita totalmente as tenta­
:is c teg oria s. Nã o é, em s i mesm a, subversão; não é u lei,
ram a
é implicit amente int errog ar a
tivas, desde os anos 1950, de desenvolver uma LA coerente", é poss ível ver ao us quo . O q ue el a faz, cont udo,
ado stat p d er
lbcr nte arbitrários, mecanismos d e
o
também em tais desenvolvimentos uma maturidade maior. Ao ser informa da ndo nã s6 os e sp ecíficos, e freqü ent eme s
nta univ ersalizant e s -, m as também
o u a
por uma gama mais ampla de domínios "e xternos" do que é freqüentemente l a l i se bas eia - apesar d as pr et ensões
qua e
aqui lo q ue proíbe •
típico da LA, a LA transgressiva não apenas abre o arcabouço intelectual para plicidad e , s eu envolvimento com
ia da transgressão
não
muitas outr as influências, como tor na os de bates sobre "aplicação de lingüís­ e ntar ia que a teor
m base ness as idéi as, argum as cate gorias e os mo dos
t ica" versus "lingüís tic a a plica da", na melh or das h ip6teses , de interesse os q ue sustentam
fia os limites e os mecanism ault
periférico (a lingüística, na m aioria de suas manifestações atuais, é de uso p d uz outros mo dos
de pe nsar� Assim como F ouc
sar, m as tam bé m ro
ão , a
lim itado ) e, no pior dos casos, tira nossa atenção das questões que precisa­ e de procura r no
vos esquemas de politizaç
.presenta a necessidad me nto de u ma
com o e st ab el eci
mos focalizar. Ao tom ar uma visão do co nh ecimento q ue é não s6 ampla,
nsg v nã o tem a ver ta nto
t ra si a
c o m a� c u r a d e n o v
res os
mas tam bé m p o lítica , a LA trans gressi va n os c o nd u z p ara além de um a a tiv a , ma s s im
te mologia fix a e n or m o Kearney (19 88: 364 )
co ncepção de LA como uma dis ciplina fixa, além mesmo de uma visão de LA e co nduta, ou1. c om
r3:me ntos de pe nsamento forma difere nte''�
cia ética de imaginar de
como dom ínio de tr abalh o i nter dis ciplinar.
: tem a ver com "a exigên
'- acres-
Uso noção de transgressão várias sé ries de significados: n g são dese nvol vida
por bell h ooks (1994:13)
a com
A no ção de tra s res
pel os
ã . El a d i z t er s id o "
inspira da princ ipalment e
ta o r dim e n s o
iam
dir os limites que confinar
ut a
Primeiro, uso o termo transgressivo para me referir à necessidade crucial de
agem de tra nsgre
ter instrumentos políti cos e epistemol6gicos que permitam transgredir os limites fessores que tiveram a cor rendi zagem c om o e m um a
abor dagem de ap
do pensamento e da política tradicionais. Todo projeto crítico precisa tanto de aluno a uma rota, a uma resistir e c ruzar os
dir, sugere hooks, é opor,
.a de montagem". Transgre i temos uma
uma agenda política crítica como de disponibilidade para questionar os concei­ er o e classe . Aqu
ão pela raça, gên
tos com que se lida, ou sej a, precisamos de Fanon e de Foucault. Utilizo a noção ites opressores da dominaç is da _pe da gogia e
os limites norma
d p f ore s que transgri dem
ra ns gressão .
ess
de teoria transgressiva para marcar a intenção de transgredir, tanto política como .agem e ro
eda gogia c omo t
a transgred ir : a p
�am seus __er6prios alunos nsgressão
teoricamente, os limites do pensamento e ação tradicio nais.
ah Fl orenc e (1998: xvi
i) explica, enquanto a tra
mo N am u l u nd ks de trans­
o conceito de h oo
ermos ne gativos,
S egundo, as teorias transgressivas não somente pe netr am território proi­ freqüe ntemente vista em t e es colher, de
eiras, o dire ito d
a além das front
b ido, como tentam pensar o q ue não deveria ser pensa do, fazer o que não ssão sug_ere "mover-se par reco nhecer as
ica, o direito de
d everia ser feito . A tra nsgressão, como J enks (2003: 3) explica, "é aq uela d d x erc er a co nsciência cr ít
licr a verd a e e e e
'co nhece r' para além do
paradigmas, e o desej o de
condut�e destró i as regras e transgr ide os limites". Jenks procede co�o llmh�óes, a mudança de d� o b ri ga ção
u i t ra t a - se c a nto
a rgumento de que a trans gressão deve ser cuidados amente separada da de­ i d e nt e P. e r ce pt ív el". Aq
� e�1á __. me iat am . erativo fou caul-
são como do im p
es co ntra a opres
.___.......--

sordem ou do cao�já �e sem__EE,e deixa im_elícita uma ordem que está sendo finoniana de cravar embac além dos
t r a n s g r e d i d a . S e g u ind o N i e t z sc h e , o a u tor co nt i n ua i nd ica nd o q ue a d fer e nteme nte . A LA
transgressiva, portanto, vai
tiano d p n sar i
nte, mantendo tanto a
e e
pr i gin ar de forma difere
modernidade tem si do "um processo de opressão e compartimentalização da limites normat i vos ; ocu ra ma
as q uestões
vo ntade" q ue "gerou um desej o desgovernado de alargar, exceder, ou ir além d n sinar para transgre
dir de hooks como t ambém
açã o p o líti c a o e t.
o tr ansgressão , ta
nto Fano n como F oucaul
das margens de aceitabilidade e desempenho normal. A transgressão se torna imb rica das no ensino com
u m t6pic o pr imár io p6s- mo der no e respo ns ável" Q e nks, 2003: 8). ss ão de "dados tra
nsgressivos"
sugerido pela discu
Além do mais, conforme tiona a s
E iz b eth S t Pier re (19
97), a LA trans gressiva q ues
De acor do com J ervis (1999:4), de p sq uis a d e l a
e
nha na linguagem como
"dados", a confiança estra
c re nças normativas sob re dados que
A tr ansgressão é reflexiv a, question ando s eu próprio papel e o da c ultur a que a definiu
ign ificado para aqueles
dados e a possibilidade de
em sua alterid ad e . Não é simpl esm ent e um a rev ersão, um a inversão mecânica d e um a uma gar a n t ia d e s
esclarecedora entre lingüística e LA. A pcrformatividade possibilita um modo um CClll'lsmo com1a111c cm rcla�·ão aos contdlús e modos de pensar
de pensar o uso da linguagem e da identidade que evita catcgori:1s Imos, a I.A I ransgrc:ssiva sugere que nunca se deve permitir que a l.A
fundacionalistas, sugerindo que as identidades são formadas na perfornuw,· nsc rnrn base na satisfação de sua própria aucoconcepção, nas iden­
lingüística em vez de serem P.ré-dadas. Tal visão da identidade lingüística nos cla afirma como constituindo sua comunidade. Portanto, uma LA
ajuda a ver como as subjetividades passam a existir e são sedimentadas co111 va está sempre engajada em práticas problemacizadoras.
o passar do tempo por meio de atos lingüísticos regulados. Isso também
, tal I.A considera as implicações das viradas lingüística, somáuca
fornece a base para considerar as línguas de uma perspectiva antifundacionalist.1,
tiva. Aceita que tenhamos de confrontar a crise da representação na
por meio da qual o uso da linguagem é um ato de identidade que possibilit.1 mica ocidental, que dúvidas radicais foram lançadas sobre a repre­
a existência daquela língua. E a performatividade, particularmente em su.1 rcal isca e que necessitamos compreender o papel do discurso na
relação com a noção de desempenho, possibilita modos de compreender como ,o do sujeito, de um sujeito múltiplo e conflitante, e a necessidade
as línguas, as identidades e os futuros são recriados ividadc na produção do conhecimento. Ao mesmo tempo, ela reco­
uc o idealismo logocêntrico que enfatiza demais o discurso deixa de
rar os modos pelos quais a ordem social não é somente linguagem,
A LINGÜÍSTICA APLICADA TRANSGRESSIVA .de e semiose, mas é também corpórea, espacial, temporal, institucio­
nflitante, marcada pelas diferenças sexuais, raciais e outras. A virada
A l.A transgressiva pode ser tentativamente resumida da seguinte forma: nos permite refocalizar a corporeidade da diferença, ao passo que a
performativa sugere que as identidades são formadas na performance
Primeiro, ela se baseia em uma abordagem transgressiva da teoria e da
dca e corporificada, em vez de ser pré-dada. Isso também fornece a base
disciplinaridade. Aqui "transgressivo" se refere à necessidade crucial de ter
nsiderar as línguas de uma perspectiva antifundacionalista, pela �al
instrumentos tanto políticos como epistemológicos para transgredir as fron
da linguagem é um ato de identidade que possibilita a existência da
reiras do pensamento e da política tradicionais. Qualquer projeto crítico
. Esses são conceitos de interesse para uma nova era de LA transgressiva.
necessita tanto de uma agenda política crítica como de uma preparação para
questionar os conceitos com os quais ela lida. De Fanon e de Foucault. A
teoria transgressiva assinala a intenção de transgredir, política e teoricamen­
R.EFE�NCIAS
te, os limites do pensamento e da ação tradicionais, não somente entrando
em território proibido, mas tentando pensar o que não deveria ser pensado,
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fazer o que não deveria ser feito. Almeja atravessar fronteiras e quebrar li, J. (l 990), Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. London: Routledge.
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Segundo, considerando o imperativo de usar tanto Fanon como Foucault, a AR.AJAH, S. (2004). Subversive Idenciries, Pedagogical Safe Houses, and Criticai Learning, in:
LA transgressiva reconhece dois níveis de tensão. Por um lado, dentro do impera­ Norton, B. & Toohey, K. (orgs.), Critica! Pedagogies and Language Learning. Cambridge:
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tivo de lidar com os níveis do mundo real de embates, há demandas em compe­
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do poder), na disparidade (desigualdade e necessidade de acesso), na diferença NI 11, J. & G1sSON, C. (2003). Sound Tracks: Popular Music, Identity and Place. London: Routledge.
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