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Complementação Pedagógica
Coordenação Pedagógica – IBRA

DISCIPLINA

INGLÊS NA SALA DE
AULA
APRESENTAÇÃO

Esta apostila foi preparada com o intuito de oferecer subsídios à disciplina


INGLÊS NA SALA DE AULA: como fazer. O objetivo do curso é fornecer um conjunto
de elementos conceituais, teóricos e empíricos que permitam, a você, aluno do IBRA,
desenvolver seus estudos e obter o conhecimento que você espera, com sucesso.

Pretendemos sugerir métodos práticos e desenvolver as habilidades técnicas


e conhecimentos necessários à difícil tarefa de ensinar. Sendo o planejamento fator
essencial na orientação eficiente de um programa de ensino e, a partir da filosofia
das escolas e dos objetivos propostos, deverão ser determinados os métodos e
técnicas que fornecerão diretrizes para um melhor controle do processo ensino-
aprendizagem.
Sabe-se que a aplicação de técnicas pelo professor não é um mero processo
mecânico e que a aprendizagem não está limitada por nenhum conjunto de técnicas.
Assim, aberto ao professor, estão todos os meios que prometem ser produtivos ao
trabalho, individualmente ou em grupo, guiando-se em experiências que poderão ser
úteis e ajude a interpretar e reformular experiências vividas.
Anexamos artigos que versam acerca de pesquisas sobre o ensino e a
aprendizagem de inglês, bem como sobre o processo de formação de professores.
Pretendemos, com isso, despertar em você uma formação crítico-reflexiva, que
possibilite desempenho eficaz em suas carreiras profissionais.
Esperamos que você faça uma excelente leitura e que tenha sucesso em seu
curso.
ARTIGO
A PRÁTICA DO ENSINO DE INGLÊS: desenvolvimento de
competências ou legitimação das crenças?
Um estudo de caso
Elaine Fernandes Mateus
Telma Nunes Gimenez
Denise Ismênia Bossa Grassano Ortenzi
Simone Reis
Universidade Estadual de Londrina

ABSTRAT
Although most of the studies in the field of teacher education advocate that the
practicum is the main source for the acquisition of the knowledge and skills required by
good teachers (Richards e Crookes, 1988; Pimenta, 1997; Kulcsar, 1998; Piconez,
1998), research adopting a socialization framework questions the full impact of this
stage of professional development. The study reported here intended to investigate the
impact of the practicum, according to EFL student teachers´ own perspectives. They
were enrolled in a university teacher education course in Brazil, through which they
were exposed to new educational experiences aimed at contributing to better
informed pedagogical practices and to the development of the knowledge base
necessary for conscious professional work. Using semi-structured interviews and
observation reports as the main source of data, the analysis revealed that although the
informants acknowledged the importance of the teaching practice experiences, there
were limitations of their influence on developing the process of learning to teaching
within a critical reflection mode (Tabachnick e Zeichener, 1991). The study also
revealed that the student teachers were at elementary stages of professional
development, according to Furlong & Maynard´s (1995) classification.

RESUMO
A Prática do Ensino de Inglês (PEI) é uma das disciplinas que compõem o
currículo do último ano dos alunos de Letras Anglo de uma universidade pública no
norte do Paraná. Durante esse período, os futuros professores são expostos a novas
experiências educacionais que pretendem contribuir para uma prática pedagógica
informada e desenvolver bases analíticas para o trabalho profissional consciente.
Embora boa parte dos estudos, nessa área, assegure que a experiência do
estágio é a principal fonte para a aquisição de conhecimento e habilidades essenciais
ao bom professor (Richards e Crookes, 1988; Pimenta, 1997; Kulcsar, 1998;
Piconez, 1998), estudos que se fundamentam na perspectiva da socialização
questionam o impacto da prática de ensino no processo de aprender a ensinar de
maneira informada (Lortie, 1975; Feiman-Nemser e Buchmann, 1989; Freeman,
1992). Nesse sentido, o relato apresentado busca discutir o impacto desse
componente na formação dos alunos de Letras, segundo suas próprias perspectivas.
Para tanto, procedemos a análise de entrevistas semi-estruturadas, bem como de
relatórios dos estágios. Os resultados apontam que, embora os futuros professores
enalteçam esse componente curricular, há limitações do impacto da PEI sobre o
processo de aprender a ensinar reflexivamente, numa perspectiva crítica (cf.
Tabachnick e Zeichner, 1991). A análise revela ainda alunos professores em estágios
elementares de seu desenvolvimento profissional, segundo a classificação de Furlong
e Maynard (1995).

INTRODUÇÃO

É comum tomarmos por certa a relevância da Prática de Ensino no processo


de formação de professores. Quem de nós que trabalhamos com alunos nesse período
já não os ouviu dizendo: “O estágio foi a melhor coisa do curso porque afinal consegui
pôr em prática e entender muito do que sempre me foi dito”? Ou então: “Por que
temos tão poucas horas de prática se essa se configura como a essência do curso
de licenciatura”? Vistos de forma simples e sem uma análise mais criteriosa é
realmente difícil contestar tais argumentos e mais; é impossível não afirmar que toda
prática de estágio é componente fundamental no processo de formação dos futuros
professores. E de fato, a Prática de Ensino deveria constituir-se no momento de
síntese do curso de formação de professores, buscando não apenas integrar teoria e
prática, mas assumindo a responsabilidade de formar profissionais conscientes de sua
atuação social, capazes de contribuir para a mudança da realidade em que vivem.
Há na literatura específica um número considerável de trabalhos que exploram
a influência da prática de estágio sobre a formação do futuro professor. Para alguns
pesquisadores, esta é, sem dúvida, a principal oportunidade que os alunos professores
têm para adquirir, desenvolver e produzir conhecimentos e habilidades práticas que
lhes possibilitem desempenho eficaz quando professores (e.g. Richards e Crookes,
1988; Pimenta, 1997; Piconez, 1998).
Por outro lado, os estudos que se fundamentam na perspectiva da
socialização vão além e questionam não somente o impacto do componente prático,
mas dos próprios cursos de formação de professores no processo de aprender a
ensinar. Nessa corrente encontram-se estudos que, baseados em Lortie (1975),
entendem que o crédito concedido à prática deve ser limitado devido ao seu caráter
restritivo: trabalho com um único professor colaborador; pouco acesso a diferentes
técnicas de ensino; pouca influência do professor colaborador sobre o aluno mestre,
entre outros. Em consequência desta estrutura, o autor afirma que o estágio não
desafia a natureza rotineira da aprendizagem por observação1.

1
Esse termo é empregado por Lortie (1975) para designar o processo de socialização mais amplo,
que tem início no momento em que entramos em contato com a cultura escolar e que nos familiariza
com as tarefas do professor.
No entanto, Lortie reconhece que a prática informada, capaz de avaliar o
ensino e de desenvolver bases analíticas para o trabalho profissional, só pode
acontecer por meio de experiências de socialização formal que desafiem as
experiências trazidas pelos alunos professores.
Da mesma forma, Freeman (1992) acredita que a educação do professor é
uma forma pouco significativa de intervenção, a menos que lide com as concepções
de ensino e aprendizagem trazidas pelos alunos professores. O autor entende que
somente a partir da articulação do conhecimento tácito o futuro professor poderá vir
a conceituar o ensino de forma diferente daquela feita quando era apenas aluno.
Isso é o que Feiman-Nemser e Buchmann (1989, p. 136) chamam de transição para
o pensamento pedagógico, que consiste em “pensar sobre o que os professores fazem
em termos do que os alunos podem e devem aprender”. Portanto, mesmo autores que
põem em xeque o impacto da prática de ensino reconhecem que este componente do
processo de educação formal pode colaborar para o amadurecimento de
perspectivas analisadas, até então, somente sob a ótica de aluno.

Nossas experiências como formadoras de professores têm nos revelado as


limitações do impacto que se pretende ter sobre os futuros profissionais,
especialmente se analisado sob a ótica do “aprender a ensinar reflexivamente”,
atingindo o domínio crítico dessa reflexão (cf. Tabachnick e Zeichner, 1991), no qual
critérios éticos e morais devem ser incorporados. Com base na necessidade de
tornar claros alguns dos aspectos da multifacetada tarefa de aprender a ensinar,
esse estudo pretende analisar o impacto da prática de ensino sobre o desenvolvimento
profissional de alunos professores, tomando como elemento de análise suas próprias
percepções. A questão que se coloca, portanto, é qual o impacto da prática de ensino
de Inglês no contexto investigado para a formação crítico-reflexiva das alunas em
foco. Ter as percepções das alunas professoras como ponto de partida para analisar
e discutir seu processo de formação permitirá trazer à tona os estágios de
desenvolvimento nos quais se encontram ao mesmo tempo em que possibilitará
compreender a relação entre o impacto que desejamos como formadores e aquele que
elas esperam como futuras professoras.
Assim, iniciamos esse relato apresentando os referenciais teóricos que
serviram como pano de fundo para a análise e discussão dos dados. Em seguida,
contextualizamos a pesquisa dentro de um estudo maior, a partir do qual os dados
foram derivados. A apresentação dos resultados dá destaque ao impacto da prática
de estágio, segundo os futuros professores, tendo em mente as implicações da mesma
para a formação de profissionais críticos e autônomos. Finalmente, traçamos
considerações acerca desse componente curricular, levantando questões sobre sua
relevância para a formação de professores.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para discutirmos os dados tomaremos como base os referenciais teóricos do


modelo de formação reflexiva (cf. Tabachnick e Zeichner, 1991) e dos estágios de
desenvolvimento dos professores (cf. Fuller e Bown, 1975; Furlong e Maynard, 1995).

A concepção de prática reflexiva proposta pelo filósofo americano John


Dewey, no início do século, influenciou outros educadores contemporâneos, dentre
os quais Tabachnick e Zeichner (1991) que distinguem diferentes tipos de reflexão
com base na dicotomia entre o pensamento cotidiano, rotineiro e o pensamento
reflexivo. Assim, eles apresentam os domínios:
 técnico, que revela preocupações com a eficiência dos meios ou técnicas
utilizadas para se atingir os fins, normalmente estabelecidos por outras
pessoas e que, por sua vez, ficam sem serem examinados;

 prático, no qual predomina a necessidade de explicar e esclarecer os


pressupostos e predisposições que norteiam as atividades de ensino e de
avaliar a adequação dos objetivos, bem como de que forma eles foram
alcançados. Há, neste sentido, a consideração dos fins educacionais;
 crítico, que incorpora critérios éticos e morais no discurso da prática.
As questões centrais consideram o benefício dos objetivos, atividades e
experiências educacionais diante dos conceitos de equidade, justiça e realização
concreta para todos os alunos.
Ortenzi (1997) argumenta que reflexões no domínio crítico, que idealmente
deveria ser alcançado pelos professores, são possíveis somente na medida em que
os [futuros] profissionais percebem a dimensão política de sua prática. Contudo, refletir
sobre o ensino com base na aprendizagem de conceitos que extrapolem as limitações
da nossa cultura educacional celular2 (Lortie, 1975) exige amadurecimento de
questões mais elementares, conforme esclarecem Fuller e Bown (1975).
Baseados em uma revisão de aproximadamente trezentos trabalhos, entre
os quais alguns empíricos, Fuller e Bown (1975) conceituaram fases no
desenvolvimento dos alunos professores e levantaram a hipótese de que as
preocupações são sequenciais e cumulativas.
Assim, antes que o futuro professor atinja a maturidade profissional e pense
no ensino em termos do seu impacto sobre os alunos e seu crescimento – processo

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A partir de uma perspectiva sociológica, Lortie (1975) esclarece que o crescimento da demanda
escolar seguiu sempre um modelo de agregação de salas de aula, ou células, construídas como auto-
suficientes. Decorrente disto, ainda hoje escolas são organizadas de forma que cada professor
desenvolva um trabalho isolado, independente dos demais colegas.
que Feiman-Nemser e Buchmann (1989) chamam de transição para o pensamento
pedagógico – ele passa por fases reveladas por preocupações características.
Outro estudo bastante representativo na área dos estágios do
desenvolvimento de professores em pré-serviço é o de Furlong e Maynard (1995)
por tentar expandir a noção sequencial proposta anteriormente. Para estes
pesquisadores, o desenvolvimento do aluno mestre não se dá de forma linear, mas
simultânea. Com base em dados coletados em cinco escolas públicas de ensino
fundamental, com alunos do curso de educação primária, os pesquisadores elaboraram
cinco categorias: (1) idealismo inicial; (2) sobrevivência pessoal; (3) lidando com
dificuldades; (4) atingindo a planície e (5) seguindo em frente.

Na fase do idealismo inicial, os resultados de Furlong e Maynard corroboram


a descrição de Fuller e Bown (1975). Também seus alunos professores
identificaram-se muito mais com os alunos do que com os professores
colaboradores e expressaram uma imagem idealizada do tipo de professor que
gostariam de ser – caloroso, amigo, entusiasmado, atencioso e popular –, do tipo de
relacionamento que gostariam de manter com seus alunos – amigável, mas respeitoso
–, bem como da atmosfera alegre, calorosa e de cooperação que gostariam de criar
em suas salas de aula.
A crença de que o relacionamento pessoal do aluno professor com seus
alunos é fator predominante para sua eficácia profissional, é vista por Furlong e
Maynard como simplista e é rapidamente ofuscada pelas realidades da sala de aula,
assim que tem início a prática de ensino. Neste momento, surgem as preocupações
com a sobrevivência pessoal, que Furlong e Maynard caracterizam como o processo
de ajustar-se às rotinas e expectativas do professor colaborador, de ser visto e
respeitado como professor responsável pela turma e de conseguir o controle da sala
de aula. Ajustar-se às rotinas significava, para muitos dos alunos professores
estudados por Furlong e Maynard, copiar o estilo do professor, especialmente no
que diz respeito ao seu relacionamento com os alunos. Fazendo isto, eles imaginavam
não quebrar a rotina e ter a chance de conduzir seu trabalho mais suavemente.
Consequentemente, a imagem de professor idealizada anteriormente cedia
espaço ao tipo de professor que eles achavam que deveriam ser a fim de sobreviverem
inicialmente. A necessidade de serem vistos e respeitados como professores da turma
relaciona-se de forma direta com as questões relativas ao controle da disciplina em
sala de aula. As preocupações mais recorrentes estão em preparar atividades que
mantenham os alunos trabalhando e em desenvolver procedimentos que mantenham-
nos em seus lugares. Nesta fase, os alunos professores temem desviarem-se dos
planos elaborados e sentem-se extremamente frustrados quando suas ideias não dão
certo e quando não conseguem controlar o comportamento dos seus alunos.
A fase seguinte surge a partir da segunda ou terceira semana quando os
alunos professores passam a ver as dificuldades da sala de aula e a se preocupar
mais com seu comportamento profissional. Neste período, eles procuram se
estabelecer como professores, normalmente replicando aquilo que eles consideram
ser o comportamento de um professor.
Furlong e Maynard (1995, p. 82) apontam que os alunos professores “agem
como professores, mas sem necessariamente compreender os propósitos subjacentes
ou as implicações daquelas ações”. Além disso, preocupam-se em impressionar o
professor colaborador e, especialmente o professor supervisor, responsável pela
avaliação de sua competência profissional. Os alunos professores estudados
revelaram que, apesar dos professores colaboradores os encorajarem a ver esta como
uma experiência de aprendizagem, a maior preocupação estava em “fazer a coisa
certa‟ para ser aprovado na disciplina. Devido à pouca compreensão que os alunos
professores tinham dos pressupostos que fundamentavam suas ações, eles
tentavam impressionar por meio de estratégias de ensino e de manejo de sala,
preparando explicações claras e dinâmicas de grupo que os mantivessem no
controle da disciplina. Foi bastante característica nesta fase a utilização de materiais
extras que deixassem os alunos ocupados.
Após terem adquirido confiança em seu conhecimento pedagógico geral, os
futuros professores atingem a planície. Neste estágio, eles sentem-se como
“verdadeiros professores‟. Contudo, não compreensão dos pressupostos que
fundamentam suas práticas não lhes permite ainda perceber a relação entre o
ensino e a aprendizagem dos alunos. A maioria dos alunos professores estudados por
Furlong e Maynard, ao sentirem-se mais confiantes e relaxados, passaram a
apresentar planos e avaliações menos elaborados e a perder o entusiasmo em
tentar novas estratégias e atividades. Apesar de „verdadeiros professores‟, neste
estágio os alunos professores não se mostraram capazes de desenvolver atividades
voltadas à aprendizagem de seus alunos.
Para que os alunos sigam em frente, ou seja, consigam analisar sua prática
criticamente, compreender as responsabilidades de ser um educador, desenvolver
as habilidades do pensamento pedagógico e fazer assim a transição para o papel de
professor, é necessário que haja intervenções por parte dos professores
supervisores voltadas diretamente para os propósitos e implicações da educação.
Outros estudos mostram que sem desafio e suporte, os alunos professores dificilmente
atingem este estágio. Furlong e Maynard (1995) argumentam que na fase do
seguindo em frente os alunos professores eram levados a refletir sobre as implicações
das atividades em termos da aprendizagem de seus alunos. Não sem resistência,
muitos sentiam-se frustrados e até mesmo deprimidos, uma vez que este processo
implica em questionar as próprias crenças, muitas já bastante arraigadas, sobre ensino
e aprendizagem.

O ESTUDO

O estudo que apresentamos agora faz parte de um projeto de pesquisa


intitulado “Aprendendo a ensinar Inglês: um estudo longitudinal com estagiários do
curso de Letras”.
Esse projeto foi motivado pela necessidade que sentíamos de verificar a
interação entre o conhecimento gerado pelas experiências socializadoras e o
conhecimento gerado pelas experiências educacionais na universidade em que
atuamos. Tendo como referenciais teóricos estudos que reconhecem a importância de
experiências anteriores aos cursos de formação de professores, bem como estudos
que enfatizam a importância de se entender as ações do professor do ponto de vista
de seu sistema de crenças e valores, esse projeto teve início em 1999, ano em que os
dados foram coletados com 14 alunos do 4º e último ano do curso de Letras Anglo de
uma universidade pública no norte do Estado do Paraná. À época da coleta dos
dados, os alunos professores desse curso tinham em seu currículo 68 horas de prática
do ensino de Inglês concentradas no último ano. Essa carga horária era distribuída
entre observação de aulas em escolas públicas, confecção de relatórios de
observação e de regência, planejamento supervisionado e direção de classe. O
conjunto de dados coletados inclui autobiografia, inventário de crenças aplicado no
início e final do ano letivo, gravações em áudio de sessões de encontros para
supervisão de estágio, relatórios de observação de aulas, relatórios de estágio e
entrevistas semi-estruturadas.
A análise seguinte concentra-se nos dois últimos instrumentos, uma vez que
eles revelam com maior propriedade as percepções dos alunos sobre seu
desenvolvimento durante a prática de ensino. O relatório de estágio apresentava-se
como um dos componentes da avaliação da disciplina Prática do Ensino de Inglês:
Estágio Supervisionado e tinha o propósito de sistematizar as reflexões feitas
durante as 28 horas de regência. Era objetivo também do relatório permitir uma
reflexão acerca do desenvolvimento profissional dos alunos professores e da interação
entre suas experiências formais e informais. Por sua vez, as entrevistas semi-
estruturadas conduzidas ao final do ano letivo pretendiam suscitar suas percepções a
respeito do estágio, bem como do componente teórico do curso.
O presente relato concentra-se em 2 das 14 alunas professoras envolvidas
no projeto, que serão identificados pelos nomes de Adriana e Berenice. Tal escolha
deu-se de forma aleatória, tendo em mente que os resultados apresentados pretendem
melhor compreender o que os acontecimentos significam para os envolvidos nesse
meio sócio-educacional.

OS RESULTADOS

Os resultados dos alunos professores serão apresentados separadamente,


tendo como ponto de partida suas próprias percepções acerca do impacto da prática
de estágio, e como referencial as implicações desse componente curricular para a
formação de profissionais críticos e autônomos.
Adriana
Adriana era uma aluna cujo ingresso no curso de Letras deu-se pelo sonho de
aprender e ensinar Inglês. Tendo sido forçada a abandonar os estudos da língua em
dois outros momentos de sua vida por motivos de ordem material, ela via na
universidade pública a chance de aprender inglês. Contudo, o foco na gramática trouxe
dificuldades extras durante o curso e por várias vezes ela dizia achar o ensino que
havia recebido complicado, difícil e desestimulante. Contudo, casada e grávida de seu
primeiro filho, foi sempre uma aluna responsável e pontual em suas tarefas durante o
curso. Diferente de muitos de seus colegas, Adriana havia feito magistério e tinha
alguma experiência de sala de aula. Há alguns anos trabalhando com crianças no
ensino primário, ela tinha crenças bem marcadas quanto ao seu papel. Para ela: o
bom professor é aquele que tem um relacionamento amigável com seus alunos, deve
ser dinâmico, flexível e ter senso de humor.
Consequentemente acreditava que: é preciso ensinar a matéria de uma
forma diferente, dinâmica, quebrar a rotina.

Assim como a grande maioria dos alunos mestres, também Adriana afirma
ter sido a prática de ensino um momento importante em seu processo de formação.
Segundo ela relata em seu relatório de estágio:
Ao final do meu trabalho na prática de estágio, concluo que para mim a
experiência em sala de aula foi muito válida e rica, no sentido de uma reflexão sobre
a atuação do professor perante o processo de ensino-aprendizagem, e defendo a
questão de que cabe ao professor o sucesso ou fracasso de seu aluno.
Falar que a prática de ensino permitiu uma reflexão sobre a atuação do
professor nos leva a imaginar que Adriana tenha sido capaz de entender sua prática
sob a perspectiva do aluno, ou seja, tenha se tornado capaz de refletir criticamente
sobre as responsabilidades de um educador. Contudo, quando questionada durante
a entrevista a respeito das certezas e dúvidas adquiridas a partir do estágio, ela
comenta: no geral eu posso dizer assim que eu fui muito feliz no meu estágio, e
tanto que gerou até assim um clima de amizade mesmo entre os alunos, né, que eu já
sentia como se fosse minha própria sala de aula, né. Então, depois que eu saí, como
eu moro num local próximo à escola, às vezes eu encontro com os alunos, né, fora da
escola “ô professora, você não vai voltar dar aula pra gente?” e tal. Então, eu sinto
assim que houve um envolvimento, que os alunos gostaram. Eu saí satisfeita por mais
que sempre tem alguma coisa que dá pra ser melhorada (...) Então, eu acredito que
eu consegui desenvolver um trabalho, eu criei um clima de envolvimento com os
alunos sim.
Aqui é possível notar que apesar do impacto testemunhado pela aluna
professora, sua análise não avança para além de questões centradas no ensino e
nunca na aprendizagem.
Ela avalia, de forma simplista, o sucesso de sua prática pelo grau de
amizade que criou com os alunos. Embora reconheça a existência de limitações e
dificuldades em sua prática é incapaz de compreender as complexidades do ensino.
Se voltarmos aos estágios descritos anteriormente por Furlong e Maynard (1995),
veremos que ela se encontra em uma etapa ainda bastante inicial, preocupada em
lidar com as dificuldades e em avaliar a eficácia dos meios utilizados para alcançar
seu objetivo pessoal: o de manter um relacionamento amigável e despertar o
interesse dos alunos.

Em outros momentos da entrevista Adriana também demonstra não ser


capaz de refletir sobre sua atuação pedagógica para além do nível técnico. Se por
um lado esse aspecto pode ser considerado elemento essencial para uma prática bem
sucedida, por outro não parece suficiente para a construção de um conjunto de
conhecimentos voltados à transformação da ação docente. Todas as vezes em que
era indagada sobre sua prática ela a analisava em termos do que fazer e de como
fazer:
A professora levava letra de música, levava algum outro tipo de material que
envolvesse mais, os alunos trabalhavam em grupos e eu percebia o envolvimento
deles na aula. Então, eu fiquei imaginando como eu poderia trabalhar no meu
estágio. (...) Mas a gente percebe que quando você chega na sala de aula com um
jogo, com alguma coisa que interessa é bem diferente a aula, né, o envolvimento.
(...) aí eu continuei pensando o que fazer nas outras aulas pra que continuasse aquele
interesse, né, e eu percebi o seguinte: quando é desenvolvida a aula dessa forma,
com dinâmicas, com materiais extras, eu conseguia um envolvimento grande; quando
eu pedia pra usar o livro...
A experiência de estágio descrita por Adriana como válida e rica parece ter
servido para confirmar e tornar mais fortes as crenças trazidas e apresentadas
desde o início da prática, como as que mostramos anteriormente. Nesse sentido, o
impacto por ela mencionado se distancia certamente daquele desejado por formadores
de professores que entendem esse como um momento de contribuir para o
desenvolvimento de uma prática pedagógica informada e consciente que permita a
revisão de conhecimentos e crenças desenvolvidos no período da aprendizagem por
observação.
Além disso, a experiência da prática do ensino de inglês parece contribuir de
sobremaneira para confirmação das escolhas, como mostra o seguinte trecho: ...
dentro desse estágio que eu tive realmente a certeza da área que eu quero trabalhar
porque antes eu não tinha certeza se era inglês, se era português.
Mas eu acredito que dentro desse estágio eu consegui realizar um trabalho
bom e tenho vontade de trabalhar nessa área, mais do que com o português.
Essa certeza parece revelar uma identidade tardia com o curso, o que
certamente traz consequências para a construção de imagens pessoais que deem
conta de compreender e lidar com as complexas realidades das salas de aula
(Ortenzi, Mateus e Reis, 1996).

Berenice
A experiência de Berenice como aprendiz da língua desde muito cedo em
academias fez com que ela se apaixonasse pelo inglês. Seu sucesso como aprendiz
e o apoio de uma de suas professoras a motivou para o ingresso no curso. Na
universidade as sensações ficam todas misturadas, pois há medo, insegurança,
entusiasmo, realizações e decepções. Mesmo assim, Berenice repete sempre a
certeza de querer ser professora de Inglês. Contudo, sem experiência anterior alguma
de sala de aula, as crenças de Berenice quanto ao papel do professor vinham
de suas vivências como aprendiz de língua, como mostra um trecho de sua entrevista:
Olha, eu me via assim como as minhas professoras eram no ginásio, é...
seguia o livro didático ali tal, é... qualquer coisa mandava o aluno pra diretoria,
aquela coisa bem autoritária, bem tradicional mesmo, né.
Ser autoritária e tradicional são características de sua prática contra as quais
ela parece lutar o tempo todo. Na verdade, essa é antes uma crença que concebe o
professor como autoridade responsável pelo estabelecimento e manutenção da ordem
em sala de aula (Feiman-Nemser e Floden, 1986). Assim, contrariando os resultados
de alguns estudos, Berenice iniciou sua prática menos preocupada em estabelecer um
relacionamento amigável e caloroso com seus alunos e mais voltada para o tipo de
professora que deseja ser. Desta forma, ela relata que no início: ... eu me peguei
muitas vezes realmente mandando o aluno calar a boca, realmente querendo pôr
o aluno pra fora da sala. (...) eu não gostaria de dar aula como eu tive aula; eu queria
ser aquela professora amiga, que fosse aquela aula gostosa, descontraída.
E é nesse aspecto que Berenice vê o impacto do estágio sobre sua formação.
É exatamente no que diz respeito ao seu comportamento como professora, nas suas
atitudes e posturas com relação aos alunos e ao ensino propriamente dito. Segundo
ela própria afirma durante a entrevista:
...logo que eu comecei dar aula eu queria ser aquela professora bem
tradicional, autoritária e de repente eu me vi e eu trabalhei assim olha até a metade do
estágio. Aí, eu comecei a repensar e até hoje eu repenso nisso, eu fico pensando
nisso, porque eu tô querendo criar um modelo de professor como eu gostaria de ser
como modelo de professor. Então, eu fico tentando ver os meus professores, os que
eu tive, os que eu tô tendo ainda esse ano, como eles dão aula, o que eu gosto, o que
eu não gosto, sabe, eu tô tentando pegar um pedacinho de cada e adaptar em mim.

Sem dúvida todo o esforço de Berenice estava em desenvolver-se como


professora em termos daquilo que ela imaginava que deveria ser. Em momento algum
ela se refere ao estágio como forma de considerar o que e como os alunos aprendem.
Apesar do reconhecido impacto atestado por ela, Berenice continuou a “ver o
professor como aluno‟, “tentando pegar um pedacinho de cada um” para compor
seu personagem e não foi capaz de “ver-se como professora‟ responsável por
promover a aprendizagem de seus alunos. Em todas as suas falas está fortemente
presente a crença de que o professor é o responsável por trazer o aluno para sua aula
e fazer com que ele goste da sua disciplina, despertar o interesse e a atenção dos
alunos, mostrar que aquilo que está sendo ensinado é importante.
Como vemos, o foco de suas reflexões está no professor. Embora seja
fundamental que o futuro professor aprenda a detectar sinais de compreensão e
confusão na aprendizagem dos alunos e que seja estimulado a implementar suas
preocupações nesta área, Berenice limita suas reflexões ao papel do professor,
tomando por certo que afinidades pessoais levam diretamente ao “gosto” pela
disciplina e, consequentemente, à quase misteriosa aprendizagem. Nesse sentido, ela
se preocupa muito em comportar-se como professora, mas sem necessariamente
compreender os propósitos subjacentes ou as implicações de suas ações. Esse visão
ingênua de sua prática a coloca em um estágio bastante elementar de seu
desenvolvimento profissional que não permite uma reflexão mais crítica de seu papel
social. Mais grave, a prática que deveria servir como instrumento para a construção
de um conhecimento criticamente informado, que permitisse à Berenice pensar sobre
suas ações pedagógicas em termos do que os alunos podem e devem aprender, serviu
para legitimar as experiências trazidas para esse contexto. As certezas de Berenice
após quase um ano de socialização formal são as de que gostando dela os alunos
gostarão de inglês, como mostra mais um trecho da entrevista:
A certeza que eu tenho é que é isso mesmo que eu quero: ser professora.
(...) TÔ com muita expectativa, apesar que o governo tá fazendo essa bagunça
com a educação, né, boas expectativas. Quero ser uma excelente professora. Quero
que meus alunos gostem de mim, gostem da minha matéria, vou trabalhar pra isso. E
essa é minha principal certeza: de que tô no caminho certo.
A expectativa de promover o gosto pela disciplina como forma, ou como “o
caminho certo” para uma prática bem sucedida simplifica em muito seu papel de
educadora, inserida em um contexto carregado de responsabilidades sociais.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Os dados apresentados apontam que embora todos os futuros professores


enalteçam a relevância da prática de estágio, há limitações do impacto desse
componente curricular sobre o processo de aprender a ensinar reflexivamente, numa
perspectiva crítica (cf. Tabachnick e Zeichner, 1991). A análise revela também que
tanto Adriana como Berenice encontram-se ainda em estágios elementares de seu
desenvolvimento profissional, segundo a classificação de Furlong e Maynard (1995).
Ambas transitam entre os estágios de sobrevivência pessoal e lidando com as
dificuldades.
A caracterização das etapas alcançadas pelas duas estagiárias revela que a
prática de ensino teve um impacto sobre o processo de formação de Adriana e
Berenice, embora em graus diferenciados dos idealizados pelos supervisores, qual
seja o de ser um “rito de passagem”. Talvez como consequência da forma como os
estágios estão estruturados e pela própria ambiguidade de papéis do aluno
professor, a experiência parece ter se configurado mais como legitimação das práticas
adotadas rotineiramente pelos professores regentes.
Em consequência, este estudo nos mostra que para as duas alunas
professoras, mais importante do que tornarem-se conscientes do papel social do
professor de inglês, capaz de confrontar seus conhecimentos e de considerar a
qualidade e o valor daquilo que os alunos aprendem, importava adquirir segurança
numa prática que elas já conheciam devido aos, pelo menos, 14 anos de
aprendizagem por observação.
Para nós, educadoras de futuros professores, o desafio que se coloca é
como implementar um programa voltado para a formação reflexiva numa perspectiva
crítica que permita a incorporação da dimensão política do fazer pedagógico e do
conceito de transformação social nela implícita. Em nosso modo de pensar, importa
não só adotar a reflexão como modelo para o desenvolvimento profissional de
futuros professores, mas também imprimir-lhe uma qualidade diferenciada, ainda na
fase pré-serviço. Quanto mais soubermos como interagem as crenças e o
conhecimento formal nas diversas etapas de atuação do futuro professor, mais
poderemos contribuir para esse objetivo.
- ARTIGO
COGNIÇÃO, EMOÇÃO E REFLEXÃO NA SALA DE AULA: por uma
abordagem sistêmica do ensino/aprendizagem de inglês
Rodrigo Aragão
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos
Universidade Federal de Minas Gerais

Este artigo propõe articular a Biologia do Conhecer de Humberto Maturana


(1998) à pesquisa narrativa de Jean Clandinin e Michael Connelly (2000), de modo a
propor uma abordagem sistêmica para a pesquisa sobre o ensino e a aprendizagem
de inglês e superar a dicotomia teoria-prática que domina comumente a reflexão no
campo. Para tanto, apresento o estudo de uma narrativa em contexto de sala de
aula de inglês que irá lançar luzes sobre a natureza histórica das relações operacionais
entre emoção e cognição.
Defendo que as emoções e a história de vida da participante da pesquisa
especificam suas ações na sala de aula. Argumento que a construção de narrativas
propicia a emergência de uma atitude reflexiva que possibilita transformações nas
emoções e ações na conduta de sala de aula. Com isso, pretendo contribuir para a
expansão de nossos horizontes reflexivos sobre a inter-relação entre linguagem,
cognição e emoção, fundamental para nossa compreensão da sala de aula.

This paper aims at articulating the epistemological framework of Biology of


Cognition (MATURANA, 1998) and Narrative Inquiry (CLANDININ & CONNELLY,
2000) in order to propose a systemic approach for the teaching and learning of English
as a Foreign Language and to overcome the theory-practice dichotomy that usually
dominates the field. For this reason, I present a study of a narrative in the context of
an English language classroom that will shed light on the historical nature of the
operational interfaces between emotion and cognition. I claim that the research
participant‟s emotions and life history determine her classroom actions. I argue that
the construction of narratives foster the emergence of a reflective attitude that can bring
forth transformations in emotions and actions in the classroom. Wtih this I have
the objective to contribute to the expansion of our reflective horizons about the inter-

"
59
17

relationship of language, cognition and emotion, which are fundamental to our


understanding of the classroom.

O DESEJO POR REFLEXÕES EPISTEMOLÓGICAS NA LINGUÍSTICA


APLICADA

Na virada do milênio, assistimos a uma explosão de artigos, mesas-


redondas e debates que revisitaram o campo da Linguística Aplicada, repensando sua
história teórico-metodológica e seus horizontes epistemológicos. É visível o
sentimento de renovação para o qual acenam pesquisadores renomados do campo,
e é amplo o reconhecimento de que a Linguística Aplicada está, de fato, fazendo
com que sua disciplina mãe, a Linguística, repense alguns de seus conceitos
fundadores (RAJAGOPALAN, 2003, p. 77-81). É nesse contexto que se insere este
artigo, que expõe resultados parciais de minha pesquisa de doutorado, fruto das
preocupações de um professor de inglês interessado no caleidoscópio sistêmico de
variáveis envolvidas no complexo processo de ensino/aprendizagem em sala de
aula. A certeza da importância de uma teorização consistente e crítica para a
escolha de práticas de pesquisa que sejam sensíveis às diferenças e às variações
individuais e contextuais e que evidenciem a mutualidade entre teoria e prática é o que
me encoraja a desenvolvê-lo. Interessam-me, sobretudo, teorias que configuram a
cognição e a linguagem como fenômenos que são dependentes da nossa
dinâmica biológica e sociocultural, e que simultaneamente tanto são especificados por
essas dinâmicas quanto as especificam, num processo recursivo e contínuo.
Essas propostas podem dar origem a diálogos fecundos no que concerne ao
temário do ensino/aprendizagem de línguas. Ganhos sistemáticos podem ser obtidos
se esse processo for configurado como um fenômeno observado no domínio das
interações situadas dos seres humanos, de maneira dependente da nossa dinâmica
biológica, em especial de nossas emoções, como especificadoras das dinâmicas
relacionais, tanto interpessoais quanto com o meio físico.
Meu principal interesse é contribuir para a reflexão conceitual já estabelecida
na área da Linguística Aplicada ao Ensino/Aprendizagem de Línguas Estrangeiras,
ao introduzir aí a Biologia do Conhecer (MATURANA, 1998, 2001), aliada à pesquisa
narrativa (CLANDININ e CONNELLY, 2000). Essa articulação nos permite
desenvolver aquilo que Johnson e Golombeck (2002, p. 4) chamaram de uma
epistemologia da prática. Primeiramente, apresento a fundamentação teórica da
pesquisa, em seguida uma breve exposição de minha pesquisa e discussão de seus 18
resultados parciais e, por último, proponho algumas reflexões sobre o exposto.

AS CIÊNCIAS COGNITIVAS E A BIOLOGIA DO CONHECER

É comum ouvirmos dizer que o processo de aprendizagem de uma língua


envolve a captação, o processamento e o armazenamento de formas e significados.
Falamos cotidianamente sobre a linguagem como se ela fosse uma substância
(LAKOFF e JOHNSON, 1980, p. 4-10), algo da realidade que pode ser quebrado em
pedaços e consumido por uma determinada faculdade mental ou cerebral. Essa
concepção de ensino/aprendizagem como depósito gradual de substâncias numa
mente, aliada à visão de linguagem como contêiner de conteúdos mentais (ideias) e
da comunicação como transferência desses conteúdos através de um tubo (canal)
entre nossas cabeças funda nossa maneira cotidiana de falar e teorizar sobre
linguagem e cognição (REDDY 1979; MAGRO, 1999).
Na metade do século XX, com o advento das assim chamadas Ciências
Cognitivas (GARDNER, 1994), áreas de pesquisa como a Linguística Aplicada e as
Neurociências foram se consolidando como campos de pesquisa autônomos. Nesses
campos, a mente humana, a Neurobiologia e suas inter-relações com a aprendizagem
e a linguagem passaram a ser construídas conceitualmente em termos do
processamento e armazenamento de informações computacionais. Essa
compreensão, aliada a pesquisas pautadas na física e no positivismo como modelos
paradigmáticos do fazer científico, edificaram um modelo conceitual canônico para o
ensino e a aprendizagem de línguas marcado por: a) uma dissociação entre o fazer
teórico e o fazer prático; b) a idealização de falantes, padrões linguísticos, aprendizes,
contextos e modelos de aprendizagem; c) a ênfase no ensino/aprendizagem como
transmissão e processamento de informações; d) a marginalização de variáveis
emocionais, históricas e políticas; d) o reducionismo e minimalismo explicativo
(ARAGÃO, 2003). Nessa perspectiva, em conformidade com a tradição filosófica
ocidental, a compreensão da cognição e da linguagem se dá pelo isolamento da
razão, apontada como característica distintiva fundamental do ser humano. As
emoções, nessa tradição, são tratadas como irrelevantes ou, quando
reconhecidas, são consideradas secundárias e em geral perniciosas, com efeitos
nocivos sobre a razão. Basta ver compêndios como os de Ellis (1994), Robinson
(2001) e Lightbown e Spada (1999). É prática comum colocar as “variáveis”
afetivas como secundárias às cognitivas e configurá-las de maneira limitada como
“variáveis do aprendiz”, a partir de arquiteturas conceituais dicotômicas e
estáticas dos indivíduos3.

3
19
A Biologia do Conhecer, como se denomina o conjunto da obra de Humberto
Maturana sobre o viver, orienta de outro modo nossa compreensão dos sistemas vivos,
em geral, e dos seres humanos, em particular; dos processos
neurofisiológicos que dão origem aos fenômenos emocionais e interacionais humanos;
das relações entre os seres humanos e desses com o seu meio. A Biologia do
Conhecer é um mecanismo explicativo dos sistemas vivos, caracterizados
como sistemas dinâmicos operacionalmente fechados a instruções do meio,
tratados como seres em constante transformação no viver e em permanente
acoplamento estrutural com o meio. Com efeito, todo o viver é um conhecer, e todo o
conhecer é um viver.
A Biologia do Conhecer nos permite abordar sistemicamente os processos
de ensino/aprendizagem e, no que nos interessa aqui, o ensino/aprendizagem de
inglês. A adoção desse modelo nos leva a: a) compreender cognição e linguagem
como atividades mutuamente imbricadas, realizadas por agentes que co-constroem
e coordenam ações de maneira recursiva em domínios consensuais operacionais e
contextos relacionais, os quais envolvem a distinção de objetos e relações entre
objetos, a distinção de si mesmo (autoconsciência) e de outras pessoas na
convivência; b) dirigir nosso foco de observação para a dinâmica operacional histórica,
situada e relacional de fenômenos distintos em reciprocidade, mútua constituição,
afetação recíproca, sem colapsá-las e sobrepô-las; c) em conformidade com isso,
apontar a reciprocidade de dois domínios não intersectantes e não redutíveis – a
fisiologia e o comportamento; d) entender que é o aluno, e não o meio, que
especifica em suas interações o que pode ser
ensinado/aprendido/compreendido: cognição e comunicação não dependem “daquilo
que se entrega”, mas do que ocorre com aquele ou aquela que comumente se diz que
“recebe”; e) em consequência, entender que a metáfora do computador / dos
contêineres para a cognição e a linguagem perde seu valor explicativo corrente; f)
apontar que os sistemas e os efeitos das perturbações interacionais são
imprevisíveis e não têm relação com seu tamanho: uma pequena perturbação pode
ter efeitos extensivos ou não ter o menor impacto4; g) reconhecer, em conformidade

3
A coletânea de Jane Arnold (1999) é uma exceção. O conjunto da obra evidencia os fatores
afetivos, colocando-os em relação aos cognitivos. Entretanto, as arquiteturas conceituais dicotômicas
e individualistas permanecem limitando uma visão dinâmica e sistêmica.
4

4
VANLIER (2004), KRAMSCH (2002) e LANTOLF (2000) são articulações recentes de pensamento
sistêmico no campo do ensino/aprendizagem de línguas. Entretanto, com o uso da teoria
sociocultural de Vygotsky, da semiótica Peirciana, da teoria do caos/complexidade e da ecologia, há
uma tendência de se privilegiar o papel das práticas sociais, obscurecendo, e até evitando, a
reciprocidade fisiologia/interações e emoção/cognição, que na Biologia do Conhecer de Maturana é
tão bem explorada.
20
com isso, que tanto a variabilidade quanto a congruência e a estabilidade de padrões
interacionais são observáveis, pertinentes e merecedoras de tratamento científico
unificado; h) privilegiar descrições densas, que evidenciam a dinâmica das diversas
variáveis que constituem o domínio sistêmico em operação, sobre as fórmulas
dissecadas dos tratamentos formais.

EMOÇÕES NO ENSINO/APRENDIZAGEM DE INGLÊS

Como falar aqui de emoções e compreender sua participação nesse


processo? Maturana (1998, p.15-23) propõe compreendermos emoção como um
fenômeno biológico relacional dos seres vivos, em especial, dos mamíferos. Do
ponto de vista da Biologia, o que distinguimos como emoções são disposições
corporais dinâmicas que especificam os domínios de ação, os tipos de condutas
relacionais e interacionais possíveis num dado momento. Ao mudar de emoção,
mudamos de domínio de ação, num fluir que Maturana chama de emocionar. Um
domínio de ação é um domínio de condutas, comportamentos, posturas ou atitudes
corporais que um observador distingue com uma emoção: é a emoção, e não a
razão, que define a ação, embora em geral não tenhamos dificuldade de justificar
racionalmente nossas ações. Dessa forma, se se deseja saber qual a emoção, deve-
se olhar a ação.
Inversamente, se se quer saber qual a ação, basta olhar a emoção
(MATURANA e BLOCK, 1996, p.114-115). No cotidiano sabemos muito bem disso:
quando estamos numa determinada emoção, há coisas que podemos fazer e outras
não, assim como há argumentos que aceitamos e outros não, dependendo da emoção.
Lidamos cotidianamente com domínios nos quais só são possíveis certas ações e
não outras, embora nem sempre nos damos conta disso. Portanto, a emoção
define o que acontece na relação com os outros ou com nós mesmos, constituindo os
espaços das dinâmicas relacionais em que nos movemos. Se olharmos o nosso
próprio emocionar de maneira reflexiva, poderemos atuar coerentemente com ele ou
mudar de domínio de ação, se assim o desejarmos e se isso for possível dentre o
complexo de variáveis envolvidas (MATURANA e BLOCK, 1996, p. 117-118). Nesse
espaço do saber sobre o saber, do dar-se conta de nossas ações e emoções, abrimos
a possibilidade de uma atitude reflexiva responsável e ética, e de uma autoconsciência
relacional. E essa abordagem é radicalmente diferente daquela que advoga o controle
das emoções.
Sendo assim, o ponto de partida de um processo de ensino/aprendizagem tem
a ver, sobretudo, com um convite – e a aceitação mútua – para participarmos em
conjunto de um espaço de convivência.
Tudo depende dessa emoção, dessa possibilidade de nos movermos juntos
21
de um lado para o outro, de estarmos num mundo de uma maneira ou de outra
constituída no fluir de nossos encontros. A partir do emocionar é possível
efetivarmos, numa convivência particular recorrente, uma transformação mútua que
gere condutas adequadas, ou aqueles comportamentos que um observador, um
professor, por exemplo, distingue como apropriado num contexto interacional por ele
especificado.
Nessa perspectiva, aprender uma língua estrangeira significa, sobretudo, estar
disposto a conviver com outros numa rede de conversações, num linguajar constituído
numa lógica processual, numa racionalidade e numa emoção distintas, com as quais
estamos acostumados a conviver no nosso cotidiano. O ensino é um guiar, um
conduzir numa convivência particular em que nos transformamos de maneira
constante. Isso alude à compreensão da aprendizagem de uma língua não como a
aquisição de uma entidade, mas como um espaço operacional de distinções recursivas
e de coordenação de comportamentos, configurado consensualmente a partir das
ações e emoções recorrentes que se realizam numa sala de aula e se estabilizam
ao longo de um tempo recorrente de interações dessa natureza.
Portanto, ensino/aprendizagem é um processo de transformação no viver
coletivo, cuja orientação é definida pela maneira segundo a qual um professor envolve
os alunos no desenvolvimento de habilidades operacionais que compreende como
necessárias para viver num domínio particular de existência – nesse caso, o de
coordenação de ações recursivas e consensuais, ou o linguajar na língua especificada.
Assim, tomo a aprendizagem e o ensino não como fenômenos apartados, nem
sustentados por uma relação causal, mas como fenômenos processuais inter-
relacionados de múltiplas e complexas maneiras. Dessa forma, o fenômeno de
nosso interesse envolve um sistema de elementos processuais dinâmicos, relacionais,
interativos e consensuais históricos, constituídos por uma ampla gama de
componentes socioculturais, políticos e emocionais. Isso implica conceber a sala de
aula como um espaço relacional multifacetado, um contexto co-constituído por alunos
e professor no fluir de suas interações.

SÃO AS HISTÓRIAS QUE NOS DIZEM MAIS: EMOÇÃO, REFLEXÃO E


EXPERIÊNCIA NARRATIVA

Essa compreensão da dinâmica histórica e situada do viver humano, no


meio com outros, pode ser articulada à pesquisa narrativa desenvolvida por Jean
Clandinin e Michael Connelly (2000), e ao conceito de descrição densa (GEERTZ,
1973), com consequências frutuosas. Em conformidade com a Biologia do
Conhecer, a pesquisa narrativa argumenta que: a) a qualidade da experiência humana
é o foco principal de investigação; b) as vidas humanas são tecidas por um processo
22
histórico, situado, multifacetado e complexo; c) o conhecimento é fruto do
compartilhamento mútuo e dialógico com outros num espaço particular de convivência;
d) o ato de narrar, que envolve o entrelaçamento de emoção e razão no linguajar
reflexivo, provoca uma transformação na maneira como a pessoa compreende a si
própria e aos outros envolvidos em sua história; e) a pessoa advoga por um
imbricamento entre o narrar, o conscientizar e o agir; f) em consequência, a
historicidade narrativa se constitui como um agente perturbador de atitudes reflexivas,
que pode produzir um agente consciente, o qual se desloca de um círculo fechado
de ação sem reflexão e passa a ser movido de seus desejos e escolhas.
Clandinin e Connelly (2000) apontam que nossas identidades acadêmicas são
construídas por histórias pessoais e profissionais e as histórias dos outros
constituem nosso meio de experiências, de modo que o coletivo e o pessoal são fios
que produzem uma mesma imbricada teia. Somos indivíduos na coletividade, como
sugere a Biologia do Conhecer de Maturana. Clandinin e Connelly enfatizam que
vivenciamos os nossos encontros e interações cotidianas como histórias compostas
de narrativas diversificadas. Tomando o conceito de experiência e continuidade de
John Dewey, a pesquisa narrativa chama a atenção para a relação entre as
variáveis históricas. Todo presente tem um passado e uma possibilidade de história
futura enraizada nesse espaço prévio. Esse modo de caracterizar nossa experiência
projeta importante conceituação sobre a construção da pesquisa de campo que é, sem
dúvida, de grande valia para a compreensão qualitativa de nossas experiências
profissionais cotidianas.
Ao narrar histórias, memórias e eventos marcantes em sua vida, um aluno
pode se conscientizar e agir coerentemente com seu emocionar. Como sugere
Telles (2004, p. 80-81), no processo de recontar seu viver, os alunos podem
reavaliar histórias antigas e partir para outras histórias com as quais desejam viver.
Johnson e Golombeck (2000, p.3-5) afirmam, em conformidade com Telles e
embasados na obra de Dewey, que na atividade narrativa há um processo de auto-
conhecimento no qual se pode questionar sua própria conduta em relação ao seu meio
contextual e agir em conexão com a compreensão de sua experiência e desejo.
Durante esta atividade o aluno passa a ser autor de sua própria história, ao
compreendê-la em sua forma processual e inter-relacionada a outros eventos
marcantes (cf. p. ex. TELLES, 2002).
O conceito de descrições densas, proposto por Geertz (1973), busca um tipo
de esforço intelectual que envolve a observação mais completa possível e a
interpretação cuidadosa de culturas particulares.
Essa atividade é realizada na socialização e na participação dialógica 23
do
pesquisador no conviver com um determinado grupo de pessoas.
Nesse processo de investigação, o pesquisador procura estabelecer
conexões, padrões, rupturas e significados das ações no emaranhado sistêmico das
relações experenciais humanas. Isso se dá com a coleta de documentos variados de
campo, que podem apresentar diferentes perspectivas dos participantes e do
pesquisador, processo conhecido como triangulação. Com base nesses
documentos, o pesquisador pode estabelecer um intercruzamento de dados na
compreensão multicomponencial do processo de transformação na convivência.

ARTICULANDO EMOÇÃO, COGNIÇÃO E REFLEXÃO NA SALA DE AULA

A presente pesquisa, cujos resultados preliminares trago à reflexão, foi


realizada numa sala de aula de língua inglesa no curso de graduação em Letras de
uma universidade federal. Selecionei para realizá-la uma disciplina na qual se dá o
primeiro contato dos alunos calouros com o ensino/aprendizagem de inglês. Nessa
faculdade, o curso de graduação em língua inglesa se inicia no nível intermediário.
A exigência do nível intermediário para o início dessa experiência para
alunos interessados na habilitação em língua inglesa é parte constitutiva do cenário
emocional da pesquisa.
O universo da pesquisa envolveu dez participantes. O que vou expor aqui,
no entanto, são minhas observações no contato com apenas uma aluna, que adotou
o pseudônimo de Júlia. Em conformidade com os marcos teóricos adotados, a
pesquisa de campo consistiu de uma diversidade de atividades (cf. p. ex. MICCOLI,
1997), nas quais os seguintes documentos de campo foram produzidos: a) uma
narrativa autobiográfica escrita; b) três transcrições de entrevistas semi-estruturadas
que somadas representam 4 horas; c) filmagens de 20 aulas; d) notas de campo; e)
notas realizadas durante conversas informais com a participante; f) uma colagem; g)
respostas a um questionário final; h) um diário. A narrativa autobiográfica escrita
pelos participantes versou sobre suas histórias de aprendizagem de inglês.
A colagem, um interessante instrumento no qual, através de desenhos
próprios ou imagens retiradas de revistas, o participante conta sua história, indica
como se sente, sem as limitações da linguagem. Os alunos, em geral, narram seu
contato com a língua inglesa como uma empreitada muito difícil, desafiadora, exigente
e, muitas vezes, assustadora. Júlia descreve sua experência no excerto abaixo, em
sua primeira entrevista:
R - Você disse também que no curso se cobra muito do aluno?
24
J - Acho que é a maneira como o inglês é colocado na faculdade, é como olha,
o inglês é difícil, é um monstro e ele tem sete cabeças, se você não tem no seu
currículo uma luta de bicho de sete cabeças, você não vai passar, entendeu, e
sempre colocam o inglês assim, como esse “big monster” e está todo mundo querendo
aprender, mas o professor está num patamar superior e o inglês é uma língua difícil.
Essa metáfora, “lutar com o bicho de sete cabeças”, modula de maneira central
as condutas relacionais de Júlia na faculdade. Ela está imersa em lutas com esse bicho
e pretende vencê-lo a qualquer custo.
Esse desejo, essa disposição relacional de querer vencer a luta contra o bicho
de sete cabeças pode explicar, em parte, a perseverança de Júlia quanto ao seu
aprendizado e ao seu sucesso final na disciplina.
No roteiro para a terceira e última etapa do processo de reflexão, a colagem,
lia-se a seguinte orientação:
Numa folha, monte uma pequena história, um enredo, com palavras e imagens
que descreva esta etapa de seu processo de aprendizagem de inglês na faculdade.
Pense na sua história nesta disciplina e lembre-se de suas expectativas, faça uma
reflexão.
Depois dessa atividade, fiz uma última entrevista com Júlia para esclarecer
os sentidos das imagens que ela apresentou na colagem. Esta história narrada na
última entrevista e desenhada como uma história em quadrinhos resume sua trajetória
na disciplina:
J - Então aqui começa a minha estória, o que podemos ver de cara é que ele
(o aluno – personagem da história) começa tristonho e termina feliz. Ele entra
cabisbaixo e vai falando “ai que droga de aula de inglês” e sai pior ainda, com a língua
para fora: “puxa vida, achava que sabia alguma coisa de inglês, eu sou um fracasso”.
E assim os dias se passaram e o aluno se sentia desvalorizado. Aí ele acorda cedo na
cama dele para ir à aula e era um tédio e ele fala: “ai que droga, a professora vai ficar
corrigindo exercícios e pensando que está ensinando, e eu fingindo que estou
aprendendo.” Mas o tempo foi passando, mas o tempo só não passa como
amadurece e o aluno foi tomando conhecimento, se tornando consciente de que
ele é capaz e que dá conta, independente do que os outros digam e (...)

Aí ele vai saindo da aula de inglês, ele passa a se sentir grande e confiante,
levanta os ombros e acredita em si e consegue vencer, pena que esta não seja a
história de todos. Então eu acho assim, que no final, hoje estou me sentindo muito
segura, muito mais segura do que, vamos supor, nossa primeira entrevista. Eu estou
me sentindo assim nesse semestre, achei que entrei para baixo e estou saindo
super para cima. Eu vi que o meu inglês caminhou e eu melhorei meu
relacionamento com a professora, isso também melhorou porque eu falei o que quis 25
falar. Teve hora que discordei e levantei a voz na sala de aula e falei com ela as coisas
e enfrentei ela. Não tive medo dela e isso para mim foi bom e foi bom pra eu levantar
minha bola, entendeu?
Dessa pequena história, gostaria de destacar: a) Júlia era aluna repetente;
b) Júlia iniciou o curso com baixa autoestima, constrangida, desacreditada, calada e
decepcionada com a professora, consigo mesma e com o curso, mas terminou com
autoestima, confiante em si mesma e com uma boa relação com a professora; c) Júlia
conseguiu vencer o bicho de sete cabeças, perceber que é capaz e que a professora
deseja ajudá-la, e não fazê-la fracassar; d) acredito que o processo narrativo-reflexivo
ajudou Júlia a desenvolver a autoconsciência de que precisava para deixar para trás
algumas experiências decepcionantes, confiar em si mesma e participar das aulas em
pé de igualdade com os colegas e com a professora. Em outras palavras, Júlia
precisava mudar seu domínio de ações. À medida que deixa de se preocupar com o
que outro está pensando a seu respeito, há uma mudança radical no que é capaz de
realizar em sala de aula.
Júlia trabalha, há pouco mais de um ano, numa escola infantil.
Acredita que o objetivo de ensinar inglês para as crianças é semear o amor
pelo aprendizado da língua inglesa. Sobre sua história pessoal e condição sócio-
econômica, conta, em sua narrativa autobiográfica redigida no início do curso, que:
J - Venho de família simples, que sempre batalhou e estudei sempre em
escolas públicas, cujo ensino não era de muita qualidade. Iniciei o meu contato com
a língua inglesa ouvindo e traduzindo músicas da Madona aos 12 anos. Sempre pedi
a meus pais que me matriculassem em um cursinho de inglês, mas realmente não
tínhamos dinheiro e teria que aprender sozinha.
Esse aspecto de sua história auxilia a explicar sua tenacidade, persistência,
determinação e o enorme desejo de domar o “bicho de sete cabeças”. No início de seu
diário reflexivo, diz: “É claro que não vou desistir. É por isso que estou aqui hoje. Vou
repetir quantas vezes forem necessárias (...) a coragem de nunca abandonar a nau é
para mim o que há de mais valioso”. Numa conversa informal que tivemos na cantina,
perguntei como encarava o processo de aprendizagem naquele semestre. Respondeu
que estava subindo uma montanha e que tinha que deixar alguns pesos para trás. De
fato, o que Júlia percebeu ao longo do semestre, à medida que avançávamos
em nossas reflexões, era que deveria deixar para trás e superar as experiências
negativas que funcionavam como um bloqueio, limitando o seu desenvolvimento,
sobretudo sua fluência oral. Além disso, precisava superar um pensamento
depreciativo associado a um sistemático discurso negativo de fracasso e reprovação
de si mesma. Júlia veio estudar Letras com o desejo de se tornar professora de inglês.
Como sua situação socioeconômica a impedia de frequentar um curso de inglês,
26
tinha que aprender sozinha, conforme relata:
J - Não tinha como praticar a língua, pois no colégio as aulas eram ministradas
em português. Comecei a escrever pequenas frases em inglês nas cartas que
escrevia a um amigo que sempre teve um bom nível na língua. Como era iniciante,
errava muito. Ele, como era adolescente, também me ridicularizava na frente de todos
os nossos amigos, ao invés de me corrigir à parte. O que poderia ter sido a alavanca
para o crescimento tornou-se a areia movediça que me fez sentir inferior a todos.
Sentia-me incapaz de conseguir aprender uma segunda língua. Cresci com este
sentimento de inferioridade, até chegar na faculdade.
A interação com o colega marcou Júlia de uma forma profunda e, posso
dizer, é um dos marcos históricos cuja identificação Clandinin e Connelly (2000)
consideram importante. De alguma maneira, esse sentimento de inferioridade, a
autoavaliação negativa e a baixa autoestima acompanharam Júlia durante quase todo
o seu processo de aprendizagem até então. O medo, o constrangimento e a
insegurança que relata em suas narrativas limitavam seu campo de ação na sala de
aula. Em nossas conversas e entrevistas, sempre procurava refletir sobre essas
emoções.
No início do curso, Júlia era uma aluna calada e pouco participativa.
Sentava na frente junto a alguns colegas também repetentes, mas não
participava das atividades propostas pela professora. Eu sentia que ela estava sempre
em algum outro lugar. Para ela, falar inglês na sala é como “pisar em ovos” ou como
“se o ar tivesse facas”. Essas metáforas nos auxiliam a compreender a dinâmica
relacional de medo, cautela e desconfiança que levavam Júlia a participar pouco das
atividades que envolviam o uso de inglês em sala de aula. Numa conversa
informal que tivemos no final de uma aula, procurei abordar a questão de sua
participação nas tarefas da sala de aula. No primeiro mês, observei que não
perguntava, não interagia com outros na turma. Indaguei-a sobre essa situação
recorrente e esta foi sua resposta: “quando converso inglês sinto que o outro está
sempre me corrigindo, é como se o ar tivesse facas, estou sempre pisando em ovos,
parece que estão me julgando, avaliando, criticando.”
Essa sensação de estar permanentemente exposto e julgado (cf. p. ex.
MICCOLI, 1997) é um traço recorrente não só de Júlia, mas também dos outros
participantes da pesquisa. Todos, com exceção de uma participante, relatam desse
modo seu extremo desconforto ao falar inglês em público. Em linhas gerais, há um
sentimento de bloqueio limitador da ação, de extrema preocupação consigo mesmo
e com a opinião alheia, acompanhado de um sentimento de observação julgadora
contínua de que os demais presentes podem estar criticando sua conduta. Acompanha
esse desconforto o medo de errar, medo de fazer perguntas, medo do que o outro
27
pode estar pensando sobre você, o constrangimento, a vergonha e o retraimento
interacional.
À medida que construía sua autoconfiança, a sensação de pisar em ovos foi
se dissipando. Porém, até a última entrevista e nas últimas aulas, percebia que Júlia
ainda oscilava em sua insegurança. Entretanto, depois da nossa segunda entrevista,
observei uma mudança significativa. Na entrevista decidi enfatizar a sua
preocupação com a opinião e a avaliação dos outros, esse sentimento de pisar em
ovos na sala e a sensação de facas no ar. Num determinado momento, introduzi
esse tema em nossa reflexão, ao qual retornei sistematicamente:
R - Você faz perguntas, né?
J - Faço.
R - O que te leva a fazer uma pergunta?
J - Do que surgir na hora.
R - E você tem algum medo e receio de fazer pergunta?
J - Agora não (risos), porque agora acho que eu escrachei...(risos)
R - (risos) Por que agora não, Júlia?
J - Estou mais segura, Rodrigo, graças a Deus, estou mais segura nesse
curso. Acho que estou melhorando no inglês. Eu acho que tenho capacidade (...)

Procurei enfatizar essa questão na tentativa de torná-la mais consciente. No


trecho seguinte, pergunto como está “o alpinista” na aprendizagem de inglês, com o
intuito de fazê-la perceber que poderia superar suas dificuldades e a sensação de
desconforto:
R - Qual que é o problema do inglês, Júlia?
J - Acho que o problema do inglês, no semestre passado principalmente, foi
esse, foi um pouco do medo, desse medo de me achar incapaz, o medo de não dar
conta, né?
R - E como está o alpinista, Júlia?
J - (risos) Acho que ele está subindo legal, Rodrigo, acho que ele está
usando as ferramentas que devia, acho que ele está subindo com mais confiança.
R - Qual é a origem desse medo, Júlia?
J - É a crítica, o medo da crítica para mim, a Nati (uma colega de sala), por
exemplo, não tem esse medo.
R - Medo do olho do outro?
J - É... por que que tenho esse medo do olho?
R - Você tem alguma sugestão para superar isso?
J - Yoga (risos). Estou brincando, não sei, mas alguma coisa desse tipo.
R - De criar autoconfiança?
J - De trabalhar isso com você, com o seu pessoal. 28
R - Então se você se preocupar menos com o olho dele, com os seus erros...
J - Mas eu preocupo demais, sabe, para falar esse pouquinho de inglês,
algumas frases. Aí já vi que na minha cabeça aqui fervendo, será que estou falando
isso certo? Será que o Rodrigo está corrigindo minha pronúncia? Será que eu tenho
algum erro?
R - Está passando da hora, vamos para a aula?
J - Vamos, está na hora.
Júlia foi para a sala, enquanto desci até a cantina. Quando voltei, Júlia
estava sentada junto com os colegas que mais participavam oralmente da aula.
Acompanhei quem detinha o turno durante uma atividade de resolução de
problemas. Nessa atividade, havia um crime a ser solucionado e, a partir dos hóspedes
da casa, os alunos tinham que provar quem era o culpado. Júlia manteve o turno
por trechos longos e entrou num embate conversacional com a aluna-participante
Nati, a colega que Júlia achava ser superior a ela. Num determinado momento, a
conversa começou a circular de maneira aberta na sala, de forma que poucas pessoas
tomavam o turno conversacional. Mas nesse dia Júlia falou muito mais do que de
costume. Alguma mudança radical ocorreu no que Júlia podia fazer na sala. Sua
emoção, seu domínio de ação, sua atitude naquele meio relacional haviam se
transformado. Era como se, durante aquela aula, tivesse deixado o espaço de sala
de aula no qual pisava em ovos e driblava as facas que estavam no ar. Sua emoção
ou, para relembrarmos o modo como estou aqui definindo esse fenômeno, sua
disposição corporal para ação havia mudado, assim como mudou o seu ambiente
interacional. Foi como se uma outra dinâmica tivesse entrado em cena. Observei
que essa mudança se estendeu às aulas seguintes. Júlia descreveu em sua colagem
e na entrevista final que falar inglês com fluência seria como “vestir a capa de um
rei”. Naquele dia, Júlia colocou sua coroa de rainha. Falou com fluência e
desenvoltura durante toda a aula. Fiquei atônito. Selecionei o trecho final de nossa
última entrevista, quando procurei explorar os efeitos de nossa concatenação de
reflexões acerca de sua experiência na aprendizagem de inglês, para reproduzi-lo
aqui, na íntegra:
R - Como avalia que esse processo de reflexão pode estar auxiliando nessa
consciência de que você já sabe alguns caminhos a percorrer?
J - Eu acho que a sua presença na sala me dava segurança. Eu pensava
assim: tem um doutorando na sala e esse trabalho que a gente fez, me fez pensar, me
fez refletir mesmo sobre a minha capacidade, sobre a minha falta de confiança em
mim mesma. Vi que não é por aí, que eu sei que alguma coisa eu sei, tanto que estou
aqui. Minhas notas nesse semestre foram boas, mas ainda tem muito para aprender,
mas estou muito mais confiante. Fui vendo que o professor da faculdade não é o rei
29e
talvez eu também não vou ser nenhuma rainha para ninguém. Vai ver que vou ser
essa rainha para mim, mas eu posso não ser para as outras pessoas que vão chegar
e vão me contestar. Espera aí, não é assim que pronuncia, não é assim que se fala.
Não, isso está errado! Mas eu vi que posso contestar também, não preciso me sentir
inferior e nem me curvar para a professora de inglês da faculdade. Eu vi isso esse
semestre na faculdade. Esse processo que a gente fez de reflexão nesse semestre
me fez ver isso, que posso refletir e que posso discutir, que posso argumentar e me
fez crescer. Isso me fez crescer muito. Hoje estou me sentindo bem melhor com
relação ao inglês, bem segura de mim mesmo.
R - É, acho que assisti isso, Júlia, aí, depois da segunda entrevista.
J - Me sinto muito mais segura, o pisar em ovos pode até continuar, mas agora
eu sei onde é que estou pisando, sabe, sei onde estão os ovos.
R - É, e acho que mudou. Eu sinto que isso mudou na documentação
filmada e observei na sala, eu vejo que mudou, talvez, como você mesma falou,
tenham outras coisas também. Sua vida pessoal está melhor, né?
J - É, pode isso ser também (risos).
R - Né (risos).
J - A segurança vem das coisas que você me fala, o fato de você falar essas
coisas pra mim, me fez caminhar melhor, que eu podia dar conta, só que não
conseguia enxergar isso, que se eu posso fazer isso assim é assumir a capa do rei e
aí tenho de prestar contas da minha realeza. Se diz que é rei, cadê? A
responsabilidade fica maior, sabe?

REFLEXÕES FINAIS

Júlia mudou. Eu mudei. Júlia vive hoje um outro domínio de ação, uma outra
emoção, diferente daquela na qual estava no início de nossa conversação. Acredito
que hoje vivemos uma outra maneira de nos colocarmos na relação com os outros.
Nesse conversar, nesse dar voltas em conjunto, entrelaçando o emocionar com o
conversar (MATURANA, 1998, p.34), concatenando reflexões de autoconsciência
em conjunto, nos transformamos sempre de uma maneira inevitável, embora nem
sempre perceptível. Maturana e Block (1996) apontam que a reflexão é um ato de
emoção no desapego, no qual se sai de uma certeza, de uma condição que nos
cega e abre-se a mão para ver o que antes não víamos. O saber e a certeza negam
a reflexão, pois não se reflete sobre o que se tem como certo. Na reflexão admitimos
que não agimos mais numa certeza, e aí há um deslocamento. Quando refletimos,
vivemos uma mudança na corporalidade e uma mudança na conduta, e aí podemos
fazer coisas que antes não podíamos. A história de vida de Júlia e nossas
conversações haviam modulado uma nova conduta, assim como as próprias emoções
30
vividas na sala modificaram sua vida pessoal e acadêmica, numa dialogia constante.
Nosso conversar, nosso recontar participaram desta dança emocional e racional,
especificando e modulando domínios possíveis nas concatenações de reflexões
que desenvolvemos em conjunto.
Podemos promover espaços de reflexão em conjunto de várias formas. O
primeiro passo é conhecer um pouco das trajetórias de aprendizagem entre alunos e
professor. Isso pode ser iniciado através da escrita de uma narrativa autobiográfica
sobre a história pessoal e escolar do aluno e do professor. O objetivo central é
relatar as experiências prévias com a língua inglesa, os prazeres e desprazeres na
aprendizagem da língua, assim como descrever crenças e estratégias de
aprendizagem. Os alunos e o professor podem compartilhar suas histórias, em pares
ou em pequenos grupos. Pode ser feita também uma colagem descritiva, usando
desenhos ou figuras que encorajem a reflexão sobre questões como o sentimento
predominante nas aulas, a sensação de falar inglês na sala, como é ou como
poderia ser a sensação de falar inglês com fluência, as estratégias utilizadas para
otimizar a aprendizagem, e, se se pretende ser professor, que imagem pode simbolizar
esse papel. A colagem pode ser um artifício produtivo para quem tem dificuldade de
discorrer verbalmente sobre seus sentimentos e emoções. Realizada essa atividade,
o professor pode entrevistar os alunos para explorar pontos da colagem e da
narrativa.
O professor pode ainda organizar entrevistas entre os alunos, levando-os a ler
as narrativas dos colegas e a montar um questionário para aprofundar a reflexão.
Pode-se manter também um diário que relate as emoções vividas na sala ou uma troca
de cartas entre os alunos e o professor. É necessário orientá-los para o foco reflexivo
de sua escrita, para que não fiquem apenas no nível descritivo. Conversas em pares
ou em grupo sobre emoções envolvidas na aprendizagem também podem ser
fomentadas. Os alunos podem gravar as apresentações orais uns dos outros, ou
situações de interação oral, e depois refletir sobre as mesmas em sessões de auto-
observação reflexiva com o professor ou aluno com aluno. De fato, não há uma receita
geral.
Antes de entrar na sala como pesquisador e escutar as histórias e experiências
de Júlia (e dos outros participantes), não esperava que as ações de nossos alunos
pudessem ser balizadas de tal maneira por nossas emoções, nossa auto-
observação/consciência e nossas histórias de vida. Foi marcante compreender que
falar inglês na sala de aula envolve uma gama de variáveis muito maior que a
combinação de gramática e vocabulário na interação comunicativa. Comunicar em
inglês na sala envolve questões como as histórias de interações prévias do aluno com
a língua e todo o seu entorno de significados pessoais, emocionais, identitários, 31
de
atribuição de poder na sala, e as várias faces do medo, como medo do próprio
julgamento e dos outros ali presentes, constrangimento relacional, vergonha,
autoestima, confiança e insegurança, ansiedade, preocupação e culpa.
Atualmente, compreendo de maneira sistêmica que quanto maior a empatia
entre professor e aluno melhores são os resultados. Há uma distância entre o
mundo do aluno e o do professor na sala de aula.
Esses mundos envolvem distintas crenças que podem gerar conflitos pela falta
de um co-emocionar mais harmônico e congruente. No entanto, uma maneira de
encurtarmos as distâncias é participarmos do mundo deles, de suas conversações, de
suas histórias, e convidá-los a participarem das nossas.
Precisamos dar vozes a todos na sala de aula, pois é conversando que
podemos nos entender melhor, por conhecermos as semelhanças e diferenças entre
nossas histórias e emocionares. Como apontei, temos a nossa disposição diversas
maneiras de fomentar essa atitude reflexiva na sala: uso de diários, narrativas,
autobiografias, discussões em grupo, leituras coletivas de narrativas, filmagem e auto-
observação de cenas de sala de aula em que estamos expostos, colagens, entre
outras. Basta estarmos dispostos a entrar nesse emaranhado inter-relacional
sistêmico e também admitir, como a própria Júlia apontou no questionário final, que “A
reflexão é para todos, mas nem todos são para a reflexão”.
Claro, as disposições para entrar em espaços de reflexão e transformação são
diversificadas.
Mais um ponto relacionado ao bailar da emoção e da cognição: a
transformação na convivência envolve a aceitação e a disposição mútua para que os
envolvidos possam participar de um domínio em conjunto, a reflexão, a tomada de
consciência, o desejo de mudança e a possibilidade de transformação na contingência.
Precisamos compreender a constituição desses domínios de ação na sala e como a
reflexão, a cognição e a emoção caminham em conjunto. Os desafios são muitos, mas
a viagem é compensadora.
32
– MOTIVAÇÃO E DESMOTIVAÇÃO NO
APRENDIZADO DE LÍNGUAS: por Richard Schütz

Referência:
SCHÜTZ, Ricardo. "Motivação e Desmotivação no Aprendizado de Línguas" English Made in
Brazil <http://www.sk.com.br/sk-motiv.html>.

MOTIVAÇÃO

A motivação pode ser definida como o conjunto de fatores circunstanciais e


dinâmicos que determina a conduta de um indivíduo.
A motivação é uma força interior propulsora, de importância decisiva no
desenvolvimento do ser humano. Assim como na aprendizagem em geral, o ato de
se aprender línguas é ativo e não passivo. Não se trata de se submeter a um
tratamento, mas sim de construir uma habilidade. Não é o professor que ensina nem
o método que funciona; é o aluno que aprende. Por isso, a motivação do aprendiz no
aprendizado de línguas é um elemento chave.
A motivação pode ser ativada tanto por fatores internos como externos.
A origem da motivação é sempre o desejo de se satisfazer necessidades. O
ser humano é um animal social por natureza e, como tal, tem uma necessidade
absoluta de se relacionar com os outros de seu ambiente.
Essa tendência integrativa da pessoa é o principal fator interno ativador da
motivação para muitos de seus atos. Por exemplo, se estivermos em um ambiente
caracterizado pela presença de uma língua estrangeira, naturalmente teremos uma
forte e imediata motivação para assimilarmos essa ferramenta que nos permite
interagir no ambiente, dele participar e nele atuar. Aprender uma língua fora do
ambiente de sua cultura seria como aprender a nadar fora d'água.
As características dos ambientes que frequentamos representam fatores
externos. Por exemplo, se o ambiente em que o aprendizado da língua deve ocorrer
for autêntico e proporcionar atividades voltadas aos interesses do aprendiz, o grau
de motivação será alto. Entretanto, se o ambiente carecer de autenticidade, de
elementos da cultura estrangeira, como por exemplo uma sala de aula com um número
excessivo de alunos e um professor de proficiência limitada, onde a L2 dificilmente
se impõe sobre a L1, e se as atividades nesse ambiente forem ditadas por um
plano didático predeterminado em vez de centradas na pessoa e nos interesses
do aprendiz, o grau de motivação será baixo.
Outra necessidade que buscamos satisfazer (principalmente crianças,
adolescentes e jovens adultos) é a necessidade de se explorar o desconhecido.
Esta característica do ser humano também demonstra a importância 33 do
ambiente de aprendizado da língua estar autenticado pela marca e presença da cultura
estrangeira.
Na criação de ambientes especificamente para o ensino e o aprendizado de
uma língua, mapas, fotografias, filmes e música podem ajudar, mas nada substitui a
pessoa estrangeira. O falante nativo é a personificação da língua e da cultura
estrangeira, e por isso forte fator estimulador da motivação. O contato intercultural
mostra ao aprendiz a funcionalidade da língua e leva-o a se identificar com a cultura
estrangeira e a desejar integrar-se a ela, produzindo, como consequência, o desejo de
imitar, de pensar e falar igual.
Além de poder ser ativada por fatores internos e externos, a motivação pode
ser classificada em direta e indireta.
Motivação direta seria aquela que nos impulsiona diretamente ao objeto que
satisfaz uma necessidade nossa. Por exemplo: você admira e se identifica com uma
cultura estrangeira e investe todos seus esforços no aprendizado da respectiva
língua.
Motivação indireta ou instrumental é aquela que nos impulsiona em direção
a um objetivo intermediário, por exemplo, aprender inglês, que, por sua vez,
possibilitará a satisfação de uma necessidade maior. Esta é provavelmente a forma
mais frequente de motivação no aprendizado de línguas. Veja os exemplos abaixo:
Exemplo 1: Você tem um forte desejo de conhecer a técnica da fotografia e dispõe
de excelente literatura sobre o assunto, em inglês. Embora você não entenda textos
em inglês, vai aplicar todo seu esforço para decifrar a língua e assim obter as
informações ali contidas.
Exemplo 2: Se um jovem norte-americano se apaixona por uma jovem de origem
hispânica, que vive numa das muitas comunidades hispânicas nos EUA, ele poderá
investir esforços no aprendizado do espanhol para conquistar a simpatia da jovem e
de sua família.
Exemplo 3: Uma pessoa ambiciosa, extremamente motivada em direção ao sucesso
em sua carreira profissional, embora sem talento nem motivação para línguas,
poderá investir exaustivos esforços em seu aprendizado, o qual indiretamente,
possibilitará a realização de um objetivo (satisfação de uma necessidade) maior.
Exemplo 4: Você busca o aprendizado da língua estrangeira porque reconhece nela
uma ferramenta indispensável tanto em sua carreira acadêmica como profissional,
ou simplesmente porque quer ser ouvido e reconhece no inglês um poderoso meio
de expressão neste mundo globalizado.
É interessante observar que frequentemente uma motivação indireta acaba
dando origem à motivação direta. Ou seja, a pessoa inicialmente impulsionada em seu
ato por um objetivo indireto maior, acaba "tomando gosto", descobrindo valores antes
34
desconhecidos, destruindo imagens estereotipadas, encontrando no "sacrifício"
intermediário um objeto de motivação direta. Isto ocorre na medida em que a
experiência de aprendizado da língua é complementada com o aprendizado da
respectiva cultura, passando ambos a fazer parte da coleção de experiências de vida
da pessoa.

DESMOTIVAÇÃO

Se a motivação se origina no desejo de se satisfazer uma necessidade, não


havendo necessidade, não haverá motivação. Pelo contrário, a reação normal da
pessoa, quando compelida a uma atividade não resultante de um desejo de
satisfazer uma necessidade, é a desmotivação.
Um ambiente de sala de aula voltada ao ensino formal de uma língua
estrangeira, sem a presença de autênticos representantes dessa língua e de sua
cultura, é um exemplo de ambiente que não evidencia necessidade, não produz
motivação e não estimula o aprendizado. O que se encontra atualmente no ensino
de inglês, são inúmeros fatores desmotivadores: salas de aula com muitos alunos,
professores com proficiência limitada, cobrança através de exames de avaliação
com questões truculentas que nada avaliam, repetição oral mecânica, etc. Esses
fatores desmotivadores podem ser observados tanto na rede de escolas de ensino
médio, onde o ensino de inglês ficou encalhado no método de tradução e gramática
do início do século, como nos cursos particulares de línguas, que ficaram
encalhados no método audiolinguístico dos anos 60. Nem um nem outro mostra
resultados imediatos motivadores nem permite que o aluno alcance a proficiência
desejada, gerando inevitavelmente uma certa frustração que, em maior ou menor grau,
destrói a motivação.
Também aquele aprendiz que não se identifica com a cultura estrangeira, -
ou que às vezes até a despreza, - normalmente por falta de maior informação a
respeito da mesma ou por informações estereotipadas que o professor não soube
corrigir, estará desmotivado a aprender sua língua.
O problema da desmotivação é frequentemente observado em salas de aula
que enfatizam language learning. Por outro lado, em programas que enfatizam
language acquisition, observa-se facilmente a ocorrência natural de motivação para
o aprendizado de línguas, independente de idade. A pessoa que tiver oportunidade de
ter contato com a língua estrangeira em situações reais de comunicação, em
ambientes autênticos dessa língua e de sua cultura, onde a língua está presente como
meio de interação e não ausente, ministrada em doses pequenas e amargada pela
repetição mecânica descontextualizada, ou pela dissecação gramatical, 35
vai
certamente alcançar fluência.
O caso do Jonas, narrado em nosso Fórum de Discussões em 24 de abril de
2003, é bastante ilustrativo:
"Fiz vários cursos no Brasil, inclusive todos os níveis (12 books). Mas
quando vim para cá (EUA) pra morar e trabalhar percebi como não era fluente em
inglês, principalmente na parte oral. A minha motivação meio que baixou um pouco;
eu me sentia frustrado. Como trabalho com informática, praticamente não
conversava com meus co-workers. Mas com o tempo fui fazendo amizades e hoje
acho que desenvolvi bastante”.
Depois de 12 livros, cumprindo diligentemente a receita prescrita pelo curso,
reprimindo a desmotivação com força de vontade, o aluno descobre ao chegar no
ambiente de língua e cultura inglesa que não havia alcançado o objetivo principal. A
desmotivação que ele sentiu foi uma espécie de efeito retardado, que outros, com
menos força de vontade, não conseguem reprimir por tanto tempo e desistem antes
do Livro 12. Só a partir do momento em que ele constrói um círculo de convívio
humano, num ambiente autêntico, com situações reais de comunicação, é que
reencontra motivação e finalmente alcança seu objetivo.
Isto nos leva à conclusão de que, em vez de nos preocuparmos em motivar
nossos alunos, talvez devêssemos nos esforçar mais para não desmotivá-los. Se
não pudermos despertar neles a motivação natural para o aprendizado de línguas,
subjacente em todos, pelo menos cuidemos para não destruí-la e sim preservá-la
para quando encontrarem a oportunidade certa.
36
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