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CAPITULO O Espelho

Helena torceu a rédea e regressou ao ponto donde saíra.


A privação amortece a condição bestial e apura a outra; fortifica, portanto, o
ser inteligível, aclara as ideias, afina e eleva a concepção da justiça
O semblante é também o espelho de nossa alma; e a palavra expressa na voz
no jornal, no livro, o espelho das ideias, o espelho do pensamento.
As aparências de um sacrifício valem mais, muita vez, do que o próprio
sacrifício.
Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio;
faço-o eu, e a ciência mo agradecerá.
As suas palavras são um verdadeiro enigma.
Se tu não vês o que está a teus pés, por que indagas do que está acima da tua cabeça?

Prospecto1, Editorial de O Espelho, n.º 1, 4 de setembro de 1859

Não foi sem havermos profundamente refletido que nos resolvemos de publicar O Espelho.
Pesamos todos os prós e os contra; lembramo-nos da sorte que tem tido todos os nossos irmãos
desta grande seita fundada por Gutemberg, medimos os obstáculos que naturalmente virão
antepor-se ao nosso caminhar, medimo-los todos, e aprestando as nossas forças preparamo-nos
para afrontá-los um a um.
Pelo bom ou mau êxito da nossa empresa só o futuro responderá. É nele confiado que nos
decidimos a combater até a última, no centro dessa imensa arena dominada pelo indiferentismo.
O Espelho vai pois aparecer como um protesto a esse indiferentismo, que faz morrer a inteligência,
ainda quando o pensamento começa a adejar deixando ver as premissas de um futuro risonho.
Por hora nada mais prometemos do que a nossa boa vontade para fazermos com que esta
revista tenha a maior circulação possível. O meio é somente um: torná-la variada, mas de uma
variedade que deleite e instrua, que moralize e sirva de recreio quer nos salões do rico, como no
tugúrio do pobre
Para esse fim temos em vista a publicação dos romances originais ou traduzidos, que nos
parecem mais dignos de ser publicados, artigos sobre literatura, indústria e artes, poesias, e tudo
quanto possa interessar ao nosso público e especialmente ao belo sexo. Também publicaremos o
que de novo aparecer sobre modas e oportunamente daremos os mais modernos figurinos, que de
Paris mandaremos vir, e bem assim retratos e gravuras.
Ao talento e à inteligência não fechamos as colunas desta revista: pelo contrário, lisonjear-nos-
emos se de qualquer forma podermos animar a esta brilhante mocidade, que com os seus voos
de águia procura abraçar o futuro.
É sabido quanto são escassos os meios entre nós de desenvolver-se a inteligência, que também
necessita de um sopro vivificador que a anime.
Jornais literários pode-se dizer que não os há nesta vasta capital; e pois será esse um duplo
merecimento que teremos. Pugnamos pelo progresso ao mesmo tempo que tentamos satisfazer a
nossa missão.
O Espelho será, pois o pequeno reverbero de uma parte desses raios com que a inteligência procura
iluminar o mundo.
Da aceitação que lhe derem os leitores depende o seu futuro; é ela quem marcará as dimensões de
sua grandeza, a extensão de seu curso, a sua vida ou a sua morte.

Editorial do primeiro número de O Espelho. Não é assinado. Mas teria faltado apenas a
assinatura. Machado é visto em Espelho no texto. “Lembramo-nos da sorte que tem tido
todos os nossos irmãos desta grande seita fundada por Gutemberg”. Gutemberg
fundou uma seita religiosa – a seita dos escritores. Em Muitos anos depois (1874),

1
http://memoria.bn.br/pdf/700037/per700037_1859_00001.pdf, O Espelho, número 1.

1
escreveu “a religião católica era a da sua fé, ardente, profunda, inabalável; o paganismo
representava a sua religião literária”. A religião literária é uma religião pagã.

Em A nova geração (1879) aparece a posteridade associada a Gutenberg:

O Trono e a Igreja, Gutenberg, a Posteridade, e outras composições dão ideia cabal dessa poesia,
que buscava os efeitos em certos meios puramente mecânicos. Vemos aí o condor, aquele condor
que à força de voar em tantas estrofes, há doze anos, acabou por cair no chão, onde foi apanhado
e empalhado; vemos as epopeias, os Prometeus, os gigantes, as Babéis, todo esse vocabulário de
palavras grandes destinadas a preencher o vácuo das ideias justas (A nova geração, 1879).

A religião literária, pagã, não difere das outras religiões, visa também servir como um
alento que dá um suporte à vida de Narciso, alguns conseguem a proeza de ter vida após
a morte – são os imortais.

O Espelho, publicado em O Espelho, n.º 1, 4 de setembro de 1859.


Assim como o mar, o rio, as águas reverberam a luz do sol, a imagem da lua, a palidez das estrelas,
assim o semblante reverbera o sentimento, assim a palavra reverbera o pensamento.
A superfície das águas é vasto e polido espelho em que o céu se mira dia e noite; o semblante é
também o espelho de nossa alma; e a palavra expressa na voz no jornal, no livro, o espelho das
ideias, o espelho do pensamento.
As imagens representam-se na lamina, as palavras gravam-se no papel; eis ai a diferença.
Àquelas desaparecem, estas duram apesar dos anos, apesar dos séculos.
A Gutemberg, devemos a descoberta que aperfeiçoou, tornando mais fácil e mais perdurável, o
meio de refletirem-se as ideias, os pensamentos, as palavras. A um veneziano devemos o
aperfeiçoamento das antigas folhas de mica e talco conhecidas dos Egípcios, e o dessa maravilhosa
combinação com que Archimedes incendiou as naos inimigas.
Gutemberg com a sua descoberta operou uma revolução aplaudida pelos homens, em razão dos
benefícios que a humanidade colheria. Um veneziano com seu invento conquistou as simpatias de
todas as damas.
Gutemberg acoroçoou a inteligência, o veneziano animou a coquetterie. Ambos foram admirados,
festejados ambos.
Mas, cousa notável! De inventores passaram eles mesmos a serem espelhos. E’ a sorte da
humanidade, é a sorte das grandes e pequenas cousas. A virtude, a gloria, refletese no homem de
gênio, no homem virtuoso, tornando-se ele por isso o espelho em que nos devemos mirar na
nossa peregrinação terrena.
O vício também tem o seu espelho, assim como a desgraça, assim como a escravidão, assim como
a velhice. O espelho da velhice é o carunchoso rosto de uma mulher de noventa anos.
Quando vemos algum devoto de Baccho estendido no adro de alguma igreja ou nos lajeados de
alguma calçada, não o apontamos dizendo: mira-te naquele espelho!?
Já vê o leitor, ou a minha bela leitora que se há cousa que mais abunde neste mundo são os
espelhos.
Até a fechadura tem o seu espelho.

“O semblante é também o espelho de nossa alma; e a palavra expressa na voz no jornal,


no livro, o espelho das ideias, o espelho do pensamento”.

“De inventores passaram eles mesmos a serem espelhos... tornando-se ele por isso o
espelho em que nos devemos mirar na nossa peregrinação terrena”. Os inventores
vistos em espelho.

2
Dois anos antes, em setembro de 1857, havia traduzido Lamartine2, depois publicou O
passado, o presente e o futuro (9 de abril de 1858), onde escreveu “... nas lutas da
inteligência a emulação é o primeiro elemento”. Considera a Emulação, a relação em
Espelho, como o primeiro elemento de transmissão da inteligência. Emular o outro
corresponde a tomá-lo em espelho.

“Gutemberg com a sua descoberta operou uma revolução aplaudida pelos homens, em
razão dos benefícios que a humanidade colheria”. E Machado propõe uma revolução na
literatura introduzindo uma Psicologia nova3, “as palavras gravam-se no papel... duram
apesar dos anos, apesar dos séculos”, expressa a imortalidade que ele buscava.

Os dois textos acima, Prospecto, e O Espelho, de 4 de setembro de 1859, são coerentes


com o que havia escrito em janeiro/1859, oito meses antes, no artigo O Jornal e o livro4:

O que era a imprensa? Era o fogo do céu que um novo Prometeu roubara, e que vinha animar a
estátua de longos anos. Era a faísca elétrica da inteligência que vinha unir a raça aniquilada à
geração vivente por um meio melhor, indestrutível, móbil, mais eloqüente, mais vivo, mais próprio
a penetrar arraiais de imortalidade.

A imprensa era o “fogo do céu” que o novo Prometeu Gutenberg roubara aos deuses e
entregou aos homens. A imprensa permite ao autor deixar seu pensamento impresso para
a posteridade para serem consultadas quando ele já não vive mais. A obra de Machado é
essa obra impressa, que espelha o autor, que pode ser encontrado no texto.

No dia 18 de setembro de 1859, catorze dias após Prospecto e O Espelho, publica Os


imortais, onde deixa claro que compreende o processo de imortalizar-se como escritor5.

Em 30 de outubro de 1859 ele fala dele mesmo como seu alter ego como se estivesse
conversando diante de um Espelho.

Abre-se segunda-feira a Ópera Nacional com o Pipelet, opera em 3 atos, musica de Ferrari, e
poesia do Sr. Machado de Assis, meu íntimo amigo, meu alter ego, a quem tenho muito afeto,
mas sobre quem não posso dar opinião nenhuma6 (Revista de teatro, 30 de outubro de 1859)

Novidades da semana. Suplicio de uma mulher.


Suplício de uma mulher! Eis a novidade da semana. Novidade comovedora que traz em sobressalto
a curiosidade pública e a bolsa dos frequentadores do Ginásio. Porque o drama anunciado aparece
revestido de todos os caracteres próprios para estimular o desejo de vê-lo. O nome do autor é já
em si uma novidade dramática. Emílio de Girardin, o jornalista político, o ardente promotor de
polêmicas sociais, o grande paradoxista da imprensa quis também tentar fortuna na cena dramática.
E transportando para o teatro a qualidade distintiva do seu gênio, fez barulho com a própria obra
para melhor assegurar o efeito da sua audaciosa tentativa. É essa obra nova que, traduzida para o
nosso teatro por Machado de Assis, deve em breve atrair a atenção geral. Quem deixará de ir ver
o drama7? (Semana Ilustrada, 1 de Outubro de 1865)

2
Ver Capítulo Emulação.
3
Todo este livro revela a Nova psicologia criada por Machado, ele mostra isso em toda sua obra,
particularmente menciona ter criado uma Nova psicologia no conto O cônego ou a metafísica do estilo
(1885), com rápido comentário no capítulo Metafísica e O Oculto e a Psicologia, e também no conto do
mesmo ano de Uma Viagem à roda de mim mesmo, comentado no capítulo que tem esse nome.
4
Ver Capítulo O fato, o Jornal, e o Fiat.
5
Ver Capítulo O Imortal.
6
http://memoria.bn.br/pdf/700037/per700037_1859_00009.pdf, Revista dos Teatros, O Espelho, 30 de
outubro de 1859.
7
http://memoria.bn.br/pdf/702951/per702951_1865_00251.pdf, Semana Ilustrada, 1 de Outubro de 1865.

3
Dr. Semana, o pseudônimo, anuncia a peça traduzida pelo amigo, Machado de Assis.
Uma bela ilustração do uso da ideia de Espelho.

Dirá em Onda (1867) “este modo de traficar a própria pessoa não é nenhuma descoberta,
nem eu me dou por Arquimedes”. Uma forma de traficar um texto é assinando-o com
um Pseudônimo, sendo uma forma de pseudônimo deixar o texto sem autoria – seria o
traficante verdadeiramente oculto – mas deixa rastros, e caso fira a moral social, pode ser
investigado e ser encontrado.

O Teorema de Pitágoras é um objeto matemático, nele, não existe nenhum rastro da


subjetividade do seu autor, que fica fora da fórmula. A ciência costuma separar
completamente o objeto do sujeito, e o comum é a pessoa ver a realidade objetivamente.
Quando adquire um objeto, usa o objeto pronto, e é incomum ter interesse em saber como
foi construído. Quando um engenheiro constrói o prédio, é incomum ele fazer
exibicionismo durante a construção tirando fotografias mostrando para a cidade que é ele
o autor daquela obra em construção. Nesses casos objetivos, o autor fica totalmente fora
da obra, invisível, que é o melhor modo de Narciso se manifestar.

Pode ser que o engenheiro vá documentando em diários privados as etapas da construção,


filmando os momentos, como sua história pessoal, sem exibir-se para a cidade ‘gente, eu
estou construindo esse prédio’.

Uma pessoa tinha por costume sempre que via uma fotografia ser tirada corria e de alguma
maneira aparecia na foto, queria que ficasse registrada para futuros documentos, lá no
futuro, publicam fotos do passado, e então ela aparece, como se fosse amiga de toda
aquela gente.

“Nossos irmãos desta grande seita fundada por Gutemberg” podem, na atual
sociedade midiática, facilmente deixar impresso para a posteridade quase tudo. Estamos
vivendo a época da religião do Ego.

A ideia o autor invisível fora da obra, nunca visto durante a construção, cria o problema
quando após a obra construída outra pessoa reivindica a autoria, e caso o verdadeiro autor
se manifeste, vir a ser tratado como psicótico.

Na comuna de Monreale, região da Cecília, uma ceramista convidava suas amigas para um jantar
em sua casa e o jantar era servido usando artefatos de cerâmica – pratos, panelas... – de produção
dela, toda a sala decorada com objetos de arte feitos por ela, era aplaudida e reconhecida na cidade
como produtora independente.

Sobre esse comportamento exibicionista, em O Alienista (1881), Machado escreveu:

- Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã.


De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na
casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos,
embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um
desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se fabricasse
as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras despregadas.
- Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde.
A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias saíam a passeio (jantavam cedo)
usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de

4
branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se
que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto que ele não a confessasse a
nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao Padre Lopes seus grandes amigos. E entretanto não foi
outra a alegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do
amor das pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desde algum tempo. Aquilo de
contemplar a casa...

Nos dois casos, a atitude mostra um Narcisismo exagerado, doentio, Narciso não percebe
que está sendo percebido, “riam-se por trás dele, que era um gosto”. Machado mostra o
Narcisismo de Mateus exibindo-se bizarramente com sua conquista, “a intenção do
Mateus era ser admirado e invejado”, Mateus aparece sozinho excluindo quem lhe deu
suporte para que se promovesse, só aparece ele e a casa.

O Alienista (1881) é do mesmo ano de Brás Cubas, e Machado advoga ter criado uma
doutrina nova:

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do
que triste.
Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde.
Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado:
nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.
- A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu.
Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.

“Uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu”, essa Doutrina nova, ou Psicologia
nova, seria a doutrina da Vaidade, que foi seu ponto de partida desde a época do Espelho.

Ahora habría que emprender una importante ampliación en la doctrina del narcisismo. Al
principio, toda libido está acumulada en el ello, en tanto el yo se encuentra todavía en proceso
de formación o es endeble. El ello envía una parte de esta libido a investiduras eróticas de objeto,
luego de lo cual el yo fortalecido procura apoderarse de esta libido de objeto e imponerse al ello
como objeto de amor. Por lo tanto, el narcisismo de! yo es un narcisismo secundario, sustraído de
los objetos (Freud, O eu e o isso, 1923)

Freud reviu a psicanálise depois de ter introduzido, tardiamente, o Narcisismo. Como diz
esse seu texto, no princípio, toda a libido está acumulada no bebê recém-nascido, ele vai
entrar no processo de formação do Eu, e quando o Eu, enquanto imagem, se desprende
do corpo, nasce mais uma criança responsável por si mesma. A psicanálise seria uma
doutrina do Narcisismo – visa o fortalecimento do Eu adulto quando desorganizado
recorrendo ao psicanalista para reorganizar sua imagem.

Conquistar objetos na realidade, ter algum sucesso, seria, então, uma maneira de se
recompor, organizar uma imagem para si. Um tratamento psicanalítico seria um
fortalecimento da imagem do Eu – o empoderamento do Eu. Doentes que vão procurar
tratamento psicanalítico que se tornam analistas ficam fortalecidos dentro da doutrina –
seu Ego refuta qualquer outra hipótese que não seja psicanálise – que, então, se torna uma
religião. É o perigo do idealismo.

O leitor observa que Machado pensa em Espelho, pela Emulação, na relação de rivalidade
com o outro, com ele mesmo, ele encontrou um modo de se mostrar na obra, e mostra ao
leitor em sua obra como acontece a relação de competição.

5
Retomando o tema do Espelho em Machado, agora, um fragmento de seu primeiro livro,
uma peça de teatro.

Desencantos (1861)

CENA I
Clara, Luiz de Melo
CLARA - Custa a crer o que me diz. Pois deveras saiu aborrecido do baile?
LUIZ - É verdade.
CLARA - Dizem entretanto que esteve animado...
LUIZ - Esplêndido!
CLARA - Esplêndido, sim!
LUIZ - Maravilhoso.
CLARA - Essa é, pelo menos, a opinião geral. Se eu lá fosse, estou certa de que seria a minha.
LUIZ - Pois eu lá fui e não é essa a minha opinião.
CLARA - É difícil de contentar nesse caso.
LUIZ - Oh! não.
CLARA - Então as suas palavras são um verdadeiro enigma.
LUIZ - Enigma de fácil decifração.
CLARA - Nem tanto.

“As suas palavras são um verdadeiro enigma”, Clara não entende o que Luiz quis dizer.
Machado faz o diálogo começar com um jogo.

LUIZ - Quando se dá preferência a uma flor, à violeta, por exemplo, todo o jardim onde ela não
apareça, embora esplendido, é sempre incompleto.
CLARA - Faltava então uma violeta nesse jardim.
LUIZ - Faltava. Compreende agora?
CLARA - Um pouco.
LUIZ - Ainda bem!

Luiz vai desmontando a charada. “Comprende agora?” Clara diz que compreende um
pouco. E convida Luiz para sentar com ela.
CLARA - Venha sentar-se neste banco de relva, à sombra desta árvore copada. Nada lhe falta para
compor um idílio, já que é dado a esse gênero de poesia. Tinha então muito interesse em ver lá
essa flor?
LUIZ - Tinha. Com a mão na consciência, falo-lhe a verdade; essa flor não é uma predileção do
espírito, é uma escolha do coração.
CLARA - Vejo que se trata de uma paixão. Agora compreendo a razão por que não lhe agradou o
baile, e o que era enigma, passa a ser a coisa mais natural do mundo. Está absolvido do seu
delito.

Clara “tinha então muito interesse em ver lá essa flor?”, e Luiz “com a mão na
consciência, falo-lhe a verdade”. Pressionado, ele fala a verdade que Clara queria escutar.
Ela era a violeta que tinha faltado ao baile. E Clara “o que era enigma, passa a ser a
coisa mais natural do mundo”. Desfez o enigma da linguagem alusiva, a nomeação se
revelou, “está absolvido do seu delito”, era tudo o que Clara queria. Agora, ela tinha
controle da situação.

Foi na relação da palavra em espelho que Luiz entregou o que Clara queria saber. Clara
destrói a psicologia de Luiz, informa que se casará com Pedro Alves, financeiramente
mais promissor, Luiz sai para uma viagem de cinco anos, quando retorna, se vinga
casando com a filha de Clara “que quer? todos temos um dia de desencantos. O meu foi
há cinco anos, hoje o desencantado não sou eu”.

6
Essa rivalidade em espelho, a vingança, a competição, a Emulação como transmissão da
inteligência, estava no foco de Machado de Assis, escorado no tema Pílades e Orestes8.
Desencantos foi publicada quando Machado tinha vinte e dois anos de idade.

O caminho da porta (1862)


DOUTOR - Tens ar de não dar credito ao que digo! Pois olha, tens diante de ti a verdade em
pessoa, com a diferença de não sair de um poço, mas da cama e de vir em traje menos primitivo.
Quanto ao espelho, se o não trago comigo, há nesta sala um que nos serve com a mesma
sinceridade. Mira-te ali. Estás ou não uma triste figura?

Tem um Espelho na sala, onde a verdade sairá do poço. Verdade sair do poço é ideia que
vem do Teeteto, um dos diálogos socráticos escritos por Platão.

“Foi o caso de Tales, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço.
Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que
ele procurava conhecer o que passava no céu, mas não via o que estava junto dos próprios
pés. Essa pilheria se aplica a todos os que vivem para a filosofia”

“Uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele”, a rapariga zombou de


Tales quando este, olhando para o céu, procurando a verdade, caiu em um poço. Deve ser
mesmo motivo de riso procurar a verdade olhando para o céu e cair em um poço. Seria
cair em uma cilada. E fazer a triste figura: “estás ou não uma triste figura?”.

A metáfora “verdade saindo do poço” se propaga pela obra.

— Meneses não conhece outros, continuou Félix. Parece filho daquele astrólogo antigo que,
estando a contemplar os astros, caiu dentro de um poço. Eu sou da opinião da velha, que
apostrofou o astrólogo: ‘Se tu não vês o que está a teus pés, por que indagas do que está acima
da tua cabeça?’
— O astrólogo podia responder, observou a viúva, que os olhos foram feitos para contemplar os
astros.
— Teria razão, minha senhora, se ele pudesse suprimir os poços. Mas que é a vida senão uma
combinação de astros e poços, enlevos e precipícios? O melhor meio de escapar aos precipícios é
fugir aos enlevos (Ressurreição (1872)

— Mas, olhe cá, antes de ir. Um astrólogo contemplava os astros, com tamanha atenção, que caiu
num poço. Uma velha da Trácia, vendo-o cair, soltou esta exclamação: ‘Se ele não via o que
lhe estava aos pés, para que havia de investigar o que lá fica tão em cima!’ (O Astrólogo,
1876)

Em vez disso, inaugurei o meu sistema, fundado no princípio de que o homem deve dizer tudo o
que pensa. Se o meu vizinho pensa que é um pascácio, por que não há de escrevê-lo? Se eu cuido
que sou um cidadão conspícuo e ilustrado, por que hei de calá-lo? A verdade, quer ofenda o meu
vizinho, quer me lisonjeie, deve ser pública. Nua saiu ela do poço, nua deve ir às casas
particulares. Quando muito, põem-se-lhe umas pulseiras de ouro; em vez de dizer ilustrado, direi
— profundamente ilustrado (Balas de Estalo, 19 de março de 1885)

A Constituição, se fosse gente viva e estivesse ao pé deles, ouviria os ditos mais contrários deste
mundo, porque Pedro ia ao ponto de a achar um poço de iniquidades, e Paulo a própria Minerva
nascida da cabeça de Jove. Falo por metáfora para não descair do estilo. Em verdade, eles
empregavam palavras menos nobres e mais enfáticas, e acabavam trocando as primeiras entre si
(Esaú e Jacó, 1904)

8
Ver o Capítulo Pílades e Orestes.

7
“Falo por metáfora”. Machado visita as grandes metáforas da humanidade. Há, então, um
Espelho histórico, Machado interpreta Tales olhando para o céu procurando a verdade
como uma relação dele com uma rapariga da Trácia que o tivesse iludido – a verdade saiu
do poço – da relação entre ele e ela.

“A verdade, quer ofenda o meu vizinho, quer me lisonjeie, deve ser pública. Nua saiu ela
do poço, nua deve ir às casas particulares”. Machado antecipa o quadro de Gérôme, que
aparecerá em 1896.

A Verdade saindo do poço armada do seu chicote para castigar a humanidade (no original: La
Vérité sortant du puits armée de son martinet pour châtier l'humanité) é um quadro realizado pelo
artista francês Jean-Léon Gérôme em 18969.

Retomando O caminho da porta (1862)

CARLOTA - Está dizendo coisas que não têm senso comum.


DOUTOR - O senso comum é comum a dois modos de entender. É mesmo a mais de dois. É uma
desgraça que nos achemos em divergência.
CARLOTA - Mesmo que fosse verdade não era delicado dizer...
DOUTOR - Esperava por essa. Mas V. Excia. esquece que eu, lúcido como estou hoje, já tive os
meus momentos de alucinação. Já fiei como Hércules a seus pés. Lembra-se? Foi há três anos.
Incorrigível a respeito de amores, tinha razões para estar curado, quando vim cair em suas mãos.
Alguns alopatas costumam mandar chamar os homeopatas nos últimos momentos de um
enfermo, e há casos de salvação para o cmoribundo. V. Excia. serviu-me de homeopatia, desculpe
a comparação; deu-me uma dose de veneno tremenda, mas eficaz; desde esse tempo fiquei curado.

Quando tinha encontrado Carlota, Doutor Cornelio acreditou estar curado pelo amor,
Carlota ministrou a ele “uma dose de veneno tremenda, mas eficaz; desde esse tempo
fiquei curado”. Carlota serviu de remédio homeopático10. E o Doutor alerta Valentim, por
já ter feito a triste figura no amor por Carlota.

VALENTIM - Deusa, como ninguém sonhara nunca; com a graça de Vênus e a majestade de
Juno. Sei eu mesmo defini-la? Posso eu dizer em língua humana o que é esta reunião de atrativos
únicos feitos pela mão da natureza como uma prova suprema do seu poder? Dou-me por
fraco, certo de que nem pincel nem lira poderão fazer mais do que eu.
CARLOTA - Oh! é de mais! Deus me livre de o tomar por espelho. Os meus são melhores.
Dizem coisas menos agradáveis, porém, mais verdadeiras...
VALENTIM - Os espelhos são obras humanas; imperfeitos, como todas as obras humanas.
Que melhor espelho quer Vossa Excia. que uma alma ingênua e cândida?
CARLOTA - Em que corpo encontrarei... esse espelho?

Carlota agora joga com Valentim. Usa as palavras para não ser pescada. As palavras,
como isca, vão e voltam espelhando os interesses dos interlocutores, nas palavras estão
refletidas as intenções, dentro delas passa uma mensagem oculta como presente de grego.
E a culpa não foi dos gregos, mas dos troianos, que não souberam guardar a integridade e
independência da sua missão... que abriram as portas ao cavalo engenhoso dos sitiantes, e que,
quando menos pensaram, acharam-se vencidos e aprisionados11 (A imprensa na atualidade,1860)

9
https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Verdade_saindo_do_po%C3%A7o. Quadro de 1896, mostrando a
verdade nua.
10
Ver Capítulo Similia similibus curantur
11
Ver Capítulo O Fato, o Jornal e o Fiat.

8
Machado considera que foi culpa dos troianos quando não souberam decifrar o enigma
aceitarando um cavalo repleto de guerreiros como presente. É o grande alerta que
Homero deixou para a humanidade12. Cavalo de Troia é o nome de um vírus que na
atualidade penetra por trás invadindo os computadores.

Na relação humana, são duas imagens falando em espelho, e há o temor de um espelho


passar de modo inadvertido pelo verso do outro, como aconteceu a Sara no conto Águia
sem asas (1872), que, sem perceber, teve sua Couraça Narcísica foi penetrada por trás13.

Machado sistematicamente alerta para o perigo de o imaginário ser tomado como real
vendo na mulher uma deusa encarnada:

Deusa, como ninguém sonhara nunca; com a graça de Vênus e a majestade de Juno. Sei eu
mesmo defini-la? Posso eu dizer em língua humana o que é esta reunião de atrativos únicos feitos
pela mão da natureza como uma prova suprema do seu poder?

Não existe nem Vênus nem Juno na vida real, a verdade não vem de deuses, ela vem do
poço, sai da boca do homem14, é humana, como queria Sócrates. Não existem deuses em
Machado, tudo para ele é humano. Valentim seria o cândido, ridiculamente ingênuo, o
cavaleiro da triste figura, uma figura quixotesca, é humilhado pela habilidosa Carlota.
VALENTIM - V. Excia. é de um sangue frio de matar!
CARLOTA - Queria que me fervesse o sangue? Tinha razão para isso. A que propósito fez esta
cena de comédia?
VALENTIM - V. Excia. chama a isto comédia?
CARLOTA - Alta comédia, está entendido. Mas que é isto? Está com lágrimas nos olhos?
VALENTIM - Eu... ora... ora... que lembrança!
CARLOTA - Quer que lhe diga? Está ficando ridículo.
VALENTIM - Minha senhora!
CARLOTA - Oh! ridículo! ridículo!
VALENTIM - Tem razão. Não devo parecer outra coisa a seus olhos! O que sou eu para V. Excia.?
Um ente vulgar, uma fácil conquista que V. Excia. entretêm, ora animando, ora repelindo,
sem deixar nunca conceber esperanças fundadas e duradouras. O meu coração virgem deixou-se
arrastar. Hoje, se quisesse arrancar de mim este amor, era preciso arrancar com ele a vida. Oh!
não ria, que é assim!

Machado tomou o Espelho falante como princípio, o jogo de palavras em Espelho, a


rivalidade especular, primeiro, foi às traduções, e com a experiência da Petalogia, foi
desenvolvendo todo o veneno da linguagem, que explorava nas peças de teatro, desde
Desencantos (1861), aos vinte e dois anos de idade. A linguagem é o veneno usado tanto
para construir quanto para destruir. Na peça O caminho da porta desenrola-se uma
verdadeira competição de palavras numa relação em Espelho, entre Carlota e três
pretendentes. No fim, os três vão embora. E a namoradeira fica só.

O Protocolo (1862)
VENÂNCIO - Sim. Mas um extravagante por amor... Ó poesia!
ELISA - Mau gosto!
VENÂNCIO - A Sra. é a menos competente para dizer isso.
ELISA - É sua opinião?

12
Um modo de enganar alguém é provocá-lo a uma reação pela qual será culpado, como no episódio entre
Chris Rock e Will Smith.
13
Ver Capítulo O Oculto e a Psicologia.
14
Ver Capítulo O Oráculo.

9
VENÂNCIO - É opinião deste espelho.
ELISA - Ora!
VENÂNCIO - E dos meus olhos também.

“É a opinião deste espelho”.

Linha reta, linha curva (1865)

Era em Petrópolis, no ano de 186… Já se vê que a minha história não data de longe. É tomada dos
anais contemporâneos e dos costumes atuais. Talvez algum dos leitores conheça até as
personagens que vão figurar neste pequeno quadro. Não será raro que, encontrando uma delas
amanhã, Azevedo, por exemplo, um dos meus leitores exclame:
– Ah! cá vi uma história em que se falou de ti. Não te tratou mal o autor. Mas a semelhança
era tamanha, houve tão pouco cuidado em disfarçar a fisionomia, que eu, à proporção que
voltava a página, dizia comigo: É o Azevedo, não há dúvida.
Feliz Azevedo! A hora em que começa essa narrativa é ele um marido feliz, inteiramente feliz.
Casado de fresco, possuindo por mulher a mais formosa dama da sociedade, e a melhor alma que
ainda se encarnou ao sol da América, dono de algumas propriedades bem situadas e perfeitamente
rendosas, acatado, querido, descansado, tal é o nosso Azevedo, a quem por cúmulo de ventura
coroam os mais belos vinte e seis anos.

O “pouco cuidado em disfarçar a fisionomia”, viu-se espelhado no texto, e, incrédulo, “à


proporção que voltava a página, dizia comigo: É o Azevedo, não há dúvida”, sabe
pelas características, é do Azevedo que o autor está falando. A linguagem, quando nas
entrelinhas, pode ser pior ainda.

O Lapso (1883)
Tomé Gonçalves não tinha só dinheiro, tinha também dívidas, não poucas, nem todas recentes.
O descuido podia explicar os seus atrasos, a velhacaria também; mas quem opinasse por uma ou
outra dessas interpretações, mostraria que não sabe ler uma narração grave. Realmente, não valia
a pena dar-se ninguém à tarefa de escrever algumas laudas de papel para dizer que houve, nos fins
do século passado, um homem que, por velhacaria ou desleixo, deixava de pagar aos credores.

Tomé não pagava seus credores, e tinha chegado na cidade em 1768 o médico holandês
Dr. Jeremias.
Há uma doença especial, interrompeu o Dr. Jeremias, visivelmente comovido, um lapso da
memória; o Tomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar. Não é por descuido, nem
de propósito que ele deixa de saldar as contas; é porque esta idéia de pagar, de entregar o preço
de uma coisa, varreu-se lhe da cabeça. Conheci isto há dois meses, estando em casa dele, quando
ali foi o prior do Carmo, dizendo que ia ‘pagar-lhe a fineza de uma visita’. Tomé Gonçalves,
apenas o prior se despediu, perguntou-me o que era pagar; acrescentou que, alguns dias antes, um
boticário lhe dissera a mesma palavra, sem nenhum outro esclarecimento, parecendo-lhe até que
já a ouvira a outras pessoas; por ouvi- la da boca do prior, supunha ser latim. Compreendi tudo;
tinha estudado a moléstia em várias partes do mundo, e compreendi que ele estava atacado
do lapso. Foi por isso que disse outro dia a estes dois senhores que não demandassem um homem
doente.

Tomé adquiria um bem, e não sabendo o significado da palavra pagar, ia embora levando
o que tinha adquirido.

Desde esse dia começou Tomé Gonçalves a notar a assiduidade do médico, e, não desejando outra
coisa, porque lhe queria muito, fez tudo o que lhe lembrou por atá-lo de vez aos seus penates. O
lapso do infeliz era completo; tanto a idéia de pagar, como as idéias correlatas de credor, dívida,
saldo, e outras tinham-se-lhe apagado da memória, constituindo-lhe assim um largo furo no

10
espírito. Temo que se me argua de comparações extraordinárias, mas o abismo de Pascal é o que
mais prontamente vem ao bico da pena. Tomé Gonçalves tinha o abismo de Pascal, não ao lado,
mas dentro de si mesmo, e tão profundo que cabiam nele mais de sessenta credores que se debatiam
lá em baixo com o ranger de dentes da Escritura. Urgia extrair todos esses infelizes e entulhar o
buraco.

Nada que dissesse respeito a obrigações e pagamentos vinha à memória de Tomé.


Amnésia total.
Jeremias fez crer ao doente que andava abatido, e, para retemperá-lo, começou a aplicar-lhe a
droga. Não bastava a droga; era mister um tratamento subsidiário, porque a cura operava-se de
dois modos: — o modo geral e abstrato, restauração da idéia de pagar, com todas as noções
correlatas — era a parte confiada à droga; e o modo particular e concreto, insinuação ou
designação de uma certa dívida e de um certo credor — era a parte do médico.

No tratamento, primeiro, “era a parte confiada à droga”, a droga eram as explicações,


“restauração da idéia de pagar”, uma aula de Filosofia, explicar era “aplicar-lhe a droga”,
ele tinha que compreender o conceito. Depois, veio a parte prática, “o modo particular e
concreto, insinuação ou designação de uma certa dívida e de um certo credor — era a
parte do médico”.

A parte do médico eram as insinuações a Tomé de que corria pela cidade um boato dando
conta de que ele era um estróina, um pelintra, um embusteiro, um mau caráter, uma
figura negativa, quer dizer, não seria mais bem recebido, o médico mostrou que Tomé
estava se expondo ao ridículo15, no O Espelho social, sua confiabilidade estava
comprometida. Tomé se viu jogado contra si mesmo no Espelho16. Rapidamente curou-
se da doença de não saber o que significava pagar. Não tem como curar o outro: o método
envolve obrigá-lo a se ver em espelho – caso queira salvar sua imagem.

A mão e a luva (1874)

— Sim, tua mãe, disse a madrinha; a que te deu o ser não te amaria mais do que eu. Tens a alma e
a ternura da filha que o Céu me levou, e se todas as mães que perdem filhos pudessem substituí-
los do mesmo modo, desapareceria do mundo a maior e mais cruel dor que há nele...
A resposta de Guiomar foi apertar-lhe as mãos e beijar-lhas. Seguiu-se uma pausa, em que a
comoção a pouco e pouco desapareceu, e a baronesa olhou para a carta de Luís Alves, amarrotada
pelo gesto de Guiomar.
— Guiomar, disse ela enfim, já refletiste no pedido de ontem à noite?
A moça esperava que a madrinha lhe falasse no pedido de Luís Alves; a pergunta da baronesa
desnorteou-a um pouco. Sua inteligência, porém, era clara e sagaz; a resposta foi outra
pergunta:
— Uma noite será bastante para decidir de todo o resto da vida? disse ela sorrindo.

Um diálogo entre as duas mulheres, sutil, e o autor vai mostrando o jogo entre elas, o que
cada uma está ocultando, a baronesa é menos astuta.

— Tens razão, minha filha; mas a pergunta era natural da parte de quem quer ver realizado um
desejo. Jorge pediu-te em casamento. Sabes que é um excelente caráter?
— Excelente, respondeu a moça.
— Uma boa alma, continuou a baronesa, e um moço distinto. Parece gostar muito de ti, segundo
disse ontem, não? É natural; só me admira que não te amem muitos mais.

15
Tema abordado no conto Astúcias de marido (1866)
16
Na década de 1880 esse será o tema privilegiado – ver Capítulo Viagem à roda de mim mesmo.

11
A baronesa parou; Guiomar brincava com as franjas da manga sem se atrever a levantar os
olhos.

A baronesa jogou um anzol. Guiomar se fez de desentendida. Não mordeu a isca.

— Deves saber, continuou a baronesa, — que eu estimaria ver que este casamento se efetuasse;
estou convencida de que te faria feliz, e a ele também, pelo menos tanto quanto é possível julgar
das coisas presentes... Que diz o teu coração?
E como Guiomar não respondesse logo:
— Ah! esquecia-me do que me disseste há pouco. Uma noite não é o bastante para decidir de todo
o resto da vida. Bem; ouvir-me-ás mais duas coisas. A primeira é que... Lê tu mesma esta carta.

Guiomar joga na retranca. A baronesa queria empurrar seu sobrinho Jorge, assim, a
herança ficava em família. Mas Guiomar está pensando no que é melhor para ela.

A baronesa deu a carta a Guiomar, que a abriu e leu o pedido que Luís Alves fazia de sua mão.
Enquanto ela percorria com os olhos as poucas linhas escritas, a madrinha parecia observá-la
fixamente, como a tentar ler-lhe no rosto a impressão que o pedido lhe fazia, se espanto, se
satisfação. Não houve espanto nem satisfação aparente; Guiomar leu a carta e entregou-a à
madrinha.
— Leste? É a primeira coisa que eu queria dizer-te. O Dr. Luís Alves pede-te em casamento; tens
de escolher entre ele e Jorge. A segunda coisa é que dos dois pretendentes Jorge é o que meu
coração prefere; mas não sou eu que me caso, és tu; escolhe com plena liberdade aquele que te
falar ao coração.
Guiomar erigiu o busto e olhou diretamente para a madrinha, com tais sinas de espanto no rosto,
que esta não pôde deixar de lhe perguntar:
— Que tens?
A moça não respondeu; quero dizer não lhe respondeu com os lábios; travou-lhe da mão e
apertou-a entre as suas, e ficou a olhar para ela como a refletir. A expressão de seu rosto passara
do espanto à satisfação e desta a uma coisa que parecia a um tempo indignação e asco.

A baronesa abriu o que queria. Guiomar começou a reagir. Machado mostra nesse diálogo
o sutil jogo de manipulação, aqui, entre duas mulheres.

— Oh! madrinha! exclamou Guiomar, por que se não entenderam logo os nossos corações? Não
havia mister pôr de permeio um espírito importuno e desconsolador. Se eu adivinhara essas
palavras que acabou de dizer, não teria padecido metade do que me fazem padecer há longos dias...
— Padecer?
— Padecer; nada menos. Mas deixemos isso. Foi o seu coração que falou e o meu que ouviu; posso
agora dizer-lhe francamente o que sinto, sem receio de a afligir.
Não precisava dizer mais nada; a escolha que ela ia fazer estava já indicada pelo menos. Entendeu-
o a baronesa, que fechou o rosto e suspirou. A afilhada ouviu-lhe o suspiro, e percebeu a tristeza
súbita; arrependeu-se de ter ido tão longe.
— Percebo, respondeu a baronesa, queres dizer que dos dois pretendentes escolhes o Dr. Luís
Alves?

Guiomar jogou insinuando que escolher Jorge seria agradar à baronesa.

A moça conservou-se calada; a madrinha olhava para ela com uma expressão de ansiedade que a
afligiu.
— Fala, repetiu a baronesa.
— Escolho... o Sr. Jorge, suspirou Guiomar depois de alguns instantes.
A baronesa estremeceu.

12
A baronesa estremeceu porque era uma escolha forçada. Guiomar estava fazendo o que
não queria para agradar a madrinha, a “mãe” dela.

— Falas sério? Não creio; não é esse o sentimento do teu coração. Vê-se que não é. Queres
iludir-me e a ti também. Percebo que o não amas; não o amaste nunca. Mas amas ao outro, não
é? Que tem isso? Não me dá o prazer que eu teria se... Que importa, se fores feliz? A tua felicidade
está acima das minhas preferências. Era um sonho meu; desejava-o com todas as forças; faria o
que pudesse para alcançá-lo; mas não se violenta o coração, — um coração, sobretudo, como o
teu! Escolhes o outro? Pois casarás com ele.
Vê o leitor que a palavra esperada, a palavra que a moça sentia vir-lhe do coração aos lábios
e querer rompê-los, não foi ela quem a proferiu, foi a madrinha; e se leu atento o que precede
verá que era isso mesmo o que ela desejava. Mas por que o nome de Jorge lhe roçou os lábios? A
moça não queria iludir a baronesa, mas traduzir-lhe infielmente a voz de seu coração, para que a
madrinha conferisse, por si mesma, a tradução com o original. Havia nisto um pouco de meio
indireto, de tática, de afetação, estou quase a dizer de hipocrisia, se não tomassem à má parte o
vocábulo. Havia, mas isto mesmo lhe dirá que esta Guiomar, sem perder as excelências de seu
coração, era do barro comum de que Deus fez a nossa pouco sincera humanidade; e lhes dirá
também que, apesar de seus verdes anos, ela compreendia já que as aparências de um sacrifício
valem mais, muita vez, do que o próprio sacrifício.

“Vê o leitor que a palavra esperada, a palavra que a moça sentia vir-lhe do coração aos
lábios e querer rompê-los, não foi ela quem a proferiu, foi a madrinha”. Como no
cavalo de Tróia, Guiomar penetrou por trás da baronesa.

Machado tinha por princípio o jogo petalógico, variar é viver:

E os dois rapazes separaram-se; Marques dirigiu-se para a casa onde estavam as três moças, e
Meneses seguiu caminho pelo lado da Petalógica. Variar é viver. São dois verbos que começam
por v: profunda lição que nos dá a natureza e a gramática. Penso, logo existo, dizia creio que o
Descartes. E vario, logo existo, digo eu (Não é o mel para a boca do asno,1868)

Citando Descartes, vai do “penso, logo existo” para o “vario, logo existo”, e faz
variações de leitura. É o jeito de Machado praticar a originalidade jogando com as
palavras, variando de múltiplas formas o sentido.

Guiomar torceu a seu favor no jogo de palavras com a baronesa. Um jogo entre duas
mulheres.

A mão e a luva (1874)


Félix torcia as mãos. Era patente o seu desespero. A viúva mal podia encará-lo. Seguiu-se um
longo silêncio, interrompido pela chegada de Luís. O menino pôs termo à entrevista. Félix olhou
ainda algum tempo para a moça; mas leu-lhe na fisionomia que a resolução era inabalável.
Levantou-se para sair.
Estevão não ouvia as palavras do amigo; estava então assentado na cama, com os cotovelos
fincados nas pernas, e a cabeça metida nas mãos, parecendo que chorava. A princípio chorou em
silêncio; mas não tardou que Luís Alves o visse deitar-se na cama, estorcer-se
convulsivamente, a soluçar, a abafar quanto podia os gritos que lhe saíam do peito, a puxar
os cabelos, a pedir a morte, tudo entremeado com o nome de Guiomar, tão d’alma tudo aquilo, tão
lastimosamente natural, que enfim o comoveu, e não houve remédio senão dizer-lhe algumas
palavras de conforto. A consolação veio a tempo; a dor, chegada ao paroxismo, declinou pouco a
pouco, e as lágrimas estancaram, ao menos por algum tempo
Infelizmente, Jorge reduziu todos esses cálculos a nada. Ela contava com o seu demasiado apego
aos regalos da Corte, não contava com as sugestões de Mrs. Oswald, que percebera o plano, e
torcera a primeira resolução de Jorge, que era ficar e esperar. O sacrifício da parte dele era
compensado pela probabilidade da vitória, a qual não consistia só em haver por esposa uma moça

13
bela e querida, mas ainda em tornar muito mais sumárias as partilhas do que a baronesa deixaria
por sua morte a ambos. Esta consideração, que não era a principal, tinha ainda assim seu peso no
espírito de Jorge, e, sejamos justos, devia tê-lo: possuir era o seu único ofício. Assim era que não
só a moça deixava de obter um bem, mas caía de um mal em outro maior; tê-lo ao pé de si, onde
as distrações seriam menos prontas e variadas, equivalia a adoecer de fastio e morrer de inanição.
Luís Alves torceu o bigode e olhou três ou quatro vezes para o colega, enquanto este tirava o
chapéu e dispunha-se a ir buscar uma cadeira para sentar-se ao pé do outro.

A partir de 1874, com A mão e a luva, começa a surgir em Machado algo que não havia
antes, variações em torno do verbo torcer, e seus derivados, retorcer, estorcer,
contorcer, distorcer. Jorge torce numa direção, Estêvão torce noutra direção, Luis
Alves em outra direção, e Guiomar, na espreita, percebendo esses movimentos, torce na
direção que mais lhe convém. Nota-se uma progressiva modificação no uso do vocábulo
torcer à medida que aumenta o grau de abstração, aparecendo mais e mais em sentido
figurado ou metafíciso17.

Helena (1876)
D. Úrsula sorriu também; desta vez, porém, com expressão melhor. Ao mesmo tempo, fitou-a; e
era a primeira vez que o fazia. O olhar, a princípio indiferente, manifestou logo depois a impressão
que lhe causava a beleza da moça. D. Úrsula retirou os olhos; porventura receou que o influxo das
graças de Helena lhe torcessem o coração, e ela queria ficar independente e inconciliável.
As pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma hesitação de D. Úrsula. Helena
sentiu-lhes a polidez fria e parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociais,
explicava-os e tratava de os torcer em seu favor, — tarefa em que se esmerou, superando os
obstáculos na família; o resto viria de si mesmo.
As patas de Moema interromperam a reflexão do moço. A cavaleira brandira o chicotinho, e o
animal saíra a trote largo pelo terreiro fora. Estácio, no primeiro momento, deu um passo e
estendeu a mão como para tomar a rédea ao animal; mas a segurança da moça logo lhe deixou ver
que ela não fazia ali os primeiros ensaios. Ficou parado, de longe, a admirar-lhe o garbo e a
destreza. No fim de vinte passos, Helena torceu a rédea e regressou ao ponto donde saíra.

“Tratava de os torcer em seu favor... Helena torceu a rédea e regressou ao ponto donde
saíra”. Ela usa o chicotinho.

Iaiá Garcia (1878)


Estela tinha erguido a cabeça; quando ele acabou, achava-se de pé. Fitou-o alguns instantes com
uma expressão muda e fria. A vaidade da mulher podia contentar-se daquela solene reparação,
e perdoar; mas o orgulho de Estela venceu, e não deu lugar a nenhum outro sentimento de justiça
ou de humanidade. Um jeito irônico torceu-lhe o lábio, donde saiu esta palavra má e
desdenhosa:
Não chorou nas primeiras horas; a dor trancara-lhe as lágrimas; mas estas vieram logo depois, e
ela as verteu em silêncio, sufocando os soluços, estorcendo-se na solidão da alcova.

Notas semanais 1 de setembro de 1878


A satisfação da carne torce a condição humana, igualando-a à das bestas; ao passo que a
privação amortece a condição bestial e apura a outra; fortifica, portanto, o ser inteligível, aclara
as ideias, afina e eleva a concepção da justiça

“A privação amortece a condição bestial e apura a outra; fortifica, portanto, o ser


inteligível, aclara as ideias, afina e eleva a concepção da justiça”. Parece psicologia de
Pavlov. A privação faz torcer. O corpo físico torce, se contorce, se retorce, e a palavra
17
Ver Capítulo Metafísica.

14
também torce, e Machado vai torcendo as ideias, dirigindo seu automóvel literário,
esquivando-se de obstáculos.

A nova geração (1879)

Os Cantos do fim do século podem ser também documento de aplicação, mas não dão a conhecer
um poeta; e para tudo dizer numa só palavra, o Sr. Romero não possui a forma poética. Creio
que o leitor não será tão inadvertido que suponha referir-me a uma certa terminologia
convencional; também não aludo especialmente à metrificação. Falo de uma forma poética, em
seu genuíno sentido. Um homem pode ter as mais elevadas idéias, as comoções mais fortes, e
realçá-las todas por uma imaginação viva; dará com isso uma excelente página de prosa, se souber
escrevê-la; um trecho de grande ou maviosa poesia, se for poeta. O que é indispensável é que
possua a forma em que se exprimir. Que o Sr. Romero tenha algumas idéias de poeta não lho
negará a crítica; mas logo que a expressão não traduz as idéias, tanto importa não as ter
absolutamente. Estou que muitas decepções literárias originam-se nesse contraste da concepção
e da forma; o espírito que formulou a idéia, a seu modo, supõe havê-la transmitido nitidamente ao
papel, e daí um equívoco. No livro do Sr. Romero achamos essa luta entre pensamento que
busca romper do cérebro, e a forma que não lhe acode ou só lhe acode reversa e obscura: o
que dá a impressão de um estrangeiro que apenas balbucia a língua nacional.
Pertenceu o Sr. Romero ao movimento hugoísta, iniciado no Norte e propagado ao Sul, há de
haver alguns anos; movimento a que este escritor atribui uma importância infinitamente superior
à realidade. Entretanto, não se lhe distinguem os versos pelos característicos da escola, se escola
lhe pudéssemos chamar; pertenceu a ela antes pela pessoa do que pelo estilo. Talvez o Sr.
Romero, coligindo agora os versos, entendeu cercear-lhes os tropos e as demasias, — vestígios
do tempo. Na verdade, uma de suas composições, a Revolução, é incluída em 1878, nos Cantos do
fim do século, não traz algumas imagens singularmente arrojadas, que aliás continha, quando eu a
li, em 1871, no Diário de Pernambuco de domingo 23 de julho desse mesmo ano. Outras
ficaram, outras se hão de encontrar no decorrer do livro, mas não são tão graves que o definam e
classifiquem entre os discípulos de Castro Alves e do Sr. Tobias Barreto; coisa que eu melhor
poderia demonstrar, se tivesse à mão todos os documentos necessários ao estudo daquele
movimento poético, em que aliás houve bons versos e agitadores entusiastas.
Qualquer que seja, entretanto, minha opinião acerca dos versos do Sr. Romero, lisamente confesso
que não estão no caso de merecer as críticas acerbíssimas, menos ainda as páginas insultuosas que
o autor nos conta, em uma nota, haverem sido escritas contra alguns deles. ‘Injuriavam
ao poeta (diz o Sr. Romero) por causa de algumas duras verdades do crítico’. Pode ser que
assim fosse; mas, por isso mesmo, o autor nem deveria inserir aquela nota. Realmente, criticados
que se desforçam de críticas literárias com impropérios dão logo idéia de uma imensa
mediocridade, — ou de uma fatuidade sem freio, — ou de ambas as coisas; e para lances tais é
que o talento, quando verdadeiro e modesto, deve reservar o silêncio do desdém: Non ragionar de
lor, ma guarda, e passa.

Aqui, Machado torceu contra ele. A verdade saiu do poço. O nome de Romero foi citado
sete vezes. E a verdade, provocada, saiu do poço. O advogado escritor passou a atacar
Machado. “Houve tão pouco cuidado em disfarçar a fisionomia, que eu, à proporção
que voltava a página, dizia comigo: É o Azevedo, não há dúvida”. É o Sílvio Romero,
não há dúvida. Apareceu nominalmente. Sílvio Romero viu-se no Espelho do texto.

15
Machado havia escrito sobre O culto do dever (1866), de J.M de Macedo “pode a crítica
apreciar livremente as paixões e os sentimentos em luta neste livro, analisar os
personagens, aplaudi-los ou condená-los, sem ferir o amor-próprio de criaturas
existentes?”. Feriu o amor-próprio de Sílvio Romero. Que não soube ler a crítica, e tomou
como ofensa pessoal.

A nova geração é de dezembro/1879, Brás Cubas de março/1880. Usará a Metafísica para


falar do Real.18. O autor irá variar e torcer mais ainda. “Venha para o humanitismo”. A
Lanterna de Diógenes aparecerá procurando um homem pelo cinismo. A vida canina terá
início na década de 1880.

Memórias Póstumas (1881)


Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada,
que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido
quebrou a mudez das coisas externas.
— Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma.
Vives; não quero outro flagelo.
— Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.
— Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por
algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives;
e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.

Machado emprega uma linguagem alucinante. Cita o Elogio da Sandice (1530).


Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se
fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto;
nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral,
completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se
as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial,
havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e
decrépito dos seres.

Trata-se do momento em que fala do delírio, “que me conste, ainda ninguém relatou o
seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá”. Erasmo fala da loucura, sem
simular o delírio, enquanto Machado entra em um delírio alucinante – há razão em sua
loucura. Está no momento que será reconhecido depois como tendo feito uma revolução
na literatura19, uma torção literária. Apesar de ter passado cento e quarenta anos, vamos
voltar àquele momento e seguir torcendo com Machado.

No sétimo dia, acabada a missa fúnebre, travei de uma espingarda, alguns livros, roupa, charutos,
um moleque, — o Prudêncio do capítulo XI, — e fui meter-me numa velha casa de nossa
propriedade. Meu pai forcejou por me torcer a resolução, mas eu é que não podia nem queria
obedecer-lhe. Sabina desejava que eu fosse morar com ela algum tempo, — duas semanas, ao
menos; meu cunhado esteve a ponto de me levar à fina força
Disse-lhe que sim, que não era possível esquecer uma amiga tão familiar de nossa casa. D. Eusébia
começou a falar de minha mãe, com muitas saudades, com tantas saudades, que me cativou logo,
posto me entristecesse. Ela percebeu o nos meus olhos, e torceu a rédea à conversação; pediu-
me que lhe contasse a viagem, os estudos, os namoros... Sim, os namoros também; confessou-me
que era uma velha patusca.

18
Aparece essa inversão, o fim remetendo à origem, no conto A vida eterna (1870), onde é recomendada
a publicação do relato do sonho exatamente em seguida à leitura desse relato!
19
Um filósofo antigo mostrou o movimento andando. Machado ensina sem ensinar que está ensinando, é
um ensino prático.

16
Ele respondia-me, a princípio com animação, depois mais frouxo, torcia a rédea da conversa
para o seu assunto dele, abria um livro, perguntava-me se tinha algum trabalho novo, e eu dizia-
lhe que sim ou que não, mas torcia a rédea para o outro lado, e lá ia ele atrás de mim, até que
empacava de todo e saía triste. Minha intenção era fazê-lo duvidar de si mesmo, desanimá-lo,
eliminá-lo. E tudo isto a olhar para a ponta do nariz...

“Torcia a rédea da conversa para o seu assunto... torcia a rédea para o outro lado, e lá ia
ele atrás de mim”, é possível torcer as palavras até enlouquecer. Salve-se quem puder.
Torce a pessoa, e depois a envia ao psiquiatra. E O Alienista, do mesmo ano, recebe o
alienado. No mesmo parágrafo que menciona o Humanitismo, retoma a verdade saindo
do poço, de 1859, comentada logo acima:
— Venha para o Humanitismo; ele é o grande regaço dos espíritos, o mar eterno em que
mergulhei para arrancar de lá a verdade. Os gregos faziam-na sair de um poço. Que
concepção mesquinha! Um poço! Mas é por isso mesmo que nunca atinaram com ela. Gregos,
subgregos, antigregos, toda a longa série dos homens tem-se debruçado sobre o poço, para ver
sair a verdade, que não está lá. Gastaram cordas e caçambas; alguns mais afoitos desceram ao
fundo e trouxeram um sapo. Eu fui diretamente ao mar. Venha para o Humanitismo.

“Venha para o humanitismo”, no humanitismo entra a luta animalesca.

Era uma briga de galos. Vi os dois contendores, dois galos de esporão agudo, olho de fogo e
bico afiado. Ambos agitavam as cristas em sangue; o peito de um e de outro estava desplumado
e rubro; invadia-os o cansaço. Mas lutavam ainda assim, olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico
acima, golpe deste, golpe daquele, vibrantes e raivosos. Damasceno não sabia mais nada; o
espetáculo eliminou para ele todo o universo. Em vão lhe disse que era tempo de descer; ele não
respondia, não ouvia, concentrara-se no duelo. A briga de galos era uma de suas paixões.
Foi nessa ocasião que Nhã-loló me puxou brandamente pelo braço, dizendo que nos fôssemos
embora. Aceitei o conselho e vim com ela por ali abaixo. Já disse que o morro era então desabitado;
disse-lhes também que vínhamos da missa, e não lhes tendo dito que chovia, era claro que fazia
bom tempo, um sol delicioso. E forte. Tão forte que eu abri logo o guarda-sol, segurei-o pelo centro
do cabo, e inclinei-o por modo que ajuntei uma página à filosofia do Quincas Borba: Humanitas
osculou Humanitas... Foi assim que os anos me vieram caindo pelo morro abaixo.
Ao sopé detivemo-nos alguns minutos, à espera de Damasceno; ele veio daí a pouco rodeado dos
apostadores, a comentar com eles a briga. Um destes, tesoureiro das apostas, distribuía um velho
maço de notas de dez tostões, que os vencedores recebiam duplamente alegres. Quanto aos galos
vinham sobraçados pelo respectivo dono. Um deles trazia a crista tão comida e ensangüentada,
que vi logo nele o vencido; mas era engano, — o vencido era o outro, que não trazia crista
nenhuma. Ambos tinham o bico aberto, respirando a custo, esfalfados. Os apostadores, ao
contrário, vinham alegres, sem embargo das fortes comoções da luta; biografavam os contendores,
relembravam as proezas de ambos. Eu fui andando, vexado; Nhã-loló vexadíssima.

A provocação pode levar à luta animal. Em uma conversa na qual a pessoa nega tudo,
engana, passa pelo verso, prepara uma armadilha, o outro cai, o responsável seria a pessoa
quem provoca ao ponto de levar à loucura, não quem reagiu. Por isso, é necessário se
documentar, ter provas.

CAPÍTULO CXLI / OS CÃES


— Mas, enfim,, que pretendes fazer agora? perguntou-me Quincas Borba, indo pôr a xícara vazia
no parapeito de uma das janelas.
— Não sei; vou meter-me na Tijuca; fugir aos homens. Estou envergonhado, aborrecido. Tantos
sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e não sou nada.
— Nada! interrompeu-me Quincas Borba com um gesto de indignação.
Para distrair-me, convidou-me a sair; saímos para os lados do Engenho Velho. Íamos a pé,
filosofando as coisas. Nunca me há de esquecer o benefício desse passeio. A palavra daquele

17
grande homem era o cordial da sabedoria. Disse-me ele que eu não podia fugir ao combate; se
me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um jornal. Chegou a usar uma expressão menos
elevada, mostrando assim que a língua filosófica podia, uma ou outra vez, retemperar-se no calão
do povo. Funda um jornal, disse-me ele, e ‘desmancha toda esta igrejinha’.
— Magnífica idéia! Vou fundar um jornal, vou escachá-los, vou...
— Lutar. Podes escachá-los ou não; o essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um mar
morto no centro do organismo universal.

O desejo de fundar um jornal, uma associação de escritores20. O cinismo é um modo de


pensar a existência humana. O cínico. Galos de briga. Cães se mordendo. Lutas
ideológicas. Lembrar que Machado havia traduzido, em 1857, Lamartine, onde leu a frase
“a idéia que a criou parecia ter medo de si mesma”, sobre a queda da filosofia no
período da Revolução Francesa21.

Machado torce a história para mostrar uma briga de dois cães!

“Disse-me ele que eu não podia fugir ao combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-
me abrir um jornal”. Será que Machado tinha em mente fundar uma Associação de
Escritores, algum sindicato, para, tendo amigos ao seu lado, se proteger? “Funda um
jornal, disse-me ele, e ‘desmancha toda esta igrejinha’.” Lá adiante, em 1897, fundou
a ABL.

O que o doente irá conversar com Freud, Machado conversava com o leitor por meio da
literatura.

Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem vulgar não teria
valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava
um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a circunstância de que
o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos
olhos... Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em êxtase.
— Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando.
Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e só continuou a andar, quando
a briga cessou inteiramente, e um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra
parte. Notei que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo convinha a um
grande filósofo. Fez-me observar a beleza do espetáculo, relembrou o objeto da luta, concluiu que
os cães tinham fome; mas a privação do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia.
Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo mais é grandioso: as
criaturas humanas é que disputam aos cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis; luta que
se complica muito, porque entra em ação a inteligência do homem, com todo o acúmulo de
sagacidade que lhe deram os séculos, etc.

“Um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte”. Levar a fome
a outra parte. “Magnífica idéia! Vou fundar um jornal, vou escachá-los, vou...”. O autor
vai derivando do Real para o mundo da Metafísica. Fala de abstrações.
CAPÍTULO CXLII / O PEDIDO SECRETO
Quanta coisa num minuete! como dizia o outro. Quanta coisa numa briga de cães! Mas eu não
era um discípulo servil ou medroso, que deixasse de fazer uma ou outra objeção adequada.
Andando, disse-lhe que tinha uma dúvida; não estava bem certo da vantagem de disputar a
comida aos cães. Ele respondeu-me com excepcional brandura:

20
Ver Capítulo O Imortal.
21
Ver Capítulo O Oráculo.

18
— Disputá-la aos outros homens é mais lógico, porque a condição dos contendores é a mesma, e
leva o osso o que for mais forte. Mas por que não será um espetáculo grandioso disputá-lo aos
cães? Voluntariamente, comem-se gafanhotos, como o Precursor, ou coisa pior, como Ezequiel;
logo, o ruim é comível; resta saber se é mais digno do homem disputá-lo, por virtude de uma
necessidade natural, ou preferi-lo, para obedecer a uma exaltação religiosa, isto é, modificável, ao
passo que a fome é eterna, como a vida e como a morte.

Romero publicou uma crítica feroz em 1882. Em 1883 Machado publicou 24 contos, em
1884, 22 contos. Nem antes nem depois publicou tantos contos em um mesmo ano. Parece
que a questão agora envolve o próprio autor22.

No romantismo, é o herói romântico, o Eu contra o mundo, o herói salvador. No realismo,


o Eu vai se haver consigo mesmo. Deixa de ser o heroi do outro, e para ser herói de si
mesmo. Uma questão séria demais para o relacionamento masculino e feminino. A
mulher quer um heroi. Ela necessita um homem que se exponha nos lugares onde ela
corre risco. O Feminismo radical tem perturbado essa relação23.

CAPÍTULO XCVIII / SUPRIMIDO


Separamo-nos alegremente. Jantei reconciliado com a situação. A carta anônima restituía à
nossa aventura o sal do mistério e a pimenta do perigo; e afinal foi bem bom que Virgília não
perdesse naquela crise a posse de si mesma. De noite fui ao teatro de São Pedro; representava-
se uma grande peça, em que a Estela arrancava lágrimas. Entro; corro os olhos pelos camarotes;
vejo em um deles Damasceno e a família. Trajava a filha com outra elegância e certo apuro, coisa
difícil de explicar, porque o pai ganhava apenas o necessário para endividar-se; e daí, talvez fosse
por isso mesmo.

“E afinal foi bem bom que Virgília não perdesse naquela crise a posse de si mesma”.
Uma constante em Machado. É típico da mulher se recompor rapidamente quando em
situação embaraçosa, quando em situação fragilizada. Por isso, inclusive, recebe ajuda. O
que marca a diferença entre mulher e homem pelo lado da proteção da imagem.

Estou com vontade de suprimir este capítulo. O declive é perigoso. Mas enfim eu escrevo as
minhas memórias e não as tuas, leitor pacato. Ao pé da graciosa donzela, parecia-me tomado de
uma sensação dupla e indefinível. Ela exprimia inteiramente a dualidade de Pascal, l'ange et la
bête, com a diferença que o jansenista não admitia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo
que elas aí estavam bem juntinhas, — l'ange, que dizia algumas coisas do Céu, — e la bête, que...
Não; decididamente suprimo este capítulo.

Machado fazendo escárnio. Suprime e mantém publicado24. Diz que não publicará o que
já se encontra publicado! De fato, é impossível desdizer o que foi dito a Sílvio Romero.
Machado acelera esse tipo de escárnio.

Nesse conto a ironia é nascer de novo, trazendo a experiência da vida anterior. Já saberia
a profundidade do abismo, já teria passado por ele.

Retomando o vocábulo torcer:

Calaram-se todos, inclinaram-se os bustos, atentos, esperando. Aqui fiquei com medo; lembrou-
me que eles, que veem tudo o que se passa no interior da gente, como se fôssemos de vidro,

22
Aconteceu a Freud de a questão passar a envolver a pessoa dele após 1911-1914. Caiu na Real. A
psicanálise não tinha contato com o Narcisismo do autor. Há um interessante paralelo na progressão entre
Machado e Freud.
23
Remeter ao Capítulo onde fala do heroi.
24
Ver comentário logo acima sobre o conto A vida eterna (1870).

19
pensamentos recônditos, intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido já algum
pecado ou gérmen de pecado. Mas não tive tempo de refletir muito; S. Francisco de Sales começou
a fala” (Entre santos, 1886).

“Perdoe-me S. Exa.. Essa doutrina é subversiva, não da ordem legal, mas da ordem natural, o que
é pior. As leis reformam-se sem risco; mas torcer a natureza não é reformá-la, é deformá-la”
(Balas de estalo 6 de novembro de 1885).

Contos sobre contos; dava com eles na cara do corretor, em cheio; repelia-os de si, a pontapés;
depois recolhia-os com amor. Já não eram lágrimas nem diamantes, mas uma ventania de
algarismos, que torcia todas as ideias do corretor, por mais rijas e arraigadas que estivessem”
(Sales, 1887).

Machado prossegue torcendo a palavra. “Contos sobre contos”. Havia dito, e depois
repete, que a vida é contar contos. A vida exige torcer, ir torcendo, fazendo torções,
contorções, retorcões, distorções... até virar cadaver, quando não torce mais nada.

Quincas Borba (1891)

Cheguei a perguntar-lhe pela mulher; respondeu que estava boa, mas torceu logo a conversação
para assuntos gerais, expansivo, quase risonho. Adivinhe quem quiser a causa da diferença; eu fujo
ao Damasceno que me espreita ali da porta do camarote.
O acaso, em vez de levá-lo pela Rua do Ouvidor abaixo até à da Quitanda, torceu-lhe o caminho
pela dos Ourives, atrás do préstito. Não iria ver a execução, pensou ele; era só ver a marcha do
réu, a cara do carrasco, as cerimônias...

“O acaso torceu-lhe o caminho”. É o que mais estamos vendo neste livro. O Caiporismo
torcendo o caminho. O Eu não sabe antes que o Acaso lhe torcerá o caminho, o Eu não é
senhor do Acaso. Diante do Acaso, salve-se quem puder.

Dom Casmurro (1899)


Juramento do Poço
— Não! exclamei de repente.
— Não quê?
Tinha havido alguns minutos de silêncio, durante os quais refleti muito e acabei por uma idéia; o
tom da exclamação, porém, foi tão alto que espantou a minha vizinha.
— Não há de ser assim, continuei. Dizem que não estamos em idade de casar, que somos crianças,
criançolas, — já ouvi dizer criançolas. Bem; mas dois ou três anos passam depressa. Você jura
uma coisa? Jura que só há de casar comigo?
Capitu não hesitou em jurar, e até lhe vi as faces vermelhas de prazer. Jurou duas vezes e uma
terceira:

“Juramento do Poço”. Mais uma versão da verdade saindo do poço, vista acima. No
capítulo sobre o juramento. “Jura que só há de casar comigo? Capitu não hesitou em
jurar, e até lhe vi as faces vermelhas de prazer”. Capitu estava conseguindo o que queria.

— Há coisas que se não dizem.


— Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.
Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não era de
acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.
— Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou
peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!
— A separação é coisa decidida, redargüi, pegando-lhe na proposta. Era melhor que a
fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez, porém,
que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.

20
Aqui, é Bento que usa as palavras de Capitu. “Estudei no código feminino” (O protocolo,
1862). “Faltava-lhe o trato suficiente das mulheres para ler através de uma negativa” (d.
Benedita, 1882). Pontos de apoio deixados por Machado. Necessário saber lidar com o
código feminino, ler através da negativa.

Não disse tudo; mal pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde
deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente
irônico e melancólico:
— Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!

O tema não era esse, não era ciúme de um homem morto. O tema era a semelhança entre
o rosto de Ezequiel e Escobar. Que a própria Capitu tinha chamado a atenção de Bentinho.
Antes, quando Capitu não estava na defensiva, havia dito:

— Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? perguntou-me Capitu.
Só vi duas pessoas assim, um amigo de papai e o defunto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme,
assim, vira para o lado de papai, não precisa revirar os olhos, assim, assim...
Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me
pareceram esquisitos por isso. Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e
muitas semelhanças se dariam naturalmente.

Enquanto há confidência, cumplicidade, admite-se. Terminando isso, e entrando a


desconfiança, nega tudo. Nega todo o apoio recebido, nega, simplesmente, nega.
Continuando.

Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que não pedia outra
coisa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim.
Capitu olhou para mim com desdém, e murmurou:
— Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-
se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não
nos fica bem dizer mais nada.

“É a casualidade da semelhança”. Uma semelhança apenas casual. Capitu torce, se


defende, como se estivesse em um tribunal, e desvia para a vontade de Deus, “a vontade
de Deus explicará tudo”, haveria alguma insinuação com a virgindade de Maria, que
engravidou de Deus. Bento ri. “Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em
Deus; eu creio”. Deus explicará porque Ezequiel tem semelhança com Escobar.

Negar sempre, entortar demais, pode levar à psicose, à guerra, violência. Sobre entortar
com as palavras, o leitor pode ler o que pensa o médico psiquiatra psicanalista Jacques
Lacan, no Seminário, livro 3, As psicoses (1954):

“O sujeito recebe sua mensagem do outro sob uma forma invertida. O que o sujeito me diz está
sempre numa relação fundamental a um fingimento possível, aonde ele me remete e onde eu
recebo a mensagem sob uma forma invertida.

Inverter a mensagem. Torcer as palavras.


A noção veio, desde algum tempo, para o primeiro plano das preocupações da ciência, do que
seria uma mensagem. Para nós, a estrutura da fala, eu lhes disse a cada vez que tivemos aqui de
empregar esse termo no seu sentido próprio, é que o sujeito recebe sua mensagem do outro sob
uma forma invertida.

21
“Do que seria uma mensagem. o sujeito recebe sua mensagem do outro sob uma forma
invertida”. Tudo pode ser invertido. “Venço-te com as tuas armas!”. Pode-se provocar o
outro e usar as palavras dele contra ele, acusando-o pelo que falou! É o extremo da loucura
humana.
Nós nos limitaremos a constatar a alienação invertida. Detenhamo-nos um instantinho nisto. - Ei-
lo bem contente, vocês estão dizendo para si mesmos, é o que ele nos ensina - na fala, o sujeito
recebe sua mensagem sob uma forma invertida. Não se iludam, não é bem isso. A mensagem
de que se trata não é idêntica, bem longe disso, à fala, ao menos no sentido em que articulo para
vocês esta forma de mediação em que o sujeito recebe sua mensagem do outro sob uma forma
invertida.

Lacan repete a inversão várias vezes no seminário sobre a loucura.

A injúria será o modo de defesa que volta de alguma forma por reflexão na relação delas, relação
que só é compreensível a partir do momento em que ela está estabelecida, se estende a todas
as outras enquanto tais, quaisquer que sejam? Isso é concebível, e já deixa entender que se trata
realmente da própria mensagem do sujeito, e não da mensagem recebida na sua forma
invertida.

A injúria como modo de defesa. Injúria: “injustiça, aquilo que é injusto; tudo o que é
contrário ao direito”. Em uma discussão de relacionamento, desde Desencantos (1861),
até Dom Casmurro (1899), Machado mostra, tudo é fala invertida, a pessoa nega o que
acabou de dizer, ‘você tinha me pedido ajuda’, ‘eu nunca te pedi ajuda!’.
Em outros termos, quando um fantoche fala, não é ele que fala, é alguém que está atrás. A
questão é saber qual é a função da personagem que se encontra nessa circunstância. O que podemos
dizer é que, para o sujeito, é manifestamente alguma coisa de real que fala. Nossa paciente não diz
que é um outro qualquer atrás dela que fala, ela recebe dele sua própria fala, mas não invertida,
sua própria fala está no outro que é ela mesma, o outro com minúscula, seu reflexo no seu
espelho, seu semelhante.

“Quando um fantoche fala, não é ele que fala, é alguém que está atrás”. A fada
madrinha25. O tema do ventríloco. O Oráculo. Machado recebeu de Sílvio Romero sua
fala de modo invertido.

O capítulo ficou extenso, tentei reduzí-lo, mas não consegui cortar, o tema é atraente, O
Espelho é um dos textos mais estudados, psicanalistas se debruçam sobre ele, foi motivo
de Guimarães Rosa escrever O Espelho, é um tema central do Narcisismo, da formação
do ser humano na linguagem, motivo de polêmicas na leitura de Dom Casmurro, uma
falácia literária quando se procura lê-lo sob a lógica simplista Capitu traiu Bentinho, uma
leitura que revela a baixa capacidade de absorver a leitura de um autor que se situa em
um nível tão elevado.

25
A fada madrinha aparece comentada no Capítulo O Oráculo.

22

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