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O CONCEITO DE BELEZA

E SUAS APLICAÇÕES
INTRODUÇÃO

Podem existir diversas formas de abordagem sobre o tema da beleza, analisando-


a portanto sob diferentes perspetivas : histórica, antropológica, psicológica, filosófica,
etc. Neste último caso pode por exemplo fazer-se um estudo sobre o que os filósofos
disseram sobre a Beleza, ao longo da História da Filosofia, ou estudar esse tema num
autor específico. O tema da beleza existe também na literatura e na arte, de forma
explícita enquanto conteúdo da sua mensagem, ou de forma implícita, enquanto forma
bela de expressar esse mesmo conteúdo. Porém, não existe aí como análise, como a que
é característica das Ciências Sociais e Humanas, de entre as quais se destaca a análise de
carater filosófico.
No que diz a este tipo de análise, procuraremos neste artigo analisar a beleza
sob o ponto de vista concetual, e destacar as suas aplicações em diferentes áreas: o bem,
a verdade, a arte, a natureza, e o corpo humano. Pretende-se salientar a diversidade das
suas aplicações, as suas incongruências e contradições, e estabelecer comparações sobre
as aplicações do conceito de beleza. Este texto põe a ênfase na dimensão concetual da
beleza, salientando a excessiva aplicação desse conceito em áreas que nada têm a ver
entre si, e critica a aplicação por vezes inapropriada do conceito de beleza em
determinadas áreas ou situações. Não se trata aqui de fazer uma crítica de conteúdos,
isto é, não se trata de criticar que determinada coisa seja bela, ou de defender que é bela,
mas sim de salientar o facto de não haver outros conceitos para classificar a sensação e
o prazer diversos daquilo a que chamamos belo, um conceito que por um lado se refere
a coisas muito diferentes, e por outro lado se refere a tipos de prazer também eles muito
diferentes, e com diferentes implicações. Pretende-se neste artigo salientar as
consequências diversas da existência da beleza, muito diferentes em cada uma das áreas
a que se aplica esse conceito.
O conceito de beleza exprime a qualidade do que é belo, termo este que procede
do termo latino bellus, que significa lindo, bonito, formoso, esplendoroso,
deslumbrante, giro, elegante, charmoso, fascinante, sedutor, gracioso, encantador,
deleitoso, grandioso, sublime, etc. Como vemos, existem muitos e diferentes termos
para classificar aquilo que é considerado como belo. Estes últimos termos são
sinónimos do termo beleza, não se referindo portanto exatamente à mesma coisa, pois
apresentam-se numa escala gradativa do conceito de beleza. Alguns destes termos são
aproximações (expressam uma quase beleza), ou intensificações (expressam mais que
Beleza), tendo em conta o grau de intensidade do conceito de beleza, a sua aplicação a
diferentes objetos, ou as sensações diferentes sobre aquilo a que chamamos belo.
Uma cadeira, apesar de poder ter diferentes formas, é sempre uma cadeira, trata-
se de um conceito objetivo. Além disso, apesar das suas formas poderem ser muito
diferentes entre si, a sua função enquanto cadeira é igual : as pessoas sentarem-se nela
(apesar de também poder ter uma função estética, se for uma cadeira muito trabalhada
artisticamente, e se pretender-se também com ela decorar uma sala). Mesmo que aquilo
que se faça sentado numa cadeira possa ser diferente (ler, tomar uma refeição, assistir a
um espetáculo, etc.), em todas essas situações estamos sentados. Ora, o conceito de
beleza, ao contrário do de cadeira, é subjetivo, e certamente dos mais subjetivos, assim
como as suas aplicações e funções. Acontece algo de semelhante com o conceito de
amor, pois pode ser o amor de mãe, o amor à pátria, o amor a Deus, o amor pelas artes,
o amor pela Natureza, o amor entre namorados, o amor entre um casal, e de entre estes
últimos há ainda salientar diferentes tipo de amor. O amor é uma afeição, mas é mais do
que uma mera afeição. Tal como a beleza, existem diversos graus de amor, mas a todos
aplicamos a palavra amor. Em relação à palavra beleza, pelo contrário, existem muitos
sinónimos, como os atrás referidos. O que têm em comum com a palavra amor é o facto
de as suas aplicações serem diferentes, e com diferentes consequências.
O conceito de beleza pode ser empregue em vários sentidos e em vários
contextos, por exemplo ao dizer-se que a juventude é bela, que o amor é belo, que a
vida é bela, que um discurso de oratória é belo, que um teorema de matemática é belo,
que uma determinada refeição é bela, ou para designar uma ação justa, designando-a
como uma bela ação. O conceito de beleza refere-se também a ações morais, à
Natureza (quando falamos de uma paisagem bela), às pessoas (quando dizemos que
alguém é belo), a objetos criados pelo Homem (por exemplo quando dizemos que
determinada obra de arte é bela). Vejamos então diversas aplicações do conceito de
beleza, comparando-as, salientando pontos de convergência e de divergência, e
diferentes consequências e implicações.

BELEZA E BEM
O conceito clássico de Beleza corresponde historicamente ao conceito grego de
Beleza, que caracterizou as obras de arte dos diferentes períodos da história cultural
europeia até finais do século passado, sejam elas clássicas, barrocas, ou românticas,
apesar de concretizarem esse ideal de diferentes formas ou estilos. Na arte os exemplos
mais paradigmáticos do conceito clássico de beleza são as estátuas Apolo de Belvedere
e a Vénus de Milo, uma escultura toda feita de simetria e de harmonia de formas, de
completude, integridade, equilíbrio, intelectualidade, racionalidade, expressando
serenidade e dignidade. É uma arte não imprecisa, não caótica ou abstrata, antes pelo
contrário : muito definida, clara, ordenada, que corresponde aliás ao espírito de clareza
do humanismo grego em que a luz vence as trevas, a razão o obscurantismo, o limitado
o ilimitado, a democracia a tirania, a Filosofia o Mito.
A arte grega seguia regras de harmonia, proporção, e ordem, fazendo jus ao seu
conceito de beleza . Dado que a beleza é ordem, e o bem é a ordem que preside ao nosso
comportamento do ponto de vista ético, os Gregos associavam estética e ética, neste
caso beleza e bem, pois segundo eles o que é belo é bom, e o que é bom é belo. O ideal
grego de beleza não é apenas estético mas ético, dado que a aspiração à beleza é
também uma aspiração à virtude, à excelência humana, entendida como perfeição
simultaneamente física, cívica e moral. Esta conceção clássica de beleza vai-se refletir
nas próprias conceções filosóficas, sendo Platão o seu grande representante. Este
filósofo não dedica nenhuma obra específica à estética, mas em muitas das suas obras
refere-se a este tema, sendo as suas obras Fedro, e O Banquete, aquelas em que ele
expõe os aspetos principais a esse respeito.
Quando Platão fala do belo está-se a referir à ideia de belo em si mesmo, tomado
como essência, e portanto trata-se do belo com as mesmas características que atribui às
outras ideias : imutável, eterno, incriado, imperecível, absoluto. Na sua obra Fedro
considerava que a beleza era a ideia (forma) acima de todas as coisas, incluindo de todas
as ideias. 1A ideia de belo distingue-se das coisas que, apesar de serem belas, não
passam de cópias ou sombras dessa ideia. O belo ideal está na origem de todas as
formas de beleza que podem ser percecionadas nas coisas do mundo sensível. Se o belo
existe no mundo inteligível, e se o homem vive no mundo sensível, coloca-se a questão
de saber como se atinge esse belo absoluto, superior a todas as formas de beleza
particular. No Banquete Platão fala duma dialética ascendente que conduz ao belo
1
Platão, Fedro, Lisboa, Ed. Guimarães Editores, 1998.
inteligível, começando a pessoa por se sentir-se atraída por belos corpos (constituindo o
amor a concretização dessa atração), depois pelas belas almas, e por fim pelas belas
ciências, conduzindo-se assim, numa dimensão intelectual, para a beleza em si. 2 Esta é
dada pela contemplação do belo ideal em toda a sua plenitude, funcionando este no
mundo inteligível como arquétipo da beleza das coisas existentes no mundo sensível. A
beleza das coisas deveria levar o Homem a contemplar e a aspirar à beleza em si
mesma, que existe no mundo das ideias. Por conseguinte, estamos perante uma
conceção de beleza apriorista, transcendente, absoluta, universal, perfeita, e de caráter
ético.
Também em Aristóteles surgem referências dispersas sobre a beleza. Para este
autor, “uma coisa é bela se não se lhe pode acrescentar nem tirar nada”, 3 o que está de
acordo com o ideal de completude e de proporção da conceção clássica de beleza.
Assim, o belo revela-se por exemplo na tragédia, dado que esta apresenta uma certa
unidade de conjunto. Toda a ação se desenrola segundo um plano de continuidade em
que as peripécias ocorrem em momentos exatos, determinados pela estrutura global da
representação. A ordem, a grandeza, a simetria e a unidade são os ingredientes
constitutivos do padrão de beleza a partir do qual Aristóteles julga a beleza nas pessoas,
nas coisas, e nas ações humanas. Aristóteles também viu uma relação entre a beleza e a
virtude, afirmando que “a virtude tem como objetivo a beleza”.4
Portanto, quer em Platão quer em Aristóteles a arte deve ir para além da
realidade, afastando-se dos aspetos sensíveis e particulares das coisas, procurando um
grau superior de perfeição. As personagens devem ser mais belas do que as reais,
aproximando-se do modo universal, absoluto e ideal. Porém, a beleza universal de
Aristóteles não se confunde com a ideia de beleza que Platão faz residir na esfera
transcendental do mundo inteligível. O belo de Aristóteles é ideal também, mas reside
na razão humana que o extrai das coisas, é nelas que o Homem tem de o procurar. Já
não se trata de uma ascese platónica mas de um trabalho intelectual.5
A filosofia medieval, embora marcada por Aristóteles, foi também
profundamente marcada pelo Cristianismo, por isso a estética aliou aos elementos da
conceção clássica outros elementos oriundos das conceções da teologia cristã. Para
Santo Agostinho a beleza sensível exalta a beleza divina, a beleza do mundo é uma

2
Platão, O Banquete, Coimbra, Ed. Atlântida Editora, 1968, pp.94-96.
3
Aristóteles, Ética a Nicómaco ,8,5, 1106 b 9, Lisboa, Ed. Quetzal Editores, 2004, p. 15.
4
Idem, p. 34.
5
Aristóteles, Poética, Lisboa, Ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984.
emanação e um reflexo da beleza de Deus, com o qual Santo Agostinho identificava a
própria beleza, quando por exemplo afirma : “Tarde Te amei, ó Beleza tão nova e tão
antiga, tarde Te amei“, a propósito da sua conversão a Deus.6
Mas o mais significativo representante da filosofia estética medieval foi São
Tomás de Aquino. Na sua obra Summa Teológica distingue como características da
beleza a integridade, a justa proporção e a claridade, o que está de acordo com o ideal
clássico de beleza, e a sua associação ao bem. Para São Tomás de Aquino o belo é algo
de racional, de puramente formal. Ao considerar a beleza existente nas coisas do mundo
exterior, refere-se sempre a uma beleza formal, abstrata, intelectualizada, a uma
proporção que lhes é inerente e que tem de ser captada a nível intelectual, e a sua
fruição pelo sujeito traduz-se num prazer puro, sem desejo, sem nada ter a ver com
qualquer forma de prazer sensível, constituindo antes uma pedagogia capaz de
aproximar o Homem de Deus, pois toda a beleza é uma criação divina.7.
No âmbito da associação da beleza ao bem, mais especificamente à virtude, há
também que referir Hegel, com o seu conceito de alma bela, referindo-se a uma
consciência que “vive na ânsia de manchar com a ação e com o existir a honestidade do
seu interior”,8 exprimindo-se somente com palavras, e que se deseja agir perde-se em
absoluta inconsistência. Esta associação entre beleza e bem (no sentido ético), é herdeira
dos ideais estéticos clássicos que impregnaram profundamente a cultura alemã a partir
do século XVIII, através de pensadores como Goethe, Lessing, e Schiller, autores estes
marcados profundamente pelo ideal grego duma indissociação entre o belo e o bem.
Estes autores desenvolveram a ideia segundo a qual a verdadeira beleza, a beleza ideal,
não se dá sem nobreza de alma. Usa-se aqui a palavra belo para descrever a dimensão
moral das pessoas, nomeadamente as suas boas ações. No nosso tempo existem autores
com posições semelhantes, nomeadamente a tentativa de fazer da virtude enquanto
encarnada na forma humana, um aspeto central da experiência da beleza.9
Esta conceção encontra-se também presente no senso comum, quando se tende
direta ou indiretamente a associar a beleza à bondade. Existe uma certa tendência para
ver as pessoas boas como belas, e as pessoas que têm má personalidade, que são
desagradáveis nos seus comportamentos, suscitam a tendência para serem vistas como

6
Santo Agostinho, Confissões , Livraria Apostolado da Imprensa, Braga,1990.
7
São Tomás de Aquino, Suma Teológica, Porto Alegre, Ed. Escola Superior de Teologia São Lourenço
de Brindes, 1980-81, p.87.
8
Hegel, Fenomenologia do Espírito, VI,C.c., Petrópolis, Ed. Vozes, 2002.
9
Ver David E.Cooper, “Beautiful People, Beautiful Things”, in British Journal of Aesthetics, London,
2008, pp.247, 260.
não belas ou menos belas. A beleza é vista como inseparável da bondade, e aquele que
faz qualquer coisa de bom faz ao mesmo tempo qualquer coisa de belo, por isso diz-se
de uma boa ação que é um bela ação, e diz-se também que a pessoa que a realiza tem
beleza interior.
Mas não é apenas no senso comum que existe a associação entre a beleza e o
bem. Entre os filósofos, Kant é um dos melhores exemplos, ao classificar a prática do
bem no sentido moral, de acordo com as categorias do belo e do sublime. Na sua obra
Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, isso sucede várias vezes.
Apresentamos apenas alguns exemplos no que diz respeito à beleza : “(…) a gentileza é
a beleza da virtude (…) a cortesia e a delicadeza são belas”10, (…) “uma certa ternura
que facilmente conduz a um caloroso sentimento de compaixão, é bela” 11, (…)
“somente subordinando a sua inclinação particular a esta inclinação tão ampla podem
aplicar-se de forma apropriada os nossos impulsos bondosos, e gerar o nobre
comportamento que constitui a beleza da virtude”,12 (…) “a bondade é uma condição
bela e sensível do coração”.13
Todavia, louvar a bondade e outras virtudes classificando-as como belas, é algo
que mudou muito no nosso tempo, dado que sobrepondo-se à tendência para ver uma
pessoa como bela pelo facto de ser boa (no sentido moral), hoje existe mais a tendência
para ver uma pessoa como boa pelo facto de ser bela. Em vez de ser considerada bela
por ser boa (apesar desta consideração não ter perdido seu valor), atualmente a
tendência predominante é considerar-se uma pessoa boa por ser bela. Na sociedade de
hoje, pautada exageradamente pela aparência, o critério estético é cada vez mais
determinante para se escolher uma pessoa, não apenas para uma relação amorosa, mas
para as relações humanas em geral, especialmente para o mundo laboral, como se isso
só por si fosse indicador de uma pessoa com qualidades.
Os inquéritos de Psicologia Social confirmam-no : a inteligência, a gentileza, a
boa educação, são associadas à beleza. Em suma, “o que é belo é bom”, como o
resumem Jean-Yves Badouin, e Guy Tiberghien, autores de um estudo sobre as
representações sociais da beleza e dos estereótipos a ela associados.14 A história das
10
Kant, Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, capítulo 2 (“Das qualidades do sublime e
do belo no homem em geral”), Lisboa, Ed. 70, 2012, p. 37
11
Idem, Ibidem, p. 42
12
Idem, Ibidem,
13
Idem, Ibidem, p. 46
14
Jean-Yves Badouin, e Guy Tiberghien, Ce qui est beau… est bien. Psychosociobiologie de la beauté ,
Grenoble, Ed. Presses Universitaires de Grenoble, 2004. Ver também Karen Dion, Ellen Berscheid, e
Elaine Walster, “What is beautiful is good”, in Journal of Pesrsonality & Social Psychology, vol. XXIV,
representações da beleza e do feio confirmam-no. Desde sempre, o imaginário sobre o
feio foi associado ao mal, em correspondência com os monstros, o diabo, o perverso, o
doente. O feio era considerado como algo maléfico, e conduzia à repulsa e ao medo, e a
beleza ao que é bom.15
Porém, quer a tendência para ver uma pessoa como bela pelo facto de ser boa,
quer a tendência para ver uma pessoa como boa pelo facto de ser bela, não
correspondem à realidade dos factos, pois como sabemos, nem todas as pessoas boas
são belas, e nem todas as pessoas belas são boas (em termos de comportamento moral e
de aparência física). Podemos aplicar o conceito de bela alma, ou de beleza interior,
mas apenas em termos morais, aplicando o termo beleza em sentido figurado, e não
porque a pessoa seja fisicamente bela.
Determinados autores contestaram a ligação entre beleza e bem, como por
exemplo Óscar Wilde, para quem o modo de vida estético, no qual o supremo valor é a
beleza, opunha-se à vida virtuosa, e portanto ao bem (no sentido moral). Por exemplo,
uma pessoa atraída por uma pessoa muito bela pode ser tentada a fechar os olhos aos
vícios desta, e neste caso a beleza é inimiga do bem. No caso da beleza artística, os
defensores da arte pela arte, como por exemplo Óscar Wilde, ou Charles de Baudelaire,
tendem a ver a arte ao serviço da beleza, e a ver com desprezo a subordinação da arte à
moral. Óscar Wilde chegou mesmo a afirmar, no prefácio da sua célebre obra O Retrato
de Dorian Gray, que “nenhum artista tem simpatias éticas”. Uma vez que se situa
apenas ao nível das exigências estéticas, a arte e a busca da beleza deve afastar-se de
qualquer outro fim, incluindo o fim moral. Há muitas obras de arte consideradas
imorais, mas que são belas do ponto de vista artístico. Se só pudessem ser consideradas
como obras de arte, nomeadamente como obras belas, aquelas obras que estão ao
serviço do bem (no sentido moral), então teria que se excluir muitas obras importantes
do mundo artístico.
Finalmente, há a referir que se a conduta artística, neste caso enquanto culto da
beleza, não tem que se subordinar à moral, a conduta moral também não deveria deixar-
se levar pela beleza, e devia portanto afastar-se dos critérios estéticos. Ora, muitas
vezes isso não acontece, principalmente nos tempos de hoje, em que as relações
humanas estão demasiado marcadas pela aparência, e em que portanto as pessoas são
alvo de mais atenção e de preferência não tanto devido às suas qualidades morais, mas
nº. 3, Dez., 1972. Ver ainda: Alice Eagly, et al., “What is beautiful is good, but...: A meta-analytic review
of research on the physical attractiveness stereotype”, in Psychological Bulletin, vol. CX, nº. 1, 1991.
15
Umberto Eco (dir.), História do Feio, Lisboa, Ed. Difel, 2007.
devido à sua beleza física.

BELEZA E VERDADE

Assim como existe a tendência para associar a beleza ao bem, existe também a
tendência para associar a beleza à verdade, por exemplo quando se diz que “mentir é
feio”, ou que “dizer a verdade é bonito”. Neste caso, a associação entre a beleza e a
verdade é também uma associação entre a beleza e o bem, pois o campo de referência
subjacente é a moral, a prática da virtude. A associação da verdade à beleza, e da beleza
à verdade, tem servido de inspiração para diversos autores. Uma das mais célebres é a
do poeta inglês John Keats, um dos expoentes do movimento romântico, que em 1819
escreveu : “A beleza é verdade, e a verdade é beleza – eis tudo o que sabeis na Terra, e
tudo o que precisais saber” (Ode sobre uma urna grega, estrofe V).
Porém, a associação da beleza à verdade, e da verdade à beleza, está presente
em diversas áreas. Por exemplo na Ciência, matemáticos e físicos atribuem beleza a
teoremas e teorias, criando uma estética da verdade. O mais belo é aquilo em que se
consegue explicar muito com pouco, e os teoremas e teorias mais belos são também os
mais simples, e sendo dadas duas ou mais explicações para o mesmo fenómeno, vence a
mais simples. Esse critério é conhecido como a lâmina de Ockam, atribuído a William
de Ockam, teólogo inglês do século XIV. Na sequência de outros cientistas, Einstein era
também defensor da beleza como critério de verdade em teorias científicas : uma teoria
tem que ser bela para estar correta. A ideia de harmonia do mundo exprime a ideia de
beleza, e a busca por simetria na Matemática e na Física é uma busca por beleza.
Mas enquanto existe a tendência, como vimos no capítulo anterior, para ver uma
pessoa boa como bela, não existe a tendência para ver a pessoa cuja Vida é a busca da
verdade (o cientista, o filósofo, o intelectual) como uma pessoa bela. Pelo contrário,
seguindo-se aqui os estereótipos tradicionais quanto a padrões estéticos, essa pessoa é
vista como alguém que tem por exemplo óculos redondos, longas barbas, alguém que é
descuidado no aspeto exterior, distraído, etc. Do ponto de vista da beleza enquanto
motor de atração física, o cientista, o filósofo, o intelectual não são portanto os melhores
exemplos, segundo os estereótipos criados sobre eles. A virilidade, que muito contribui
para os critérios sobre a beleza masculina, não é vista como uma característica do
intelectual. Porém, existe aqui uma ambivalência, pois se por um lado o intelectual, de
acordo com os estereótipos, não é visto como o melhor exemplo de sedução física, por
outro as pessoas inteligentes atraem, fascinam, causam admiração, e isso constitui
também uma mais valia na apreciação de uma pessoa. Por isso, seguindo o estereótipo
segundo o qual a inteligência é uma característica do sexo masculino, muitas pessoas
dizem-se atraídas pelos homens mais inteligentes, e consideram essa qualidade um fator
importante na escolha de um homem, como se a inteligência num homem reforçasse a
sua própria masculinidade e beleza, e portanto a atração que algumas pessoas sentem
pelo sexo masculino, enquanto critério dessa atração.
Pelo contrário, segundo os estereótipos, a beleza física da mulher não anda
geralmente associada à inteligência, e este último atributo não constitui motivo de
atração da mulher. O estereótipo segundo o qual “as loiras são burras”, está muito
determinado pela ideia segundo a qual as mulheres belas não são inteligentes, e que o
chamado belo sexo impõe-se pela beleza, e não pela inteligência. As mulheres cuja
preocupação é a busca da verdade, no sentido intelectual, são alvo de estereótipos e
preconceitos, visíveis não apenas na opinião pública, mas mesmo em determinados
filósofos, de que Kant é um dos melhores exemplos, ao afirmar :
“A meditação profunda e a contemplação prolongada são nobres, mas árduas,
e não convém àquela pessoa cujos encantos espontâneos não têm senão de mostrar
uma natureza bela. O estudo laborioso ou a reflexão penosa, ainda que uma mulher
neles progrida longamente, estragam os méritos peculiares do seu sexo, e se a raridade
desta condição a converte em objeto de fria admiração, ao mesmo tempo, debilita os
encantos que lhe permitem exercer o seu ascendente sobre o sexo oposto. Uma mulher
que tenha a cabeça atafulhada de grego, ou que sustente discussões fundamentadas
acerca de mecânica, parece que apenas lhe falta uma boa barba, pois com ela o seu
rosto talvez consiga expressar melhor a profundidade a que aspira”.16
Kant está aqui muito marcado pela imagem sobre o filósofo, uma atividade
tradicionalmente considerada pertencente ao sexo masculino. Por um lado temos os
estereótipos sobre o homem e a mulher, relacionando-o com a beleza, de que acabámos
de falar, por outro lado temos os estereótipos sobre os próprios filósofos.
No que diz respeito à Filosofia, há diversas formas de relacionar a verdade com
a beleza. Selecionamos aqui um autor que estabelece uma relação importante entre a
verdade e a beleza : Walter Benjamin, devido ao facto de ser um autor onde essa relação
16
Kant, Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, o. c., pp. 58-59.
é mais pertinente, nomeadamente entre Filosofia e beleza. 17 Em relação à tradição
filosófica sobre a beleza, este autor vai beber a Platão algumas das suas ideias. Ao
recuperar e interpretar Platão de um modo próprio, Benjamin caracteriza e vê a verdade
como matéria de contemplação, e desta forma também a Filosofia, em oposição ao
conhecimento, que está marcado pela aquisição. Ao mesmo tempo Walter Benjamin vai
buscar ao Banquete de Platão a definição de que a verdade é bela, podendo assim
Benjamin responder à confusão entre mero conhecimento e Filosofia. Segundo
Benjamin, confunde-se uma coisa que já Platão sabia serem distintas. As ideias, que são
o Ser, isto é, a verdade, para Platão nunca podem ser de facto adquiridas, elas não são
objeto de posse. Neste sentido, há uma certa distância entre a Filosofia e o seu objeto,
ao contrário do que sucede com as ciências.
É na Filosofia, segundo Walter Benjamin, que persiste a unidade de todos os
problemas que fascinam o interrogar do Homem, nomeadamente aquilo que é
denominado por este autor, na sua obra sobre o barroco alemão, como verdade.18 Para
Benjamin a verdade tem a ver com contemplação de ideias, as quais constituem um
dado prévio, para além de qualquer questionação. É apanágio da verdade a sua unidade,
que é imediata e direta, por isso a verdade é desde logo apresentação de si própria.
Pelo contrário, segundo Walter Benjamin, o conhecimento não tem a ver com
verdade, ele é antes um produto das nossas operações mentais, que tem a ver com o
entendimento e com conceitos. Segundo Benjamin, enquanto a verdade se orienta para o
universal, o conhecimento orienta-se para o singular. O conhecimento é algo mediato,
mediação essa operada por metodologias e tem portanto a ver com induções e deduções,
enquanto a verdade é, por natureza, apresentação desde logo de si própria. É neste
aspeto que, segundo Benjamin, a verdade tem a ver com a beleza, que é desde logo
apresentação de si própria, numa unidade e numa totalidade que se oferece à
contemplação. Para Walter Benjamin “a compreensão da conceção platónica da relação
entre verdade e beleza não é apenas um objetivo supremo de cada projeto da Filosofia
da arte, como também é indispensável para a determinação do conceito de verdade”.19
A verdade tem unidade, tal como a beleza, porque é um reino de ideias que se
auto-apresenta, como a beleza, entendendo Walter Benjamim a verdade enquanto reino
da Filosofia, e nesta o seu estilo: “a arte do descontínuo em oposição à cadeia das
17
O texto que se segue deve muito às aulas da professora Maria Filomena Molder, num seminário sobre
Walter Benjamin, no Mestrado em Estética e Filosofia da Arte, na Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa.
18
Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2004.
19
Walter Benjamin, o.c.,p.210.
deduções ; a perseverança do tratado em oposição ao gesto do fragmento; a repetição
dos motivos em oposição ao universalismo raso; a plenitude da positividade concisa em
oposição à polémica negativa”.20
Como afirma Filomena Molder, “uma atenção extremamente exata e meticulosa,
uma definição minuciosa dos pormenores, a escolha rigorosa da iluminação adequada, a
observação dos contrastes, das mínimas metamorfoses, numa palavra, a obediência às
minúcias da coisa é o fruto de um amor pela exatidão, e Walter Benjamin não ignora a
afinidade parental entre exatidão e beleza. Em cada coisa arde um fogo, o fogo de cada
coisa ilumina-a em cada ponto de combustão, nos seus pormenores. A Filosofia não
deve suspender a sua tarefa de descobrir a beleza nas coisas, afundando-se nos seus
pormenores, remexendo nas suas cinzas ardentes, procurando a sua ideia no seu brilho
próprio”.21
Um outro sentido da conceção de verdade como beleza tem a ver com os graus
de ascensão erótica, em que a verdade não é tão bela em si quanto para aquele que a
procura, e que tem a ver com as relações amorosas, pois só o amante vê no amado a
beleza. Aqui a luta por algo que se acha belo recebe uma figura (o amado), mas o
amado é uma verdade para o amante, belo em si não é para aquele que o ama, é uma
inquietação, uma nostalgia, um desejo, uma aspiração, por isso a beleza é o nome que
damos ao que procuramos, e portanto o belo não se fixa num conjunto de regras de
acordo com a conceção clássica de beleza (harmonia, simetria, ordem), pois podemos
até achar beleza no disforme, no que é desordenado, por isso, como afirma Walter
Benjamin, “o Trauespiel alemão não podia ser mais árido. O seu brilho esmoreceu,
porque era o mais grosseiro possível. O que perdura é o pormenor bizarro das
referências alegóricas : um objeto do saber que se anicha nos edifícios de ruínas
intelectualmente elaboradas.”22
Walter Benjamim diferencia-se das noções clássicas sobre a beleza, e poderia
parecer que este autor se afasta de Platão ao afirmar que a beleza corresponde àquilo
que os homens procuram (pois Platão atribui à beleza um ser em si), caindo portanto
Walter Benjamin num relativismo. Porém, este autor tem o cuidado de se defender
dessa eventual acusação, afirmando que “se há um sopro de relativismo, não é porque a
beleza, longe disso, que deve inerir à verdade, se tenha convertido num epíteto
metafórico. A essência da verdade, enquanto reino das ideias, que se auto-apresenta,
20
Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, o.c., prefácio, p.9.
21
Maria Filomena Molder, Semear na Neve, Lisboa, Relógio D’Água Editores,1999,p.132.
22
Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, o.c., prefácio, p.28.
garante, ao invés, que o discurso sobre a beleza do verdadeiro nunca pode ser afetado.
Aquele momento da apresentação é no seio da verdade o refúgio da beleza em geral. O
belo permanece na ordem do brilho, vulnerável, enquanto se afirmar francamente como
tal. O seu brilho, que seduz tanto tempo quanto ele nada mais quiser a não ser brilhar,
arrasta atrás de si a perseguição do intelecto e a sua inocência só é reconhecida no caso
de se refugiar no altar da verdade”.23
Por outro lado, a unidade dos problemas filosóficos, e o ideal dos mesmos,
manifesta-se sempre que a contemplação descobre a beleza nas obras de arte, que
segundo Walter Benjamin são irmãs da Filosofia, o que significa transformar as obras
de arte em objetos de sabedoria. Reforçando a inter-relação entre o estético e o
filosófico, Walter Benjamim apoia-se em Platão, nomeadamente na crença platónica
expressa no Fedro, sobre a unidade entre a perceção espiritual do belo e a ordem
verdadeira do mundo, consistindo a função da beleza ser uma manifestação sensível da
ideia, e cerrar o abismo aberto entre esta e o real. Isso significa que a beleza não é
aparência mas essência, pois se tivesse a ver com aparência tinha a ver com falsidade,
mas dado que tem a ver com a ideia em sim (enquanto apanágio da beleza), tem a ver
com a verdade.
Conforme sublinha um outro autor a este propósito, Gadamer, “Platão concebe
juntas as vivências do amor que despertam com a perceção espiritual do belo e da
ordem verdadeira do mundo. Graças ao belo se consegue de novo, com o tempo, a
recordação do mundo verdadeiro. Este é o caminho da Filosofia. Ele chama belo ao que
mais brilha e mais nos atrai, digamos à visibilidade do ideal. Isso que brilha de tal
maneira ante tudo o mais, que leva em si tal luz de verdade e retidão, é o que
percebemos como belo na Natureza e na Arte, e o que nos força a afirmar que isso é o
verdadeiro”.24
Também em Walter Benjamin “a beleza não é ela própria aparência, não é
envoltura para outra coisa, ela própria não é manifestação mas absolutamente essência,
que persiste enquanto tal, que só é essencialmente ela própria sob a forma da envoltura.
O belo não é nem o envoltório nem o objeto envolto, mas o objeto no seu envoltório”. 25
Isso significa que a beleza tem como conteúdo a verdade, mas que a beleza não se
manifesta no retirar da envoltura mas precisamente na persistência e intensificação da

23
Walter Benjamin, Idem,p.8.
24
Hans-Georg Gadamer, A Atualidade do Belo, tradução espanhola, ” La actualidad de lo bello”,
Barcelona, Ed.Paidós,1991, p.52.
25
Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, o.c., p. 194.
envoltura. Esta relação entre beleza e verdade mostra como a verdade é diferente do
objeto do conhecimento, manipulando-o e dominando-o. Ora, a beleza escapa-se sempre
daquele que usa o intelecto, a beleza mostra a sua irresolubilidade por constituir em si
própria um mistério, por isso está ligada à tarefa humana de procurar o que atrai,
constituindo aquilo que os homens procuram, mesmo indiretamente. Também a beleza
não corresponde a um ter, como sucede no conhecimento, mas sim a um ser. Assim, se a
beleza é como a verdade, isso significa transformar a busca da beleza numa busca da
verdade, em que, por consequência, a própria beleza possa, como ideal, ser alvo da
própria sabedoria.

BELEZA E ARTE

A manifestação da beleza tem tido como meio privilegiado as obras de arte, e


por outro lado existe tradicionalmente a tendência para ver a arte como uma
manifestação da beleza. Ora, mas na arte um quadro belo nem sempre retrata algo belo,
e por outro lado a representação de algo belo nem sempre resulta num quadro belo.
Devemos por isso colocar a seguinte questão : é pela arte que chegamos à beleza ? Por
outro lado, é pela beleza que chegamos à arte? Cada uma delas implica necessariamente
a outra ?
Desde Aristóteles que se coloca a tónica na beleza artística, ou seja, que a arte
tem efetivamente a capacidade de produzir beleza, chegando mesmo a arte à capacidade
de tornar belas certas descrições de objetos que em si são feios, disformes ou horríveis,
como por exemplo uma pintura de monstros ou cadáveres. A conceção segundo a qual a
beleza é a mensagem da arte, e que a arte deve ter como objetivo a beleza, é uma
tendência que existe no senso comum, e portanto na visão da opinião pública, mas
também em alguns autores, mesmo nos tempos de hoje, como por exemplo no filósofo
Roger Scruton, que lamenta aquilo a que ele chama a fuga à beleza.26
Porém, como sabemos a beleza não existe apenas na arte, mas também na
Natureza, e no corpo humano. Por outro lado, podemos captar a essência da arte, chegar
até ela, sem ser pela beleza, pois a beleza só por si não esgota o fenómeno artístico.
Desde tempos recuados que o ser humano se entregou à arte, não procurando
principalmente beleza, mas sim através da arte outros objetivos : magia, veneração
26
Roger Scruton, Beleza, Lisboa, Ed. Guerra & Paz, 2009, pp. 149-171.
religiosa, culto dos heróis, exaltação de ideais políticos, etc., ficando muitas vezes as
preocupações com a beleza em plano secundário. O romantismo intensificou, a seu
modo, a ligação da arte à beleza, procurou-se na arte o absoluto da beleza, sendo esta a
preocupação fundamental da arte, e estendeu-se a beleza aos mais diversos campos,
defendendo-se uma estetização da própria Vida, vista como uma bela obra de arte a
realizar (por exemplo em Baudelaire, ou em Óscar Wilde), através da figura do dandy.
No que diz respeito à existência de beleza independentemente da arte, como
sabemos isso acontece na Natureza e no corpo humano (de que falaremos nos dois
capítulos seguintes), mas mesmo na arte a beleza, quando se mostra pela arte, tem um
não sei quê, que é independente da arte, de tal modo que por exemplo a música,
conforme afirma um autor clássico, “tem um sistema formado por várias regras que os
professores consideram completo, de tal modo que, violando-se alguma delas,
condenam a composição por defeituosa. Contudo, encontra-se uma ou outra composição
que se afasta desta ou daquela regra e agrada infinitamente, apesar da passagem em que
falta à regra (...) Dirão que está contra a arte; mas que contudo tem um não sei quê
que a faz parecer bem. E eu digo que este não sei quê não é senão estar feita segundo a
arte, mas segundo uma arte superior à deles.”27
Isso significa que a beleza duma obra de arte não vem da qualidade da sua
representação nem da sua parecença com o modelo, no caso do retrato, nem da sua
conformidade com regras pretensamente universais (as três unidades para a tragédia, a
gama temperada para a música dos séculos XVIII e XIX, os cânones da figuração e da
perspetiva para a pintura, etc.), mas dum acrescento em relação a qualquer
representação e regras.
A preocupação em cumprir essas regras é herdeira do ideal clássico de beleza,
mas como afirma Herbert Read, “temos de nos compenetrar que é apenas um de entre
vários ideais possíveis. Difere do ideal bizantino, mais divino que humano, intelectual
e antivital, abstrato. Difere do ideal primitivo, que talvez não fosse sequer um ideal, mas
antes uma propiciação, uma expressão de temor em face de um mundo misterioso e
implacável. Difere ainda do ideal oriental , que é também abstrato, não-humano,
metafísico, e no entanto mais instintivo que intelectual. Uma Vénus grega, uma Virgem
bizantina, um ídolo selvagem da Nova Guiné, ou da Costa do Marfim não podem todos
caber dentro da conceção clássica de beleza. (...) E no entanto, quer belos, quer feios,
todos aqueles objetos podem ser, com inteira propriedade, classificados como obras de
27
Benito Feijóo, Um não sei quê, Lisboa, Ed. Vega,1998,pp.32-33.
arte”.28
Por conseguinte, a beleza não é uma propriedade objetiva das obras de arte, pois
a beleza varia consoante cada continente ou país, consoante a cultura de cada região, a
época, e varia ainda de pessoa para pessoa. Mas mesmo se (por hipótese) uma obra de
arte não fosse considerada bela em nenhuma região do mundo nem em nenhuma época,
nem para nenhuma pessoa, não era pelo facto de não lhe ser atribuída beleza que
deixaria de ter valor, se tivermos em conta outras características que lhe dão valor do
ponto de vista artístico, como a sua unidade, a sua intensidade, a sua complexidade, ou
outras características como o conhecimento que a obra de arte fornece (por exemplo
sobre uma determinada época), a sua intervenção social, os ideais políticos, morais, ou
religiosos que a mesma veicula, etc.
Associada à experiência da beleza encontra-se normalmente a satisfação (no
sentido de prazer), mas não é a satisfação que uma obra de arte dá que faz com que a
obra de arte tenha valor artístico, pois por um lado também a ciência dá satisfação, e por
outro lado há certos objetos e experiências estéticas que não a dão. Existem muitos
exemplos de obras que embora não expressem beleza (pelo menos de acordo com a
conceção clássica de beleza), não deixam de ter valor artístico, e que expressam mesmo
o feio e o grotesco, como por exemplo as esculturas de gárgulas, na antiga arquitetura.
Na história da arte contemporânea existem vários exemplos de obras
consideradas com qualidade do ponto de vista artístico, e não expressam beleza :
na pintura, o Cristo de Grunwald, os Desastres de Guerra de Goya, a Guernica de
Picasso, o Retrato do Papa Inocêncio X segundo Velásquez de Francis Bacon; na
música, A Survivor from Warsaw, ou Pierrot Lunaire, de Schoenberg; no teatro,
Breath de Beckett, ou o teatro do absurdo de Artaud; na escultura, o Placid Civic
Monument de Oldenburg, as esculturas de Joseph Beuys, as esculturas de Richard
Serra, e os trabalhos de Marcel Duchamp, as máscaras africanas, etc.
A arte como beleza começou a perder força no século XIX, quando foi realizado
o Salão dos Recusados, que reuniu obras dos pintores impressionistas. Essa exposição
reunia diversas obras recusadas pelo júri do Salão de Paris, que era a mostra de arte
oficial da Academia Real. Esta era responsável por um estilo de pintura e de escultura
conhecido como arte académica. Este tipo de arte foi incorporado numa série de
convenções a serem seguidas por todos os artistas. As obras de arte deveriam seguir um
determinado critério estético : deviam expressar beleza, e conterem uma “mensagem
28
Herbert Read, O Significado da Arte, Lisboa, Ed. Ulisseia, 1980, p.19.
elevada” — como por exemplo as pinturas históricas.
Na sequência do Impressionismo, esse critério foi posto em causa por algumas
correntes artísticas de vanguarda (em que se incluem as obras de arte acima
exemplificadas). As novas correntes estéticas questionaram o estatuto tradicional da
arte, como fez por exemplo o movimento dadaísta, os ready-made, ou a Pop Art, ao
pretenderem criar ou mostrar as possibilidades duma arte sem beleza, e opor-se mesmo
à beleza, produzindo antes obras onde expressam o disforme, o deproporcionado, o feio,
e o absurdo (para o que também é necessário haver criatividade e imaginação), não
deixando porém de serem consideradas como obras de arte. Portanto, nem sempre o
objetivo da arte é a beleza. Por vezes ela é mesmo criada com a intenção de ser feia, ou
ridícula, ou simultaneamente feia e ridícula. Foi esse o caso do Dadaísmo, movimento
de vanguarda que teve como principal representante um dos autores atrás referido -
Marcel Duchamp, de que é exemplo o seu urinol, que este autor assinou e enviou para a
primeira exibição da Sociedade de Artistas Independentes de Nova York, como qualquer
outra obra de arte. Isso porque o Dadaísmo tinha como finalidade ser o oposto daquilo
que era tradicionalmente considerado como o objetivo fundamental da arte : a beleza.
Hoje em dia, muitas obras continuam a finalidade do Dadaísmo, e são aceites e
consideradas como arte.

BELEZA E NATUREZA

Por vezes é difícil distinguir entre a beleza que provém das mãos do Homem
(como por exemplo a da arte), e a beleza que provém da Natureza, de modo a que se
possa distinguir realmente entre beleza artística e beleza natural, pois por exemplo as
tulipas, os cavalos, os cães de exposição, etc., são exibidos pela sua beleza, mas o
mérito vai para os seus criadores.
Porém, que arte e beleza podem ser, e são de facto, coisas diferentes, prova-o
melhor do que qualquer outro exemplo a beleza existente na Natureza. Para os
esteticistas, a sensibilidade para a beleza natural era um reflexo da beleza artística, dado
que aprendemos a perceber o belo na Natureza guiados pela criação do artista29, mas que
utilidade terá esta última hoje, para nos guiarmos para a beleza na Natureza, tendo em

29
Cf por exemplo Óscar Wilde, O Declínio da Mentira, Ed. Vega, Lisboa 1991, pp.53-54.
conta a arte contemporânea, muitas vezes pouco ou nada preocupada com a beleza ? não
teríamos antes que experimentar a beleza natural para desfrutarmos de beleza ?
Se a beleza pode não ter atualidade na arte, na Natureza continua a ter.
Restar-nos-ia valorizar então a Natureza como compensação para o facto da arte
contemporânea carecer muitas vezes de beleza, vendo na Natureza a eterna beleza, dado
que não muda ao longo dos tempos, e por outro lado porque a beleza na Natureza é
uma beleza para todos, pois não depende de contextos sociais, económicos, e
culturais. No século XVIII desenvolveu-se mesmo a conceção de que a beleza natural
é o paradigma da beleza (conceção sem dúvida de algum modo herdeira da própria
conceção de arte como imitação da Natureza). Quando no capítulo anterior nos
referimos a um não sei o quê que está para além das regras e da perícia técnica da arte,
constituindo isso a beleza, e que uma obra de arte pode não ser perfeita quanto a regras
ou a perícia mas quanto a beleza, isso conduz-nos à gratuidade plena da beleza, a um
desinteresse perfeito, a um dom que a Natureza apresenta, mais do que a arte, dado que
esta última está sujeita a variações culturais e temporais. É especialmente Kant quem
chama a atenção para a peculiaridade e a superioridade da beleza da Natureza,
pois para este filósofo o elemento determinante da beleza é a sua naturalidade ou
espontaneidade, o facto de ser produzida “sem conceito”, quer no caso de um
objeto natural, quer no de uma obra de arte. (...) A beleza reside na forma de
finalidade de um objeto, apreendida sem a representação de um fim, pela simples
reflexão sobre o sentimento de harmonia resultante do livre jogo das faculdades
do sujeito (imaginação e entendimento).
Segundo Kant, o modelo desta “finalidade sem fim” é a própria Natureza que,
“sem intenção”, de um modo casual e contingente, independentemente de quaisquer
regras, produz objetos cuja forma se manifesta apta a suscitar em nós uma satisfação
desinteressada. Soubéssemos nós que uma bela flor, em tudo idêntica ao seu original,
era afinal obra da atividade consciente e da perícia técnica de um artífice, todo o nosso
prazer desapareceria. A ideia de que foi a Natureza que produziu o objeto, sem a nossa
intervenção, tem de estar associada à satisfação estética”.30
Apesar da valorização por Kant do belo da Natureza, é um questão estética
importante perguntar se o belo da Natureza é de facto superior, e até mesmo existente.
Por exemplo, para Baudelaire não há um belo natural, pois o belo propriamente dito é

30
Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Sobre o belo natural em Kant, Introdução à Filosofia, Lisboa, Texto
Editora,1993,p.280.
sempre uma criação da arte,31 e Benedetto Croce negava o belo natural, 32
assim como
outros autores contemporâneos, que afastam do domínio da estética os sentimentos que
provocam por exemplo a beleza de um pôr do sol, a beleza de uma montanha, a beleza
das grutas (estalactites e estalagmites) , incluindo a beleza dos animais e a do corpo
humano, pois segundo esses autores, encontram-se fora do campo da arte. Alguns
autores defendem mesmo que só podemos olhar esteticamente para a Natureza se
trouxermos para ela as atitudes e expetativas que retiramos da apreciação da arte.33
Por outro lado, o homem comum tem tendência para ver mais na arte a função
lúdica, a distração, enquanto que para a Natureza tende a olhar principalmente de forma
utilitária, com olhos de quem quer tirar proveito dela, ou mesmo de quem a quer
dominar (por exemplo uma árvore : abrigar do sol, dar madeira, frutos, etc. ; um rio :
irrigação dos solos, pesca, navegação, etc.). A ideia de utilidade associa-se mais à
Natureza (o que trai o espírito da gratuidade e desinteresse da Natureza), enquanto que a
ideia de não utilidade, de algo supérfluo, é considerada fundamentalmente para a arte.
O homem comum tende a ver a beleza na Natureza como algo acessório e eventual, de
dispensável, enquanto que, pelo contrário, da arte tende a ver e a esperar beleza. O
Homem comum não se refere imediatamente à Natureza na procura de beleza (até
porque há Natureza não bela), nessa procura tende a deixar a Natureza em plano
secundário, enquanto que da arte espera prioritariamente beleza, apesar da beleza variar
consoante as culturas e as épocas e de, como referimos, a preocupação em criar beleza
se encontrar afastada de muitos estilos e obras de arte contemporâneas.

BELEZA E CORPO HUMANO

A beleza no corpo humano pode ser considerada em dois sentidos: cultural e


natural (embora, como sabemos, por vezes eles estejam inter-ligados). O cultural diz
respeito à decoração : o traje, os objetos de adorno, a cosmética, etc., enquanto que o
natural diz respeito à beleza do próprio corpo humano, ao seu aspeto físico. Mas o corpo
no sentido natural, a conceção de beleza física, também está fortemente orientada pela
cultura, e embora seja uma beleza natural porque é algo físico, a sua perceção é cultural,
31
Charles Baudelaire, O Pintor da Vida Moderna, Lisboa, Ed. Vega, 1993.
32
Benedetto Croce, Breviário di Estetica , Roma ,Ed.Laterza,1988.
33
Ver Richard Wilson, Art and its objects, Cambridge, Ed. Cambridge University Press, 1980; Stephen
Davies, Definitions of Art, New York, Ed. Ithaca, 1991.
e portanto varia de cultura para cultura. Assim, por exemplo na Grécia Antiga, o ideal
de beleza física, o corpo esteticamente considerado superior, era o corpo
masculino, enquanto que na Idade Média o ideal de beleza física passou a ser o do
corpo feminino.
A beleza não natural mas construída, a sua artificialização (por exemplo, os
adornos), surge como um princípio orientador que pretende fazer da vida uma espécie
de obra de arte, que na cultura romântica encontra determinados representantes, sendo
Charles Baudelaire um dos principais. Na sua obra O pintor da vida moderna este autor
descreve a vida como uma obra de arte, que tende a ver-se nas atitudes, nos gestos, nos
comportamentos e representações sociais e a configurar-se em estilos de vida. A atenção
prestada à moda, ao dandy, e à cosmética, é a indicação desse esteticismo que invade a
vida, propiciando uma experiência de beleza e de felicidade. “O belo, a moda e a
felicidade” é precisamente o capítulo que abre a referida obra de Baudelaire. O
heroísmo da vida moderna, segundo Baudelaire, tem a ver com uma estetização das
aparências, da “alta espiritualidade da toilette”, por isso o dandy transforma-se no
verdadeiro herói : “aquele que não tem outra profissão a não ser a da elegância, a
necessidade ardente de se dotar a si mesmo de uma originalidade”. A figura do dandy
indicia pois a transformação da beleza numa proposta de estilo de vida, a obra do
dandy é a sua própria vida, a vida como uma realização de beleza.34
No entanto, interessa-nos aqui abordar a questão da beleza natural no corpo
humano (a beleza física). No que diz respeito a esta, colocamos aqui duas questões que
consideramos fundamentais:
1)– A beleza do corpo confere ao Homem uma experiência do corpo ?
2)- O corpo confere ao Homem uma experiência de beleza ?
Como resposta à primeira questão, consideramos que é importante salientar o
seguinte :
a)– Tal como a beleza da arte não esgota o fenómeno artístico, também a
beleza do corpo não esgota a experiência e a essência do corpo, pois a beleza do
corpo, comparada com a da arte, vai desaparecendo e morre, enquanto que a
beleza numa obra de arte não morre, sucedendo antes o contrário: uma obra
clássica na verdadeira aceção do termo (enquanto obra consagrada) é algo que o
tempo não faz morrer, mas vivifica e eterniza.
b)- Há corpos feios, não no sentido duma experiência subjetiva da fealdade, na
34
Charles de Baudelaire, O pintor da vida moderna, Lisboa, Ed. Vega, 1993
medida em que algumas pessoas os poderão considerar mais feios, e outras menos feios,
mas no sentido real do termo, dado que há corpos realmente defeituosos, disformes,
originariamente feios, devido a deformações à nascença, ou que se tornaram feios,
devido a problemas de saúde, a mutilações, a queimaduras graves, a acidentes
rodoviários, etc.
c)- Se considerar-se a experiência da beleza como experiência de prazer, e por
seu turno como uma experiência do corpo, não se deve esquecer porém que também a
experiência da dor e do desprazer é uma experiência do corpo, e certamente mais
intensa, pois o que é normal no corpo é estar bem, sem dor, sem desprazer. É sobretudo
na experiência da dor e do desprazer corporal, dado o seu caráter excecional, que o ser
humano desperta para a realidade do seu corpo.
Em relação à segunda questão (se o corpo confere ao Homem uma experiência
da beleza), é pelos sentidos, principalmente pela visão, que captamos a beleza, mas os
mesmos não bastam, sendo resultante do livre jogo das faculdades da imaginação e do
entendimento, conforme sublinha Kant, na sua Crítica da faculdade de julgar, pois
afinal também os animais são dotados de visão e não têm experiência da Beleza.
Todavia, enquanto que através do seu próprio corpo, no sentido físico, a pessoa
não tem experiência da beleza como algo que se contempla atrativamente, através do
corpo de outra pessoa pode desfrutar de uma experiência de beleza. Narciso, a figura
mitológica que se mirou nas águas de um lago e se apaixonou por si próprio, é apenas
um mito, e o belo captado na própria pessoa, sem a intervenção de um outro corpo que
não o seu, é uma impossibilidade. Pretendemos com isto dizer que não nos sentimos
atraídos fisicamente pelo nosso próprio corpo (apesar de outros indivíduos o acharem
belo), nem nos desejamos fisicamente a nós mesmos, sentimo-nos atraído pelo corpo
humano, e desejamo-lo, mas o de outra pessoa. É claro que uma pessoa pode ter a
noção de que o seu corpo é alto ou baixo, musculado ou não, jovem ou velho, e até de
que é belo através das muitas pessoas em seu redor, que lho dizem. Mas aqui referimo-
nos à atração física, e que faz com que se diga que um corpo é belo. É esta aliás a
grande diferença em relação à beleza artística, pois embora ambas proporcionem prazer,
é apenas na beleza física que existe atração: sentimo-nos atraídos fisicamente por um
rosto, ou por um corpo, mas não nos sentimos atraídos fisicamente por um poema ou
por um quadro. A beleza física suscita desejo, apetece tocá-la, desfrutá-la, saboreá-la.
Sentimos prazer num poema, mas não sentimos desejo pelo poema, sentimos prazer
num quadro, mas não sentimos desejo pelo quadro.
A beleza física tem um papel importante nas relações entre as pessoas, e
conduz à experiência máxima das relações humanas: a paixão amorosa. Conforme
afirmava Stendhal, a propósito do amor, “a beleza não é senão a promessa da
felicidade”.35 É certo que conduz à experiência não ligada apenas à paixão amorosa,
mas também à sexualidade, mas em qualquer dos casos (amor, sexualidade, ou ambos
juntos), a beleza física desempenha um papel importante, e para muitas pessoas ela é
fundamental. A beleza do corpo humano move intensamente as atitudes, faz lutar, ferir,
e até morrer por ela, neste caso quando alguém sofre muito fisicamente e
psicologicamente, e que pode levar a grande padecimento psico-somático, a suicídios,
etc., (de tal forma que podemos dizer que se morre por amor porque se morre por
beleza). Por outro lado, como é sabido, muitas vidas destroçadas e tiradas são causadas
pelo ciúme, pela vingança, pelo desejo possessivo associada à beleza física e à disputa
por ela (de que um dos paradigmas culturais mais célebres é a disputa da beleza de
Helena de Tróia, que segundo a mitologia grega deu origem à Guerra de Tróia). Os
corpos belos dão prazer, mas por outro lado inquietam, desassossegam, não nos deixam
tranquilos, pois despertam no ser humano o desejo de posse desses mesmos corpos.
Uma obra de arte muito bela, também pode despertar o desejo de posse, mas é uma
posse do ponto de vista de um colecionador de arte, ou uma posse do ponto de vista
financeiro. Não nos envolvemos com a obra de arte como seres artísticos (não somos
obras de arte), mas envolvemo-nos com os corpo belos enquanto seres corpóreos que
somos. Sentimo-nos por vezes pequenos e esmagados perante a beleza de grandes
paisagens, de um vulcão, de uma tempestade, etc., mas também perante a grande beleza
de determinados corpos. Não queremos a paisagem, não queremos o pôr do sol, mas
queremos um corpo, pelo qual sentimos admiração. Por outro lado, não sentimos
vontade de sermos uma determinada paisagem, ou um pôr do sol, apesar de serem belos,
mas podemos sentir vontade, e até ciúme, de não sermos um determinado corpo que é
muito belo (o mito grego do Julgamento de Páris expressa essa ideia, pois foram postas
a concurso quem seria a mulher mais bela, o que provocou o ciúme de quem não
ganhou o concurso. O mesmo pode ser suceder nos concursos de beleza dos tempos de
hoje.
Além do seu papel no amor e na sexualidade, a beleza física tem também
portanto um papel importante nas relações sociais quotidianas, influenciando muitas
decisões (por vezes indireta e inconscientemente), como por exemplo no acesso a um
35
STENDHAL, Do amor, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2009, cap. 17, p. 68.
posto de trabalho, e portanto em termos económicos, fornecendo neste caso mais
qualidade de vida a quem tem beleza física. Daniel Hamermesh, e Jason Abrevaya,
analisaram os dados de cinco grandes pesquisas realizadas entre 1971 e 2009, nos
Estados Unidos, no Canadá, na Alemanha, e na Grã Bretanha, e concluíram,
através dos seus trabalhos académicos, que as pessoas consideradas mais bonitas
são geralmente mais felizes economicamente e mais bem sucedidas.36
Portanto, a beleza natural do ser humano, isto é, a beleza física enquanto
resultado de uma criação biológica, aleatória e espontânea, faz com que a Natureza
cometa fortes desigualdades entre os seres humanos, pois a uns dotou de beleza física e
a outros não, e a uns dotou de grande beleza, e outros de escassa beleza. A beleza física
no ser humano é algo que resulta dos acasos da Natureza, originando um dos melhores
exemplos da irracionalidade do agir humano, dado que os seres humanos dão grande
importância a uma mera casualidade, e se tornam cúmplices de uma desigualdade
inferiorizante entre os seres humanos, cometida pela Natureza.
Apesar da subjetividade da beleza, é necessário reconhecer a relação da
experiência da beleza física com a experiência da beleza em geral, que para alguns
autores está ligada à própria génese da noção de belo. Segundo Romano Marques, “a
própria noção de belo nasce, ainda antes de se relacionar com a problemática dos
fenómenos artísticos, da experiência de uma beleza substancialmente física e visível.
Assim, muitas vezes foi relembrado nos manuais de história da filosofia e de estética da
Antiguidade, que o uso do termo Kalós aparece inicialmente, nos poemas homéricos,
para indicar apenas uma beleza física”.37
A experiência da beleza física está geralmente associada à experiência da
juventude. Se por um lado a juventude é particularmente sensível à beleza física, por
outro lado é importante referir que a beleza física existe em maior intensidade no corpo
humano quando é jovem, comparado com o corpo das pessoas que já não são jovens.
Todavia, importa também referir que pode haver juventude num corpo e não haver
beleza física propriamente dita, por conseguinte o corpo jovem e o corpo belo não estão
necessariamente associados.

36
Daniel S. Hamermesh, e Jason Abrevaya, “Beauty is the Promise of the Hapiness ?”, in European
Economic Review, vol. 64,, (2013), Ed. Elsevier, pp. 351-368. A este propósito, pode também ver-se a
seguinte obra de Daniel Hamermesh : Beauty Pays. Why attractive people are more successful,
Princeton, Ed. Princeton University Press, 2013.

37
R.M., “Belo/Feio”, Enciclopédia Einaudi, vol. 2 , Lisboa, Ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda,
1984,p. 37.
Na beleza do ser humano, ligada à aparência da pessoa, há diversas espécies : a
graciosidade das crianças, o seu encanto, e que não é a beleza física no sentido comum
do termo. Existe ainda o charme de algumas pessoas, que também não é propriamente
beleza física, no sentido comum do termo, mas sim um determinado estilo, uma
expressão, a sua forma de andar, de olhar, etc. Importa aqui salientar que o charme não
é um mero resultado físico como na beleza do corpo por si mesmo, mas que é também,
devido a determinadas maneiras da pessoa, um resultado do seu ambiente cultural e da
educação recebida.
Ainda distinto da beleza física no sentido comum do termo, existe também
aquilo que podemos denominar como a aura ou o magnetismo de determinadas pessoas,
aquelas que parecem clarear o ambiente só com a sua presença e que atraem outras
pessoas, não no sentido propriamente físico. Pode ser um rosto ao qual falta
proporção, simetria, mas que encanta, pode ser um rosto que não tem feições
corretas, os seus olhos não serem rasgados, nem os seus lábios serem encarnados
ou bem desenhados, nem a fronte ampla, nem o corpo delicado, mas que tem um
não sei quê que tanto atrai, em certas pessoas que têm uma atmosfera por vezes
magnética, como os astros. Trata-se de uma atmosfera com uma irradiação vital,
subtilíssima, imponderável, e que a Ciência não define. O que há no mais fundo
nessa individualidade, a essência das suas energias, constitui a característica dessa
irradiação, produzindo efeitos que só por este facto se explicam, tratando-se de pessoas
que são como um astro minúsculo, que contém em si como que um reflexo do sistema
planetário.
Há mesmo determinadas pessoas de idade, que à medida que vão envelhecendo,
se vão tornando belas, com uma aparência física atrativa, embora não seja no sentido
vulgar da beleza física. “Joseph Murphy conta que, certa vez, quando foi proferir uma
palestra em Bombaim, na Índia, apresentaram-lhe um homem que tinha cento e dez
anos de idade. E disse Murphy : Possuía o rosto mais belo que já vi em toda a minha
vida. Parecia transfigurado pela radiação de uma luz interior. Havia uma beleza
extraordinária em seus olhos, indicando que envelhecera com alegria e que as luzes da
sua mente não se haviam obscurecido”.38
Portanto, além da diferença da aplicação do conceito de beleza em cada uma das
diversas áreas que aqui analisámos, como por exemplo na Arte (para os diversos tipos
38
Lauro Trevisan, O Poder Infinito da sua Mente, Lisboa, Ed. Dinalivro,1989.
de arte, os diversos estilos, as correntes artísticas, etc.), ou na Natureza (para as
paisagens, os animais, os acontecimentos como o pôr do sol, etc.), também no corpo
humano atribui-se o conceito de beleza a coisas muito diferentes: ao corpo trajado e
adornado, ao corpo do ponto de vista físico, à graciosidade das crianças, ao charme de
alguns indivíduos, ao magnetismo de determinadas pessoas, ao encanto de certos idosos,
etc. A tudo isso se aplica a palavra beleza, uma aplicação portanto diversificada, por
vezes inapropriada e incongruente, e com consequências e implicações muito diversas
entre si, conforme fomos mostrando ao longo deste artigo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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- IDEM, Poética, Lisboa, Ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984
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- COOPER, David E., “Beautiful People, Beautiful Things”, in British Journal
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