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Diário do Belo

Jaime Monsanto

Praça da alimentação Via-Catarina

Uma jovem estudante está sentada à


mesa com os colegas à conversa. Tem
uns olhos grandes sempre muito abertos
e está o tempo todo a olhar em volta
enquanto conversa. Regista quem passa
perto e longe. É algo que faz
inconscientemente.

No outro lado da praça, um homem com


os seus 30 e muitos anos, lembra um
árabe gordinho e calvo, está junto ao
corrimão da varanda que dá vista para o
piso abaixo da praça de alimentação.
Está absorto nos seus pensamentos. A
determinada altura aproxima-se do
corrimão e, distraidamente, coloca o
rosto no corrimão, lembra uma criança
com o rosto encostado numa alcova. De
repente, percebe que está em público e
tenta sair airoso daquela situação.

Rua Santos Pousada

No cruzamento da rua Carlos Malheiro


Dias e a rua Santos Pousada, à esquerda
de quem desce, há um pequeno parque
de estacionamento, quando virava,
seguia no meu carro, reparei num jovem
negro vestido com um facto cerimonial
azul caneta muito vivo e longa capa
branca. Olhava num determinado sentido
e parecia estar em oração. Tudo naquele
quadro me estimula. O contraste de cor,
com o ambiente cinzento do parque e da
cidade do Porto. A roupa que vestia, com
um visual claramente afro. A energia
calma e abstraída por completo de toda a
envolvência. Esta capacidade de, num
ambiente inóspito, criar um mundo só
seu em que estava mergulhado e que,
não fosse a minha ignorância no que
respeita à sua cultura e imaginário, seria,
quem sabe, quase palpável, dada a sua
concentração e expressão corporal.

Sandra Salomé

A Sandra quando está envolvida com a


direção de atores e encenação, muitas
vezes, agarra o rabo para se concentrar
e encontrar argumentos.

Aula Daniel Pinheiro


Durante a aula do Daniel, a parede onde
estava a projetar a imagem tinha restos de
fita cola colados e que ficaram esquecidos
de uma apresentação feita antes. A forma
como mexe na imagem chamou-me à
atenção. Altera a própria imagem, mas o
que me agradou foi o facto de não ser
obvio. Havia ali um elemento, pouco óbvio,
que perturbava a imagem, que inicialmente
parecia fazer parte até da imagem.

Aula Claire

Carolina Gomes está em casa a tentar


acompanhar e participar na aula e a
Claire a passar-se porque não consegue
seguir com a aula e sente que está a ser
monopolizada pela falha técnica. Lindo.

Fachadas de casas surpreendentes

Uma casa numa rua de ilha no Porto que


tem um conjunto lindíssimo de
marionetes e fantoches na fachada.

Acontecimento em cena

A capacidade de criar um momento


cénico forte com uso dos vários
elementos em palco, som, corpo, luz. (ex:
apresentação do Pedro com o cravo na
mão num ambiente de perda por morte e
a música de 25 de Abril que põe em
causa o positivismo a respeito da
Sandra Salomé
revolução).
A Sandra quando está envolvida com a
direção de atores e encenação, muitas
vezes, agarra o rabo para se concentrar e
encontrar argumentos.

“Os sólidos que estão a ser


lançados no cadinho e os que
Zygmunt Bauman e a Modernidade Líquida estão derretendo neste
momento, o momento da
modernidade fluída, são os
elos que entrelaçam as
escolhas individuais em
projetos e ações coletivas – os
padrões de comunicação e
coordenação entre as
políticas de vida conduzidas
individualmente, de um
lado, e as ações políticas de
coletividades humanas, por
outro.”

“Nós somos responsáveis pelo outro, estando atento a isto ou não, desejando ou não, torcendo positivamente ou indo contra, pela simples
razão de que, em nosso mundo globalizado, tudo o que fazemos (ou deixamos de fazer) tem impacto na vida de todo mundo e tudo o que
as pessoas fazem (ou se privam de fazer) acaba afetando nossas vidas.”

-- Zygmunt Bauman, frases em Modernidade Líquida.

Escolhi debruçar-me sobre a Modernidade Líquida de Bauman porque, numa perspetiva um pouco mesquinha e peço perdão por isso, ao ler
sobre a sociedade descrita por Bauman me lembra de algo que, em tom de brincadeira, por vezes digo quando falo com colegas mais novos e
que vejo refletida na análise deste autor. Esta questão do individualismo ter tomado conta da sociedade e as ligações socias estarem em clara
dissolução. Muitas vezes lembro que nos 80’s, apesar de uma pop desenfreada e superficial em muitos casos, havia outros exemplos
absolutamente contraditórios e que se prolongam, até mesmo, nos 90’s com o exemplo mais flagrante dos concertos Live Aid, anti- apartheid,
entre outros exemplos. Lembro como este sentido de comunidade e identidade política e social se revia até no consumismo; na altura era
frequente o boicote na compra de uma marca de sapatilhas porque eram feitas na china em contexto de exploração do trabalho e mão de obra
infantil e que levou até ao envolvimento das Nações Unidas. Os U2 construíram a sua carreira com base numa ideia de banda reivindicativa, -
Sunday Bloody Sunday é disso um exemplo, - muito ativos no movimento anti-apartheid, mais do que eles Bob Geldof. Isto para dizer que um
sentido político e social era até um produto vendável. Vivíamos ainda um pouco esta ideia social das relações interpessoais. Sentia-se haver
uma certa “razão” para os acontecimentos, uma lógica assente em princípios morais que visavam um sentido de coesão. Percebo porque
assinala a queda do muro de Berlin como um princípio de uma transformação, afinal, marcava de forma física, material a separação do mundo,
pelo menos o ocidental, em duas grandes fações, o comunismo parecia perder o braço de ferro com o capitalismo.

Esta ideia que explora também da dicotomia de espaço e tempo também é particularmente interessante e, peço desculpa se escolho um
caminho redutor desta ideia defendida por Bauman, consigo até identificar numa arte que me é particularmente cara algumas referências - o
cinema.

No filme o Bom Rebelde (Good Will Hunting) lembro-me de uma cena magnífica com Robin Williams e Matt Damon (Good Will Hunting | 'Your
Move Chief' (HD) - Matt Damon, Robin Williams | MIRAMAX)

📷
em que a personagem do psicólogo (Robin) depois de ter sido ridicularizado pelo jovem génio, interpretado por Matt, o senta num banco de
jardim para lhe explicar, no fundo, a volatilidade do seu conhecimento porque vazio de experiência e em que a ideia do espaço e sua
materialidade é absolutamente essencial para a experimentação e perceção de algo como uma obra de arte na Capela Sistina. O psicólogo diz
que o jovem se lhe falasse de Miguel Ângelo ele saberia discorrer sobre a sua obra, a sua conduta sexual, mas que nunca saberia o que era
sentar-se na capela olhar as pinturas e sentir-lhe o cheiro. Acaba mesmo por falar de outros exemplos, não saber o que é a guerra porque
nunca experimentou a sensação de impotência quando um colega lhe está a morrer nos braços e o olha com esperança de que o salve, ou ter
na sua vida alguém especial com quem se sonhou uma vida inteira e a perder para o câncro. Depois termina com uma questão bem cara à
filosofia, pedindo-lhe que ele se revele na sua verdadeira essência.

Mas não querendo desvirtuar o conceito proposto por Bauman, não se trata de uma questão meramente existencialista, porque a personagem
até o questiona sobre um conjunto de ações suas, mas que não acredita que o definam na totalidade, refutando que não podemos julgar
alguém baseados apenas numa ação sua, ou mesmo uma manifestação artística sua, no caso, um quadro que o psicólogo desenhou num
momento negro da sua vida. Na verdade, esta referência da Capela Sistina, apenas a trago, porque é rica no que respeita a uma ideia de
relacionamento, de estabelecimento de “ligações sólidas”, que me parece ser uma das análises levadas a cabo pelo filósofo. Na verdade, este
espaço encerra uma ideia de sociedade derretida pela sociedade líquida, na qual um espaço religioso representa muito do que o Bauman acha
que foi posto em causa pela modernidade e levado ao extremo pela modernidade líquida, isto porque defende que não deixamos a
modernidade e substituímos por uma pós-modernidade, apenas evoluímos para uma nova forma de modernidade, - a líquida. Na sua análise a
libertação do individuo do confinamento ao seu espaço, ou seja, nascido e vivido na mesma geografia, com a globalização, o individuo liberta-
se dessa obrigatoriedade e a ideia de raízes referências de identidade, que, se não me esquecer, falaremos mais à frente, sofre um abalo.
Some-se a isto a evolução tecnológica que nos lançou num ritmo vertiginoso de transformações rápidas sem “tempo”, e aqui volto à dicotomia
espaço-tempo anteriormente mencionada, para serem devidamente assimiladas cria condições, na sua visão, à volatilidade da sociedade na
modernidade líquida. As relações fugazes, a falta de uma ideia de projeto de vida, causadora, esta sim uma questão existencialista, de
ansiedade por falta de garantias no geral.

Afinal a Capela Sistina, sendo uma daquelas referências de solidez posta em causa desde a revolução francesa, substituída por outro ideal, na
visão de Bauman, igualmente sólido da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, personifica esta ideia de espaço e constância na sua época, uma
sociedade de classes, com mobilidade quase inexistente, com papeis bem definidos dentro do seu modelo de sociedade e que eram
perpetuados em hábitos regulares de oração que reuniam as pessoas e lhes conferiam um sentido de massa muito específico e constante ao
longo de séculos. Tudo o que a sociedade líquida de Bauman não é, nem tem.

Esta ideia de uma sociedade sem conceito de bem comum, um discurso razoável e concertado de uma ideia de sociedade, mas antes um
conjunto de conceitos individualizados que levam os indivíduos a decidir sobre questões importantes de vida por uma perspetiva individualista
que pouco considera a vida em sociedade. As próprias decisões de carreira e relacionamento assemelham-se a decisões de consumo, porque
formatadas por uma ideia capitalista de existência e que lhes coloca à disposição para escolha. Uma sociedade que classifica como vivendo
uma falsa ideia de liberdade porque a sua imaginação e desejos foram domesticados.

Somos livres de circular, vivemos num mundo em constante transformação e não temos outra alternativa que não seja adaptarmo-nos, sob
pena de cairmos do comboio em andamento.

Outra ideia que me seduz na sua tese é esta ideia de identidade que vendermos online. Esta “coisa” dos amigos, de como a quantidade de
amigos nos define como aptos, mais, sociais. Como, a determinada altura, parece que vendemos a nossa identidade online, como produto,
como sermos apelativos é sermos mais sociais. Como essa identidade é grandemente definida por estímulos externos, pelo que é mais
procurado na net. Ou seja, vendemos esta nossa “imagem”, identidade, que, na verdade, é uma ideia que, não construímos, mas que
compramos online porque temos de corresponder a um parâmetro de comportamento. O tiktok é disso um exemplo engraçado, no sentido em
que está massificado o que terá aceitação, mas, mais importante do que tudo o resto, validado através da replicação. O que define o sucesso
de determinado tiktok é a quantidade de vezes que este é replicado por outros, gerando novas visualizações, mas que estão sempre ligadas à
sua origem.

Mas talvez o conceito que mais me chamou à atenção na modernidade líquida, terá sido a do tempo pontilhista. Um tempo fragmentado,
pulverizado numa multiplicidade de instantes. Sem coesão. Aparentemente sem relação com um passado ou futuro imediato. Este efeito de
inconsequência falta de relação lógica sugerido por uma sociedade num ritmo de transformação vertiginoso interessa-me sobremaneira.
Porque, no projeto que estou neste momento a desenvolver e que será o meu projeto final de ano, esta falta de razoabilidade e ligação do
tempo representa um papel importante. O projeto trata o discurso do Chaplin no seu filme O Grande Ditador. O intuito do projeto é relembrar o
holocausto, mas, mais importante, refletir sobre este jogo que o Chaplin fez de reproduzir um discurso de Hitler na sua forma, mas adulterando
por completo o seu conteúdo. Na forma que o pretendo trabalhar o discurso será todo repartido, palavra a palavra, por um dispositivo feito de
sensores espalhados por um espaço cénico. Quando alguém, no caso bailarinos, entram no espaço e acionam os sensores, o dispositivo
cospe uma amálgama de sons lançados pelo dispositivo. De facto, este discurso está de tal forma popularizado e banalizado que, parece ter
perdido sentido e força, razão, aparentemente. Mas os discursos de extrema-direita crescem no mundo, talvez beneficiando de um outro
fenómeno que o Bauman também identifica – retrotopia. Validando uma ideia para a qual o filósofo também alerta. Esta ideia de um retorno ao
sólido. Uma solidez falsa, porque só possível por imposição e negando um princípio básico de liberdade - emancipação, promovendo um
retorno a velhos ideais e vendendo princípios como mercadoria.

Ora, Bauman defende o oposto. Uma sociedade que discrimina e segrega é a definição de uma sociedade com ligações líquidas, porque
destrói vínculos sociais, por falta de ideias sólidas que validam uma conceção de sociedade coesa e sólida.

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