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c -p~
Isabelle - Descartes, durante nosso traba- você grafitou os muros, caricaturando ... Ao primeiro contato com
Descartes, marcamos de
lho de produção da entrevista, percebemos Descartes - Isso nasceu por questões de visitá-I o para apresentar o
e apuramos que o seu contato com a arte se fazer gozação e me vingar dos meus cole- projeto da revista e fazer o
deu muito cedo, não é? Como foi o início des- gas, porque naquele tempo eu participava de convite oficial, levando os
sa relação tão duradoura e produtiva? gang, mas eram gangs maravilhosas. O jovem exemplares mais recentes
da Revista Entrevista.
Descartes - É muito difícil o artista detec- de hoje, ele participa de uma gang - que eu
tar quando foi que a arte se manifestou. Aliás, tenho impressão que é um exército de peque-
parece aquela questão de fenômenos extra- nos assassinos. A nossa gang era para quem
sensoriais. Esse negócio de se manifestar ... soltasse melhor as arraias. Agang da Avenida
Eu digo assim: quando se manifestou em do Imperador (localizada no bairro Centro, em
mim o interesse pela arte, eu realmente não Fortaleza) fabricava arraias de material mais
sei. Mas sempre tive alguns insigths que eu resistente. Já a da Avenida Tristão Gonçal-
posso considerar ligados a uma situação ar- ves (também localizada no bairro Centro, em
tística. Por exemplo, eu me lembro perfeita- Fortaleza) - que era a minha -, eram umas ar-
mente quando nós morávamos na Rua Castro raias mais frágeis. E havia briga por isso. E por
e Silva (localizada no bairro Centro, Fortaleza, outros motivos também: futebol, bola ... E eu
no Ceará, próxima à orla marítima), eu tinha apanhava muito dos outros meninos porque
talvez uns oito anos de idade, não me lembro era muito "mole", magro, era "seco" na épo-
muito bem da época. Lá existia um bar, e nes- ca. Eu sempre queria estar perto dos mais ve-
se bar havia muitas brigas. Nesse tempo as lhos e por conta disso eu "penava" um pouco
garrafas de bebida não eram de plástico, nes- nas mãos deles. E pra me vingar, porque eu
se tempo não existia esse negócio de garrafas não podia bater, eu fazia a caricatura dos pais,
- de plástico pet, eram umas garrafas coloridas das mães (dos meninos). Como já estava des-
- até uma forma mercadológica de mostrar pertando em mim algum interesse erótico, eu
o produto dentro de um vidro bonito. Vidros fazia os pais e as mães fazendo imoralidade,
marrons com várias cores e tons de marrom, como era a palavra da época. "Esse menino
verde, vários tons de verde, azuis, etc. está fazendo imoralidade nas paredes". Hoje,
Então, quando aconteciam as brigas, as a gente tem outra leitura sobre esse "imorali-
garrafas voavam. Espatifavam em cima do dade nas paredes".
calçamento - não era asfalto, era calçamento - Então, eu fazia essas caricaturas, esses
e a topografia desse calçamento formava uma desenhos e por motivo de intriga dizia que
condição prismática. Ele prismatizava aquelas eram meus pais que estavam pedindo, dizia
partículas, aqueles cacos de vidro e eu espe- que era meu pai e minha mãe que mandavam
rava um eventual carro que passasse à noite, fazer. Era aquela coisa de fofoca de calçada
porque havia pouco carro na cidade, e, quan- mesmo. E isso foi muito interessante - hoje
do esse carro passava, era uma festa, pra eu vejo como interessante, mas na época, na
mim. Eu via aquela prismatização, aquele bri- realidade, eu não passei bons momentos por
lho, aquela coisa maravilhosa, que na minha causa desse ímpeto de caricaturizar. Essa ca-
cabeça funcionava como se fosse um espetá- ricatura está presente em tudo que você vê
culo visual fantástico: essa questão do vidro (refere-se a suas obras). Existe uma ironia no
está no meio do calçamento. Eu ficava horas traço, embora seja uma pintura.
e horas olhando e as pessoas me cobravam Mayara - Eu me identifiquei muito com as
uma conduta mental sadia. "Esse menino está coisas da sua infância, porque, particularmen-
ficando doido? O que está acontecendo que te, eu também fiz muito isso: desenhava pai,
ele está olhando formiga de noite?". Não ti- desenhava mãe ... É lógico que eu levei muito
nha formiga. Eu queria ver era a cor, o reflexo, "carão" por causa disso, mas eu fiz amigos Seguimos a pé até a
a prismatização, aquilo tudo. Esse talvez seja e essas caricaturas me trouxeram benefícios casa de Descartes, que
um dos mais remotos momentos que eu me e, ainda que eu não soubesse à época, já era fica bem próxima a UFC.
lembro desse que eu posso chamar primeiro Uma descoberta de uma potencialidade artís- Na chegada, ele já nos es-
perava com as portas da
contato. tica. Para você, esse início, com a caricatura, casa literalmente escanca-
Helena - Depois teve uma fase em que também lhe trouxe benefícios? radas.
DESC
o que seria apenas uma Descartes - Bom, isso é uma conscien- nha infância, quando menino, e eles não que-
conversa para apresenta-
tização que você tem hoje. Talvez você não riam pagar os outros pintores que desenha-
ções, logo se transformou
numa pré-entrevista de tivesse na sua infância, não é? Então, comi- vam bem também, contrataram-me em troca
duas horas. go aconteceu a mesma coisa. Eu passei por de chocolate, em troca de entrar de graça para
isso que você passou e a questão da palavra assistir aos filmes do Tarzan (personagem
artista chegou muito tempo depois, quando criado pelo escritor Edgar Rice Burroughs em
eu já fazia esculturas, quando eu já trabalha- 1912, que, a partir de 1918, é encarnado nos
va fazendo desenhos, porque (em) uma de- cinemas. Na história, Tarzan é um garoto in-
terminada época em Fortaleza, nos cinemas, glês que, após a morte dos pais, é criado por
não existia a tecnologia da impressão como a macacos na África, vivendo como se fosse
gente tem hoje. Não existia o offset (modo de um deles). Eu queria ser Tarzan. Imagine, até
impressão utilizado desde a segunda metade hoje não sou tão grande, ia querer ser Tarzan!
do século XX e que se baseia no processo de (levanta os dois braços e mostra os muques)
impressão indireta. O processo ocorre quan- (risos)
do a tinta é passada em um cilindro gravado Pois bem, eu desenhava com muita facili-
como se fosse uma forma que, por sua vez, dade e com muita rapidez pensando nos cho-
passa no papel. Tem-se, então, a folha im- colates, nos presentes que ia receber, e os ca-
pressa), e os cartazes eram limitados. Quan- ras mais idosos ficavam com raiva do menino
do os filmes vinham nos latões para serem que ia lá desenhar. Eu vivia no meio desses
exibidos no Cine Majestic (primeiro cinema pintores. Eles que eram pintores de liso. A pa-
do grupo Severiano Ribeiro, inaugurado em lavra era essa, o termo técnico pra diferenciar
1917 em Fortaleza. Sofreu dois incêndios e dos pintores de técnica, de cavalete. E como
hoje não mais existe), no Cine Diogo (um dos não existia a palavra "artista" - artista era
últimos cinemas de rua da cidade de Fortale- aquele do cinema, artista era o que matava os
za, o cinema foi inaugurado em 1940 e fecha- índios mexicanos, aquela coisa toda -, e nós
do em 1997. Hoje, é um shopping popular), e éramos pintores de liso, profissionais do pin-
outros mais, não lembro, aquelas pessoas (os cel. No Theatro José de Alencar (inaugurado
funcionários dos cinemas) chamavam pinto- em 1910, o teatro se localiza no bairro Centro
res para ampliarem pequenas fotografias em da cidade de Fortaleza e é ícone cultural do
preto e branco dos atores principais, de uns estado do Ceará) também. Na Semana Santa,
três ou quatro atores principais. E chamavam eu era perito em desenhar Jesus Cristo cruci-
aqueles pintores mais experimentados, os ficado ...
mais idosos para desenharem, por exemplo, Então, passou-se e eu comecei a pintar e já
o Buck Jones (ator estadunidense, nascido vi pessoas ligadas à Sociedade Cearense de
em 1891, conhecido por papéis de caubói em Artes Plásticas (As atividades da Scap tiveram
filmes de faro este. Morreu em 1942), o Roy início em 1944 ligadas diretamente ao Centro
Rogers (famoso cantor e ator estadunidense, Cultural de Belas Artes, primeira instituição
nascido em 1911. Atuou em cerca de cem voltada às artes visuais de Fortaleza, e veio
filmes, além de ter estrelado por 17 anos o a revelar grandes nomes da arte cearense.
programa The Roy Roger Show. Morreu em Uma das características que se destacavam
1998), o Ronald Reagan (ator estadunidense nas atividades da Scap é sua íntima articula-
nascido em 1911, participou de 53 filmes. Foi ção com a Literatura), que era uma associa-
eleito presidente dos Estados Unidos da Amé- ção ligada às artes plásticas que existia em
rica em 1980,sendo reeleito em 1984. Morreu Fortaleza, uma associação interessantíssima e
em 2004 após declarar ter desenvolvido o mal formadora de pintores como o Antônio Ban-
de Alzheimer, doença degenerativa que com- deira (pintor, desenhista e gravador cearen-
promete o cérebro). se nascido em Fortaleza no ano de 1922, foi
Como eu comecei a desenhar bem na mi- um dos percussores da pintura moderna no
Brasil, participou da fundação da Scap e em
1946 ganhou uma bolsa de estudos em Pa-
IIOS artistas eram ris. Lá morreu, após idas e vindas, devido a
--
Eu ndei uma fundição pra mim, para fazer se colapso inspirativo - que eu chamo de um Descartes costumava de-
senhar quintais quando era
meus trabalhos profissionais. Ela estava fun- colapso. Entrei em pânico e chegou ao ponto
menino. Para ele, os quintais
cionando, tinha trabalhadores, aquela coisa de eu viver numa situação psicótica por conta eram uma civilização que
toda. Quando eu resolvi fazer a interpretação dessa tragédia de Canudos. escondiam segredos como
da charqueada e de alguns outros momentos, Aurimar - E o que você procurava contes- os namoros às escondidas
e a vida dos animais. Certo
quando eu esculpia as pessoas com perfei- tar no Euclides?
dia, mostrou seus desenhos
ção, todos os detalhes, ficava uma coisa arti- Descartes - Várias situações que eu acha- para o professor Martins Fi-
ficial demais. va que não estavam certas. São muitas ... A lho, a fim de que ele opinas-
Mayara - Tem algum material que você posição dele em determinadas situações, até se sobre eles.
não usou que gostaria de usar? topográficas, por exemplo. Porque ele era um
Descartes - Não, não ... Porque eu não pro- carioca. Estive também lá em Canudos. Por
curei testar materiais como um artista plástico exemplo, os tipos humanos que ele descreve
faz. O artista plástico é aquela pessoa que se fortes, e não são fortes, são frágeis. Depois,
preocupa com a plástica, com os resultados ele vê que são realmente frágeis, quando
plásticos. Eu quero dar o meu grito. Eu dou o ele vê aquela procissão da sobra humana da
grito com aquilo que eu disponho. guerra na tarde de 1887 (ano em que come-
Voltando para concluir essa parte da escul- çou a Guerra de Canudos), quando ele viu
tura ... Eu, não conformado com a não natu- que aquelas pessoas não eram como prega-
ralidade daqueles cadáveres, daqueles tipos, va a imprensa. "Gigantes da caatinga" não
porque eu furava o corpo, o pescoço ... A de- eram. Eram pessoas magérrimas, famintas.
gola, por exemplo, que foi muito efetuada na- Então, esses momentos foram momentos de
queles tempos em Canudos, eu fazia aquilo nenhum prazer. Aliás, a arte não é prazerosa!
esculpindo. Disse: "Não, eu tenho é que ma- Eu sempre digo que a arte é uma companhei-
tar essas esculturas!". Eu tive um insigth legal ra de cárcere, no cárcere que é meu corpo.
como um todo, que foi pegar um revólver e A arte está dentro como uma companheira
atirar nas esculturas e dar umas "facãozadas" que é com quem eu dialogo. Quer dizer, eu
nas esculturas. Só que eram várias esculturas, não tenho motivo para me alegrar com essa
não era só uma ou duas. E as pessoas: "Olha, companheira que me cobra, que me faz de-
seu Gadelha enlouqueceu, quebrou tudo den- sequilibrar um pouco. É tanto que, quando eu
tro de casa!". Ou seja, pensavam que eu esta- vou ter uma "relação sexual" com essa minha
va quebrando toda a fundição, mas eu estava companheira, que é também uma paixão, o
atirando nas esculturas. Eu sei que eu dei al- orgasmo, é um orgasmo profundamente do-
guns tiros lá. Alguns não, vários tiros. (risos) loroso, que eu tombo como aquela história
Furei as esculturas. Degolei as esculturas! Em da abelha rainha que mata para poder gozar.
cera, todas em cera. E, quando o bronze re- Eu caio e não tenho nenhuma possibilidade
produziu isso, é o que vocês sabem que tem. de me reorganizar. A arte termina vencendo.
É como se o bronze fosse rasgado pelo facão. A minha companheira de cárcere é a grande
Isso no que me consta na história, não é me vencedora. Cada obra é uma derrota minha.
gabando, mas é o único louco que fez isso. É por isso que, quando eu quis me livrar des-
(risos) ses fantasmas "euclidianos" e "descartianos",
Armando - Foram cerca de 30 anos sub- simultaneamente, eu disse: "Pelo amor de
merso em Canudos. Qual a fonte principal de Deus, Pedro Eymar (diretor do Museu de Arte
energia dessa produção? Universitária da UFC desde 1987), fique com
Descartes - A principal fonte, maravilho- esses fantasmas aí porque vão aparecer pro
sa - eu acho - é a esquizofrenia. Eu sou um resto da vida nesse museu se você tiver o ca-
esquizofrênico, apesar de não ser atestado, rinho de guardar". Ele sempre foi muito bon-
mas o esquizofrênico autêntico é aquele que doso e caridoso em aceitar esses fantasmas
se atesta. Achei por bem me atestar esqui- que estão ocupando aqui o museu.
zofrênico porque só quem faz essas coisas é Gabriela - Quando foi que você sentiu que
quem tem o poder da esquizofrenia. Então, o se havia completado, que não havia mais o
que me alimentou foi essa questão da minha que ser feito em relação a Canudos?
própria psicologia, de querer vivenciar isso, Descartes - Foi no aproveitamento de uma
de contestar Euclides. Imagina, uma pessoa data. Eu aproveitei a data da comemoração
medíocre como eu querer contestar a idéia do centenário de Canudos (em 1997). "Pronto
Martins Filho, então
de um gênio como Euclides da Cunha! Mas é nessa época que eu vou me livrar". Eu pa- Reitor da UFC, comentou:
aconteceu, eu não vou negar isso. Eu me rei justamente nessa época porque eu queria "Olhe, continue a fazer
trancava, dizia: "Euclides, não é isso!". Aí ia viver um pouco mais fora desse delírio - por- seus desenhos de quintal.
De quintal. Porque seus
lá pra tela, pra escultura, lia, contestava. Isso que é realmente um delírio. Só qere isso era
quintais vão ganhar o mun-
é um ato de uma ... Não é demência, mas é uma das minhas rotas, das minhas estradas. do". Para Descartes, ali es-
um ato de uma "superrnente". "superrnente" Sendo que o artista é uma pessoa que cami- tava uma filosofia de vida:
no sentido de super-edificação, de entrar nes- nha em várias estradas, que segue no mesmo a valorização do local.
I
"No Jangurussu nin- não tinham, eu achei que eles tinham se su- Canudos. Você avalia que ter essa vivência no
guém adoece, ou se está
blimado, eles eram seres que estavam mais lugar é fundamental?
vivo ou se está morto". Foi
com essa frase que Des- próximos de Deus do que eu, do que qual- Descartes - É fundamental, porque na mi-
cartes referenciou a sabe- quer um de nós. Eu era apenas um especta- nha concepção da arte, a arte não pode ser
doria dos catadores. dor daquilo tudo. Essas pessoas me ensina- inventada: arte inventada é "invencionice",
ram muita coisa, o pouco de humildade que A arte tem de ser vivenciada, mas antes da
eu tenho eu aprendi lá no Jangurussu. Então, vivência da arte, ela tem de que acontecer
moralmente, foi um grande laboratório para numa região muito remota do espírito, que eu
mim, até mais que pictórico. não sei explicar, não me sinto com essa com-
Isabelle - Que situações mais inquietavam petência. Mas a arte pode ser o resultado de
você no Jangurussu? uma necessidade superior à própria condição
Descartes - São muitas, por exemplo, da vida. Ela se impõe com esse poder. É por
quando eu vi um trator compactar uma crian- isso que ela não pode ser inventada, ela nas-
ça. Eu estava mais ou menos próximo, esta- ce, ela explode, ela se pari. A arte é um "auto-
va chovendo, eu estava conversando com as parto", eu apenas sou um mero coadjuvante,
pessoas esperando que a chuva passasse e o um mero artesão disso.
trator escorregou no chorume, naquela lama Helena - No entanto, a sua obra pretende
podre, preta, e o motorista fez todo o possível trazer uma discussão. Não é uma obra ape-
para não passar por cima das pessoas (o cho- nas para ser contemplada; é para gerar uma
rume é uma substância formada por diversos inquietação. Tanto que suas exposições tam-
elementos contidos no lixo, uma espécie de bém provocaram discussões na sociedade de
lama que escorre, penetra no solo, contami- Fortaleza.
na o lençol freático e, empurrado pelas águas Descartes - É, a arte é para fazer pensar,
das chuvas, transborda para os mananciais não é para embelezar. Embelezar é outra coi-
próximos. Mesmo com a desativação do li- sa, decoração, etc. Agora, eu me inquietava
xão, essa substância extremamente tóxica muito no Jangurussu com essa situação de
pode continuar a ser produzida durante anos). abandono, não obstante existirem algumas
Grande parte escapou porque pulou para um ONG's trabalhando lá. Quer dizer, desde essa
lado e para o outro, mas tinha uma criança época que as ONG's eram perversas. Porque
acocorada e a mãe estava com os quatro fi- a ONG ... O que é? Três pessoas em uma situ-
lhos. Ela tirou os três filhos, mas não deu ação montam a ONG para fazer alguma coi-
tempo de puxar o outro. O trator compactou sa que justifique um benefício social. Pronto,
e ficou só aquela poça vermelha em cima do essa é a filosofia de qualquer ONG. Mas só
lixo. Isso foi um choque para mim, fiquei meio que as ONG's que estavam lá talvez eram
tonto, minha pressão subiu, aquela coisa toda. mais instrumentos de autopromoção ou de
O motorista também ficou muito apreensivo, fazer qualquer coisa que não se sentia, não
porque ele não fez porque quis. Eu disse: "Mi- gerava efeito lá dentro da comunidade. A co-
nha senhora, pelo amor de Deus, seu filho!". munidade detestava essas ONG's, que tinham
Aí "õ" lição moral e até mística que eu rece- gente da França ... Ora, a pessoa vem da Fran-
bi daquela mulher quando ela disse assim: ça para se promover? Fazer mestrado, douto-
"Olhe, não foi uma criança que morreu, foi um rado, e não deixava uma moeda lá?! Eu vi um
anjo que chegou ao céu.". Eu achei muito bo- francês fazendo doutorado em Sociologia lá e
nito essa frase, para mim é uma frase paradig- o cara, como todo francês ... Aqui tem algum
ma da humildade de quem vive uma situação francês? (risos) A miserabilidade histórica do
social e política como a dessas pessoas. francês estava presente nesse homem que
Mirelle - Essas situações você só pôde re- estava fazendo doutorado, né? E o cara não
tratar porque viveu tudo aquilo ali, como em soltou nem uma grana pras pessoas que ele
entrevistava.
IIEles (catadores) Tinham essas coisas desagradáveis que
ocorriam lá. Eu vi a mentira do político al-
eram seres que gumas vezes, porque o Jangurussu durou
muitos anos, então os políticos chegavam
estavam mais lá prometendo mundos e fundos a pessoas
ingênuas, que acreditam. E os caras, depois
De! Para conhecer mais so-
próximos de Deus que se elegiam, não pisavam mais lá, nem
tór iam mais lá porque não suportavam o mau
'a I
bre o Descartes músico,
a produção entrevistou o do que eu, do que cheiro. Eu me acostumei. Eu peguei inflama-
o também compositor, Pin-
ção nos brônquios porque não tinha defesa,
lixe
rerr
go de Fortaleza. A entre-
vista aconteceu na sede
qualquer um de né? "Burquesão". chegando lá me ato lei e
Associação
lar.
Maracatu So-
nós" acabou. Peguei doenças, minhas unhas dos
pés caíram todas, infecções, feridas, mas tudo
A pessoa não vê o
11
ciando com as éguas da antiga companhia de
energia.
trouxe canções suficien- Isso é legal. Interessante, né? o rosto desse homem. Eu queria olhar e mar-
tes para preencher vários
Leonardo - Você como artista, como ava- car no papel, anotar em traços aquilo ali.
CD's. O número cresceu
tanto que logo a pesquisa lia essa mudança da prostituição romântica Aurimar - Descartes, quanto a elas, você
musical foi encerrada. para uma coisa meio de vazio, como de não- estabeleceu laços afetivos com alguma, se
humanos? envolveu?
Descartes - Eu cheguei de viagem. Eu sou Descartes - Não, não. Muito pouco, por-
louco por água de coco e por peixe também. que eu me senti, a princípio, como eu falei,
Do aeroporto eu saí para a Praia de Iracema. um turista, mas depois, imediatamente, apa-
Então, eu desci do táxi. Quando eu tava des- gou de mim essa idéia, e me interessou muito
cendo do táxi, tirando as minhas bagagens, saber a razão, o porquê de aquelas crianças
eu ainda estava com roupa de frio, porque estarem naquela situação, o que levava essas
eu vinha da França, aí eu fui cercado por um, crianças. Eu passei a acompanhar algumas,
dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, mais conversei muito. Elas são muito fechadas na-
ou menos esse tanto de crianças (contando quilo, não querem dizer. Eu descobri que exis-
nos dedos) falando em Francês, pequenas fra- te uma rede poderosa composta por taxistas,
ses, Inglês, Espanhol e Italiano. Eu notei muito moto-taxistas, pessoas ligadas a pequenos
mais o Francês e o Italiano. À noite (falavam), hotéis, taxistas do aeroporto, enfim, aquela
"Bonjour, monsier" (bom dia, senhor) comi- coisa toda. (Descartes contou aos entrevista-
go. "Por que você está falando em francês dores que fez uma ampla pesquisa de campo,
comigo?" (Descartes pergunta às crianças). investigando e fotografando como funcionava
"Ai, o senhor não é turista não?", porque eu a rede de prostituição. O artista contratou um
estava com roupa de turista. Eu fui cantado moto-taxista para levá-Io aos lugares freqüen-
por um grupo de crianças, meninas e meni- tados pelos turistas na periferia da cidade).
nos. Eu tomei aquele choque. "Não, é porque Isabelle - Como é que ficavam seus sen-
a gente tá fazendo programa aqui". Eu tinha timentos ao ver as crianças fazendo progra-
passado um período fora. Eu disse "Progra- ma?
ma? Como é esse programa?". "Não, a gente Descartes - Ah! Eu tenho netos. Eu ficava
vai transar e o senhor dá qualquer coisa aqui. assim ... Eu me sentia mal. É a parte dolorosa
Dez reais, quinze reais, qualquer coisa serve". da arte. Tudo isso faz parte da arte.
Eu pensei: "Vamos conversar". "Quem jantou Helena - A arte é uma forma de denunciar •
aqui?" "Ninguém" (respondem as crianças). certas mazelas, mas acho que ainda fica aque-
"Bora jantar". Eu pedi o jantar para todo mun- le sentimento de impotência.
do, Coca-cola, essas coisas todas. Elas fica- Descartes - A impotência é total. A impo-
ram muito satisfeitas e passaram a conversar tência é total! Como eu me senti muito impo-
comigo. Mas conversando comigo e obser- tente. O que eu podia fazer? Quem sou? Se as
vando tudo, mas com uma apreensão muito pessoas que têm poder para isso, foram elei-
grande em quem passava. Quando passavam tas para isso, não fazem porque transformam
dois turistas, uma corria e ia falar com o tu- isso numa plataforma política. Eu me senti
rista. Ou seja, quem assedia não é o turista. muito frágil para tomar alguma providência.
O turista coitado, ele compra sua passagem Mas eu sempre compreendi que a arte, a ima-
e vem se divertir no Brasil, né? Quem assedia gem parada, desenhada tem um poder muito
são as meninas e elas assediam por um con- grande de convencimento. Então, fiz essa ex-
dicionamento familiar. posição e, por essa exposição, gerou-se toda
Helena - Mas também o turista vem achan- uma discussão em torno da prostituição. Foi a
do que aqui vai ter essa facilidade. primeira pessoa que lançou a público a tragé-
Descartes - Essa facilidade também, né? dia dessas crianças ... Foi esse trabalho que eu
Tem os dois lados que pesam. Então, eu me chamei de Iracemas, Morenos e Coca-colas.
interessei bem em desenhar essas meninas. Walber - Por que o nome Iracemas, More-
Só que não parei mais. Entrei em outro surto. nos e Coca-colas?
Surtei e passei a desenhar tudo. Só que eu Descartes - É uma associação, um con-
Na pré-entrevista, Des- desenhava turista, pedia para o turista posar junto de associação. Iracema é uma associa-
cartes falou com entusias- para mim. ção com a Iracema do Alencar (Refere-se ao
mo sobre a comercializa- Mayara - E eles topavam? escritor cearense José de Alencar, autor de
ção do CD que, segundo
Descartes - Topavam sim. Mas eu queria clássicos como Iracema e O guarani), porque
o artista, será distribuído
pelos camelôs do Beco da pegar o arquétipo psicológico para trazer para a Iracema foi estuprada por um turista que se
Poeira e demais "piratea- o ateliê e fazer aquilo ali que você viu. Não era chamava Martins Soares Moreno. Coca-colas
dores". fazer a pintura. porque na década de 1940, no apogeu da Se-
Griô é o nome dado aos Martins (Aldemir Martins, artista plástico ao ponto da pessoa se manter de arte aqui no
mestres africanos respon- Brasil.
nasceu em Ingazeiras, no Vale do Cariri, no
sáveis por contar a história
de sua gente para as novas
Ceará, em 1922. A sua vasta obra é reconhe- Helena - O Descartes músico é outra pes-
gerações. E era isso que cida pela qualidade técnica e por interpretar soa?
ele faria ali. o "ser" brasileiro) também morreu. Será que Descartes - O meu lado músico é mais pela
eu vou morrer? Eu tava com um câncer muito questão da matriz africana, porque eu sou ne-
forte. "Eu vou morrer mesmo. É por isso que gro, vivo como negro, eu me acho negro, já
vão botar essa sala para mim. Eu vou morrer que tem muito negro que não se acha negro,
de qualquer maneira. Eu sou um pintor amigo eu me acho! Eu me envolvo muito com as
da turma todinha e de qualquer maneira vão questões das religiões de matriz. Religiões de
botar". Mas, quando eu vi a sala inaugurada, matriz africana são o Candomblé e a Umban-
é como se eu entrasse para ver uma expo- da. Eu faço algumas canções, alguns pontos
sição de outra pessoa. Isso é verdade o que - são chamados pontos os cânticos - para
eu estou dizendo! Um sentimento, uma coisa essas casas e faço também pros Egexas, pros
que não tinha nenhum vínculo com as peças. Afoxés, que é o Candomblé profano. O Afo-
Até achei umas peças bonitas. Já pensou? xé é aquela música que pode ser feita fora do
(risos) "Olha que legal!" É realmente como ritual da casa do Candomblé, pode sair pelas
se estivesse visitando uma exposição e que ruas tocando, as pessoas brincando, aquele
essa pessoa homenageada fosse uma outra carnaval. Eu componho pra isso. Eu também
pessoa. Isso faz parte da minha esquizofrenia. componho principalmente para os maracatus
Deve fazer, né? Porque você receber uma ho- de Fortaleza. Faço parte do maracatu, sempre
menagem e sentir que essa homenagem não com a música rítmica, com a pulsação forte.
é para mim, mas para um outro Descartes. É A temática também sempre dentro da política
um sentimento que eu organizo assim. do meio. Todas as temáticas do maracatu são
Gabriela - Você já tem muitas décadas de sobre as questões dos negros aqui no Brasil.
vida, afinal são 65 anos. Como é que foi até Helena - Você participou de quase todos
hoje viver de arte, da pintura, de música, de os maracatus de Fortaleza, muitas vezes in-
escultura? fluenciando o ritmo desses grupos.
Descartes - Eu não sei dizer como é que Descartes - O maracatu não é um ritmo,
eu escapei. O comércio de arte é uma menti- é uma comunidade, pode ser um quilombo,
ra. No Brasil dizer que existe comércio de arte, um maracatu pode ser uma associação. Nun-
mercado de arte... Eu não sei, eu não con- ca um ritmo. O maracatu pode tocar o rock,
cordo com isso. Não acredito que exista um que tem base negra, ele pode tocar qualquer
mercado de arte. Para existir um mercado de coisa. O que acontece é que aqui em Forta-
arte teria que existir uma política cultural em leza existia uma forma rítmica muito frenéti-
torno disso e não existe essa política cultural. ca, desde o começo do século passado até
É como acontece comigo, se alguém quer um os anos 50, e era um ritmo muito alucinan-
quadro, é quadro pra lá, dinheiro pra cá. Sai te. Era uma espécie de rock muito presente
dolorosamente de mim, sai, fico com sauda- e isso perdurou até mais ou menos a década
de, mas descartei ele. Foi embora, graças a de 1960, quando os maracatus foram influen-
Deus. Então, não existe um comércio de arte ciados pelos carnavais do Rio de Janeiro, por
aquilo que eles viam nas revistas e depois na
(...) Um sentimento,
.
cas, principalmente dos bailes que ocorriam
no Rio de Janeiro, chamado Baile do Munici-
uma coisa que pal onde acontecia um concurso de fantasias,
só que essas fantasias eram monumentos.
No fim da entrevista o
não tinha nenhum Então, o pessoal dos maracatus disse:
"Olha, vamos fazer essas fantasias!" Todo
entrevistador Armando
pergunta por que Descar-
vínculo com as mundo começou a imitar essas fantasias
pesadas, fantasias que continham ferro por
tes não bebeu a água que
a produção colocou. Res- peças." dentro, pesavam 10, 20 até 30 quilos. O que
posta : "é arte" foi que aconteceu? Eles tiveram de mudar a