Você está na página 1de 21

Descartes Gadelha

Pintor, escultor e músico


Revist~ntrevista n' 19

c -p~

Entrevista com Descartes Marques Gadelha em 24 de novembro de 2008.

Isabelle - Descartes, durante nosso traba- você grafitou os muros, caricaturando ... Ao primeiro contato com
Descartes, marcamos de
lho de produção da entrevista, percebemos Descartes - Isso nasceu por questões de visitá-I o para apresentar o
e apuramos que o seu contato com a arte se fazer gozação e me vingar dos meus cole- projeto da revista e fazer o
deu muito cedo, não é? Como foi o início des- gas, porque naquele tempo eu participava de convite oficial, levando os
sa relação tão duradoura e produtiva? gang, mas eram gangs maravilhosas. O jovem exemplares mais recentes
da Revista Entrevista.
Descartes - É muito difícil o artista detec- de hoje, ele participa de uma gang - que eu
tar quando foi que a arte se manifestou. Aliás, tenho impressão que é um exército de peque-
parece aquela questão de fenômenos extra- nos assassinos. A nossa gang era para quem
sensoriais. Esse negócio de se manifestar ... soltasse melhor as arraias. Agang da Avenida
Eu digo assim: quando se manifestou em do Imperador (localizada no bairro Centro, em
mim o interesse pela arte, eu realmente não Fortaleza) fabricava arraias de material mais
sei. Mas sempre tive alguns insigths que eu resistente. Já a da Avenida Tristão Gonçal-
posso considerar ligados a uma situação ar- ves (também localizada no bairro Centro, em
tística. Por exemplo, eu me lembro perfeita- Fortaleza) - que era a minha -, eram umas ar-
mente quando nós morávamos na Rua Castro raias mais frágeis. E havia briga por isso. E por
e Silva (localizada no bairro Centro, Fortaleza, outros motivos também: futebol, bola ... E eu
no Ceará, próxima à orla marítima), eu tinha apanhava muito dos outros meninos porque
talvez uns oito anos de idade, não me lembro era muito "mole", magro, era "seco" na épo-
muito bem da época. Lá existia um bar, e nes- ca. Eu sempre queria estar perto dos mais ve-
se bar havia muitas brigas. Nesse tempo as lhos e por conta disso eu "penava" um pouco
garrafas de bebida não eram de plástico, nes- nas mãos deles. E pra me vingar, porque eu
se tempo não existia esse negócio de garrafas não podia bater, eu fazia a caricatura dos pais,
- de plástico pet, eram umas garrafas coloridas das mães (dos meninos). Como já estava des-
- até uma forma mercadológica de mostrar pertando em mim algum interesse erótico, eu
o produto dentro de um vidro bonito. Vidros fazia os pais e as mães fazendo imoralidade,
marrons com várias cores e tons de marrom, como era a palavra da época. "Esse menino
verde, vários tons de verde, azuis, etc. está fazendo imoralidade nas paredes". Hoje,
Então, quando aconteciam as brigas, as a gente tem outra leitura sobre esse "imorali-
garrafas voavam. Espatifavam em cima do dade nas paredes".
calçamento - não era asfalto, era calçamento - Então, eu fazia essas caricaturas, esses
e a topografia desse calçamento formava uma desenhos e por motivo de intriga dizia que
condição prismática. Ele prismatizava aquelas eram meus pais que estavam pedindo, dizia
partículas, aqueles cacos de vidro e eu espe- que era meu pai e minha mãe que mandavam
rava um eventual carro que passasse à noite, fazer. Era aquela coisa de fofoca de calçada
porque havia pouco carro na cidade, e, quan- mesmo. E isso foi muito interessante - hoje
do esse carro passava, era uma festa, pra eu vejo como interessante, mas na época, na
mim. Eu via aquela prismatização, aquele bri- realidade, eu não passei bons momentos por
lho, aquela coisa maravilhosa, que na minha causa desse ímpeto de caricaturizar. Essa ca-
cabeça funcionava como se fosse um espetá- ricatura está presente em tudo que você vê
culo visual fantástico: essa questão do vidro (refere-se a suas obras). Existe uma ironia no
está no meio do calçamento. Eu ficava horas traço, embora seja uma pintura.
e horas olhando e as pessoas me cobravam Mayara - Eu me identifiquei muito com as
uma conduta mental sadia. "Esse menino está coisas da sua infância, porque, particularmen-
ficando doido? O que está acontecendo que te, eu também fiz muito isso: desenhava pai,
ele está olhando formiga de noite?". Não ti- desenhava mãe ... É lógico que eu levei muito
nha formiga. Eu queria ver era a cor, o reflexo, "carão" por causa disso, mas eu fiz amigos Seguimos a pé até a
a prismatização, aquilo tudo. Esse talvez seja e essas caricaturas me trouxeram benefícios casa de Descartes, que
um dos mais remotos momentos que eu me e, ainda que eu não soubesse à época, já era fica bem próxima a UFC.
lembro desse que eu posso chamar primeiro Uma descoberta de uma potencialidade artís- Na chegada, ele já nos es-
perava com as portas da
contato. tica. Para você, esse início, com a caricatura, casa literalmente escanca-
Helena - Depois teve uma fase em que também lhe trouxe benefícios? radas.

DESC
o que seria apenas uma Descartes - Bom, isso é uma conscien- nha infância, quando menino, e eles não que-
conversa para apresenta-
tização que você tem hoje. Talvez você não riam pagar os outros pintores que desenha-
ções, logo se transformou
numa pré-entrevista de tivesse na sua infância, não é? Então, comi- vam bem também, contrataram-me em troca
duas horas. go aconteceu a mesma coisa. Eu passei por de chocolate, em troca de entrar de graça para
isso que você passou e a questão da palavra assistir aos filmes do Tarzan (personagem
artista chegou muito tempo depois, quando criado pelo escritor Edgar Rice Burroughs em
eu já fazia esculturas, quando eu já trabalha- 1912, que, a partir de 1918, é encarnado nos
va fazendo desenhos, porque (em) uma de- cinemas. Na história, Tarzan é um garoto in-
terminada época em Fortaleza, nos cinemas, glês que, após a morte dos pais, é criado por
não existia a tecnologia da impressão como a macacos na África, vivendo como se fosse
gente tem hoje. Não existia o offset (modo de um deles). Eu queria ser Tarzan. Imagine, até
impressão utilizado desde a segunda metade hoje não sou tão grande, ia querer ser Tarzan!
do século XX e que se baseia no processo de (levanta os dois braços e mostra os muques)
impressão indireta. O processo ocorre quan- (risos)
do a tinta é passada em um cilindro gravado Pois bem, eu desenhava com muita facili-
como se fosse uma forma que, por sua vez, dade e com muita rapidez pensando nos cho-
passa no papel. Tem-se, então, a folha im- colates, nos presentes que ia receber, e os ca-
pressa), e os cartazes eram limitados. Quan- ras mais idosos ficavam com raiva do menino
do os filmes vinham nos latões para serem que ia lá desenhar. Eu vivia no meio desses
exibidos no Cine Majestic (primeiro cinema pintores. Eles que eram pintores de liso. A pa-
do grupo Severiano Ribeiro, inaugurado em lavra era essa, o termo técnico pra diferenciar
1917 em Fortaleza. Sofreu dois incêndios e dos pintores de técnica, de cavalete. E como
hoje não mais existe), no Cine Diogo (um dos não existia a palavra "artista" - artista era
últimos cinemas de rua da cidade de Fortale- aquele do cinema, artista era o que matava os
za, o cinema foi inaugurado em 1940 e fecha- índios mexicanos, aquela coisa toda -, e nós
do em 1997. Hoje, é um shopping popular), e éramos pintores de liso, profissionais do pin-
outros mais, não lembro, aquelas pessoas (os cel. No Theatro José de Alencar (inaugurado
funcionários dos cinemas) chamavam pinto- em 1910, o teatro se localiza no bairro Centro
res para ampliarem pequenas fotografias em da cidade de Fortaleza e é ícone cultural do
preto e branco dos atores principais, de uns estado do Ceará) também. Na Semana Santa,
três ou quatro atores principais. E chamavam eu era perito em desenhar Jesus Cristo cruci-
aqueles pintores mais experimentados, os ficado ...
mais idosos para desenharem, por exemplo, Então, passou-se e eu comecei a pintar e já
o Buck Jones (ator estadunidense, nascido vi pessoas ligadas à Sociedade Cearense de
em 1891, conhecido por papéis de caubói em Artes Plásticas (As atividades da Scap tiveram
filmes de faro este. Morreu em 1942), o Roy início em 1944 ligadas diretamente ao Centro
Rogers (famoso cantor e ator estadunidense, Cultural de Belas Artes, primeira instituição
nascido em 1911. Atuou em cerca de cem voltada às artes visuais de Fortaleza, e veio
filmes, além de ter estrelado por 17 anos o a revelar grandes nomes da arte cearense.
programa The Roy Roger Show. Morreu em Uma das características que se destacavam
1998), o Ronald Reagan (ator estadunidense nas atividades da Scap é sua íntima articula-
nascido em 1911, participou de 53 filmes. Foi ção com a Literatura), que era uma associa-
eleito presidente dos Estados Unidos da Amé- ção ligada às artes plásticas que existia em
rica em 1980,sendo reeleito em 1984. Morreu Fortaleza, uma associação interessantíssima e
em 2004 após declarar ter desenvolvido o mal formadora de pintores como o Antônio Ban-
de Alzheimer, doença degenerativa que com- deira (pintor, desenhista e gravador cearen-
promete o cérebro). se nascido em Fortaleza no ano de 1922, foi
Como eu comecei a desenhar bem na mi- um dos percussores da pintura moderna no
Brasil, participou da fundação da Scap e em
1946 ganhou uma bolsa de estudos em Pa-
IIOS artistas eram ris. Lá morreu, após idas e vindas, devido a

pessoas que eu nao - complicações numa cirurgia de remoção de


amídalas, no ano de 1967) e outros grandes
pintores que nós conhecemos. Mas era uma
tinha acesso, porque coisa distante. Os artistas eram pessoas que

Descartes nos contou


era menino ... Era eu não tinha acesso, porque era menino ... Era
uma coisa distante não sei por quê.
histórias de suas vivências
para compor suas obras. uma coisa distante Quando eu fiz uma brincadeira de escultu-
ra, me parece que foi escultura ou se foi uma
Foi o suficiente para nos
apaixonarmos
nagem.
pelo perso- não sei por quê" pintura, com alguns colegas, já quase que imi-
tando aquilo que a gente via no Salão de Abril

REVISTA ENTREVISTA I 122


(evento cearense reconhecido nacionalmente em todo o território brasileiro a partir de 1928 Na pré-entrevista, Des-
cartes desafiou a equipe
no circuito de artes visuais, o salão teve sua e é considerada a principal revista ilustrada
de produção: queria falar
primeira exposição em 1943, organizada pela brasileira do século xx. Foi precursora na re- sobre arte. "Nada de per-
União Estadual dos Estudantes, sendo, três formulação técnica e estética do jornalismo guntarem se o meu pai
anos depois, promovido pela Scap. Desde brasileiro devido à aplicação do fotojornalis- me batia quando eu era
pequeno!"
1964, o Salão de Abril é realizado pela Prefei- mo e outros recursos gráficos. Chegou a atin-
tura Municipal de Fortaleza). O Salão de Abril gir a tiragem de 720 mil exemplares, porém,
era uma mostra de arte, talvez o mais impor- em 1975, chegou ao fim)- ela existiu até uns
tante evento da nossa cultura, tão importante vinte anos atrás, era o que havia de melhor.
quanto a Revista Clã (produção do Clube de A revista O Cruzeiro, nessa época, mandava
Literatura e Artes, surgido em 1942 e que, os repórteres lá para o campo de batalha. A
logo em 1946, iniciaria a produção de textos revista chegava semanalmente e eu ficava en-
relativos à arte da capital cearense, contando cantado com aquilo que eu via nas fotogra-
com a participação de intelectuais e acadê- fias em preto e branco! E como o espetáculo
micos do Estado assinando suas páginas. A da guerra é fascinante para quem é artista e
revista teve 29 publicações, sendo encerrada aquelas imagens das pessoas que participa-
em 1988). Inclusive, a Revista Clã e o Salão vam, das explosões, as esquadrilhas de avi-
de Abril faziam uma dobradinha com análises ões - que são muito bem representadas nas
dos grandes escritores, dos grandes profes- fotos, etc ... Eu tentava reconstruir isso dentro
sores com os artistas aqui da cidade (de For- do meu mundo, dentro da minha pessoa, re-
taleza). construir a mesma situação de guerra, talvez
Até que uma senhora chegou, olhou meus com uma intenção de corrigir aquilo que es-
trabalhos e disse: "Meninos, vocês são artis- tava na revista ou corrigir aquilo que estava
tas plásticos". Eu olhei pro Olavo, que era um acontecendo na realidade. Eu nunca parei pra
amigo meu, e disse: "Olavo, será que essa se- saber por que eu me preocupava tanto com
nhora está 'girando direito'?". O plástico que esse espetáculo das fotografias.
a gente conhecia era o da chinela que a gente E o meu pai disse: "Meu filho, já que você
usava, não é? E eu fiquei com essa coisa na desenha tanto, isso é uma guerra suja". Meu
cabeça e comecei a pensar: "Rapaz, artista pai me dava papel pra eu desenhar. Meu pai
plástico! Como é que uma pessoa pode ser era socialista, disse que era uma guerra ame-
artista plástico se eu sou de carne e osso?". E ricana, uma guerra de invasão, era um geno-
eu já fazia meus trabalhos, mas a palavra artis- cídio. Aí me deu um livrinho de presente. Era
_ ta foi um choque muito grande por eu ter sido um livro já marcadinho, amarrotado, com cor-
chamado por essa senhora de artista. Porque reções, e estava escrito Os Sertões (publicado
a minha concepção de artista era de quem era em 1902, o livro traz a série de artigos pro-
crucificado lá no Theatro José de Alencar. Pra duzidos por Euc/ides da Cunha para o jornal
mim, artista ou era caubói ou Tarzan. Eu fiquei O Estado de São Paulo sobre o ambiente e o
com essa história de artista na minha cabeça povo de Canudos, no interior da Bahia, preci-
que até hoje não funciona bem. Eu não me samente, durante o período de conflitos en-
considero artista. Eu sou aquela pessoa que tre essa comunidade e o Exército Brasileiro)
fazia cartazes, que fazia todo aquele negócio. e tinha um nomezinho lá em cima: Euclides
Ainda hoje funciona assim. Das vaidades do da Cunha (nascido na cidade de Cantagalo,
artista, não tenho privilégio, nunca tive. no Rio de Janeiro, em 1866, foi engenheiro
Walber - A partir de que momento o se- do Exército, escritor, repórter e membro da
nhor começou a pintar por inquietação e não Academia Brasileira de Letras. Abolicionista
mais por chocolates? e anti-monárquico, foi expulso do Exército,
Descartes - Eu tenho a impressão de que
foi quando estava acontecendo a Guerra da
Coréia (conflito ocorrido entre 1950 e 1953, Artista plástico ...
11
quando a Coréia do Norte, comunista, inva-
(...) 'Rapaz, artista
I
diu a Coréia do Sul, capitalista. Então, com o
apoio respectivo de União Soviética e Esta-
dos Unidos, interessados naquela região de
plástico! Como é
influência político-econômica da Ásia, mor-
reram cerca de três milhões de pessoas. O
que uma pessoa
conflito terminou com a intervenção da Chi-
na, já convertida ao comunismo, que fez os
pode ser artista Diante da necessidade
de conhecermos a técnica
norte-americanos recuarem). Quando nós tí- plástico se eu sou e a filosofia da arte da obra
de Descartes, fomos pro-
nhamos uma revista importante, talvez uma
das mais importantes revistas do Brasil, que de carne e osso 7'" curar o diretor do MAUC,
Pedro Eymar, em busca de
era a revista O Cruzeiro (revista que circulou socorro.

DESCARTES GADELHA I 123


Pedro Eymar foi bastan- sendo readmítido depois da proclamação da Descartes - Muito pouco nessa época.
te solícito com a equipe e Porque quando eu dominei a parte d'A Luta,
República. Foi morto em 1909 pelo amante
acabou se tornando um
grande companheiro da
da esposa). Eu detestei porque não tinha ima- do Euclides, aí me fascinou muito. Eu passei
equipe de produção. gem. a desenhar aquilo tudo, a guerra, aquela coisa
Você sabe que a imagem para criança, toda. Sim, você perguntou se eu colocava as
principalmente, embora eu fosse um adoles- pessoas do cotidiano, não é? Sim, as pessoas
cente, era muito importante. Porque não exis- que chegavam. Eu achava que o verdureiro
tia ainda essa invasão da imagem na nossa que todo dia ia vender verdura lá em casa, eu
cultura. A gente vive em função da imagem, achava ele parecido com alguém de Canudos.
a gente vive praticamente dentro da imagem. E eu colocava o verdureiro. Uma época eu
A todo instante nós estamos sendo bombar- chamei e ele disse: "Não, esse aí não sou eu
deados por informações das mais diferentes não", mas era bem parecido. "Não, não sou
possíveis. Pois bem, aí me interessei muito eu aí não".
em ... Puxa Vida! Se esse senhor (Euclides) Walber - E o Descartes está retratado em
não quis colocar, já que não existia fotogra- algum momento?
fia - a tecnologia era precária -, eu vou tentar Descartes - Eu? Não, não. Eu não ousava
desenhar isso que estou lendo. Mas só que macular aquilo com a minha presença, com a
eu não conseguia entender. Porque é um Por- minha cara. Achava que aquilo era uma coisa
tuguês técnico, um Português muito erudito, meio sagrada. Comecei a desenhar bastan-
hermético, uma coisa muito bem elaborada te e, de repente, passei a morar ao lado de
que ele escrevia. Eu tinha certa dificuldade de uma fundição chamada O Parafuso de Aço,
compreender aquilo que eu lia, porque eu lia no comecinho da Avenida Tristão Gonçalves.
Monteiro Lobato (nascido em Taubaté, São Eu ia lá ver a fundição dos bronzes. Isso me
Paulo, a 1882, foi um dos mais influentes es- fascinou muito, a questão da cor do bronze, a
critores brasileiros, sendo precursor da litera- cor do ferro, aquilo derretendo naquela tem-
tura infantil no Brasil. Sua obra mais popular peratura altíssima! De repente, quando o tra-
é O sítio do pica-pau amarelo), que é muito balhador colocava aquele líquido vermelho a
mais fácil. Eu pedia a algumas pessoas, ami- 1.200°C e passava alguns minutos, nascia um
gos ou meu próprio pai, e comecei a ler o li- sino, sino de igreja, nascia um busto. É isso
vro ao contrário, comecei pel'A Luta (terceira que eu quero aprender. Aí, me meti na fundi-
parte do livro Os Sertões, na qual Euclides da ção e aprendi. Sou fundidor por isso, trabalhá
Cunha escreve sobre a batalha de Canudos, com isso também.
entre os seguidores de Antonio Conselheiro e Helena - Falando da fundição, uma das
as tropas do Exército). Com uma certa dificul- coisas que nos inquieta é a utilização de vá-
dade, cheguei a compreender, de uma certa rios suportes em suas obras. Tem alguma
forma e com uma demora de tempo. Sempre diferença naquilo que você quer retratar, que
desenhando, cada vez que eu ia no livro, eu prefira fazer em escultura ou em tela?
desenhava, cada vez que ia, desenhava de Descartes - Quase que não tem ... Tem um
novo. Cheguei a desenhar página por página pouco. A escolha do material foi pra interpre-
do livro. tar melhor um texto, uma idéia. No caso do
Leonardo - Você chegou a inspirar-se em bronze, em relação a essa exposição, a de
alguém? Canudos, que eu chamei de Cicatrizes sub-
Descartes - Não, eu nunca tenho uma re- mersas (série de obras realizadas em vários
ferência clássica para o meu trabalho, nunca suportes produzidas por Descartes Gadelha
tive. É uma espécie de carimbo. Eu não apren- ao longo de 30 anos de pesquisa sobre a ci-
di a fazer essas coisas, tudo é de mim mesmo, dade de Canudos, direta e fortemente influen-
essa coisa da forma. ciada pelo livro Os Sertões do escritor carioca
Mayara - Em relação às pessoas que você Euclides da Cunha) por conta do açude que
via na rua, do seu cotidiano, acabaram entran- cobriu tudo lá determinada época, eu escolhi
do nessas imagens? o bronze porque na pintura ficaram um pou-
co artificiais os cadáveres. Eu pintava aqueles
cadáveres que, por exemplo, a charqueada,
termo do Euclides, quando juntavam as cabe-
Após uma breve con-
ças, aquele monte de cabeças. Os soldados
versa com Pedro Eymar,
a produção saiu do museu por uma questão de assepsia, tocavam fogo
com seis livros, DVD's e naquelas cabeças, faziam aquela fogueira
muitas curiosidades em que eles chamam de charqueada. Então, eu
mente. Além disso, acer-
queria interpretar aquilo na pintura e ficou
tamos que a entrevista
ocorreria ali mesmo no
uma mentira, ficou uma coisa muito artificial.
museu,o refúgio sagrado Nessa época que eu pensei isso, eu já tinha
de nosso entrevistado. uma confiança da arte, do significado da arte.

REVISTA ENTREVISTA I 124

--
Eu ndei uma fundição pra mim, para fazer se colapso inspirativo - que eu chamo de um Descartes costumava de-
senhar quintais quando era
meus trabalhos profissionais. Ela estava fun- colapso. Entrei em pânico e chegou ao ponto
menino. Para ele, os quintais
cionando, tinha trabalhadores, aquela coisa de eu viver numa situação psicótica por conta eram uma civilização que
toda. Quando eu resolvi fazer a interpretação dessa tragédia de Canudos. escondiam segredos como
da charqueada e de alguns outros momentos, Aurimar - E o que você procurava contes- os namoros às escondidas
e a vida dos animais. Certo
quando eu esculpia as pessoas com perfei- tar no Euclides?
dia, mostrou seus desenhos
ção, todos os detalhes, ficava uma coisa arti- Descartes - Várias situações que eu acha- para o professor Martins Fi-
ficial demais. va que não estavam certas. São muitas ... A lho, a fim de que ele opinas-
Mayara - Tem algum material que você posição dele em determinadas situações, até se sobre eles.
não usou que gostaria de usar? topográficas, por exemplo. Porque ele era um
Descartes - Não, não ... Porque eu não pro- carioca. Estive também lá em Canudos. Por
curei testar materiais como um artista plástico exemplo, os tipos humanos que ele descreve
faz. O artista plástico é aquela pessoa que se fortes, e não são fortes, são frágeis. Depois,
preocupa com a plástica, com os resultados ele vê que são realmente frágeis, quando
plásticos. Eu quero dar o meu grito. Eu dou o ele vê aquela procissão da sobra humana da
grito com aquilo que eu disponho. guerra na tarde de 1887 (ano em que come-
Voltando para concluir essa parte da escul- çou a Guerra de Canudos), quando ele viu
tura ... Eu, não conformado com a não natu- que aquelas pessoas não eram como prega-
ralidade daqueles cadáveres, daqueles tipos, va a imprensa. "Gigantes da caatinga" não
porque eu furava o corpo, o pescoço ... A de- eram. Eram pessoas magérrimas, famintas.
gola, por exemplo, que foi muito efetuada na- Então, esses momentos foram momentos de
queles tempos em Canudos, eu fazia aquilo nenhum prazer. Aliás, a arte não é prazerosa!
esculpindo. Disse: "Não, eu tenho é que ma- Eu sempre digo que a arte é uma companhei-
tar essas esculturas!". Eu tive um insigth legal ra de cárcere, no cárcere que é meu corpo.
como um todo, que foi pegar um revólver e A arte está dentro como uma companheira
atirar nas esculturas e dar umas "facãozadas" que é com quem eu dialogo. Quer dizer, eu
nas esculturas. Só que eram várias esculturas, não tenho motivo para me alegrar com essa
não era só uma ou duas. E as pessoas: "Olha, companheira que me cobra, que me faz de-
seu Gadelha enlouqueceu, quebrou tudo den- sequilibrar um pouco. É tanto que, quando eu
tro de casa!". Ou seja, pensavam que eu esta- vou ter uma "relação sexual" com essa minha
va quebrando toda a fundição, mas eu estava companheira, que é também uma paixão, o
atirando nas esculturas. Eu sei que eu dei al- orgasmo, é um orgasmo profundamente do-
guns tiros lá. Alguns não, vários tiros. (risos) loroso, que eu tombo como aquela história
Furei as esculturas. Degolei as esculturas! Em da abelha rainha que mata para poder gozar.
cera, todas em cera. E, quando o bronze re- Eu caio e não tenho nenhuma possibilidade
produziu isso, é o que vocês sabem que tem. de me reorganizar. A arte termina vencendo.
É como se o bronze fosse rasgado pelo facão. A minha companheira de cárcere é a grande
Isso no que me consta na história, não é me vencedora. Cada obra é uma derrota minha.
gabando, mas é o único louco que fez isso. É por isso que, quando eu quis me livrar des-
(risos) ses fantasmas "euclidianos" e "descartianos",
Armando - Foram cerca de 30 anos sub- simultaneamente, eu disse: "Pelo amor de
merso em Canudos. Qual a fonte principal de Deus, Pedro Eymar (diretor do Museu de Arte
energia dessa produção? Universitária da UFC desde 1987), fique com
Descartes - A principal fonte, maravilho- esses fantasmas aí porque vão aparecer pro
sa - eu acho - é a esquizofrenia. Eu sou um resto da vida nesse museu se você tiver o ca-
esquizofrênico, apesar de não ser atestado, rinho de guardar". Ele sempre foi muito bon-
mas o esquizofrênico autêntico é aquele que doso e caridoso em aceitar esses fantasmas
se atesta. Achei por bem me atestar esqui- que estão ocupando aqui o museu.
zofrênico porque só quem faz essas coisas é Gabriela - Quando foi que você sentiu que
quem tem o poder da esquizofrenia. Então, o se havia completado, que não havia mais o
que me alimentou foi essa questão da minha que ser feito em relação a Canudos?
própria psicologia, de querer vivenciar isso, Descartes - Foi no aproveitamento de uma
de contestar Euclides. Imagina, uma pessoa data. Eu aproveitei a data da comemoração
medíocre como eu querer contestar a idéia do centenário de Canudos (em 1997). "Pronto
Martins Filho, então
de um gênio como Euclides da Cunha! Mas é nessa época que eu vou me livrar". Eu pa- Reitor da UFC, comentou:
aconteceu, eu não vou negar isso. Eu me rei justamente nessa época porque eu queria "Olhe, continue a fazer
trancava, dizia: "Euclides, não é isso!". Aí ia viver um pouco mais fora desse delírio - por- seus desenhos de quintal.
De quintal. Porque seus
lá pra tela, pra escultura, lia, contestava. Isso que é realmente um delírio. Só qere isso era
quintais vão ganhar o mun-
é um ato de uma ... Não é demência, mas é uma das minhas rotas, das minhas estradas. do". Para Descartes, ali es-
um ato de uma "superrnente". "superrnente" Sendo que o artista é uma pessoa que cami- tava uma filosofia de vida:
no sentido de super-edificação, de entrar nes- nha em várias estradas, que segue no mesmo a valorização do local.

DESCARTES GADELHAI 125


Em 1966, Descartes se- rumo, paralelas. Essa, de Canudos, foi uma Cobrava muito a dignidade, mas, ao mesmo
guia viagem para o Rio de
das paralelas em que caminhei e, ao longo tempo, ele tinha várias santas. Ele criou o seu
Janeiro, quando o pau-de-
arara fez uma parada estra- do tempo, pois eu passei muitos anos fazen- exército feminino, o exército de católicas, de
tégica em Canudos. Quan- do isso, eu pulava de paralela e ia para outra mulheres religiosas. Ele é o político ali (apon-
do descobriu onde estava, paralela, que era a da prostituição na cidade ta para um dos quadros expostos na sala do
assustou-se.
de Fortaleza. Mauc, onde ocorreu a entrevista). A questão
Mayara - Você falou que cada pintura des- da terra, um quadro simbólico. Eu peguei as
sa é muito dolorosa e te domina. Como foi cabeças dos ex-votos (oferendas aos santos
você partir para um novo tema? Que fôlego especialmente produzidas por alguém que
é esse? conseguiu uma graça ou milagre, como um
Descartes - É a necessidade da arte. O ar- testemunho público de gratidão. Sua origem
tista sente a necessidade da arte, talvez mais é desconhecida, mas as primeiras peças são
importante que o pão ou o café ou o feijão que datadas de 2000 a. C. No nordeste brasileiro,
ele coma. Porque, enquanto você se alimenta, ainda são presentes) e transformei em "sem-
você é alimentado pela arte. Essa dualidade terra", um movimento que admiro muito no
de situação cria uma dependência. Eu sou um Brasil (refere-se ao Movimento dos Trabalha-
arte-dependente. Não sei nem se existe essa dores Rurais Sem-Terra). E ele esta aí como
palavra. É como se fosse um narco-depen- símbolo na imagem. A cruz é mais um objeto
dente, no caso. A arte tem esse poder, pelo de guerra, é quase que uma peça agressiva,
menos no meu caso. É por isso que eu não uma espada, uma lança.
consigo compreender a arte como estética. O Mayara - Esse olhar sobre a marginalidade
meu trabalho é isento de estética, porque a sertaneja parece migrar para a marginalidade
estética está mais ligada à libido, aos prazeres, urbana, do Jangururssu (Aterro sanitário lo-
ao prazer visual de olhar uma pessoa bonita. calizado no bairro Messejana que, a partir de
"Olha que menina bonita!". Isso é estética. 1978, passou a receber toda a produção de
Quando eu olho uma praia bonita, isso é esté- lixo doméstico de Fortaleza. O local tornou-se
tica. Quando eu construo uma peça agradável um imenso lixão, a partir do qual centenas de
à minha libido, ao meu prazer, tudo é estética. catadores retiravam seu sustento. O aterro foi
Invenção dos gregos, os filósofos malucos lá desativado em 1998). Você acha que alguns
da Grécia. Mas a arte não tem nada a ver com dos personagens que você já pintava ao lon-:
estética. A arte é uma outra coisa, que não foi go do trabalho na série Cicatrizes submersas
devidamente estudada talvez por impossibili- migraram junto com você para aCatadores
dade. Ela é um fenômeno concernente ao ser do Jangurussu?
humano, ao animal humano, e só quem defi- Descartes - Sim, sim, eles estão presentes
ne esse fenômeno é o ser humano. porque o Jangurussu não deixa de ser uma
Aurimar - Descartes, voltando um pou- extensão de Canudos. Toda tragédia social
quinho às Cicatrizes submersas. Depois de tem um link lá dentro da situação de Canudos,
passar 30 anos estudando Euclides da Cunha, porque Canudos, a gente pode considerar, foi
você chegou a ler novamente Os Sertões? o início de toda tragédia aqui no Nordeste,
Descartes - Sempre. Eu era como se fosse embora tivessem acontecido outras guerras
um pastor que lia toda hora Os Sertões. aqui também. Mas, como foi uma tragédia
Isabelle - Antônio Conselheiro é uma figu- espetacular que se tornou internacional, nós
ra muito presente em suas obras. É pintado podemos considerá-Ia - pelo menos eu con-
em várias tonalidades e formatos. Por que sidero Os Sertões como o paradigma de toda
essa representação tão diferenciada sobre o a tragédia gerada pelo sistema político capi-
Antônio Conselheiro (cearense de Ouixera- talista, dos senhores donos de terra, porque
mobim, nascido em 1830. Durante a misterio- a tragédia de Canudos não foi realizada pelo
sa vida, pregou por todo o sertão nordestino Exército, ele apenas tomou as providências,
suas idéias monarquistas e a defesa da refor- cumpriu com a sua obrigação.
ma agrária. Conseguiu agregar 35 mil pesso- A tragédia foi causada pelos donos de ter-
as na comunidade de Canudos, onde morreu ra, os latifundiários e a Igreja, que também
em 1897 de forma desconhecida, antes do tinha ciúmes de Antônio Conselheiro porque
fim da guerra)? estava perdendo adeptos, pois ele (Conselhei-
Descartes - O Antônio Conselheiro é um ro) criou uma situação de tanta religiosidade
corpo de mil cabeças. Ele era um cearen- lá, de um certo controle e um certo mistério,
Ao descer do veículo, se - todo mundo sabe da história dele. Mas, que as pessoas correram para lá não queriam
logo deparou- se com o quando ele estava em Canudos, era o conse- mais freqüentar as igrejas das redondezas lá
Museu de Canudos, reple-
lheiro propriamente dito, no sentido da apli- de Canudos. Essas pessoas preferiam ficar
to de objetos sobre a guer-
ra. Resultado? Abandonou cação do termo, ele era o "bom Jesus". Ele sob a égide do santo, como era considerado
a viagem e ficou dez dias era um pecador, mas ao mesmo tempo um santo Antônio Conselheiro, e praticamente o
no lugarejo baiano. santo. Ele tinha mil facetas para seu povo. padre ia rezar a missa dominical ou mensal

REVISTA ENTREVISTA I 126


numa cidade pequena como Uauá (cidade lo- o segundo encontro da
equipe de produção com
calizada no sertão da Bahia, a 416 km de Sal-
Descartes ocorreu quando
vador, foi palco da primeira batalha da Guerra ele convidou a equipe para
de Canudos), que fazia parte do grande entor- assistir ao documentário
"0 lá de Canudos, e não havia mais crentes. Rampa dos Sonhos, de
Ronaldo Nunes, do qual
Todo mundo estava indo rezar; todo mundo
participa.
estava indo morar lá.
Helena - Como você tomou conhecimento
da tragédia humana que ocorria no Jangurus-
su?
Descartes - Foi uma traição do destino.
Eu estava, em determinada época, vivendo soas que estavam lá, vivendo da sobra de
uma situação sentimental forte, e eu quis uma metrópole. O sobejo da cidade de Forta-
pintar um pôr-do-sol - não há nada mais po- leza estava ali.
ético que um pôr-do-sol, principalmente para A princípio eu não fui bem recebido, por-
quem pinta o pôr-do-sol. Eu acho muito bom que as pessoas achavam que eu fosse da pre-
pintar o vermelho do sol, porque aqui esse feitura, que ia tomar os terrenos, aquela coisa
vermelho é muito bonito. Eu peguei o car- da burocracia, mas eu consegui conquistar al-
ro, coloquei umas telas dentro e saí à cata gumas pessoas. Voltei em casa, peguei mais
de um pôr-do-sol marinho, não da beira do telas, fiquei nessa coisa, foi outra síndrome
mar, mas um pôr-do-sol próximo à periferia de arte-dependência. Não foi uma síndrome
de Fortaleza. Eu parei o carro em determinado estética, mas uma psicose artística. Me insta-
ponto da BR-116 e procurei instalar um ateliê lei lá, comprei uma barraquinha de plástico e
improvisado com cavalete, tintas, telas, essa fiz um ateliê lá nesse local. Fiquei um perío-
coisa toda, para pintar esse tal pôr-do-sol. do, pintei o que eu pude pintar de expressão
Mas eu não me conformei com aquele local, humana e fatos que ocorreram e transformei
não achei bom porque tinha uma fábrica que isso em pequenas crônicas pintadas.
atrapalhava, e comecei a adentrar. Adentrei, Walber - Foi um grande laboratório viver
adentrei, andei quase um quilômetro e meio no aterro e ter esse contato para poder fazer
procurando uma composição de paisagem os registros. Durante esse tempo, como foi a
para colocar o meu sol. Como eu estava fra- relação do senhor com os catadores?
gilizado, um homem apaixonado ... Vocês já Descartes - Era a melhor possível. Por
se apaixonaram? Nem se apaixonem não, é exemplo, eu fui padrinho de algumas crian-
fragilíssimo, é esponjoso, é capaz de absorver ças lá, fiz amizades. Depois eu vim a descobrir
todas as coisas. E eu fiquei lá, tentando pintar que essas pessoas, devido à situação em que
aquela coisa, mas senti um azedume muito viviam, sublimaram a situação humana de es-
grande! Quando uma criança passou com al- tar vivo. A gente precisa de um determinado
guma coisa na cabeça, um saco, não sei bem, tipo de comportamento, de uma determinada
e eu perguntei: "Meu filho, o que é isso, e esse condição social para estar vivo. Como eles
cheiro aqui?". E ele disse assim: "Olha, eu não
estou sentindo, mas as pessoas dizem que
fede". E eu: "Mas o que é, finalmente, isso?". liA minha namorada
"Bom, deve ser o pessoal aí do aterro". "Que
aterro?". E ele disse: "Aí atrás de mim.". Quer
passou a ser o
dizer, tinha um monticulozinho, um montículo
de, sei lá, 6, 4 metros, não lembro bem, e eu
próprio aterro
resolvi subir para ver aquilo lá, ainda com o
coração inflamado de paixão. Quando eu vi
sanitário.( ...) Eu
o inferno de Dante (refere-se a uma das três queria
,
saber o que
partes da obra de Dante "A Divina Comédia":
Inferno) na minha frente: urubus disputando e que passava no
com cachorros, com seres humanos, velhos,
crianças, o caminhão derrubando lixo, aquela coração daquelas
coisa toda, aí eu fui, "entrei em parafuso", a
paixão foi pro brejo, esqueci a paixão, esqueci
pessoas que A equipe impactou-se
a namorada. A minha namorada passou a ser
o próprio aterro sanitário! Eu me dediquei a
estavam lá, vivendo ao ver cenas do cotidia-
no árduo dos catadores.

interpretar não aquela paisagem física, mas o


sentimento das pessoas que são capazes de
da sobra de uma Após a sessão, a certeza
da importância da obra de
Descartes e o envolvimen-
conviver naquela situação. Eu queria saber o metrópole". to com a entrevista só au-
mentaram.
que é que passava no coração daquelas pes-

DESCARTES GADELHA I 127

I
"No Jangurussu nin- não tinham, eu achei que eles tinham se su- Canudos. Você avalia que ter essa vivência no
guém adoece, ou se está
blimado, eles eram seres que estavam mais lugar é fundamental?
vivo ou se está morto". Foi
com essa frase que Des- próximos de Deus do que eu, do que qual- Descartes - É fundamental, porque na mi-
cartes referenciou a sabe- quer um de nós. Eu era apenas um especta- nha concepção da arte, a arte não pode ser
doria dos catadores. dor daquilo tudo. Essas pessoas me ensina- inventada: arte inventada é "invencionice",
ram muita coisa, o pouco de humildade que A arte tem de ser vivenciada, mas antes da
eu tenho eu aprendi lá no Jangurussu. Então, vivência da arte, ela tem de que acontecer
moralmente, foi um grande laboratório para numa região muito remota do espírito, que eu
mim, até mais que pictórico. não sei explicar, não me sinto com essa com-
Isabelle - Que situações mais inquietavam petência. Mas a arte pode ser o resultado de
você no Jangurussu? uma necessidade superior à própria condição
Descartes - São muitas, por exemplo, da vida. Ela se impõe com esse poder. É por
quando eu vi um trator compactar uma crian- isso que ela não pode ser inventada, ela nas-
ça. Eu estava mais ou menos próximo, esta- ce, ela explode, ela se pari. A arte é um "auto-
va chovendo, eu estava conversando com as parto", eu apenas sou um mero coadjuvante,
pessoas esperando que a chuva passasse e o um mero artesão disso.
trator escorregou no chorume, naquela lama Helena - No entanto, a sua obra pretende
podre, preta, e o motorista fez todo o possível trazer uma discussão. Não é uma obra ape-
para não passar por cima das pessoas (o cho- nas para ser contemplada; é para gerar uma
rume é uma substância formada por diversos inquietação. Tanto que suas exposições tam-
elementos contidos no lixo, uma espécie de bém provocaram discussões na sociedade de
lama que escorre, penetra no solo, contami- Fortaleza.
na o lençol freático e, empurrado pelas águas Descartes - É, a arte é para fazer pensar,
das chuvas, transborda para os mananciais não é para embelezar. Embelezar é outra coi-
próximos. Mesmo com a desativação do li- sa, decoração, etc. Agora, eu me inquietava
xão, essa substância extremamente tóxica muito no Jangurussu com essa situação de
pode continuar a ser produzida durante anos). abandono, não obstante existirem algumas
Grande parte escapou porque pulou para um ONG's trabalhando lá. Quer dizer, desde essa
lado e para o outro, mas tinha uma criança época que as ONG's eram perversas. Porque
acocorada e a mãe estava com os quatro fi- a ONG ... O que é? Três pessoas em uma situ-
lhos. Ela tirou os três filhos, mas não deu ação montam a ONG para fazer alguma coi-
tempo de puxar o outro. O trator compactou sa que justifique um benefício social. Pronto,
e ficou só aquela poça vermelha em cima do essa é a filosofia de qualquer ONG. Mas só
lixo. Isso foi um choque para mim, fiquei meio que as ONG's que estavam lá talvez eram
tonto, minha pressão subiu, aquela coisa toda. mais instrumentos de autopromoção ou de
O motorista também ficou muito apreensivo, fazer qualquer coisa que não se sentia, não
porque ele não fez porque quis. Eu disse: "Mi- gerava efeito lá dentro da comunidade. A co-
nha senhora, pelo amor de Deus, seu filho!". munidade detestava essas ONG's, que tinham
Aí "õ" lição moral e até mística que eu rece- gente da França ... Ora, a pessoa vem da Fran-
bi daquela mulher quando ela disse assim: ça para se promover? Fazer mestrado, douto-
"Olhe, não foi uma criança que morreu, foi um rado, e não deixava uma moeda lá?! Eu vi um
anjo que chegou ao céu.". Eu achei muito bo- francês fazendo doutorado em Sociologia lá e
nito essa frase, para mim é uma frase paradig- o cara, como todo francês ... Aqui tem algum
ma da humildade de quem vive uma situação francês? (risos) A miserabilidade histórica do
social e política como a dessas pessoas. francês estava presente nesse homem que
Mirelle - Essas situações você só pôde re- estava fazendo doutorado, né? E o cara não
tratar porque viveu tudo aquilo ali, como em soltou nem uma grana pras pessoas que ele
entrevistava.
IIEles (catadores) Tinham essas coisas desagradáveis que
ocorriam lá. Eu vi a mentira do político al-
eram seres que gumas vezes, porque o Jangurussu durou
muitos anos, então os políticos chegavam
estavam mais lá prometendo mundos e fundos a pessoas
ingênuas, que acreditam. E os caras, depois
De! Para conhecer mais so-
próximos de Deus que se elegiam, não pisavam mais lá, nem
tór iam mais lá porque não suportavam o mau
'a I
bre o Descartes músico,
a produção entrevistou o do que eu, do que cheiro. Eu me acostumei. Eu peguei inflama-
o também compositor, Pin-
ção nos brônquios porque não tinha defesa,
lixe
rerr
go de Fortaleza. A entre-
vista aconteceu na sede
qualquer um de né? "Burquesão". chegando lá me ato lei e
Associação
lar.
Maracatu So-
nós" acabou. Peguei doenças, minhas unhas dos
pés caíram todas, infecções, feridas, mas tudo

REVISTA ENTREVISTA I 128


•.... . o .
era secundário. consegui uma forma de trazer cata dores pra Descartes sempre foi
um apaixonado por car-
alber - Isso não te assustou? cá - o que foi uma glorificação para eles. Eles
naval. Já na década de 70,
escartes - Eu tinha medo do chorume, se viram muito bem, porque eles não estavam animava a folia cearense à
que ele matava. Tinha muito cuidado para vendo a tragédia deles, estavam ven 'os re- frente da escola de samba
- o pisar nele. Nas pessoas que pisavam, os tratos deles. "Olha fulano! Olha dona fulana "lspáia Brasa". Entusiasta
do maracatu, já passou
edos geralmente caíam. Eu sei que lá no tá aqui de 'cócaras'!" (imita vozes dos cata-
por quase todos os mara-
angurussu um senhor caiu embriagado, um dores). E você vê que é uma pintura toda de- catus de Fortaleza.
catador caiu dentro do chorume. Ficou lá, em- formada, da cor do lixo - porque não poderia
borcado. As pessoas falaram: "Caiu na lama" ser de outra forma, pois é um lance quase na
- lá eles não chamam chorume não, chamam mesma velocidade da fotografia. Eu tenho de
lama. Mais tarde, ele estava com infecção no pegar aquilo ali, aquela expressão psicológi-
pescoço, perdeu um olho ... Porque chorume ca, porque se eu não pegar vai ser um quadro
é o produto da putrefação de todas as coisas pintado, não um quadro de expressão, por
simultaneamente. Ele é líquido, escuro como isso essas deformações são concernentes ao
café, um tanto grosso. Se um pingo daquilo momento da pintura. Então foi isso, o Jangu-
pegar no olho, em poucas horas a pessoa russu, depois dessa minha exposição ter ocor-
cega, apodrece o olho, porque a quantidade rido, eles resolveram acabar com a atividade
de bactérias por milímetro cúbico é impres- do aterro com essa maquiada que deram lá.
sionante; é impressionante a quantidade de Só que eles esqueceram que o catador de lixo
bactérias! Esse senhor caiu lá, limpou, aque- só sabe catar lixo (fala pausadamente, enfati-
la coisa toda, tava bebendo ... de repente co- zando cada uma das quatro últimas palavras).
meçou a comer isso aqui dele (aponta para Ele condicionou o seu corpo, a sua psicolo-
a região lateral do pescoço), foi todo devora- gia e a sua alma a viver daquilo que encontra,
do, literalmente. Quando ele foi pro hospital, daquilo que cata com as próprias mãos. Não
passou por uma série de cirurgias e um dos tem a menor possibilidade de ele fazer uma
médicos o salvou. Até que eu disse: "Bom, tá outra coisa, porque eles não sabem fazer ou-
na hora de mostrar isso para o público". tra coisa, são treinados por eles mesmos a fa-
Pamela - Por quanto tempo o senhor per- zer aquilo que fazem. É como se fossem, mal
maneceu lá? comparando, urubus que pensam.
Descartes - Um ano e pouco, quase dois. Walber - Com a desativação do aterro, em
Walber - Quando foi que você percebeu 1998, como ficaram os catadores?
que estava na hora de sair? Descartes - Eles ficaram abandonados.
Descartes - Estava na hora porque, por eu São centenas de pessoas que estão lá numa
r ser um profissional, eu tinha de me deslocar situação de tremenda miséria, porque eles
muito. Sempre sou convidado para exposi- não podem sair de lá, pois a referência que
ções fora, viajar, uma coisa e outra. O Jangu- eles têm é lá.
russu estava me engolindo como fui engolido Helena - Muitas dessas pessoas tornaram-
por Canudos. Eu me permiti dar uma parada se catadoras ambulantes que trabalham nas
para prosseguir com outras rotas, outras pa- ruas. O senhor também retratou essa nova
ralelas, como eu falei, mas consegui mostrar forma de trabalho com o lixo?
isso na Universidade (Federal do Ceará), aqui Descartes - São os descendentes desses
no Museu (MAUC). Pedi mais uma vez ao Pe- antigos catadores que estão moribundos lá.
dro Eymar: "Pedro Eymar, você mostra o lixo Como os filhos cresceram e não têm para
pintado?". "Mostro, traga". Eu trouxe pra cá os onde ir, eles "invadiram" Fortaleza com os
quadros. O inesperado aconteceu: algumas carrinhos de geladeira - a princípio os carri-
pessoas estiveram aqui na exposição; alguns nhos das geladeiras que eram jogados no lixo
políticos foram avisados, talvez não tiveram e chegavam lá. Hoje passou a ser uma cultura
a coragem de vir ver, mas souberam. Eu sei de Fortaleza: Fortaleza tem a cultura do cata-
que o resultado foi o encerramento (refere-se dor ambulante, porque eles não eram ambu-
à desativação do aterro, ocorrida em 1998). lantes, eram fixos naquele local. Dos catado-
Resolveram dar uma "maquiada legal" em res ambulantes, esses do Centro de Fortaleza,
cima do Jangururssu, colocando areia verme- eu fiz uma nova temática. Nova temática não,
lha pra ficar bonito, fazer uma coisa mais ou quer dizer, eu desmembrei a questão do cata-
menos arquitetônica, mais ou menos urbanís- dor do lixo do Jangurussu.
tica. Urbanizaram o Jangurussu, mas o sobejo Já entra um pouco de estética, um sen-
está consagrado lá embaixo, o sobejo do con- timento estético nessa questão do catador
sumismo tá lá consagrado: milhares, talvez ambulante, porque eu também sou escultor. o quintal da sede do
Maracatu Solar leva o
milhões de toneladas. Ali é como se fosse o Vendo os catadores passando em silêncio ab-
nome Quintal de Batuque
templo do consumismo da quarta cidade da soluto - não têm máquina, andam descalços Griô Descartes Gadelha.
América do Sul, que é Fortaleza. - , vendo aquele espetáculo formal da arru- Mas Descartes não é nem
Eu trouxe a exposição aqui, ela ocorreu, mação dos sacos, das latas, das coisas que um pouco afeito a títulos.

DESCARTES GADELHA I 129


Pingo contou que, ao eles amarram de todo o jeito para levar lá para que apanhavam o lixo da cidade de Fortaleza
saber da homenagem,
o reciclador, passando em silêncio numa noi- e também levavam o óleo naquelas carroças
Descartes disparou: "Po-
dia ter colocado o nome te, é uma escultura fantástica e fantasmagóri- para acender os lampiões (referência à épo-
da senti na (banheiro) de ca, O silêncio absoluto que é quebrado só por ca em que não havia iluminação elétrica). A
Descartes!" um "Filho da puta, sai do meio", dito por uma limpeza da cidade era feita por essa empre-
pessoa que vai numa Hillux ou num carrão. O sa que tinfio suas dependências instaladas lá
único barulho que se ouve, nesse momento, embaixo, mais ou menos próximo onde hoje
é um nome agressivo desse. A pessoa não vê é aquele Marina Park (um dos maiores hotéis
o catador, a pessoa, o ser humano que está da cidade, localizado no bairro Praia de Ira-
ali naquela situação; ela vê o objeto que está cema), mais ou menos próximo. Essas éguas
ali atrapalhando o trânsito e ela não tem a pa- maravilhosas, esses cavalos, ficavam lá, e era
ciência de frear um pouco, de desviar. Isso a única oportunidade que a juventude, no iní-
eu vinha sempre acompanhando um pouco cio de sua excitação natural, tinha para ver
distante para não interferir na situação como os animais transando. Fugiam das escolas, fu-
um pintor, só parando para tomar um pouco giam dos seminários - nisso eu não era nem
de café, mas nunca me declarando como uma nascido.
pessoa que estava a fim de fazer trabalhos ar- Os jovens, os meninos, iam para lá ver o
tísticos com uma pessoa. Eu fiz essa mostra espetáculo erótico daqueles animais. Por isso
alguns anos atrás, no Oboé (mostra Heróis do que, quando isso foi comprado pela Ceará
Papelão, ocorrido em 2003, no Centro Cultu- Light e Power, que era uma empresa ingle-
ral Oboé), me parece, e também levei esses sa que explorava a energia elétrica no Brasil,
jovens catadores para lá. Foi muito bom que principalmente na área das cidades praianas,
eles se viram lá dentro da instituição, os retra- das orlas: Recife, Fortaleza, São Luís e outras
tos deles dentro de um banco, né?! mais, isso foi encerrado e não tinham mais as
Isabelle - Os temas sociais sempre são éguas lá, não tinha mais cavalo, mais nada,
muito presentes em suas obras. Um outro mas ficou o grande cercado, que depois foi
tema é questão da prostituição. Como você ocupado pelas mulheres de uma prostituição
começou a explorar essa temática? decadente, do fim da viagem, da parábola
Descartes - Essa é outra paralela. Eu mo- da prostituição que é a parábola da queda,
rava perto da maior cidade de prostituição do da curva, era lá nesse local (Para ele, a pará-
Ceará, que era o Curral (Curral das Éguas era bola consiste no seguinte trajeto: as garotas
o nome de uma zona de prostituição existente jovens começavam a trabalhar nas pensões
entre as décadas de 1920 e 1960, localizada luxuosas, consideradas "classe A'~ Com a
no bairro Arraial Moura Brasil). Quando se diz avançar da idade, a qualidade do local dimi- ~
assim: "Fulano, vai pra baixa da égua" - não nuía. Quando atingiam 25 anos, já estavam no
tem esse negócio? Era porque lá era, real- Curral). Elas se instalavam lá com pedaços de
mente, a baixa das éguas (Risos). Não porque madeira, pau, qualquer coisa, e faziam aque-
as mulheres sejam éguas, as prostitutas, não, las casinhas. Lá era o fim de uma trajetória de
é porque lá existiam as éguas da Ceará Light, vida. Por isso que a burguesia preconceituo-
sa chamava essas mulheres de éguas, asso-

A pessoa não vê o
11
ciando com as éguas da antiga companhia de
energia.

catador, a pessoa, Mayara - Como foi a mudança de vivência


do Descartes que foi dos catadores de lixo aos
o ser humano que bordéis? O que muda no Descartes pintor?
Descartes - Não, não. Tudo isso são linhas
está ali naquela paralelas, são universos paralelos que fazem
parte da minha vida. Sempre estão presentes.
situação; ela vê Quer dizer, existia Canudos, mas eu fugia para
outro universo; quando tava na prostituição eu
o objeto que está fugia para outro universo, assim por diante.
Mayara - Você é outro Descartes quando
ali atrapalhando o passeia por diferentes temas?

trânsito e ela não Descartes - Eu acho que sim. Eu tenho


várias caras, nós temos várias caras de acor-

Descartes gravou recen-


tem a paciência de do com a situação psicológica. O homem
de Canudos era o revoltado, o Descartes de
temente o 3° CD da cole-
ção Estandarte (o primeiro
frear um pouco, de Canudos era o revoltado que vivia, e eu vivi
foi de Pingo e o segunda realmente, através do Euclides, o Canudos.
da banda Maracatu Vigna desviar" . Eu me sentia um jagunço também ao pintar
Vulgaris). aquela tragédia, o tiro, aquela coisa toda. Era o

REVISTA ENTREVISTA I 130


jagunço. Na prostituição, era o "francho" (gíria Descartes não se pre-
antiga utilizada para designar homens ou mu- ocupa com a autoria das
obras musicais. Para ele, a
lheres que praticam o lenocínio, prática de fa-
música não pertence a nin-
cilitar a corrupção de qualquer pessoa) - vocês guém, pois é feita da cultu-
sabem que essa gíria é daquele homem que ra dispersa na sociedade.
vai pra lá tomar uma "birita", conversar com as
mulheres. É outro palco, é outro teatro.
A (temática da) prostituição nasceu porque
eu morava próximo à Praça da Estação (loca-
lizada no bairro Centro, oficialmente chama-
se Praça Castro Carreira, mas continua a ser
chamada de Praça da Estação porque funcio- nome a uma exposição que era o resultado
na como um terminal de ônibus) e da minha de uma vivência dentro da "putada", como se
casa eu escutava a Amplificadora Brasil, que chamava antigamente (exposição "De um al-
era uma espécie de rádio comunitária, onde guém para outro alguém': de 1991).
todos os avisos que ocorriam lá no Curral Armando - Como era sua vivência nos ca-
(eram veiculados) - o Curral já era uma cida- barés?
de "prostitucional", uma cidade underground Descartes - Minha vivência era a de um
porque ficava Fortaleza em cima e ela embai- homem que ia lá trepar com a prostituta, que
xo e tudo de desgraça ocorria naquela cidade, ia lá para poder conviver, chupar em todos os
que eram vários hectares, talvez uns dez hec- sentidos tudo aquilo que era possível para a
tares, bem grande mesmo. (Lá) Existiam duas minha criatividade, para a minha arte. (risos)
rádios. Eu me lembro da Brasil porque ficava Mirelle - E como era o ambiente nesses
mais próximo da minha casa, apesar de ficar lugares?
lá embaixo, e o dia todo eu escutava músicas Descartes - Muito Romântico. Muito ro-
dos mais importantes cantores do Brasil da mântico. Inclusive com decoração ainda da
época: Nelson Gonçalves (cantor carioca nas- Belle Epóque (período entre o fim do século
cido em 1919 e falecido em 1998, cujo maior XIX e a I Guerra Mundial, durante o qual a
sucesso foi a canção "A volta do boêmio"), cultura francesa influenciou bastante o Brasil.
Vicente Celestino (cantor carioca nascido em Nessa época, era moda utilizar expressões,
1894 e falecido em 1968. Uma de suas mais vestuários, objetos franceses) que elas man-
conhecidas é "O ébrio"), tudo com música de tinham. O quarto de uma prostituta era uma
excelente qualidade - hoje a gente relê tudo coisa interessante de se ver, porque geral-
r- isso como música de excelente qualidade na mente tinha um bercinho com uma criança lá
nossa história discográfica e musical. dentro de um pai que ela não conhecia. Mas,
A Brasil mandava avisos, por exemplo: quando as prostitutas eram jovens, existiam
"Fulana, com o coração partido, manda essa as bonecas delas, porque ela era prostituta na
canção do Augusto Calheiros ao seu próprio hora de trabalhar, mas na hora de ser menina,
coração". Eram frases feitas por mulheres ou naquelas horas vagas, ela ia pintar a bonequi-
homens que freqüentavam lá (o Curral), reca- nha delas (leva a mão à boca, imitando o ges-
dos indiretos, porque na prostituição, não sei to de passar batom), porque era uma criança
se vocês sabem, existia um romantismo. Hoje que ainda estava ali. Ela vivia também o so-
em dia o cara tá com uma garota: "Vamos dar nho de um dia ser retirada por um príncipe
uma ali"; "Vamos, vamos dar uma ali". Não encantado daquela situação. Ela almejava um
existe isso na prostituição, existe toda uma casamento. Todas ainda hoje sonham com
construção de um relacionamento, embora um casamento. A palavra casamento é uma
o cara pague. Existe a corte, podemos dizer. palavra muito distante, mas muito desejada
Existe a cantada. Você não pode jamais che- para uma mulher daquela, né?
gar para uma prostituta e dizer que quer 'co- Na época, cada mulher daquela tinha uma
mer' uma prostituta. Pelo menos nessa época, ficha na Secretaria de Saúde - não sei se vo-
não existia isso. Lá existia toda uma irradiação cês sabiam disso - tinha aquela ficha com o
desses poemas feitos na carteira de cigarros, nome, a idade, (indicando que era) prostitu-
que o locutor passava o dia lendo e soltando ta. Semanalmente, vinha o médico sanitarista
essas músicas lindas. A minha musicalidade, fazer exame nessa mulher. Examinava tudo,
porque eu também sou músico, foi muito dava o aval - não, dava o brevê."Não, você
formada dentro desse espírito, desses acor- está sadia. Pode continuar". Se estivesse com
des da década de 40, da década de 50 prin- alguma blenorragia (outro nome para go- Descartes disse que al-
cipalmente. Pois bem, eu peguei uma dessas norréia, doença sexualmente transmissível), gumas bandas de forró
gravaram músicas suas
frases e anotei um dia: "Fulano oferece essa tomava aquelas injeções, aqueles medica-
sem dar-lhe a patente de
música de um alguém para outro alguém que mentos e tal que passava. E ela - até por uma autor. Não se incomodou
ele já sabe quem é". Eu anotei isso para dar condição assim de a casa ser respeitada, de com isso.

DESCARTES GADELHAI 131


Pingo contou que, de não vender doença - não praticava. Fazia par- Mayara - Eles se viam caricatos assim?
início, Descartes dizia não
te do comércio. Até de um certo marketing. Descartes - Não, não se viam. Eu pegava
ter músicas registradas.
Mas, durante a produção A madame tinha o maior prazer de dizer que: apenas a alma deles. Eu tentava pegar a iro-
do disco, o compositor "Na minha casa não tem mulheres doentes". nia, porque não m satisfazia apenas em olhar
J

trouxe canções suficien- Isso é legal. Interessante, né? o rosto desse homem. Eu queria olhar e mar-
tes para preencher vários
Leonardo - Você como artista, como ava- car no papel, anotar em traços aquilo ali.
CD's. O número cresceu
tanto que logo a pesquisa lia essa mudança da prostituição romântica Aurimar - Descartes, quanto a elas, você
musical foi encerrada. para uma coisa meio de vazio, como de não- estabeleceu laços afetivos com alguma, se
humanos? envolveu?
Descartes - Eu cheguei de viagem. Eu sou Descartes - Não, não. Muito pouco, por-
louco por água de coco e por peixe também. que eu me senti, a princípio, como eu falei,
Do aeroporto eu saí para a Praia de Iracema. um turista, mas depois, imediatamente, apa-
Então, eu desci do táxi. Quando eu tava des- gou de mim essa idéia, e me interessou muito
cendo do táxi, tirando as minhas bagagens, saber a razão, o porquê de aquelas crianças
eu ainda estava com roupa de frio, porque estarem naquela situação, o que levava essas
eu vinha da França, aí eu fui cercado por um, crianças. Eu passei a acompanhar algumas,
dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, mais conversei muito. Elas são muito fechadas na-
ou menos esse tanto de crianças (contando quilo, não querem dizer. Eu descobri que exis-
nos dedos) falando em Francês, pequenas fra- te uma rede poderosa composta por taxistas,
ses, Inglês, Espanhol e Italiano. Eu notei muito moto-taxistas, pessoas ligadas a pequenos
mais o Francês e o Italiano. À noite (falavam), hotéis, taxistas do aeroporto, enfim, aquela
"Bonjour, monsier" (bom dia, senhor) comi- coisa toda. (Descartes contou aos entrevista-
go. "Por que você está falando em francês dores que fez uma ampla pesquisa de campo,
comigo?" (Descartes pergunta às crianças). investigando e fotografando como funcionava
"Ai, o senhor não é turista não?", porque eu a rede de prostituição. O artista contratou um
estava com roupa de turista. Eu fui cantado moto-taxista para levá-Io aos lugares freqüen-
por um grupo de crianças, meninas e meni- tados pelos turistas na periferia da cidade).
nos. Eu tomei aquele choque. "Não, é porque Isabelle - Como é que ficavam seus sen-
a gente tá fazendo programa aqui". Eu tinha timentos ao ver as crianças fazendo progra-
passado um período fora. Eu disse "Progra- ma?
ma? Como é esse programa?". "Não, a gente Descartes - Ah! Eu tenho netos. Eu ficava
vai transar e o senhor dá qualquer coisa aqui. assim ... Eu me sentia mal. É a parte dolorosa
Dez reais, quinze reais, qualquer coisa serve". da arte. Tudo isso faz parte da arte.
Eu pensei: "Vamos conversar". "Quem jantou Helena - A arte é uma forma de denunciar •
aqui?" "Ninguém" (respondem as crianças). certas mazelas, mas acho que ainda fica aque-
"Bora jantar". Eu pedi o jantar para todo mun- le sentimento de impotência.
do, Coca-cola, essas coisas todas. Elas fica- Descartes - A impotência é total. A impo-
ram muito satisfeitas e passaram a conversar tência é total! Como eu me senti muito impo-
comigo. Mas conversando comigo e obser- tente. O que eu podia fazer? Quem sou? Se as
vando tudo, mas com uma apreensão muito pessoas que têm poder para isso, foram elei-
grande em quem passava. Quando passavam tas para isso, não fazem porque transformam
dois turistas, uma corria e ia falar com o tu- isso numa plataforma política. Eu me senti
rista. Ou seja, quem assedia não é o turista. muito frágil para tomar alguma providência.
O turista coitado, ele compra sua passagem Mas eu sempre compreendi que a arte, a ima-
e vem se divertir no Brasil, né? Quem assedia gem parada, desenhada tem um poder muito
são as meninas e elas assediam por um con- grande de convencimento. Então, fiz essa ex-
dicionamento familiar. posição e, por essa exposição, gerou-se toda
Helena - Mas também o turista vem achan- uma discussão em torno da prostituição. Foi a
do que aqui vai ter essa facilidade. primeira pessoa que lançou a público a tragé-
Descartes - Essa facilidade também, né? dia dessas crianças ... Foi esse trabalho que eu
Tem os dois lados que pesam. Então, eu me chamei de Iracemas, Morenos e Coca-colas.
interessei bem em desenhar essas meninas. Walber - Por que o nome Iracemas, More-
Só que não parei mais. Entrei em outro surto. nos e Coca-colas?
Surtei e passei a desenhar tudo. Só que eu Descartes - É uma associação, um con-
Na pré-entrevista, Des- desenhava turista, pedia para o turista posar junto de associação. Iracema é uma associa-
cartes falou com entusias- para mim. ção com a Iracema do Alencar (Refere-se ao
mo sobre a comercializa- Mayara - E eles topavam? escritor cearense José de Alencar, autor de
ção do CD que, segundo
Descartes - Topavam sim. Mas eu queria clássicos como Iracema e O guarani), porque
o artista, será distribuído
pelos camelôs do Beco da pegar o arquétipo psicológico para trazer para a Iracema foi estuprada por um turista que se
Poeira e demais "piratea- o ateliê e fazer aquilo ali que você viu. Não era chamava Martins Soares Moreno. Coca-colas
dores". fazer a pintura. porque na década de 1940, no apogeu da Se-

REVISTA ENTREVISTA I 132


gunda Guerra Mundial (Guerra ocorrida entre está ocorrendo na Praia de Iracema. Eu utilizo No terceiro encontro
antes da entrevista oficial,
os anos de 1939-1945), os Estados Unidos se um genocídio. E um genocídio mais do oroso
Descartes mostrou aos
instalaram aqui, em Fortaleza. Os Estados Uni- do que qualquer outro genocídio de guer a, produtores Isabelle e Ar-
dos não, os militares norte-americanos fica- porque o genocídio de guerra é instantâ- mando o ateliê onde pinta
ram aqui por questões de estratégia, porque a neo: pum! Esse é doloroso porque é moral e também compõem suas
músicas. Além disso, os
ponta da América do Sul está aqui no Ceará, é também. Muito mais doloroso do que físico.
fez ouvir o CD produzido
mais perto da Europa, é mais perto da África Então, essas crianças estão sendo, paulatina- com seus maracatus.
e tal. Eles se instalaram aqui com uma base mente, lentamente assassinadas, por drogas,
chamada Posto de Comando, exatamente. A por tudo.
Posto de Comando tinha uns cem militares Walber - Em um dos quadros da série
norte-americanos, né? Parte dormia ... Foi alu- Iracem as, morenos e coca-colas, você carica-
gado o Excelsior Hotel (situado no cruzamento turiza um apresentador de TV do Ceará, uma
das ruas Guilherme Rocha e Major Facundo, crítica direta à mídia.
no Centro de Fortaleza. Está desativado desde Descartes - Sim, sim, sim. Porque aque-
1987) e a outra parte ficou lá no Estoril (antigo le quadro ( refere-se ao quadro "O senhor
casarão da Praia de Iracema construído nos dos cordões" ) tem uma associação também
anos 40.). Só que eles trouxeram a Coca-cola. com o Senhor dos Anéis (Refere-se à trilo-
E as meninas que assistiam aos belos filmes gia hol/ywoodiana baseada no romance do
norte-americanos com aqueles atores loiros, escritor, professor e filólogo britânico J.R.R.
lindos, sonhavam em transar com um dos mi- Tolkien) ou com os grandes manipuladores.
litares que estavam aqui instalados. E as famí- Aquele personagem que vocês conhecem
lias preconceituosas chamavam, apelidavam muito bem (João Inácio Jr. Apresentador de
essas meninas de Fortaleza que iam namorar programas populares na Rádio Verdes Mares
os americanos de Coca-colas, porque Coca- e na TV Diário), eu entendo, pelo menos eu
cola é moreninha, garrafinhas gordinhas, bai- entendia na época, que ele era um manipula-
xinhas como nós fortalezenses. É por isso que dor. Ele tinha umas mulheres chamadas pan-
eu chamei a exposição de Iracemas, Morenos teras. Não. Como era, meu Deus?
que são os turistas, associados com Martins Todos - Tigresas.
Soares Morenos, e as Coca-colas dos ameri- Descartes - Tigresas! Ele controlava como
canos e a bebida Coca-cola que até hoje en- se fossem uns cordões (faz gesto como se
feita a casa. manipulasse marionetes). Coitadas!E elas ti-
Mirelle - Você acompanhando essas me- nham a bunda muito grande, por conta do si-
ninas, teve todo um trabalho de descoberta licone e aquela coisa toda. E ele vendia aquele
que muita gente não sabia. Incomodou algu- produto, vendia muito bem, não era, vendia
mas pessoas? aquilo tudo. E era como se fosse um mago.
Descartes - Eu tenho a impressão que Um mago cujo produto que lhe dá dinheiro
decepcionou algumas pessoas. Incomodar ele tem medo de pegar AIOS. Então, por isso
não porque os políticos não têm essa sensi-
bilidade de se incomodar. Mas decepcionei,
porque as pessoas que têm os dossiês da
IJNão queria usar
prostituição infantil não foram à exposição.
Porque isso é um espelho: a arte é um espe-
essa palavra
lho. Eles não queriam se ver neste espelho,
nesta cobrança caricatural. Não deixa de ser
prostituição para o
caricatural, diante de uma pessoa, de uma
mulher política, dessas senadoras que traba-
que está ocorrendo
lham - se dizem trabalhar - com a questão da na Praia de Iracema.
prostituição infantil e não resolvem nada. E é
tão fácil de resolver para eles que têm pode- Eu utilizo um
res para isso. Então, o meu trabalho como o
trabalho do Jangurussu serviu de abrigo para genocídio. E um
um discurso, pelo menos abriu um discurso,
em torno dessa questão. Ou verdadeiro ou
genocídio mais
não-verdadeiro, ou midiático, apenas midiáti-
co. Então, a Praia de Iracema foi transformada
doloroso do que
o ateliê funciona em sua
num cenário desse tipo de vida, ainda hoje
está funcionando lá. Ela deixou de ser bucóli-
qualquer outro casa, em uma das salas.
Lá, do lado direito, tem um
ca para ser outra coisa, né? Realmente é uma genocídio de guerra cavalete armado e uma
tela pronta; do esquerdo,
praia bonita. Hoje é um cenário de uma forma
que eu não considero prostituição. Não que- ( ... )." papel, lápis e o teclado
prontos para compor a
ria usar essa palavra prostituição para o que partir de algum insigth.

DESCARTES GADELHAI 133


Descartes é fascinado dizer em síntese que é isso mesmo. Fiz a pas-
por caravelas. Participa de sagem do centenário. Do centenário? Não,
uma rede de discussão na
dos setenta anos da destruição do Caldeirão.
Internet que reúne pesso-
as do mundo inteiro. Em Fiz uma pequena exposição sobre esse tema
casa, possui várias réplicas que não deixa de ser uma extensão de Canu-
das embarcações constru- dos.
ídas por ele mesmo.
. Iber - Em 1983, houve uma exposição
sua aqui chamada O santo, a fé, o homem e a
Terra. No texto do Jornal O POVO, o jornalis-
ta diz que na suas obras as cores da religiosi-
dade preponderavam. Quais são as cores da
que os dedos dele estão com camisinha. Os religiosidade?
dedos dele têm camisinhas. Então, era essa Descartes - A cor da religiosidade é a cor
a intenção. do povo. Essa religiosidade que eu falo não
Mayara - Existe uma série sua que se cha- é a religiosidade da disciplina, da ordem da
ma Caldeirão da Fé. A gente já falou aqui de Igreja Católica, não. É a cor da religiosidade
marginalidade sertaneja, de marginalidade do povo. A estética da religiosidade, a estética
urbana, de prostituição. A fé está em todos religiosa dessas comunidades.
esses lugares? Helena - A maioria das suas obras estão
Descartes - Sim, sim. A nossa religiosi- expostas aqui no MAUC. Acho que o MAUC
dade ... O que a Companhia de Jesus (ordem tem uma representação na sua vida impor-
religiosa fundada em 1534 por um grupo de tante mesmo. Por que o MAUC? Qual a sua
estudantes da Universidade de Paris, lidera- relação com esse espaço?
dos pelo basco ífíigo López de Loyola, conhe- Descartes - Porque eu assisti ao parto des-
cido posteriormente como Inácio de Loyola) se museu. Quase que participei como um au-
fez foi muito bem feito entre nós. Meteu pela xiliar, enfermeiro, sei lá (risos). Isso aqui era
nossa cabeça o catolicismo ainda no ano de uma casa bonitinha como se fosse no estilo
1560-1600. Foi muito forte os Jesuítas, os Art Noveau (estilo estético essencialmente
Beneditinos, aqui com a questão da Compa- de design e arquitetura que também influen-
nhia de Jesus, dizendo que o catolicismo era ciou o mundo das artes plásticas. Teve gran-
a salvação de tudo. E isso não saiu, talvez não de destaque durante a Bel/e Époque) e era
vá sair nunca. Foi introduzido no nosso DNA. uma escola de música chamada Santa Cecília
Então, a religiosidade nossa é muito forte. A (O Colégio Santa Cecília ocupou, até 1959, o
principio católica, depois umbandista e agora espaço onde ficam o Departamento de Ar-
pentecostal. quitetura e Urbanismo e o Museu de Arte da
Isabelle - Voltando só um pouco para Cal- UFC, no Benfica. Hoje o colégio funciona no
deirão de Fé. O messianismo, muitos movi- bairro da Aldeota), me parece. E a Universida-
mentos messiânicos são presentes, como de comprou essa escola. O professor Martins
Caldeirão, Canudos. Por que isso chama tanto Filho (Um dos fundadores e primeiro reitor da
a sua atenção? Universidade Federal do Ceará) aproveitou o
Descartes - Bom, é porque quando encer- lance de ser uma escola de cultura, de mú-
rei Canudos, quando me livrei de Canudos eu sica e disse: "Vamos fazer um museu aqui".
achava que estava sarado. Mas não. Existiu Mas imediatamente o acervo estava crescen-
um Canudos menor aqui no Ceará que foi a do muito e alguns colegas iam, autorizados
questão do Caldeirão (comunidade localizada pela Universidade, comprar, amealhar peças
no sítio Caldeirão, no município do Crato, no artísticas como esculturas, pinturas, peças em
sopé da Serra do Araripe, entre os anos de geral para esse museu. Diariamente eu ficava
1926 e 1936. Reunia sertanejos de diversas por aqui e o Professor Martins Filho passava
partes do Nordeste). Com a mesma filosofia, para olhar o museu. Aqui já estava trabalhan-
a mesma situação. A única diferença é que do o Lívio Xavier (Foi o segundo diretor do
o Beato era negro. A única diferença. Aliás, MA UC de 1962-1963. Antes de assumir o car-
o único Beato popular negro do Brasil foi o go, passou um tempo na Europa estudando
José Lourenço (beato que coordenava os tra- para assumir a direção), estava o Floriano
No dia da entrevista, balhos na fazenda Caldeirão). Então, quando Teixeira (Floriano de Araújo Teixeira nasceu
chegamos cedo ao MAUC
eu pensava que tinha me livrado de Canudos, Cajapió, no Maranhão, em 1923. Foi pintor,
para preparar o lugar. A
idéia era ambientar o lugar começo a ler de novo sobre essa questão do desenhista, miniatuarista, capista, retratista,
com as obras de Descartes. messianismo, dessa religião mais dita primiti- gravador e escultor autodidata brasileiro. Em
A equipe do museu teve va, que é discutível essa questão do primitivo, 1962, foi convidado por Antônio Martins Filho
que nos dar uma "mãozi-
e eu me interessei pelo Caldeirão. Vi que era para integrar a equipe da Universidade do
nha" antes que nosso ta-
lento deixasse marcas de uma repetição em pequena escala. O Caldei- Ceará, como desenhista, exercendo também
marteladas nas paredes. rão é uma miniatura de Canudos, podemos a função de pesquisador. Floriano organizou

REVISTA ENTREVISTA 1134


e foi o primeiro diretor do Museu de Arte da tar me organizar para responder essa pergun- Diante da infinidade de
telas e esculturas, cada
Universidade Federal do Ceará), que foi o ta que é importante para mim. .. Eu acho que
uma tão representativa
maior pintor que já passou, o melhor técnico tanta atividade aqui no museu, expondo, e eu quanto a outra, dá para
de pintura a óleo que o Ceará já teve, também mais pedindo para expor aqui por conta de imaginar como foi difícil
foi diretor daqui; e o Zenon Barreto (artista querer mostrar esse trabalho num local que escolher quais obras se-
riam expostas. Resultado?
plástico, desenhista, ilustrador, pintor, escul- tivesse uma certa proteção, tanto física quan-
Uma sala repleta de qua-
tor, cenógrafo e figurinista. Nasceu em Sobra I to proteção de órgão importante como a uni- dros, o que surpreendeu
- CE,em 1918, e faleceu em Fortaleza- CE,em versidade. Quando a gente desgruda de um até o próprio Descartes.
Janeiro de 2002). Eu era um garotão no meio trabalho, a gente perde o afeto. Pelo menos é
dessas feras. comigo assim. Então, eu não tenho nenhum
Uma determinada ocasião eu criei cora- afeto por um trabalho desses, nem escultura,
gem, peguei e mostrei os meus desenhos ao nem nada. Para mim passa a ser uma peça
professor Martins Filho. Ele olhou os dese- de uma outra pessoa que fez. Na realidade foi
nhos. "Deixa eu olhar seus desenhos". Olhou um outro Descartes que fez. Eu hoje sou uma
um, olhou outro, olhou outro. "É, tá direito". outra pessoa.
Não disse que tava bom. " Tá direito, tá mui- Isabelle - Descartes, mas essas obras têm
to direito você fazer isso." Eu olhei para ele. um valor. Como é que ficou a sua família, por-
"Olhe, continue a fazer seus desenhos de quin- que é também uma questão de herança, como
tal. Porque seus quintais vão ganhar o mun- é que ficou sua família ao saber da doação?
do". Olha, foi uma aula de arte que eu tive, não Descartes - Fome, fome. Bodega atrasada,
foi não um negócio desses? Ter falado que luz atrasada, né? Porque faz parte da loucura
meus quintais iam ganhar o mundo? Ou seja, (risos). Sabe que todos têm de participar do
estava incluído nessa frase, nesse slogan do meu sacrifício. Isso é uma coisa um pouco
particular para o universal. Que vocês conhe- perversa do que eu estou falando. Mas quem
cem bem essas frase dele, né? Do particular convive comigo tem que participar um pouco
para o universal. Ele disse ainda mais: "Olhe, da minha dor. Claro, né? Tem que se contami-
(sussurrando) eu não entendo nada de arte, nar com a minha dor. Pois bem ... O que é que
mas eu quero que exista esse museu. Quanto eu estava dizendo mesmo?
à técnica, procure aquele homem acolá". Que Helena - Da criação da sala ...
era o Zenon, o grande Zenon Barreto e o Flo- Descartes - Sim, sim, da sala. De repen-
riano Texeira para eu consultar, para saber se te o professor Pedro Eymar (atual diretor do
estavam bons os meus trabalhos. Pronto. Foi MAUC) disse: "Descartes, nós vamos fazer
o motivo dessa paixão por esse museu. uma sala com você". Eu senti aquele impacto
Mirelle - A gente pode dizer que o MAU C, danado. "Meu Deus, será que eu vou morrer?"
além de ser um museu, é seu refúgio? Porque o Raimundo Cela (pintor, desenhista,
Descartes - É sim. Além de um refúgio, gravador, professor e engenheiro cearense
é a minha Igreja. É aqui que eu rezo. Mesmo nascido em 1890 foi um dos mais importan-
que não tenha quadro nenhum, é aqui que tes artistas do Estado. Morreu em 1954, no
eu passo vez por outra e rezo para os meus Rio de Janeiro) morreu, o Bandeira morreu,
bichinhos, para os meus santinhos, minhas o Chico (Francisco Domingos da Siva, o Chi-
coisas. co da Silva, nasceu em 1910, em Alto do Ejo,
Armando - Como foi quando criaram a no Ceará. Filho de um nativo peruano e mãe
sala Descartes Gadelha? cearense, ficou mundialmente pela autoria
Descartes - Foi estranho. (risos) Quer di- de fantásticos e rústicos murais, produzidos
zer, peraí, não é bem estranho. Deixa eu ten- basicamente com carvão, terra e folhas), o

Quando chegou à sala


especialmente preparada
para a entrevista, olhando-
nos ao seu redor, comen-
tou: "Tô me sentindo um
griô!".

DESCARTES GADELHAI 135


,I" ••• 1 t • ..,

Griô é o nome dado aos Martins (Aldemir Martins, artista plástico ao ponto da pessoa se manter de arte aqui no
mestres africanos respon- Brasil.
nasceu em Ingazeiras, no Vale do Cariri, no
sáveis por contar a história
de sua gente para as novas
Ceará, em 1922. A sua vasta obra é reconhe- Helena - O Descartes músico é outra pes-
gerações. E era isso que cida pela qualidade técnica e por interpretar soa?
ele faria ali. o "ser" brasileiro) também morreu. Será que Descartes - O meu lado músico é mais pela
eu vou morrer? Eu tava com um câncer muito questão da matriz africana, porque eu sou ne-
forte. "Eu vou morrer mesmo. É por isso que gro, vivo como negro, eu me acho negro, já
vão botar essa sala para mim. Eu vou morrer que tem muito negro que não se acha negro,
de qualquer maneira. Eu sou um pintor amigo eu me acho! Eu me envolvo muito com as
da turma todinha e de qualquer maneira vão questões das religiões de matriz. Religiões de
botar". Mas, quando eu vi a sala inaugurada, matriz africana são o Candomblé e a Umban-
é como se eu entrasse para ver uma expo- da. Eu faço algumas canções, alguns pontos
sição de outra pessoa. Isso é verdade o que - são chamados pontos os cânticos - para
eu estou dizendo! Um sentimento, uma coisa essas casas e faço também pros Egexas, pros
que não tinha nenhum vínculo com as peças. Afoxés, que é o Candomblé profano. O Afo-
Até achei umas peças bonitas. Já pensou? xé é aquela música que pode ser feita fora do
(risos) "Olha que legal!" É realmente como ritual da casa do Candomblé, pode sair pelas
se estivesse visitando uma exposição e que ruas tocando, as pessoas brincando, aquele
essa pessoa homenageada fosse uma outra carnaval. Eu componho pra isso. Eu também
pessoa. Isso faz parte da minha esquizofrenia. componho principalmente para os maracatus
Deve fazer, né? Porque você receber uma ho- de Fortaleza. Faço parte do maracatu, sempre
menagem e sentir que essa homenagem não com a música rítmica, com a pulsação forte.
é para mim, mas para um outro Descartes. É A temática também sempre dentro da política
um sentimento que eu organizo assim. do meio. Todas as temáticas do maracatu são
Gabriela - Você já tem muitas décadas de sobre as questões dos negros aqui no Brasil.
vida, afinal são 65 anos. Como é que foi até Helena - Você participou de quase todos
hoje viver de arte, da pintura, de música, de os maracatus de Fortaleza, muitas vezes in-
escultura? fluenciando o ritmo desses grupos.
Descartes - Eu não sei dizer como é que Descartes - O maracatu não é um ritmo,
eu escapei. O comércio de arte é uma menti- é uma comunidade, pode ser um quilombo,
ra. No Brasil dizer que existe comércio de arte, um maracatu pode ser uma associação. Nun-
mercado de arte... Eu não sei, eu não con- ca um ritmo. O maracatu pode tocar o rock,
cordo com isso. Não acredito que exista um que tem base negra, ele pode tocar qualquer
mercado de arte. Para existir um mercado de coisa. O que acontece é que aqui em Forta-
arte teria que existir uma política cultural em leza existia uma forma rítmica muito frenéti-
torno disso e não existe essa política cultural. ca, desde o começo do século passado até
É como acontece comigo, se alguém quer um os anos 50, e era um ritmo muito alucinan-
quadro, é quadro pra lá, dinheiro pra cá. Sai te. Era uma espécie de rock muito presente
dolorosamente de mim, sai, fico com sauda- e isso perdurou até mais ou menos a década
de, mas descartei ele. Foi embora, graças a de 1960, quando os maracatus foram influen-
Deus. Então, não existe um comércio de arte ciados pelos carnavais do Rio de Janeiro, por
aquilo que eles viam nas revistas e depois na

"Ouando eu vi a sala televisão, que eram as fantasias de luxo apre-


sentadas na televisão. Os maracatus "tu cuti
inaugurada, é como cuti cutu cuti cuti cutu" (Descartes reproduz
o som com a boca) eram aquela coisa bem
se eu entrasse para animada porque as fantasias eram bem leve-
. -
ver uma exposiçao
zinhas, eram rendas daqui da terra mesmo,
eram algodãozinho e isso facilitava a coreo-
grafia, só que, com o advento da televisão, os
de outra pessoa. desenhistas viam aquelas fantasias magnífi-

(...) Um sentimento,
.
cas, principalmente dos bailes que ocorriam
no Rio de Janeiro, chamado Baile do Munici-
uma coisa que pal onde acontecia um concurso de fantasias,
só que essas fantasias eram monumentos.

No fim da entrevista o
não tinha nenhum Então, o pessoal dos maracatus disse:
"Olha, vamos fazer essas fantasias!" Todo
entrevistador Armando
pergunta por que Descar-
vínculo com as mundo começou a imitar essas fantasias
pesadas, fantasias que continham ferro por
tes não bebeu a água que
a produção colocou. Res- peças." dentro, pesavam 10, 20 até 30 quilos. O que
posta : "é arte" foi que aconteceu? Eles tiveram de mudar a

REVISTA ENTREVISTA I 136


cadência rítmica e atrasaram o andamento do A avaliação da e e s-
maracatu. Em vez de ser: "tu cuti cuti cutu" ta de Descartes despertou
uma maré de emoções en-
(reproduz com a boca o ritmo acelerado), pas- tre a turma. Uns choraram,
sou para a metade "tu eu ti cu tu" (fazendo um outros contaram como a
som mais lento com a boca) tiveram de colo- entrevista havia modifica-
car bem lento o ritmo para poder desfilar. Re- do a vida.

sultado: os maracatus deixaram de ser um es-


petáculo, uma brincadeira dançante para ser
uma procissão de belíssimas fantasias. Isso
foi bonito, uma solução estética em detrimen-
to de uma música muito bonita, muito forte,
de ritmo forte. Depois que foram descobertos na natureza, que em outras palavras é o Can-
os ritmos antigos através das gravações feitas domblé. O Candomblé é uma religião brasilei-
pelo Orson Wells (foi diretor, roteirista, produ- ra de matriz africana que cultiva os Orixás. O
tor e também ator. Iniciou a sua carreira no que é um Orixá? O Orixá, segundo a mitologia
teatro, em Nova lorque, em 1934. Seu filme africana, negra, é aquela pessoa, aquele ser,
mais conhecido é Cidadão Kane, 1941), quan- aquele deus que administra, que cultiva, toma
do esteve aqui no Ceará fazendo a gravação conta, zela por um trovão, por exemplo, pela
do filme tt's Ali True (documentário inacaba- energia do trovão. Esse Orixá chama-se Xan-
do sobre o carnaval, de 1941), onde ele fez gô e para cada setor da natureza, para cada
várias gravações com Maracatus da época ... momento, para cada peça da natureza, tem
Esse material estava numa organização nor- um responsável, um Orixá, que é administra-
te-americana que documenta tudo quanto é do por um deus infinito e maior chamado 010-
música, gravam até se o cara tava de bigode rum. O Olorum não tem corpo, ele é energia.
na hora da gravação. Eu sei que foi descober- Já os Orixás têm corpo, têm forma. Então,
to esse material e nós começamos a escutar. eu trago comigo, está dentro de mim toda a
Não é que eu modifiquei, apenas trouxe de questão desse culto as forças da natureza e
volta aquele ritmo antigo. O ritmo moderno - sai com facilidade na música.
esse ritmo muito lento - já está praticamente Armando - Em outro momento você co-
em desuso. mentou que compôs com o pinga-pinga do
Mayara - E o processo de composição das soro, quando estava no hospital, e mencio-
músicas é tão esquizofrênico quanto a com- nou que teve um câncer de intestino muito
posição das pinturas? grave. Como foi condicionar essa inquietação
Descartes - A minha música é medíocre. artística a partir da doença?
Ela é medíocre porque segue uma determi- Descartes - Eu fiz amizade com ele, não bri-
nação, ou seja, ela segue um tema dado por go mais com meu câncer. Hoje ele é compa-
uma pessoa. nheiro meu, não brigo mais com ele. Pra fazer
Gabriela - Não há composições a partir de a música de matriz africana, você não pensa
inspirações suas, inspirações do Descartes, nas notas musicais, você tem de pensar nos
que depois ficam ali, guardadinhas? ritmos, depois é que você vai organizar cada
Descartes - Olha, existe uma coisa impor- notinha musical em cima dessas coisinhas
tante em cada ser humano que é a ancestra- rítmicas. Eu estava numa situação sem poder
lidade. Eu acredito muito nisso. Existe uma me mexer, com um negócio enfiado aqui, ou-
musicalização ancestral no negro. É uma coi- tro aqui, um não sei aonde (aponta para vá-
sa tão interessante para o negro a questão rias partes do corpo). Eu pensei: "Preciso de
do ritmo: a pulsação rítmica, a sonorização um ritmo, preciso de uma pulsação", que é
são estruturas que também estão no nosso mais ou menos isso: tan...tan ...tan, que trans-
DNA, eu penso. Eu acho que existe uma mú- formado em música é mais ou menos isso:
sica que está dentro da nossa matriz. Se eu tan tan tantan ...tantan (batuca com as mãos
for fazer uma outra música fora do maracatu em uma mesa à frente dele) e eu não tinha
eu não consigo fazer, fora do samba eu não esse metrônomo e eu descobri que na minha
faço também. Os sons são sons do continen- frente tinha uma coisa pendurada que pinga-
te africano, do africano negro, evidentemente, va, que era o soro misturado com a quimio-
da parte negra da África e esses sons nascem terapia. Eu observei e comecei a criar música
assim facilmente. em cima desse pingado do soro, desse gote-
Walber - Em todas suas séries produzidas, jamento do soro. Quando o cara tirou o soro
a religiosidade está presente. A religiosidade eu estava com duas loas (palavra que significa Mayara, que tanto se
também está presente na música? homenagem) prontas, feitas em cima desse envolveu durante a entre-
vista, comoveu a turma
Descartes - De certa forma sim. É aquilo pingado de ritmo contínuo. Teve momentos
ao contar à mudança que
que eu falei: a minha religiosidade ancestral é que eu estava louco para acelerar e eu pedia a o encontro com Descartes
a que cultiva as coisas básicas e fundamentais moça para acelerar um pouquinho porque eu trouxera para ela.

DESCARTES GADELHA I 137


Mayara mudou os pIa- precisava fazer uma música um pouco mais
nos de pesquisa para o
forte. A moça dizia: "Não me peça uma coisa
trabalho de final de curso
para dedicar-se, com a aju-
não, não posso fazer não, você vai morrer, vai
da de Descartes, à arte. 'papocar"'. O que eu fiz: se o pingo era as-
sim toco ...toco ...toco, coloquei mentalmente
outro pingo invisível pra fazer toco.. totoco ...
toco ..totoco. Aí deu certo e eu organizei a mú-
sica, em plena cama do hospital.
Armando - Você já se viu na iminência de
não poder produzir mais música?
Descartes - Não. A não ser que eu estives-
se na demência, porque pra mim a demência
é o maior prêmio que a pessoa pode rece-
ber, você não pensar em mais nada pra mim
é uma maravilha. Mas como penso ainda,
mesmo impossibilitado mecanicamente, fisi-
camente, existe a cabeça trabalhando e isso
é legal, porque você pode se manter vivo ape-
nas pela idéia, pelo pensamento e isso é fato
comprovado.
Isabelle - Descartes, dos tempos que você
grafitava nos muros até hoje, você achava que
sua vida iria estar tão ligada à arte?
Descartes - Não, não, não! Não porque
eu nunca pensei em ser artista e continuo
não pensando, continuo pensando a mesma
coisa. Porque a arte entrou pra mim por uma
determinação através da palavra "artista", só
porque uma pessoa disse que eu era. Se al-
guém nunca tivesse dito que eu era artista eu
não teria assumido. Até hoje eu não acharia
que era. Porque o que eu faço na realidade
não é arte. Isso (referindo-se a uma pintura
de/e) tem vínculos com arte porque tem mol-
dura, tem tela, tem tinta, tem pincel. É uma
coisa feita com elementos da produção artís-
tica, com elementos que outros pintores uti-
lizam, mas eu não me considero um artista,
considero-me uma pessoa meio doida que
usa suportes da arte para dar o seu grito, fa-
zer minhas denúncias. Eu não sou político,
eu não tenho poder nenhum pra dizer que as
pessoas lá no Jangurussu estão morrendo de
fome porque não podem catar mais. Então,
eu pinto um quadro pra dizer isso. Mas isso
não quer dizer que seja arte, isso é um recur-
so que eu utilizo. Eu apenas utilizo a arte para
dar o meu grito.

o impacto que a arte de


Descartes causa persistiu
até mesmo nos últimos
minutos de trabalho.

REVISTA ENTREVISTA I 138

Você também pode gostar