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Artesania

9 No final dos anos 1970, sentir tédio era parte do coti-


diano. Não havia internei, mas havia enciclopédias, e
era um téd io folhear a Barsa como distração . A tevê
tinha seis canais, a programação começava no meio da
manhã, e era um tédio ficar vendo aquelas listras colo-
ridas na tela enquanto não começava o Mundo Animal.
Dava pa ra telefonar para uma amiga, no telefone de fio
preso no meio da sala, e não havia nada para contar a
ela. A Cristine me telefonava e ela não tinha nada para
me fa lar. Eu virava os olhos porque ela queria discutir
0
fato de q ue ter cabelos e olhos da mesma cor era
monótono. Legal era ter cabelo escuro e olho claro, ou
vice-versa . Tédio. Havia bordado da avó, havia faxina na
despensa, e a salvação era a Sessão da Tarde, menos
quando passava Lassie. Não de novo. Filme de dança,
por favor, meu deus, porque havia deus como parte do
tédio. Pode ser Fred Astaire, Gene Kelly, a maravilhosa
Rita Hayworth o u até aquela que nadava o tempo todo
no filme . A maioria dos roteiros era sobre um cara que
cantava ou compunha e precisava de uma chance para
brilhar. Enquanto a chance não aparecia, ele conhecia
uma garota e eles rodopiavam sem efeitos especiais,
com mais técnica do que os atores de La La Land. Numa
tarde, o inesperado fez uma surpresa: no roteiro do fll-
me, o cara percebia que não era extremamente talen-
r toso, então decidia ser produtor de pessoas talentosas.

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. rtante das exposições em espaços
. d' no e 1mpo ,
E foi muito feliz, 111u1to ig S c enquanto houver Sesc, e em
. organizou espetáculo s para vanos , . can-
endentes, no es d
tores, compositores ou dançarinos melhore 5 d o que ele in d ep . p rtanto 97 % dos forma os em
as galerias. 0 '
. Penso, nesse filme
, constantemente · No ªte 11.•e d a Patrí-
· pequen . f • outra coisa da vida; e, felizmente, as
visuais arao . ,
cia, eu so conseguia lembrar do terno cinza do a tore d 0 artes_ . ·d d de carreira e de felicidade são inume-
oss1b1l1 a es
ca b elo dele esticado com gumex todo para t ras,
, enquan- p f . bservações empíricas ) . O pior ·
que po e
d
to ela me falava que só seria feliz no dia em que O Agnal- ras ( ante . o o/c que não serão artistas d e sucesso
aos 97 °
do elogiasse
. o trabalho dela . Mas ' Patrícia , ele nunca va 1• ªcontecer
. d rt contemporânea é ficarem ressentr os.
'd
elogiar seu trabalho, você é O sucesso dos decoradores no sistema a a e vida fazendo outra coisa . (ta 1vez pro-
tudo o que você faz combina com o sofá da Forma, e : Melhor gan har a . d
. . d utras pessoas circulem pelo sistema as
por isso que você vende tudo o que produz e sustenta p1c1an o que O ) .
. • galerias catálogos, bienais de arte e seguir
esse ateliê de noventa metros quadrados, e compra essas expos1çoes, , . .
• _ artística ou de artesan1a ou de design
cadeiras Herman Miller para pôr em volta da mesa de sua pro d uça 0
ou de crescimento pessoal - em paz.
trabalho. Você faz coisas bonitas, como uma luminária. Estar no mercado é um inferno. Ser finalmente repre-
Olha essa escultura, põe na tomada que vira a luminá-
sentado por uma galeria não é porta para a felicidade .
ria mais desejada da CasaCor. Você, Patrícia, tem outro
Tern a frustração de saber que suas obras estão para-
público. Nem sei se dá para dizer que você é artista.
das no trainel ao mesmo tempo que você tem que lidar
Arte hoje é outra coisa. E ouvi do próprio Agnaldo que
com a angústia de estar se vendendo (mesmo que nada
o Matisse foi o último artista que saiu ileso depois de
tenha saído do trainel ainda) para um sistema que não
declarar querer fazer coisas tão bonitas e confortáveis
está nem aí com as questões políticas que orientam sua
quanto uma poltrona. Às vezes é isso: a gente tem que
produção. Tem as crises anuais de seu trabalho não ser
parar de sofrer querendo o reconhecimento do sistema
incluído no stand da SP-Arte, e dali a pouco vêm as cri-
da arte e ser feliz com outras coisas.
ses bienais por seu trabalho não ser incluído na Bienal
Formam-se uns cem bacharéis em artes plásticas por
de São Paulo. Por outro lado, se você é um sucesso, a
ano só na cidade de São Paulo. Fora as pessoas que
vida também não é fácil. O Ernesto Neto, antes de se
se dedicam às artes visuais sem fazer faculdade . Quan-
jogar no daime, compôs um rap falando sobre a pres-
tas dessas pessoas serão sucessos estrondosos nas fei-
ras de arte daqui a vinte anos? Uma, no máximo. Mais são que é ser um artista de sucesso incluído em todas
uma circulará discretamente no mercado de arte. Uma as feiras de arte e em muitas bienais. Você tem que ter
terceira participará de exposições no circuito paralelo, ideias incríveis a cada mês, dar palestras para pessoas

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que esperam algo revelador de vo • . . que O artista precisa se r autor de uma
ce, aceitar g 1 • - é d e h01e
Nao .
e cura d or d ando pitaco na instai - d a ensta _ d demonstração de virtuosidade nos
açao o seu trab lh0 ·d . e nao e uma . .
ou no seu trabalho, assustar-se com O ª ' e,a_ _ A ·d . da Mariana Palma é não te r ,de,a nenhu-
f mercado n ince1s i eia
orma nua - isso deve ser duro para os rt· a sua p : roduzir as sedas e riquezas que as pessoas
B ld . d' a ,stas John ma e so rep T b,
a essan ,sse que, para um artist '. r e que confunde m com arte. am em
. - , a, ver uma feira de gostam d e ve
arte e tao traumatico quanto é para uma . . te em reprodução mimética, Sandra Gamarra
. ' criança, ver profi c1en . d ,.
os pa,s transando: melhor saber só intelectual t , cnica minuciosa a serviço a po 1itica quan-
1 . , men e que co1oca a te f
a go acontece, e criar as proprias fantasias . . m o' leo sobre tela imagens de o bras amosas
d o copia e .
A artista *** (não pedi autorização para menc ionar 1. das em livros de arte, que passam a integrar o
reproduz • . . ) .
o nome dela, e ela só permite ser citada por pessoas Museu de Arte Contemporanea de Lima (L1Mac , pro1e-
que o façam) se autoapelidou de "a artista impossível " to de museu fictício que Gamarra iniciou e m 2002 par~
e sua obra mais famosa é escrever cartas ao sistema da compensar a falta de um museu de arte conte mpora-
arte explicando por que ela não aceita que mencionem nea na capital peruana. Gamarra elevou ao q ua~ra~o a
seu nome : qualquer empresa que esteja patrocinando potência política de sua ideia quando reproduziu pintu-
o livro, catálogo ou exposição que a cite precisa com- ras da famosa série de Gerhard Richter sobre o grupo
provar ter ética irrepreensível em termos humanitários Baader-Meinhof. Como o MoMa de Nova York recusou-
e ecológicos. Não sei se passo no crivo. Obviamente -se a emprestar as pinturas originais de Richter para a
nenhum patrocinador passa, e, portanto, é impossível si<f Bienal de São Paulo, os curadores Agnaldo Faria~ e
para ela circular no sistema da arte. Daí a alcunha e uma Moacir dos Anjos recorreram a Gamarra. Quem precisa
obra conceituai que resiste ao próprio sistema e que vai do MoMA quando temos LiMac?
sobreviver para além de todos nós. Tanto que qualquer Sozinha, a artesania não tem lugar na arte contem-
pessoa que trabalhe com arte contemporânea sabe de porânea. E o Jorge, sentado quieto no bate-papo com
quem estou falando. artistas numa pequena galeria, em um sábado d e prima-
O Jorge é outro caso interessante, por ser totalmen- vera, indignou-se ao saber que não precisa saber escul-
te contra a arte conceituai. Ele é um jovem estudante pir para ser um artista que materializa sua ideia nu ma
de arte que pinta a óleo com uma técnica de deixar 0 escultura. Desculpa, mas não tinham te contado isso?
Vermeer embasbacado. E sofre porque, fora a Mariana Que um artista pensa, faz o projeto e pede, por What-
Palma, ninguém mais no Brasil é aceito na arte contem- sApp, para um artesão executar? Sinto-me uma destrui-
porânea por copiar fotograficamente ob·1etos do mun d o. dora de ilusões perante olhares assustados, mas vou em
frente, pois nem a obra do Vermeer era feita só po I d O do vesti'b uIar da USP sai só em janeiro, e
r e e· 0 resulta , a na prova de aptidão.
havia o auxílio da câmara escura. Já escrevi um par ' . 1· ninguem pass d
ecer sem v10 ino d do Photoshop, o rosto oves-
sobre isso a pedido de um advogado que precisava dar em nova cama a
subsídios ao juiz que decidiria quem era o autor de uma Como d ódio e ele sai batendo a por-
d toma as cores o lh
escultura, o artista que teve a ideia e desenvolveu O con- tibulan ° ara trancar. Recebo o ares
redutora corre P .
ceito ou o artesão da fundição em bronze. Ué, Jorge, a ta, que ª P . rt' tas Além de diferenciar arte de
1 dos 1ovens a 1s • .
técnica você já tem. Talvez valha a pena olhar em volta perp exos. expu so I osos necessitados de violino. Sinto-
1 'd

e se perguntar o que te instiga, o que te perturba, do artesania, 'd d . sões e não passo mais tédio.
-me uma destru1 ora e i1u
que você acha que o mundo está precisando. Se a histó-
ria do autor te perturba, pinta sobre isso, oras. Foucault
tem um texto bacana, pode dar um primeiro impulso na
sua pesquisa conceituai.
Nisso entra na galeria um senhor de uns sessenta
anos, franzino, com calças puídas cinzas e camisa bran-
ca de colarinho, sorrindo, muito feliz. Manso, numa voz
que é a sonoplastia da bondade, dá bom-dia e pede
um minuto de atenção. Pois não, o senhor quer partici-
par do bate-papo sobre arte? Não, minha filha, é que
eu realizei meu sonho de entrar na faculdade de música
da Universidade de São Paulo e estou pedindo uma aju-
da para comprar um violino para eu poder fazer o cur-
so, olha aqui os papéis, dizendo que eu fui aprovado,
vocês vão ajudar um músico hoje?
Olho para a produtora da galeria, que é a pessoa
responsável. Ela está imóvel. Sentados em banquinhos
de papelão corrugado, os artistas começam a insinuar
movimentos rumo aos bolsos. Olha, o senhor nos dá
licença porque isso é uma aula, a porta estava aberta,
mas não quer dizer que o senhor possa nos interromper,

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