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PRIMEIRA DOR

(adaptação)

CENÁRIO – Um teatro antigo com goteiras.

PERSONAGENS

TRAPEZISTA – Possui uma relação conflituosa com o pai. É vegetariano e solitário.


Apaixonado pela vida e fascinado pela morte. Possui uma autoestima fragilizada,
perfeccionista, altamente crítico de outras pessoas, têm dificuldade de se abrir com outras
pessoas e tenta agradar os outros.
CRIADO – Um hipocondríaco fraco e assustado, é realista e consegue contornar todas as
situações de crise, religioso .
EMPRESÁRIO – Figura autoritária, gerencia o espaço. Pensa mais no dinheiro e lucro.
Enfrenta os problemas com sabedoria e praticidade. É generoso . Tem ambição na medida
certa. É controlador.

CENA 1
(1º NÚCLEO)

(Encontra-se a trapezista de costas para o palco, entra em cena o criado abrindo as janelas e
a observando olhar suas mãos feridas)

TRAPEZISTA - O mundo é um palco. O palco é minha vida. Minha vida é arte. Arte é o que
res pi ro... (Nesse momento, ele repara a presença do criado e se assusta)

CRIADO: Desculpas....desculpas, eu não queria atrapalhar o senhor, eu não estou aqui, estou
saindo.

TRAPEZISTA - Não, você não atrapalha.

CRIADO - O empresário diz que devo ser o mais invisível possível, para não tirar a
concentração, principalmente a sua.

TRAPEZISTA - Mas não, não atrapalha. Sempre vejo você daqui de cima, mudo.
CRIADO - Esse é meu trabalho. Ser o criado mudo. (com curiosidade) Por falar nisso... me
desculpe a curiosidade, mas eu posso fazer uma pergunta?

TRAPEZISTA - Claro, pode sim...

CRIADO - Você falou que me vê daí. Eu sempre vejo o senhor, noite e dia, em cima desse
negócio. Nunca sai, quase sempre sozinho, vez ou outra sobe alguém aí e vejo você
interagindo, porém bem raro ... Parece, sei lá, um pássaro na gaiola, parece triste tudo isso.
Por quê?

TRAPEZISTA - Sozinho? QUE I-LU-SÃO (Cada silaba é dita conforme o trapezista pisa nos
bancos e nesse momento, o criado nota que o trapezista está ferido.)

CRIADO – Senhor, suas mãos.

TRAPEZISTA- Sim.... eu sei. (Os dois olhando para os ferimentos, o criado se aproxima para
perceber melhor os ferimentos)

CRIADO- Temos que cuidar disso...

TRAPEZISTA- Não, não preci...

CRIADO - Precisa sim! Está muito feio isso aqui, só um minuto, irei pegar minha caixa de
primeiros socorros. Senta aqui para eu ir buscar. (O criado vai buscar a caixa e volta)

CRIADO - Não sei como está aguentando.. (Criado começa a cuidar das mãos do trapezista,
uma pequena pausa)

TRAPEZISTA - Então, você diz que pareço um pássaro na gaiola e que ficar lá em cima é
meio triste.

CRIADO - Sim.. falei. Você não tem vontade de voar? No seu caso, andar com os pés no
chão.

TRAPEZISTA - (respira fundo, pega no rosto do criado)... Assim como o pássaro morre por
não saber mais voar depois que sai da gaiola, eu não saberia mais viver sem esta aqui, sem
tudo isso, sem minha arte...

CRIADO - Meio triste isso.... não!?

TRAPEZISTA – Ilusão.

CRIADO - Se diz.... Está pronto, será que consegue?


TRAPEZISTA - Fazer o show hoje?

CRIADO – Sim.

TRAPEZISTA - Mesmo sem braço.(riem um pouco, o trapezista confiante e o criado receoso.


Criado faz uma cara de interrogação, e sai)

CRIADO- Vou guardar isso e continuar meu trabalho. (o criado ameaça sair)

TRAPEZISTA - Nem perguntei seu nome.

CRIADO – (envergonhado) Salazar, Senhor. (e sai. Nesse momento entra o empresário


olhando para um caderno)

EMPRESÁRIO - Eu ouvi vozes aqui, já falei mil vezes sobre isso, hoje tem show e não quero
ninguém atrapalhando.... (olha para o trapezista) quem estava aqui?

TRAPEZISTA - Era só o criado mudo, Chefe.

EMPRESÁRIO – Ahh! Antes todos fossem, deixa ele comigo!

TRAPEZISTA - Não, ele não me atrapalhou em nada, deixe ele em paz. Me deixa aqui, eu
não tenho de ensaiar?

EMPRESÁRIO - Ok.... Duas horas para o show!

CENA 2
(2º NÚCLEO)

(Sozinho em cena, o trapezista olha à sua volta, para a sua mesa de trabalho, maquiagem,
anotações, fotos, caixas com segredos guardados, cartas)

TRAPEZISTA – Que artista não gosta de um reflexo? Um espelho? (Desce do trapézio e vai
para a mesa de maquiagem) O artista da fome é o homem-profissão por vocação e por não
encontrar outro lugar no mundo.
Olhe para mim, meu passarinho
Eu sou um trapezista no ar
Encontrei o meu refúgio, fora do ninho
Você sabe que eu encontrei o meu lugar
E eu não vou esquecer o gosto
O gosto de você, meu reflexo

(Entra empresário apressado, olhando no relógio e inspecionando tudo)


EMPRESÁRIO – Pronto para a sua função hoje?

TRAPEZISTA – (um pouco desconsertado, guardando a caixinha de música) Sim. Tive um


contratempo com a mão, mas o criado já cuidou de tudo.

EMPRESÁRIO – Já verificou seu aparelho?

TRAPEZISTA – É função do artista verificar seu instrumento de trabalho. Faço a verificação


diariamente, Chefe.

EMPRESÁRIO – Cuidado! Pois não quero vermelho no meu palco. Os operários consertaram
o teto?

TRAPEZISTA – Sim. Esta manhã durante o treino. Um deles grunhiu algo em tom respeitoso
para mim enquanto observava.

EMPRESÁRIO – Fora isso, deve ser bem tranquilo ali em cima...

TRAPEZISTA – De resto, o silêncio cerca. Algumas vezes, um funcionário qualquer, que


porventura errava à tarde pelo teatro vazio, erguia o olhar para mim, na altura. Há horas que
quase fugia à vista.

EMPRESÁRIO – Muitas vezes te olho de longe e percebo o afinco do seu trabalho. Nem para
descansar desce! Exerce sua arte ou descansa... Mantendo-se em exercício constante. Não
é um pouco incômodo você empoleirando-se lá no alto durante os demais números do
programa?

TRAPEZISTA – Nada! De mais a mais, lá no alto, também é saudável. Quando, nas épocas
mais quentes do ano, peço para os criados abrirem as janelas laterais em toda a extensão da
cúpula, junto com o ar fresco o sol entra poderoso neste espaço. Então, é até bonito lá em
cima.

CRIADO – (Entrando com algum aparato para o show) Sem dúvida, seu convívio humano é
bem reduzido! De todo este tempo de trabalho nesta companhia, só uma vez ou outra um
colega de acrobacia sobe até lá em cima e vocês dois se sentam nas alturas, inclinam-se à
esquerda e à direita sobre as cordas de sustentação e proseiam. Quantas foram dentre estes
anos todos? Uma ou duas vezes, talvez.

EMPRESÁRIO – (dando tapinhas nas costas do trapezista e se arrumando para sair. Ambos
levantam, um segue para a porta e outro para o trapézio) Um dos momentos mais belos na
vida é sempre aquele em que o vejo colocar o pé na escada de corda e, finalmente, num
instante, estar de novo pendurado no alto do seu trapézio. Anunciarei a hora do show.
TRAPEZISTA – (pegando um livro para ler no trapézio) A poesia, em todas a suas formas,
seria a imitação das ações dos homens, seria mímesis! Imitação! Somos imitadores da vida,
procurando uma verdade que não encontramos.

CRIADO – Fazendo uma pausa, senhor?

TRAPEZISTA – (lendo trecho do livro) “Artistas imitam por meios diversos, ou porque imitam
objetos diversos ou porque imitam por modos diversos e não da mesma maneira”. Artista
cômico ou trágico, nobre ou grotesco, deve comover o público com suas situações
exemplares.

EMPRESÁRIO – (de fora da cena) Meia hora para a função!

CRIADO - (auxiliando o trapezista a colocar sua roupa e acessórios) – Meu pai dizia que
macaco e artista era tudo igual. Põe um macaco para imitar os homens ou para encontrar a
saída da jaula... Rapidamente começaria a pensar e a raciocinar como um homem, não ia
demorar muito e se tornaria um artista famoso. Artistas e suas macaquices.

TRAPEZISTA – (olhando com olhar de reprovação) Não cuspa no prato que come, rapaz.
Não negue as bananas que nós, macacos, lhe damos.

CRIADO – Desculpe, senhor. Mas com um esforço grande passo sobre a terra e tento ter uma
cultura média. Isto em si possivelmente não seria nada. Agradeço, contudo, na medida em
que me ajudou a deixar a jaula e propiciou-me esta saída especial - esta saída humana.

EMPRESÁRIO – (de fora de cena) Quinze minutos para a função! (ouve-se uma campainha)

TRAPEZISTA – (ao criado) Ajude aqui. Falta só este adereço. (Neste meio tempo ouve-se
outra campainha, aos poucos arrumam o espaço e ambos colocam-se nos seus postos.
Criado no toca discos e o trapezista no ponto marcado no chão, no palco. Chefe entra em
cena, deseja boa sorte com um aceno, com mãos ocupadas por causa do dinheiro recebido
dos ingressos. Ouve-se a última campainha. A cortina é aberta)

EMPRESÁRIO – Vai. (o criado coloca a agulha no disco. Empresário com megafone)


Senhoras e senhores, especialmente hoje, para vocês, esta arte que se pratica no alto das
cúpulas dos grandes circos! Uma das mais difíceis tarefas entre todas as executadas pelo
homem... A vida nas alturas! (faz-se o número. Luz cai aos poucos. Blackout, vozes de
felicitações, aplausos)
CENA 3
(3º NÚCLEO)

(Som da chuva. Trapezista fazendo exercícios em cima do muro. O Criado estará fazendo
comida. Começa a mexer o arroz em uma panela de barro, Sugestão que neste momento
retire de uma caixinha de tempero gelo seco e coloque dentro da panela que nela vai ter outra
panela com café quente, a qual vai dar a sensação de fumaça, para o arroz carreteiro)

CRIADO- (falando sozinho com voz preocupada) Esse prato me lembra Pai Jayme Caetano.
Nobre cardápio crioulo das primitivas jornadas, nascido nas carreteadas do Rio Grande
abarbarado. Por certo nisso inspirado, o xiru velho campeiro te batizou de "Carreteiro", meu
velho arroz com guisado. Já está quase pronto, mas um pouco de fogo fica do gosto que ele
gosta e agora preciso arrumar os acessórios do numero. Ele comentou que quer melhorar
todas as manobras para que sua vida seja somente nas alturas... Mas como vou servir esse
arroz as alturas?

(Empresário já estava em cena, sentado na mesa com seus papeis. Levanta e vai em direção
ao Criado e averigua o que ele está fazendo)

EMPRESÁRIO – De onde está vindo esse cheiro? ( e vai seguindo o cheiro e vê o criado
fazendo comida) Criaaado! É o almoço dele?

CRIADO – Sim! Arroz Carreteiro para o trapezista, Chefe.

EMPRESÁRIO - Nestes tempos de dificuldade, ele pedindo pratos caros e servimo-lhe


arroz...(faz menção ao trapezista com o olhar) Ele só se preocupa em ficar na ponta dos pés,
numa cabine específica, pendurado por uma corda. (voltando-se para o criado) Mas não deixe
passar necessidades. Colocamos até uma rede nas alturas para ele dormir! Dormir naquele
trapézio é muito desconfortável. Como ele está?

CRIADO – Como sempre! Com essa nostalgia de trapézio... Uma vontade tão exclusiva por
uma barra e exercício!

EMPRESÁRIO –Isso é o mínimo que você e ele devem fazer! Quero tudo cuidadosamente
planejado! Verificou em quanto tempo esta reforma ficará pronta?

CRIADO – Me disseram que terminariam mais rápido se tirassem o trapézio por algumas
horas.

EMPRESÁRIO – Deus o livre! Leve o tempo que precisar então. Da última vez que ele
pousou muito tempo no chão, o rendimento na sua função caiu desastrosamente. Dê tudo que
estes senhores das alturas querem, mas precisamos terminar com as goteiras, antes
que...Não posso perder dinheiro, mas preciso de soluções. O que está olhando? Rápido,
agilize.
CRIADO – (fazendo lista.) Já fiz uma lista aqui e cuidarei de tudo.

(Neste momento, o trapezista chama pelo criado que começa a servi-lo: água, urina, escova
de dentes, café, pão. O criado demonstra cansaço e descontentamento em satisfazer estes
caprichos. Entrega-lhe um bilhete feito num avião de papel)

TRAPEZISTA - Criado. Criaaado, Criado!

CRIADO - O que deseja?

TRAPEZISTA - Preciso ir para o trapézio e depois não esqueça da minha caixinha de música.
(com a ajuda do criado, chega ao trapézio) A caixinha de musica! Põe para tocar para mim.
(enquanto ouve, se exercita, mas evita pegar no trapézio.)

CRIADO - O que te afliges, que não pegas nesta barra?

TRAPEZISTA - Preciso evoluir minha arte. E pensei que, sem outra barra, parece que estou
igual aos outros trapezistas. Preciso ser melhor que eles! Não quero mais descer daqui, nasci
para voar, ou melhor, ficar no alto.

EMPRESÁRIO – CRIAAAADO (em sua mesa, cuidando de papéis, observa tudo) Vi que está
se esforçando para deixa-lo o mais confortável possível.

CRIADO – (faz que sim com a cabeça, mas desgostoso) Ele quer outra barra.

EMPRESÁRIO – Como é?

CRIADO – Ele pediu outra barra para trabalhar melhor nos seus números. E me sugeriu uma
mesa para não pisar no chão.

EMPRESÁRIO – Tudo em nome dos negócios! Falarei com ele sobre isso. Mas agora tenho
que pagar estas contas, mas volto antes do almoço.

CRIADO – A lista! Chefe! A lista! (e saem do palco)

(Ouve-se o sino. Há uma pequena demora. Entra criado pronto para carregar o trapezista.
Leva-o da rede para o trapézio. Há um pequeno treino do trapézio. Cansado, senta-se em
uma cadeira, em cima de uma mesa. Enquanto isso, o criado vai ver o arroz e sai de cena)

EMPRESÁRIO – Ouvi dizer que queres uma barra nova para trabalho?

TRAPEZISTA – Sim! Exijo uma nova barra de trabalho para meu número! Não consigo viver
sem outra barra para praticar minha arte. Preciso viver e me exercitar!
EMPRESÁRIO – (depois de uma longa pausa, ele caminha até a mesa para tomar um copo
de agua.) Certo, mas você só... Assim o farei. Todo artista é apaixonado pela vida e fascinado
pela morte. (e sai)

TRAPEZISTA – Só o que? Queres que eu vá procurar outro lugar que me valorize?

EMPRESÁRIO - (com o copo na mão) Não falei isso! Não coloque palavras na minha boca!
Você não sabe o que o nosso país está passando. (joga o copo no chão e o criado visualiza e
vai limpar)

TRAPEZISTA - E você sabe o que está se passando com quem faz você ganhar dinheiro?
Sabe o que se passa com os palhaços que não deixam você ficar pior do que está? São os
palhaços a atração do seu circo? Eles já não se enquadram no seu show, na busca do perigo
e da adrenalina. Quero minha outra barra, preciso ser melhor e você, assim, ganhará seu
dinheiro.

(Silêncio e em seguida o trapezista senta no trapézio e liga seu som)

TRAPEZISTA - Salazar (baixo) Salazaaar (médio) SALAZAR (alto) Por quê é que não consigo
ficar satisfeito? Todos nós, de tempos em tempos fazemos esta pergunta. Se existe alguma
coisa que nos une enquanto seres humanos, é o desejo de sermos felizes. Todos nós
gostamos de comer, dormir, e todas as outras necessidades básicas que nos unem. Existem
mil e uma coisas que podem contribuir para a nossa felicidade, mas por alguma razão,
subitamente todas elas perdem a sua importância, a vida tonar-se complicada de gerir,
ficamos vulneráveis. Você não cansa de ficar aí em baixo?

CRIADO – Não.

TRAPEZISTA - Suba aqui. Preciso te contar uma história!

CRIADO - Conta daí. Tenho medo de altura! Não faz isso!

TRAPEZISTA - Se você não subir vou chamar o Che.... ( Enquanto o criado sobe o trapezista
busca uma história na sua memoria.) Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha
apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia.
Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas.
Depois de cinco anos, este homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto
passeavam pelo jardim, disse o naturalista: “Esse pássaro aí não é galinha. É uma águia.”
“De fato” – disse o camponês. “É águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais uma
águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros”. –
“Não” – retrucou o naturalista. “Ela é e será sempre uma águia. Ela tem o coração de uma
águia. Este coração a fará um dia voar às alturas”. Pegaram a águia, levaram para fora da
cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. (neste momento ambos,
trapezista e criado, levantam e o trapezista vai apontado a montanha) O sol nascente dourava
os picos das montanhas. O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe: - “Águia, já
que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!”
Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau-kau das águias e
ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto. (terminando a
historia vira-se para o criado) Você precisa saber o tanto que é bom viver nas alturas.

CRIADO - Linda a história, mas eu sou do chão e preciso buscar sua comida.

TRAPEZISTA - Prato diferente.

CRIADO - Prato rude - com certeza mas, quando ferve em voz rouca, deixa com água na
boca.

CENA 4
(4º NÚCLEO)

(Criado entra, por uma lateral, liga o aparelho de som e começa a limpar e organizar o
espaço. Foca seu trabalho na mesa de trabalho)

CRIADO – Quanta excentricidade... Este carinhoso bom-humor do empresário faz dele um


adestrador de animaizinhos! Estes treinos vão chegar a um ponto sem retorno. E quando
precisam viajar!? Para as viagens de trem, reservam um compartimento inteiro, onde o
trapezista, em uma imitação a bem dizer mui lastimável de seu modo de viver, passa o tempo
inteiro em cima da rede destinada às bagagens. Macaco recebe aplauso, macaco ganha
dinheiro, macaco varre o chão, macaco limpa tudo, serve comida... O martírio deste amor à
profissão vai nos deixar loucos.

EMPRESÁRIO – (surpreendendo o criado, sorrindo) Quem sabe vai até virar uma coisa num
monte de palha imunda. Falavas de qual macaco, criado?

CRIADO – (abaixando a cabeça e assustado) Do circo de variedades que pousou na cidade


hoje, senhor.

EMPRESÁRIO – Menos mal. O nosso carro chefe de grandes espetáculos já pousou no


poleiro hoje?

CRIADO – Levantou cedo, abriu ele mesmo as janelas laterais e foi se exercitar ao sol.

EMPRESÁRIO – Chame-o aqui, quero falar com ele.

(de pronto o criado faz o que lhe foi pedido)


TRAPEZISTA – As gralhas afirmam possuir o poder de destruir o céu. Mas nada prova contra
o céu, pois “céu” significa ausência de gralhas.
EMPRESÁRIO – É por isso que construiu o seu céu ali em cima?
TRAPEZISTA – Talvez.
EMPRESÁRIO – Trouxe-lhe mais céu então. Criado, traga o que comprei hoje.
(Entra o criado trazendo outro andar de trapézio. Compenetrado e ofegante, o trapezista não
sabe se agradece ou se entristece.)
CRIADO – (com ar confiante) Pelo que se vê, o caminho do céu é tão alto quanto um
trapézio, que mais parece destinado a nos fazer tropeçar do que ser atravessado.
TRAPEZISTA – A evolução das coisas é permanente, mas as vezes achamos que algo vai
acontecer e nada acontece.
EMPRESÁRIO – Nada acontece?
TRAPEZISTA - Por isso têm razão os movimentos de espíritos revolucionários que declaram
sem efeito de todo o passado: nada ainda aconteceu.
CRIADO – Como não aconteceu?! Você acabou de receber outro céu para seus treinos.
TRAPEZISTA – De que me adianta o céu se ainda o subo menos que as gralhas, Salazar?
EMPRESÁRIO – Essa sua vida de parábolas só mostra-nos que o incompreensível é
incompreensível. Por que não dizes o que deseja?
TRAPEZISTA – Eu gostaria de apostar que isto também é uma parábola.
EMPRESÁRIO – Você tem dois adversários: o primeiro combate-o por trás da Origem; o
outro, barra-lhe o caminho pela frente. Você luta contra os dois. Para dizer a verdade, o
primeiro ajuda-o contra o outro, e, do mesmo modo, o outro ajuda-o contra o primeiro. Mas
isto só em teoria. Pois não há só os dois adversários: existe também você mesmo — e quem
conhece as próprias intenções?
(O trapezista acaba-se em choro compulsivo e em um movimento louco tenta subir para o
céu, em vão, caindo. De repente, o empresário também chora, ao ver a agonia do trapezista.
O criado também se comove).
CRIADO – Meu senhor, já falamos muito por hoje. É só por nossa noção de tempo que
falamos do Juízo Final.
TRAPEZISTA – O artista da fome é o homem-profissão por vocação e por não encontrar outro
lugar no mundo. Todo artista quer a eternidade da sua arte registrada em esculturas,
mosaicos e pinturas. O dever me chama, Salazar!

CRIADO – É muito triste ser cômico.

TRAPEZISTA – Triste é quando a plateia não ri, meu criado. O coração e o espírito do artista,
que grande enigma!
PRÓLOGO
(5º NÚCLEO)

(Empresário sentado na cadeira lendo um livro. Somente a sua luz acesa. Pensa nas contas,
revisa contratos. O criado no seu canto, passando um café, volta a cena, com uma xícara
para o empresário)

EMPRESÁRIO – (lendo) “Mas um dos homens pôs-lhe as mãos no pescoço, enquanto o outro
lhe espetava profundamente a faca no coração e aí a rodava duas vezes. Moribundo, K. viu
ainda os dois homens muito perto do seu rosto, com as faces quase coladas, a observarem o
desfecho”.

CRIADO ― Como um cão!

EMPRESÁRIO – Sim, como um cão. (olham para o trapezista dormindo) Se semelhantes


pensamentos tinham começado a atormentá-lo a pouco, poderiam já cessar por completo?
Ou então continuariam aumentando dia por dia? Será que coisas como esta de ontem não
ameaçariam sua existência?

CRIADO – Mas ele dorme tão tranquilo agora... O corpo mirrado repousa tão leve naquela
rede... O ócio é o princípio de todos os vícios. Talvez cancelar a turnê para que ele volte a si.

EMPRESÁRIO – Quão ingênuo és ao acreditar que estes soluços são somente charme de
artista... Este tempo de ócio que você fala será coroamento de todas as suas virtudes. O rosto
infantil repousa, mas daqui vejo uma pequena ruga se desenhando na sua testa infantil.

CRIADO – A ingenuidade de se fazer artista beira a luta do jejuador contra a fome.

EMPRESÁRIO – Pelo próprio ato de viver, ele embaraça o seu caminho. O embaraço, porém,
dá-lhe a prova de que ele vive. E qual penitente jejua para sempre?
CRIADO – Mas quem se move diante dos absurdos? A lógica é, na verdade, inabalável. Mas
não resiste a um homem que quer viver.

FIM.

1º núcleo: Oliver (Trapezista) / Laura (Criado) / Yasmin (Empresário)


2º núcleo: Giovanna (Trapezista) / Laura (Criado) / Guilherme (Empresário)
3º núcleo: Louise (Trapezista) / Isadora (Criado) / Guilherme (Empresário)
4º núcleo: Luisa (Trapezista) / Ledir (Criado) / Louise (Empresário)
5º núcleo: Isadora (Criado) / Louise (Empresário)

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