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Woyzeck - Georg Buchner

PROPOSTA DE MONTAGEM

Jaime Monsanto - 4210235 | Projeto Alternativo | 01/07/2022


Montagem

1. Ms. 4/1

2. Ms. 4/2

3. Ms. 2/3

4. Ms. 4/4

5. Ms. 4/5

6. Ms. 4/6

7. Ms. 4/7

8. Ms. 4/8

9. Ms. 2/8

10. Ms. 4/10

11. Ms. 4/11

12. Ms. 4/12

13. Ms. 4/13

14. Ms. 4/14

15. Ms. 4/15

16. Ms. 4/16

17. Ms. 4/17

18. Ms. 3/1

19. Ms. 1/14

20. Ms. 1/15

21. Ms. 1/16

22. Ms. 1/17

23. Ms. 1/19

24. Ms. 1/20

26. Ms. 1/21

PÁGINA 1
1.
[MS. 2: 1]
NO CAMPO. A VILA AO LONGE

Woyzeck e André cortam estacas entre os arbustos.

WOYZECK:

Estás a ver aquele trilho ali na erva, André? É lá que a cabeça rola, à noite. Uma vez
houve um que agarrou nela, julgava que era um ouriço. Ao fim de três dias e três noites
já estava deitado entre quatro tábuas. (Em voz baixa.) Foram os pedreiros-livres, André,
podes crer, foram os pedreiros-livres. Espera, cala-te!

ANDRÉ, canta:

Vi uma lebre sentada

A comer da erva fresca…

WOYZECK:

Cala-te! Estou a ouvir qualquer coisa!

ANDRÉ:

A comer da erva fresca

Até não restar mais nada.

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WOYZECK:

É qualquer coisa atrás de mim, aqui por baixo. (Batendo com o pé no chão.) Oco, estás a
ouvir? Tudo oco lá em baixo. Os pedreiros-livres…!

ANDRÉ:

Estou com medo.

WOYZECK:

Coisa estranha, está tudo tão calmo. Dá vontade de suster a respiração. André!

ANDRÉ:

Que foi?

WOYZECK:

Diz qualquer coisa! (Olha em volta, parado.) André! Que clarão! É um fogo que dá a volta
ao céu e um soar de trombetas a cair sobre nós. Vem-se aproximando. Vamos embora.
Não olhes para trás. (Arrasta-o para os arbustos.)

ANDRÉ, depois de uma pausa:

Woyzeck, ainda estás a ouvir isso?

WOYZECK:

Silêncio, tudo em silêncio. É como se o mundo estivesse morto.

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ANDRÉ:

Estás a ouvir? São os tambores. Temos de ir.

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2.
[Ms. 2: 2]
A vila

Maria com o filho à janela. Margarida. Passa a ronda da noite, com o Tambor-
mor à frente.

MARIA (embalando o filho):

Meu menino! Tararan, tararan, tararantantan! Ouves? Lá vêm eles.

MARGARIDA:

Que belo homem! Como uma árvore!

MARIA:

Firme que nem um leão!

O Tambor-mor saúda.

MARGARIDA:

Ai, vizinha, que olhar tão derretido que deitou ao homem! Não lhe conhecia esse jeito.

MARIA (canta):

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Os soldados são belos rapazes…

MARGARIDA:

E continua com um brilhozinho nos olhos.

MARIA:

E depois? Os seus, bem os pode levar ao judeu para ele os polir, e esperar que alguém
lhos compre, esses dois botões.

MARGARIDA:

Olhem só o desplante! A dona donzela! Eu sou uma pessoa honesta, mas a menina é
capaz de atravessar sete pares de calças com esse olhar.

MARIA:

A porca! (Fecha a janela.) Anda, meu menino. O que é que esta gente quer? És um pobre
diabo, filho de uma puta, mas dás alegria à tua mãe, com essa tua carinha sem vergonha.
Tralala… (Canta:)

Mulher, que vida é a tua?

Filho em casa, homem na rua.

Isso que me interessa a mim?

Canto a noite toda assim:

Dorme, dorme, meu menino,

Porque é esse o meu destino.

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Atrela os cavalos, João,

Os teus seis cavalos brancos.

Dá-lhes de comer, mas não

Aveia nem água clara.

Vinho fresco é o que querem,

O vinho fresco e mais nada.

Batem à janela.

[BARRACAS. LUZES. POVO]

[Cena não incluída no Ms. 4. Figura só no Ms. 1 e no Ms. 2, subdividida em três]

3 [Ms. 4: 3; Ms. 1: 1, 2,
3]

PRAÇA PÚBLICA. BARRACAS. LUZES.

Um velho. Uma criança a dançar.

VELHO:

Este mundo é um desatino,

Todos contam com a morte,

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É esse o nosso destino!

WOYZECK:

Eh, lá! Salta, pobre homem, pobre velho! Pobre menino, tão novinho!

Preocupações e festas! Luísa, queres que te…? Um homem ainda tem de fazer

um discurso às pedras para poder comer. Estranho mundo! Belo mundo!

APRESENTADOR (junto de uma barraca):

Minhas senhoras e meus senhores, venham ver o cavalo astronómico e a

passarada favorita de todas as cabeças coroadas da Europa, membros de todas

as academias; adivinham tudo e tudo vos dirão, idade, quantos filhos, que

doenças. Disparam pistolas, aguentm-se numa perna. Tudo escola, têm uma

razão animal, ou melhor, uma animalidade muito racional; não são bestas

quadradas como tanta gente, não desfazendo do respeitável público. Vai

começar a representação, vamos dar início ao commencement do

commencement. Venham ver os progressos da civilização. Tudo progride, um

cavalo, um macaco, um pássaro de estimação. O macaco já é soldado, não será

grande coisa, é verdade, mais baixo nível do género humano.

ESTUDANTE:

O senhor também é ateu? Eu sou ateu dogmático.

BARBEIRO:

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Isto é grotesco? Eu interesso-me por tudo o que seja grotesco. Está a ver, ali?

Que efeito mais grotesco!

ESTUDANTE:

Eu sou ateu dogmático. Grotesco.

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<QUARTO DE MARIA>

Maria, sentada com o filho ao colo e um pedaço de espelho na mão.

MARIA (vendo-se ao espelho):

As pedras brilham tanto! Que pedras serão? Ele disse que eram… Dorme. Meu menino,
fecha os olhos, vá, com força (A criança tapa os olhos com as mãos), mais ainda. E agora
fica quietinho, senão ele vem e leva-te. (Canta.)

Ó moça, fecha a janela,

Que o cigano vem aí.

Dás-lhe a mão, agarra em ti,

Leva-te para a sua terra.

(Volta a ver-se ao espelho.) É ouro, com certeza! A gente só tem um cantinho cá nesta
terra e um pedacito de espelho, mas nem por isso a minha boca é menos vermelha que
a das senhoras que têm espelhos grandes para se verem de alto a baixo, e belos senhores
para lhes beijarem as mãos. Eu posso ser um pedaço de mulher, mas sou pobre. (A

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criança levanta-se.) Quieto, menino, fecha os olhos! Não vês o anjinho do sono, ali na
parede? (Reflecte a luz na parede com o espelho.) Fecha os olhos, senão ele olha lá para
dentro e tu ficas cego.

Woyzeck entra, por trás dela. Maria leva precipitadamente as mãos às orelhas.

WOYZECK:

Que foi?

MARIA:

Nada.

WOYZECK:

Tens uma coisa a brilhar debaixo dos dedos.

MARIA:

É um brinco, achei-o.

WOYZECK:

Eu nunca achei nada assim. E logo dois de uma vez!

MARIA:

E eu não sou gente?

WOYZECK:

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Está bem, Maria. Olha como o menino dorme. Pega-lhe por baixo dos braços, que a
cadeira está a magoá-lo. Tem a testa toda cheia de suor. É só trabalho nesta vida, até a
dormir a gente sua. Somos uns desgraçados! Trouxe-te mais algum dinheiro, Maria. O
soldo e mais qualquer coisa que o meu capitão me deu.

MARIA:

Deus te pague, Franz.

WOYZECK:

Bom, tenho de ir. Até logo à noite, Maria. Adeus.

MARIA (só, após uns instantes):

Eu sou mesmo uma mulher má! Devia era agarrar numa faca e matar-me. – Ah, este
mundo! Vão todos para o diabo, homens e mulheres!

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O Capitão. Woyzeck

O Capitão sentado numa cadeira. Woyzeck a barbeá-lo.

CAPITÃO:

Devagar, Woyzeck, devagar. Uma coisa de cada vez. Pões-me a cabeça a andar à roda.
Despachas-te dez minutos mais cedo, e depois, o que é que eu vou fazer com eles? Pensa

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bem, Woyzeck, ainda tens uns bons trinta anos de vida, trinta anos! São trezentos e
sessenta meses, e dias e horas e minutos! Já pensaste no que vais fazer de todo este
tempo? Tens de te organizar, Woyzeck.

WOYZECK:

Sim, meu capitão.

CAPITÃO:

Quando penso na eternidade e olho para este mundo, sinto angústia. Temos de

nos ocupar, Woyzeck, de nos ocupar! A eternidade é eterna, claro, é eterna, isso

qualquer um sabe. Mas de repente já não é eterna, é um instante, sim, um

instante. Woyzeck, arrepio-me só de pensar que a Terra precisa de um dia para

dar uma volta completa. Que desperdício! Onde é que isto vai parar? Woyzeck,

já não posso olhar para uma roda de moinho sem ficar melancólico.

WOYZECK:

Sim, meu capitão.

CAPITÃO:

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Woyzeck, tu parece que andas sempre a fugir. Um homem de bem não anda

assim, um homem de bem em paz com a sua consciência. Diz qualquer coisa,

Woyzeck. Como está o tempo hoje?

WOYZECK:

Mau, meu capitão, mau. Muito vento!

CAPITÃO:

Bem o sinto, está muito agitado lá fora. Um vento destes lembra-me um rato a

chiar. (Malicioso.) Acho que sopra de Sul-Norte, não é?

WOYZECK:

Sim, meu capitão.

CAPITÃO:

Ah! Ah! Ah! Sul-Norte! Ah! Ah! Ah! És mesmo estúpido, incrivelmente estúpido.

(Tocado.) És um bom homem, Woyzeck, um bom homem… Mas (com

dignidade) não tens moral, Woyzeck! Ter moral é quando se é moral, estás a

compreender? É uma boa palavra. Tens um filho sem a bênção da igreja, como

diz o nosso reverendo capelão, sem a bênção da igreja… não sou eu que o digo…

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WOYZECK:

Meu capitão, Deus Nosso Senhor não vai olhar de lado para o coitadinho, lá

porque não foi dito o Ámen antes de ele ser feito. O Senhor disse: “Deixai vir a

mim as criancinhas.”

CAPITÃO:

Mas que ouço eu? Que resposta mais curiosa. Agora é que eu fico mesmo
baralhado. É de ti que eu estou a falar.

WOYZECK:

Ai de nós, os pobres. Repare, meu capitão, dinheiro, dinheiro… E quem não tem
dinheiro? Como é que a gente pode ir atrás da moral neste mundo? Também
somos de carne e osso. Mas gente como nós está fadada para ser infeliz neste
mundo e no outro. Eu acho que se fôssemos para o céu era só para ajudar a
fazer trovões.

CAPITÃO:

Woyzeck, o que te falta é virtude, não és um homem de virtude. Carne e osso!


Mas, caramba, homem, quando eu chego à janela depois da chuva e vejo as
meias brancas saltitando calçada abaixo, também a mim me dá para o amor.
Também eu sou de carne e osso. Mas a virtude, Woyzeck, a virtude! Sem ela,
como é que ia passar o tempo? E digo a mim mesmo: és um homem de virtude
(comovido), um homem bom, um homem bom.

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WOYZECK:

Pois, meu capitão, a virtude! Eu ainda não entendi bem o que é. A gente
simples como nós, meu capitão, não tem virtude, segue a natureza, e pronto.
Mas se eu fosse um senhor e tivesse um chapéu e um relógio e uma anglaise e
soubesse falar a preceito, ah, então também eu gostava de ser um homem de
virtude. Deve ser bonito, isso da virtude, meu capitão, mas eu cá não passo de
um pobre diabo.

CAPITÃO:

Está bem, Woyzeck. És um homem bom, um homem bom. Mas pensas de mais,
e isso consome-te, andas sempre tão agitado. Esta conversa a mim abalou-me
muito. Agora podes ir, mas não corras; desce a rua devagar, devagarinho, como
deve ser.
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<QUARTO DE MARIA>

Maria. O Tambor-mor.

TAMBOR-MOR:

Maria!

MARIA (olhando para ele expressivamente):

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Anda lá um bocado, só para eu ver. Peito de touro e barba de leão. Não há outro

assim. Que orgulho que eu tenho de ti.

TAMBOR-MOR:

E se me visses ao domingo, de penacho grande e luva branca! Carago, Maria! O

príncipe costuma dizer: Aquilo é que é um homem!

MARIA (trocista):

Ora, ora! (Chega-se a ele.) E que homem!

TAMBOR-MOR:

Deixa estar que tu não és menos mulher! Caramba! Vamos arranjar uma

ninhada de tambores-mores! Hã? (Abraça-a.)

MARIA (zangada):

Deixa-me!

TAMBOR-MOR:

Minha gata brava!

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MARIA (agressiva):

Experimenta tocar-me!

TAMBOR-MOR:

Parece que tens o diabo a sair-te dos olhos.

MARIA:

Sei lá, pode ser. A mim que me importa?

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[Ms. 2: 9]

<NA RUA>

Maria. Woyzeck.

WOYZECK (Olha fixamente para ela, abana a cabeça):

Hum! Não vejo nada, não vejo nada. Mas devia ver-se, aquilo devia poder

agarrar-se com as mãos.

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MARIA (intimidada):

O que é, Franz? Andas desvairado.

WOYZECK:

Um pecado tão grande, deste tamanho… Tão pestilento que era capaz de

mandar os anjinhos para o céu como fumo a subir. Tens a boca vermelha,

Maria. E bolhas, não tens? Adeus, Maria, és linda como o pecado. Como pode o

pecado mortal ser assim tão lindo?

MARIA:

Franz, estás a delirar.

WOYZECK:

Diabos me levem! Ele esteve ali, não esteve?

MARIA:

Enquanto o dia for longo e o mundo velho, muita gente pode estar no mesmo

lugar, um de cada vez.

WOYZECK:

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Eu vi-o.

MARIA:

Pode-se ver muita coisa, quando se tem dois olhos, se não formos cegos e o sol

brilhar.

WOYZECK:

Com aquele cu dele!

MARIA (coquete):

E daí?

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8 [Ms.

2:7; Ms. 3:1]

Em casa do doutor

Woyzeck. O doutor.

DOUTOR:

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O que vem a ser isto, Woyzeck? E dizes tu que és um homem de palavra?

WOYZECK:

Isto, o quê, senhor doutor?

DOUTOR:

Eu vi, Woyzeck, vi-te a mijar na rua, contra a parede, como um cão. E pago-te eu dois
réis por dia para isto? Não está certo, Woyzeck, o mundo anda todo ao contrário,
completamente às avessas.

WOYZECK:

Mas, senhor doutor, quando a natureza aperta…

DOUTOR:

A natureza aperta, a natureza aperta! A natureza! E não provei eu que o musculus


constrictor vesicae obedece à nossa vontade? A natureza! Woyzeck, o ser humano é livre,
nele a individualidade transfigura-se, torna-se liberdade. Não conseguir reter as águas!
(Abana a cabeça, põe as mãos atrás das costas e anda para cá e para lá.) Já comeste as
tuas ervilhas, Woyzeck? Vem aí uma revolução na ciência, a minha descoberta vai ser
uma bomba. Ureia: 0,10, cloridrato de amónio, hiperóxido. Woyzeck, não tens vontade
de mijar outra vez? Vai lá dentro e experimenta.

WOYZECK:

Não consigo, senhor doutor.

DOUTOR (em tom enfático):

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Mas contra a parede já consegues! Está tudo aqui, por escrito, no contrato. Eu vi, vi com
estes olhos, na altura em que pus o nariz de fora da janela e deixei entrar o sol,

para poder observar o fenómeno do espirro. (Avança para ele, ameaçador.) Não,
Woyzeck, não me vou irritar. Não é saudável nem científico uma pessoa irritar-se. Estou
calmo, muito calmo, continuo com as sessenta pulsações do costume, e digo-te tudo isto
com o maior sangue-frio. Era o que faltava, irritar-me por causa de um homem, de uma
criatura humana! Ainda se fosse um proteu que me morresse! Mas Woyzeck, nunca
devias ter mijado contra a parede…

WOYZECK:

Olhe, senhor doutor, a gente até pode ter um certo carácter, uma certa estrutura. Mas
com a natureza é diferente, sabe, com a natureza (dá estalidos com os dedos)… É uma
coisa, como é que hei-de dizer, assim como se…

DOUTOR:

Woyzeck, já estás outra vez a filosofar.

WOYZECK (em tom de confidência):

O senhor doutor já alguma vez viu coisas da dupla natureza? Quando o sol está a pino
ao meio-dia e o mundo parece incendiar-se, já ouvi uma voz terrível que falava comigo!

DOUTOR:

Woyzeck, o que tu tens é uma aberratio.

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WOYZECK (pondo o dedo no nariz):

Os cogumelos, senhor doutor, aí é que está o mistério. Já viu as figuras que os cogumelos
desenham no chão? Quem as pudesse ler!

DOUTOR:

Woyzeck, tens uma bela aberratio mentalis partialis de segundo grau, muito bem
definida. Woyzeck, vou dar-te um aumento. De segundo grau, ideia fixa, estado geral
normal. Continuas a fazer a tua vida como antes, a barbear o capitão?

WOYZECK:

Sim, senhor doutor.

DOUTOR:

E a comer as ervilhas?

WOYZECK:

Regularmente, senhor doutor. E dou o dinheiro para o governo da casa à minha mulher.

DOUTOR:

E o serviço, cumpres?

WOYZECK:

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Sim, senhor doutor.

DOUTOR:

És um caso interessante. Vou dar-te um aumento, Woyzeck. Mas porta-te como deve
ser. Dá cá o pulso. Hum, pois…

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8. [Ms. 4: 9]

RUA

O Capitão desce a rua, ofegante, pára, arfando, olha em volta.

CAPITÃO:

Para onde ides com tanta pressa, prezado senhor cangalheiro?

DOUTOR:

Para onde ides com tanto vagar, prezado soldado tremeliqueiro?

CAPITÃO:

Calma, que o tempo não vos foge, meu caro senhor coveiro.

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DOUTOR:

Eu não roubo o meu tempo como o senhor, meu caro.

CAPITÃO:

Não corra tanto, senhor doutor, um homem de bem não anda com essa pressa

toda! Ah, ah, ah, um homem de bem (Toma fôlego.), um homem de bem. O

senhor mata-se a correr atrás da morte, mete-me medo.

DOUTOR:

Corro atrás do dever, senhor capitão, atrás do dever.

CAPITÃO:

Senhor cangalheiro, assim ainda acaba por gastar a sua perninha na calçada.

Não cavalgue na bengala pelos ares.

DOUTOR:

Quatro semanas e a mulher está morta, um cunnus aquaticus no sétimo mês, já

tive vinte doentes destas, quatro semanas, pode crer.

CAPITÃO:

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Não me assuste, doutor. Já houve quem tivesse morrido de susto, só do susto,

sem mais.

DOUTOR:

Daqui a quatro semanas, coitada, vai dar um preparado interessantíssimo.

Digo-lhe que…

CAPITÃO:

Que o tempo, vou segurá-lo pelas asas, não vou deixar que… C’ os diabos,

quatro semanas? Senhor doutor, cangalheiro, mortalha, eu, enquanto cá estiver,

quatro semanas e as pessoas já de chapéu na mão, mas vão dizer: Ele era um

homem de bem, um homem de bem.

DOUTOR:

Então, bom dia, senhor capitão (Gesticulando com o chapéu e a bengala.)

Quiqueriqui! Muito gosto! Muito gosto! (Estende-lhe o chapéu.) E isto o que é,

senhor capitão? Cabeça oca! Hã?

CAPITÃO (com uma vénia):

PÁGINA 24
E isto o que é, senhor doutor? Cabeça simplória! Ah, ah, ah! Mas não leve a mal.

Eu sou um homem de bem… mas quando quero, quando quero, senhor doutor,

também posso…

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Ah, Woyzeck! Quase me atropelavas! Pára, Woyzeck, pareces uma navalha

aberta a correr por esse mundo, ainda nos cortamos todos. Corres como se

tivesses um regimento de cossacos para barbear e te fossem enforcar um quarto

de hora depois de cortares o último pêlo. Mas, o que é que eu queria dizer das

barbas grandes? Woyzeck, as barbas grandes…

DOUTOR:

Já Plínio dizia que os soldados não se devem habituar a andar de barbas

compridas…

CAPITÃO (continuando):

Hum, barbas grandes… Olha lá, Woyzeck, nunca encontraste um pêlo de barba

no prato? Percebes o que eu quero dizer, não percebes? Pêlo de homem, de um

sapador, de um sargento, de um… tambor-mor? Hã, Woyzeck? Mas ele tem

uma mulher séria. Teve mais sorte que muitos outros.

WOYZECK:

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Pois tenho. O que é que o meu capitão quer dizer?

CAPITÃO:

A cara que ele fez! Ficaste pregado… ao céu? Não, também pode não ser na

sopa, se te apressares e deres a volta à esquina, talvez ainda encontres um

pelinho num par de lábios, num par de lábios. Woyzeck, voltei a sentir o amor.

Homem, estás branco como a cal!

WOYZECK:

Meu capitão, eu sou um pobre diabo que não tem mais nada neste mundo… Se

o meu capitão se quer rir de mim…

CAPITÃO:

Eu, rir-me? Que ideia! Rir-me, homem?

DOUTOR:

O pulso, Woyzeck, dá cá o pulso: intervalos pequenos, pulsação agitada,

irregular.

WOYZECK:

PÁGINA 26
Meu capitão, a terra arde como o inferno, eu estou gelado, gelado, aposto que o

inferno é gelado. Não pode ser. Homem, homem! Não pode ser.

CAPITÃO:

Ouve lá, queres ser fuzilado? Queres levar duas balas na cabeça? Fulminas-me

com esses olhos, e afinal eu só quero o teu bem, porque és um homem bom,

Woyzeck, um homem bom.

DOUTOR:

Músculos faciais rígidos, tensos, com espasmos intermitentes, atitude hirta,

tensa.

WOYZECK:

Vou andando. Muita coisa é possível. O ser humano! Muita coisa é possível.

Temos bom tempo, meu capitão. Está a ver este belo céu, firme, cinzento, até

dá vontade de espetar nele um gancho para nos pendurarmos, só por causa

daquele tracinho de união entre o sim e o não, o sim… e o não, meu capitão.

Sim e não? É o não que tem culpa do sim, ou o sim que tem culpa do não? Vou

pensar nisto.

(Sai a passo largo, primeiro devagar, depois cada vez mais apressado.)

PÁGINA 27
DOUTOR (segue-o, rápido):

Fenomenal, Woyzeck, tens aumento.

CAPITÃO:

Fico com vertigens só de olhar para estes dois, desarvorados, o grandão estuga

o passo, corre como a sombra de uma pata de aranha. O baixote vai trotando. O

grande é o relâmpago e o pequeno o trovão. Ah, ah, vou atrás deles. Não gosto

nada disto! Um homem de bem é um homem grato, que gosta da sua vida, um

homem de bem não precisa de coragem! Os canalhas é que têm coragem. Eu só

fui à guerra para reforçar o meu amor à vida. Do pulso vem o medo, do medo

vem a bala, da bala vem a coragem… As ideias que nos vêm! Grotesco, grotesco!

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10
[Ms. 1:4]

CASA DA GUARDA

Woyzeck. André.

PÁGINA 28
ANDRÉ (canta):

Na estalagem há uma criada

Que passa a vida no jardim

Ali fica sentada…

WOYZECK:

André!

ANDRÉ:

O que é?

WOYZECK:

Bom tempo.

ANDRÉ:

Domingo soalheiro – festa no terreiro. As mulheres já para lá foram, anda tudo

numa roda viva, a coisa promete.

WOYZECK (inquieto):

Há baile, André, vai haver dança.

ANDRÉ:

Na Estalagem do Cavalo e na da Estrela.

PÁGINA 29
WOYZECK:

Vão dançar, André, dançar.

ANDRÉ:

Cá por mim…

… Ali fica sentada

Até meia-noite dar

Vendo os soldados passar.

WOYZECK:

André, não tenho sossego.

ANDRÉ:

És parvo!

WOYZECK:

Tenho de ir lá. Sinto-os a rodar diante dos meus olhos. Têm as mãos quentes! Maldita

a hora, André!

ANDRÉ:

O que é que tu queres?

PÁGINA 30
WOYZECK:

Tenho de ir lá.

ANDRÉ:

Este homem…

WOYZECK:

Tenho de sair, está muito quente aqui.

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11 [Ms. 1:5, 10; Ms.


2: 4]

ESTALAGEM

Janelas abertas, dança-se. Bancos diante da casa. Rapazes.

1º ARTESÃO-APRENDIZ:

Tenho uma camisa

Que é de toda a gente

Minh’ alma tresanda

A aguardente…

PÁGINA 31
2º ARTESÃO-APRENDIZ:

Meu irmão, queres que te abra um buraco na natureza, por pura amizade? Caramba,
quero abrir um buraco na natureza. Também sou um tipo rijo, e tu sabes disso… Vou dar
cabo das pulgas todas que houver naquele corpanzil.

1º ARTESÃO-APRENDIZ:

A minh’ alma, a minh’ alma tresanda a aguardente… Até o dinheiro acaba por apodrecer.
Malmequer, tu queres-me bem. Este mundo é tão belo! Meu irmão, vou encher um tonel
com as minhas lágrimas. O que eu queria era que os nossos narizes fossem duas garrafas,
para nós as despejarmos um ao outro pelas goelas abaixo.

OS OUTROS, EM CORO:

Pelas verdes florestas do Palatinado


Ia um caçador num corcel montado.

Cantava e dizia: Não há melhor vida

Do que por charnecas e bosques andar,

A caça é o melhor que me podem dar.

Woyzeck encosta-se a uma janela. Maria e o Tambor-mor passam a dançar, sem


repararem nele.

MARIA (enquanto dança):

Sem parar, sem parar…

WOYZECK (sufocado):

PÁGINA 32
Sem parar… sem parar… (Levanta-se de um salto e volta a cair no banco.) Sem parar…
sem parar… (Torce as mãos.) Girem, girem! Rebolem-se, rebolem-se! Por que é que Deus
não apaga o sol para todos se enroscarem a fornicar, homens e mulheres, pessoas e
bichos, uns por cima dos outros? Façam-no em pleno dia, façam- -no em cima das nossas
mãos, como os mosquitos. Ah, mulher! Está com os calores. Sem parar… sem parar. (Dá
um salto.) E o sujeito, como ele a apalpa, como lhe põe as mãos no corpo…

1º ARTESÃO-APRENDIZ (pregando em cima de uma mesa):

E quando um viandante, debruçado sobre o rio do tempo ou perscrutando a divina


sabedoria, se pergunta a si próprio: Por que é que o homem existe? Por que é que o
homem existe? Mas em verdade vos digo, de que haviam de viver o camponês, o caiador,
o sapateiro, o médico, se Deus não tivesse criado o homem? De que viveria o alfaiate, se
Ele nos não tivesse dado o sentimento de pudor? De que viveriam os soldados, se Ele
nos não tivesse incutido a necessidade de nos matarmos uns aos outros? Por isso não
desespereis. Pois, pois, é tudo agradável e bom, mas tudo é vão cá neste mundo, até o
dinheiro apodrece. E para terminar, meus queridos ouvintes, vamos mijar em cima da
cruz para ver se um judeu morre.

_____________________________________________________________________

12
[Ms. 1:6]

NO CAMPO

Woyzeck.

PÁGINA 33
Sem parar… sem parar! Acabem com a música. (Estende-se no chão.) O quê? O que é que
vocês dizem? Mais alto, mais alto. Sangra, sangra a cabra, mata-a? Sangra, mata a cabra?
É isso? Tem de ser? É isso o que ouço ainda? É isso que diz o vento? É o que ouço sempre,
sem parar, mata, mata a cabra?

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13
[Ms. 1:7]

NOITE

André e Woyzeck numa cama.

WOYZECK (sacudindo André):

André! André! Não consigo dormir, fecho os olhos e anda tudo à roda e ouço os

violinos, sem parar, sem parar. E depois ouço vozes que vêm da parede, estás a

ouvir?

ANDRÉ:

Estou, sim. Deixa-os lá dançar. E que Deus nos guarde. Ámen.

(Volta a adormecer.)

WOYZECK:

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E sinto uma dor entre os olhos, como uma faca.

ANDRÉ:

Tens de beber uma aguardente com aquele pó lá dentro, e a febre já te passa.

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14

[Ms. 1: 8, 9]

ESTALAGEM

Tambor-mor. Woyzeck. Gente.

TAMBOR-MOR:

Eu é que sou um homem! (Bate no peito.) Um homem, estão a ouvir? Peço


meças! Quem não estiver bêbado como um cacho, não se chegue a mim. Leva

tanta porrada que lhe enfio o nariz pelo olho do cu. Leva… (para Woyzeck) Tu

aí, bebe, um homem precisa de beber, quem me dera que este mundo fosse um

barril de bagaço, de bagaço.

WOYZECK (assobia).

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TAMBOR-MOR:

Ouve lá, queres que te arranque a língua e ta enrole ao pescoço? (Brigam os

dois, Woyzeck perde.) Vou-te deixar sem fôlego, não vais conseguir bufar mais

do que um peido de velha. Queres?

WOYZECK (senta-se num banco, extenuado e a tremer.)

TAMBOR-MOR:

Isso, bufa, assobia até ficares roxo. Haa!

A minha vida é a aguardente

O bagaço dá força à gente!

UM HOMEM:

O gajo é um bocado gordo.

OUTRO:

Está a sangrar.

WOYZECK:

Cada coisa a seu tempo.

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15 [Ms. 1:
7, 11, 12]

Woyzeck. O judeu.

WOYZECK:

Muito cara, a pistola.

JUDEU:

Então, em que ficamos, leva ou não leva?

WOYZECK:

E a faca, quanto custa?

JUDEU:

Bela lâmina, bem afiada. Vai cortar o pescoço com ela, ou quê? Não lha vendo
mais cara do que qualquer outro, quero que a morte lhe saia barata, mas lá de
graça é que não. Então, vai? Uma morte económica, é o que lhe desejo.

WOYZECK:

Isto não corta só pão.

JUDEU:

São dois réis.

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WOYZECK:

Tome lá (Sai.)

JUDEU:

Tome lá. Como se nada fosse. Mas é dinheiro. O sacana!

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16 [Ms. 2: 10;

Ms. 3: 2]

<MARIA. O PARVO. O MENINO>

MARIA (folheando a Bíblia):

“E na sua boca não havia falsidade…” Meu Deus, meu Deus, não olhes para

mim. (Continua a folhear.) “E os fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada

em adultério, e puseram-na no meio… Mas Jesus disse: Não serei eu quem te

condena, vai e não voltes a pecar.” (Junta as mãos.) Meu Deus, meu Deus, não

posso. Meu Deus, dá-me pelo menos forças para rezar. (A criança aconchega-se

a ela.) Este menino corta-me o coração. Vai-te embora! E aquele ali refastelado

ao sol!

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PARVO (deitado, vai contando histórias pelos dedos):

O rei é quem tem a coroa de ouro. Amanhã vou buscar o filho da rainha… A

morcela diz: Anda, linguiça! (Pega na criança e cala-se.)

MARIA:

E o Franz não veio, nem ontem, nem hoje; está a ficar quente aqui dentro. (Abre

a janela.) “E ela lançou-se a seus pés e chorando começou a banhar-lhe os pés

com lágrimas e a enxugá-los com os cabelos, e beijou-lhe os pés e ungiu-os com

bálsamo.” (Bate no peito.) Tudo morto! Senhor, meu salvador, queria ungir-te

os pés.

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17 [Ms.

1: 13, 11]

QUARTEL

André. Woyzeck remexe nas suas coisas.

WOYZECK:

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Esta camisola, André, não é da farda. Pode ser que te sirva, André. A cruz é da

minha irmã e o anel também, e ainda tenho um santinho, bonito, com dois

corações em dourado, estava na Bíblia da minha mãe. E tem escrito:

Minha paga é sofrimento,

Em sofrimento Te adoro,

Quero meu coração sangrando

Como Teu corpo chagado.

A minha mãe já não sente nada, só quando o sol lhe bate nas mãos. Mas não faz mal.

ANDRÉ (olhando-o fixamente, diz a tudo: “Pois sim”.)

WOYZECK (puxa de um papel):

Friedrich Johann Franz Woyzeck, soldado fuzileiro, segundo Regimento,

segundo Batalhão, quarta Companhia, nascido no dia da Anunciação, a 20 de

Julho, etc. etc.. Faço hoje trinta anos, sete meses e doze dias.

ANDRÉ:

Franz, tu vais mas é para o hospital. Tens de beber uma aguardente com pó dentro, para
matar essa febre.

WOYZECK:

Pois é, André, quando o carpinteiro aplaina as tábuas, ninguém sabe quem é que se vai
deitar nelas.

18

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O PÁTIO DA CASA DO PROFESSOR

Estudantes em baixo, o professor à janela da mansarda.

PROFESSOR:

Aqui estou eu, meus senhores, no telhado, como David quando avistou Betsabé.

Mas eu, hélas, só avisto os culs-de-Paris das meninas do pensionato a secar no

jardim. Meus senhores, chegámos à questão fundamental da relação do sujeito

com o objecto. Se tomarmos como exemplo uma das coisas em que a auto-

afirmação orgânica do divino se manifesta num plano elevado e investigarmos a

sua relação com o espaço, a terra, o sistema planetário, meus senhores, se eu

atirar este gato da janela abaixo, como irá comportar-se esta entidade em

relação ao centrum gravitationis e ao seu próprio instinto? Eh, Woyzeck!

(Grita.) Woyzeck!!

WOYZECK:

Senhor professor, ele morde.

PROFESSOR:

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Homem, tu também pegas no bicho de uma maneira tão delicada como se fosse

a tua avó!

WOYZECK:

Senhor doutor, estou com tremuras.

DOUTOR (visivelmente contente):

Ah, muito bem, Woyzeck, muito bem! (Esfrega as mãos. Pega no gato.) Que

vejo eu, meus senhores? Uma nova espécie de piolho, bela espécie, bastante

diferente da comum, enfoncé, o doutor (puxa de uma lupa) Ricinus, meus

senhores… (o gato foge.)

Meus senhores, o bicho não tem instinto científico. Ricinus, traga-os para cima,
os mais belos exemplares, tragam-me as vossas golas de pele. Em compensação,
meus senhores, poderão ver outra coisa: este homem, que há três meses só come
ervilhas. Reparem nos efeitos, vejam como o pulso está irregular, e os olhos…

WOYZECK:

Senhor doutor, estou a ver tudo escuro. (Senta-se.)

DOUTOR:

Coragem, Woyzeck! Só mais uns dias, e acabou-se. Vejam, meus senhores,


vejam… (Apalpam-lhe as fontes, o pulso e o peito.) À propos, Woyzeck, mexe lá as
orelhas para estes senhores verem, há muito tempo que eu queria que eles vissem
isso. Ele acciona dois músculos. Vá, allons!

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WOYZECK:

Ai, senhor doutor!

DOUTOR:

Sua besta! Queres que seja eu a mexer-te as orelhas? Vais fazer como o gato? Aqui
está, meus senhores, são pontos de contacto entre o homem e o burro, muitas
vezes também resultado da educação das mulheres e da língua materna. Quantos
cabelos é que a tua mãe já te arrancou carinhosamente, para os guardar de
recordação? Nos últimos dias parece que ficaram mais ralos. Ah, e as ervilhas,
meus senhores.

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19

Margarida [Maria] e rapariguinhas à porta de casa.

RAPARIGAS:

Na festa da Candelária

O sol brilha e o trigo espiga.

Iam pela estrada fora,

Em procissão, dois a dois.

À frente iam os gaiteiros,

Os rabequistas depois

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C' os seus peúgos vermelhos…

PRIMEIRA CRIANÇA:

Esta não presta.

SEGUNDA CRIANÇA:

Também nunca gostas de nada!

CRIANÇAS EM ALTERNÂNCIA: UM SEGUNDO GRUPO DE CRIANÇAS:

Então por que é que começaste? Porquê?

Porque sim!

Mas porque sim porquê?

Ela é que vai cantar.

Eu não sei.

Margarida, canta-nos tu!

MARGARIDA:

Venham cá, vamos fazer

Uma roda a cirandar…

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A história do rei Herodes. Avó, conta tu uma história.

AVÓ:

Era uma vez um menino pobrezinho, que não tinha pai nem mãe, estava tudo

morto e não havia ninguém neste mundo. Tudo morto, e ele andou, andou, a

chorar dia e noite. E como já não havia ninguém no mundo, quis ir para o céu, e

a Lua olhava para ele com tanto carinho, mas depois, quando lá chegou a Lua

era só um bocado de madeira podre. Então foi até ao Sol, mas quando lá chegou

o Sol era só um girassol murcho, e quando chegou às estrelas eram só uns

mosquitos dourados, estavam todas picadas, como os picanços fazem aos

abrunhos, e quando quis voltar à Terra viu que a Terra era um pote entornado,

e ali ficou sozinho, sentado a chorar. E ainda lá está, a chorar e sozinho.

LUÍS:

Margarida!

MARGARIDA (assustada):

O que é?

LUÍS:

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Margarida, temos de ir, são horas.

MARGARIDA:

Ir para onde?

LUÍS:

Eu sei lá!

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20

MARGARIDA E LUÍS.

MARGARIDA:

O caminho da vila é para ali, não é? Está tão escuro.

LUÍS:

Fica mais um bocado. Senta-te.

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MARGARIDA:

Tenho de ir andando.

LUÍS:

Não ias chegar muito longe.

MARGARIDA:

O que é que tens, que estás tão esquisito?

LUÍS:

Sabes há quanto tempo isto dura, Margarida?

MARGARIDA:

Faz dois anos pelo Pentecostes.

LUÍS:

E sabes quanto tempo ainda vai durar?

MARGARIDA:

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Tenho de ir. Já começa a cair o orvalho da noite.

LUÍS:

Tens frio? Mas estás tão quente, tens os lábios a escaldar. (Quente, hálito

quente de puta. E no entanto trocava o céu por mais um beijo dela.) Curioso,

quando ficamos frios deixamos de ter frio. Não vais ter frio com o orvalho da

manhã.

MARGARIDA:

O que é que estás para aí a dizer?

LUÍS:

Nada. (Silêncio.)

MARGARIDA:

Olha a Lua, tão vermelha!

LUÍS:

Como uma lâmina de sangue.

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MARGARIDA:

O que é que vais fazer, Luís? Estás tão pálido. Luís, pára. Pelo amor de Deus,

socorro, so…

LUÍS:

Toma esta e mais esta! Nunca mais morres? Toma! Toma! Ainda estrebucha.

Ainda não? Ainda não? Nem asssim? (Desfere-lhe mais um golpe.) E agora estás

morta? Morta! Morta! (Vem gente. Ele foge.)

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21

VEM GENTE.

PRIMEIRA PESSOA:

Pára aí!

SEGUNDA PESSOA:

Estás a ouvir? Escuta. Ali.

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PRIMEIRA PESSOA:

E ali. Ouvi um som.

SEGUNDA PESSOA:

É a água a chamar, há muito tempo que não se afoga ninguém. Não é bom ouvir

estes sons, vamos embora.

PRIMEIRA PESSOA:

Outra vez! Parece uma pessoa a morrer.

SEGUNDA PESSOA:

Mete medo, anda um cheiro no ar… E esta névoa parda e a zoada dos insectos,

parecem sinos rachados. Vamos embora!

PRIMEIRA PESSOA:

Não, agora é um som mais nítido. Por ali acima. Anda.

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22

PÁGINA 50
A ESTALAGEM

LUÍS:

Pois, dancem, dancem, suem e tresandem, que ele há-de levar-vos a todos um

dia. (Canta:)

Na estalagem há uma criada

Que passa a vida no jardim

Ali fica sentada

Até meia-noite dar

Vendo os soldados passar.

(Dança.) Isso, Catarina, senta-te. Que calor, que calor! (Despe o casaco.) É

assim a vida, o diabo leva uma e deixa a outra à solta. Estás quente, Catarina.

Porquê? Também tu hás-de ficar fria. Tem juízo. Não sabes cantar?

CATARINA:

Ir para a Suábia? Não vou, não.

Saia comprida? Não uso, não.

Saia comprida, bota afilada.

Não ficam bem a uma criada.

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LUÍS:

Não, botas para quê? Também se pode ir descalço para o inferno.

CATARINA:

E depois é assim:

Que feio, meu querido! Mais respeitinho!

Guarda o dinheiro e dorme sozinho.

LUÍS:

Dizes bem, realmente não gostava de me sujar de sangue.

CATARINA:

Mas, o que é que tens na mão?

LUÍS:

Eu? Eu?

CATARINA:

Vermelho! É sangue! (Junta-se gente.)

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LUÍS:

Sangue? Sangue?

ESTALAJADEIRO:

Ora esta! Sangue?

LUÍS:

Acho que me cortei, aqui na mão direita.

ESTALAJADEIRO:

E como é que ele chega ao cotovelo?

LUÍS:

Foi a limpar.

ESTALAJADEIRO:

O quê? Com a mão direita no cotovelo direito? Que habilidade!

O PARVO:

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E então o gigante disse: cheira-me, cheira-me, cheira-me a carne humana. Buh!

Já tresanda!

LUÍS:

Que diabo, o que é que vocês querem? O que é que têm a ver com isto?

Deixem-me passar, ou o primeiro… Que diabo, acham que eu matei alguém?

Sou algum assassino? O que é que estão a olhar? Olhem para vocês! Deixem

passar! (Sai a correr.)

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23

Luís, sozinho.

A faca? Onde ficou a faca? Deixei-a aqui. Vai-me denunciar! Vamos ver melhor,

mais de perto. Que lugar é este? Que é isto que estou a ouvir? Há qualquer

coisa a mexer. Silêncio. Aqui ao pé. Margarida? Ah, Margarida! Tudo em

silêncio. (Margarida, estás tão lívida! Tens um cordão vermelho à volta do

pescoço. Quem é que te ofereceu a gargantilha em troca dos teus pecados?

Estavas negra de pecado, negra. E agora, eu branqueei-te a alma? Porque é que

os teus cabelos negros estão assim tão revoltos? Não fizeste tranças hoje?) Está

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ali qualquer coisa! Fria, molhada, imóvel. Fora daqui! A faca, a faca? Tenho-a

comigo? Ah, vem aí gente. (Foge.)

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24

Luís junto de um lago.

Vou atirá-la para o fundo. (Atira a faca para o lago.) Afunda-se na água escura

como uma pedra. A Lua parece uma lâmina de sangue. Será que o mundo

inteiro vai querer apregoar isto? Não, ficou muito à beira, quem vier aqui tomar

banho… (Entra no lago e atira-a para mais longe.) Agora está bem. Mas no

verão, quando eles mergulham para apanhar marisco… Ora, nessa altura já está

enferrujada, ninguém a vai reconhecer. Devia era tê-la partido Ainda tenho

sangue? Tenho de me lavar. Cá está, uma mancha, e mais uma.

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26

OFICIAL DE DILIGÊNCIAS. BARBEIRO. MÉDICO. JUIZ.

POLÍCIA:

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Um bom assassínio, autêntico, um belo assassínio. Não se podia imaginar

melhor. Há muito tempo que não tínhamos um assim.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Antes de mais, gostaria de esclarecer que, nesta escolha que apresento, tentei
deixar a numeração da versão de Werner Lehmann para se perceber mais facilmente as
cenas que retirei. Ainda assim, talvez a numeração possa falhar. Depois de andar para
trás e para a frente, perdi-me um pouco, confesso.

Posto isto, gostaria de deixar um ou outro comentário que ajude a entender as


escolhas feitas.

A primeira seria que tentei deixar transparecer como o trastorno mental de


Woyzeck, e consequente seu comportamento, tem origem no tratamento, tanto do
doutor e sua dieta mas, mais decisivo ainda, a forma como é destratado. Destrato pelos
seus superiores em hierarquia militar, formação e até beleza que o leva ao ciúme, sim,
mas que é todo a envolvência e forma como é tratado que o levam à desgraça.

Acredito que uma leitura possível nesta peça é mesmo a questão do homem ser
formado, ou moldado pelas circunstâncias. Tudo o empurra para a desgraça em que já
parece de qualquer das formas mergulhado, poucos meios, infidelidade da mulher que
ama, experiências “científicas” para ganhar umas coroas extra, o desrespeito constante
pela sua pessoa, alinham a personagem como o seu fim.

Cena 18 Ms3/1 a escolha desta cena aqui mesmo antes da decisão de Woyzeck
em matar a sua companheira serve bem o propósito da minha montagem, uma
vez que recoloca na questão do estado mental do personagem como a possível
razão de este se decidir a matar Margarida.

Cena 21 com as pessoas que chegam e afastam Woyzeck, que reconhecem que
ali houve um crime, não vejo necessidade de a manter.

Tirei Cena 25 Ms 1/18 pela mesma razão da anterior, não vejo porque anunciar o
que o público já viu.

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Acabaria na cena 26 com Ms1/21 porque me parece que o comentário do oficial
fecha com chave de ouro todo o ridículo que atravessa a peça. Nas palavras do
polícia: “Não se imaginar melhor”.

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