Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PROPOSTA DE MONTAGEM
1. Ms. 4/1
2. Ms. 4/2
3. Ms. 2/3
4. Ms. 4/4
5. Ms. 4/5
6. Ms. 4/6
7. Ms. 4/7
8. Ms. 4/8
9. Ms. 2/8
PÁGINA 1
1.
[MS. 2: 1]
NO CAMPO. A VILA AO LONGE
WOYZECK:
Estás a ver aquele trilho ali na erva, André? É lá que a cabeça rola, à noite. Uma vez
houve um que agarrou nela, julgava que era um ouriço. Ao fim de três dias e três noites
já estava deitado entre quatro tábuas. (Em voz baixa.) Foram os pedreiros-livres, André,
podes crer, foram os pedreiros-livres. Espera, cala-te!
ANDRÉ, canta:
WOYZECK:
ANDRÉ:
PÁGINA 2
WOYZECK:
É qualquer coisa atrás de mim, aqui por baixo. (Batendo com o pé no chão.) Oco, estás a
ouvir? Tudo oco lá em baixo. Os pedreiros-livres…!
ANDRÉ:
WOYZECK:
Coisa estranha, está tudo tão calmo. Dá vontade de suster a respiração. André!
ANDRÉ:
Que foi?
WOYZECK:
Diz qualquer coisa! (Olha em volta, parado.) André! Que clarão! É um fogo que dá a volta
ao céu e um soar de trombetas a cair sobre nós. Vem-se aproximando. Vamos embora.
Não olhes para trás. (Arrasta-o para os arbustos.)
WOYZECK:
PÁGINA 3
ANDRÉ:
_____________________________________________________________________
2.
[Ms. 2: 2]
A vila
Maria com o filho à janela. Margarida. Passa a ronda da noite, com o Tambor-
mor à frente.
MARGARIDA:
MARIA:
O Tambor-mor saúda.
MARGARIDA:
Ai, vizinha, que olhar tão derretido que deitou ao homem! Não lhe conhecia esse jeito.
MARIA (canta):
PÁGINA 4
Os soldados são belos rapazes…
MARGARIDA:
MARIA:
E depois? Os seus, bem os pode levar ao judeu para ele os polir, e esperar que alguém
lhos compre, esses dois botões.
MARGARIDA:
Olhem só o desplante! A dona donzela! Eu sou uma pessoa honesta, mas a menina é
capaz de atravessar sete pares de calças com esse olhar.
MARIA:
A porca! (Fecha a janela.) Anda, meu menino. O que é que esta gente quer? És um pobre
diabo, filho de uma puta, mas dás alegria à tua mãe, com essa tua carinha sem vergonha.
Tralala… (Canta:)
PÁGINA 5
Atrela os cavalos, João,
Batem à janela.
3 [Ms. 4: 3; Ms. 1: 1, 2,
3]
VELHO:
PÁGINA 6
É esse o nosso destino!
WOYZECK:
Eh, lá! Salta, pobre homem, pobre velho! Pobre menino, tão novinho!
Preocupações e festas! Luísa, queres que te…? Um homem ainda tem de fazer
as academias; adivinham tudo e tudo vos dirão, idade, quantos filhos, que
doenças. Disparam pistolas, aguentm-se numa perna. Tudo escola, têm uma
razão animal, ou melhor, uma animalidade muito racional; não são bestas
ESTUDANTE:
BARBEIRO:
PÁGINA 7
Isto é grotesco? Eu interesso-me por tudo o que seja grotesco. Está a ver, ali?
ESTUDANTE:
___________________________________________________________________
<QUARTO DE MARIA>
As pedras brilham tanto! Que pedras serão? Ele disse que eram… Dorme. Meu menino,
fecha os olhos, vá, com força (A criança tapa os olhos com as mãos), mais ainda. E agora
fica quietinho, senão ele vem e leva-te. (Canta.)
(Volta a ver-se ao espelho.) É ouro, com certeza! A gente só tem um cantinho cá nesta
terra e um pedacito de espelho, mas nem por isso a minha boca é menos vermelha que
a das senhoras que têm espelhos grandes para se verem de alto a baixo, e belos senhores
para lhes beijarem as mãos. Eu posso ser um pedaço de mulher, mas sou pobre. (A
PÁGINA 8
criança levanta-se.) Quieto, menino, fecha os olhos! Não vês o anjinho do sono, ali na
parede? (Reflecte a luz na parede com o espelho.) Fecha os olhos, senão ele olha lá para
dentro e tu ficas cego.
Woyzeck entra, por trás dela. Maria leva precipitadamente as mãos às orelhas.
WOYZECK:
Que foi?
MARIA:
Nada.
WOYZECK:
MARIA:
É um brinco, achei-o.
WOYZECK:
MARIA:
WOYZECK:
PÁGINA 9
Está bem, Maria. Olha como o menino dorme. Pega-lhe por baixo dos braços, que a
cadeira está a magoá-lo. Tem a testa toda cheia de suor. É só trabalho nesta vida, até a
dormir a gente sua. Somos uns desgraçados! Trouxe-te mais algum dinheiro, Maria. O
soldo e mais qualquer coisa que o meu capitão me deu.
MARIA:
WOYZECK:
Eu sou mesmo uma mulher má! Devia era agarrar numa faca e matar-me. – Ah, este
mundo! Vão todos para o diabo, homens e mulheres!
_____________________________________________________________________
O Capitão. Woyzeck
CAPITÃO:
Devagar, Woyzeck, devagar. Uma coisa de cada vez. Pões-me a cabeça a andar à roda.
Despachas-te dez minutos mais cedo, e depois, o que é que eu vou fazer com eles? Pensa
PÁGINA 10
bem, Woyzeck, ainda tens uns bons trinta anos de vida, trinta anos! São trezentos e
sessenta meses, e dias e horas e minutos! Já pensaste no que vais fazer de todo este
tempo? Tens de te organizar, Woyzeck.
WOYZECK:
CAPITÃO:
Quando penso na eternidade e olho para este mundo, sinto angústia. Temos de
nos ocupar, Woyzeck, de nos ocupar! A eternidade é eterna, claro, é eterna, isso
dar uma volta completa. Que desperdício! Onde é que isto vai parar? Woyzeck,
já não posso olhar para uma roda de moinho sem ficar melancólico.
WOYZECK:
CAPITÃO:
PÁGINA 11
Woyzeck, tu parece que andas sempre a fugir. Um homem de bem não anda
assim, um homem de bem em paz com a sua consciência. Diz qualquer coisa,
WOYZECK:
CAPITÃO:
Bem o sinto, está muito agitado lá fora. Um vento destes lembra-me um rato a
WOYZECK:
CAPITÃO:
Ah! Ah! Ah! Sul-Norte! Ah! Ah! Ah! És mesmo estúpido, incrivelmente estúpido.
dignidade) não tens moral, Woyzeck! Ter moral é quando se é moral, estás a
compreender? É uma boa palavra. Tens um filho sem a bênção da igreja, como
diz o nosso reverendo capelão, sem a bênção da igreja… não sou eu que o digo…
PÁGINA 12
WOYZECK:
Meu capitão, Deus Nosso Senhor não vai olhar de lado para o coitadinho, lá
porque não foi dito o Ámen antes de ele ser feito. O Senhor disse: “Deixai vir a
mim as criancinhas.”
CAPITÃO:
Mas que ouço eu? Que resposta mais curiosa. Agora é que eu fico mesmo
baralhado. É de ti que eu estou a falar.
WOYZECK:
Ai de nós, os pobres. Repare, meu capitão, dinheiro, dinheiro… E quem não tem
dinheiro? Como é que a gente pode ir atrás da moral neste mundo? Também
somos de carne e osso. Mas gente como nós está fadada para ser infeliz neste
mundo e no outro. Eu acho que se fôssemos para o céu era só para ajudar a
fazer trovões.
CAPITÃO:
PÁGINA 13
WOYZECK:
Pois, meu capitão, a virtude! Eu ainda não entendi bem o que é. A gente
simples como nós, meu capitão, não tem virtude, segue a natureza, e pronto.
Mas se eu fosse um senhor e tivesse um chapéu e um relógio e uma anglaise e
soubesse falar a preceito, ah, então também eu gostava de ser um homem de
virtude. Deve ser bonito, isso da virtude, meu capitão, mas eu cá não passo de
um pobre diabo.
CAPITÃO:
Está bem, Woyzeck. És um homem bom, um homem bom. Mas pensas de mais,
e isso consome-te, andas sempre tão agitado. Esta conversa a mim abalou-me
muito. Agora podes ir, mas não corras; desce a rua devagar, devagarinho, como
deve ser.
_____________________________________________________________________
<QUARTO DE MARIA>
Maria. O Tambor-mor.
TAMBOR-MOR:
Maria!
PÁGINA 14
Anda lá um bocado, só para eu ver. Peito de touro e barba de leão. Não há outro
TAMBOR-MOR:
MARIA (trocista):
TAMBOR-MOR:
Deixa estar que tu não és menos mulher! Caramba! Vamos arranjar uma
MARIA (zangada):
Deixa-me!
TAMBOR-MOR:
PÁGINA 15
MARIA (agressiva):
Experimenta tocar-me!
TAMBOR-MOR:
MARIA:
___________________________________________________________________
[Ms. 2: 9]
<NA RUA>
Maria. Woyzeck.
Hum! Não vejo nada, não vejo nada. Mas devia ver-se, aquilo devia poder
PÁGINA 16
MARIA (intimidada):
WOYZECK:
Um pecado tão grande, deste tamanho… Tão pestilento que era capaz de
mandar os anjinhos para o céu como fumo a subir. Tens a boca vermelha,
Maria. E bolhas, não tens? Adeus, Maria, és linda como o pecado. Como pode o
MARIA:
WOYZECK:
MARIA:
Enquanto o dia for longo e o mundo velho, muita gente pode estar no mesmo
WOYZECK:
PÁGINA 17
Eu vi-o.
MARIA:
Pode-se ver muita coisa, quando se tem dois olhos, se não formos cegos e o sol
brilhar.
WOYZECK:
MARIA (coquete):
E daí?
_____________________________________________________________________
8 [Ms.
Em casa do doutor
Woyzeck. O doutor.
DOUTOR:
PÁGINA 18
O que vem a ser isto, Woyzeck? E dizes tu que és um homem de palavra?
WOYZECK:
DOUTOR:
Eu vi, Woyzeck, vi-te a mijar na rua, contra a parede, como um cão. E pago-te eu dois
réis por dia para isto? Não está certo, Woyzeck, o mundo anda todo ao contrário,
completamente às avessas.
WOYZECK:
DOUTOR:
WOYZECK:
PÁGINA 19
Mas contra a parede já consegues! Está tudo aqui, por escrito, no contrato. Eu vi, vi com
estes olhos, na altura em que pus o nariz de fora da janela e deixei entrar o sol,
para poder observar o fenómeno do espirro. (Avança para ele, ameaçador.) Não,
Woyzeck, não me vou irritar. Não é saudável nem científico uma pessoa irritar-se. Estou
calmo, muito calmo, continuo com as sessenta pulsações do costume, e digo-te tudo isto
com o maior sangue-frio. Era o que faltava, irritar-me por causa de um homem, de uma
criatura humana! Ainda se fosse um proteu que me morresse! Mas Woyzeck, nunca
devias ter mijado contra a parede…
WOYZECK:
Olhe, senhor doutor, a gente até pode ter um certo carácter, uma certa estrutura. Mas
com a natureza é diferente, sabe, com a natureza (dá estalidos com os dedos)… É uma
coisa, como é que hei-de dizer, assim como se…
DOUTOR:
O senhor doutor já alguma vez viu coisas da dupla natureza? Quando o sol está a pino
ao meio-dia e o mundo parece incendiar-se, já ouvi uma voz terrível que falava comigo!
DOUTOR:
PÁGINA 20
WOYZECK (pondo o dedo no nariz):
Os cogumelos, senhor doutor, aí é que está o mistério. Já viu as figuras que os cogumelos
desenham no chão? Quem as pudesse ler!
DOUTOR:
Woyzeck, tens uma bela aberratio mentalis partialis de segundo grau, muito bem
definida. Woyzeck, vou dar-te um aumento. De segundo grau, ideia fixa, estado geral
normal. Continuas a fazer a tua vida como antes, a barbear o capitão?
WOYZECK:
DOUTOR:
E a comer as ervilhas?
WOYZECK:
Regularmente, senhor doutor. E dou o dinheiro para o governo da casa à minha mulher.
DOUTOR:
E o serviço, cumpres?
WOYZECK:
PÁGINA 21
Sim, senhor doutor.
DOUTOR:
És um caso interessante. Vou dar-te um aumento, Woyzeck. Mas porta-te como deve
ser. Dá cá o pulso. Hum, pois…
_____________________________________________________________________
8. [Ms. 4: 9]
RUA
CAPITÃO:
DOUTOR:
CAPITÃO:
Calma, que o tempo não vos foge, meu caro senhor coveiro.
PÁGINA 22
DOUTOR:
CAPITÃO:
Não corra tanto, senhor doutor, um homem de bem não anda com essa pressa
toda! Ah, ah, ah, um homem de bem (Toma fôlego.), um homem de bem. O
DOUTOR:
CAPITÃO:
Senhor cangalheiro, assim ainda acaba por gastar a sua perninha na calçada.
DOUTOR:
CAPITÃO:
PÁGINA 23
Não me assuste, doutor. Já houve quem tivesse morrido de susto, só do susto,
sem mais.
DOUTOR:
Digo-lhe que…
CAPITÃO:
Que o tempo, vou segurá-lo pelas asas, não vou deixar que… C’ os diabos,
quatro semanas e as pessoas já de chapéu na mão, mas vão dizer: Ele era um
DOUTOR:
PÁGINA 24
E isto o que é, senhor doutor? Cabeça simplória! Ah, ah, ah! Mas não leve a mal.
Eu sou um homem de bem… mas quando quero, quando quero, senhor doutor,
também posso…
----------------------------
aberta a correr por esse mundo, ainda nos cortamos todos. Corres como se
de hora depois de cortares o último pêlo. Mas, o que é que eu queria dizer das
DOUTOR:
compridas…
CAPITÃO (continuando):
Hum, barbas grandes… Olha lá, Woyzeck, nunca encontraste um pêlo de barba
WOYZECK:
PÁGINA 25
Pois tenho. O que é que o meu capitão quer dizer?
CAPITÃO:
A cara que ele fez! Ficaste pregado… ao céu? Não, também pode não ser na
pelinho num par de lábios, num par de lábios. Woyzeck, voltei a sentir o amor.
WOYZECK:
Meu capitão, eu sou um pobre diabo que não tem mais nada neste mundo… Se
CAPITÃO:
DOUTOR:
irregular.
WOYZECK:
PÁGINA 26
Meu capitão, a terra arde como o inferno, eu estou gelado, gelado, aposto que o
inferno é gelado. Não pode ser. Homem, homem! Não pode ser.
CAPITÃO:
Ouve lá, queres ser fuzilado? Queres levar duas balas na cabeça? Fulminas-me
com esses olhos, e afinal eu só quero o teu bem, porque és um homem bom,
DOUTOR:
tensa.
WOYZECK:
Vou andando. Muita coisa é possível. O ser humano! Muita coisa é possível.
Temos bom tempo, meu capitão. Está a ver este belo céu, firme, cinzento, até
daquele tracinho de união entre o sim e o não, o sim… e o não, meu capitão.
Sim e não? É o não que tem culpa do sim, ou o sim que tem culpa do não? Vou
pensar nisto.
(Sai a passo largo, primeiro devagar, depois cada vez mais apressado.)
PÁGINA 27
DOUTOR (segue-o, rápido):
CAPITÃO:
Fico com vertigens só de olhar para estes dois, desarvorados, o grandão estuga
o passo, corre como a sombra de uma pata de aranha. O baixote vai trotando. O
grande é o relâmpago e o pequeno o trovão. Ah, ah, vou atrás deles. Não gosto
nada disto! Um homem de bem é um homem grato, que gosta da sua vida, um
fui à guerra para reforçar o meu amor à vida. Do pulso vem o medo, do medo
vem a bala, da bala vem a coragem… As ideias que nos vêm! Grotesco, grotesco!
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
10
[Ms. 1:4]
CASA DA GUARDA
Woyzeck. André.
PÁGINA 28
ANDRÉ (canta):
WOYZECK:
André!
ANDRÉ:
O que é?
WOYZECK:
Bom tempo.
ANDRÉ:
WOYZECK (inquieto):
ANDRÉ:
PÁGINA 29
WOYZECK:
ANDRÉ:
Cá por mim…
WOYZECK:
ANDRÉ:
És parvo!
WOYZECK:
Tenho de ir lá. Sinto-os a rodar diante dos meus olhos. Têm as mãos quentes! Maldita
a hora, André!
ANDRÉ:
PÁGINA 30
WOYZECK:
Tenho de ir lá.
ANDRÉ:
Este homem…
WOYZECK:
_____________________________________________________________________
ESTALAGEM
1º ARTESÃO-APRENDIZ:
A aguardente…
PÁGINA 31
2º ARTESÃO-APRENDIZ:
Meu irmão, queres que te abra um buraco na natureza, por pura amizade? Caramba,
quero abrir um buraco na natureza. Também sou um tipo rijo, e tu sabes disso… Vou dar
cabo das pulgas todas que houver naquele corpanzil.
1º ARTESÃO-APRENDIZ:
A minh’ alma, a minh’ alma tresanda a aguardente… Até o dinheiro acaba por apodrecer.
Malmequer, tu queres-me bem. Este mundo é tão belo! Meu irmão, vou encher um tonel
com as minhas lágrimas. O que eu queria era que os nossos narizes fossem duas garrafas,
para nós as despejarmos um ao outro pelas goelas abaixo.
OS OUTROS, EM CORO:
WOYZECK (sufocado):
PÁGINA 32
Sem parar… sem parar… (Levanta-se de um salto e volta a cair no banco.) Sem parar…
sem parar… (Torce as mãos.) Girem, girem! Rebolem-se, rebolem-se! Por que é que Deus
não apaga o sol para todos se enroscarem a fornicar, homens e mulheres, pessoas e
bichos, uns por cima dos outros? Façam-no em pleno dia, façam- -no em cima das nossas
mãos, como os mosquitos. Ah, mulher! Está com os calores. Sem parar… sem parar. (Dá
um salto.) E o sujeito, como ele a apalpa, como lhe põe as mãos no corpo…
_____________________________________________________________________
12
[Ms. 1:6]
NO CAMPO
Woyzeck.
PÁGINA 33
Sem parar… sem parar! Acabem com a música. (Estende-se no chão.) O quê? O que é que
vocês dizem? Mais alto, mais alto. Sangra, sangra a cabra, mata-a? Sangra, mata a cabra?
É isso? Tem de ser? É isso o que ouço ainda? É isso que diz o vento? É o que ouço sempre,
sem parar, mata, mata a cabra?
_____________________________________________________________________
13
[Ms. 1:7]
NOITE
André! André! Não consigo dormir, fecho os olhos e anda tudo à roda e ouço os
violinos, sem parar, sem parar. E depois ouço vozes que vêm da parede, estás a
ouvir?
ANDRÉ:
(Volta a adormecer.)
WOYZECK:
PÁGINA 34
E sinto uma dor entre os olhos, como uma faca.
ANDRÉ:
_____________________________________________________________________
14
[Ms. 1: 8, 9]
ESTALAGEM
TAMBOR-MOR:
tanta porrada que lhe enfio o nariz pelo olho do cu. Leva… (para Woyzeck) Tu
aí, bebe, um homem precisa de beber, quem me dera que este mundo fosse um
WOYZECK (assobia).
PÁGINA 35
TAMBOR-MOR:
dois, Woyzeck perde.) Vou-te deixar sem fôlego, não vais conseguir bufar mais
TAMBOR-MOR:
UM HOMEM:
OUTRO:
Está a sangrar.
WOYZECK:
____________________________________________________________________
PÁGINA 36
15 [Ms. 1:
7, 11, 12]
Woyzeck. O judeu.
WOYZECK:
JUDEU:
WOYZECK:
JUDEU:
Bela lâmina, bem afiada. Vai cortar o pescoço com ela, ou quê? Não lha vendo
mais cara do que qualquer outro, quero que a morte lhe saia barata, mas lá de
graça é que não. Então, vai? Uma morte económica, é o que lhe desejo.
WOYZECK:
JUDEU:
PÁGINA 37
WOYZECK:
Tome lá (Sai.)
JUDEU:
_____________________________________________________________________
16 [Ms. 2: 10;
Ms. 3: 2]
“E na sua boca não havia falsidade…” Meu Deus, meu Deus, não olhes para
condena, vai e não voltes a pecar.” (Junta as mãos.) Meu Deus, meu Deus, não
posso. Meu Deus, dá-me pelo menos forças para rezar. (A criança aconchega-se
a ela.) Este menino corta-me o coração. Vai-te embora! E aquele ali refastelado
ao sol!
PÁGINA 38
PARVO (deitado, vai contando histórias pelos dedos):
O rei é quem tem a coroa de ouro. Amanhã vou buscar o filho da rainha… A
MARIA:
E o Franz não veio, nem ontem, nem hoje; está a ficar quente aqui dentro. (Abre
bálsamo.” (Bate no peito.) Tudo morto! Senhor, meu salvador, queria ungir-te
os pés.
_____________________________________________________________________
17 [Ms.
1: 13, 11]
QUARTEL
WOYZECK:
PÁGINA 39
Esta camisola, André, não é da farda. Pode ser que te sirva, André. A cruz é da
minha irmã e o anel também, e ainda tenho um santinho, bonito, com dois
Em sofrimento Te adoro,
A minha mãe já não sente nada, só quando o sol lhe bate nas mãos. Mas não faz mal.
Julho, etc. etc.. Faço hoje trinta anos, sete meses e doze dias.
ANDRÉ:
Franz, tu vais mas é para o hospital. Tens de beber uma aguardente com pó dentro, para
matar essa febre.
WOYZECK:
Pois é, André, quando o carpinteiro aplaina as tábuas, ninguém sabe quem é que se vai
deitar nelas.
18
PÁGINA 40
O PÁTIO DA CASA DO PROFESSOR
PROFESSOR:
Aqui estou eu, meus senhores, no telhado, como David quando avistou Betsabé.
com o objecto. Se tomarmos como exemplo uma das coisas em que a auto-
atirar este gato da janela abaixo, como irá comportar-se esta entidade em
(Grita.) Woyzeck!!
WOYZECK:
PROFESSOR:
PÁGINA 41
Homem, tu também pegas no bicho de uma maneira tão delicada como se fosse
a tua avó!
WOYZECK:
Ah, muito bem, Woyzeck, muito bem! (Esfrega as mãos. Pega no gato.) Que
vejo eu, meus senhores? Uma nova espécie de piolho, bela espécie, bastante
Meus senhores, o bicho não tem instinto científico. Ricinus, traga-os para cima,
os mais belos exemplares, tragam-me as vossas golas de pele. Em compensação,
meus senhores, poderão ver outra coisa: este homem, que há três meses só come
ervilhas. Reparem nos efeitos, vejam como o pulso está irregular, e os olhos…
WOYZECK:
DOUTOR:
PÁGINA 42
WOYZECK:
DOUTOR:
Sua besta! Queres que seja eu a mexer-te as orelhas? Vais fazer como o gato? Aqui
está, meus senhores, são pontos de contacto entre o homem e o burro, muitas
vezes também resultado da educação das mulheres e da língua materna. Quantos
cabelos é que a tua mãe já te arrancou carinhosamente, para os guardar de
recordação? Nos últimos dias parece que ficaram mais ralos. Ah, e as ervilhas,
meus senhores.
_____________________________________________________________________
19
RAPARIGAS:
Na festa da Candelária
Os rabequistas depois
PÁGINA 43
C' os seus peúgos vermelhos…
PRIMEIRA CRIANÇA:
SEGUNDA CRIANÇA:
Porque sim!
Eu não sei.
MARGARIDA:
PÁGINA 44
A história do rei Herodes. Avó, conta tu uma história.
AVÓ:
Era uma vez um menino pobrezinho, que não tinha pai nem mãe, estava tudo
morto e não havia ninguém neste mundo. Tudo morto, e ele andou, andou, a
chorar dia e noite. E como já não havia ninguém no mundo, quis ir para o céu, e
a Lua olhava para ele com tanto carinho, mas depois, quando lá chegou a Lua
era só um bocado de madeira podre. Então foi até ao Sol, mas quando lá chegou
abrunhos, e quando quis voltar à Terra viu que a Terra era um pote entornado,
LUÍS:
Margarida!
MARGARIDA (assustada):
O que é?
LUÍS:
PÁGINA 45
Margarida, temos de ir, são horas.
MARGARIDA:
Ir para onde?
LUÍS:
Eu sei lá!
___________________________________________________________________
20
MARGARIDA E LUÍS.
MARGARIDA:
LUÍS:
PÁGINA 46
MARGARIDA:
Tenho de ir andando.
LUÍS:
MARGARIDA:
LUÍS:
MARGARIDA:
LUÍS:
MARGARIDA:
PÁGINA 47
Tenho de ir. Já começa a cair o orvalho da noite.
LUÍS:
Tens frio? Mas estás tão quente, tens os lábios a escaldar. (Quente, hálito
quente de puta. E no entanto trocava o céu por mais um beijo dela.) Curioso,
quando ficamos frios deixamos de ter frio. Não vais ter frio com o orvalho da
manhã.
MARGARIDA:
LUÍS:
Nada. (Silêncio.)
MARGARIDA:
LUÍS:
PÁGINA 48
MARGARIDA:
O que é que vais fazer, Luís? Estás tão pálido. Luís, pára. Pelo amor de Deus,
socorro, so…
LUÍS:
Toma esta e mais esta! Nunca mais morres? Toma! Toma! Ainda estrebucha.
Ainda não? Ainda não? Nem asssim? (Desfere-lhe mais um golpe.) E agora estás
____________________________________________________________________
21
VEM GENTE.
PRIMEIRA PESSOA:
Pára aí!
SEGUNDA PESSOA:
PÁGINA 49
PRIMEIRA PESSOA:
SEGUNDA PESSOA:
É a água a chamar, há muito tempo que não se afoga ninguém. Não é bom ouvir
PRIMEIRA PESSOA:
SEGUNDA PESSOA:
Mete medo, anda um cheiro no ar… E esta névoa parda e a zoada dos insectos,
PRIMEIRA PESSOA:
____________________________________________________________________
22
PÁGINA 50
A ESTALAGEM
LUÍS:
Pois, dancem, dancem, suem e tresandem, que ele há-de levar-vos a todos um
dia. (Canta:)
(Dança.) Isso, Catarina, senta-te. Que calor, que calor! (Despe o casaco.) É
assim a vida, o diabo leva uma e deixa a outra à solta. Estás quente, Catarina.
Porquê? Também tu hás-de ficar fria. Tem juízo. Não sabes cantar?
CATARINA:
PÁGINA 51
LUÍS:
CATARINA:
E depois é assim:
LUÍS:
CATARINA:
LUÍS:
Eu? Eu?
CATARINA:
PÁGINA 52
LUÍS:
Sangue? Sangue?
ESTALAJADEIRO:
LUÍS:
ESTALAJADEIRO:
LUÍS:
Foi a limpar.
ESTALAJADEIRO:
O PARVO:
PÁGINA 53
E então o gigante disse: cheira-me, cheira-me, cheira-me a carne humana. Buh!
Já tresanda!
LUÍS:
Que diabo, o que é que vocês querem? O que é que têm a ver com isto?
Sou algum assassino? O que é que estão a olhar? Olhem para vocês! Deixem
_____________________________________________________________________
23
Luís, sozinho.
A faca? Onde ficou a faca? Deixei-a aqui. Vai-me denunciar! Vamos ver melhor,
mais de perto. Que lugar é este? Que é isto que estou a ouvir? Há qualquer
os teus cabelos negros estão assim tão revoltos? Não fizeste tranças hoje?) Está
PÁGINA 54
ali qualquer coisa! Fria, molhada, imóvel. Fora daqui! A faca, a faca? Tenho-a
____________________________________________________________________
24
Vou atirá-la para o fundo. (Atira a faca para o lago.) Afunda-se na água escura
como uma pedra. A Lua parece uma lâmina de sangue. Será que o mundo
inteiro vai querer apregoar isto? Não, ficou muito à beira, quem vier aqui tomar
banho… (Entra no lago e atira-a para mais longe.) Agora está bem. Mas no
verão, quando eles mergulham para apanhar marisco… Ora, nessa altura já está
enferrujada, ninguém a vai reconhecer. Devia era tê-la partido Ainda tenho
____________________________________________________________________
26
POLÍCIA:
PÁGINA 55
Um bom assassínio, autêntico, um belo assassínio. Não se podia imaginar
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Antes de mais, gostaria de esclarecer que, nesta escolha que apresento, tentei
deixar a numeração da versão de Werner Lehmann para se perceber mais facilmente as
cenas que retirei. Ainda assim, talvez a numeração possa falhar. Depois de andar para
trás e para a frente, perdi-me um pouco, confesso.
Acredito que uma leitura possível nesta peça é mesmo a questão do homem ser
formado, ou moldado pelas circunstâncias. Tudo o empurra para a desgraça em que já
parece de qualquer das formas mergulhado, poucos meios, infidelidade da mulher que
ama, experiências “científicas” para ganhar umas coroas extra, o desrespeito constante
pela sua pessoa, alinham a personagem como o seu fim.
Cena 18 Ms3/1 a escolha desta cena aqui mesmo antes da decisão de Woyzeck
em matar a sua companheira serve bem o propósito da minha montagem, uma
vez que recoloca na questão do estado mental do personagem como a possível
razão de este se decidir a matar Margarida.
Cena 21 com as pessoas que chegam e afastam Woyzeck, que reconhecem que
ali houve um crime, não vejo necessidade de a manter.
Tirei Cena 25 Ms 1/18 pela mesma razão da anterior, não vejo porque anunciar o
que o público já viu.
PÁGINA 56
Acabaria na cena 26 com Ms1/21 porque me parece que o comentário do oficial
fecha com chave de ouro todo o ridículo que atravessa a peça. Nas palavras do
polícia: “Não se imaginar melhor”.
PÁGINA 57