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LÍRICA CAMONIANA: resumo

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TEMAS

A representação da amada 1. Retrato realista

A obra camoniana retrata dois tipos de mulher. A primeira é uma imagem realista e aparece em algumas
redondilhas. [...] A segunda é uma imagem petrarquista: está presente nos sonetos. [...]

A própria temática da medida velha é muitas vezes retirada da vida quotidiana: por isso as suas heroínas

são mulheres apaixonadas, alegres, [...] prontas a lutar pelos seus interesses e pelos seus sentimentos. A
imagem realista opõe-se à imagem petrarquista1 em que a mulher personifica várias ideias: beleza,
castidade, «alma gentil», «leda serenidade deleitosa», [...] harmonia: a unidade profunda entre a beleza
externa e a beleza interna.

2. A mulher petrarquista

Petrarca (1304-1374) é o grande cultor do «amor elevado», que celebra com múltiplos jogos de
antíteses. Toda a sua obra é atravessada pela presença de Laura, a amada que conhece em 1327 e que
lhe desperta um amor platónico. Apesar de a sua musa ter morrido em 1348, vítima da peste negra,
Petrarca continua a cantá-la até ao fim dos seus dias, projetando o amor irrealizável numa cristalização
perfeita que reflete a transcendência divina. A poesia petrarquista, escrita sob o signo da ausência e da
solidão, impõe um modelo feminino, de cabelos loiros [pele nívea] e beleza serena, impalpável, abstrata,
inacessível, símbolo de harmonia e perfeição [tendo a capacidade de contaminar positivamente a
natureza].

A experiência amorosa e a reflexão sobre o Amor

O amor é, para o poeta, um binómio de duas faces contraditórias, a espiritual e a carnal,


correspondentes a dois tipos de mulher: a ideal e a sensual. A primeira – criatura angelical de inspiração
petrarquiana – é o objeto de culto, ser de essência divina, intocável e distante. Com um retrato físico
nem sempre evidente – todavia sempre idealizado – quando o possui, este é o reflexo de uma superior
beleza interior e moral, em que sobreleva uma alma virtuosa. Eis o que sobressai em sonetos
petrarquistas como «Um mover de olhos brando e piedoso». [...] Perante uma tal beleza [neste soneto],
o sujeito lírico toma uma atitude reverente em relação à dama.

A par destes sonetos em que o eu lírico aparece fascinado pelo etéreo amor petrarquista, outros há em
que o sujeito deseja o objeto amado e, como tal, surge dilacerado por uma torturante contradição
interior. [...]

Aqui [no soneto «Tanto do meu estado me acho incerto»] sobressai a dialética do desejo, «o estado
incerto» petrarquista, que é ainda o fascínio pela mulher superior, quase divina, de beleza inefável. Mas
o amor depurado, reduzido a manifestações espirituais, dá, não raro, lugar a um sentimento profundo,
que abrange a totalidade das manifestações eróticas, fortemente marcado de sensualidade. Este amor
tangível, sensual, expressão artística de quem «em várias flamas ardia» [«Tanto do meu estado me acho
incerto»] encontramo-lo em sonetos [...] do Renascimento. [...]

O esquema dual de representação feminina ou amorosa camoniano não dissolve a dialética. E

porque a dualidade sistemática nunca se encaminha para uma solução, dessa questão
permanentemente inconclusa nasce a dramática reflexão entre o real e o ideal. Daqui resulta a
insatisfação, a angústia, a desventura existencial, o pathos amoroso que encontramos em sonetos
como: “Erros meus, má fortuna, amor ardente.

A representação da natureza
1. A natureza: cenário, testemunho e alegoria

Presença constante na pintura e na poesia quinhentistas, a natureza representa algo mais do que um
cenário decorativo dos retratos humanos, tanto físicos como psicológicos, mas uma companheira que
testemunha e alegoriza as vivências regista- das. Não é já a interlocutora privilegiada das cantigas de
amigo galego-portuguesas, plena de magia quase omnisciente e omnipotente, mas também não é mera
convenção retórica, quase sempre simbólica de serenidade e harmonia, segundo o tópico clássico do
locus amoenus.

Nos sonetos camonianos, destaca-se um leque variado de ângulos e perspetivas em que o tema da
natureza é abordado e desenvolvido. Assim, a natureza:

– [...] é a corresponsável demiúrgica1 pelas excelsas qualidades das figuras femininas exaltadas,
conferindo- lhes a sua beleza, «luz, graça e pureza» («Pelos extremos raros que mostrou»); [...]

– apresenta uma nota agónica e nostálgica no tópico clássico do locus amoenus, pela ausência da amada
(«Alegres campos, verdes arvoredos»); [...]

– mostra insensibilidade, sendo incapaz de se solidarizar com a dor do sujeito poético («O céu, a terra, o
vento sossegado»); [...]

– provoca, apesar da sua amenidade, um distúrbio no sujeito lírico motivado pela ausência feminina
(«Alegres campos, verdes arvoredos»).

2. Locus amoenus (lugar ameno)

Expressão latina que designa a paisagem ideal, sempre presente na poesia amorosa em geral e, com
maior incidência, na poesia bucólica. Desde a Antiguidade Clássica que o termo locus amoenus nos
remete para a descrição da natureza e para um conjunto de elementos específicos: o campo fresco e
verdejante, com um vasto arvoredo e flores coloridas, cujo doce odor se espalha com a brisa. [...] Esta
natureza mágica é conducente ao amor, ao encantamento sensorial e espiritual do Homem, que se
integra na perfeição em tal plenitude, marcada pela harmonia e homogeneidade. Enfim, estamos
perante um paraíso terrestre, onde se enquadra o ser humano que busca a satisfação pela simplicidade.
[...]
Reflexão sobre a vida pessoal

A poesia de Camões é infinitamente mais poderosa, rica e atual que a de Petrarca, justamente na
medida em que ele se recusa à mera evasão lírica e não se contenta com o objeto tradicional do amor,
antes procura integrar a experiência vivida. [...]

O acontecimento, o facto, o tempo penetram repetidamente, por vezes sob o aspeto mais cru, na poesia
de Camões. A mais impressionante das suas canções [«Vinde cá, meu tão certo secretário»] é uma
autobiografia, e não uma autobiografia puramente espiritual, porque nela se conta como o Destino
vergou a vida do Poeta. Logo ao nascer, o horóscopo, as «estrelas infelizes», o predestinaram, forçando-
lhe o livre alvedrio; se trocou a vida de namorado pela de guerreiro, foi porque lho impôs o «Destino
fero, irado», que o fez atravessar o mar, perder em combate um dos olhos, peregrinar. [...]

O Poeta não evolui em vaso fechado; a sua história resulta do encontro do seu impulso espiritual com o
cego desencadeamento do caso1, sorte ou fortuna: «Erros meus, má fortuna, amor ardente / em minha
perdição se conjuraram.» [...]

A pretensão de reconstruir a biografia de Camões para melhor compreensão da sua lírica não é tão
insensata como se tem feito crer. Os biógrafos têm errado, sim: alguns pela extrema ingenuidade das
suas hipóteses, outros pelo excessivo recurso a uma fantasia gratuita, e quase todos por um método
incientífico. Mas é evidente que a poesia camoniana ganharia muito com um adequado comentário
biográfico, justamente pela importância que nela tem o acontecimento externo. [...]

O embate do Poeta com o acontecimento [a morte] reflete-se em gritos e acenos que são inteiramente
desconhecidos de Petrarca. Não são já meramente os suspiros e exclamações do amor insatisfeito, mas
manifestações de revolta desesperada e impotente, [...] de cansaço, [...] de remorso. [...]

Camões chama-lhe morte «cega», caso «duvidoso». «Cega» é aqui sinónimo de irracional,
incompreensível, arbitrária, sem sentido; «duvidoso», de inesperado, ou, melhor, imprevisível.

O desconcerto do mundo

Enquanto para Petrarca não existe o problema da ordem do mundo, [...] [para Camões], contrariamente,
o problema do desconcerto do mundo está constantemente presente. [...]

É absurdo o caso duvidoso que destrói o puro amor; é absurda a morte, cuja existência brutal Camões
reconhece plenamente, sem querer consolar-se com a imortalidade da alma; é absurdo o tempo, que
não só traz consigo mágoas e desastres, como também altera a alma das pessoas, irreversivelmente,
incapacitando-as para o contentamento. [...]

O mundo é um «desconcerto» – tal é um dos pensamentos favoritos de Camões. Uma extensa


composição em oitavas dedicadas «Ao desconcerto do mundo» desenvolve este pensamento
especialmente em relação à vida social. [...]

O mundo é um «desconcerto» – tal é um dos pensamentos favoritos de Camões. Uma extensa


composição em oitavas dedicadas «Ao desconcerto do mundo» desenvolve este pensamento
especialmente em relação à vida social. [...]
Alguém diria que este desconcerto não é coisa nova, pelo que parece não haver razão para espanto.
Mas é, muito pelo contrário, porque, por um lado, quanto mais se prolonga tal desconcerto, mais é para
espantar; e, por outro, ninguém se habitua a ele, antes todos o sentem e se inconformam.

O desconcerto do mundo aparece [...] sob duas formas. É uma o disparate que preside à distribuição do
prémio e do castigo, a qual tem que ver com o merecimento, porque aqueles que vivem de latrocínios,
mortes e adultérios, e deveriam merecer castigo perpétuo, são protegidos pela fortuna. [...] E, pelo
contrário, aqueles cuja vida limpa apareceria até mesmo a quem pudesse vê-los com o peito aberto, são
por ela perseguidos e veem negado o seu direito. [...]

Resumindo: o desconcerto do mundo aparece a Camões sob diversas formas. É um facto objetivo os
prémios e castigos estarem distribuídos desencontradamente.

O tema da mudança

Que é o tempo? Objetivamente, é a sucessão das mudanças, decreto incompreensível da natureza. [...]

As horas são diferentes na qualidade. A essência do tempo objetivo está nisso: a sucessão das
qualidades diferentes que resulta da mudança ou de que resulta a mudança. É o pensamento do soneto
justamente célebre «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades».

Cingindo-se a um tópico tradicional, Camões, neste soneto, contrapõe a esta mudança do tempo a
constância da própria alma: essa é a tese que ele herdou e glosou repetidamente. Mas, passando além,
o reverso subjetivo do tempo tornou-se para ele um problema. O facto é que, verifica ele, a própria
alma muda. [...]

Como dirá em «Sôbolos rios», todos os males vêm das mudanças e todas as mudanças vêm dos anos; e
mudando-se a vida se mudam os gostos dela. [...]

O efeito do tempo é psicologicamente uma mudança qualitativa de estado – mais: uma mudança
qualitativa da própria alma.

Não se perde só o contentamento, mas o gosto de ser contente. [...] Ao contentamento do passado
contrapõe-se o ser triste no presente. A contraposição entre passado e presente tende a converter-se
em Camões numa oposição de estados psíquicos. O passado torna-se meramente o oposto do presente.
[...]

Por esta oposição entre o passado contente e o presente descontente – oposição que transporta para o
presente o passado, retirando-lhe a qualidade de realidade empírica [...] – Camões encaminha-se para
uma formulação metafísica do problema do tempo psicológico, a qual aparece acabadamente [...] nas
redondilhas «Sôbolos rios». Mas, 25 na origem, o tempo aparece-lhe como uma dessas existências que a
consciência não reconhece, como a morte cega e o caso [acaso] duvidoso, e que fazem do mundo um
grande desconcerto.

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