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10.ºano
CAMÕES LÍRICO
O TEMA DO AMOR
1. A representação da amada
Segundo António José Saraiva (1980), na lírica camoniana, temos dois tipos de mulher:
• a mulher petrarquista;
• o ideal de Vénus.
A mulher petrarquista
- O ideal da mulher como ser superior que é servido pelo amado numa relação em que se reproduzem
as relações vassalo/suserano estava já presente na poesia provençal e nos romances de cavalaria.
- No entanto, no Renascimento, este ideal feminino será desenvolvido e investido de maior riqueza
psicológica por Petrarca, ao cantar Laura, expoente do amor «elevado». Apesar de fazer referência à
beleza inefável de Laura, bem como aos seus cabelos louros, a verdade é que Petrarca a caracteriza como
um ser sem corpo visível, no qual se destacam, acima de tudo, a gravidade, a harmonia e a serenidade.
Esta figura feminina existe assim numa dimensão etérea, sendo que a idealização das suas qualidades
psicológicas a coloca num plano inacessível ao amado.
- A mulher petrarquista permitiria ao amado elevar-se através de um sentimento amoroso de dimensão
exclusivamente espiritual.
O ideal de Vénus
- A figura feminina associada ao ideal de Vénus é corporizada na obra camoniana tanto por esta deusa,
como por Tétis e pelas diversas ninfas.
- Ao contrário de Laura, estas figuras femininas têm corpos de contornos definidos e palpáveis,
caracterizando-se por uma profunda sensualidade.
- Surgem muitas vezes em ambientes naturais de carácter luxuriante, cuja vitalidade está em sintonia com o
esplendor das suas formas corporais voluptuosas.
- O ideal de Vénus corresponde, assim, à exaltação da dimensão sensível e terrena do amor, na medida em
que a sua evocação permite ao Homem libertar-se das convenções sociais em que se encontra
encarcerado e deixar-se levar pela espontaneidade e harmonia da natureza.
Do que anteriormente foi exposto, é possível concluir que na lírica camoniana temos,
frequentemente, uma reflexão sobre a contradição entre a mulher petrarquista e o ideal de Vénus, algo
que está associado aos sentimentos contraditórios que perpassam a poesia de Camões no que toca ao
sentimento amoroso.
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2. A experiência amorosa e a reflexão sobre o amor
A experiência amorosa
- A experiência amorosa na lírica camoniana entra em conflito com a reflexão sobre o amor anteriormente
exposta.
- Em primeiro lugar, a saudade — vista no platonismo como condição de aperfeiçoamento —, passa a ser
vivida como uma carência insuportável («Vinde cá, meu tão certo secretário»).
- Além disso, o sujeito poético distancia-se da exaltação da sublimação do desejo amoroso, não
conseguindo reprimir a sua insatisfação («Transforma-se o amador na cousa amada») nem o desejo, que
irrompe com violência («A instabilidade da fortuna»).
- O sofrimento deixa de ser encarado como uma forma de perpetuar o sentimento amoroso, passando a ser
visto como um mero suplício.
- Por último, a inquietação associada à experiência amorosa é adensada pelo sentimento de culpa,
associado à derrota da razão e da vontade perante a sedução do amor.
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Concluindo, o amor na lírica camoniana configura-se como um círculo vicioso: ao ideal, sucede-se
a experiência e a inevitável desilusão. Apesar do desfecho negativo, o sujeito poético compraz-se
continuamente na criação de ilusões, pelo que este círculo se repete indefinidamente.
3. A representação da natureza
- A representação da natureza na lírica camoniana surge sobretudo associada às temáticas do amor e
da representação da mulher amada.
- Relativamente a estes temas, é de destacar a influência do «locus amoenus», topos que influenciou a
lírica camoniana não apenas através da poesia bucólica de Virgílio (século I a. C.).
- Esta expressão latina designa uma paisagem ideal, marcada pela fertilidade, pela variedade cromática,
pela suavidade dos odores e pelo carácter melodioso dos sons — paraíso terrestre no qual seria possível
ao Homem viver em plenitude.
- Temos assim um espaço propício ao amor, cuja vitalidade vem realçar a beleza das figuras femininas que
nele se enquadram — desde a donzela que se dirige à fonte («Descalça vai para a fonte») até à figura
sensual que, recortada sob o molde de Vénus, exibe as suas formas voluptuosas («Naquele tempo
brando»).
- Por vezes — e tal como sucedia na poesia trovadoresca —, este espaço harmonioso assume a função
de confidente do eu («Verdes são os campos»).
- Contudo, em determinados poemas («Alegres campos, verdes arvoredos», «A fermosura desta fresca
serra»), a natureza idílica surge como contraponto ao estado de espírito do sujeito poético: a sua saudade
da amada é tão intensa e a sua melancolia tão profunda que nem esta paisagem paradisíaca lhe permite
recuperar a serenidade.
- A natureza pode também ser associada ao tema da mudança («Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades»). Neste caso, demonstra-se que a mudança no cenário natural está associada à passagem das
estações, sendo, portanto, cíclica; em contrapartida, as alterações que se manifestam na vida do
sujeito poético são irreversíveis e configuram um percurso claramente negativo.
O TEMA DO DESCONCERTO
- Na lírica de Camões, a ideia de desconcerto refere-se à desordem do mundo e à falta de harmonia que se
instalou na relação entre os homens e até no interior de cada indivíduo.
- Esse desconcerto é, sobretudo, moral, social e existencial: a ordem dos valores e a lógica do mundo estão
invertidas. O mundo está «às avessas».
- Algumas manifestações desse desconcerto são: as incoerências entre os princípios que se defendem
(cristãos, éticos, políticos, etc.) e os comportamentos assumidos em sociedade; as injustiças da vida em
comunidade, em que o mérito e a virtude não são recompensados, mas a mediocridade e a desonestidade
são bem sucedidas («Esparsa sua ao desconcerto do mundo»); a aspiração ao amor e a infelicidade que
ele traz porque se revela irrealizável.
- O Poeta (figura que representa o conjunto dos sujeitos líricos da poesia de Camões) lamenta-se de ser
vítima deste desconcerto. A sua vida sofre com esta desarmonia, mas a desordem também é sentida
interiormente: o Poeta não é feliz no amor, enfrenta a miséria e outras dificuldades; os seus dias são
tumultuosos e a desorientação abate-se sobre ele.
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- O Poeta vive em estado de conflito interior, angústia e desilusão e encontra dois responsáveis pela
desordem: ele próprio e o destino (o Fado, a Fortuna). Como os homens são corresponsáveis pela
desordem do mundo social, assim ele é pelas contrariedades da sua vida, porque errou, infringiu regras e
se entregou aos excessos, sobretudo do amor («Erros meus, má fortuna, amor ardente»). Mas, segundo o
Poeta, também o Destino o persegue, conspira contra ele e consegue trazer mais adversidade e infelicidade
à sua vida.
- Face a este problema, o Poeta assume atitudes marcadas pelo ceticismo: fica profundamente angustiado,
revolta-se e torna-se iracundo («O dia em que nasci moura e pereça»), embora tente compreender a razão
por que o Destino o persegue. Contudo, em muitos casos acaba por se conformar com a sua
situação («Esparsa sua ao desconcerto do mundo»).
O TEMA DA MUDANÇA
- Na poesia de Camões, o tema da mudança associa-se ao do desconcerto e à questão do destino.
- A natureza e o mundo mudam de forma previsível: o mundo natural definha e regenera-se, as estações
sucedem-se, a vida parece funcionar por ciclos. Os períodos de enfraquecimento e decadência são sempre
superados pela renovação e pelo ressurgimento.
- Os homens e as suas vidas não funcionam do mesmo modo. A sua existência é instável e a condição
humana é frágil e vulnerável. Como a lírica de Camões demonstra, o tempo muda as vidas de forma
imprevisível e quase irracional.
- O tema da mudança centra-se na figura e na existência do Poeta. A mudança tem sempre consequências
negativas: nunca se muda para melhor. No passado o Poeta pode ter conhecido a harmonia e o
contentamento («Eu cantei já, e agora vou chorando»). Mas a satisfação e o equilíbrio perderam-se, e o que
era bom torna-se mau.
- A vida é, neste esquema, marcada pelo declínio, pelo infortúnio e pela adversidade: «Mudam-se os
tempos, mudam-se as vontades».
- Face a esta situação, o estado de espírito do Poeta é, de novo, de angústia e de revolta.
Consequentemente, acaba por assumir uma atitude de ceticismo e descrença porque sabe que não pode
alterar a ordem das coisas.
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esperanças ao malogro. A sua omnipresença contamina todas as mudanças, atribuindo-lhes um sentido
negativo.
- Deste modo, ao refletir sobre a sua vida pessoal, o sujeito poético vai mergulhando progressivamente
num profundo desencanto, que o leva a coibir-se de alimentar mais esperanças ou a mostrar a sua
perplexidade e revolta perante o profundo sofrimento que lhe é infligido pelo destino.
- Estas interrogações do sujeito poético em relação ao que está na origem da sua infelicidade levam-no
também a olhar em seu redor, questionando o próprio desconcerto do mundo.
Medida velha
- A expressão «medida velha» refere-se às formas da poesia palaciana portuguesa e espanhola do século
xiv e início do xv, que se encontram bem representadas no «Cancioneiro Geral» de Garcia de Resende e
noutras coletâneas da época.
- As estruturas métricas de eleição desta tradição são a redondilha maior (versos de sete sílabas métricas) e
a redondilha menor (cinco sílabas), que encontramos, respetivamente, nos poemas «Descalça vai para a
fonte» e «Se Helena apartar», de Camões.
- A estas métricas estão associadas formas poéticas da tradição peninsular como a cantiga, a trova, a
esparsa («Esparsa sua ao desconcerto do mundo»), as endechas («Endechas a Bárbara escrava»).
Camões usou estes tipos de poesia lírica glosando motes seus ou de outros (por exemplo, em «Perdigão
perdeu a pena, / não há mal que lhe não venha.»).
Medida nova
- A medida nova reúne os tipos de métrica de influência italiana do dolce stil nuovo importados para
Portugal no século xvi, sobretudo o metro de dez sílabas (decassílabo), mas também, embora menos
comum, o de seis (hexassílabo).
- À medida nova estão associadas formas poéticas de origem italiana ou inspiradas em géneros greco-
latinos, que Sá de Miranda e António Ferreira introduziram em Portugal: o soneto, a canção, a écloga, a
ode, a elegia são certamente as mais importantes.
- Camões cultiva com mestria e brilhantismo o soneto. Escreve mais de duzentos sonetos e sente que este
é o modelo lírico ideal para debater uma ideia ou desenvolver uma reflexão em registo lírico sobre os temas
centrais da sua obra («Amor é um fogo que arde sem se ver» ou «Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades »). Em alguns deles, Camões pode estar a representar artisticamente acontecimentos e ânsias da
sua vida pessoal.
- A canção revela-se uma forma mais intimista, também ela adequada à reflexão e ao ato confessional,
como se pode constatar, por exemplo, na Canção X.
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- Outros géneros renascentistas em que Camões compõe, alguns recuperados das literaturas clássicas, são
as éclogas, as elegias, as odes («Pode um desejo imenso»).
2. Estilo e linguagem
- O estilo de Camões na poesia lírica alcança uma elevada elegância e um grande virtuosismo, que se
conseguem pela criação de um ritmo gracioso e vivo e pelo uso expressivo de recursos estilísticos.
- António José Saraiva (1980) identifica dois estilos distintos na lírica de Camões: o estilo engenhoso e o
estilo clássico.
- O virtuosismo verbal do Poeta é uma recuperação do estilo engenhosoda poesia tradicional
do Cancioneiro Geral. Camões joga brilhantemente com as palavas para assim jogar com as ideias. Numa
prática de malabarismo verbal, recorre ao trocadilho, à antítese e à metáfora para falar sobre o amor mas
também sobre o infortúnio («Perdigão perdeu a pena»).
- Ainda neste estilo engenhoso, cria imagens expressivas, muitas delas com grande apelo sensorial (ou
seja, dos sentidos): «Pretidão de amor», «despejo quieto». Noutros casos, substantiva, coisifica, alguns
atributos e qualidades: «mãos de prata», «cabelo de ouro» (e não cabelo louro).
- Muitas das imagens, metáforas e comparações deste estilo remetem para elementos naturais («Verdes
são os campos»). Aliás, a presença do campo lexical de natureza é muito forte na poesia de Camões.
- Encontramos na lírica camoniana um outro estilo: o estilo clássico. Este caracteriza-se por recorrer a uma
linguagem mais abstrata e por ser mais propício a debater ideias («Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades»). Trata-se de um discurso em que o Poeta parece «virar-se para dentro» e simula representar o
pensamento.
- Como sucede com o estilo engenhoso, também no clássico se explora a alteração da ordem natural dos
constituintes da frase (hipérbato e anástrofe) e se recorre, quando necessário, a termos e a conceitos
latinos: «Fado», «Fortuna», «pena», «graça».
Do que foi exposto se depreende que, em ambos os estilos, Camões investe fortemente nos recursos
retóricos e, não raro, numa linguagem erudita. Mais ainda, o Poeta foi responsável pela introdução de novos
vocábulos na língua portuguesa, como «canoro», «etéreo», «fatídico», etc.
Retirado de PINTO, Alexandre Dias e NUNES, Patrícia, Entre Nós e as Palavras 10, Barcarena, Santillana, 2015, pp.
167-172.
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