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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

LETRAS-BACHARELADO

LITERATURA BRASILEIRA III

PROFESSOR FERNANDO OLIVEIRA

ALUNO-JOSEMILSON COSME MÉLO

PIONEIRISMO E PESSIMISMO NAS CANÇÕES SEM METRO


INTRODUÇÃO

A literatura, tanto quanto a arte em geral, é dinâmica e foi se


ampliando em relação à diversidade de gêneros literários com o passar dos
tempos. O Romantismo foi uma estética expressiva como iluminadora de novos
caminhos que apontavam para o surgimento de novos gêneros literários, e
dentre esses gêneros, pode-se apontar o poema em prosa, que teve os seus
pressupostos teóricos germinados no Romantismo e consolidado no
Simbolismo. O poema em prosa foi num gênero literário consolidado na França
no século XIX, caracterizado pela indefinição territorial entre o poema e a
prosa. A literatura portuguesa foi intermediária no transplante do poema em
prosa em nosso país, e no Brasil, tanto quanto no mundo, o poema em prosa
teve seus primeiros brotos no Romantismo, mas consolidou-se no Simbolismo,
e Raul Pompeia foi o introdutor do gênero, publicando textos teóricos em
jornais e em livros, e poemas dispersos inicialmente em jornais e
posteriormente reunidos em um livro, com a primeira edição aparecendo no
mercado editorial postumamente à morte do autor, em 1900, com o nome de
Canções sem metro, uma obra não volumosa, mas com pretensões de
abarcar aspectos totalizantes da vida, porém o presente trabalho deter-se-á a
identificar aspectos do pessimismo, comum ao Romantismo e ao Simbolismo,
que alguns poemas trazem em seu bojo.

POEMA EM PROSA

As publicações teóricas sobre o poema em prosa surgiram na década


de 50 do século passado. No relato de Vasconcelos Júnior (2014), uma das
primeiras teóricas a abordarem o poema em prosa foi Suzane Bernard em
1959 com seu trabalho Le poème em prose: de Baudelaire jusqu’a nos jours,
em que ela afirma que o poema em prosa é herdeiro da prosa poética, mas é
um gênero distinto que usa a prosa ritmada para fins poéticos,e que lhe impõe,
por causa disso, uma estrutura e uma organização de conjunto. Ela cita como
características do poema em prosa a unidade orgânica, a intemporalidade e a
brevidade. Outro estudioso do gênero foi Tzvetan Todorov que publicou o
ensaio La poésie sans vers (1987), em que ele enfatiza a inverossimilhança,
que assinala o gosto pelo exótico e pelo bizarro, e a ambivalência e a antítese,
pois o gênero é uma forma tensa e justapõe elementos contrários.
Posteriormente também se ateve nas pesquisas sobre o poema em prosa
Dominique Combe com a publicação de Poésie et récit: une rhétorique des
genres (1989), um trabalho que coloca em destaque a retração da
narratividade, enquanto Julien Roumette com Les poèmes em prose (2001)
destaca o componente musical. Dentre os trabalhos em língua inglesa destaca-
se Margueritte Murphy com A tradition of subversion: the prose poem in English
from Wilde to Asbery (1992), em que a estudiosa relata a fissura da
referencialidade, manifestada na subversão de duas tipologias: a narrativa e a
descritiva. Por sua vez Marvin Richards com Without rhyme or reason (1998)
destaca o caráter dialético do poema em prosa, pois apesar de representar
uma totalidade, nunca está completo, pois está em desenvolvimento e devir.
Os estudiosos de língua espanhola também deram sua contribuição,
destacando-se Maria Victoria Utretra Torremocha com Teoría del poema em
prosa (1999), em que a pesquisadora coloca em evidência a natureza dialética
do poema em prosa, marcada pela mescla de temas e motivos prosaicos e
desagradáveis com temas e motivos líricos, e pela sucessão de diferentes
estilos dentro de um mesmo texto, que afronta as convenções monológicas da
lírica, ou da assunção de certos elementos narrativos que incidem igualmente
na destruição de moldes poéticos. Torremocha afirma também que o
polimorfismo do poema em prosa representa a liberação das formas líricas e
narrativas preconcebidas, assumindo o discurso da tensão que deriva de
ambas. Ela relata ainda que o ritmo entra em constante tensão com a
sequencialidade, mas que esta não desaparece. Esta tensão é verificada na
coexistência de trechos narrativos e descritivos, pois o poema em prosa pode
até se render ao enredo, mas não perde os traços genéricos e atemporais do
poema. Pode-se citar também a participação de Ricardo Piglia com Formas
breves (2004), em que o autor acentua que, mais do que o discurso, as
imagens sumarizam sensações e pensamentos, e o elo entre plasticidade e
experiência subjetiva cria atmosfera algo claustrofóbica, tornando o texto
repetitivo e desprovido de progressão temática; a rigor, seu alvo está em
decompor o mesmo fato, a mesma visão ou o mesmo pensamento em várias
matizes.

PERCURSO HISTÓRICO NA EUROPA

Os românticos foram os primeiros questionadores dos formatos


rígidos dos gêneros literários e abriram os caminhos para o surgimento dos
poemas em prosa. Vasconcelos Júnior (2014) relata que os ingleses Coleridge
e Wordsworth defendiam que não poderia haver nenhuma diferença entre a
linguagem da prosa e a composição metrificada. O Romantismo alemão da
escola de Jena defendeu a fusão da prosa com a poesia, e Novalis, Schelling,
os irmãos Schlegel e Schleiermacher escreveram fragmentos, e essa forma
poética favoreceu o surgimento do poema em prosa, porém o poema em prosa
só se automatiza no pós-romantismo, e sua origem é atribuída à publicação de
Gaspar de la nuit: fantasias à maneira de Rembrant e de Callot em 1842 por
Aloysius Bertrand. Fernando Paixão afirma que:

Os textos de Gaspard de la nuit são supostamente creditados


ao diabo, com quem o autor teria se encontrado por acaso em
um jardim parisiense. (...) os poemas são submetidos a um
fator narrativo que os antecede e sugere unidade. Em algumas
páginas, o tema aparece por meio de imagens descontínuas,
inesperadas até, permitindo combinações aleatórias de
parágrafos e elementos. (PAIXÃO, 2014, p. 45).

Marvin Richards (apud Vasconcelos Júnior, 2014) relata que


Gaspard de la nuit faz uma conexão entre a ruína e o fragmento, e é um texto
que não é poesia (verso, quebra de linhas e rima), nem prosa (prosaico e
narrativo) a pesar de simultaneamente ser prosa (ausência de verso) e poesia
(paradigma de organização metafórica).
Segundo Vasconcelos Júnior (2014), Bertrand lança as bases para o
descritivismo típico do poema em prosa, também encontrado nos Croquis
Parisiens (1880), de Joris-Karl Huysmans. Nessas obras, eles descrevem telas
de pintores famosos de maneira subjetiva e transfiguradora, e buscam iluminar
e até ficcionalizar zonas sombrias dos quadros, preenchidas pela imaginação e
inteligência do observador.

O livro de Bertrand impressionou Charles Baudelaire, que o levou a


escrever um livro de poema em prosa publicado postumamente em 1869:
Petits poèmes en prose. Paixão relata que Baudelaire

(...) confidencia o fato de ter-se inspirado em Gaspard de la nuit


(1842), em que o estilo simbolista de Bertrand configura uma
sociedade sem lugar para o artista. Baudelaire almeja seguir o
exemplo formal de Bertrand, mas confrontado com imagens
ligadas à vida moderna e mais abstrata. (PAIXÃO, 2014, p. 50)

Vasconcelos Júnior (2014) relata que Baudelaire rebaixa a poesia a


temas prosaicos, como sujeira, fome e prostituição, consumando na forma do
poema em prosa seu projeto questionador, e, para exemplificar, no texto O
mau vidraceiro ( inserido nos Petits poèmes en prose) há a associação da
beleza com o estilhaço, do sublime com o violento e do poema com a prosa.

Ainda na concepção de Vasconcelos Júnior ( 2014), Arthur Rimbaud


foi também um cultivador do poema em prosa, sobretudo em Uma estadia no
inferno (1873) e em Iluminações (1874), em que ele preocupou-se em forjar a
“alquimia” do verbo para escrever “silêncios, noites”, anotar o “inexprimível” e
fixar “vertigens”. Com Rimbaud o poema em prosa tem a narratividade esvaída
em favor de imagística hermética e de ritmo agressivo. Com essa mesma
concepção estão Lautreumont com os Cantos de Maldoror (1868 e 1890), cuja
estrutura parodia as epopeias clássicas, degradando-as em temas apoéticos, e
Stéphane Mallarmé com as Divagações (1896), em que está inserido a “crise
do verso”, em que o esvaziamento da primeira pessoa e da dimensão volitiva
da poesia inaugura o projeto de desparticularização, síntese e abstração.

Na crise da prosa do século XIX, de acordo com Vasconcelos Júnior, surge


Joris-Karl Huysmans com Às avessas (1884), que dilui o romance tradicional
nesta obra de indiscernível classificação. Na concepção de Lins (apud
Vasconcelos Júnior, 2014), Huysmans escreve como um pintor, isto é, com
imagens que desarticulam a narrativa, movendo seu discurso dos
acontecimentos para a memória, a reflexão e o silêncio, com um tipo de
pensamento que aproxima o romance da poesia.

PERCURSO HISTÓRICO NO BRASIL

Conforme Vasconcelos Júnior (2013), a chegada do poema em prosa


no Brasil teve a intermediação da literatura portuguesa, configurando um caso
de herança dupla, devendo-se ressaltar a importância de Guerra Junqueiro e
de Antônio Nobre no Simbolismo brasileiro, mas em relação ao poema em
prosa, João Barreira influenciou o Simbolismo brasileiro, com a publicação de
Gouaches (1892), o primeiro livro em língua portuguesa dedicado
exclusivamente ao poema em prosa e que sintetizava os anseios de muitos dos
nossos ainda tímidos e inexpressivos simbolistas: o ideal do poeta-profeta, o
“panteísmo literário”, o poder transcendental da arte e a solidão do artista.
Ainda em conformidade com Vasconcelos Júnior (2014), no romantismo
brasileiro a recusa do metro proliferou mais na reflexão teórica do que na
criação efetiva e o poema em prosa consolidou-se no Simbolismo, porém,
ainda segundo Vasconcelos Júnior, o Romantismo colaborou no surgimento do
poema em prosa:

(...) deslocando cesuras, alterando esquemas rítmicos e


rímicos, desobedecendo a regras de estrofação, os românticos
dinamizaram a forma literária, conforme atesta o florescimento
na época de um gênero comumente confundido com o poema
em prosa: a prosa poética, de que Iracema (1865), de José de
Alencar, é exemplo maior. (VASCONCELOS JÚNIOR, 2013, p.
19)

Vasconcelos Júnior (2014) afirma que o Romantismo brasileiro possui


textos que solvem elementos da narrativa e promovem, com maior intensidade,
enfraquecimento das marcas do narrador, personagem, tempo, espaço e,
sobretudo enredo, e esvaziamento do entrecho, reduzido a esqueleto
essencial e desfibrado da anedota folhetinesca, corresponde a valorização
ostensiva do ritmo e da imagem, indícios de escrita mais preocupada com o
poder encantatório dos sons e dos signos do que com o dinamismo das
peripécias. Ainda em conformidade com Vasconcelos Júnior (2013), no
Romantismo encontra-se obras e autores que fermentaram o surgimento do
poema em prosa, como é o caso de Gonçalves Dias com Meditação (1846),
Vitoriano Palhares com As noites da virgem (1868), Luís Guimarães Júnior com
Noturnos (1872), Álvares de Azevedo com O livro de Fra Gondicário (1872) e
alguns Dispersos de Fagundes Varela. Nestas obras nota-se o esvaziamento
do personagem, a diluição da peripécia, a ênfase na fanopeia e na melopeia e
a economia do entrecho, mas não houve rasura entre os gêneros, apenas um
rápido contato da prosa com o poema.

O PIONEIRO RAUL POMPEIA E O PESSIMISMO EM ALGUMAS DE SUAS


CANÇÕES SEM METRO

Araújo (2006) afirma que Raul d’Ávila Pompeia nasceu em Angra dos
Reis, no Rio de Janeiro, em 12 de abril de 1863. Bacharelou-se em Letras em
1880, e nesse ano publicou o romance Uma tragédia no Amazonas. Iniciou o
curso de Direito em São Paulo e concluiu no Recife em 1886. Colaborou em
vários periódicos, e publicou o seu livro mais conhecido, O Ateneu, em 1888.
De acordo com Vasconcelos Júnior (2014), os poemas em prosa de Raul
Pompeia foram escritos a partir de 1883, e foram publicados no periódico
paulista Jornal do Commercio, e a partir de 1884 foram inseridos no também
paulista Diário Mercantil. Em 1888 o jornal curitibano A Galeria Ilustrada publica
dez poemas com ilustrações, mas na segunda metade da década de 1880, as
canções proliferam em periódicos do Rio de Janeiro (A Gazeta da Tarde, Treze
de Maio, A Semana, A Rua, A Vida Moderna), de São Paulo ( A Província de S.
Paulo, O Estado de São Paulo), Juiz de Fora (Diário de Minas), Espírito Santo (
A Província do Espírito Santo) e Curitiba. Os poemas foram reunidos em um
livro que veio a lume em 12 de abril de 1900, data natalícia do autor, que
falecera três anos antes.
Acerca do pioneirismo de Raul Pompeia, Vasconcelos Júnior afrima
que:

(...)Raul Pompeia é o pioneiro em desenvolver uma prática em


que a multiplicidade equilibra forma e conteúdo e, não menos
importante, é o primeiro brasileiro a estofar essa prática num
sistemático arcabouço teórico, seja em artigos na imprensa ou
na própria estrutura das obras. (VASCONCELOS JÚNIOR,
2013, p. 21)

Ainda em conformidade com Vasconcelos Júnior (2013), o


pensamento teórico de Pompeia é expresso também através do personagem
Dr. Cláudio, d’O Ateneu, quando ele afirma que dentro em breve o metro
convencional terá desaparecido das oficinas de literatura, e que as estrofes
medem-se pelo fôlego do espírito, e não pelo polegar da gramática.

A recepção crítica das Canções sem metro reconheceu o seu


pioneirismo. Segundo Silva (2008), Afrânio Coutinho (1982) e Xavier Placer
(1963) consideram que Raul Pompeia é, no Brasil, o pioneiro no gênero poema
em prosa, pioneirismo também reconhecido por Venceslau de Queirós em um
artigo publicado em 27 de julho de 1901 no Diário popular.

Segundo Rosen, as Canções sem metro é

(...) uma obra que reúne em si, por um lado, prosa e poesia,
lirismo, tragédia e epopéia, e, por outro, arte, história e filosofia.
Além disso, desconhece as fronteiras de gêneros e apresenta
uma estrutura inovadora, pois fragmentária e cíclica. Ao
abandonar a linearidade discursiva, Raul Pompeia opta pela
repetição de determinados temas e imagens de modo a
garantir a unidade da narrativa, o que aproxima a estrutura da
obra das formas da sonata e do poema sinfônico-que dela é
derivado. (Rosen, 2000 apud SILVA, 2008, p.123)

A presença de traços pessimistas em alguns poemas das Canções


sem metro é reconhecida também por alguns estudiosos. O pessimismo e o
nirvanismo nas Canções sem metro é reconhecido por Regina Lúcia de Araújo,
Camil Capaz, Venceslau de Queirós, Lêdo Ivo e Sônia Brayner. Segundo
Araújo (2006), Pompeia pretendeu fazer uma obra orgânica, que fosse uma
visão totalizante do universo, lírica e filosófica ao mesmo tempo, do ponto de
vista do homem pessimista do final do século XIX, descrente das conquistas da
ciência e confuso diante do imenso abismo de interrogações que o desafiavam.
Capaz (2013) afirma que a visão de mundo nas Canções sem metro é
desencantada e triste, sem mesmo uma leve concessão ao humor, que
mascara a miséria e sorri das tristezas, e sem nenhuma nota amorosa. Silva
(2008) afirma que o que predomina nas Canções sem metro é o sentimento de
que, apesar de todos os esforços, a humanidade caminha para a morte, com
um sentimento doloroso constantemente expresso no riso amargo das ironias
que encerram os poemas em prosa e que são produzidos por algum dito
espirituoso invariavelmente localizado nos parágrafos finais. Ainda conforme
Silva ( 2008), Venceslau de Queirós realça o pessimismo e o nirvanismo, e a
influência indireta de Edgar Allan Poe por intermédio de Baudelaire. No relato
de Silva (2008), Lêdo Ivo afirma que tanto Swedenborg, um dos principais
filósofos adotados pelo Simbolismo, quanto Vítor Hugo influenciaram Pompeia
com as suas visões simbólicas e místicas do universo, e o próprio Lêdo Ivo
(2013) afirma que, nas Canções sem metro, há tanto confiança no progresso
humano quanto um latejante sombrio pessimismo.Uma estudiosa que também
identifica pessimismo nas Canções sem metro é Sônia Brayner. Segundo Silva:

(...) Sônia Brayner (...) vê a presença de um profundo


pessimismo, extremamente próximo do pessimismo
machadiano que encontramos na teoria do Humanitas e no
delírio de Brás Cubas. (...) Sônia Brayner cita os poemas “O
ventre” e “Solução” como alegorias de uma visão do mundo e
da história marcada pela repetição, pelo retorno cíclico da dor e
da miséria, concluindo que “a fonte filosófica dos dois autores é
a mesma: o pensamento de Schopenhauer. (SILVA, 2008, p.
45-46)

A edição estudada neste trabalho é a reimpressão do livro que foi


lançado em 1900. O livro Canções sem metro é composto por um Prólogo e
dividido em cinco partes: Vibrações, Amar, O ventre, Vaidades e Infinito. Em
conformidade com Silva (2008), o prólogo é composto por uma citação de Paul
Pierson que discorre sobre a abolição do metro em detrimento do ritmo,
considerando-o como a unidade fundamental da dança, do canto e da fala.
Silva (2008) afirma que Vibrações pode ser considerado um grande poema em
prosa subdividido em unidades menores, cada uma tratando de uma cor,
conforme o simbolismo dessas, e a ideia das correspondências universais
contidas na epígrafe retirada do poema “Correspondances” de Charles
Baudelaire. Em Vibrações há uma correlação de Amarelo, desespero, e o
narradoreu lírico relata que o amarelo é “ a cor dos ideais perdidos”, e que
Sobra-lhe um filho nos desperdícios do passado, para vigiar-lhe
a agonia. Ninguém mais ninguém mais, nem Deus com ela,
mas apenas as flores do desespero e aquele copo d’água de
vez em quando, que ela sorvia como uma medicina amarga de
lágrimas ... (POMPEIA, 2013, p. 65)

Silva (2008) afirma que em Amar os poemas apresentam os ciclos da


natureza, as estações do ano, o amor, o cio e a vida que nasce, morre e
renasce da verde primavera, e que, ao final, em Ilusão renitente, ressurge com
a esperança do amor após o cataclismo final. Em Amar, no texto Inverno, o
autor retrata esta estação climática com tons pessimistas: “ Tristes nevoeiros,
frios negrumes da longa treva boreal, (....). Há no espírito o luto profundo
daquele céu de bruma dos lugares onde a natureza dorme por meses, à espera
do sol avaro que não vem.”

Silva (2008) relata que em O ventre tem-se a construção histórica da


Vontade, que se realiza por meio das navegações (“O mar”), da mineração
(“Os minerais”), das lutas de classe (“A floresta”), da indústria (“Indústria”) e do
comércio (“Comércio”), Vontade cuja representação se encontra na alegoria do
ventre (“O ventre”). Em O ventre, no texto O mar, o autor coloca o mar como
metáfora da justiça e da ira divinas, que são incapazes de corrigir a
humanidade:

Outrora, contra a maldade humana indignou-se o mar. (...) E os


homens com terror viram erguer-se contra eles a cólera das
águas. (...) Hoje o mar é outro. As quilhas. As quilhas
rasgaram-lhe a virgindade indômita. O divino justiceiro de outro
tempo, experimentado e velho, fez-se cúmplice dos homens.
Anda agora a transportar. De terra em terra, sobre as abatidas
espáduas, o fardo das ambições e das tiranias. (POMPEIA,
2013, p. 89-90)

Ainda n’O ventre, no texto Os minerais, o tema da cobiça humana é


trazido à tona. Satã dirige-se aos minerais em diz que a cobiça humana afetará
a natureza: “A cobiça dos mortais vai devassar o reino subterrâneo, que é
partilha vossa. (...) Sereis extorquidos à tranqüilidade do natural destino,
prostituídos à vaidade humana insaciável.” No texto O ventre, os sentimentos
negativos em equilíbrio são quem mantém a ordem cósmica, e a paz e a
harmonia são conceitos ilusórios:

(...) O equilíbrio dos egoísmos, derivado em turbilhão, faz a


ordem das coisas. (...) Esta luta de morte é o quadro estupendo
da vida na terra; como o equilíbrio das atrações ávidas dos
mundos, trégua forçada de ódios, apelida-se a paz dos céus.
(POMPEIA, 2013, p. 101)

Silva (2008) relata que Vaidades registra os fatos do amor, das


religiões, das ciências e das filosofias, fatos que se traduzem na eterna busca
da verdade (“Mefistófeles”) e da redenção, especialmente por meio das
revoluções (“Revoluções”, “Esperança”, “Veritas” e “Hamlet”). Em Vaidades, no
texto Vozes da vida, o homem, com uma visão pessimista, contradiz o céu, a
terra, o mar, as cidades e a carne:

Falai, calúnias queridas, realidade! Menti! Não é preciso que eu


saiba que tu és, céu, a decepção do espírito; terra, o
impaciente túmulo; mar, a impotência revoltada; cidade, o
anfiteatro da miséria; carne, a veste precária de alguns ossos.
(POMPEIA, 2013, p.108)

No texto A arte, a arte consola o homem na sua condição de tristeza:


“Um círculo de trevas, a realidade; esquecê-la é consolar-se. Desvairado pelas
derrotas da realidade, o espírito evade-se para a embriaguez. A arte é a grande
embriaguez do belo conservador.”

No texto Veritas, a monotonia da noite coloca em pé de igualdade


todos os seres na escuridão e na tristeza, e “A lua, em vez de iluminar, triste
plagiária do sol, anda a evocar dos túmulos os lêmures dos espectros.”

Silva (2008) relata que em “Infinito” está presente a ideia de que o


conhecimento científico, assim como o metafísico, também é ilusório, pois todo
o esforço humano voltado para a compreensão do inefável, para a elevação
espiritual ou para o progresso resultante do domínio sobre a natureza é
constantemente representado como um sofrimento inútil e tolo. Em Infinito, no
texto Transit, o autor traz à baila a efemeridade da vida:

À beira do agreste atalho um túmulo. Os cães visitaram-no; a


cruz caiu. Fora da cova, de envolta com a terra, uma caveira
parece intencionalmente voltada para o infinito. (...) Das
passadas arrogâncias nada encontras no invólucro do osso.
Pura lama o cérebro estulto que concebeu dividir em tribos a
inumerável vegetação das várzeas e das montanhas, dar nome
a cada uma das rochas subterrâneas, inquirir o problema
permanente das origens! (POMPEIA, 2013, p. 139-140)

No texto Solução, o autor põe em relevo a incapacidade humana para


decifrar os mistérios da vida: “ (...) Aqui venho eu da grande derrota. Baixei ao
fundo dos problemas; (...) Estudei, indaguei, auscultei, (...) Desafiei o gênio
negro das metamorfoses; (...) E o gênio negro respondeu-me:-Nunca! (...)” No
texto Tormenta e bonança, o autor lembra novamente aos leitores o triunfo final
da morte sobre os homens: “E a imensidade embebeu o fumo inútil das aras.
Aos homens replica o sarcasmo imortal da morte.”

CONCLUSÃO

O poema em prosa é um gênero que não respeita a metrificação


poética convencional e também não se enquadra na prosa tradicional. Ele
nasceu no Romantismo e consolidou-se no Simbolismo, tendo como autores
seminais Aluysius Bertrand, com Gaspar de la nuit: Fantasias à maneira de
Rembrant e de Callot, lançado em 1842, e os Pequenos poemas em prosa, de
autoria de Charles Baudelaire, lançado em 1869.

No Brasil, semelhante ao que acontecia no mundo, o Romantismo


lançou os alicerces desse gênero, que consolidou-se no Simbolismo, e Raul
Pompeia encarregou-se de ser o arauto dessa novidade literária, influenciado
principalmente por Bertrand e Baudelaire, ele destacou-se defendendo
princípios estéticos, e lançando poemas em prosa nos periódicos, que foram
reunidos livro Canções sem metro e lançado postumamente à morte do autor.
A obra pioneira é composta por peças literárias que seguindo padrões
simbolistas do panteísmo literário, tentam totalizar os sentimentos e ações
humanas, e alguns textos são eivados de pessimismo, influenciados
primordialmente pela filosofia de Swendenborg e Schopenhauer.
REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Regina Lúcia de. Raul Pompéia: jornalismo e prosa poética. Tese de
Doutorado. São Paulo:USP, 2006.

CAPAZ, Camil.Raul Pompeia. Rio de Janeiro: Edição do autor, 2013.

IVO, Lêdo. O universo poético de Raul Pompeia. Campinas: Editora da


Unicamp, 2013.

PAIXÃO, Fernando. Arte da pequena reflexão: poema em prosa


contemporâneo. São Paulo: Iluminuras, 2014.

POMPEIA, Raul.Canções sem metro. Editora da Unicamp, 2013.

SILVA, Marciano Lopes e. O mal de D. Quixote: romantismo e filosofia da


história na obra de Raul Pompéia. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

VASCONCELOS JÚNIOR, Gilberto Araújo de. Introdução. In: POMPEIA, Raul.


Canções sem metro. Editora da UNICAMP, 2013.

______. O poema em prosa no Brasil (1883-1898): origens e consolidação.


Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2014.

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