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haitianos, da construção civil. Ele dá silenciosamente notícias de uma contrarrevolução
em andamento permanente, imperial, sem quaisquer horizontes revolucionários à vista,
locais.
Se não seguimos pistas em falso, será equivocado buscar o assunto de Cidade Vodu no
“caráter” do protagonista, no “estado de espírito” de seus companheiros de rota e de crise
migratórias, na emissão das vozes ou das inquietantes gargalhadas do Barão, na sombra
não menos marcante da atriz brasileira, a lembrar que, em 1998, “nós do Teatro dos
Narradores, fizemos uma peça intitulada Mercado de Fugas, a partir de dois contos de
Machado de Assis”. Essa lembrança voluntária, por si só, desencadeia mais de uma
avalanche.
Pois uma das cidades paralelas, invisível em primeira abordagem, figura muitas vezes na
peça e não sei quantas outras nas glosas que acaso a crítica vier a escrever. São momentos
que colocam em estado de suspensão o ambiente usual das três paredes e o da quarta. Por
exemplo, a depender da posição tomada pelo espectador: ao fundo esquerdo, nas réplicas
de Toussaint Louverture; central, à direita, no paredão em que o espectador permanece
acostado na cena do terremoto. Ou ainda: no plano central médio, onde se projeta o vídeo
de soldado brasileiro impondo a crianças haitianas uma canção de Xuxa Meneghel, rainha
destronada dos “baixinhos”, nas idas e vindas que lamina a videologia nacional; no plano
superior alto, trailer do filme que um dos atores, Patrick Dieudonné, cineasta de profissão,
projeta e pretende realizar, ainda sem os benefícios de algum programa de incentivo; em
plano superior ainda mais elevado, quando Teth Miliello reaparece em fala vertiginosa,
beirando o final da peça. É possível supor que nesses fundos sem fundo as ruínas, postas
em relevo e consideradas como vestígios da cidade que não aceita simplesmente
desaparecer, comparecem sob formas adversativas.
Literalmente: ruínas? “Mas toda ruína é abrigo de fantasmas”, aqueles que teimam em
Esses pretos entenderam na carne o sentido de nossas ideias. O pelourinho foi para eles o falo
sagrado ao qual viram atados seus corpos. E desde cedo entenderam que uma ideia só incide de
fato sobre um corpo na forma de um chicote severo. Quando não, dispomos ideias, e as
enunciamos como quem anda entre túmulos. Ir de uma ideia a outra como quem visita túmulos
num cemitério que é o seu próprio pensamento. Eis a nossa natureza: mentir até que a mentira
revelada torne-se uma religião.
Eu tenho um pesadelo constante... No meu pesadelo... Outro dia vieram aqui e quiseram fazer um
filme comigo, da minha vida. Eu disse não. Eu não sou objeto. Não quero não. Eu moro ali. Eu
moro lá. Eu moro aqui. Eu moro aqui faz muito tempo. Eu nasci aqui. Eu posso te mostrar. A casa
é simples. A casa é pequena. Tão dizendo que isso tudo vai virar teatro. Que a luz da rua vai ser luz
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12 de teatro. Teatro fazem na rua. Mas morar? Moram na rua? Meu marido nasceu aqui também. Ele
não tá comigo. Tô eu, minha mãe, minha filha. Meu marido, ela disse, meu marido tá preso. Assalto
à mão armada. Mas ele nunca matou ninguém. Eu não quero sair daqui não. Isso aqui é uma
maravilha. Eu tenho um pesadelo constante... [Cantarola:] ...um palacete assobradado...
– E quando o Brasil se enxergar como país mais avançado que o Haiti como país em
contraste? A resposta será dada na cena do “jogo da paz”, quando Bréda dialogar com o
Henri Christophe, general que eleito presidente da república pelo senado haitiano recusa
esse título e se dá um reino ao norte do país: “Os brasileiros se acham os melhores do
mundo, mas eles não conhecem o Rei Christophe! Então, quer tirar uma partida?”
– Numa das versões em que Bréda assume o nome de Bréda-Legbá, ele tem de “fugir de
um mulato” e assumir forma de bicho. No entanto, e por mais avizinhado ao divino, essa
volubilidade na luta não se faz para que Bréda deserte do humano:
– Ficamos sabendo por Bréda como o seu namoro com Marie chegara ao fim, na capital
do Haiti. As palavras são ditas em créole. Na legenda, lemos:
– Na construção, intervalo de almoço, Junior entra em contato por telefone com Rose, no
Haiti. Desta feita é o trabalho que vem acompanhado de adversativas:
Aqui está tudo bem, acredite em mim. Eu vou desligar, meus créditos estão acabando. O trabalho é
duro, mas eu vou dando conta. É uma ONG, como essa em que você trabalha aí. A gente trabalha
com adolescentes na rua. [Ouvem-se ruídos que podem ser os de uma britadeira] Não, não... É seguro. Eu
prometo ligar ainda essa semana pra dizer quanto eu vou conseguir enviar. [Depois de um tempo:] Ei,
Rose, se você voltar ao hospital, diga ao pai que eu estou bem. Eu sei que ele não pode ouvir, mas eu
preciso que você diga. Reza por mim. Os créditos vão acabar.
Para quem se puser à escuta dessas adversativas, não haverá reprise cabível. Nelas, ideias
são reviradas pelo avesso e o avesso nem sempre lhes é adverso; quando sim, assumem
prontamente um não sei que de fantasmático, ruindo sob as camadas de uma lógica muito
peculiar e de uma retórica não menos; elas desacreditam todo neoprogressismo por força
de sua própria instabilidade essencial e de sua aparente solidez. Partindo dessa breve
coletânea de negativas e adversativas, um crítico especializado poderia lhes dar um
tratamento e um rumo diversos: genealógico, o primeiro; interessado, o segundo, em
demonstrar a emergência das máscaras sociais, a proveniência desses rostos de sombra.
Eu me limito, neste passo, ao atrevimento de sugerir que os personagens –
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14 principalmente com Renan Trindade, com Teth Miliello, com Ramon Abel, com Fader
Jean – retomam a seu modo e acabam ponto em questão o que se pode ler e ouvir
justamente até em Arena com Tiradentes, na figura técnica que Augusto Boal condensava na
denominação do “coringa”. Por este viés, valeria recordar e passar a limpo o contexto em
que surgem estas palavras de Décio de Almeida Prado:
Coringa é o sistema que se pretende propor como forma permanente de se fazer teatro –
dramaturgia e encenação. Reúne em si todas as pesquisas anteriores feitas pelo Arena e, nesse
sentido, é súmula do já acontecido. E, ao reuni-las, também as coordena, e neste sentido é o
principal salto de suas etapas (História concisa do teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1993; p. 73).
Para quem não tiver apenas os fumos do militante, não sei se será ousado demais
uma sugestão outra e, quem sabe, complementar. Na trincheira dos movimentos negros,
um tipo de distanciamento se delineia e convida a não vestir a figura dos atores brancos e
brasileiros com a camisa de força dos jargões importados do império. “Protagonismo”
desses narradores? Subtração dos “lugares de fala” de atores negros e ao mesmo tempo
brasileiros? Carência, interesse e reivindicação de “visibilidade” negra e brasileira em
Cidade Vodu? – No passo a passo das cidades paralelas, as aspas se justificam e não se
explicam se não em altitudes aparentemente proibitivas, ali onde as adversativas
começam por recusar, antes de mais nada, “dogmatismos”. Solicitam portanto, do
espectador, a predisposição a investigar até onde vão essas adversativas em ato.
Reclamam um salto. Pois seriam móveis – dinamicamente machadianos – os ângulos de
abordagem. Já no sobe e desce do ator branco que “cai em posição”, como antigamente
se dizia no jargão do teatro, pergunta-se, por exemplo, com Renan: por que Barão, se
cocho? Por que cocho, se Barão?
De resto, se os narradores brasileiros em cena são brancos, José Fernando de Azevedo, o
16 anos, ela morreu e eu a levei”. Então deus disse: “eu crio pessoas, você as leva. Por isso as pessoas
gostam mais de mim”. “Você acha?”, perguntou o anjo da morte. Então, o anjo sugeriu que
parassem ali, àquela porta. Deus bateu, uma mulher veio, e deus pediu-lhe água. A mulher, zangada,
disse que não, que não tinha água para ele. Deus respondeu: “Mas senhora, eu tenho muita sede”. E
a mulher respondeu: “Infelizmente não posso desperdiçar o pouco de água que tenho para mim e
meus filhos”. “Tenho certeza que me daria água se soubesse quem sou.” “Não me interessa quem
seja. Eu só daria dessa água ao anjo da morte” . “Mas eu sou deus”. “Não me importa. Se fosse o
anjo da morte, sim, eu teria água. Porque ele não tem favoritos. Ele nos leva a todos, fracos e fortes,
jovens e velhos, ricos e pobres, feios e bonitos, pretos e brancos. Mas você, você dá paz a uns e
guerra aos outro; dinheiro a uns, miséria a outros; faz uns saudáveis, outros doentes. Alguns têm
água, outros sede.” Ouvindo isso, deus sacudiu a cabeça de vergonha e afastou-se da mulher. O
anjo da morte aproximou-se, e a mulher lhe deu água. Desde esse dia, o anjo da morte não passou
por ali por um bom tempo.
A mise-en-scène foi concebida de modo a fazer que o Barão troque, permute e se inverta nos
papéis de deus, anjo da morte, mulher casmurra. Ao espectador, a fome e a sede de justiça.
Em lance de escadas colateral a uma gigantesca escadaria, minutos antes um relance de
show-biss golpeava a memória do espectador; na voz rascante, carregada de sotaque e
deslizes de pronúncia, dublado e duplamente distorcido, Cauby Peixoto se incorporara
num Barão encartolado, bem à moda de Tio Sam: ne me quittes pas, il faut tout oublier, tout peut
s'oublier... A profusão um tanto circense desse epílogo não deixa esquecer os travos de um
pão que o diabo amassou; no caso, ela prolonga a presença em catástase de um Exú
específico – por toda a parte, do início ao fim, aquele a que tudo está ligado: Exú Legbá.
Pois no epílogo de toda representação, inclusive naquela dos usos e costumes do
espectador, o sentido era mais ou menos impalpável, tateado com sexto sentido e pré-
reflexivo: atinava-se com homens e mulheres no limiar da dislalia, fiéis cujos santos de
cabeça não ousam dizer os seus nomes próprios. Num culto neopentescostal a que só
Não é necessário estar tão abastecido assim dos atos de fala e fraseados que passavam de
boca em boca, desde o imediato momento Pós-Revolução-Francesa, para recordar duas
pequenas frases de Talleyrand. Sobre os contrarrevolucionários, esse bispo, que foi
homem de Estado e também conhecido como “diabo cocho”, declarava: “não
aprenderam nada; esqueceram tudo”. Mas com a devida inversão que tanto desgostara
Jeanny em diálogo com o seu pretendente, na cena imediatamente anterior: “Bréda não se
esquece de Marie, Bréda não se esquece de nada”; com este adendo por contraste e
quiasma, nas entrelinhas: “aprendeu o que era preciso”.
Depois de quase tudo, é a Jeanny que fica reservada a última palavra. Na verdade, uma
conversa em telefone móvel, sempre ameaçada, contudo, de interrupção:
Se eu não ligar na próxima semana, é que estarei muito ocupada. Trabalhando. Mas não se
preocupe, mamãe. Você reza por mim? Mamãe? Os créditos vão acabar, a ligação vai cair. Eu já
aprendi umas palavras em português: “muito obrigado”. Não. É como eles agradecem. Não é
engraçado, mamãe? “Obrigado, você”. Reza por mim. Mamãe?
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Iminência interrompida de mais uma regressão, descentramento provisório de culturas; ecos e cacos
distorcidos do cancioneiro local e internacional, força singela das canções haitianas na festa de despedida de
Bréda; volta que na ida também se encontra, com algum direito de imaginar um fim para o que começa e talvez
não termine como história natural. Hora de se por em pé e aplaudir? Por que não? O espectador encara os
atores, dois brasileiros, cinco haitianos; os boinas azuis agora à paisana, cabeças descobertas; o músico, os
técnicos de som, vídeo, iluminação; o diretor. Não terá chegado a hora de começar o debate?
Por serem repetidos e porque nem sempre se mostram em ritmo de farsa, os ditos e contraditos de Cidade Vodu
não deixam de colocar em causa a decomposição acelerada dos centros nervosos de cultura. Como pode a
Cidade Vodu dar-se a si mesma um público que as cidades paralelas, e não menos reais, a médio e longo prazo
se empenham em lhe recusar? Tijolo com tijolo, em desenho lógico, a entrada era franca e a saída, assinalada
em idioma estrangeiro. Nas idas e vindas pelas ruas e avenidas dessa cidade paralela, o Haiti, no Brasil, é mais
do que exemplar: fala de corda em casa de enforcado. Em poucas palavras também, não temos por que nos
gabar se, não apenas em de nosso idioma, o século XXI tem sido machadiano.
Cidade Paralela | Silvio Rosa Filho
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O impasse permanece, por isso mesmo, intacto; um sopro de utopia entretanto remanesce na multiplicação
avassaladora de polarizações assimétricas e de cenários distópicos. Será preciso apostar que haja, pelas costas
do profissional do teatro, uma solidariedade feliz entre a companhia dos narradores e o espectador de primeira
viagem? Chegaria o texto de Cidade Vodu à comunidade imaginada de uma camada ao mesmo tempo popular e
não conservadora, olhos e ouvidos de uma “nova classe trabalhadora”? Decerto não é a possibilidade de uma
comunidade de leitores que funda a simbolização de sua própria possibilidade, mas o inverso. O espectador que
se prestar a essa forma de repetição inteligente, a leitura propriamente dita e contradita, talvez invente a
possibilidade de perceber a grandeza de um assunto que nunca termina de se furtar ao grandioso. Na era em
que expectativas decrescentes enformam o diagnóstico de um presente sem futuro, no tempo comprimido de
imigrantes e cidadanias cadastrados, o espectador é convidado a sair pela porta da frente.
Quanto a mim, que assisti à peça por mais de uma vez, desde a primeira fiquei soletrando algumas palavras,
esboçando frases que talvez reverberem as sentenças do texto a que também tive acesso parcial, fragmentado.
Delas, cabe admitir que tomei notas várias e acabei por me desfazer de algumas, as que não hesitei em rasurar.
Outras, que também risquei do mapa, me voltavam com força e acabei voltando atrás, mantendo-as em
precário estado de formulação: Cidade Vodu aumentaria a nossa potência de agir? Contribuiria para elaborar
formas inéditas de ação e de intervenção?
Resolvi, por fim, preservar como tais as notas que me são caras desde o início. Como quem se dá ao direito de
perseverar na lida de traçar meridianos pela cartografia
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22 trabalho do coletivo Teatro de Narradores impacta os espectadores e nos coloca em Lucas Silvestre
situação de suspensão: diante de um projeto de nação que não se completou, basta atestar
a ruína do projeto ou é possível, diante da memória subjacente à ruína, soerguer um ponto
de vista coletivo, desde a periferia do capitalismo?
“Cidade Vodu”, do coletivo Teatro de Narradores, se coloca a questão, ao tomar como
matéria a experiencia do Haiti, a primeira colônia das Américas à fazer a independência,
por meio do combate e vitória perante os colonizadores europeus, e mediante a
destruição imediata do estatuto da escravidão, em 1804. Não se trata apenas da escolha de
um ponto de partida aleatório: a ligação do Haiti com o Brasil é histórica, haja vista a
menção dos senhores de escravo ao medo do haitianismo, o pânico de que a revolução
dos negros haitianos se alastrasse pelo Brasil; e, ao mesmo tempo, contemporânea, dado
o fluxo crescente de migrantes haitianos ao Brasil, após o mais recente golpe
estadunidense, respaldado pela ONU – com direito à imposição de tropa de pacificação
com protagonismo militar brasileiro – e em razão do trágico terremoto que agravou ainda
mais as condições de infra-estrutura, trabalho e moradia no país.
A maior parte do elenco é composta por atores e atrizes haitianos, migrantes das levas
recentes ao Brasil. A matéria da peça é composta pela articulação entre a dimensão
histórica que permite a construção do ponto de vista periférico à ligar Haiti e Brasil e, pela
dimensão atual, da presença dos haitianos no grupo, com a força autoral de seus
depoimentos sobre a experiência da diáspora contemporânea e do encontro impactante
com a realidade do Brasil racista e desigual, inverso à imagem da cordialidade miscigenada
que nos figura no estrangeiro e funciona como ideologia em solo brasileiro: o Brasil não é
o paraíso, afirmam eles em cena.
A quantidade de riscos que o Teatro de Narradores corre nesse trabalho é considerável:
como ir além da colagem, da justaposição mecânica dos dados históricos? Como evitar o tom de vitimização
Cidade Vodu: a disposição de correr riscos entre fronteiras | Rafael Villas Bôas
diante da chaga da escravidão, que pode tornar piegas e derrotista o trabalho? Como evitar o risco da 23
demagogia e a imagem da integração multiculturalista? Ou seja, como evitar falsas saídas e soluções ao
problema mantendo, no centro, o conflito, a tensão da luta de classes, em perspectiva épica?
O grupo decide correr todos os riscos, de uma vez, calcado no trabalho de duas décadas, enfrentando
problemas de ordem semelhante, basta lembrar que a primeira montagem foi a encenação da peça “A lata de
lixo da história”, do Roberto Schwarz. E, em seguida, “Mercado de Fugas”, um trabalho dramatúrgico e de
encenação construido a partir de dois contos de Machado de Assis. Desde o início o confronto entre
liberalismo e escravidão estava colocado no centro da cena, uma matéria, portanto, já bem trabalhada pela
carpintaria teatral dos Narradores, o que permite o tratamento épico do conteúdo histórico da pioneira e mais
radical revolução do continente americano. É a descrença objetiva na promessa civilizatória do centro europeu
que desencadeia o processo revolucionário. Em cena, é uma atriz haitiana a declamar um texto de Aimé
Césaire que estabelece esse diagnóstico como ponto de partida.
O público brasileiro é colocado sob linhas de tensão em todo momento: somos as vítimas ou os beneficiários
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24 do progresso? Vemos a cena do convés ou do porão do navio negreiro? Nos reconhecemos como migrantes
do processo colonial ou anfitriões da casa mal ajambrada que está à receber os haitianos? Cordiais ou brutais?
Nos orgulhamos do papel que cumprimos no mundo ou nos envergonhamos do que nossas tropas andam a
fazer no Haiti? “O que vocês chamam ajuda, em crioulo a gente chama contenção” segundo os haitianos.
Saindo do aparelho teatral convencional, fechado entre quatro paredes, com recursos de iluminação e
sonoplastia à mão, e com hábil manuseio da relação entre vídeo e cena, os Narradores adotaram como cenário
da montagem a vila Itororó, uma construção de princípio do século XX, da amplitude de um quarteirão, agora
em ruínas, e sob a posse da prefeitura de São Paulo. De que lugar vemos a narrativa? Do ponto de vista dos
descendentes da diáspora ou dos beneficiários do progresso? As relações entre progresso e barbárie e arcaico e
moderno se configuram, desde o início da peça, como mediações dialéticas.
O primeiro movimento do espetáculo ocorre nas margens externas do espaço, na rua. Atores trajando
vestimenta militar e boinas azuis em alusão aos militares que servem em missões da ONU, nos conduzem de
forma firme, porém não deselegante, em uma marcha silenciosa que contorna o
Cidade Vodu: a disposição de correr riscos entre fronteiras | Rafael Villas Bôas
quarteirão até chegarmos ao local de entrada na vila. Fazemos esse trajeto escutando com 25
fones de ouvido e aparelhos MP3 a narração do processo do tráfico negreiro da África ao
continente americano, com riqueza de detalhe dos gestos cruéis cometidos pelos piratas
traficantes e seus subordinados. Crescem ao nosso redor as fronteiras dos grandes
prédios, que emparedam o horizonte, e por efeito de contraste da narração, aparecem
como resultado do sangue e suor proletário. Cenário demarcado por grandes prédios
tendo ao centro as ruínas: o ambiente se descortina como algo histórico, construido no
correr do tempo, fruto do trabalho humano. A cidade e sua promessa civilizatória, como o
lugar de chegada de tantos migrantes vai se configurando como o cenário e pano de fundo
da narrativa que se inicia.
A atmosfera de contenção e tutela é permanente: durante todo o percurso somos
acompanhados, vigiados e contidos, pelos boinas azuis. Didaticamente a peça encadeia
uma sequência de cenas que nos permite compreender o que está por baixo das idéias
nobres que justificam a permanencia de tropas internacionais no Haiti: a Minustah
aparece em cenas reais, exibidas em vídeo, usando a força bruta para dispersar a
concentração de protestos do povo haitiano, e impondo seus valores como na cena em
que o soldado, protegido pela sombra de uma tenda, com seus colegas, ensina um grupo
de crianças e adultos haitianos, parados sob o sol, em meia lua, a cantar e dançar uma
música da Xuxa. Na sequência, uma atriz haitiana declama em perfeito português a
música, em marcha lenta empunhando uma espingarda. O público vai, aos poucos,
compreendendo as complexas camadas de resiliência que estão por tras da imagem
aparente de subserviência.
A nos acompanhar pela história da colonização, pelo ponto de vista da luta haitiana, e pela
história daqueles que migraram ao Brasil e tentam em nossas terras sobreviver, está um
narrador que funciona como uma espécie de compére do teatro de revistas, que liga os
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26 tempos, media, comenta, antecipa, se interpõe, entra e sai das cenas, quebrando com isso
o risco do resvalamento para o registro do realismo dramático na história contada pelos
haitianos. Se trata do personagem do Baron Samedi, uma referencia direta a um Loa, uma
entidade do Vodu, interpretado de forma virtuosa e segura pelo ator Renan Tenca
Trindade. Aparece ao ser evocado em ritual por Bréda, um dos migrantes, que trafega
pelas cenas, como o narrador.
Um dos riscos que corre o grupo é a maneira de integrar os dois grupos que compõem o
elenco: de um lado dois integrantes do núcleo dos Narradores em cena, Teth e Renan, que
assimilam a estética narrativa do coletivo, e de outro, separados inclusive pela língua, o
grupo dos haitianos, que se não dispoem do mesmo repertório, entram em cena com suas
experiências, seus depoimentos e canções. Menos interessado na convergência do
registro cênico de interpretação, os Narradores encontram um elo pautado pelo trabalho
coletivo, com foco comum, sem demagogias, em que os haitianos encontram espaço para
compartilhar suas impressões em forma teatral e audiovisual.
Na linha de fronteira entre um espetáculo e outras formas de atividades artísticas e
políticas, como as jornadas socialistas que ocorrem em espaços de formação do MST, o
trabalho dos Narradores desacomoda o público, lhe coloca em movimento, e em relações
em que somos obrigados a pensar sobre a consequência de nossos gestos, enquanto país
cindido, cujo fosso entre as classes sociais bloqueia a consolidação de um projeto
nacional. No momento em que nos sentamos para tomar a “sopa da revolução”, uma
atriz haitiana nos convida a dançar. O gesto de compartilhar um repertório artístico do
legado haitiano é prontamente aceito por alguns enquanto outros observam distantes,
desconfiados: a pergunta sobre o que podemos imaginar juntos está ali colocada, na ação.
O que temos a aprender com eles? E eles conosco? Como nos percebemos e nos
integramos? É possível constituir uma narrativa a partir do reconhecimento das
Cidade Vodu: a disposição de correr riscos entre fronteiras | Rafael Villas Bôas
semelhanças de nossas condições periféricas? O legado da tradição revolucionária e, 27
posteriormente sufocada, tem algo a ensinar a nós, cidadãos de um país que se
modernizou por acordos de cúpula, por ciclos de contra-revoluções preventivas que
sufocaram sistemáticamente os levantes isolados?
Ao final do espetáculo, a atriz Teth Maiello conta ao público que há duas décadas ela,
enquanto atriz branca, encenou uma escrava negra. Ela e os Narradores faziam suas
escolhas, delimitavam seus riscos, seus parceiros. Foram ampliando no correr do tempo
seu repertorio na mesma medida em que ampliavam suas parcerias, com movimentos
sociais urbanos e rurais, com ocupantes, degredados, moradores de rua, e personagens de
obras da literatura brasileira. O grupo caminhou enquanto caminhava também o país.
Algumas engrenagens emperradas da estrutura desigual brasileira foram colocadas em
movimento nos últimos anos. Em duas décadas, não apenas a cena mudou, o país
também, negros reivindicam a condição de fala, espaços antes tido como de privilégio dos
brancos, e se fortalecem como sujeitos políticos, atores-personagens em cena. O grupo
fez novas escolhas, assumindo novos riscos que o coloca na intersecção produtiva da
articulação entre as esferas da política, da cultura e da economia. Daí a formulação de um
ponto de vista crítico.
O autor da primeira peça montada pelo grupo, Roberto Schwarz, afirmou em um texto
emblemático sobre os impactos da ditadura militar e empresarial que se instalou no país
em 1964: “A cultura é aliada da revolução, mas esta não será feita para ela e muito menos
para os intelectuais. É feita primariamente, a fim de expropriar os meios de produção, e
garantir condições de trabalho e sobrevivência digna aos milhões e milhões de homens
que vivem na miseria. Que interesse terá a revolução nos intelectuais de esquerda, que
eram muito mais anti-capitalistas elitários que propriamente socialistas? Deverão
caderno de ENSAIOS8
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¹Cultura e Política,
1964-69. In O pai
de familia e outros
estudos. Rio de
Janeiro: Paz e Terra,
1978, pg. 92.
transformar-se. Reformular suas razões, que entretanto haviam feito deles aliados dela.”¹
Na véspera de comemorarmos o centenário da Revolução Russa, de 1917, os Narradores recolocam o
tema da revolução a partir da periferia do capitalismo, no Haiti, em 1804. É um momento mais que propício
para repensarmos a ordem das coisas, extrair consequências do legado do encadeamento de revoluções e
levantes que marcaram a história nos últimos três séculos. No gesto pautado por “Cidade Vodu” há uma
espécie de atitude programática sugerida: para imaginarmos juntos teremos que nos transformar, reformular
nossas razões, nossas concepções políticas e expectativas estéticas, romper a histórica tradição conciliatória
com os de cima, que vem solapando a história brasileira com ciclos sequentes de contra-revolução preventiva.
Teremos que repensar métodos e táticas a partir do sentido estratégico comum, que se não está dado, não
significa que não possa ser construido.
Foto: Lucas Silvestre
Cidade Vodu:
um lugar história
|Rodrigo Charafeddine Bulamah|*
*Antropólogo, doutorando da
Universidade Estadual de Campinas
Fotos: Tudo começa com uma caminhada. Levados pelos boinas azuis,
caderno de ENSAIOS8
30 Lucas Silvestre soldados da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti,
somos conduzidos por 300 metros até a porta de zinco que nos
separa das ruínas da Vila Itororó. No caminho, ouvimos em
tocadores de mp3 as descrições de um navio negreiro e da chegada ao
Novo Mundo. A voz é de um homem escravizado e as imagens
criadas pela descrição detalhada da travessia ecoam de tal modo que
nos fazem pensar se não somos nós a cruzar o Atlântico. Em parte, a
peça Cidade Vodu do grupo Teatro dos Narradores é uma grande
viagem ou mesmo várias. São outros tempos e outros espaços que se
cruzam e se atualizam.
A chegada à Vila Itororó nos leva a 1791. Pedimos licença a Papa
Legba, o guardião das encruzilhadas, e somos testemunhas e
participantes do ritual que deu início às guerras revolucionárias de
São Domingos, a parte ocidental da ilha de Hispaniola, que viria a se
tornar o Haiti alguns anos depois. Dali em diante são negociações
intensas, debates e conflitos. Desses embates forjou-se o próprio
conceito de liberdade, tão caro à Era das Revoluções, mas cuja
origem filósofos e historiadores esforçaram-se em silenciar,
desvencilhando a Revolução Haitiana do teatro atlântico que gestou
nossa modernidade. Cidade Vodu é um passo a mais no esforço de
recolocar o Haiti dentro da história global e esse esforço se faz em
grande parte pela ação de ouvir esses outros que são também nossos
contemporâneos e de quem partilhamos os mesmos ancestrais.
É de ancestrais que eu gostaria de tratar aqui. Toussaint Louverture,
Jean Jacques Dessalines, Henry Christophe são chamados a contar-
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Napoleão, cuja sanha imperialista e a nostalgia pela riqueza fornecida por São Domingos
queria restituir a escravidão em todas as colônias. Ao encarar a iminente perda de São
Domingos, Napoleão teria expressado seu desespero culpando a tudo e a todos: “Maldito
açúcar, maldito café, malditas colônias!”. Já o segundo sequestro De Toussaint é uma
encenação das dificuldades enfrentadas por pessoas que decidem atravessar fronteiras,
enfrentando violências que muitas vezes adquirem dimensões impressionantes.
Não sem razão, quem nos conduz nessa jornada é Barão Samedi. O primeiro morto a ter
sido enterrado em um cemitério, essa espécie de barqueiro toma conta e negocia as almas,
ou melhor, os corpos dos que o sucederam e que o sucederão. Enquanto um trickster,
figura recorrente em mitos de diversas culturas, o Barão Samedi revela que a morte pode
ser também uma outra vida e que há muito de morte em qualquer vida.
Teatro aqui é guerra. Guerra para devolver um lugar usurpado na história; contra um
sistema colonial que se construiu através do assassínio de inúmeros africanos e filhos da
terra; contra um golpe jurídico e midiático que se forjou enquanto uma farsa no Brasil;
contra um projeto neocolonial que faz, há tempos, do Haiti um grande laboratório de
experiências com formas de gestão de vidas e, no caso específico do papel da
MINUSTAH , de táticas de intervenção em bairros populares com o claro objetivo de
desenvolver formas de intervenção em favelas e bairros populares no Brasil; e, por fim,
contra o racismo e a xenofobia tão cotidianos em nosso país, mas que com a chegada de
haitianos nos trouxe outra vez a sensação do espanto, agora através do olhar de um outro.
Um outro que na verdade somos nós mesmos (ou ao menos, alguns de nós). “O Haiti
precisa de novas narrativas”, é o que nos cobra Gina Ulysse, antropóloga e artista haitiana.
Histórias que fujam da excepcionalidade, que mostrem o que há de comum nessas vidas e
nesse lugar. Aybobo, Teatro dos Narradores!
Foto: Patricia Mattos
Cidade Vodu impressiona na Vila Itororó
|Nelson de Sá|*
*Jornalista e crítico teatral
Foto: Patricia Mattos
caderno de ENSAIOS8
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A Vila Itororó em obras, com os velhos paralelepípedos do beco no Bixiga, os casarões de paredes
descascadas e pichadas, suas escadarias: o cenário poderoso, dramático, dá o impacto inicial de “Cidade
Vodu”, de José Fernando de Azevedo.
Distinguem-se as colunas no fim da rua, as imagens trazidas da demolição do Teatro São José, as ruínas da
história de São Paulo. Que remetem aos poucos, com o correr da apresentação, ao terremoto no Haiti em
2010, que matou perto de 200 mil pessoas.
Foi quando se deu a diáspora que acabou trazendo dezenas de milhares de haitianos ao Brasil –o país comanda
desde 2004 a missão militar das Nações Unidas no Haiti, de “estabilização” institucional, a Minustah, cujos
bonés azuis são representados e questionados na peça.
Contrastando com o cenário de forte impressão, o texto começa claudicante, com referências distantes, sobre
relações entre brancos e negros, a opressão da escrava pelo sexo, num discurso importante mas já bastante
conhecido e destrinchado.
“Cidade Vodu” vai prender mais a atenção quando a trajetória dos imigrantes haitianos, trazida pelos próprios,
passa a dominar os diálogos e narrações –estas do sarcástico e inteligente Renan Tenca Trindade– e estabelece
um fio narrativo mais claro.
Dá-se então a junção entre a realidade exposta nos escombros majestosos com aquela apresentada pelos
38 vida insuportável e insustentável após o terremoto. Parte mais tocante dos relatos, porque
as dores são inimagináveis e aconteceram exatamente com aquelas pessoas, a ênfase está
no tratamento recebido pela população haitiana tanto no país nativo, quanto no Brasil e
no percurso geográfico da migração. As memórias mais uma vez de violência, truculência
por parte do Exército (uma gente que propõe devolver a paz com atitudes criminosas) e
do preconceito vivido em terras brasileiras fecham a narrativa apontando o racismo como
componente estrutural das sociedades e não simplesmente circunstanciado no tempo
histórico. Mais ou menos na metade do espetáculo tem uma festa, um encontro proposto
pela encenação. Num espaço amplo, o público é convidado a se sentar, comer, beber,
conversar e dançar ao som de músicas típicas haitianas cantadas pelos próprios artistas.
Um dos atores apresentou o espaço para mim e para outra espectadora (Júlia) como
sendo a Cidade “Vodu”, este boneco no qual são projetados castigos nos outros quase
sem possibilidade de defesa. Conversamos um pouco. Júlia perguntou se ele gostaria de
voltar para o Haiti, resposta: “Se eu pudesse, voltaria hoje”, e riu. A troca de olhares foi
por empatia, embora nada possamos saber, Júlia e eu, dessa angústia. Mesmo vítima de
vodu, a cidade produz um encontro alegre, caloroso. Alguns relatos sofridos surgiam em
busca de cumplicidade, mas não diminuíam a atmosfera espirituosa de quem propõe a paz
a quem oferece quase sempre as costas.
“Nós estamos aqui um por causa do outro”, frase de um dos relatos e eco histórico. Se o
estar junto veio constantemente à base do choque, do enfrentamento, da resistência e da
luta, Cidade Vodu propõe um encontro festivo contra o modus operandi do nosso mundo
que vê lógica em entrar em guerra para alcançar a paz. Se a proposta é o encontro, como
não, encontremo-nos.
Questão de If I could, I would go back today
40 immigration to Brazil after the earthquake of 2010 and the arrival of the UN peace troops in the country in
partnership with the Brazilian Army (the MINUSTAH mission). The stories of this final part describe the lives
of the actors themselves, as Haitian artists who recently immigrated to Brazil due to the unbearable and
unworkable life conditions they underwent at home after the earthquake. This part is the most touching one, as
it speaks of the unimaginable pain experienced by those persons, and places an emphasis on the way the
Haitian population was treated both at home and in Brazil, while also describing the geographical route of
their migration. The narrative ends with memories of violence and brutality inflicted by the Army (which
purported to reestablish peace through criminal acts), and prejudice on Brazilian soil, and identifies racism as a
structural element of the societies, which is not restricted to specific circumstances in the course of historical
time.
Approximately half way through the play, a party takes place at the actors' invitation. The public has then an
opportunity to sit down and eat, drink, talk and dance in a broad space at the sound of typical Haitian music,
sung by the actors themselves. One of the actors presented this space to me and another spectator named Julia
as the “Voodoo” Town, in reference to the voodoo dolls through which an individual can allegedly inflict
punishment onto a virtually defenseless victim.
If I could, I would go back today|Mariana Barcelos
41
44 .
Redaktion .
Bilder wie diese kann ja keine Bühne, kein Theater bieten – Bilder wie aus der „Vila
Itororo“, einer kleinen Geisterstadt mitten im Herzen der Monster-Metropole Sao Paulo.
3. April 2016 Vor bald 100 Jahren entstand hier eine kleine Siedlung zu Füßen des Wohn-Tempels, den
ein offensichtlich reichlich durchgeknallter Architekt für sich selber entwarf; mit Säulen
wie auf einer Akropolis „en miniature“ und mit Interieur aus einem alten, damals schon
verfallenen Theater der Stadt. Längst sind Hochhäuser, Wohntürme und Schnellstraßen
um das Terrain herum gewachsen, das Straßen-Niveau jenseits der Mauern der „Vila
Itororo“ liegt mittlerweile über den Dächern des völlig maroden Geländes. Die
Wohnblöcke verfielen, wurden von Künstlern besetzt und sollen jetzt zum
Kulturdenkmal werden - auch wer über Jahre hin quasi um die Ecke wohnte, hat diesen
verkommen-verzauberten Ort womöglich nie zu Gesicht bekommen. Durch dieses
Ambiente nun, diese „Cidade Vodu“, die Voodoo-Stadt, führt uns -ständig irre kichernd-
Tod persönlich in der Produktion vom „Teatro dos Narradores“, dem ‚Theater der
Erzähler'…
Texte und Materialien über die Sklaverei hat Regisseur Jose Fernando Azevedo montiert,
und Haiti steht im Mittelpunkt, die Insel, deren Bevölkerung die Erinnerung an Sklaverei,
Kolonialismus und Revolten immer in sich trägt – geflüchtet vor dem Erdbeben, erzählen
sie heute davon, zwischen den zerfallenden Häusern der „Vila Itororó“. Arianne Vitale,
vor Jahren kurzzeitig bei Frank Castorf an der Volksbühne in Berlin zu Gast, hat das
Ruinen-Ensemble im Herzen der modernen Metropole ausgestattet als magischen Ort –
„Cidade Vodu“, eine Produktion aus Sao Paulo selbst, erarbeitet von einer Gruppe, die
Tradução: (wie alle in der Stadt) von Projekt zu Projekt und quasi ohne festen Wohnsitz agiert, ist
João Victor Toledo zum Glanzstück des internationalen Festivals geworden.(...)
Fotos: Patricia Mattos
“Quando assisti a Cidade Vodu, e 'vi' a
primeira revolução negra do continente
|PETER PAL PELBART|* americano pelo corpo e pela voz de
imigrantes haitianos, perguntei-me como
é possível que isso não tenha sido feito
ou pensado ou mostrado antes. Como tal
sublevação não eclodiu antes em nossos
palcos, e dessa forma? De repente, tudo
o que veio antes a respeito da negritude e
suas insurreições parece empalidecer. E o
que aparece agora ganha uma espécie de
eterna necessidade, como se estivesse aí
desde sempre, em estado de virtualidade,
aguardando o momento para nos flechar
*Professor do
em cheio. [Ao mostrar-se subitamente
Departamento de tão revelador e inevitável, esse lampejo
Filosofia e no
Núcleo de Estudos
estético, político e vital lança sobre o
da Subjetividade passado a suspeita de uma inominável
na pós graduação
em Psicologia cegueira, embotamento, denegação.]”
Clínica (PUC-SP)
Intervenção cênica na arquitetura da
Vila Itororó - quando a dramaturgia
se integra às ruinas
|Arianne Vitale Cardoso|*
Foto: Thiago Bortolozzo
*Cenógrafa e arquiteta
Foto:
Intervenção cênica na arquitetura da Vila Itororó - quando a dramaturgia se integra às ruinas | Arianne Vitale Cardoso
Thiago Bortolozzo 47
Croqui do Palacete
Fazer teatro na realidade da cidade é tirar desse espaço a substância para situar as cenas e criar uma dramaturgia
do lugar que integra o ator, as histórias e o momento real.
Foram dois meses de ocupação no canteiro de obras da Vila Itororó, para criar – in loco – os cenário e
intervenções na arquitetura em ruina da vila, para os espaços cênicos da peça Cidade Vodu, junto com o Teatro
de Narradores.
Para concretizar o teatro fora do teatro é preciso lidar com muitas camadas que nem sempre são possíveis de
controlar, são as intempéries do tempo, das ondas magnéticas e sonoras, das pessoas e do espaço que é vivo e
em mutação e ainda interagir com as diversas áreas que compõe o teatro. É preciso muita generosidade,
paciência e acima de tudo o apreço ao fazer artístico para criar arte site-specific, observando o espaço cru e
suas possibilidades para se entender em grupo como é possível transformar as ideias em realidade.
Na intersecção de referências imergimos na relação com os haitianos para criar esta
caderno de ENSAIOS8
48
dramaturgia e narrativas integradas. O processo deste projeto do Teatro de Narradores junto
aos haitianos já havia começado a mais de nove meses, mas eu fui convidada para o projeto já
na fase final de resoluções para a criação do espetáculo. A escolha da Vila Itororó como palco
para a peça foi o desafio, mas que veio de encontro a minha paixão e necessidade vital de criar
teatro na veia da cidade.
Os elementos mágicos do Vodu permearam todo o processo e foram um meio de conversa e
interação através da arte com os haitianos, que, mesmo não sendo praticantes do vodu me
abriram a sua cultura e contaram histórias através dos desenhos – os vevés – que são feitos no
chão para evocar os espíritos e também outros elementos da religião que fazem parte da
cenografia da peça em altares e nos desenhos inscritos com cal ou carvão.
O processo colaborativo abre precedentes para que a interação se aprofunde, pois a cena é
criada naquele lugar, com as narrativas criadas pelos próprios haitianos e regidas pelo diretor
e dramaturgo José Fernando Azevedo. O ator atua na realidade da arquitetura, busca
posicionamentos e nessa interação se coloca potente na ação.
A história dos Haitianos se misturou com a história da desapropriação das famílias que
viviam na Vila Itororó. O passado humano e o presente esmagador das ruinas se cruzaram à
lembrança do terremoto que assolou o Haiti e que foi um dos grandes motivos da diáspora.
Também da história da vila vem a tão linda energia que move nossa festa haitiana, onde antes
era a sede do clube Eden Liberdade, com a primeira piscina privada de São Paulo construída
nos anos 20 utilizando as aguas correntes do rio Itororó e que foi local de diversão de muitas
gerações de moradores do bairro Bela Vista. Na Cidade Vodu temos o Eden Liberté, onde é
servida a sopa haitiana, com musica e dança.
A Vila Itororó habita o imaginário e as lembranças de muitas pessoas do bairro. Por isso a
a emoção de ter aberto, para a realização de uma cena, um pedaço do muro que fecha todo
o canteiro de obras da vila Itororó. Um metro quadrado aberto e gradeado, com vista da rua
Intervenção cênica na arquitetura da Vila Itororó - quando a dramaturgia se integra às ruinas | Arianne Vitale Cardoso
Major Diogo e, neste frame, sempre algum olhar curioso de algum passante, que certas vezes 49
chega a interferir na peça, mas que no meu conceito é assumido, pela abertura para a
comunidade da vista sobre a viela com os casarões e sobrados em ruina e ao fundo a
grandiosidade das colunatas do palacete surreal, como era chamado. A abertura para a rua é
uma pequena intervenção urbana inserida nos incríveis detalhes da peça que percorre todos
os espaços possíveis da vila. São muitos detalhes!
E mais um fato de intersecção: o serralheiro que colocou as grades tinha conhecido a sua
esposa na vila e já tinha morado ali e a sua história virou parte da história da peça.
Dessas tantas intersecções e camadas sobrepostas que formam a peça Cidade Vodu, também
foram decisivas para a criação do espaço cênico a relação com a vista frontal do palacete. Para
a terceira parte da peça, inicialmente foi proposto uma arquibancada para que o público
sentasse direcionado para a grandiosidade do palacete, mas durante o processo e com o
impedimento de entrar no saguão de entrada do palacete por questões de segurança, esta ideia
se transformou, pois o intuito não era um publico passivo, olhando tudo de cima, mas o
publico integrado na dramaturgia. Sentados em cadeiras inicialmente amontoadas, cada uma
diferente da outra, como que fazendo parte do despejo, o publico integra a dramaturgia num
movimento performativo, e cada expectador posiciona a cadeira se adaptando ao lugar que é
uma rua de paralelepípedos húmidos pela agua do rio que ali corre.
Creio que conseguimos integrar cena, público e espaço, numa ocupação onde o teatro e a
arquitetura inspiram a criação e a interação para contar a história dos haitianos ontem e hoje, e
também contar a nossa história de ontem e de hoje num espaço que está em transformação e
que será, num futuro próximo configurado como centro cultural da cidade, marcado pelos
tantos moradores que por ali passaram, tantas histórias e memórias da cidade, numa dinâmica
orgânica como uma árvore que insiste em crescer na fresta do concreto.
A poética transformadora
dos deslizamentos
|Paloma Franca Amorim|*
Intervenção cênica na arquitetura da Vila Itororó - quando a dramaturgia se integra às ruinas | Arianne Vitale Cardoso
Publicado em 3/11/2015, em Huffpost Brasil.
Christina Rufatto 51
(...) Em 1802, pouco depois de Toussaint-L'Ouverture - caudilho dos exércitos escravos - ser
preso, o general Leclerc escreveu ao seu cunhado Napoleão: "Eis minha opinião sobre o
país: há que suprimir todos os negros das montanhas, homens e mulheres, conservando-se
somente as crianças menores de doze anos, exterminar a metade dos negros nas planícies e
não deixar na colônia nem um só negro que use jarreteiras". (...) - As Veias Abertas da América
Latina, de Eduardo Galeano.
52
suficiente o fato de os haitianos, até a atualidade, estarem pagando uma conta histórica que não lhes pertence;
diante da catástrofe natural sem precedentes, eles ainda precisariam mostrar sua força e coragem.
O projeto Cidade Vodu do grupo Teatro de Narradores, sediado na cidade de São Paulo, foi apresentado ao
público no dia 27 de outubro, no espaço do Itaú Cultural, em formato de abertura de processo, ou seja, como
um compartilhamento da pesquisa e das estruturas norteadoras que têm possibilitado uma abordagem teatral
sobre o tema da imigração haitiana para terras brasileiras, suas nuances, políticas, sociais e, por que não?,
estéticas.
Em determinado momento da abertura, nós espectadores fomos sutilmente invadidos por um som de pedras
rolando, som de queda de casas, de edifícios, de paredes e telhados acossados pelo treme terra - essa
composição sonoplástica se apresenta como uma potencial materialização do conceito de deslizamento que
permeia essa Cidade Vodu. Nesse sentido, é iminente que o deslizar - esse deslocamento de ponto de vistas e de
experiência - acabe por se tornar um aspecto elementar à linguagem do espetáculo "finalizado", cuja estreia
está prevista para o primeiro semestre de 2016.
José Fernando de Azevedo, diretor do projeto, percebe ser o deslizamento um
Intervenção cênica na arquitetura da Vila Itororó - quando a dramaturgia se integra às ruinas | Arianne Vitale Cardoso
procedimento que possibilita o diálogo entre os integrantes do Teatro de Narradores e os 53
imigrantes haitianos, artistas esses que se juntaram ao projeto ao longo de seu
desenvolvimento. Segundo José Fernando, o grupo tem trabalhado o deslizamento na
interpretação como uma espécie de dança épica em que os intérpretes brasileiros Renan
Tenca Trindade e Teth Maiello transitam por personagens como o general Charles
Leclerc, Napoleão e Paulina Bonaparte, figuras importantes no processo de espólio
histórico da França sobre o Haiti. "O deslizamento seria essa possibilidade de você sair de
uma figura pra outra, de uma lógica pra outra, de tentar estranhar essa lógica em relação ao
corpo (...). O grupo está num momento de descoberta do que isso pode ser."
Pergunto ao grupo sobre o trabalho à luz desse encontro entre artistas com experiência na
linguagem teatral e esses novos agentes da cena, haitianos, que trazem consigo uma carga
histórica pungente associada tanto ao terremoto de 2010 quanto ao processo de
dominação de seus ancestrais. Em cena, esse encontro explicita um problema positivo a ser
respondido pelo grupo: há uma espécie de dissonância técnica quando da ação em que
atores e não-atores se relacionam, mas de forma alguma essa dissonância é silenciada na
construção dos argumentos estéticos; pelo contrário, ela é um aspecto assumido e se
torna a fundação de uma perspectiva outra, nova, em que a elaboração do tema da
imigração se dá pelas vias do falar com e não somente do falar sobre. Essa compreensão
metodológica, embora simples, pode ser transformadora no que diz respeito ao
transbordamento das formas teatrais para além daqueles que têm o privilégio de seu
acesso através de cursos técnicos, do mercado e da academia.
Sobre isso que chamo de problema positivo, José Fernando pondera avaliando "a dimensão
das presenças, dos corpos treinados e corpos não-treinados": "A questão não é treinar o
outro corpo nos procedimentos que sejam nossos, é achar esse lugar de potência dessas
caderno de ENSAIOS8