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MAR NOVO
•SJí
prefácio de
Fernando J.B. Martinho
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que desfaz asua intranquila questionação: «Deus é no dia uma mar secou / Porque o destino apagou / O seu nome dos astros
palavra calma / Um sopro de amplidão e de lisura.» // Porque o seu caminho foi perdido / O seu triunfo vendido
Ao mesmo tempo, e num livro, não o esqueçamos, que a / Eele tem as mãos pesadas de desastres // E é em vão que ele
própria autora via como estando intimamente ligado ao ante SI- ergue entre os sinais / Buscando a luz da madrugada pura /
rior, adensa-se, em Mar Novo, um sentimento trágico da vida (lhamando pelo vento que há nos cais // Nenhum mar lavará
que se manifesta num mal-estar, numa negatividade que se 0 nojo do seu rosto / As imagens são eternas e precisas / Em
diz em termos como «desespero», «absurdo», «desencontro», vão chamará pelo vento / Que a direito corre pelas praias lisas
«náusea», «nojo», todos eles pondo em evidência que a poeta // Ele morrerá sem mar e sem navios / Sem rumo distante e
não permaneceu imune a um certo ar do tempo típico dos sem mastros esguios / Morrerá entre paredes cinzentas / Peda
fins dos anos 40 e dos anos 50 em Portugal e noutros países, ços de braços e restos de cabeças / Boiarão na penumbra de
muito marcado, como se sabe, pelas filosofias da existência. madrugadas lentas. // [...]».
Em nenhuma outra obra da autora, poderia mesmo dizer-se, é O desengano que domina o sujeito propicia a ligação de
tão pronunciada essa negatividade, tão intensamente se recor muitos dos poemas de Mar Novo a uma categoria genológi-
ta a presença da treva. E^ressões reiteradas como «em vão», ea como a elegia, em alguns casos, e dentro de um livro tão
«nunca mais» dão bem conta do desalento, da «desilusão» que (ocado, directa ou indirectamente, pela sombra da morte,
submerge osujeito, da dificuldade de manter viva a esperança, assumindo mesmo a feição de elegia fúnebre. Neste âmbi-
no meio do «vazio» e da «agonia». Por outro lado, a preposi i«c destaca-se um texto em que, surpreendentemente, se não
ção «sem», obsessivamente recorrente, ilustra, de modo inex- !rin notado iim nítido oro do famoso «Menino de sua mãe»
cedível, o quanto o mundo representado no livro é, em regra, de Pessoa. Nem faltam em «O soldado morto», o poema de
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um mundo ferido de despossessão, de privação, de perda, de que estamos a falar, para além, naturalmente, da circuns-
falha, longe da plenitude, da idéia de unidade que, no fundo, láncia de a personagem no centro da cena ser em ambos
a poesia de Sophia nunca debcou de perseguir. Melhor que os casos um soldado morto, a presença de termos comuns,
nenhum outro texto, de. Aíhr iVbyo-ilustra, um poema como como «céus», «cego», «brisa» e «perdido/perdidos»; «Os infi
«Marinheiro sem Mar» essa perda, essa separação irremediável nitos céus fitam seu rosto / Absoluto e cego / E a brisa agora
do «corpo da unidade», a entrega, afinai, ao «tempo dividido» beija a sua boca / Que nunca mais há-de beijar ninguém. //
e tudo o que ele possa significar. Nele se conta a história, de 1em as duas mãos côncavas ainda / De possessão, de impul
inequívoco cunho alegórico e de sombrias tonalidades apoca so, tle promessa. / Dos seus ombros desprende-se uma espera
lípticas, de um marinheiro que se afastou para sempre do seio / (^Lie dividida na tarde se dispersa. // E a luz, as horas, as
aconchegado do seu mundo matricial, e a que nenhuma nos Ioiilias / São como pranto em torno do seu rosto / Porque
talgia, por mais pungente que seja, o poderá jamais devolver: ele foi jogado e foi perdido /'^E no céu passam aves repenti
«[...] // Porque ele tem um navio mas sem mastros / Porque o nas.» O sentimento elegíaco faz, por sua vez, apelo, no thu-
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prrjT So(?H.A
Io de um curto poema da primeira parte do livro, ao cante borja (que mais tarde chegaria a ser o terceiro geral da Com-
jondo, o primitivo canto andaluz: «Numa noite sem lua o p.iiihia deJesus e que viria mesmo a ser canonizado no século
meu amor morreu / Homens sem nome levaram pela rua / XVII), de deixar o século, em resultado da contemplação do
Um corpo nu emorto que era omeu.» Lembre-se, apropó lorpo desfí^rado peía morte da jmperatriz à qual suposta
sito, que Federico Garcia Lorca, tido por Sophia como uma mente devotaria um amor preso ainda, na primeira metade
das suas grandes referências literárias, publicou um livro com (Io século XVI, aos ditames do amor cortês, corno deixam
o título Poema dei CanteJondo e dedicou estudos ao cante de ii.insparecer termos como «servir» e «Senor». Antes disso,
ff&r?- tão fimdo enraizamento na sua Andaluzia natal. Em Lorca, 11 .mscreva-se, para melhor elucidação, a passagem da Histo
Sophia era particularmente sensível ao que chamava as suas ria de Ia Vida y Hechos dei Emperador Carbs V, de Fray Pru-
«superimagens», e em que reconhecia a íorça sortílega de (leiicio de Sandoval citada por Graça Moura no seu ensaio:
«metáforas muito especiais», conforme declarou em entrevis «1 iizo tanto efecto esta vista en el marquês, que causó en él
ta a Eduardo Prado Coelho, em 1986. Muito da atmosfe una profunda imaginación [...] y viendo que era tal, deter-
ra que geram tais imagens e metáforas se pode encontrar no ininó servir a otro senory a otra Majestad que no perece».
enigmático texto de Mar Novo, no qual se pressente alguma É o^ Duque de Gandia que, no texto, assume a fala,
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familiaridade com os temas emotivos do cantejondo. lendo esta como destinatário a própria imperatriz, já morta.
O mais eloqüente exemplo de elegia fúnebre no livro de () monólogo da personagem é apresentado pela poeta como
1958 e, no entanto, «Meditação do Duque de Gandia sobre a lima «meditação», a qual é tradicionalmente um traço indis-
morte de Isabel de Portugal», poema que, ao mesmo tempo, iL/el do funcionamento da elegia. Trata-se, na cirrunstân-
se afirma como um dos mais altos momentos no exigentís- (i.i, de uma meditação específica, a meditatio mortis. Tudo
simo percurso de Sophia de Mello Breyner Andresen. Não '.e (cntra no efeito que a contemplação do corpo em decom-
M- está aqui em causa saber se corresponde à verdade ou se é do posição de Isabel de Portugal tem sobre o Duque, no abalo
domínio da lenda afamosa exclamação atribuída ao marquês
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PrT- i r Pi
dade da vida humana que éa de um homem marcado pelo tic pesadelo e horror como a das «duas mãos torcidas» que apa-
desengano próprio da sua época. Ao mesmo tempo, porém, letem «numa janela». É nessas duas mãos, em que reconhece
insinua-se, inevitavelmente, na fala do Duque, a linguagem mos uma sinédoque do inabalável desejo de vingança da Elec-
que e a da própria poeta que lhe dá vida, e que traz a marca ii.i mairicida que se centra a nossa atenção e que íàz dela uma
de um período histórico ferido de negatividade, tão sensível (i|',iir,i (|uc suscita em nós sentimentos contraditórios de repulsa
em dois termos de rara violência expressiva como «nojo» e 1 . om|iieensão. Sophia, por outro lado, não se furta, no trata-
«negação», num verso jáperto do fecho do poema. nieiiio do tema, à linguagem que é a do seu tempo, e alguns
Pjessegue em Mar Ãôyo.o-interesse, da poeta pelos temas dos lermos de que se socorre, como «traição», «náusea», «absur
clássicos, que, já vem dp livro de estreia e se manterá, como é do-, fr/cm parte do léxico preferencial de algumas correntes
sabido, até ao fim do seu percurso. Não por acaso certamen Isi .ieiR ialistas, gozando então de grande voga entre nós.
te, num livro de predominante atmosfera disfórica, os temas A descoberta de Rimbaud por Sophia ter-se-á dado na sua
tratados, de Electra e das Parcas, estão associados à morte. O jiiveiIlude, como podemos deduzir de uma carta dirigida à mãe
mito da irmã de Orestes, em que, aqui, nos fixamos, é, desde I in Maio de 1961, informando-a da morte de José Ribeira, seu
os gregos, um dos que, ao longo dos séculos, maior fortuna .Mnij',o dos tempos dos verões passados na praia da Granja. Este
teve em termos de tratamento literário. Em tempos moder n.i, jiintamente com Antônio Cálem, um dos amigos a quem
nos ganhou ele especial vigor, gozando compreensivelmen- li.i, (onlorme diz, «tudo o que escrevia», antes de ter publica
te da preferencia da literatura dramática, dado o destaque de do \( isos {vide catálogo da exposição na Biblioteca Nacional,
que já beneficiara junto dos grandes tragediógrafos helénicos. ' "pl.i i de Mello Breyner Andresen — uma Vida de Poe-
Atradição em que a «Electra» de Sophia se insere não é direc- i.i , org. de Paula Morão e Teresa Amado, 2011). Terá ele,
na modernidade, levaram o tema da filha iniiKo provavelmente, lido o poema «O Vidente», datado de
de Ãgamémnon e Clitmnestra aos palcos, um Hofmannsthal, Novrmbto de 1941, e que fazia parte dos chamados «Cader
um Eugene 0'Neill, um Giraudoux, um Sartre, um Gerhart nos Rasgados» que Cálem colou. O referido texto era, no ori-
Hauptmann, uma Yourcenar, m^ aplasticidadej:énica do seu iJn.il, tiediaido a Ruy Cinatti (cf. ibid), e teve a sua primeira
poema não deixa de pôr em evidência as suas fortèTmtuãli- piiblii .^.lo nas páginas da rcvv&td. Aventura (1942-1944), fun
dades dramáticas, ademais vindo de uma autora que, como se ila<l,i por este poeta, vindo a ser incluído no livro de estreia,
sabe, se interessou pela escrita teatral, quer anível criativo pro dr l')dd. Cinatti, que era um pouco mais velho que Sophia,
priamente dito, quer no domínio da recriação, literária-jque é a lonliruu-o ainda adolescente, como recordou numa palestra
tradução. O que mais impressiona no texto de Sophia é a sua piiilci ida cm 1964 na Universidade de Perugia. Fazia ela parte
^violência com que transmite opathm rrágim d( um g.iupo de gente muito nova, para quem Cinatti era «o
através da concretude de um verbo como escorrer e_ de signos poci.i míiico», uma espécie de «guru», alguém que lhes levava
como o «sangue» e as «lagrimas», e nos projecta em im^ens •priiiiib.içrio» e «assombro». É com emoção que Sophia evoca
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