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Sophia de Mello Breyner Andresen

MAR NOVO

•SJí

prefácio de
Fernando J.B. Martinho

ASSÍRIO & ALVIM


Em nota que acompanhava a reedição conjunta de Ivlar


Novo e do volume anterior, No Tempo Dividido, em 1985,
justificava Sophia a junção dos dois livros com a circunstancia
de pertencerem eles aum mesmo «ciclo», de serem afinal «um
mesmo livro». Há, no entanto, diferença significativas entre
os dois voiumes que plenamente autorizam uma sua edição
separada. Embora em ambos os volumes avulte a consciên
cia trágica de uma quebra, de uma funda divisão na unidade
oue a forte presença, nos primeiros livros, dos deuses gregos
(Ic algum modo garantia, o desespero do sujeito é, em Mar
Novo, cada vez mais um desespero situado. Quer isto dizer
(jue a incomodidade da poeta tem também, na quinta colec-
lânea dada a público, entre as suas causas a situação que se
vive no país, sob uma ditadura crescentemente fechada sobre
si mesma. Um poema como o que fecha a segunda parte do
livro, não deixa quaisquer dúvidas a esse respeito; «EsteJ, o
tempo / Da selva mais obscura // Até o ar azul se tornou gra
des / E a luz do sol se tornou impura // Esta é a noite / Densa
de chacais / Pesada de amargura // Este é o tempo em que os
homens renunciam.» Este e outros poemas do livro, com a tão
tlara chamada para uma concreta situação temporal, a„de uma
terra privada de liberdade, tornada, toda ela, uma imensa pri
são, testemunham o processo de ruptura, na segunda metade
lios anos 50, face ao regime salazarista de alguns sectores da
huclligentsia católica, que de algum modo Sophia e Francisco
II
Sousa Tavares, pela sua cada vez mais empenhada intervenção no concurso para o Monumento ao Infante D. Henrique, em
cívica, antecipam. O elogio que a poeta, com incisiva eloqüên Sagres, em meados dos anos 50, em co-autoria com o pintor
cia, faz à coragem do marido em «Porque» tornar-se-á mesmo Júlio Resende e o escultor Barata Feyo. A escolha do nome do
uma espécie de bandeira para os que têm, então, como ina projecto para título do livro pode, assim, ser fida como uma
diável a denúncia da hipocrisia do regime e da pusilanimidade homenagem de Sophia àquefes que, na circunstância, repre
dos que o apoiam. Lembre-se que o livro vem pela primeira sentavam a «linha clara e criadora / Do nosso rosto voltado
vez apúblico em 1958, ou seja, no ano em que terão lugar as (xira o dia» de que se fala no fecho do díptico.
eleições presidenciais em que Humberto Delgado éo candida Há, por outro lado, naquinta colectânea poética deSophia,
to da oposição eem que virá a lume a famosa carta do Bispo inequivocamente mais extensa que a anterior, uma progressão
do Porto ao ditador, a qual ajudará inegavelmente a conven dramática, de alguma forma acentuada pela divisão do livro
cer da iniqüidade do regime um largo número de católicos. em três partes, que diz igualmente respeito à relação da poeta
Apoética de testemunho e empenhamento de Sophia tornar- (om Deus. No início do livro, diante da existência do mal à
-se-á, como é sabido, mais explícita em Livro Sexto, de 1962. siia volta, a própria «obra» deDeus se lhe apresenta como uma
Não faltam, todavia, em Mar Novo, como põem em evidên obra cindida, dividida, e, em extrema agonia, ela chega mesmo
cia os poemas referidos e outros que poderíamos citar, nomea a interrogar-se se alguém não terá vencido Deus oa desviado
damente um muito breve que prolonga, inclusive a nível sin- os seus «caminhos»: «Senhor se da tua pura justiça / Nascem
ráctico, «Porque» e que, desta vez, tem explicitamente como t)s monstros que em minha roda eu vejo / E porque alguém
dedicatário Francisco Sousa Tavares («Porque nos outros há i, vc!v '11 nu desviou / Em não sei que penumbra os teus ca
sempre qualquer nojo / Que me gela e me afasta / E em ti há minhos // Foram talvez os anjos revoltados. / Muito tempo
sempre um pouco de mar largo / Que de olhos cegos atrás de aiiics tie eu ter vindo / Já se tinha a tua obra dividido // E em
ti me arrasta.»), exemplos de uma preocupação ética que pro v.io eii busco a tua face antiga / Es sempre um deus que nunca
gressivamente ganha uma dimensão política. lem um rosto // Por muito que eu te chame e te persiga.» Já
O que é igualmente o caso do díptico inspirado «nos |u i(O do fecho dolivro, porém, surge um poema que proclama
painéis que Júlio Resende desenhou para o Monumento, que ,1 lii cissid.idc de um Deus que dê um sentido à torturada e
devia ser construído em Sagres», e em cuja segunda parte es muiil.i<la íondição humana: «És Tu que estás à transparência
pecialmente não seria difícil ao leitor da época identificar nos il.is (id.idi s / Vê-se o Teu rosto para além dos bairros interdi-
«senhores sombrios desta noite / Onde se perde morre e se lo', II () mal palpável próximo insistente / Parece tornar-Te
desvia / A antiga linha clara e criadora / Do nosso rosto volta rviijcnic. // Sobe do destino uma sede de Ti. / Não somos só
do para o dia» aarbitrariedade de Salazar, a quem se atribui a isiit i|iir SC torce / Com as mãos cortadas aqui.» Quando-Se
não concretização do projecto «Mar Novo» do arquitecto João .i(mj'c o lim do volume, o conflito parece ter-se resolvido, e o
Andresen, irmão de Sophia, que alcançara o primeiro prêmio losKi (|( 1)cu,s, revelando-se-lhe nos elementos naturais, como

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que desfaz asua intranquila questionação: «Deus é no dia uma mar secou / Porque o destino apagou / O seu nome dos astros
palavra calma / Um sopro de amplidão e de lisura.» // Porque o seu caminho foi perdido / O seu triunfo vendido
Ao mesmo tempo, e num livro, não o esqueçamos, que a / Eele tem as mãos pesadas de desastres // E é em vão que ele
própria autora via como estando intimamente ligado ao ante SI- ergue entre os sinais / Buscando a luz da madrugada pura /
rior, adensa-se, em Mar Novo, um sentimento trágico da vida (lhamando pelo vento que há nos cais // Nenhum mar lavará
que se manifesta num mal-estar, numa negatividade que se 0 nojo do seu rosto / As imagens são eternas e precisas / Em
diz em termos como «desespero», «absurdo», «desencontro», vão chamará pelo vento / Que a direito corre pelas praias lisas
«náusea», «nojo», todos eles pondo em evidência que a poeta // Ele morrerá sem mar e sem navios / Sem rumo distante e
não permaneceu imune a um certo ar do tempo típico dos sem mastros esguios / Morrerá entre paredes cinzentas / Peda
fins dos anos 40 e dos anos 50 em Portugal e noutros países, ços de braços e restos de cabeças / Boiarão na penumbra de
muito marcado, como se sabe, pelas filosofias da existência. madrugadas lentas. // [...]».
Em nenhuma outra obra da autora, poderia mesmo dizer-se, é O desengano que domina o sujeito propicia a ligação de
tão pronunciada essa negatividade, tão intensamente se recor muitos dos poemas de Mar Novo a uma categoria genológi-
ta a presença da treva. E^ressões reiteradas como «em vão», ea como a elegia, em alguns casos, e dentro de um livro tão
«nunca mais» dão bem conta do desalento, da «desilusão» que (ocado, directa ou indirectamente, pela sombra da morte,
submerge osujeito, da dificuldade de manter viva a esperança, assumindo mesmo a feição de elegia fúnebre. Neste âmbi-
no meio do «vazio» e da «agonia». Por outro lado, a preposi i«c destaca-se um texto em que, surpreendentemente, se não
ção «sem», obsessivamente recorrente, ilustra, de modo inex- !rin notado iim nítido oro do famoso «Menino de sua mãe»
cedível, o quanto o mundo representado no livro é, em regra, de Pessoa. Nem faltam em «O soldado morto», o poema de
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um mundo ferido de despossessão, de privação, de perda, de que estamos a falar, para além, naturalmente, da circuns-
falha, longe da plenitude, da idéia de unidade que, no fundo, láncia de a personagem no centro da cena ser em ambos
a poesia de Sophia nunca debcou de perseguir. Melhor que os casos um soldado morto, a presença de termos comuns,
nenhum outro texto, de. Aíhr iVbyo-ilustra, um poema como como «céus», «cego», «brisa» e «perdido/perdidos»; «Os infi
«Marinheiro sem Mar» essa perda, essa separação irremediável nitos céus fitam seu rosto / Absoluto e cego / E a brisa agora
do «corpo da unidade», a entrega, afinai, ao «tempo dividido» beija a sua boca / Que nunca mais há-de beijar ninguém. //
e tudo o que ele possa significar. Nele se conta a história, de 1em as duas mãos côncavas ainda / De possessão, de impul
inequívoco cunho alegórico e de sombrias tonalidades apoca so, tle promessa. / Dos seus ombros desprende-se uma espera
lípticas, de um marinheiro que se afastou para sempre do seio / (^Lie dividida na tarde se dispersa. // E a luz, as horas, as
aconchegado do seu mundo matricial, e a que nenhuma nos Ioiilias / São como pranto em torno do seu rosto / Porque
talgia, por mais pungente que seja, o poderá jamais devolver: ele foi jogado e foi perdido /'^E no céu passam aves repenti
«[...] // Porque ele tem um navio mas sem mastros / Porque o nas.» O sentimento elegíaco faz, por sua vez, apelo, no thu-

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prrjT So(?H.A
Io de um curto poema da primeira parte do livro, ao cante borja (que mais tarde chegaria a ser o terceiro geral da Com-
jondo, o primitivo canto andaluz: «Numa noite sem lua o p.iiihia deJesus e que viria mesmo a ser canonizado no século
meu amor morreu / Homens sem nome levaram pela rua / XVII), de deixar o século, em resultado da contemplação do
Um corpo nu emorto que era omeu.» Lembre-se, apropó lorpo desfí^rado peía morte da jmperatriz à qual suposta
sito, que Federico Garcia Lorca, tido por Sophia como uma mente devotaria um amor preso ainda, na primeira metade
das suas grandes referências literárias, publicou um livro com (Io século XVI, aos ditames do amor cortês, corno deixam
o título Poema dei CanteJondo e dedicou estudos ao cante de ii.insparecer termos como «servir» e «Senor». Antes disso,
ff&r?- tão fimdo enraizamento na sua Andaluzia natal. Em Lorca, 11 .mscreva-se, para melhor elucidação, a passagem da Histo
Sophia era particularmente sensível ao que chamava as suas ria de Ia Vida y Hechos dei Emperador Carbs V, de Fray Pru-
«superimagens», e em que reconhecia a íorça sortílega de (leiicio de Sandoval citada por Graça Moura no seu ensaio:
«metáforas muito especiais», conforme declarou em entrevis «1 iizo tanto efecto esta vista en el marquês, que causó en él
ta a Eduardo Prado Coelho, em 1986. Muito da atmosfe una profunda imaginación [...] y viendo que era tal, deter-
ra que geram tais imagens e metáforas se pode encontrar no ininó servir a otro senory a otra Majestad que no perece».
enigmático texto de Mar Novo, no qual se pressente alguma É o^ Duque de Gandia que, no texto, assume a fala,
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familiaridade com os temas emotivos do cantejondo. lendo esta como destinatário a própria imperatriz, já morta.
O mais eloqüente exemplo de elegia fúnebre no livro de () monólogo da personagem é apresentado pela poeta como
1958 e, no entanto, «Meditação do Duque de Gandia sobre a lima «meditação», a qual é tradicionalmente um traço indis-
morte de Isabel de Portugal», poema que, ao mesmo tempo, iL/el do funcionamento da elegia. Trata-se, na cirrunstân-
se afirma como um dos mais altos momentos no exigentís- (i.i, de uma meditação específica, a meditatio mortis. Tudo
simo percurso de Sophia de Mello Breyner Andresen. Não '.e (cntra no efeito que a contemplação do corpo em decom-
M- está aqui em causa saber se corresponde à verdade ou se é do posição de Isabel de Portugal tem sobre o Duque, no abalo
domínio da lenda afamosa exclamação atribuída ao marquês

profundo que ele sofre e que o conduz a fazer a si próprio


de Lombay e futuro Duque de Gandia diante do cadáver em .1 promessa de dar um rumo diferente à sua vida, a decidir
decomposição da mulher de Carlos V, quando da sua tumu- (iIIlegar SC totalmente ao serviço de Deus, Senhor não sujeito
lação em Maio de 1539 em Granada: «Nunca mas, nunca .1 morte. É a consciência fulminante da sua própria finitude,
mas servir aSenor que se me pueda morir!» (cf. o importante (speibada na degradação do corpo de um ser que via como
estudo de Vasco Graça Moura, «Retratos de Isabel», Oceanos, a lip,inação de uma beleza perfeita, que o leva a uma decisão
n.° 3, Março de 1990). O que antes, agora, nos importa é i.to radical. A determinação irrevogável do Duque fica bem
encarar o poema como texto literário, independentemente p.iieiiie na expressão temporal que se repete no início de cada
do que haja ou não de verdade histórica em tudo oque terá lima das estrofes. A fala db personagern, por outro lado, ade-
rodeado a decisão de o marquês de Lombay, Francisco de ipi.i se perfeitamente à consciência da fragilidade e da brevi-

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dade da vida humana que éa de um homem marcado pelo tic pesadelo e horror como a das «duas mãos torcidas» que apa-
desengano próprio da sua época. Ao mesmo tempo, porém, letem «numa janela». É nessas duas mãos, em que reconhece
insinua-se, inevitavelmente, na fala do Duque, a linguagem mos uma sinédoque do inabalável desejo de vingança da Elec-
que e a da própria poeta que lhe dá vida, e que traz a marca ii.i mairicida que se centra a nossa atenção e que íàz dela uma
de um período histórico ferido de negatividade, tão sensível (i|',iir,i (|uc suscita em nós sentimentos contraditórios de repulsa
em dois termos de rara violência expressiva como «nojo» e 1 . om|iieensão. Sophia, por outro lado, não se furta, no trata-
«negação», num verso jáperto do fecho do poema. nieiiio do tema, à linguagem que é a do seu tempo, e alguns
Pjessegue em Mar Ãôyo.o-interesse, da poeta pelos temas dos lermos de que se socorre, como «traição», «náusea», «absur
clássicos, que, já vem dp livro de estreia e se manterá, como é do-, fr/cm parte do léxico preferencial de algumas correntes
sabido, até ao fim do seu percurso. Não por acaso certamen Isi .ieiR ialistas, gozando então de grande voga entre nós.
te, num livro de predominante atmosfera disfórica, os temas A descoberta de Rimbaud por Sophia ter-se-á dado na sua
tratados, de Electra e das Parcas, estão associados à morte. O jiiveiIlude, como podemos deduzir de uma carta dirigida à mãe
mito da irmã de Orestes, em que, aqui, nos fixamos, é, desde I in Maio de 1961, informando-a da morte de José Ribeira, seu
os gregos, um dos que, ao longo dos séculos, maior fortuna .Mnij',o dos tempos dos verões passados na praia da Granja. Este
teve em termos de tratamento literário. Em tempos moder n.i, jiintamente com Antônio Cálem, um dos amigos a quem
nos ganhou ele especial vigor, gozando compreensivelmen- li.i, (onlorme diz, «tudo o que escrevia», antes de ter publica
te da preferencia da literatura dramática, dado o destaque de do \( isos {vide catálogo da exposição na Biblioteca Nacional,
que já beneficiara junto dos grandes tragediógrafos helénicos. ' "pl.i i de Mello Breyner Andresen — uma Vida de Poe-
Atradição em que a «Electra» de Sophia se insere não é direc- i.i , org. de Paula Morão e Teresa Amado, 2011). Terá ele,
na modernidade, levaram o tema da filha iniiKo provavelmente, lido o poema «O Vidente», datado de
de Ãgamémnon e Clitmnestra aos palcos, um Hofmannsthal, Novrmbto de 1941, e que fazia parte dos chamados «Cader
um Eugene 0'Neill, um Giraudoux, um Sartre, um Gerhart nos Rasgados» que Cálem colou. O referido texto era, no ori-
Hauptmann, uma Yourcenar, m^ aplasticidadej:énica do seu iJn.il, tiediaido a Ruy Cinatti (cf. ibid), e teve a sua primeira
poema não deixa de pôr em evidência as suas fortèTmtuãli- piiblii .^.lo nas páginas da rcvv&td. Aventura (1942-1944), fun
dades dramáticas, ademais vindo de uma autora que, como se ila<l,i por este poeta, vindo a ser incluído no livro de estreia,
sabe, se interessou pela escrita teatral, quer anível criativo pro dr l')dd. Cinatti, que era um pouco mais velho que Sophia,
priamente dito, quer no domínio da recriação, literária-jque é a lonliruu-o ainda adolescente, como recordou numa palestra
tradução. O que mais impressiona no texto de Sophia é a sua piiilci ida cm 1964 na Universidade de Perugia. Fazia ela parte
^violência com que transmite opathm rrágim d( um g.iupo de gente muito nova, para quem Cinatti era «o
através da concretude de um verbo como escorrer e_ de signos poci.i míiico», uma espécie de «guru», alguém que lhes levava
como o «sangue» e as «lagrimas», e nos projecta em im^ens •priiiiib.içrio» e «assombro». É com emoção que Sophia evoca

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frrxr ô

as leituras que Cinatti fazia «ao sol eàbrisa» de poesias de Pes


soa ePound. Não sabemos ése terá sido este seu amigo, que O retrato de Rimbaud que emerge, por sua vez, do
via também como «o heraldo de toda amodernidade», ainiciá- IK icma «Semi-Rimbaud» de Mar Novo, remete, por um lado,
-la em Rimbaud, ele que, afinal, para otítulo do seu primeiro |nira o que no autor de Illuminations haverá de poeta maldi
livro, Nàs não somos ekste mundo, de 1941, viria precisamente to, apostado no «mal», que «Constrói [...] com gestos rigo-
aglosar palavras do autor de Une Saison en Enfer, eque, aseu losos» e, por outro lado, de instaurador de uma subversão
convite, em Dezembro desse mesmo ano, deu aJorge de Sena i.ulical que «sonha a inversão total das coisas», ou que, para
a oportunidade de fazer uma conferência, para a Juventude iiiilizarmos as palavras do próprio Rimbaud na carta de 15
Universitária Católica de Lisboa, sobre «Rimbaud ou oDogma M;ii() de 1871 a Paul Démeny, defende «um longo, imenso e
da Trindade Poética», que seria publicada, juntamente com U]',11 lado desregramento de todos os sentidos». Mais uma vez
«Ode aArthur Rimbaud», de Carlos Queiroz, no 2.° niimero .1 Iciiiira desta carta se revela de grande utilidade para chegar
Ò£. Aventura, em Agosto de 1942. mos a uma melhor compreensão davisão que Sophia tem do
Otítulo do poema vindo apúblico em Poesia dejxa claro poci.i francês, e do entendimento que ele próprio faz do poeta
que eram do conhecimento de Sophia as chamadas «Cartas ' iu|ii.im() vidente. Lembremos um passo famoso da carta. Aí
do Vidente», peça^ indispensável de toda a mitologia rim- dl/ Kimbaud, com uma radicalidade próxima da que carac-
baldiana. Otexto épercorrido pelo entusiasmo que àpoeta ini/.i os textos manifestários, que o anima «uma força sobre-
trazia aleitura de uma obra que lhe anunciava uma «pátria Imm.m.i. i|ue o faz tornar-se o maior de todos os doentes, o
nunca vista», ese lhe apresentava como «o sinal / De que as (•i.mdi uiminoso, o grande maldito — e o supremo sábio!
coisas sonhadas existiam», ü visionarismo de Rimbaud, as ' ! se Sophia o apresenta como um ser entregue
«imagens de oiro que ele vira» vinham bem ao encontro de III \li IO. e movido pela «Vontade de negar», não deixa, ao
uma poesia como a da primeira Sophia especialmente aten m. '.mo ii inpo, dc lhe dar um halo de rebeldia, de prometei-
ta ao que era a força transfiguradora «Interior à alma». Mas • I li|'iii.i tic "loiibador do fogo», e de acusador dos males do
já então, como o testemunha o final do poema, numa alu mui ido seiviiido-se, para o efeito, de inscrições parietais de
são à mudança dramática que se operou no destino de Rim (liou '.Io, ( iiiiiosamente, a este último respeito, Sophia lança
baud, para ela constituía motivo de fimdo questionamento e líi Io dl mn molivu rccuirente na poesia portuguesa de inter-
de angustiada inquietação aquebra que se dera no poeta; «E vnii,.io d.i i|iot ;i. (,^uase vinte anos depois, num poema incluí
ei-lo caído àbeira do caminho, / Ele —oque partira com do IIII {) Nome das Coisas, de 1977, Sophia voltará a Rim-
mais força, / Ele —oque panira pra mais longe. // Porque o li.nid, iludido logo no título, «Por delicadeza», e em que, em
ergueste assim como um sinal.^ / Pusemos tantos sonhos em lutio d* liomcn.igi-m, procura replicar o ritmo da «Chanson de
seu nome! / Como iremos além da encruzilhada / O-nde os Wjilm. Ii.mic lom», da qual, no fecho, traduz parte da estrofe
seus olhos de astro se quebrararn?» d» iil» iiiii.i ( de ivinatc: «Juventude ociosa / Por tudo iludida
i l'oi dl lii idc/.i / Perdi minha vida».

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prrjT SpfH( A

Sophia disse, numa alocação de 1975, que «a arte da nossa


época é uma arte fragmentária». Tal fragmentariedade ter-se-ia
tornado mais notória a partir de Cristo Cigano, de 1961, que
a própria poeta via como um ponto de viragem na sua obra.
Averdade, porém, é que podem encontrar-se já em Mar Novo
p sinais de uma mais transgressiva modernidade, que contraria
a imagem de expressão clássica que é geralmente associada à MAR NOVO
ri. Sophia dos prinaejrqs livros. Um dos mais conhecidos poemas
do livro de 1958, «Porque», pela sucessão de orações causais e
pela ausência de oração principal, manifesta já uma tendência
para a agramaticalidade e para a adopção de procedimentos
hostis à frase que se tornarão mais correntes na autora a par
tir dos anos 60. Assim como a utilização da técnica da monta
gem, tão freqüente mais tarde, é, de alguma forma, antecipada
no poema «Seqüência», que se apresenta como uma verdadeira
seqüência de imagens, dispostas segundo o princípio de uma
montagem aproximável da própria montagem cinematográ
fica, ao mesmo tempo que não deixa de evocar os inventários
tão do agrado dos surrealistas; «A sua face transpôs os tempo
rais / O vento azul rolou entre os seus braços // A penumbra
subiu e rodeou / O seu rosto aceso as suas mãos iguais // Dos
seus ombros nasceram as estátuas / E o gesto dos seus dedos /
Encantou os navios // Baloiça um enforcado na baía / Mãos
sem corpo levam castiçais // Uma coitina enrola-se na brisa /
Uma porta bate e de repente / Um corredor fica vazio.»

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Prrxr

MARINHEIRO SEM MAR Vai nos contínuos corredores


Onde os polvos da sombra o estrangulam
i j r
ir,-.. . Ml
E as luzes como peixes voadores S,
O alucinam.

Porque ele tem um navio mas sem mastros mm-. V.

Longe o marinheiro tem Porque o mar secou j C. i . '-M

Uma serena praia de mãos puras Porque o destino apagou f.,J 'J ' 1' ti.-- .

Mas perdido caminha nas obscuras O seu nome dos astros


Ruas da cidade sem piedade
Porque o seu caminho foi perdido
"^Todas as cidades são navios r,;.'''
O seu triunfo vendido
Carregados de cães uivando à lua E ele tem as mãos pesadas de desastres
1 •
Carregados de anões e mortos frios
E é em vão que ele se ergue entre os sinais
E ele vai baloiçando como um mastro Buscando a luz da madrugada pura
Aos seus ombros apoiam-se as esc|uinas
Chamando pelo vento que há nos cais
Vai sem aves nem ondas repentinas
Nenhum mar lavará o nojo do seu rosto
Somente sornbras nadam no seu rastro.
As imagens são eternas e precisas ,
Em vão chamará pelo vento
Nas confusas redes do seu pensamento Que a direito corre pelas praias lisas
Prendem-se obscuras medusas
Morta cai a noite com o vento
Ele morrerá sem mar e sem navios
Sem rumo distante e sem mastros esguios
E sobe por escadas escondidas Morrerá entre paredes cinzentas
E vira por ruas sem nome Pedaços de braços e restos de cabeças
V' «."1'
Pela própria escuridão conduzido Boiarão na penumbra das madrugadas lentas.
Com pupilas transparentes e de vidro

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