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A poesia da geração de 45

Deu-se o nome de “Geração de 45” a um grupo de poetas cujas obras tinham uma certa
similaridade de propósitos estéticos. Péricles Eugênio da Silva Ramos, um dos integrantes desse
grupo, assim sintetiza as principais características da poesia desse momento:

O que se pode talvez asseverar, em termos mais gerais, é que os poetas mais representativos
da geração consideram o poema e seus versos como um artefato, e não obra do puro lirismo. As
cogitações de expressão patenteiam-se em todos, seja qual for o rumo do seu lirismo; também o
conceito de forma varia entre eles, com a adoção ou não da metrificação tradicional. (...) É
óbvio, portanto, que os poetas mais representativos da geração de 45 são os individualizados por
expressão formalmente mais rigorosa, pelo fator estético, ou seja, de construção de seus poemas.
Em outras palavras: o que caracteriza a geração de 45, nos seus poetas mais representativos, é o
agudo senso de medida, a expressão sem exessos, sem derramamentos. Salientam-se entre eles
Bueno de Rivera, João Cabralçoi de Melo Neto, Domingos Carvalho da Silva, Geraldo Vidigal,
José Paulo Moreira da Fonseca, Geir Campos, Lêdo Ivo e poucos mais, inclusive alguns que
estrearam mais tarde, como Maria da Saudade Cortesão.
Merece atenção o fato de que alguns desses poetas levaram o virtuosismo formal a tal ponto,
que passaram a ser chamados de “neoparnasianos” -- o que sugere um retorno à poesia anterior à
geração de 22. Para os melhores poetas dessa geração, no entanto, essa denominação soa
exagerada e preconceituosa.
(RAMOS, 1986. pp. 198-9)

Abaixo transcrevemos alguns poemas significativos dessa tendência dentro da literatura


brasileira. Leia atentamente os poemas, dialogue com eles, procure captar seu espírito, sua
linguagem, sua beleza. O fórum do final desta aula será sobre eles.

Soneto do homem acordado

Eclipse em teu seio, o tempo estanca


os limites da noite, o céu se aclara
ante a vertigem que te fez mais branca
à luz da estrela que te viu mais rara.

Acordo-me infinito, e o sol nascente


repõe em mim o homem que antes era.
A minha solidão não mais se sente
egressa de uma estranha primavera.

Sem memória regresso, mas o dia


me entrega o sortilégio da paisagem
onde o meu ser, disperso, se exprimia.

E, ao despertar, curvado à tua imagem,


fitando o que és, não sendo, no abandono,
ouço o fluir da fonte de teu sono.

(IVO, 1974. p. 72)

Anotação à Poética
Cessa o teu empenho e sorri um pouco:
enquanto tentas construir teus objetos perfeitos
que desejam registrar a vida sem lanhos,
sem rugas, sem o menor defeito,
em torno de nós...

Cessa. Vê como sabem destruir.


Como é tão fácil. Cessa,
não te importes se um pouco de sangue respingar a obra,
não há cor mais densa do que o vermelho.

(FONSECA,1967. p. 437)

O engenheiro

A luz, o sol, o ar livre


envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;


o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos


ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro.)

A água, o vento, a claridade


de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.

(MELO NETO, 1994. pp. 69-70)

O poema

A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.

Que monstros existem


nadando no poço
negro e fecundo?

Que outros deslizam


largando o carvão
de seus ossos?

Como o ser vivo,


que é um verso,
um organismo

com sangue e sopro,


pode brotar
de germes mortos?

***
O papel nem sempre
é branco como
a primeira manhã.

É muitas vezes
o pardo e pobre
papel de embrulho;

é de outras vezes
de carta aérea,
leve de nuvem.

Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.

Como um ser vivo


pode brotar
de um chão mineral?

(MELO NETO, 1994. pp. 76-77)

Canto da Insubmissão

Eu que sou pedra e montanha, sangue e oeste,


negro poço do tempo e da memória,
mãos sujas no labor do subsolo,
apenas vos ofereço o choro vivo,
a revolta profunda e ignorada
dos homens solitários.

Somos os filhos do chão escuro, os frutos


sem planície e sem sol, os esquecidos
trabalhadores das minas tenebrosas.
Marinheiros do abismo
sem estrela e âncoras.
Caras de carvão, flores da treva, lírios
de luto brotando num jardim de turfas.

Homens duros e amargos, oriundos


de solidões calcáreas, escondemos
nosso protesto na ironia indócil,
não cortante como lâmina, pungente
como anedota de louco, confissões
de bêbado, música de cego.

É estranho esse modo de ferir, pedindo


desculpas. Amigos, perdoem-nos,
amigos, crede em nós, os homens tristes!
Sob a nossa máscara solene
existe um piedoso coração sangrando
por nós, por vós.

Um grito de mãe na tempestade, um morto


não identificado, uma janela
na noite do hospital, um pé descalço,
retirantes num carro de segunda,
um menino chorando numa esquina,
um homem fulminado numa praça,
a tecelã tossindo
sob a miséria coletiva, ou uma bandeira
no enterro do operário, tudo isso
nos comove, nos fere, nos afoga
em fundas cogitações e paralelos.

Um detalhe qualquer do drama humano,


da agonia milenária, prende
a nossa imaginação e acende o lume
de nossos poemas solidários.

No entanto, há céticos que aconselham: "Ingênuos,


por que esse apelo no deserto? Além
há poetas cantando a vida amena.
Fazei coro com eles. Os aplausos
coroarão os vossos ofertórios.
Dobrai a vossa espinha, erguei louvores
à farândula dos mitos!"

Impossível, embora
eu saiba que há rosas sob a lua,
plátanos dormindo na alameda intacta,
lotações de sereias, luminosas
vivendas na praia, entre piano e beijos,
autos deslizando como peixes no grande mar do tráfego,
e pernas oleosas, mãos de brinde
no espelho do champanhe, o baile, o sonho.
Impossível, pois sei também que existem
soluços e clamores,
lírios no charco, luta de afogados
contra as marés, o monopólio e a morte.
E isso me comove. Mais que o fogo
isso me ilumina e queima. Eu canto
a dor de meus irmãos, essa tragédia
do mundo desigual, da vida em pânico!

Eu que sou pedra e montanha, sangue e oeste,


negro poço do tempo e da memória,
só posso vos ditar, ao invés do leve
e inefável poema da alegria,
este canto sombrio, denso e amargo
como oceano de enigmas, doloroso
rio subterrâneo.

RIVERA, Bueno de.

Canto em Louvor da Poesia

Quero a poesia em essência


abrindo as asas incólumes.
Boêmia perdida ou tísica,
quero a poesia liberta,
viva ou morta, amo a poesia.

Poesia lançada ao vento


quero em todos os sentidos.
Despedida de forma e cor,
repudiada, incompreendida,
quero a poesia sem nome,
feita de dramas humanos.

Quero ouvir na sua voz


o canto dos oprimidos:
usinas estradas campos,
quero a palavra do povo
transfigurada num poema.

Que o meu canto sobrenade


ondas revoltas do mar
e alcance todos os portos
e beije todas as praias!
Quero a poesia sem pátria,
banida pobre extenuada,
a poesia dos proscritos,
negra ou branca, amo a poesia!

Quero a palavra fluente,


viva e inquieta como o sangue.
Pura ou impura eu reclamo
a poesia do momento,
filtrada exata constante

(SILVA , 1966. p. 35.)


Referências bibliográficas

FONSECA, José Paulo Moreira da. In: RAMOS, Péricles Eugênio da Silva (org. Seleção e notas).
Poesia moderna – antologia. São Paulo: Melhoramentos, 1967.
IVO, Lêdo. O sinal metafórico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. A literatura no Brasil. Era Modernista. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio/UFF, 1986.
SILVA, Domingos Carvalho da. In: CAMPOS, Milton de Godoy (org.). Antologia poética da
geração de 45. São Paulo: Clube da poesia, 1966.

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