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ALMEIDA GARRETT

DONA BRANCA
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DONA BRANCA

• O poema, apesar de começar por (falsamente?) claras juras estéticas,


põe em causa a dicotomia clássico/romântico, dicotomia que
poderemos discutir, menorizando o carácter absoluto que, por vezes,
somos levados a imprimir a textos iniciadores como é o caso de D.
Branca. Nas primeira e segunda estrofes do Canto I, o sujeito refere
abertamente o novo cânone que, ingenuamente, se oporia ao
anterior:
DONA BRANCA
II
I (…)
«Áureos numes de Ascreu, ficções Disse adeus às ficções do paganismo,
risonhas E cristão vate cristãos versos faço.
Da culta Grécia amável, crença linda
(…)
De Vénus bela, Vénus mãe de Amores
E ao levantar da névoa matutina
(…)
Te hão-de [meus versos] acordar para
Gentil religião, teu culto abjuro, contar-te a história
Tuas aras profanas renuncio: Dos bons tempos que foram. – Ouve,
Professei outra fé, sigo outro rito, escuta
E para novo altar meus hinos canto. O alaúde romântico,(…)
DONA BRANCA

• O próprio Garrett, no Prefácio do poema Camões, afirma, «Não sou clássico


nem romântico», sentindo a precaridade de uma distinção, que está longe de
poder ser tomada de forma maniqueísta. Alberto Ferreira, em Perspectiva do
Romantismo Português, alerta para o cuidado que se deve ter na análise
simplista e redutora: «Com efeito, há os que, sem abandonarem as posições
ideológicas e filosóficas das Luzes, têm uma nova maneira de sentir. Porém,
esta atitude geral, que provém sobretudo do domínio da sensibilidade
afetiva e moral, não serve para integrar a arte romântica nem justifica a
oposição frontal ao clássico. Não parece portanto viável aceitar sem crítica a
oposição tradicional para compreender e explicar a nova literatura que se
separa do classicismo.»
DONA BRANCA

• A estudiosa Ofélia Paiva Monteiro demonstra a dificuldade que


Garrett sentiu para se libertar dos modelos clássicos em que se tinha
educado, permanecendo com frequência uma espécie de
compromisso entre duas estéticas aparentemente tão irreconciliáveis.
E a verdade é que alguns anos depois da publicação de D. Branca o
autor continua a hesitar, mesmo que essa hesitação seja fruto de um
artifício ou de uma pretendida declaração estética: «D. Branca
oferece-nos também apontamentos curiosos da dificuldade que teve
Garrett em libertar-se dos moldes classicizantes em que o seu gosto
se formara.»
DONA BRANCA

• E assim não será de estranhar que em Lírica de João Mínimo advogue a


versatilidade, ou seja, a adequação máxima, salvaguardando a liberdade
individual: «Se faço um soneto ou um epigrama porque não hei-de tomar
Bocage por meu exemplar? (…) Se o meu assunto é clássico, se o talho e
adorno no género grego da arte antiga, se invoco sua elegante mitologia,
porque não hei-de ser eu clássico, porque não hei-de afinar a minha lira
pela dos sublimes cantores que tão estremados a tocaram? Mas se
escolho assunto moderno, nacional, que precisa um maravilhoso nacional,
moderno, se em vez da lira dos vates, tomo o alaúde do menestrel ou a
harpa do bardo, como posso então deixar de ser romântico!»
DONA BRANCA

• Vista a esta luz, D. Branca surge como uma espécie de arte poética,
onde se conjugam elementos clássicos (mesmo se abjurados) e
românticos, numa simbiose feliz. Já referimos, que logo no início, o
sujeito se coloca ostensivamente do lado da nova estética, usando
exteriormente os seus ditames. Ao longo da nossa análise, veremos
como a inclusão de certos tópicos (expiação, terror, anjo/demónio,
valor emblemático do diabo) se combinam com outros que remetem
indubitavelmente para uma não menos nítida reminiscência clássica,
como é o caso, por exemplo, de versos como
DONA BRANCA

• «Correi, lágrimas tristes, deslaçai-vos / Do coração, onde pesam


tenazes, / Dolorosos soluços»
• «No mar que Europa de África divide, / Entra, como a explorar o seio
às ondas, / O sáxeo promontório que de Sagres / Tem hoje nome.»
DONA BRANCA

• A par destas esparsas e involuntárias (?) marcas, outras encontramos


onde se nota a nítida intenção de mostrar a liberdade (aliás tão
própria do espírito romântico) do sujeito, que se conhece as novas
obrigatórias referências, se sente no direito de as pôr em causa: «As
alvas barbas / Do padre Ossian (Macpherson foi seu nome) / Tão
favorita do Alexandre corso, / Não me encantam a mim», ou de
distinguir claramente o espírito do Norte do do Sul:
DONA BRANCA

E em feições que revelam pouco d’alma,


(Que a alma nesses países regelados
Toda no coração, não vem às faces)
Expressasse, com arte monstruosa,
As paixões, cujo incêndio em nossos climas
É labareda que cintila, estala,
E em chama abrasadora aos céus se eleva,
Mas nas regiões do Norte é fogo lento,
Que amortercido à vista arde e consome,
Não chameja, não brilha, mas intenso,
Oculto lavra, e no íntimo devora…
DONA BRANCA

Curiosamente, esta aparente independência (de clássicos e românticos)


não funciona de forma convincente para qualquer leitor mais atento,
uma vez que, sempre que o sujeito abandona a auto-reflexividade e
evolui no enredo, se nota o nítido desejo de romper com os moldes
clássicos e a impossiblidade, frequentemente tácita, mas imperiosa, de
fugir de modo definitivo da formação académica recebida
DONA BRANCA

• Se nos debruçarmos sobre a natureza presente no poema, chegaremos a


uma interessante conclusão: a princesa e o seu séquito viajam no meio de
uma natureza vicejante (o típico locus amoenus), natureza que é
abruptamente cortada por um monte escalvado e funéreo (presságio do
locus horrendus futuro?): «Um só mais calvo, / Negro e todo de sólido
granito / Nesse animado quadro parecia /cena tão vivaz quase esqueleto /
De monte, e contraposta imagem fúnebre / Da morte, a tanto luxo e flor da
vida. / Como ataúde egípcio que entre os brindes / E prazer dos festins vem
travar gostos / Coa lembrança – terrível!- do futuro.». Os três últimos versos
antecipam a trama, indiciando os característicos tópicos românticos do
sofrimento e morte (ou loucura, seu correlato natural).
DONA BRANCA

• Grosso modo poderemos afirmar que D. Branca, apesar de enfermar


de uma ou outra característica clássica, visível sobretudo na estrutura
da frase, ou nos recursos estilísticos, como comparações, invocações
ou exclamações, poderá ser considerada, sem grande margem de
erro, como um inovador texto no panorama literário português, o que
explica, de certa forma, uma ou outra reação menos favorável.
DONA BRANCA

• Recriando à primeira vista um facto histórico, o da conquista do Algarve e o


da existência de D. Branca, filha de D. Afonso III, e de história pessoal
duvidosa, Garrett reconstrói um novo enredo, abandonando o verdadeiro,
para se ficar no verosímil, tal como diretamente afirma no prólogo à segunda
edição, de 1848: «Não falo de certas acusações caluniosas e brutais com que
a mesquinhez de um ou outro sabichão de meia tigela quis aspergir de
imoralidade o meu inocentíssimo romance; tão recatado, o pobre, que até da
infanta D. Branca – uma das mais despejadas “leoas” do seu tempo – fez a
donzela tímida e sem malícia que aí pintei, mentindo bem descaradamente à
história. E os tartufos invocaram a história para acusar o poeta de não
respeitar a fama da senhora infanta!».
DONA BRANCA

• Esta advertência do autor está na linha de toda a polémica sobre o


verdadeiro e o verosímil, presente no romance histórico do século
XIX, de que D. Branca é talvez um prenúncio como o foram alguns
poemas de cariz histórico de Byron ou Walter Scott. Não admira, pois,
que em alguns autores haja a preocupação de estabelecer o que é ou
não histórico no poema, ignorando-se a sua verdadeira riqueza.
Falamos de Teófilo Braga ou de Fidelino de Figueiredo, cuja
preocupação principal parece ser a de estabelecer a veracidade
histórica e discutir o modo como Garrett narrou melhor ou pior a
conquista do Algarve.
DONA BRANCA

• Alexandre Herculano já se mostra muito mais sensível, como aliás


seria de esperar, afirmando que «D. Branca é o ideal da Idade Média
portuguesa convertido em tipo poético». Não devemos esquecer que
Herculano, nos seus romances históricos, e até em Lendas e
Narrativas, não se coíbe de dizer que inventou quando os
documentos não eram suficientes ou quando o quadro recriado
oferecia mais potencialidades poéticas.
DONA BRANCA

• D. Branca apresenta-se assim como um poema evocativo do passado


medieval português, onde se confrontam amores impossíveis, porque
entre dois seres de crenças e origens diversas. Como lembra Júlio
Taborda Azevedo Nogueira, a inclusão do elemento árabe constitui
um dos temas mais fecundos deste tipo de produção poética.

• Cf. Chateaubriand, Le Dernier Abencerage


DONA BRANCA

• Não devemos, porém, confundir, atribuindo a um poema as


características específicas do romance histórico, tal como o definiu e
praticou Walter Scott e tal como Herculano o teorizou e introduziu.
Num romance há elementos próprios, que não se coadunam com
outro género, mesmo se este se vale de um ou outro atributo
semelhante. Como parecerá evidente, a preocupação com grandes
movimentos de massas ou o relato de grandes momentos
impulsionadores do devir histórico, terão forçosamente de estar
ausentes de um poema de dimensões mais reduzidas e,
indubitavelmente, com outros propósitos estéticos.
DONA BRANCA
• Tentativas incipientes de cor local - referência a meros atavios que
fazem lembrar alguns romances populares, nomeadamente os
coligidos no Romanceiro:
• Ao descrever D.Nuno, cavaleiro português esforçado, o sujeito
demora-se em pormenores que sugerem a época e o lugar evocados:
«De suas ricas armas cinzeladas / Vinha armado Dom Nuno: por de
cima / Da malha sobreveste de oiro e seda / Orlada com franjões de
fina prata, / Passamanes do mesmo, e sobre o peito / Bordada a Cruz
azul, insígnia antiga / Do reino, e embaixador que o representa, /
Segundo usança é.»
DONA BRANCA
• Apostado em recriar, pelo menos idealmente, o que se considerava à
época um ambiente medieval, ainda imbuído do espírito do romance
gótico, que tanta fortuna teve no pré-romantismo anglo-saxão,
Garrett emprega todos os ingredientes que supostamente
concorreriam para a determinação dessa falaz cor local, e que
aproxima decisivamente D. Branca da estrutura do conto ou romance
popular. Começando pelo uso do sobrenatural e do macabro,
imediatamente nos daremos conta da quantidade de elementos que
percorrem o poema e que constituem, por assim dizer, a sua estrutura
fundamental.
DONA BRANCA
• Os amores entre Branca e o mouro Aben-Afan, além de à partida
serem marcados pela impossibilidade decorrente da diferença de
crença, estão também irremediavelmente associados ao mágico e ao
simbólico. A dissemelhança religiosa agudiza-se quando sabemos que
a mãe de Aben-Afan se convertera ao cristianismo, por influência de
um tal Frei Hugo, e que sua irmã Oriana é cristã e, por isso, banida.
DONA BRANCA
• Ligados um ao outro por poderes sobrenaturais, Branca e Aben-Afan
esquecem momentaneamente as suas diferenças, embora ela se
ponha sempre o problema religioso, ansiando por uma conversão do
amado, tanto mais impossível quanto ele jurara ódio eterno aos
cristãos, por causa da mãe e irmã: «Jurei…Como cumpri meu
juramento! / Guerra eterna, ódio eterno aos do Evangelho / Que tudo
me roubavam.»
DONA BRANCA
• Esta diferença invencível fundamenta o enredo que se processa no âmbito
de uma estrutura narrativa própria do conto popular. Aben-Afan penetra
num palácio encantado onde permanece sete dias e sete noites (e não
devemos esquecer a simbologia do número sete, tão característica deste
tipo de textos).
• A fada Alina, figura tutelar do palácio encantado, oferece-lhe dois ramos, de
loiro e de murta. Conforme o ramo que florescer, assim a sua fortuna no
poder ou no amor. Inebriado com uma donzela que vira em sonhos, Aben-
Afan depois de a arrebatar leva-a para esse lugar encantado que tem o
seguinte letreiro no pórtico: «AO REI SEM REINO / À ESPOSA SEM
MARIDO / ABEN-AFAN! AQUI JAZ O TEU FADO: / PENSA! PENSA OUTRA VEZ
ANTES DE ENTRARES»
DONA BRANCA
• Mediante tão claro aviso, o mouro não hesita: «perca-se tudo…/ Oh!
tudo, tudo…e seja Branca minha!». Aceitando deixar murchar o loiro,
o jovem sarraceno vive afastado dos problemas do mundo, até que
Frei Gil, incumbido pelo rei de quebrar o feitiço, e numa cena digna
de qualquer romance gótico, interpela o esqueleto de um antigo rei
mouro, dizendo-lhe que depende dele Aben-Afan morrer ou levar
uma vida de ócio e de vergonha. É evidente que a opção do
antepassado só pode ser uma, a de salvar a honra da sua raça. Frei
Gil, espécie de bruxo, dá-lhe então a senha, ou seja, ensina-lhe a
forma de vencer os feitiços:
DONA BRANCA
«”Se desejais salvá-lo, vem e segue-me.
Grifo alado acharás no Vale-de-Morte;
Sobre ele montarás: voá-lo deixa.
No átrio pousará de uns belos paços.
Bate à porta três vezes quatro…O resto
Lá saberás.”
“Irei. Porém se a Lua
Clara é no céu, não posso: não consente
Sombra de mortos o clarão da Lua.”
“Parte: cobrir-lhe-ei com esconjuros
A face, e a esconderei.”
A lento passo
O esqueleto caminha; andando, os ossos
Se lhe deslocam e medonhos rangem.»
DONA BRANCA
• Apesar de Ofélia Paiva Monteiro considerar que o clima macabro não
é dos mais conseguidos («Formado na sagesse cristã e racionalista,
jamais Garrett conseguiu dar-lhes um pouco de verdade poética: o
esoterismo fantasmagórico ou satânico, tão do gosto de um Byron ou
de um Nodier, não era decididamente clave propícia para a sua
inspiração.»), o certo é que esta intromissão do esqueleto vem na
linha da tradição do romance gótico e faz lembrar passagens de The
Castle of Otranto (1764) de Horace Walpole, onde figura idêntica se
intromete na vida das personagens
DONA BRANCA
• De igual modo, a presença obsessiva do diabo e seus associados (Frei
Gil, Frei Soeiro) transporta a diegese para essa ambiência de mistério
e terror, geralmente associada à Idade Média e seus convencionais
tópicos, aproveitados pelo Romantismo. Em Dona Branca, o diabo faz
mexer muitos dos cordelinhos da intriga, instaurando a sequência dos
acontecimentos, nas duas histórias que se interpenetram, a de Branca
e a de Oriana, duas figuras femininas que terminam juntas, e num
convento.
DONA BRANCA
• A insistência na figura do diabo, que vem prioritariamente da tradição
de romances como The Monk (1796) de Mathew Lewis e outros, e
que Garrett ainda aproveitará em Viagens na Minha Terra, no
episódio referente a S. Frei Gil, o mesmo do presente texto, poderá
também relacionar-se com a imagem contrapontística do anjo (ou da
mulher-anjo, aliás tão romântica) ou com o tópico da expiação, não
menos característica desta estética.
DONA BRANCA
• Branca e Oriana têm várias das facetas da mulher-anjo, aliadas ao
sofrimento que muitas vezes lhes é inerente. A insistência recorrente
na beleza da primeira («Branca, a formosa, / A linda Branca, sangue
real de Afonso, / Tão bela, tão gentil, fez de suas graças, / De seus
encantos sacrifício às aras.») tem uma dupla função: por um lado,
insiste-se na sua juventude e na candura realçada por uma inocente
beleza (em sonhos, Aben-Afan vê-a rodeada de anjos), por outro, ela
contrasta com a figura obscura e tirânica do convento, identificada
com a dos haréns muçulmanos:
DONA BRANCA
• «- Culpas Europa, o muçulmano bárbaro? / E os teus cárceres negros e
traidores, / Onde à inocência cândida, à piedade / Arma pérfido bonzo
o laço astuto, / Laço, que, eterno, a vida, os gozos dela, / A ventura, o
prazer de um nó separa?»
• A mulher-anjo, seja ela Branca ou Oriana, é vítima da sua candura e
acaba por expiar um crime, cuja culpabilidade é discutível. Levada para
um convento, sem possibilidade de opção, a filha de D. Afonso III é
também induzida, e por artes mágicas, a um amor perigoso,
pecaminoso e impossível, que terminará tragicamente com a loucura e,
mais uma vez e também, com o convento (simulacro de prisão?) que
servirá de asilo, a quem expia uma falta (in)voluntária e (in)contornável;
DONA BRANCA
• Oriana, convertida ao cristianismo, por vontade da mãe, expia
também, e do ponto de vista muçulmano, um crime, crime que só
com grande dificuldade poderia evitar. Vai com a amada do irmão para
o convento, servindo de falso duplo («Única a vista dela [Oriana] a dor
acalma / A aflita Branca: seu formoso gesto / Muda, queda contempla
horas inteiras, / E, uma por uma, nas feições lhe colhe / O parecer
daquele que inda adora. / Mas ah! Consolo mísero e mesquinho! /
Pouco e pouco se esvai o doce engano, / E a verdade fatal volve mais
crua.»). Oriana é talvez ainda mais anjo do que Branca, pois que não
há em toda a sua atuação a mínima mácula, acabando por se
contentar com a tentativa de diminuir o sofrimento alheio.
DONA BRANCA
• Com mais razão se desenha o tópico da expiação em Frei Hugo ou no
próprio rei. O primeiro, tornando-se eremita, depois de ter convertido
(e seduzido?) a mãe de Aben-Afan e Oriana, situa-se na linha
característica da remissão romântica; D. Afonso III, pena, com o
desgosto dos sucessos da filha, os seus dois maiores crimes – o
repúdio da primeira mulher, D. Matilde, e a deposição do irmão D.
Sancho:
DONA BRANCA
• «O que vai por essa alma, ó rei?…Memórias / De Bolonha serão?
Lágrima a lágrima, / Estás sentindo as da infeliz Matilde / No coração
traidor cair-te agora? / Se do vendido tálamo…vendido! / Porque o
vendeste, rei; não foi cegueira / Perdoável de amor, senão cobiça, /
Fria crueza de ambição a tua…/ Se do vendido tálamo as saudades /
Vingadoras talvez vêm perseguir-te? / Ou se – que é rico de remorsos
e amplo / O teu quinhão de rei – se outro remorso / Te estará
solevando a laje negra / Que em Toledo a outro rei…teu irmão era! /
Deu estranha piedade por esmola? / Ai Afonso! E perdeste a filha, e
choras / E acusas os Céus! Os teus são crimes / Que a divina justiça
não espera / Para os vingar depois na eterna vida.»
DONA BRANCA
• Aproximando-se mais da estrutura do conto popular, estão os
símbolos e os sonhos que percorrem o texto e que condicionam o
devir da intriga e até o tipo de personagens em jogo. Já aludimos ao
sonho do jovem mouro, sonho onde vislumbra Branca pela primeira
vez, depois de ter entrevisto um locus horrendus, na aceção mais
rigorosa do termo. A donzela surge assim como pré-destinada,
confinada a um futuro traçado por poderes superiores aos seus.
DONA BRANCA
• A figura do cavaleiro negro, que mascara a primeira aparição de Aben-
Afan, insere-se na tradição do simulacro (com correlativos
aparentados em outros textos de diversos autores), tão cara ao
imaginário romântico e tão rica de potencialidades imaginativas. O
mistério que envolve indicia o ambiente maravilhoso em que
decorrerão os amores dos dois jovens.
DONA BRANCA
• Atraído pela fada Alina, Aben-Afan penetra no mundo encantado, do
qual só sairá para a morte. Os leões que guardam a entrada, símbolos do
poder e da soberania, e que só ao jovem permitem o ingresso, têm como
correlatos o loiro e a murta, definitivamente inconciliáveis. Esta
obrigatoriedade de escolha precipita o trágico final, simbolicamente
marcado pela noite de S. João e pela tradicional meia-noite. Curiosa e
propositadamente, a opção sobre esta data funciona a vários níveis:
relacionada de um modo geral com os amantes, como sendo propícia ao
sexo, é maior o impacto criado pelo abandono e pelo triste desenlace; os
presságios de Branca são também mais intensos, porque uma noite
especial aumenta apreensões, numa espécie de reação a contrario, cujo
poder significativo se revela mais eficaz.
DONA BRANCA
• Ainda na linha do romance popular se situa um certo tom épico, que
instaura uma heroicidade primária, porque exagerada e absoluta. Os
cavaleiros portugueses são dotados de coragem e perícia
inultrapassáveis, e os próprios termos usados dão conta do teor
glorificador do discurso, sempre que se refere a feitos de armas: «As
espadas, terror do mauro Algarve» ; «Mas o intrépido Nuno a um lado
e outro / Fere, estrue, defende-se e derruba / Inerme e só ao
ismaelita armado.»
DONA BRANCA
• Antes de terminar esta breve análise, gostaríamos ainda de fazer referência aos
comentários do sujeito poético, muitas das vezes imbuídos de ironia,
nomeadamente quando se parodiam outros textos, e aos recursos estilísticos
mais frequentes, que conferem ao discurso características muito próprias. Os
comentários do sujeito surgem nos mais variados momentos, criando a
distanciação necessária no leitor, que automaticamente relativiza o que acaba
de ler; depois de expor a diferença que opunha beneditinos a bernardos, o
narrador escreve: «Porém naqueles tempos de fé viva, / Em que ao mais leve
incrédulo respiro / Tremenda excomunhão tapava a boca, / E em caso de mais
polpa um bom milagre…/ - Tempo santo, que nós não mais veremos; / Maldita
seja a ruim filosofia! - »; tentando mostrar a inocência do seu canto, exclama:
«Simples é meu canto, meu contar singelo, / Dar-me-ão as mamãs a ler às
filhas.»
DONA BRANCA
• Marcando ostensivamente a sua presença, o sujeito intromete-se,
parecendo comungar dos pontos de vista das personagens: «Trazei,
filhos de Bento, as suculentas, / Largas postas do nítido cevado; /
Correi devotamente ao dormitório, / E em grosso pingue do toucinho
gordo / Me afogai os escrúpulos bernardos.»
• A mudança de registo, situando-se o discurso em dois níveis
diferentes, contribui também para intensificar a marca irónica: «E no
tempo em que fadas e feitiços / (Antes que a inquisição queimasse as
bruxas) / Imperavam na terra»
DONA BRANCA
• Intimamente ligada com este recurso estilístico está a paródia, que
pressupõe sempre um hipotexto e cujo conhecimento prévio do leitor
é fundamental para que o artifício surta efeito. A definição de paródia
implica sempre um novo sentido que é dado a um texto preexistente
e baseia-se num processo de metaficção, uma vez que há
inevitavelmente uma auto-mimese textual. Só reconhecendo o
cânone a que o texto alude, pode o leitor detetar o abuso irónico que
dele é feito.
DONA BRANCA
• Em Dona Branca há fundamentalmente dois casos parodísticos, cujos
hipotextos são o Cântico dos Cânticos e a Ars Poetica de Horácio.
• O texto bíblico subjaz a duas passagens do poema, embora
rigorosamente não seja citado em nenhuma.
• Em relação à paráfrase de Horácio, Garrett utiliza os primeiros versos
da Ars Poetica. Horácio postula que a arte deverá ter o seu corolário
na natureza
DONA BRANCA
• Na passagem de Garrett encontramos teorização semelhante,
aplicada à problemática levantada por um seguidismo exagerado de
escola: «A este meu quadro [que explora as diferenças entre o Norte
e Sul da Europa], credite Pisones / Semelha a parte máxima dos
quadros / Que assoalham por i trovistas-mores / Nessa feira da ladra
de consoantes, / Que não encaixam cavalar pescoço / Em humana
cabeça, mas caveira / Burrical orelhuda em corpo de homem.»
DONA BRANCA
• Por último, não gostaríamos de deixar passar em claro a importância
de certos adjetivos («português cioso», «Tão belo pagem / A senhora
tão moça», «Leda caminha a nobre comitiva», «memórias tristes» ou
«linda Branca») que se destinam a realçar defeitos ou qualidades das
personagens ou seus atributos e que têm sempre valor indicial ou
confirmativo.
• De igual modo, as interrogações e exclamações, frequentes ao longo
do poema, concorrem para a intensificação da ironia e,
simultaneamente para convocar o leitor, obrigando-o a participar do
enredo:
DONA BRANCA
• «Porém, como os escrúpulos cessaram / Do rígido Soeiro?»; «Oh
formosura! Oh doce encanto de olhos, / Enlevo d’alma, para que no
mundo / Te debuxou a mão da Natureza? / Que vieste fazer do Céu à
Terra / Ornato de anjos, divinal revérbero / Da face do Criador?»; ou
fingindo uma assumida ignorância - «Mas que falange é essa de
guerreiros / Que vão, longe do mar, nos corcéis férvidos / Correndo à
brida solta?»

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