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Manuel Bandeira

(1886-1968)
Vou-me embora pra
Vou-me embora pra Pasárgada Pasárgada Em Pasárgada tem tudo
Lá sou amigo do rei É outra civilização
Lá tenho a mulher que eu quero Tem um processo seguro
E como farei ginástica
Na cama que escolherei De impedir a concepção
Andarei de bicicleta
Vou-me embora pra Pasárgada Montarei em burro brabo Tem telefone automático
Subirei no pau-de-sebo Tem alcalóide à vontade
Tomarei banhos de mar!
Vou-me embora pro Pasárgada Tem prostitutas bonitas
E quando estiver cansado
Aqui eu não sou feliz Deito na beira do rio Para a gente namorar
Lá a existência é uma aventura Mando chamar a mãe-d'água
De tal modo inconsequente Pra me contar as histórias E quando eu estiver mais triste
Que no tempo de eu menino
Que Joana a louca de Espanha Rosa vinha me contar Mas triste de não ter jeito
Rainha e falsa demente Vou-me embora pra Pasárgada Quando de noite me der
Vem a ser contraparente Vontade de me matar
Da nora que nunca tive -Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável), Vocabulário:
Consoada: 1) pequena refeição
Talvez eu tenha medo. noturna, em dia de jejum; 2) ceia da
noite de Natal; 3) já em desuso em
Talvez sorria, ou diga: Portugal: presente no dia do Natal.
Caroável: meiga, afetuosa,
– Alô, iniludível! carinhosa.
O meu dia foi bom, pode a noite descer. Iniludível: que não deixa dúvida;
que não se pode iludir.
(A noite com os seus sortilégios.) Sortilégios: maquinação, trama.
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente Momento num café
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado


Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

(BANDEIRA, Manuel. Antologia poética (Estrela da manhã).


12. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 98-99)
Poema do beco

Que importa a paisagem, a


Glória, a baía, a linha do
horizonte?

– O que eu vejo é o beco.


Profundamente Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Quando ontem adormeci Cortava o silêncio
Na noite de São João Como um túnel.
Havia alegria e rumor Onde estavam os que há pouco
Estrondos de bombas luzes de Bengala Dançavam
Vozes, cantigas e risos Cantavam
Ao pé das fogueiras acesas. E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos — Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Apenas balões
Dormindo
Passavam, errantes
Profundamente.
*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci — Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Dormindo
Minha avó Profundamente.
Meu avô
(BANDEIRA, Manuel. Antologia poética
Totônio Rodrigues (Libertinagem). 12. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001, p. 81-82)
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

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