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Poemas dos Principais autores da 2ª Fase do Queria era estar debaixo do fogão.

Modernismo Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (Recife, 19 — O meu porquinho-da-índia foi minha primeira
de abril de 1886 — Rio de Janeiro, 13 de outubro de namorada.
1968)
Arte de Amar
Vou-me Embora pra Pasárgada
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua
Vou-me embora pra Pasárgada alma.
Lá sou amigo do rei A alma é que estraga o amor.
Lá tenho a mulher que eu quero Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Na cama que escolherei Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
Vou-me embora pra Pasárgada As almas são incomunicáveis.
Vou-me embora pra Pasárgada Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Aqui eu não sou feliz Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente Desencanto
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente Eu faço versos como quem chora
Vem a ser contraparente De desalento… de desencanto…
Da nora que nunca tive Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
E como farei ginástica Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Andarei de bicicleta Tristeza esparsa… remorso vão…
Montarei em burro brabo Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Subirei no pau-de-sebo Cai, gota a gota, do coração.
Tomarei banhos de mar! E nestes versos de angústia rouca,
E quando estiver cansado Assim dos lábios a vida corre,
Deito na beira do rio Deixando um acre sabor na boca.
Mando chamar a mãe-d’água – Eu faço versos como quem morre.
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino O bicho
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Em Pasárgada tem tudo Catando comida entre os detritos.
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção Quando achava alguma coisa,
Tem telefone automático Não examinava nem cheirava:
Tem alcaloide à vontade Engolia com voracidade.
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar O bicho não era um cão,
Não era um gato,
E quando eu estiver mais triste Não era um rato.
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar O bicho, meu Deus, era um homem.
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero Poema do beco
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada. Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do
horizonte?
Porquinho-da-Índia — O que eu vejo é o beco

Quando eu tinha seis anos


Ganhei um porquinho-da-índia. Irene no céu
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Irene preta
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos Irene boa
Ele não gostava: Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu: ao contrário das máquinas burguesas
— Licença, meu branco! salvar o teu proprietário.
E São Pedro bonachão:
Essa negra fulô
— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Ora, se deu que chegou
Poema tirado de uma notícia de jornal
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
João Gostoso era carregador de feira livre e morava
uma negra bonitinha,
no morro da Babilônia num barracão sem número
chamada negra Fulô.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Essa negra Fulô!
Cantou
Essa negra Fulô!
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu
Ó Fulô! Ó Fulô!
afogado.
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
Jorge de Lima - (União dos Palmares, 23 de abril
vem ajudar a tirar
de 1893 — Rio de Janeiro, 15 de novembro de a minha roupa, Fulô!
1953)
Essa negra Fulô!
O grande desastre aéreo de ontem
Essa negrinha Fulô!
Para Cândido Portinari ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!
Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor
para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em Essa negra Fulô!
que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com Essa negra Fulô!
sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e
pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Ó Fulô! Ó Fulô!
Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande (Era a fala da Sinhá)
Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de vem me ajudar, ó Fulô,
sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos vem abanar o meu corpo
poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu que eu estou suada, Fulô!
último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vem coçar minha coceira,
vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, vem me catar cafuné,
como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada vem balançar minha rede,
ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o vem me contar uma história,
paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de que eu estou com sono, Fulô!
lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino Essa negra Fulô!
que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados
pelos pobres mortos. Presumo que a moça "Era um dia uma princesa
adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão que vivia num castelo
tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com que possuía um vestido
extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com os peixinhos do mar.
com as pernas do vento. Chove sangue sobre as
Entrou na perna dum pato
nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam
que é o arrebol. saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
Mulher proletária que vos contasse mais cinco".

Mulher proletária — única fábrica Essa negra Fulô!


que o operário tem, (fabrica filhos)
Essa negra Fulô!
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus, Ó Fulô! Ó Fulô!
forneces braços para o senhor burguês. Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
Mulher proletária, "minha mãe me penteou
o operário, teu proprietário minha madrasta me enterrou
há de ver, há de ver:
pelos figos da figueira
a tua produção,
a tua superprodução, que o Sabiá beliscou".
Essa negra Fulô! Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Essa negra Fulô! Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Ó Fulô! Ó Fulô! Deus de onde tudo deriva
(Era a fala da Sinhá E a circulação e o movimento infinito.
Chamando a negra Fulô!)
Cadê meu frasco de cheiro Ainda não estamos habituados com o mundo
Que teu Sinhô me mandou? Nascer é muito comprido.
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou! Cantiga de Malazarte

Essa negra Fulô! Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
Essa negra Fulô! ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
O Sinhô foi ver a negra todas as coisas se gravam pra sempre na minha
levar couro do feitor. cachola.
A negra tirou a roupa, Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos
O Sinhô disse: Fulô! movimentos,
(A vista se escureceu destelho as casas penduradas na terra,
que nem a negra Fulô). tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
Essa negra Fulô! a rua estala com os meus passos,
Essa negra Fulô! e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado
Ó Fulô! Ó Fulô! vencido,
Cadê meu lenço de rendas, não posso amar ninguém porque sou o amor,
Cadê meu cinto, meu broche, tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
Cadê o meu terço de ouro e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
que teu Sinhô me mandou? e que bole em todas as almas que encontra.
Ah! foi você que roubou! Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Ah! foi você que roubou! Nada me fixa nos caminhos do mundo.

Essa negra Fulô! Pré-história


Essa negra Fulô!
Mamãe vestida de rendas
O Sinhô foi açoitar Tocava piano no caos.
sozinho a negra Fulô. Uma noite abriu as asas
A negra tirou a saia Cansada de tanto som,
e tirou o cabeção, Equilibrou-se no azul,
de dentro dêle pulou De tonta não mais olhou
nuinha a negra Fulô. Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.
Essa negra Fulô!
Canção do exílio
Essa negra Fulô!
Minha terra tem macieiras da Califórnia
Ó Fulô! Ó Fulô! onde cantam gaturamos de Veneza.
Cadê, cadê teu Sinhô Os poetas da minha terra
que Nosso Senhor me mandou? são pretos que vivem em torres de ametista,
Ah! Foi você que roubou, os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
foi você, negra fulô?
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Essa negra Fulô! Os sururus em família têm por testemunha a
Gioconda.
Murilo Monteiro Mendes (Juiz de Fora, 13 de maio de Eu morro sufocado
1901 — Lisboa, 13 de agosto de 1975) em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
Reflexão n°.1 nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia. ao longe, o vento vai falando de mim.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade E por perder-me é que vão me lembrando,
e ouvir um sabiá com certidão de idade! por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Rio de Retrato


Janeiro, 7 de novembro de 1901 – Rio de Janeiro, 9
de novembro de 1964) Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
Motivo nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa. Eu não tinha estas mãos sem força,
Não sou alegre nem sou triste: tão paradas e frias e mortas;
sou poeta. eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento. Eu não dei por esta mudança,
Atravesso noites e dias tão simples, tão certa, tão fácil:
no vento. — Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço, Ou isto ou aquilo
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo. Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada. Ou se calça a luva e não se põe o anel,
E um dia sei que estarei mudo: ou se põe o anel e não se calça a luva!
— mais nada.
Quem sobe nos ares não fica no chão,
Canção quem fica no chão não sobe nos ares.

Pus o meu sonho num navio É uma grande pena que não se possa
e o navio em cima do mar; estar ao mesmo tempo em dois lugares!
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas, Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo . . .
e a cor que escorre de meus dedos e vivo escolhendo o dia inteiro!
colore as areias desertas.
Não sei se brinco, não sei se estudo,
O vento vem vindo de longe, se saio correndo ou fico tranqüilo.
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo Mas não consegui entender ainda
meu sonho, dentro de um navio... qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Chorarei quanto for preciso, Herança


para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo Eu vim de infinitos caminhos,
e o meu sonho desapareça. e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.
Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas, Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
meus olhos secos como pedras essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
e as minhas duas mãos quebradas. porque vinha de um coração?
4o. Motivo da rosa E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
do pranto que caiu dos meus olhos passados,
Não te aflijas com a pétala que voa: que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?
também é ser, deixar de ser assim.
Vinicius de Moraes, nascido Marcus Vinicius de
Rosas verá, só de cinzas franzida, Moraes (Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1913 — Rio
mortas, intactas pelo teu jardim. de Janeiro, 9 de julho de 1980)

Eu deixo aroma até nos meus espinhos Soneto de Fidelidade


De tudo ao meu amor serei atento E das bocas unidas fez-se a espuma
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento. De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
Quero vivê-lo em cada vão momento E da paixão fez-se o pressentimento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto E do momento imóvel fez-se o drama.
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E assim, quando mais tarde me procure E de sozinho o que se fez contente.
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
Eu possa me dizer do amor (que tive): De repente, não mais que de repente.
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Ternura
A Rosa de Hiroxima Eu te peço perdão por te amar de repente
Pensem nas crianças Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus
Mudas telepáticas ouvidos
Pensem nas meninas Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Cegas inexatas Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Pensem nas mulheres Das noites que vivi acalentado
Rotas alteradas Pela graça indizível dos teus passos eternamente
Pensem nas feridas
fugindo
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
Da rosa da rosa E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Da rosa de Hiroxima Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação
A rosa hereditária das promessas
A rosa radioativa Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
Estúpida e inválida. É um sossego, uma unção, um transbordamento de
A rosa com cirrose
carícias
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
Sem rosa sem nada. E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem
fatalidade o olhar extático da aurora.
Soneto do Amor Total
Poema dos olhos da amada
Amo-te tanto, meu amor… não cante
O humano coração com mais verdade…
Amo-te como amigo e como amante Ó minha amada
Numa sempre diversa realidade Que olhos os teus
São cais noturnos
Cheios de adeus
Amo-te afim, de um calmo amor prestante, São docas mansas
E te amo além, presente na saudade. Trilhando luzes
Amo-te, enfim, com grande liberdade Que brilham longe
Dentro da eternidade e a cada instante. Longe nos breus...

Amo-te como um bicho, simplesmente, Ó minha amada


De um amor sem mistério e sem virtude Que olhos os teus
Com um desejo maciço e permanente. Quanto mistério
Nos olhos teus
E de te amar assim muito e amiúde, Quantos saveiros
É que um dia em teu corpo de repente Quantos navios
Hei de morrer de amar mais do que pude. Quantos naufrágios
Nos olhos teus...
Soneto de separação Ó minha amada
Que olhos os teus
De repente do riso fez-se o pranto
Se Deus houvera
Silencioso e branco como a bruma
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera e agora, José?
Que há muitas eras e agora, você?
Nos olhos teus. você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Ah, minha amada você que faz versos,
De olhos ateus que ama, protesta?
Cria a esperança e agora, José?
Nos olhos meus
De verem um dia Está sem mulher,
O olhar mendigo está sem discurso,
Da poesia está sem carinho,
Nos olhos teus. já não pode beber,
já não pode fumar,
Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 31 de cuspir já não pode,
a noite esfriou,
outubro de 1902 — Rio de Janeiro, 17 de agosto de
o dia não veio,
1987) o bonde não veio,
o riso não veio,
Poema de Sete Faces não veio a utopia
e tudo acabou
Quando nasci, um anjo torto e tudo fugiu
desses que vivem na sombra e tudo mofou,
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. e agora, José?

E agora, José?
As casas espiam os homens Sua doce palavra,
que correm atrás de mulheres. seu instante de febre,
A tarde talvez fosse azul, sua gula e jejum,
não houvesse tantos desejos. sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
O bonde passa cheio de pernas: seu terno de vidro,
pernas brancas pretas amarelas. sua incoerência,
Para que tanta perna, meu Deus, seu ódio — e agora?
pergunta meu coração.
Porém meus olhos Com a chave na mão
não perguntam nada. quer abrir a porta,
não existe porta;
O homem atrás do bigode quer morrer no mar,
é sério, simples e forte. mas o mar secou;
Quase não conversa. quer ir para Minas,
Tem poucos, raros amigos Minas não há mais.
o homem atrás dos óculos e do bigode. José, e agora?

Se você gritasse,
Meu Deus, por que me abandonaste se você gemesse,
se sabias que eu não era Deus se você tocasse
se sabias que eu era fraco. a valsa vienense,
se você dormisse,
Mundo mundo vasto mundo, se você cansasse,
se eu me chamasse Raimundo se você morresse...
seria uma rima, não seria uma solução. Mas você não morre,
Mundo mundo vasto mundo, você é duro, José!
mais vasto é meu coração.
Sozinho no escuro
Eu não devia te dizer qual bicho-do-mato,
mas essa lua sem teogonia,
mas esse conhaque sem parede nua
botam a gente comovido como o diabo. para se encostar,
sem cavalo preto
José que fuja a galope,
você marcha, José!
E agora, José? José, para onde?
A festa acabou,
a luz apagou, Os Ombros Suportam o Mundo
o povo sumiu,
a noite esfriou,
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. homens presentes,
Tempo de absoluta depuração. a vida presente.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil. Memória
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco. Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se, Nada pode o olvido
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. contra o sem sentido
És todo certeza, já não sabes sofrer. apelo do Não.
E nada esperas de teus amigos.
As coisas tangíveis
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? tornam-se insensíveis
Teus ombros suportam o mundo à palma da mão
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos Mas as coisas findas
edifícios muito mais que lindas,
provam apenas que a vida prossegue essas ficarão.
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo Não se mate
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. Carlos, sossegue, o amor
A vida apenas, sem mistificação. é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
Congresso Internacional do Medo e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Inútil você resistir
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, ou mesmo suicidar-se.
não cantaremos o ódio, porque este não existe, Não se mate, oh não se mate,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso Reserve-se todo para
companheiro, as bodas que ninguém sabe
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, quando virão,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das se é que virão.
igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos O amor, Carlos, você telúrico,
democratas, a noite passou em você,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da e os recalques se sublimando,
morte. lá dentro um barulho inefável,
Depois morreremos de medo rezas,
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e vitrolas,
medrosas. santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
Mãos Dadas barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.
Não serei o poeta de um mundo caduco. Entretanto você caminha
Também não cantarei o mundo futuro. melancólico e vertical.
Estou preso à vida e olho meus companheiros. Você é a palmeira, você é o grito
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. que ninguém ouviu no teatro
Entre eles, considero a enorme realidade. e as luzes todas se apagam.
O presente é tão grande, não nos afastemos. O amor no escuro, não, no claro,
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, ninguém sabe nem saberá.
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista Não se mate
da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
Consolo na praia
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por
serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

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