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O que acontece com Carlos de Oliveira é a superação da atitude narrativa mencionada e tida por

ortodoxa. Assim, com a frustração da objetividade instaura-se o ponto de vista de personagem


inseridas na história e com ele o que essas óticas arrastam de subjetivo e parcial.

Carlos Reis, Introdução à leitura de Uma abelha na chuva, 1980

XXIX

— Foi ontem pela madrugada, não consegui dormir e tinha sede, larguei por aí fora, talvez um pouco
de chuva ou de orvalho, passei pelo palheiro da olaria e ouvi-os lá dentro, o ruivo e a filha do cego,
espojados com o gado, a falarem de ti.

Tornou a olhá-lo, em tudo nada inquieta.

— E esse namoro da patroa, Jacinto? Lá que a D. Prazeres me comia com os olhos.

Começou a sentir um desejo irresistível de gritar; avançava pelo braço do pai, toda de branco, entre o
murmúrio de órgão e vozes sussurradas; o grito que nascia, o grito sempre reprimido.

— Riam-se de nós, da nossa vida. Quando voltei a casa, vi-o no pátio a limpar os arreios da égua debaixo
da nogueira, fui para a loja, pensei toda a manhã, depois mandei chamar o velho, contei-lhe que a filha
dormia com o ruivo na palha dos currais. Saiu dali e foi o que se vê, deu-lhe cabo da raça. Mas a culpa é
minha, Maria, e aí estão eles prontos a matar-me.

Ela gritou por fim:

— Não te matam, descansa, posso lá ter tamanha sorte; hei-de aturar-te até ao fim da vida, até que Deus
me leve deste inferno que é a tua casa. Tenho nojo de ti, nojo, entendeste bem? Que te admiras tu que
eu sonhe?, sonhos sobre sonhos, sempre, para esquecer a tua cama, o pão da tua mesa. O que nunca
supus foi tê-lo dado a perceber e agora, mesmo depois de morto, odeio esse maldito ruivo, talvez te sirva
de consolo, odeio-o, por ter dado conta do que era só comigo, tão íntimo, que o esconderia de mim
própria se pudesse.

XXX

O céu toldara-se de novo, caía uma chuva leve, farinhenta, mas no pátio a multidão continuava firme.
Nem o dilúvio a afastaria, quanto mais aquela poalha de água. Camponeses ásperos como o areeiro que
faziam desabrochar em milho e vinho, crianças sujas, pobres de pedir, mulheres envelhecidas.

(…)

A chuva tornara-se mais forte, a manhã suja pesava no arvoredo. Enquanto o regedor se encaminhava ao
sótão das cocheiras. D. Maria dos Prazeres correu os olhos pelo povo. Encharcados até aos ossos, mortos
de curiosidade, porque não estavam ali senão a farejar o escândalo, imagens negras e grosseiras, feições
que lembravam a dureza das madeiras escuras, ranho de crianças, alforges, imundície; uma sensação de
náusea, de repulsa física.

Os camponeses aguardavam. Ouvia-se bater a chuva nas ramagens, no zinco da alpendrada. O silêncio, a
água, a aparição imóvel ao cimo da escadaria, tinham transfigurado tudo. De repente, ela estendeu o
braço:

— Rua.

Carlos de Oliveira, Uma abelha na chuva, 1953

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