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GREGÓRIO DE MATOS Nenhum tempo excetua a cristandade

Ao pobre pegureiro do Parnaso


À cidade da Bahia Para falar em sua liberdade.

SONETO A narração há de igualar ao caso,


E se talvez ao caso não iguala,
Triste Bahia! ó quão dessemelhante Não tenho por poeta o que é Pegaso.3
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, De que pode servir calar quem cala?
Rica te vi eu já, tu a mi abundante. Nunca se há de falar o que se sente?
Sempre se há de sentir o que se fala.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado, Qual homem pode haver tão paciente,
A mim foi-me trocando, e tem trocado, Que vendo o triste estado da Bahia,
Tanto negócio e tanto negociante. Não chore, não suspire e não lamente?

Deste em dar tanto açúcar excelente Isto faz a discreta fantasia:


Pelas drogas inúteis, que abelhuda Discorre em um e outro desconcerto,
Simples aceitas do sagaz brichote1. Condena o roubo, increpa a hipocrisia.

Oh se quisera Deus que de repente O néscio, o ignorante, o inexperto,


Um dia amanheceras tão sisuda Que não elege o bom, nem mau reprova,
Que fora de algodão o teu capote! Por tudo passa deslumbrado e incerto.

E quando vê talvez na doce trova


Aos vícios Louvado o bem, e o mal vituperado,
A tudo faz focinho, e nada aprova.
Tercetos 1
Diz logo prudentaço e repousado:
Eu sou aquele que os passados anos Fulano é um satírico, é um louco,
cantei na minha lira maldizente De língua má, de coração danado.
torpezas do Brasil, vícios e enganos.
Néscio, se disso entendes nada ou pouco,
E bem que os descantei bastantemente, Como mofas com riso e algazarras
canto segunda vez na mesma lira Musas, que estimo ter, quando as invoco?
o mesmo assunto em plectro diferente.
Se souberas falar, também falaras,
Já sinto que me inflama e que me inspira Também satirizaras, se souberas,
Talia, que anjo é da minha guarda E se foras poeta, poetizaras.
Dês que Apolo mandou que me assistira.
A ignorância dos homens destas eras
Arda Baiona2 e todo o mundo arda, Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a quem de profissão falta à verdade, Que a mudez canoniza bestas feras.
Nunca a dominga das verdades tarda.

1
brichote: designação pejorativa do estrangeiro.
2
Baiona: cidade da Calha onde se deram várias batalhas entre Espanha e Portugal. (id.)
3
Pegaso: por Pégaso, o cavalo alado, nascido do sangue da Medusa, que, com uma patada, fez nascer a fonte da Hipocrene, inspir adora dos poetas. Deve
entender-se: se o talento literário do poeta não for bastante para a elaboração poética do assunto, pouco valor tivera a invocação de Hipocrene (Spina apud
Wisnik).
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos, Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência
Não mordem outros não, por não ter dentes. da dama a quem queria bem

Quantos há que os telhados têm vidrosos Soneto


E deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos? Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Uma só natureza nos foi dada; Incêndio em mares de água disfarçado;
Não criou Deus os naturais diversos; Rio de neve em fogo convertido:
Um só Adão criou, e esse de nada.
Tu, que em um peito abrasas escondido;
Todos somos ruins, todos perversos, Tu, que em um rosto corres desatado;
Só nos distingue o vício e a virtude, Quando fogo, em cristais aprisionado;
De que uns são comensais, outros adversos. Quando cristal, em chamas derretido.

Quem maior a tiver, do que eu ter pude, Se és fogo, como passas brandamente?
Esse só me censure, esse me note, Se és neve, como queimas com porfia?
Calem-se os mais, chiton, e haja saúde.4 Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,


Rompe o poeta com a primeira impaciência Como quis que aqui fosse a neve ardente,
querendo declarar-se e temendo perder por ousado Permitiu parecesse a chama fria.

Soneto A Jesus Cristo Nosso Senhor

Soneto 2
Anjo no nome, Angélica na cara!
Isso é ser flor, e anjo juntamente:
Ser Angélica flor, e anjo florente, Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Em quem, senão em vós, se uniformara: Da vossa alta clemência me despido 5;
Porque, quanto mais tenho delinqüido,
Quem vira uma tal flor, que a não cortara, Vos tenho a perdoar mais empenhado.
De verde pé, da rama florescente;
E quem um anjo vira tão luzente, Se basta a vos irar tanto pecado,
Que por seu Deus o não idolatrara? A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido
Se pois como anjo sois dos meus altares, Vos tem para o perdão lisonjeado.
Fôreis o meu custódio, e a minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares. Se uma ovelha perdida e já cobrada 6
Glória tal e prazer tão repentino
Mas vejo que por bela, e por galharda, Vos deu, como afirmais na sacra história,
Posto que os anjos nunca dão pesares,
Sois anjo que me tenta, e não me guarda. Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

4
“chiton, e haja saúde”: chiton: do francês chut donc: silêncio; haja saúde: fórmula de despedida, muito usada na literatura latina (vale, bene valeat, etc.)
5
despido: despeço. (Wisnik)
6
cobrada: recuperada. (Wisnik)
CLÁUDIO MANUEL DA COSTA Aqui tem a virtude
Erguido o seu teatro,
I E nas rústicas cenas
Aqui mostra a pobreza os aparatos.
Para cantar de Amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento; As mal seguras canas
Ouvi pois o meu fúnebre lamento; Que move o vento brando,
Se é, que de compaixão sois animados: Da pobre rede tecem
Ao mísero Pastor o abrigo caro.
Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do Trácio Orfeu parava o mesmo vento; Colhida a tenra fruta
Da lira de Anfião ao doce acento Vem de seu próprio ramo
Se viram os rochedos abalados. A adornar a choupana,
Em vez dos altos capitéis dourados.
Bem sei, que de outros Gênios o destino,
Para cingir de Apolo a verde rama, Oh sítio venturoso!
Lhes influiu na lira estro divino: Quanto te invejo, quanto!
Ditoso quem possui
O canto, pois, que a minha voz derrama, O suave prazer de teu descanso!
Porque ao menos o entoa um Peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama. Se tu bem alcançaras,
(Obras, 1768) Pastor, um bem tão raro,
Não cessara o teu culto
Écloga XIX De consagrar obséquios a teu fado.

VIDA NO CAMPO Infeliz, o que envolto


No tráfego inumano
Oh doce soledade! Da aborrecida corte, 3
Oh pátria do descanso! Só vê da confusão o rosto infausto.
Da paz, e da concórdia
Grosseira habitação, tosco palácio! Imagina do amigo
Seguir os doces laços;
Quantos a meus delírios E a torpe aleivosia
Tu ditas desenganos, Lhe abre o sepulcro, onde buscou o amparo.
Oráculos fazendo
Das árvores, dos troncos, dos penhascos! Se o valimento encontra,
Teme, com justo espanto,
Não fere os meus ouvidos Quanto é grande a subida,
O estrondo cansado, Que o despenho também seja mais alto.
Que levanta a lisonja,
Junto aos pórticos d'ouro em régio Paço: Não há fronte segura,
Que enfim dissimulando
A macilenta inveja Não veja os seus afetos;
Não derrama o contágio Como a flor entre os áspides ingratos.
Nas inocentes almas,
Que são de seu furor mísero estrago. Ah! mede, Pastor belo,
O bem, que alcanças: tanto
Dos olhos se retira Dar-te não pode a corte;
O objeto sempre ingrato Só pode a soledade deste campo.
Dos que suspiram mudos, (id.)
Em vez do prêmio, as sem-razões do dano.
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA Leve-me a sementeira muito embora
O rio sobre os campos levantado:
PARTE I Acabe, acabe a peste matadora,
Sem deixar uma rês, o nédio gado.
LIRA I Já destes bens, Marília, não preciso:
Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, Para viver feliz, Marília, basta
Que viva de guardar alheio gado; Que os olhos movas, e me dês um riso.
De tosco trato, d’expressões grosseiro, Graças, Marília bela,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado. Graças à minha Estrela!
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite; Irás a divertir-te na floresta,
Das brancas ovelhinhas tiro o leite; Sustentada, Marília, no meu braço;
E mais as finas lãs, de que me visto. Ali descansarei a quente sesta,
Graças, Marília bela, Dormindo um leve sono em teu regaço.
Graças à minha Estrela! Enquanto a luta jogam os Pastores,
E emparelhados correm nas campinas,
Eu vi o meu semblante numa fonte, Toucarei teus cabelos de boninas,
Dos anos inda não está cortado: Nos troncos gravarei os teus louvores.
Os Pastores, que habitam este monte, Graças, Marília bela,
Respeitam o poder do meu cajado: Graças à minha Estrela!
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:7 Depois que nos ferir a mão da Morte,
Ao som dela concerto a voz celeste; Ou seja neste monte, ou noutra serra,
Nem canto letra, que não seja minha. Nossos corpos terão, terão a sorte
Graças, Marília bela, De consumir os dois a mesma terra.
Graças à minha Estrela! Na campa, rodeada de ciprestes,
lerão estas palavras os Pastores: 4
Mas tendo tantos dotes da ventura, “Quem quiser ser feliz nos seus amores,
Só apreço lhes dou, gentil Pastora, Siga os exemplos, que nos deram estes.”
Depois que o teu afeto me segura, Graças, Marília bela,
Que queres do que tenho ser senhora. Graças à minha Estrela!
É bom, minha Marília, é bom ser dono
De um rebanho, que cubra monte, e prado; (Marília de Dirceu, 1792)
Porém, gentil Pastora, o teu agrado
Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

Os teus olhos espalham luz divina,


A quem a luz do Sol em vão se atreve:
Papoula, ou rosa delicada, e fina
Te cobre as faces, que são cor de neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! não, não fez o Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor igual tesouro.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!

7
Provável referência a Cláudio Manuel da Costa.
Cartas Chilenas: em que se contam os sucessos de todo o Em que os próprios mancebos, que subiam
Governo de Fanfarrão Minésio, General de Chile. Escritas na À honra do governo, aos outros davam
língua castelhana pelo Poeta Critilo. Traduzidas em Português
e dedicadas aos Grandes de Portugual por um anônimo. Exemplos de modéstia, até nos trajes.
Deviam, Doroteu, morrer os povos,
Carta 1ª Apenas os maiores imitaram
Em que se descreve a entrada que fez Os rostos e os costumes das mulheres,
Fanfarrão em Chile. Seguindo as modas, e raspando as barbas.
(...) Os grandes do País com gesto humilde
Não penses, Doroteu, que vou contar-te Lhe fazem, mal o encontram, seu cortejo;
Por verdadeira história uma novela Ele austero os recebe, e só se digna
Da classe das patranhas, que nos contam Afrouxar do toutiço 9 a mola um nada,
Verbosos Navegantes, que já deram Ou pôr nas abas do chapéu os dedos.
Ao globo deste mundo volta inteira: (Cartas chilenas, 1788)
Uma velha madrasta me persiga,
Uma mulher zelosa me atormente,
E tenha um bando de gatunos filhos, FREI JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO
Que um chavo8 não me deixem, se este Chefe
Não fez ainda mais, do que eu refiro. Caramuru, poema épico do descobrimento da Bahia.
Ora pois, doce amigo, vou pintá-lo
Da sorte, que o topei a vez primeira; Canto Primeiro
Nem esta digressão motiva tédio,
Como aquelas, que são dos fins alheias; IX
Que o gesto, mais o traje nas pessoas
Faz o mesmo, que fazem os letreiros Da Nova Lusitânia o vasto espaço
Nas frentes enfeitadas dos livrinhos, Ia a povoar Diogo, a quem bisonho
Que dão, do que eles tratam, boa ideia. Chama o Brasil, temendo o forte braço,
Tem pesado semblante, a cor é baça. Horrível Filho do Trovão medonho:
Quando do abismo por cortar-lhe o passo 5
O corpo de estatura um tanto esbelta,
Feições compridas, e olhadura feia, Essa Fúria saiu, como suponho,
Tem grossas sobrancelhas, testa curta, A quem do Inferno o paganismo aluno,
Nariz direito, e grande; fala pouco Dando o Império das águas, fez Netuno.
Em rouco baixo som de mau falsete;
Sem ser velho, já tem cabelo ruço; X
E cobre este defeito, e fria calva
À força de polvilho, que lhe deita. O Grão Tridente, com que o mar comove,
Ainda me parece, que o estou vendo Cravou dos Órgãos na montanha horrenda,
No gordo rocinante escarranchado E na escura caverna, adonde Jove
As longas calças pelo embigo atadas, (Outro espírito) espalha a luz tremenda,
Amarelo colete, e sobre tudo Relâmpagos mil faz, coriscos chove;
Vestida uma vermelha e justa farda: Bate-se o vento em hórrida contenda:
De cada bolso da fardeta pendem Arde o céu, zune o ar, treme a montanha,
Listadas pontas de dois brancos lenços; E ergue-lhe o mar em frente outra tamanha.
Na cabeça vazia se atravessa
Um chapéu desmarcado; nem sei, como
Sustenta o pobre só do laço o peso.
Ah! Tu, Catão severo, tu, que estranhas
O rir-se um Cônsul moço, que fizeras
Se em Chile agora entrasses, e se visses
Ser o Rei dos peraltas, quem governa?
Já lá vai, Doroteu, aquela idade,

8
Chavo: moeda de pouco valor.
9
Toutiço: nuca.
XI GONÇALVES DE MAGALHÃES

O Filho do Trovão, que em baixel ia


Por passadas tormentas ruinoso, XLVIII
Vê que do grosso mar na travessia
Se sorve o lenho pelo pego undoso; O DIA 7 DE SETEMBRO, EM PARIS10
Bem que constante, a morte não temia,
Invoca no perigo o Céu piedoso; Longe do belo céu da Pátria minha,
Ao ver que a fúria horrível da procela Que a mente me acendia,
Rompe a nau, quebra o leme e arranca a vela. Em tempo mais feliz, em qu’eu cantava
Das palmeiras à sombra os pátrios feitos;
XII Sem mais ouvir o vago som dos bosques,
Nem o bramido fúnebre das ondas,
Lança-se ao fogo o ignívomo instrumento, Que n’alma me excitavam
Todo o peso se alija; o passageiro, Altos, sublimes turbilhões de idéias;
Para nadar no túmido elemento, Com que cântico novo
A tábua abraça, que encontrou primeiro: O Dia saudarei da Liberdade?
Quem se arroja no mar temendo o vento;
Qual se fia a um batel; quem a um madeiro, Ausente do saudoso, pátrio ninho,
Até que sobre a penha, que a embaraça, Em regiões tão mortas,
A quilha bate e a nau se despedaça. Para mim sem encantos, e atrativos,
Gela-se o estro ao peregrino vate.
XIII Tu também, que nos trópicos te ostentas
Fulgurante de luz, e rei dos astros,
Sete somente do batel perdido Tu, oh sol, neste céu teu brilho perdes.
Vêm à praia cruel, lutando a nado;
Oferece-lhes um socorro fementido Oh fantasia, reproduz se podes11
Bárbara multidão, que acode ao brado: O enérgico quadro, que meus olhos 6
E ao ver na praia o benfeitor fingido, Outrora extasiara;
Rende-lhe as mãos o náufrago enganado: As cenas reproduz de entusiasmo 12,
Tristes! que a ver algum qual fim o espera Que o coração abrasa
Com quanta sede a morte não bebera! Como o sol quando a pino os homens fere;
Memória, hoje recorda aquelas vozes
XIV Dos brasilenses peitos escapadas,
Como do Chimboraço ardentes lavas,
Já estava em terra o infausto naufragante, E no templo de Deus gratas soavam.
Rodeado da turba americana; Recita aqueles hinos,
Vêm-se com pasmo ao porem-se diante, Que angélicas donzelas, varões probos
E uns aos outros não creem da espécie humana: Alternos entoavam neste Dia,
Os cabelos, a cor, barba e semblante Da Liberdade em honra.
Faziam crer àquela gente insana,
Que alguma espécie de animal seria
Desses que no seu seio o mar trazia.
(Caramuru, 1781)

10
Título que aparece na 1ª edição dos Suspiros poéticos e saudades (1836): “O dia 7 de abril, em Paris”. O poema figura na seção
“Saudades” do referido livro.
11
Var. “Oh fantasia, mostra-me se podes”.
12
Var. “Reaviva o fulgor do entusiasmo”.
Mas em vão, que nos ares embruscados Aqui da Liberdade repetido
O mimoso colibri não adeja, Não soa o mago acento em meus ouvidos;
Nem longe do seu ninho o canto exala Nem o auriverde pavilhão tremula,
O sabiá canoro. Imagem das riquezas
Ah! se ao menos a dor que me alma punge, Da terra minha, fértil, abundante;
E a existência me azeda, Nem o canhão ribomba, que assinale
Um pouco se aplacasse, e doce riso, Que este Dia ao Brasil é consagrado.
Filho do coração, subisse aos lábios, Só o estridor ressoa
Quiçá na ausência da querida Pátria De turbulento povo, indiferente
Pudesse, inda que rouco, Da Pátria minha à glória.
Mais um hino ajuntar aos outros hinos,
Com que de meu amor lhe fiz ofrenda, Dia da Liberdade!
Quando no grêmio seu prazer gozava. Tu só dissipas hoje esta tristeza
Que a vida me angustia.
Lá, no teu seio, a vida respirando Tu só me acordas hoje do letargo
Tranquilo e sossegado, Em que esta alma se abisma,
Ou no mar agitado, à morte exposto, De resistir cansada a tantas dores.
Ou aqui nesta plaga tão remota, Ah! talvez que de ti poucos se lembrem
Fiel te sou, oh Pátria; não te olvido Neste estranho país, onde tu passas
Pelas grandezas que me ofrece a Europa. Sem culto, sem fulgor, como em deserto
Estes eternos monumentos d’arte, Caminha o viajor silencioso.
Estas colunas, maravilhas mortas,
Estas estátuas colossais de bronze, Mas rápidos os dias se devolvem;
Estes jardins soberbos, estes templos E tu, oh sol, que pálido me aclaras
São belos; mas não são de minha Pátria. Nestas longínquas plagas,
Tuas virgens florestas, e teus templos Brilhante ainda raiarás na Pátria,
Mais me aprazem que tudo que aqui vejo. E ouvirás meus hinos
Ah! quem me dera agora, em grato sonho Em honra deste Dia, não magoados 7
Iludido, cuidar que me revolvo Co’os fúnebres acentos da saudade.
Ignorado entre os meus, entre o tumulto
Do povo que no rosto traz impressa (Suspiros poéticos e saudades, 1836)
A glória deste Dia!
Quem me dera que os meus rústicos hinos
Por ele ouvidos fossem,
E por ele aplaudidos
No delírio do sacro amor da Pátria!

Oh! como é doce memorar os tempos


Da passada alegria!
Como é doce escutar ternas cadências
De branda voz de pudibunda virgem,
Quando fora da terra a alma vagueia
No celeste infinito!
Mais doce é celebrar os claros feitos
Dos seus concidadãos, e unido a eles,
Beber na mesma taça o entusiasmo,
E no divino arroubo
Os céus congratular, render-lhes graças!
A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS Baliza natural ao Norte avulta
O das águas gigante caudaloso,
Canto primeiro Que pela terra alarga-se vastíssimo;
Do Oceano rival, ou rei dos rios,
Oh sol, astro propício que abrilhantas Si é que o nome de rei o não abate;
Do criado universo altos prodígios; Pois mais que o rei supera em pompa e brilho.
Que aos bosques dás verdor, doçura aos frutos, No sólio à multidão em torno curva.
E os pétalos das flores vário esmaltas! Supera o Amazonas na grandeza
Oh sol, vital principio, que na terra A quantos rios há grandes no mundo!
O tenro germe da semente aqueces O Kiang, o Nilo, o Volga, o Mississipi,
E o fecundas co'os teus benignos raios: Inda que as águas suas reunissem,
Luzeiro perenal, nume adorado Com ele competir não poderiam.
Dos inocentes filhos da Natura, Ao lado seu direito, e ao esquerdo lado
Que mal seu Criador, seu Deus conhecem! Mil feudatários rios vem pagar-lhe
Oh sol, hoje m'inflama a mente ousada, Tributo perenal de suas águas. (...)
Que asas desprende p'ra mais altos voos. (A confederação dos Tamoios, 1856)

Vós, solitários Gênios dos desertos


Do meu pátrio Brasil, nunca invocados GONÇALVES DIAS
Té-qui por nenhum vate, a cujas vezes
Doçura deram do Carioca as águas; CANÇÃO DO EXÍLIO
Gênios, que outr'ora com choroso acento
Suspiros repetistes lamentosos Kennst du das Land, wo die Citronen blühn,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühn?
De tantas malfadadas tribos de Índios, Kennst du es wohl? Dahin, dahin!
Que viram do Europeu n'ávida espada Möcht’ ich...ziehn!
O sangue gotejar dos caros filhos, Goethe13
Das esposas, dos pais e dos parentes;
Doces inspirações prestai-me, oh Gênios! Minha terra tem palmeiras, 8
Dos Tamoios o intrépido ardimento, Onde canta o Sabiá;
Tão fatal à colônia portuguesa. As aves, que aqui gorjeiam,
Do olvido sorvedor hoje exumemos: Não gorjeiam como lá.
Na mente bafejai-me imagens que ornem
Dos filhos dos sertões a sorte adversa. Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Das Américas plagas venturosas. Nossos bosques têm mais vida,
Que as mais plagas do mundo nada invejam, Nossa vida mais amores.
Ufana-se o Brasil como a primeira.
Formosa é sempre aí a Natureza, Em cismar, sozinho, à noite,
Eterna a primavera, o outono eterno. Mais prazer encontro eu lá;
Em leitos diamantinos pura linfa Minha terra tem palmeiras,
Rega seus campos em caudais correntes. Onde canta o Sabiá.
Inúmeras, pujantes catadupas.
Voz dando à solidão, em cristais curvos Minha terra tem primores,
De rochedos alpestres precipitam-se; Que tais não encontro eu cá;
E de horrendo estridor pejando os ermos, Em cismar – sozinho, à noite –
De vale em vale, entre ásperas fraguras, Mais prazer encontro eu lá;
Onde atroam também gritos das feras, Minha terra tem palmeiras,
Das serpes os sibilos, e os trinados Onde canta o Sabiá.
Dos pássaros, e a voz dos roucos ventos.
Viva orquestra parece a Natureza,
Que a grandeza de Deus sublime exalta!

13
“Conheces o país onde florescem as laranjeiras? Ardem na escura fronde os frutos de ouro...Conhece-lo? Para lá, para lá quisera eu ir” (tradução de Manuel
Bandeira)
Não permita Deus que eu morra II
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores Por que dormes, ó Piaga divino?
Que não encontro por cá; Começou-me a Visão a falar,
Sem qu’inda aviste as palmeiras, Por que dormes? O sacro instrumento17
Onde canta o Sabiá. De per si já começa a vibrar.
Coimbra – julho, 1843
(Cantos, 1846) Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
O CANTO DO PIAGA Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?
I
Tu não viste nos céus um negrume
Ó Guerreiros da Taba sagrada, Toda a face do sol ofuscar;
Ó Guerreiros da Tribo Tupi, Não ouviste a coruja, de dia,
Falam Deuses nos cantos do Piaga, 14 Seus estrídulos torva soltar?
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.
Tu não viste dos bosques a coma
Esta noite – era a lua já morta – Sem aragem – vergar-se e gemer,
Anhangá15 me vedava sonhar; Nem a lua de fogo entre nuvens,
Eis na horrível caverna, que habito, Qual em vestes de sangue, nascer?
Rouca voz começou-me a chamar.
E tu dormes, ó Piaga divino!
Abro os olhos, inquieto, medroso, E Anhangá te proíbe sonhar!
Manitôs!16 Que prodígios que vi! E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
Arde o pau de resina fumosa, E não podes augúrios cantar?!
Não fui eu, não fui eu que o acendi!
Ouve o anúncio do horrendo fantasma, 9
Eis rebenta a meus pés um fantasma, Ouve os sons do fiel Maracá;
Um fantasma d’imensa extensão; Manitôs já fugiram da Taba!
Liso crânio repousa a meu lado, Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,


Todo inteiro – ossos, carnes – tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,


Ó guerreiro, o espectro que eu vi
Falam Deuses nos cantos do Piaga
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!

14
Piaga: piagé, piaches, piayes; os autores portugueses escreveram pajé, como em verdade hoje se diz no Pará. Era ao mesmo tempo o sarcedote e o médico, o
áugure e cantor dos indígenas no Brasil. (Nota do autor)
15
Anhangá: gênio do mal, o mesmo que Léry chama de Aignan e Hans Staden Ingange. (id.)
16
Manitôs: uns como penates que os índios da América do Norte veneravam. O seu desaparecimento augurava grandes calamidades às tribos, de que eles
houvessem desertado. (id.)
17
Sacro instrumento: o maracá. Entre os índios, o instrumento sagrado, como o Saltério entre os Hebreus ou o Órgão entre os Cri stãos. Era uma cabaça crivada,
cheia de pedras e búzios e atravessada por um hastil ornados de penas multicores que lhe servia de cabo. O antigo viajante Roloux Baro, testemunha da veneração
que os índios lhe tributavam, chamava-o “le diable porté dans une calebasse”, o diabo dentro de uma cabaça. (id.)
III ÁLVARES DE AZEVEDO

Pelas ondas do mar sem limites LEMBRANÇA DE MORRER


Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes. No more! o never more!
Vossas matas tais monstros contêm. SHELLEY

Traz embira dos cintos pendentes Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
– Brenha espessa de vário cipó – Que o espírito enlaça à dor vivente,
Dessas brenhas contêm vossas matas, Não derramem por mim nem uma lágrima
Tais e quais mas com folhas; é só! Em pálpebra demente.

Negro monstro os sustenta por baixo, E nem desfolhem na matéria impura


Brancas asas abrindo ao tufão, A flor do vale que adormece ao vento:
Como um bando de cândidas garças, Não quero que uma nota de alegria
Que nos ares pairando – lá vão. Se cale por meu triste passamento.

Oh! Quem foi das entranhas das águas, Eu deixo a vida como deixa o tédio
O marinho arcabouço arrancar? Do deserto, o poento caminheiro
Nossas terras demanda, fareja... – Como as horas de um longo pesadelo
Esse monstro... – o que vem cá buscar? Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Não sabeis o que o monstro procura? Como o desterro de minh’alma errante,


Não sabeis a que vem, o que quer? Onde fogo insensato a consumia:
Vem matar vossos bravos guerreiros, Só levo uma saudade – é desses tempos
Vem roubar-vos a filha, a mulher! Que amorosa ilusão embelecia.

Vem trazer-vos crueza, impiedade – Só levo uma saudade – é dessas sombras 10


Dons cruéis do cruel Anhangá; Que eu sentia velar nas noites minhas...
Vem quebrar-vos a maça valente, De ti, ó minha mãe! pobre coitada
Profanar Manitôs, Maracás. Que por minha tristeza te definhas!

Vem trazer-vos algemas pesadas, De meu pai... de meus únicos amigos,


Com que a tribo Tupi vai gemer; Poucos – bem poucos – e que não zombavam
Hão de os velhos servirem de escravos, Quando, em noites de febre endoidecido,
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser! Minhas pálidas crenças duvidavam.

Fugireis procurando um asilo, Se uma lágrima as pálpebras me inunda,


Triste asilo por ínvio sertão; Se um suspiro nos seios treme ainda,
Anhangá de prazer há de rir-se, É pela virgem que sonhei…que nunca
Vendo os vossos quão poucos serão. Aos lábios me encostou a face linda!

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura, Só tu à mocidade sonhadora


Susta as iras do fero Anhangá. Do pálido poeta deste flores...
Manitôs já fugiram da Taba, Se viveu, foi por ti! e de esperança
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá! De na vida gozar de teus amores.
(id.)
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo… MEU SONHO
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo! EU

Descansem o meu leito solitário Cavaleiro das armas escuras,


Na floresta dos homens esquecida, Onde vais pelas trevas impuras
À sombra de uma cruz, e escrevam nela: Com a espada sangüenta na mão?
– Foi poeta – sonhou – e amou na vida. – Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Sombras do vale, noites da montanha, Vertem fogo do teu coração?
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado, Cavaleiro, quem és? o remorso?
E no silêncio derramai-lhe canto! Do corcel te debruças no dorso...
E galopas do vale através...
Mas quando preludia ave d’aurora Oh! da estrada acordando as poeiras
E quando à meia-noite o céu repousa, Não escutas gritar as caveiras
Arvoredos do bosque, abri os ramos... E morder-te o fantasma nos pés?
Deixai a lua prantear-me a lousa!
Onde vais pelas trevas impuras,
(Lira dos vinte anos, 1852)) Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?
MINHA DESGRAÇA
Cavaleiro, quem és? – que mistério,
Minha desgraça não é ser poeta, Quem te força da morte no império 11
Nem na terra de amor não ter um eco... Pela noite assombrada a vagar?
E, meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco... O FANTASMA

Não é andar de cotovelos rotos, Sou o sonho de tua esperança,


Ter duro como pedra o travesseiro... Tua febre que nunca descansa,
Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido O delírio que te há de matar!...
cujo sol (quem mo dera) é o dinheiro... (id.)

Minha desgraça, ó cândida donzela,


O que faz que meu peito assim blasfema,
É ter por escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela.
(id.)
SONETO Donde vem?... Onde vai?... Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Pálida à luz da lâmpada sombria, Neste Saara os corcéis o pó levantam,
Sobre o leito de flores reclinada, Galopam, voam, mas não deixam traço.
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia! Bem feliz quem ali pode nest’hora
Sentir deste painel a majestade!...
Era a virgem do mar, na escuma fria Embaixo – o mar... em cima – o firmamento...
Pela maré das águas embalada! E no mar e no céu – a imensidade!
Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia! Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Era mais bela! o seio palpitando... Meu Deus! Como é sublime um canto ardente
Negros olhos as pálpebras abrindo... Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Formas nuas no leito resvalando...
Homens do mar! Ó rudes marinheiros
Não te rias de mim, meu anjo lindo! Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Por ti – as noites eu velei chorando, Crianças que a procela acalentara
Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo! No berço destes pélagos profundos!
(Lira dos vinte anos, 1852)
Esperai! Esperai! deixai que eu beba
CASTRO ALVES Esta selvagem, livre poesia...
Orquestra – é o mar que ruge pela proa,
E o vento que nas cordas assobia...
O NAVIO NEGREIRO
…………………………………………….
TRAGÉDIA NO MAR
Por que foges assim, barco ligeiro? 12
I Por que foges do pávida poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Que semelha no mar – doudo cometa!
Brinca o luar – doirada borboleta –
E as vagas após ele correm... cansam Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Como turba de infantes inquieta. Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviatã do espaço!
‘Stamos em pleno mar... Do firmamento Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas...
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias II
– Constelações do líquido tesouro...
Que importa do nauta o berço,
‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos Donde é filho, qual seu lar?...
Ali se estreitam num abraço insano Ama a cadência do verso
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Que lhe ensina o velho mar!
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?... Cantai! que a noite é divina!
Resvala o brigue à bolina
‘Stamos em pleno mar... Abrindo as velas Como um golfinho veloz.
Ao quente arfar das virações marinhas, Presa ao mastro da mezena
Veleiro brigue corre à flor dos mares Saudosa bandeira acena
Como roçam na vaga as andorinhas... Às vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas IV
Requebradas de languor,
Lembram as moças morenas, Era um sonho dantesco... O tombadilho
As andaluzas em flor. Que das luzernas avermelha o brilho,
Da Itália o filho indolente Em sangue a se banhar.
Canta Veneza dormente Tinir de ferros… estalar do açoite...
– Terra de amor e traição – Legiões de homens negros como a noite,
Ou do golfo no regaço Horrendos a dançar...
Relembra os versos do Tasso,
Junto às lavas do Vulcão! Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
O Inglês – marinheiro frio, Rega o sangue das mães:
Que ao nascer no mar se achou – Outras, moças... mas nuas, espantadas,
(Porque a Inglaterra é um navio, No turbilhão de espectros arrastadas,
Que Deus na Mancha ancorou), Em ânsia e mágoa vãs.
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias E ri-se a orquestra irônica, estridente...
De Nelson e de Aboukir. E da ronda fantástica a serpente
O Francês – predestinado – Faz doudas espirais...
Canta os louros do passado Se o velho arqueja… se no chão resvala,
E os loureiros do porvir... Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga iônia criou, Presa nos elos de uma só cadeia,
Belos piratas morenos A multidão faminta cambaleia,
Do mar que Ulisses cortou, E chora e dança ali!
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara ………………………………………… 13
Versos que Homero gemeu...
...Nautas de todas as plagas! Um de raiva delira, outro enlouquece...
Vós sabeis achar nas vagas Outro, que de martírios embrutece,
As melodias do céu... Cantando, geme e ri!

III No entanto o capitão manda a manobra


E após, fitando o céu que se desdobra
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Tão puro sobre o mar,
Desce mais, inda mais... não pode o olhar humano Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
Como o teu mergulhar no brigue voador. “Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Mas que vejo eu ali… que quadro de amarguras! Fazei-os mais dançar!...”
Que cena funeral!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil!... Meu Deus! meu Deus! E ri-se a orquestra irônica, estridente...
/Que horror! E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
V Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Senhor Deus dos desgraçados! Nasceram – crianças lindas,
Dizei-me vós, Senhor Deus! Viveram – moças gentis...
Se é loucura... se é verdade Passa um dia a caravana
Tanto horror perante os céus... Quando a virgem na cabana
Ó mar! por que não apagas Cisma da noite nos véus...
Co’a esponja de tuas vagas ...Adeus! ó choça do monte!...
De teu manto este borrão?.. ...Adeus! palmeiras da fonte!...
Astros! noite! tempestades! ...Adeus! amores... adeus!...
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó...
Quem são estes desgraçados, Depois no horizonte imenso
Que não encontram em vós, Desertos... desertos só...
Mais que o rir calmo da turba E a fome, o cansaço, a sede...
Que excita a fúria do algoz? Ai! quanto infeliz que cede,
Quem são?... Se a estrela se cala, E cai p’ra não mais s’erguer!...
Se a vaga à pressa resvala Vaga um lugar na cadeia,
Como um cúmplice fugaz, Mas o chacal sobre a areia
Perante a noite confusa... Acha um corpo que roer...
Dize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz! Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
São os filhos do deserto O sono dormido à toa
Onde a terra esposa a luz. Sob as tendas d’amplidão...
Onde voa em campo aberto Hoje... o porão negro, fundo,
A tribo dos homens nus... Infecto, apertado, imundo, 14
São os guerreiros ousados, Tendo a peste por jaguar...
Que com os tigres mosqueados E o sono sempre cortado
Combatem na solidão... Pelo arranco de um finado,
Homens simples, fortes, bravos... E o baque de um corpo ao mar...
Hoje míseros escravos
Sem luz, sem ar, sem razão... Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
São mulheres desgraçadas Hoje... cúm’lo de maldade
Como Agar o foi também, Nem são livres p’ra... morrer...
Que sedentas, alquebradas, Prende-os a mesma corrente
De longe.. bem longe vêm... – Férrea, lúgubre serpente –
Trazendo com tíbios passos, Nas roscas da escravidão.
Filhos e algemas nos braços, E assim roubados à morte,
N’alma – lágrimas de fel. Dança a lúgubre coorte
Como Agar sofrendo tanto Ao som do açoite... Irrisão!...
Que nem o leite do pranto
Têm que dar para Ismael... Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
VI OLAVO BILAC

E existe um povo que a bandeira empresta


P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!… PROFISSÃO DE FÉ
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!... Le poète est ciseleur,
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Le ciseleur est poète.
Victor Hugo
Que imprudente na gávea tripudia?!
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Não quero o Zeus Capitolino,
Que o pavilhão se lave no teu pranto...
Hercúleo e belo,
Talhar no mármore divino
Auriverde pendão de minha terra,
Com o camartelo.
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
Que outro – não eu! – a pedra corte
E as promessas divinas da esperança...
Para, brutal,
Tu, que da liberdade após a guerra,
Erguer de Atene o altivo porte
Foste hasteado dos heróis na lança,
Descomunal.
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Mais que esse vulto extraordinário,
Que assombra a vista,
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Seduz-me um leve relicário
Extingue nesta hora o brigue imundo
De fino artista.
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
Invejo o ourives quando escrevo:
...Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga
Imito o amor
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Com que ele, em ouro, o alto relevo
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Faz de uma flor. 15
Colombo! fecha a porta de teus mares!
Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
São Paulo, 18 de abril de 1868.
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.

Por isso, corre, por servir-me,


Sobre o papel
A pena, como em prata firme
Corre o cinzel.

Corre; desenha, enfeita a imagem,


A idéia veste:
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
Azul-celeste.

Torce, aprimora, alteia, lima


A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.

Quero que a estrofe cristalina,


Dobrada ao jeito
Do ourives, saia da oficina
Sem um defeito:
E que o lavor do verso, acaso, Não morrerás, Deusa sublime!
Por tão sutil, Do trono egrégio
Possa o lavor lembrar de um vaso Assistirás intacta ao crime
De Becerril. Do sacrilégio.

E horas sem conto passo, mudo, E, se morreres por ventura,


O olhar atento, Possa eu morrer
A trabalhar, longe de tudo Contigo, e a mesma noite escura
O pensamento. Nos envolver!

Porque o escrever – tanta perícia, Ah! ver por terra, profanada,


Tanta requer, A ara partida;
Que ofício tal... nem há notícia E a Arte imortal aos pés calcada,
De outro qualquer. Prostituída!

Assim procedo. Minha pena Ver derribar do eterno sólio


Segue esta norma, O Belo, e o som
Por te servir, Deusa serena, Ouvir da queda do Acropólio,
Serena Forma! Do Partenon!...

Deusa! A onda vil, que se avoluma Sem sacerdote, a Crença morta


De um torvo mar, Sentir, e o susto
Deixa-a crescer; e o lodo e a espuma Ver, e o extermínio, entrando a porta
Deixa-a rolar! Do templo augusto!...

Blasfemo, em grita surda e horrendo Ver esta língua, que cultivo,


Ímpeto, o bando Sem ouropéis,
Venha dos Bárbaros crescendo, Mirrada ao hálito nocivo 16
Vociferando... Dos infiéis!

Deixa-o: que venha e uivando passe Não! Morra tudo que me é caro,
– Bando feroz! Fique eu sozinho!
Não se te mude a cor da face Que não encontre um só amparo
E o tom da voz! Em meu caminho!

Olha-os somente, armada e pronta, Que a minha dor nem a um amigo


Radiante e bela: Inspire dó...
E, ao braço o escudo, a raiva afronta Mas, ah! que eu fique só contigo,
Dessa procela. Contigo só!

Este que à frente vem, e o todo Vive! que eu viverei servindo


Possui minaz Teu culto, e, obscuro,
De um Vândalo ou de um Visigodo, Tuas custódias esculpindo
Cruel e audaz; No ouro mais puro.

Este, que, de entre os mais, o vulto Celebrarei o teu ofício


Ferrenho alteia, No altar: porém,
E, em jacto, expele o amargo insulto Se inda é pequeno o sacrifício,
Que te enlameia: Morra eu também!

É em vão que as forças cansa, e à luta Caia eu também, sem esperança,


Se atira; é em vão Porém tranqüilo,
Que brande no ar a maça bruta Inda, ao cair, vibrando a lança,
À bruta mão. Em prol do Estilo! (Poesias, 1888)
A UM POETA CRUZ E SOUSA
Longe do estéril turbilhão da rua, ANTÍFONA
Beneditino, escreve! No aconchego Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
Do claustro, no silêncio e no sossego, de luares, de neves, de neblinas!…
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua! Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas.
Mas que na forma se disfarce o emprego Incensos dos turíbulos das aras...
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua, Formas do Amor, constelarmente puras,
Rica, mas sóbria, como um templo grego. de Virgens e de Santas vaporosas…
Brilhos errantes, mádidas frescuras
Não se mostre na fábrica o suplício
e dolências de lírios e de rosas...
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:
Indefiníveis músicas supremas,
Porque a Beleza, gêmea da Verdade, harmonias da Cor e do Perfume…
Arte pura, inimiga do artifício, Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
É a força e a graça na simplicidade. Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
(Tarde, 1919)
Visões, salmos e cânticos serenos,
surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
ALBERTO DE OLIVEIRA Dormências de volúpicos venenos
sutis e suaves, mórbidos, radiante...

VASO CHINÊS Infinitos espíritos dispersos,


inefáveis, edênicos, aéreos,
Estranho mimo aquele vaso! Vi-o, fecundai o Mistério destes versos
Casualmente, uma vez, de um perfumado com a chama ideal de todos os mistérios.
17
Contador sobre o mármor luzidio,
Entre um leque e o começo de um bordado. Do Sonho as mais azuis diafaneidades
que fuljam, que na Estrofe se levantem
Fino artista chinês, enamorado, e as emoções, todas as castidades
Nele pusera o coração doentio da alma do Verso, pelos versos cantem.
Em rubras flores de um sutil lavrado,
Na tinta ardente, de um calor sombrio. Que o pólen de ouro dos mais finos astros
fecunde e inflame a rima clara e ardente…
Mas, talvez por contraste à desventura, Que brilhe a correção dos alabastros
Quem o sabe?…de um velho mandarim sonoramente, luminosamente.
Também lá estava a singular figura;
Forças originais, essência, graça
Que arte em pintá-la! a gente acaso vendo-a, de carnes de mulher, delicadezas…
Sentia um não sei quê com aquele chim Todo esse eflúvio que por ondas passa
De olhos cortados à feição de amêndoa. do Éter nas róseas e áureas correntezas.

(Sonetos e poemas, 1886) Cristais diluídos de clarões alacres,


desejos, vibrações, ânsias, alentos,
fulvas vitórias, triunfamentos acres,
os mais estranhos estremecimentos…

Flores negras do tédio e flores vagas


de amores vãos, tantálicos, doentios…
Fundas vermelhidões de velhas chagas
em sangue, abertas, escorrendo em rios…
Tudo! Vivo e nervoso e quente e forte, VERSOS ÍNTIMOS
nos turbilhões quiméricos do Sonho,
passe, cantando, ante o perfil medonho
e o tropel cabalístico da Morte. Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
(Broquéis, 1893) Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
METEMPSICOSE
Agora, já que apodreceu a argila Acostuma-te à lama que te espera!
do teu corpo divino e sacrossanto; O Homem, que, nesta terra miserável,
que embalsamaram de magoado pranto Mora, entre feras, sente inevitável
a tua carne, na mudez tranqüila,
Necessidade de também ser fera.
agora, que nos Céus, talvez, se asila
aquela graça e luminoso encanto Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
de virginal e pálido amaranto O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
entre a Harmonia que nos Céus desfila.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Que da morte o estupor macabro e feio
congelou as magnólias do teu seio, Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
por entre catalépticas visões… Apedreja essa mão vil que te afaga,
Surge, Bela das Belas, na Beleza Escarra nessa boca que te beija!
do transcendentalismo da Pureza, (id.)
nas brancas, imortais Ressurreições!
(Faróis, 1900)

VÍTIMA DO DUALISMO
AUGUSTO DOS ANJOS Ser miserável dentre os miseráveis
– Carrego em minhas células sombrias
PSICOLOGIA DE UM VENCIDO Antagonismos irreconciliáveis 18
E as mais opostas idiossincrasias!
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância, Muito mais cedo do que o imagináveis
A influência má dos signos do zodíaco. Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
Profundissimamente hipocondríaco, E à gula negra das antinomias!
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco. Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo…
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Já o verme – este operário das ruínas – Feita dos mais variáveis elementos,
Que o sangue podre das carnificinas
Come e à vida em geral declara guerra,
Ceva-se em minha carne, como um corvo,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los, A simultaneidade ultramonstruosa
E há de deixar-me apenas os cabelos, De todos os contrastes famulentos!
Na frialdade inorgânica da terra!

(Eu, 1912)
OSWALD DE ANDRADE
MÁRIO DE ANDRADE
PERO VAZ CAMINHA (de “História do Brasil”)

A DESCOBERTA

INSPIRAÇÃO Seguimos nosso caminho por este mar de longo


“Onde até na força do verão Até a oitava da Páscoa
havia tempestades de ventos Topamos aves
e frios de crudelíssimo E houvemos vista de terra
inverno.”
Fr. Luís de Souza
OS SELVAGENS
São Paulo! Comoção da minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original... Mostraram-lhes uma galinha
Arlequinal!...Traje de losangos... Cinza e ouro... Quase haviam medo dela
Luz e bruma...Forno e inverno morno... E não queriam por a mão
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes... E depois a tomaram como espantados
Perfumes de Paris...Arys!18
Bofetadas líricas no Trianon...19 Algodoal!...
PRIMEIRO CHÁ
São Paulo! Comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América! Depois de dançarem
Diogo Dias
(Pauliceia desvairada, 1922)
Fez o salto real

AS MENINAS DA GARE
O TROVADOR 19
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Sentimentos em mim do asperamente Com cabelos mui pretos pelas espáduas
dos homens das primeiras eras... E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
As primaveras de sarcasmos Que de nós as muito bem olharmos
intermitentemente no meu coração arlequinal... Não tínhamos nenhuma vergonha.
Intermitentemente... (Poesia Pau-brasil, 1925)
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som
O CAPOEIRA (de “Poemas da colonização”)
redondo...
Cantabona! Cantabona! – Qué apanhá sordado?
Dlorom... – O quê?
– Qué apanhá?
Sou um tupi tangendo um alaúde! Pernas e cabeças na calçada
(id.)
(id.)
PRONOMINAIS (de “Postes da Light”)

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido

18
Marca de perfume francesa.
19
Restaurante e confeitaria frequentado pela elite paulistana da época.
Mas o bom negro e o bom branco MAÇÃ
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias Por um lado te vejo como um seio murcho
Deixa disso camarada Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende
Me dá um cigarro /ainda o cordão placentário
(id.)
LONGO DA LINHA (de “Roteiro das minas”) És vermelha como o amor divino

Coqueiros Dentro de ti em pequenas pevides


Aos dois Palpita a vida prodigiosa
Aos três Infinitamente
Aos grupos
Altos E quedas tão simples
Baixos Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.
MANUEL BANDEIRA
Petrópolis, 25/2/1938
POÉTICA
(Lira dos Cinquent’anos, 1940)

Estou farto do lirismo comedido


Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto
/expediente protocolo e manifestações de apreço ao
/sr. Diretor ARTE DE AMAR
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no
/dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua
Abaixo os puristas /alma. 20
Todas as palavras sobretudo os barbarismos A alma é que estraga o amor.
/universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
/exceção Não noutra alma.
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Só em Deus – ou fora do mundo.
Estou farto do lirismo namorador
Político As almas são incomunicáveis.
Raquítico
Sifilítico Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
/fora de si mesmo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do (Belo Belo, 1948)
/amante exemplar com cem modelos de cartas e as
/diferentes /maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é
/libertação
(Libertinagem, 1930)
JOÃO CABRAL DE MELO NETO Depois eu descobriria
que era lícito
ANTIODE
(contra a poesia dita profunda) te chamar: flor!
(flor, imagem de
A
duas pontas, como
Poesia, te escrevia:
flor! Conhecendo uma corda). Depois
que és fezes. Fezes eu descobriria
como qualquer, as duas pontas
gerando cogumelos
(raros, frágeis, cogu- da flor; as duas
melos) no úmido bocas da imagem
calor de nossa boca. da flor: a boca
que come o defunto
Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie e a boca que orna
estranha, espécie o defunto com outro
defunto, com flores,
extinta de flor, flor
não de todo flor, – cristais de vômito.
mas flor, bolha
aberta no maduro). C
Delicado, evitava
o estrume do poema, Como não invocar o
seu caule, seu ovário, vício da poesia: o
suas intestinações. corpo que entorpece
ao ar de versos?
Esperava as puras,
transparentes florações, 21
nascidas do ar, no ar, (Ao ar de águas
como as brisas. mortas, injetando
na carne do dia
B
a infecção da noite).
Depois, eu descobriria
que era lícito Fome de vida? Fome
te chamar: flor! de morte, freqüentação
(Pelas vossas iguais
da morte, como de
circunstâncias? Vossas algum cinema.
gentis substâncias? Vossas
doces carnações? Pelos O dia? Árido.
virtuosos vergéis
Venha, então, a noite,
de vossas evocações? o sono. Venha,
Pelo pudor do verso por isso, a flor.
– pudor de flor –
por seu tão delicado
Venha, mais fácil e
pudor de flor, portátil na memória,
que só se abre o poema, flor no
quando a esquece o colete da lembrança.
sono do jardineiro?)
Como não invocar,
sobretudo, o exercício
do poema, sua prática,
sua lânguida horti-
cultura? Pois estações A EDUCAÇÃO PELA PEDRA
há, do poema, como
da flor, ou como
no amor dos cães; Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
e mil mornos captar sua voz inenfática, impessoal
enxertos, mil maneiras (pela de dicção ela começa as aulas).
de excitar negros
êxtases; e a morna A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
espera de que se a de poética, sua carnadura concreta;
apodreça em poema, a de economia, seu adensar-se compacta:
prévia exalação
da alma defunta. lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
D
*
Poesia, não será esse Outra educação pela pedra: no Sertão
o sentido em que (de dentro para fora, e pré-didática).
ainda te escrevo: No Sertão a pedra não sabe lecionar,
flor! (Te escrevo: e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
flor! Não uma uma pedra de nascença, entranha a alma.
flor, nem aquela (Educação pela pedra, 1966)
flor-virtude – em
disfarçados urinóis). CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Flor é a palavra
flor, verso inscrito NO MEIO DO CAMINHO
no verso, como as
manhãs no tempo. No meio do caminho tinha uma pedra
Flor é o salto tinha uma pedra no meio do caminho 22
da ave para o vôo; tinha uma pedra
o salto fora do sono no meio do caminho tinha uma pedra.
quando seu tecido
se rompe; é uma explosão Nunca me esquecerei desse acontecimento
posta a funcionar, na vida de minhas retinas tão fatigadas.
como uma máquina, Nunca me esquecerei que no meio do caminho
uma jarra de flores. tinha uma pedra
E tinha uma pedra no meio do caminho
Poesia, te escrevo no meio do caminho tinha uma pedra.
agora: fezes, as (Alguma poesia, 1930)
fezes vivas que és. PROCURA DA POESIA
Sei que outras
palavras és, palavras Não faças versos sobre acontecimentos.
impossíveis de poema. Não há criação nem morte perante a poesia.
Te escrevo, por isso, Diante dela, a vida é um sol estático,
fezes, palavra leve, não aquece nem ilumina.
contando com sua As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais
breve. Te escrevo /não contam.
cuspe, cuspe, não Não faças poesia com o corpo,
mais; tão cuspe esse excelente, completo e confortável corpo, tão
como a terceira /infenso à efusão lírica.
(como usá-la num Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no
poema?) a terceira /escuro são indiferentes.
das virtudes teologais. Nem me reveles teus sentimentos,
(Psicologia da composição, 1947)
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa
viagem. FERREIRA GULLAR
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. A GALINHA
O canto não é o movimento das máquinas nem o
/segredo das casas. Morta
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar flutua no chão.
/nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza Galinha.
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada Não teve o mar nem
/significam. quis, nem compreendeu
A poesia (não tires poesia das coisas) aquele ciscar quase feroz. Cis-
elide sujeito e objeto. cava. Olhava o muro,
aceitava-o, negro e absurdo.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças. Nada perdeu. O quintal
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, não tinha
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de qualquer beleza.
/família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Agora
Não reeomponhas as penas são só o que o vento
tua sepultada e merencória infância. roça, leves.
Não osciles entre o espelho e a Apagou-se-lhe
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia. toda a cintilação, o medo.
Que se partiu, cristal não era. Morta. Evola-se do olho seco
o sono. Ela dorme.
Penetra surdamente no reino das palavras. Onde? onde?
Lá estão os poemas que esperam ser escritos. (A luta corporal, 1954)
Estão paralisados, mas não há desespero, 23
há calma e frescura na superfície intata. AS PERAS
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. As peras, no prato,
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. apodrecem.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. O relógio, sobre elas,
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra mede
e seu poder de silêncio. a sua morte?
Não forces o poema a desprender-se do limbo. Paremos a pêndula. De-
Não colhas no chão o poema que se perdeu. teríamos, assim, a
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada morte das frutas?
no espaço. Oh as peras cansaram-se
de suas formas e de
Chega mais perto e contempla as palavras. sua doçura! As peras,
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra concluídas, gastam-se no
e te pergunta, sem interesse pela resposta, fulgor de estarem prontas
pobre ou terrível, que lhe deres: para nada.
Trouxeste a chave? O relógio
Repara: não mede. Trabalha
ermas de melodia e conceito no vazio: sua voz desliza
elas se refugiaram na noite, as palavras. fora dos corpos.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Tudo é o cansaço
(A rosa do povo, 1945) de si. As peras se consomem
no seu doirado
sossego. As flores, no canteiro
diário, ardem,
ardem, em vermelhos e azuis. Tudo
desliza e está só.
O dia CACASO
comum, dia de todos, é a
distância entre as coisas.
Mas o dia do gato, o felino O FUTURO JÁ CHEGOU
e sem palavras
dia do gato que passa entre os móveis – Como foi?
é passar. Não entre os móveis. Pas- – Com revólver, arrebentou
sar como eu
passo: entre nada. a cabeça. E nem o sangue bastou
para desatar seus cabelos.
O dia das peras O desespero cortou-se
é o seu apodrecimento. pela raiz.
É tranquilo o dia – Impossível, como foi?
das peras? Elas – Assim.
não gritam, como – Mas como?
o galo. – Dizia que estava desanimado,
Gritar
para quê? se o canto que as coisas não faziam sentido.
é apenas um arco Ultimamente
efêmero fora do Já nem saía de casa.
coração? (Grupo escolar, 1974)
AGENDA
Era preciso que
o canto não cessasse
nunca. Não pelo Noite profunda. Sono profundo.
canto (canto que os Esperança rasa.
homens ouvem) mas (Na corda bamba, 1978)
porque can-
tando o galo
é sem morte. LAR DOCE LAR [para Maurício Maestro]
(id.)
Minha pátria é minha infância:
FRANCISCO ALVIM Por isso vivo no exílio. 24
(id.)
TORQUATO NETO

CIDADE COGITO
Poesia –
Espinha dorsal eu sou como eu sou
Não te quero pronome
fezes pessoal intransferível
nem flores do homem que iniciei
Quero-te aberta
para o que der na medida do impossível
e vier
eu sou como eu sou
(Sol dos cegos, 1968)
agora
sem grandes segredos dantes
UM HOMEM sem novos secretos dentes
nesta hora
De regresso ao mundo e a meu corpo
As estradas já não anoitecem à sombra de meus
/gestos eu sou como eu sou
nem meu rastro lhes imprime qualquer destino presente
Sou a água em cuja pele os astros se detêm desferrolhado indecente
A pedra que conforma o bojo das montanhas feito um pedaço de mim
O voo dos ares
(id.)
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim
LITERATO CANTABILE mais nojentas e chocantes.
agora não se fala mais Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre
toda palavra guarda uma cilada hoje faz-se morrer a velha morte de sempre
e qualquer gesto pode é o fim com muito maior urbanidade,
do seu início; sem precisar corar as pessoas bem educadas,
agora não se fala nada sem proporcionar crises histéricas
e tudo é transparente em cada forma nas damas da alta sociedade
qualquer palavra é um gesto sem arrefecer os instintos
e em sua orla desta baixa saciedade.
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:
CHARLES PEIXOTO
a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou. sou mais chegado ao escracho que ao desempenho
não se fala. não é permitido
mudar de ideia. é proibido. mais chegado à música que à porrada
não se permite nunca mais olhares mais chegado ao vício que à virtude
tensões de cismas crises e outros tempos sou pedestre sim senhor
está vetado qualquer movimento sou panfleta de uma sociedade anônima
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício reconhecida entre os ares pesados da cidade.
e os literatos foram todos para o hospício (Perpétuo socorro, 1976)
e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra ⁕
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.
(Os últimos dias de paupéria, 1973) venho subindo a ladeira lentamente
ALEX POLARI cuspindo o gosto do café amargo automático
do posto shell da rua Riachuelo
IDÍLICA ESTUDANTIL – III os amigos ficaram no ponto do ônibus
Nossa geração teve pouco tempo santa teresa são árvores sobrados e macadames
começou pelo fim que subo ofegante 25
mas foi bela a nossa procura a madrugada tira a cabeça do colapso
ah! moça, como foi bela a nossa procura um gato desconfiado cruza minha frente
mesmo com tanta ilusão perdida
quebrada, vadio
mesmo com tanto caco de sonho (Creme da lua, 1975)
onde até hoje
a gente se corta.
(Iventário de Cicatrizes, 1978) CHACAL
TRILOGIA MACABRA (III–A parafernália da
tortura)
RÁPIDO E RASTEIRO
Nos instrumentos da tortura ainda subsistem, é
verdade, vai ter uma festa
alguns resquícios medievais que eu vou dançar
como cavaletes, palmatórias, chicotes
que o moderno design até o sapato pedir pra parar.
não conseguiu ainda amenizar aí eu paro, tiro o sapato
assim como a prepotência, chacotas e danço o resto da vida.
cacoetes e sorrisos (Muito prazer, Ricardo, 1971)
que também não mudaram muito.
Mas o restante é funcional
polido metálico PAPO DE ÍNDIO
quase austero
algo moderno Veiu uns ômi di saia preta
com linhas arrojadas cheiu di caixinha e pó branco
digno de figurar
em um museu do futuro. qui eles disserum qui chamava açucri
Aí eles falarum e nós fechamu a cara
Portanto, depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo
para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos, Aí eles insistirum e nós comemu eles.
não é necessário mais rodas, trações, (id.)
fogo lento, azeite fervendo
e outras coisas
ANA CRISTINA CÉSAR AVISO AOS NÁUFRAGOS
Olho muito tempo o corpo de um poema Esta página, por exemplo,
até perder de vista o que não seja corpo não nasceu para ser lida.
e sentir separado dentre os dentes Nasceu para ser pálida,
um filete de sangue um mero plágio da Ilíada,
nas gengivas. alguma coisa que cala,
(Cenas de abril, 1979) folha que volta pro galho,
⁕ muito depois de caída.
Quando entre nós só havia Nasceu para ser praia,
uma carta certa quem sabe Andrômeda, Antártida
a correspondência Himalaia, sílaba sentida,
completa nasceu para ser última
o trem os trilhos a que não nasceu ainda.
a janela aberta
uma certa paisagem Palavras trazidas de longe
sem pedras ou pelas águas do Nilo,
sobressaltos um dia, esta pagina, papiro,
meu salto alto vai ter que ser traduzida,
em equilíbrio para o símbolo, para o sânscrito,
o copo d’água para todos os dialetos da Índia,
a espera do café vai ter que dizer bom-dia
(A teus pés, 1982) ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
PAULO LEMINSKI Não e assim que é a vida?
(Distraídos venceremos, 1987)
aqui
ALICE RUIZ
nesta pedra

alguém sentou 26
olhando o mar

o mar
não parou
para ser olhado

foi mar
pra tudo quanto é lado
(Polonaises, 1980)

FÉRETRO PARA UMA GAVETA

esta a gaveta do vício


rimbaud tinha uma
muitas hendrix
mallarmé nenhuma
esta a gaveta
de um armário impossível
(Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase,
1980) que viagem
ficar aqui
parada
(Navalhanaliga, 1980) SALGADO MARANHÃO
por um só fresta
entra toda a vida
que o sol empresta TRIBUTO A BOB MARLEY
(Paixão xama paixão, 1983)
⁕ das vielas da Jamaica
aos confins da Etiópia,
sem luto todos ouviram teu som:
pelo obsoleto guitarra enfurecida
só osso atravessado
ab na goela do ocidente.
so
luto todos notaram teu vulto
arrastando as tranças,
(id.) arrastando a rasta:
ORIDES FONTELA um Isaías no deserto
anunciando a vinda do Messias.
POEMA os mil céus de uma canção
de amor
Saber de cor o silêncio contra os mísseis
diamante e/ou espelho da moderna Babilônia,
babylouca explosão de dor.
o silêncio além
do branco. louvado seja o teu clamor
Saber seu peso estrela solitária,
seu signo pássaro negro do novo mundo!
– habitar sua estrela de tudo que restou de nós
impiedosa. fica valendo o teu canto
Saber seu centro: vazio e as milícias do amor
esplendor além em todos os recantos
remendando a história:
da vida uma chaga que dói mais que a dor.
e vida além 27
da memória. (Punhos da serpente, 1978/1989)
Saber de cor o silêncio
– e profaná-lo, dissolvê-lo
em palavras.
(Alba, 1983) HISTORINHAS DO BRASIL PARA
PRINCIPIANTES
MAPA
Eis a carta dos céus: chegaram de canhões e caravelas chamando tupis de
as distâncias vivas índios.
indicam apenas no primeiro dia brindaram ao redor da cruz, não
roteiros conheciam a terra, mas já eram donos. Mais tarde
voltaram procurando pedras, abrindo ruas, rezando
os astros não se interligam missas, matando índios e escravizando negros:
e a distância maior fundaram as capitanias das sífilis hereditárias.
é olhar apenas. (id.)
A estrela
vôo e luz somente
sempre nasce agora:
desconhece as irmãs
e é sem espelho.
Eis a carta dos céus: tudo
indeterminado e imprevisto
cria um amor fluente
e sempre vivo.
Eis a carta dos céus: tudo
se move.
(id.)
PAULO HENRIQUES BRITTO ANA MARTINS MARQUES
PARA NÃO SER LIDO MITOLÓGICAS
Não acredite nas palavras, Mortos em águas calmas
nem mesmo nestas, conservam os cabelos lisos
principalmente nestas. mortos em águas revoltas
os trazem encaracolados.
Não há crime pior Eu, que morri de amor,
que o prometido tenho os cabelos negros
e cometido. pois morri em águas turvas
tenho os cabelos longos
Não há fala pois morri em águas fundas
que negue – sigo descabelada.
o que cala. (Da arte das armadilhas, 2011)
(Mínima lírica, 1989)

MÍNIMA LÍRICA
POEMAS REUNIDOS
1
Poesia como forma de dizer Sempre gostei dos livros
o que de outras formas é omitido – chamados poemas reunidos
não de calar o que se vive e vê pela ideia de festa ou de quermesse
e sente por vergonha do sentido. como se os poemas se encontrassem
Poesia como discurso completo, como parentes distantes
ao mesmo tempo trama de fonemas, um pouco entediados
artesanato de éter, e projeto em volta de uma mesa
sobre a coisa que transborda o poema como ex-colegas de colégio
(se bem que dele próprio projetada). como amigas antigas para jogar cartas
Palavra como lâmina só gume como combatentes
que pelo que recorta é recortada, numa arena
cinzel de mármore, obra e tapume: galos de briga
a fala – esquiva, oblíqua, angulosa – cavalos de corrida ou 28
do que resiste à retidão da prosa. boxeadores num ringue
(Mínima lírica, 1989) como ministros de estado
numa cúpula
ou escolares em excursão
ANTÔNIO CÍCERO como amantes secretos
num quarto de hotel
às seis da tarde
ALGUNS VERSOS enquanto sem alegria apagam-se as flores do papel
de parede
As letras brancas de alguns versos me espreitam
em pé no fundo azul de uma tela atrás (O livro das semelhanças, 2015)
da qual luz natural adentra a janela
por onde ao levantar quase nada o olhar
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há de
retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.
(A cidade e os livros, 2002)
AUGUSTO DE CAMPOS

29

“Eis amantes”, 1953


RONALDO AZEREDO

30

“Velocidade”, 1957
DÉCIO PIGNATARI

31

“Beba Coca-Cola”, 1957


HAROLDO DE CAMPOS

32

“Nascemorre”, 1958
A TEMPESTADE Não solta a voz canora
No bosque o vate alado,
Quem porfiar contigo... ousara Que um canto d’inspirado
Da glória o poderio; Tem sempre a cada aurora;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se o claro rio? É mudo quanto habita
A. HERCULANO Da terra n’amplidão.
Um raio A coma então luzente
Fulgura Se agita do arvoredo,
No espaço E o vate um canto a medo
Esparso, Desfere lentamente,
De luz; Sentindo opresso o peito
E trêmulo De tanta inspiração.
E puro
Se aviva, Fogem do vento que ruge
S’esquiva As nuvens aurinevadas,
Rutila, Como ovelhas assustadas
Seduz! Dum fero lobo cerval;
Estilham-se como as velas
Vem a aurora Que no alto mar apanha,
Pressurosa, Ardendo na usada sanha,
Cor de rosa, Subitâneo vendaval.
Que se cora
De carmim; Bem como serpentes que o frio
A seus raios Em nós emaranha, — salgadas
As estrelas, As ondas s’estanham, pesadas
Que eram belas, Batendo no frouxo areal.
Tem desmaios, Disseras que viras vagando
Nas furnas do céu entreabertas 33
Já por fim.
Que mudas fuzilam, — incertas
O sol desponta Fantasmas do gênio do mal!
Lá no horizonte,
Doirando a fonte, E no túrgido ocaso se avista
E o prado e o monte Entre a cinza que o céu apolvilha,
E o céu e o mar; Um clarão momentâneo que brilha,
E um manto belo Sem das nuvens o seio rasgar;
De vivas cores Logo um raio cintila e mais outro,
Adorna as flores, Ainda outro veloz, fascinante,
Que entre verdores Qual centelha que em rápido instante
Se vê brilhar. Se converte d’incêndios em mar.

Um ponto aparece, Um som longínquo cavernoso e ouco


Que o dia entristece, Rouqueja, e n’amplidão do espaço morre;
O céu, onde cresce, Eis outro inda mais perto, inda mais rouco,
De negro a tingir; Que alpestres cimos mais veloz percorre,
Oh! vede a procela Troveja, estoura, atroa; e dentro em pouco
Infrene, mas bela, Do Norte ao Sul, — dum ponto a outro corre:
No ar s’encapela Devorador incêndio alastra os ares,
Já pronta a rugir! Enquanto a noite pesa sobre os mares.
Nos últimos cimos dos montes erguidos Mas ai do desditoso,
Já silva, já ruge do vento o pegão; Que viu crescer a enchente
Estorcem-se os leques dos verdes palmares, E desce descuidoso
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares, Ao vale, quando sente
Até que lascados baqueiam no chão. Crescer dum lado e d’outro
O mar da aluvião!
Remexe-se a copa dos troncos altivos, Os troncos arrancados
Transtorna-se, tolda, baqueia também; Sem rumo vão boiantes;
E o vento, que as rochas abala no cerro, E os tetos arrasados,
Os troncos enlaça nas asas de ferro, Inteiros, flutuantes,
E atira-os raivoso dos montes além. Dão antes crua morte,
Que asilo e proteção!
Da nuvem densa, que no espaço ondeia,
Rasga-se o negro bojo carregado, Porém no ocidente
E enquanto a luz do raio o sol roxeia, S’ergue de repente
Onde parece à terra estar colado, O arco luzente,
Da chuva, que os sentidos nos enleia, De Deus o farol;
O forte peso em turbilhão mudado, Sucedem-se as cores,
Das ruínas completa o grande estrago, Qu’imitam as flores
Parecendo mudar a terra em lago. Que sembram primores
Dum novo arrebol.
Inda ronca o trovão retumbante,
Inda o raio fuzila no espaço, Nas águas pousa;
E o corisco num rápido instante E a base viva
Brilha, fulge, rutila, e fugiu. De luz esquiva,
Mas se à terra desceu, mirra o tronco, E a curva altiva
Cega o triste que iroso ameaça, Sublima ao céu;
E o penedo, que as nuvens devassa, Inda outro arqueia, 34
Como tronco sem viço partiu. Mais desbotado,
Quase apagado,
Deixando a palhoça singela, Como embotado
Humilde labor da pobreza, De tênue véu.
Da nossa vaidosa grandeza,
Nivela os fastígios sem dó; Tal a chuva
E os templos e as grimpas soberbas, Transparece,
Palácio ou mesquita preclara, Quando desce
Que a foice do tempo poupara, E ainda vê-se
Em breves momentos é pó. O sol luzir;
Como a virgem,
Cresce a chuva, os rios crescem, Que numa hora
Pobres regatos s’empolam, Ri-se e cora,
E nas turvam ondas rolam Depois chora
Grossos troncos a boiar! E torna a rir.
O córrego, qu’inda há pouco
No torrado leito ardia, A folha
É já torrente bravia, Luzente
Que da praia arreda o mar. Do orvalho
Nitente
A gota
Retrai:
Vacila,
Palpita;
Mais grossa
Hesita,
E treme
E cai.
(Últimos cantos, 1851)

35
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