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1
brichote: designação pejorativa do estrangeiro.
2
Baiona: cidade da Calha onde se deram várias batalhas entre Espanha e Portugal. (id.)
3
Pegaso: por Pégaso, o cavalo alado, nascido do sangue da Medusa, que, com uma patada, fez nascer a fonte da Hipocrene, inspir adora dos poetas. Deve
entender-se: se o talento literário do poeta não for bastante para a elaboração poética do assunto, pouco valor tivera a invocação de Hipocrene (Spina apud
Wisnik).
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos, Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência
Não mordem outros não, por não ter dentes. da dama a quem queria bem
Quem maior a tiver, do que eu ter pude, Se és fogo, como passas brandamente?
Esse só me censure, esse me note, Se és neve, como queimas com porfia?
Calem-se os mais, chiton, e haja saúde.4 Mas ai, que andou Amor em ti prudente!
Soneto 2
Anjo no nome, Angélica na cara!
Isso é ser flor, e anjo juntamente:
Ser Angélica flor, e anjo florente, Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Em quem, senão em vós, se uniformara: Da vossa alta clemência me despido 5;
Porque, quanto mais tenho delinqüido,
Quem vira uma tal flor, que a não cortara, Vos tenho a perdoar mais empenhado.
De verde pé, da rama florescente;
E quem um anjo vira tão luzente, Se basta a vos irar tanto pecado,
Que por seu Deus o não idolatrara? A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido
Se pois como anjo sois dos meus altares, Vos tem para o perdão lisonjeado.
Fôreis o meu custódio, e a minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares. Se uma ovelha perdida e já cobrada 6
Glória tal e prazer tão repentino
Mas vejo que por bela, e por galharda, Vos deu, como afirmais na sacra história,
Posto que os anjos nunca dão pesares,
Sois anjo que me tenta, e não me guarda. Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
4
“chiton, e haja saúde”: chiton: do francês chut donc: silêncio; haja saúde: fórmula de despedida, muito usada na literatura latina (vale, bene valeat, etc.)
5
despido: despeço. (Wisnik)
6
cobrada: recuperada. (Wisnik)
CLÁUDIO MANUEL DA COSTA Aqui tem a virtude
Erguido o seu teatro,
I E nas rústicas cenas
Aqui mostra a pobreza os aparatos.
Para cantar de Amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento; As mal seguras canas
Ouvi pois o meu fúnebre lamento; Que move o vento brando,
Se é, que de compaixão sois animados: Da pobre rede tecem
Ao mísero Pastor o abrigo caro.
Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do Trácio Orfeu parava o mesmo vento; Colhida a tenra fruta
Da lira de Anfião ao doce acento Vem de seu próprio ramo
Se viram os rochedos abalados. A adornar a choupana,
Em vez dos altos capitéis dourados.
Bem sei, que de outros Gênios o destino,
Para cingir de Apolo a verde rama, Oh sítio venturoso!
Lhes influiu na lira estro divino: Quanto te invejo, quanto!
Ditoso quem possui
O canto, pois, que a minha voz derrama, O suave prazer de teu descanso!
Porque ao menos o entoa um Peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama. Se tu bem alcançaras,
(Obras, 1768) Pastor, um bem tão raro,
Não cessara o teu culto
Écloga XIX De consagrar obséquios a teu fado.
7
Provável referência a Cláudio Manuel da Costa.
Cartas Chilenas: em que se contam os sucessos de todo o Em que os próprios mancebos, que subiam
Governo de Fanfarrão Minésio, General de Chile. Escritas na À honra do governo, aos outros davam
língua castelhana pelo Poeta Critilo. Traduzidas em Português
e dedicadas aos Grandes de Portugual por um anônimo. Exemplos de modéstia, até nos trajes.
Deviam, Doroteu, morrer os povos,
Carta 1ª Apenas os maiores imitaram
Em que se descreve a entrada que fez Os rostos e os costumes das mulheres,
Fanfarrão em Chile. Seguindo as modas, e raspando as barbas.
(...) Os grandes do País com gesto humilde
Não penses, Doroteu, que vou contar-te Lhe fazem, mal o encontram, seu cortejo;
Por verdadeira história uma novela Ele austero os recebe, e só se digna
Da classe das patranhas, que nos contam Afrouxar do toutiço 9 a mola um nada,
Verbosos Navegantes, que já deram Ou pôr nas abas do chapéu os dedos.
Ao globo deste mundo volta inteira: (Cartas chilenas, 1788)
Uma velha madrasta me persiga,
Uma mulher zelosa me atormente,
E tenha um bando de gatunos filhos, FREI JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO
Que um chavo8 não me deixem, se este Chefe
Não fez ainda mais, do que eu refiro. Caramuru, poema épico do descobrimento da Bahia.
Ora pois, doce amigo, vou pintá-lo
Da sorte, que o topei a vez primeira; Canto Primeiro
Nem esta digressão motiva tédio,
Como aquelas, que são dos fins alheias; IX
Que o gesto, mais o traje nas pessoas
Faz o mesmo, que fazem os letreiros Da Nova Lusitânia o vasto espaço
Nas frentes enfeitadas dos livrinhos, Ia a povoar Diogo, a quem bisonho
Que dão, do que eles tratam, boa ideia. Chama o Brasil, temendo o forte braço,
Tem pesado semblante, a cor é baça. Horrível Filho do Trovão medonho:
Quando do abismo por cortar-lhe o passo 5
O corpo de estatura um tanto esbelta,
Feições compridas, e olhadura feia, Essa Fúria saiu, como suponho,
Tem grossas sobrancelhas, testa curta, A quem do Inferno o paganismo aluno,
Nariz direito, e grande; fala pouco Dando o Império das águas, fez Netuno.
Em rouco baixo som de mau falsete;
Sem ser velho, já tem cabelo ruço; X
E cobre este defeito, e fria calva
À força de polvilho, que lhe deita. O Grão Tridente, com que o mar comove,
Ainda me parece, que o estou vendo Cravou dos Órgãos na montanha horrenda,
No gordo rocinante escarranchado E na escura caverna, adonde Jove
As longas calças pelo embigo atadas, (Outro espírito) espalha a luz tremenda,
Amarelo colete, e sobre tudo Relâmpagos mil faz, coriscos chove;
Vestida uma vermelha e justa farda: Bate-se o vento em hórrida contenda:
De cada bolso da fardeta pendem Arde o céu, zune o ar, treme a montanha,
Listadas pontas de dois brancos lenços; E ergue-lhe o mar em frente outra tamanha.
Na cabeça vazia se atravessa
Um chapéu desmarcado; nem sei, como
Sustenta o pobre só do laço o peso.
Ah! Tu, Catão severo, tu, que estranhas
O rir-se um Cônsul moço, que fizeras
Se em Chile agora entrasses, e se visses
Ser o Rei dos peraltas, quem governa?
Já lá vai, Doroteu, aquela idade,
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Chavo: moeda de pouco valor.
9
Toutiço: nuca.
XI GONÇALVES DE MAGALHÃES
10
Título que aparece na 1ª edição dos Suspiros poéticos e saudades (1836): “O dia 7 de abril, em Paris”. O poema figura na seção
“Saudades” do referido livro.
11
Var. “Oh fantasia, mostra-me se podes”.
12
Var. “Reaviva o fulgor do entusiasmo”.
Mas em vão, que nos ares embruscados Aqui da Liberdade repetido
O mimoso colibri não adeja, Não soa o mago acento em meus ouvidos;
Nem longe do seu ninho o canto exala Nem o auriverde pavilhão tremula,
O sabiá canoro. Imagem das riquezas
Ah! se ao menos a dor que me alma punge, Da terra minha, fértil, abundante;
E a existência me azeda, Nem o canhão ribomba, que assinale
Um pouco se aplacasse, e doce riso, Que este Dia ao Brasil é consagrado.
Filho do coração, subisse aos lábios, Só o estridor ressoa
Quiçá na ausência da querida Pátria De turbulento povo, indiferente
Pudesse, inda que rouco, Da Pátria minha à glória.
Mais um hino ajuntar aos outros hinos,
Com que de meu amor lhe fiz ofrenda, Dia da Liberdade!
Quando no grêmio seu prazer gozava. Tu só dissipas hoje esta tristeza
Que a vida me angustia.
Lá, no teu seio, a vida respirando Tu só me acordas hoje do letargo
Tranquilo e sossegado, Em que esta alma se abisma,
Ou no mar agitado, à morte exposto, De resistir cansada a tantas dores.
Ou aqui nesta plaga tão remota, Ah! talvez que de ti poucos se lembrem
Fiel te sou, oh Pátria; não te olvido Neste estranho país, onde tu passas
Pelas grandezas que me ofrece a Europa. Sem culto, sem fulgor, como em deserto
Estes eternos monumentos d’arte, Caminha o viajor silencioso.
Estas colunas, maravilhas mortas,
Estas estátuas colossais de bronze, Mas rápidos os dias se devolvem;
Estes jardins soberbos, estes templos E tu, oh sol, que pálido me aclaras
São belos; mas não são de minha Pátria. Nestas longínquas plagas,
Tuas virgens florestas, e teus templos Brilhante ainda raiarás na Pátria,
Mais me aprazem que tudo que aqui vejo. E ouvirás meus hinos
Ah! quem me dera agora, em grato sonho Em honra deste Dia, não magoados 7
Iludido, cuidar que me revolvo Co’os fúnebres acentos da saudade.
Ignorado entre os meus, entre o tumulto
Do povo que no rosto traz impressa (Suspiros poéticos e saudades, 1836)
A glória deste Dia!
Quem me dera que os meus rústicos hinos
Por ele ouvidos fossem,
E por ele aplaudidos
No delírio do sacro amor da Pátria!
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“Conheces o país onde florescem as laranjeiras? Ardem na escura fronde os frutos de ouro...Conhece-lo? Para lá, para lá quisera eu ir” (tradução de Manuel
Bandeira)
Não permita Deus que eu morra II
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores Por que dormes, ó Piaga divino?
Que não encontro por cá; Começou-me a Visão a falar,
Sem qu’inda aviste as palmeiras, Por que dormes? O sacro instrumento17
Onde canta o Sabiá. De per si já começa a vibrar.
Coimbra – julho, 1843
(Cantos, 1846) Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
O CANTO DO PIAGA Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?
I
Tu não viste nos céus um negrume
Ó Guerreiros da Taba sagrada, Toda a face do sol ofuscar;
Ó Guerreiros da Tribo Tupi, Não ouviste a coruja, de dia,
Falam Deuses nos cantos do Piaga, 14 Seus estrídulos torva soltar?
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.
Tu não viste dos bosques a coma
Esta noite – era a lua já morta – Sem aragem – vergar-se e gemer,
Anhangá15 me vedava sonhar; Nem a lua de fogo entre nuvens,
Eis na horrível caverna, que habito, Qual em vestes de sangue, nascer?
Rouca voz começou-me a chamar.
E tu dormes, ó Piaga divino!
Abro os olhos, inquieto, medroso, E Anhangá te proíbe sonhar!
Manitôs!16 Que prodígios que vi! E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
Arde o pau de resina fumosa, E não podes augúrios cantar?!
Não fui eu, não fui eu que o acendi!
Ouve o anúncio do horrendo fantasma, 9
Eis rebenta a meus pés um fantasma, Ouve os sons do fiel Maracá;
Um fantasma d’imensa extensão; Manitôs já fugiram da Taba!
Liso crânio repousa a meu lado, Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!
Feia cobra se enrosca no chão.
14
Piaga: piagé, piaches, piayes; os autores portugueses escreveram pajé, como em verdade hoje se diz no Pará. Era ao mesmo tempo o sarcedote e o médico, o
áugure e cantor dos indígenas no Brasil. (Nota do autor)
15
Anhangá: gênio do mal, o mesmo que Léry chama de Aignan e Hans Staden Ingange. (id.)
16
Manitôs: uns como penates que os índios da América do Norte veneravam. O seu desaparecimento augurava grandes calamidades às tribos, de que eles
houvessem desertado. (id.)
17
Sacro instrumento: o maracá. Entre os índios, o instrumento sagrado, como o Saltério entre os Hebreus ou o Órgão entre os Cri stãos. Era uma cabaça crivada,
cheia de pedras e búzios e atravessada por um hastil ornados de penas multicores que lhe servia de cabo. O antigo viajante Roloux Baro, testemunha da veneração
que os índios lhe tributavam, chamava-o “le diable porté dans une calebasse”, o diabo dentro de uma cabaça. (id.)
III ÁLVARES DE AZEVEDO
Traz embira dos cintos pendentes Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
– Brenha espessa de vário cipó – Que o espírito enlaça à dor vivente,
Dessas brenhas contêm vossas matas, Não derramem por mim nem uma lágrima
Tais e quais mas com folhas; é só! Em pálpebra demente.
Oh! Quem foi das entranhas das águas, Eu deixo a vida como deixa o tédio
O marinho arcabouço arrancar? Do deserto, o poento caminheiro
Nossas terras demanda, fareja... – Como as horas de um longo pesadelo
Esse monstro... – o que vem cá buscar? Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Deixa-o: que venha e uivando passe Não! Morra tudo que me é caro,
– Bando feroz! Fique eu sozinho!
Não se te mude a cor da face Que não encontre um só amparo
E o tom da voz! Em meu caminho!
VÍTIMA DO DUALISMO
AUGUSTO DOS ANJOS Ser miserável dentre os miseráveis
– Carrego em minhas células sombrias
PSICOLOGIA DE UM VENCIDO Antagonismos irreconciliáveis 18
E as mais opostas idiossincrasias!
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância, Muito mais cedo do que o imagináveis
A influência má dos signos do zodíaco. Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
Profundissimamente hipocondríaco, E à gula negra das antinomias!
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco. Psiquê biforme, o Céu e o Inferno absorvo…
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Já o verme – este operário das ruínas – Feita dos mais variáveis elementos,
Que o sangue podre das carnificinas
Come e à vida em geral declara guerra,
Ceva-se em minha carne, como um corvo,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los, A simultaneidade ultramonstruosa
E há de deixar-me apenas os cabelos, De todos os contrastes famulentos!
Na frialdade inorgânica da terra!
(Eu, 1912)
OSWALD DE ANDRADE
MÁRIO DE ANDRADE
PERO VAZ CAMINHA (de “História do Brasil”)
A DESCOBERTA
AS MENINAS DA GARE
O TROVADOR 19
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Sentimentos em mim do asperamente Com cabelos mui pretos pelas espáduas
dos homens das primeiras eras... E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
As primaveras de sarcasmos Que de nós as muito bem olharmos
intermitentemente no meu coração arlequinal... Não tínhamos nenhuma vergonha.
Intermitentemente... (Poesia Pau-brasil, 1925)
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som
O CAPOEIRA (de “Poemas da colonização”)
redondo...
Cantabona! Cantabona! – Qué apanhá sordado?
Dlorom... – O quê?
– Qué apanhá?
Sou um tupi tangendo um alaúde! Pernas e cabeças na calçada
(id.)
(id.)
PRONOMINAIS (de “Postes da Light”)
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
18
Marca de perfume francesa.
19
Restaurante e confeitaria frequentado pela elite paulistana da época.
Mas o bom negro e o bom branco MAÇÃ
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias Por um lado te vejo como um seio murcho
Deixa disso camarada Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende
Me dá um cigarro /ainda o cordão placentário
(id.)
LONGO DA LINHA (de “Roteiro das minas”) És vermelha como o amor divino
CIDADE COGITO
Poesia –
Espinha dorsal eu sou como eu sou
Não te quero pronome
fezes pessoal intransferível
nem flores do homem que iniciei
Quero-te aberta
para o que der na medida do impossível
e vier
eu sou como eu sou
(Sol dos cegos, 1968)
agora
sem grandes segredos dantes
UM HOMEM sem novos secretos dentes
nesta hora
De regresso ao mundo e a meu corpo
As estradas já não anoitecem à sombra de meus
/gestos eu sou como eu sou
nem meu rastro lhes imprime qualquer destino presente
Sou a água em cuja pele os astros se detêm desferrolhado indecente
A pedra que conforma o bojo das montanhas feito um pedaço de mim
O voo dos ares
(id.)
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim
LITERATO CANTABILE mais nojentas e chocantes.
agora não se fala mais Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre
toda palavra guarda uma cilada hoje faz-se morrer a velha morte de sempre
e qualquer gesto pode é o fim com muito maior urbanidade,
do seu início; sem precisar corar as pessoas bem educadas,
agora não se fala nada sem proporcionar crises histéricas
e tudo é transparente em cada forma nas damas da alta sociedade
qualquer palavra é um gesto sem arrefecer os instintos
e em sua orla desta baixa saciedade.
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:
CHARLES PEIXOTO
a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou. sou mais chegado ao escracho que ao desempenho
não se fala. não é permitido
mudar de ideia. é proibido. mais chegado à música que à porrada
não se permite nunca mais olhares mais chegado ao vício que à virtude
tensões de cismas crises e outros tempos sou pedestre sim senhor
está vetado qualquer movimento sou panfleta de uma sociedade anônima
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício reconhecida entre os ares pesados da cidade.
e os literatos foram todos para o hospício (Perpétuo socorro, 1976)
e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra ⁕
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.
(Os últimos dias de paupéria, 1973) venho subindo a ladeira lentamente
ALEX POLARI cuspindo o gosto do café amargo automático
do posto shell da rua Riachuelo
IDÍLICA ESTUDANTIL – III os amigos ficaram no ponto do ônibus
Nossa geração teve pouco tempo santa teresa são árvores sobrados e macadames
começou pelo fim que subo ofegante 25
mas foi bela a nossa procura a madrugada tira a cabeça do colapso
ah! moça, como foi bela a nossa procura um gato desconfiado cruza minha frente
mesmo com tanta ilusão perdida
quebrada, vadio
mesmo com tanto caco de sonho (Creme da lua, 1975)
onde até hoje
a gente se corta.
(Iventário de Cicatrizes, 1978) CHACAL
TRILOGIA MACABRA (III–A parafernália da
tortura)
RÁPIDO E RASTEIRO
Nos instrumentos da tortura ainda subsistem, é
verdade, vai ter uma festa
alguns resquícios medievais que eu vou dançar
como cavaletes, palmatórias, chicotes
que o moderno design até o sapato pedir pra parar.
não conseguiu ainda amenizar aí eu paro, tiro o sapato
assim como a prepotência, chacotas e danço o resto da vida.
cacoetes e sorrisos (Muito prazer, Ricardo, 1971)
que também não mudaram muito.
Mas o restante é funcional
polido metálico PAPO DE ÍNDIO
quase austero
algo moderno Veiu uns ômi di saia preta
com linhas arrojadas cheiu di caixinha e pó branco
digno de figurar
em um museu do futuro. qui eles disserum qui chamava açucri
Aí eles falarum e nós fechamu a cara
Portanto, depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo
para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos, Aí eles insistirum e nós comemu eles.
não é necessário mais rodas, trações, (id.)
fogo lento, azeite fervendo
e outras coisas
ANA CRISTINA CÉSAR AVISO AOS NÁUFRAGOS
Olho muito tempo o corpo de um poema Esta página, por exemplo,
até perder de vista o que não seja corpo não nasceu para ser lida.
e sentir separado dentre os dentes Nasceu para ser pálida,
um filete de sangue um mero plágio da Ilíada,
nas gengivas. alguma coisa que cala,
(Cenas de abril, 1979) folha que volta pro galho,
⁕ muito depois de caída.
Quando entre nós só havia Nasceu para ser praia,
uma carta certa quem sabe Andrômeda, Antártida
a correspondência Himalaia, sílaba sentida,
completa nasceu para ser última
o trem os trilhos a que não nasceu ainda.
a janela aberta
uma certa paisagem Palavras trazidas de longe
sem pedras ou pelas águas do Nilo,
sobressaltos um dia, esta pagina, papiro,
meu salto alto vai ter que ser traduzida,
em equilíbrio para o símbolo, para o sânscrito,
o copo d’água para todos os dialetos da Índia,
a espera do café vai ter que dizer bom-dia
(A teus pés, 1982) ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
PAULO LEMINSKI Não e assim que é a vida?
(Distraídos venceremos, 1987)
aqui
ALICE RUIZ
nesta pedra
alguém sentou 26
olhando o mar
o mar
não parou
para ser olhado
foi mar
pra tudo quanto é lado
(Polonaises, 1980)
MÍNIMA LÍRICA
POEMAS REUNIDOS
1
Poesia como forma de dizer Sempre gostei dos livros
o que de outras formas é omitido – chamados poemas reunidos
não de calar o que se vive e vê pela ideia de festa ou de quermesse
e sente por vergonha do sentido. como se os poemas se encontrassem
Poesia como discurso completo, como parentes distantes
ao mesmo tempo trama de fonemas, um pouco entediados
artesanato de éter, e projeto em volta de uma mesa
sobre a coisa que transborda o poema como ex-colegas de colégio
(se bem que dele próprio projetada). como amigas antigas para jogar cartas
Palavra como lâmina só gume como combatentes
que pelo que recorta é recortada, numa arena
cinzel de mármore, obra e tapume: galos de briga
a fala – esquiva, oblíqua, angulosa – cavalos de corrida ou 28
do que resiste à retidão da prosa. boxeadores num ringue
(Mínima lírica, 1989) como ministros de estado
numa cúpula
ou escolares em excursão
ANTÔNIO CÍCERO como amantes secretos
num quarto de hotel
às seis da tarde
ALGUNS VERSOS enquanto sem alegria apagam-se as flores do papel
de parede
As letras brancas de alguns versos me espreitam
em pé no fundo azul de uma tela atrás (O livro das semelhanças, 2015)
da qual luz natural adentra a janela
por onde ao levantar quase nada o olhar
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há de
retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.
(A cidade e os livros, 2002)
AUGUSTO DE CAMPOS
29
30
“Velocidade”, 1957
DÉCIO PIGNATARI
31
32
“Nascemorre”, 1958
A TEMPESTADE Não solta a voz canora
No bosque o vate alado,
Quem porfiar contigo... ousara Que um canto d’inspirado
Da glória o poderio; Tem sempre a cada aurora;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se o claro rio? É mudo quanto habita
A. HERCULANO Da terra n’amplidão.
Um raio A coma então luzente
Fulgura Se agita do arvoredo,
No espaço E o vate um canto a medo
Esparso, Desfere lentamente,
De luz; Sentindo opresso o peito
E trêmulo De tanta inspiração.
E puro
Se aviva, Fogem do vento que ruge
S’esquiva As nuvens aurinevadas,
Rutila, Como ovelhas assustadas
Seduz! Dum fero lobo cerval;
Estilham-se como as velas
Vem a aurora Que no alto mar apanha,
Pressurosa, Ardendo na usada sanha,
Cor de rosa, Subitâneo vendaval.
Que se cora
De carmim; Bem como serpentes que o frio
A seus raios Em nós emaranha, — salgadas
As estrelas, As ondas s’estanham, pesadas
Que eram belas, Batendo no frouxo areal.
Tem desmaios, Disseras que viras vagando
Nas furnas do céu entreabertas 33
Já por fim.
Que mudas fuzilam, — incertas
O sol desponta Fantasmas do gênio do mal!
Lá no horizonte,
Doirando a fonte, E no túrgido ocaso se avista
E o prado e o monte Entre a cinza que o céu apolvilha,
E o céu e o mar; Um clarão momentâneo que brilha,
E um manto belo Sem das nuvens o seio rasgar;
De vivas cores Logo um raio cintila e mais outro,
Adorna as flores, Ainda outro veloz, fascinante,
Que entre verdores Qual centelha que em rápido instante
Se vê brilhar. Se converte d’incêndios em mar.
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