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ANTOLOGIA

POÉTICA

Arthur Prazeres
ANTOLOGIA
POÉTICA

Dedico esta Antologia


à minha mãe Jaqueline Prazeres
à minha irmã Brenda Prazeres
e a meu irmão Danilo Prazeres
como alicerces da imensa alegria
da minha Vida
ENTERREI MEUS OLHOS

Enterrei meus olhos.


Enterrei-os ainda sãos
Como se esfinge fossem
Mendigando à alma o pão.

Enterrei-lhes pálpebras,
Escleróticas em rubor,
Sob um Sol que navegava
Pelas vísceras da dor.

Amarrotados estavam
Em sua rota mortalha,
Após se verem livres
Desse ver-aquém-cangalha.

Agora, enterrados, jazem.


(Viram meninas do povo
Serem enterradas vivas!)
Da morte são reais convivas!

2
ÁTIMO

Entender a flor do mundo


Numa relação comigo só
Conceber o outro a fundo
Desbastando em mim o pó
Sondar o que há de imundo
Nesse monstro atado em nó
E assim colher segundos
Que me dá a vida à mó.

3
ÁRVORE INFERNAL

Estranha é essa fábrica de palavras,


De dizer-se enquanto mito, pintura,
Trabalhando o arroz e a semeadura
De tudo quanto o tempo faz e grava,
Maré que é moça e memória que é nada
Em instantes de pura flauta e alvura,
Asséptica folha em fervor, brancura
Que corre como a placidez das águas!
Estranha como a sede de expressar-se
Por qualquer força, logro que voasse,
Dizendo-se tal ser que assunta o Ser,
É a sede de só em Poesia bastar-se
Por dentro de tudo que só em mim alce
A vontade louca de nunca morrer!

4
UM COLIBRI

Voa entre minúsculos seres


E rufla os pequeninos ossos,
A pelagem é azul e auriverde
Com realces muito brilhosos.
Numa lida igual a dos poetas
(E sobre isso nada suspeita)
Namora carpelos e corolas
Para daí lhes sorver o néctar.
Leve como o vento ou a pluma,
Ostenta os potentes úmeros,
Tão delicados quanto o poema:
O doce ritmo, etéreo e lúdico.
Então, o miúdo filho dos jardins,
Que no ar, sob o sol, é tão nítido,
Irradia o seu tão fulgente brio
E irrompe nas flores primaveris.

5
***1

Dar-lhes o pão do meu ocaso,


Pão de quem alto subiu,
E que atônito, enojado,
Soou tal pedra que caiu,
Que caiu em poço enlameado,
Como o saber é a um covil,
Sem a pura face, dardos
Dados fogos ao esmeril;
Dar-lhes o pão desgraçado,
De mortos à mesa vil,
E co'o leite puro, o aspargo,
Servir crápulas sem brio,
Nesse jantar odiado
Onde os pratos só vêm frios!

6
LINHA DO HORIZONTE

Além de tudo a palavra,


Passando, lã de silêncio;
Além, a angústia mais agra,
Berçando-me, pouco e denso;
Além, a clausura e a fala,
Com seu verbo-jaula, intenso;
Além está o rio da bala
Para o peito do que é imenso;
Além está o céu de chuva
Tramando acre solidão,
Estão os cachos para as uvas,
Asco da boca em sazão;
Estão as harpas para as luas,
Mar de dor e gratidão!

7
SOBRE POEMAS DO AMIGO ROGÉRIO ROCHA

Sei que os poemas te nascem,


Rios que correm de águas turvas,
Sonhos de ovelhas que balem
Por tuas mãos cheias de curas;
Sei que és na alma procurado
Pelos anjos da poesia
Para que ante o indecifrado
Nos possa ser então um guia;
E também sei de teu esforço
Para fazer do ilegível,
Do que te vem sem esboço,
Uma fonte de ar tangível,
Pois és o pastor de um ouro
Bem maior que todo o crível!

8
O FÓRCEPS

O fórceps que me trouxe à luz


Duma manhã de dezembro
(Me trouxe ao palco 'sem ensaios' do real)
Perdeu-se além manhãs por imperitas mãos;
Perdeu-se num negro mar de dores!
O fórceps que me trouxe à luz,
Cortando bruscamente o cordão umbilical,
Jogou-me aqui, sob a foice da vida,
Num atávico crepúsculo de pais e avós;
Essa lâmina foi a primeira a me sentir,
Quente, sujo de cera amniótica,
Saído da placenta como se das palavras;
Jogou-me aqui sem qualquer tribunal
Ou razão de ser; e cá estou, nesta abrupta revolução,
Que abole toda e qualquer Vontade,
Que abole todo e qualquer Deus!

9
PREVARICAÇÃO

Quanto maior a exigência


Maior a solidão

O poeta pinta a sua noite


Com as lágrimas de uma atroz ausência

O frio da madrugada é cortante


(E pede abrigo e pede teto)

Nem mesmo qualquer tumba-mãe


Guardará da sala a família
Que conversa em horário nobre
(Em paupérrimo horário)

Quanto maior a exigência


Maior será a solidão

E nenhuma palavra expressará


Esse óbito na garganta da pátria.

10
O ESTAR DO NÔMADE

Agreste solo de escrita,


Nossa mão educada à foice
Que traça dentro essa intriga
Da amor, ventania e coice!
Estranho solo de escrita,
Biqueira de uma água fluida,
Mas também o parasita
Que como uma mãe nos cuida!

11
POEMA PARA LUÍS FLÁVIO

Crianças brincam na tarde


Cheia de outras cores, sons;
E que por assim estarem
São de outras idades, tons;
Crianças são fogo e alarde
Revirando o baú dos dons;
E que de tantos esgares
Nos dão ocultas estações;
Crianças, quando tornardes
Àquilo que é luz, princípio,
E de lá em asas lançarem
Pura alegria ao meu espírito,
Hão só de ao meu amor bastarem,
A mim: Deus e Precipício!

12
***10

A luta é vã? A luta é sã?


Se mal rompe a luz do dia
E a batalha se anuncia,
Ganho ou perco a manhã?
E se ouço a flauta de Pã
Que por inteiro inebria
Vencendo já a coisa fria
Que se impõe tal harmatã,
Venço agora esta brancura
De papel e de fissura
Que me prende essa alazã
De uma vida que se cria
Quando venço a nostalgia
E o tédio das manhãs!

13
***1

Descendo à funda angústia,


Que sabe tudo de mim,
Dou-me com uma medusa
Que guarda fígado e gim
E que conhece esta luta
Que me ensaguentou o brim
De um sangue coalho, púrpuro,
Tão real quanto o meu fim;
Luta de sonhos, palavras,
Batalha que não se ensina,
De cismas em vão travadas,
Pois só o sentir é que a firma
Nas loucas e insones escadas
De pobre e menor poesia!

14
***2

É de pó a velha cidade;
Castigada pelas chuvas,
Falta de honestidade
E tantas outras fissuras,
Ela só sabe da cárie
Cavada neste chão, fula,
Que nos reserva a barbárie
Dentre outras muitas agruras;
Terra torpe, louco amor,
Dos meus suicidas diários,
Guardo-te da infância o olor
Cheio de meu fabulário,
Ah! monstros de meu horror,
Deuses de saber lendário!

15
***3

É uma água pura, corrente,


Saída de fria cisterna;
Quando de poço ela freme
Pelas torneiras etéreas;
É estranha quando gemente,
Apertada em ânsia, fera,
Querendo chegar, temente,
A tudo o que conta léguas;
É a água que sofre de estio,
Sem bacias nem reservas
Que a renovem em seu brilho
Ou lhe deem labuta, certa;
É a água de diário rito
Que corre sem fonte, eterna!

16
***4

Às vezes nem eu me entendo;


Mas mamo os seios dum rio
Em que corre farto um lenho
Como um pião dando giros
A desenterrar o rebento
De uma ideia em seus fios
Sendo eu o seu morno unguento
Depositado em carinhos;
Este rio me nutre o desejo
Feito céu em noturno abismo
De uma volúpia sem pejo,
De cicatriz em seu sismo,
Rio de fartos, doces seios,
Para o meu sonho em delírios!

17
***5

Eis as pancadas da terra,


Marcadas por tristes bombas,
Pelo mal que em si se aferra
Trazendo o ódio às alfombras!
Eis as pancadas da terra,
Brim e estopa que se goma
Para a derradeira guerra
Do sangue em que se assoma!
Sinto fundo tais pancadas
E qual quem nadasse em lama,
Puxando um fôlego parco,
Eu fosse entalhado em cama
E tivesse só o nó dado
No meu pescoço em vil trama!

18
***6

Se o que quero é ser relido


No ápice de minha chama
Ainda que me doa o olvido
Em sua sepultosa lama,
Farei da chuva meu abrigo
Com tudo o que ela trama,
Caindo toda em detritos
De solidão e de tardança;
E se lido sou mal lido,
Sendo muitas as camadas
De minha ocultada pele,
Sei que dentro trago o mítico
Mundo de duendes, fadas,
Basta reparar na derme!

19
***7

Tendo a palavra uma vida:


Verde capim, vento solto,
Soletro o alfabeto, ó lida,
De um poema sem esboço;
Se tudo requer uma alma,
Sem a qual tudo dá em logro,
Por que essa dor sem mais nada,
Por que não fui feito um outro;
E se há a necessidade,
Essa de dizer-me agora
Enquanto ser fugidio,
Cadê a elasticidade,
Por que esse juro de mora
Sobre meu ser feito um tiro?

20
***8

Tudo se deu em finitude:


O amor, o poema, os fatos...
Vi-me nas altas montanhas
Onde o frio faz estrago;
Tudo se foi em sopro/voo,
O sentido curto e o lato;
De tudo quanto era doce
Ficou o podre, gosto amargo;
Mas sinto, uma flor renasce,
Dentre tempos lacrimosos
Como as células dos olhos;
Sinto! Habito a imemória
Deste tempo feito escória
Até o fundo dos meus ossos!

21
***9

Seremos todos robôs


(Tolo celular em mãos)
Nos privando até de nós
Sem ver da vida um só grão!?
Será tudo programado,
Irreal, pré-concebido,
Neste tempo de um só fardo,
De rebanhos e de gritos!?
E o que será a liberdade
Nestes tempos sem ouvidos
Em que nós somos os Bobos!?
Que seremos sem visão
Neste século tão em vão
Que nos corre sem um fogo!?

22
***12

Jaz a flor numa masmorra;


Cálido é seu puro mel,
Como o azul do mar à anchova
E o ar ao pássaro no céu;
Jaz a flor numa desforra;
E só lhe cabe o tropel
De cavalos e de forcas
A caminho de um só fel;
A flor é de uma outra língua,
Que fina de estirpe e espécie,
Só brota ao luar que míngua,
Só cura quando arrefece,
Assim como Nietzsche previra
Ser a dor que só nos cresce!

23
***13

Estou oculto em duplo ser;


Sou um tigre, um louco poeta;
Em parte quero entreter,
Por outra sou um falso asceta;
Não há afago a quem me lê,
Nem o sono a quem o espera,
Pois só sou afeito ao doer,
A essa inquietação de fera;
Trago uma carranca a arder,
Mortuária face à que se atrela
A vontade de beber
Dessa vida a louca festa,
Porém de tudo me abster
Vendo que vida só há esta!

24
***14

Duras manhãs de um rio lento,


Única é a dor, vagarosa;
A banhar-me em frio vento,
Mastigo a luz pedregosa;
Como um Natal que afugento,
De lembranças nebulosas,
É limbo a vida que invento
À janela dessa esmola;
Manhãs em que tudo cresce,
Cabelos, unhas e flores,
Prova de uma rica messe,
Prova das vultosas dores;
A vida é um Sol que se embebe
No âmago das mortas cores!

25
***15

Já que sou um náufrago em tudo,


Mas fortalecido em dor,
Rogo a deuses que são mudos
Pelo ócio em que planto amor,
O amor em que semeio fundo,
Mais que as cáries do pavor,
O que tenho ao meu oco mundo
De humano e perdedor;
E se em derrota vencemos
Mais que em vitória vazia,
O que nos resta, ó meu Pai,
De tudo que raiou em dia?
Pois de tudo nada temos,
A não ser quebrada lira!

26
QUADRAS AO GOSTO PROVINCIAL

***1
As vozes das velhas árvores
Dão na mureta da infância,
Pelo segredado mármore
Onde cai a chuva da estância;

Dão no que coube de vento,


Nos meninos que ali brincam
Trepados nos pensamentos
De caminhos que se fincam;

Dão nas águas ainda virgens,


Em telégrafos, damascos,
No furor dessas vertigens,
No traçado dos meus ascos;

Dão na memória esquecida,


Que insiste em ser poesia,
Nos romances, nas feridas,
E no eterno nascer dos dias!
27
***2

Ir ao fundo da memória
(Meu ardente e único refúgio)
Para cantar as estórias,
Mas sem nenhum subterfúgio;

Ir ao fundo de mim mesmo,


Onde estão buzinas pútridas;
Árvores, choças nos ermos,
Luas e escondidas grutas;

Cavar e cavar bem fundo,


Como se cavasse cova,
Mas para tirar-me um mundo
E não qualquer boa nova;

Mergulhar em fundo mar,


Quilômetros de pressão,
É esse enfim o meu sonhar,
Perder-me a não achar o chão!

28
***3

Ó minha lua, meu amparo!


Branca estátua de meu céu!
Vivo um tormento tão caro,
Pois sou apenas menestrel;

Ó alva estrela que cintila!


És tão rica de segredos;
És do mistério uma filha,
Confessório de meus medos;

Brilhas ante as nebulosas


Tal um espírito eterno;
Suave nas folhas, gozas
As fagulhas de teu esmero;

Sou assim como serena és,


Vivo ao centro de teu rito,
Alta noite evoco os pés,
Lobos, xamãs de teu mito!

29
***4

É o meu coração a dizer


Tudo quanto sonho e faço,
Bola que rola a entreter
Os meus olhos que são baços;

É o meu coração feito água


Correndo em sua pureza
E que vibra ao ver a anágua
De pernas na não-leveza;

É o meu coração de argila


Moldado ao pânico amor
Que na medula se agita
À beira de um facho em flor;

É o meu coração de chuva


Que respinga na esperança
De tudo quanto é feito uva
Nessa tua boca de criança!

30
***5

A pizza já é a festa toda


De onde trago essa alegria
Celebrada gota a gota
No orégano do meu dia;

As crianças já são luz


Que se espalha pela vida,
São o reverso do meu pus,
Que tento dizer em lida;

Tudo é de uma beleza única,


Revoada vista em praia
Que estremece feito túnica,
Feito vento em samambaia;

É o que me alimenta dentro


A vontade dessa escrita,
Como o tempero do coentro,
Como o mistério das criptas!

31
***6

Entalhando tudo em zero,


Nulo sopro de um novelo,
Tenho dentro o fogo, o esmero,
Por tudo o que diz o grego;

Nada quero do que é fácil,


Mastigado e raso verso;
Só quero esse sangue grácil
De quem nadou em fundo verbo,

Fundo quase a tocar o oco,


A árdua lição de seu inferno,
Como quem não tem reboco
Ou nem mesmo qualquer teto;

Quero chegar ao meu fundo,


Jardim de ocultas bromélias,
Falando pra deus e o mundo
O quanto isso é uma pilhéria!

32
***7

Todo me esquivo da morte,


A rejeito a cada instante,
E digo o menos: de sorte
O nada que me é bastante;

Ah esse premir de peito,


O luar além do amar,
Uno ele e eu, de todo jeito,
Na bênção da preamar!;

Ó trágico que me é lícito,


Essa face de cristal,
Digo-a na fonte, inteiriço,
Querendo-lhe bem e mal;

Assim quero ser o meu chão,


E morte! e amor! e ar! e cruz!
Ser o mistério do pão
Pedindo a deus: luz! mais luz!

33
***8

Luto coa palavra viva:


Um tenso abrigo no mundo;
Essa guerra renhida
Travada comigo a fundo;

Luto como toda gente:


Pedreiro, operário, médico;
Salvando almas coa fulgente
Tinta de meu louco préstimo;

Luto porque um deus o quis,


Com a turva alma plebeia,
Co'o choro da meretriz,
Essa oca, parca lereia;

Luto coa honra da espada


Desembainhada agora,
Pelo sangue da batalha
E o 'rumor da falsa glória!'

34
***9

Escrevo como quem respira


À altura do meu peito em chamas,
Tangendo uma quebrada lira
De puro bronze imerso em lama;

Ó palavras que são refúgio,


Límpido oxigênio ao diafragma,
A aldeia do meu ser telúrico,
O bombear de minha faina;

Às vezes passo horas co'elas,


Imaginando suas frestas;
As noites de suas estrelas;
A viola de suas serestas;

Amo-as em seu poder fundante,


Que, antes da cega escuridão,
Já eram como um louco levante
De ave em mar e pó em solidão!

35
O SONO

O sono nos cerca, molesta;


Plúmbeo em nossos pétreos olhos,
Tal as ondas em seus escolhos,
É um se espraiar por longas festas;
Eis então a fortaleza mestra,
O sono, em círios vagarosos,
Contra os vis cães estrepitosos,
Arma todas as feras e bestas!
São seres que a fábula gesta,
Mas tão reais quanto enganosos,
Vagam por sonhos, fabulosos,
A deixar-nos presença mesta;
Essa presença igual aos grossos
E largos fios de nossos ossos!

36
AO POETA

Espalha tuas asas, ó gigante!


Retendo em ti o prazer oco da forma,
O torto ritmo e essa abolida 'norma'
De em 'régua' captar um fugaz instante!
Tuas são as horas, ó hierofante!
Que de mágicas palavras borda
Àquilo que deveria ser-te a corda
Onde enforcar-se a cada parco instante!
Detém-te sobre a linguagem dos pássaros,
O que dizem agora entrincheirados
Entre estrelas que são barris de pólvora;
Será que falam em amargos passos
À vida toda pelos mortos dados
Às cruzes erguidas em algum Gólgota!?

37
LIBAÇÃO A NAURO

Ele, que ia em trôpego passo,


Coa mente incônscia da dor,
A blusa de um sangue coalho,
Pisando esgotos de amor;

Ele, tão real e falho,


Miragem de um só estertor,
Ia com o coração gaio
E o corpo num só fedor;

Ele, que ia tal um baralho


Que era a própria vida a pôr
Sobre a mesa os seus retalhos,
E sobre a alma o seu pavor;

Ele, que recebia o malho,


E tão grande quanto um Poe,
Via a vida qual o talho
Do Ser em que se embrenhou!

38
ALGUNS SONETOS

***1

Há alguém em mim que blefa louco verso,


E que em primeira mão me sopra o logro,
Esse alguém me vem pé ante pé, e confesso,
Ser de todo poder engano e mofo;
Há alguém em mim que é besta feita em berros,
E astuto jogador de um vício torvo,
Que só alta noite é voz, e flauta, e féretro,
Onde levar-me os restos dos despojos;
Há alguém em mim que tenta ver o oco ego
Com outros olhos, não os de um só e vil lobo,
Mas os de um anjo feito luz e prego,
Pois rude é a sua missão de austero ogro;
Feito um piano, só retive o esmero;
Eis-me aqui às tortas falas dum malogro!

39
***2

Pudesse agora, só, testar meus bens,


Declararia o pó em inúteis livros,
Esses que vou juntando sem alguéns
Que me leiam já tão real e ambíguo;
Pudesse agora, só, pegar meus trens,
Esses de sonhos, nuvens de abrigos,
Contra o lençol que é frio e que nos tem
Na noite-lâmina cortado a fio,
Declararia rei meu ser também,
Como o maior senhor de terras, lírios,
Que vão na vida nos deixando zen,
Por ser de um puro espírito, onírico,
Porém a vida só nos faz refém
Dessa matéria bruta de um suspiro!

40
***3

Esta noite, mais pesada que o chumbo


Feito bicho dado ao escuro de si,
Que é fragata para os mares sem rumo
Onde vou-me desdoidando de mim;
Esta noite, mais pesada que o fumo
Que aqui trago, nesse rastro que é fim,
Ou até quando vou perdendo meu prumo
Afundando-me nas praias de um gim;
Esta noite mais parece um embargo
Da difícil voz, da difícil fala,
Que sustento como hóstia do escarro
E que amparo (perdição de uma bala)
No oco peito de meu último afago
E nas loucas, sepultadas mãos gastas!

41
***4

Do meu sol interior, chama azul,


Nasce o verso da imemória do chão;
Usar força ou imaginar não lhe basta,
Ele quer mais que usura, mais que espírito,
Quer chupar o puro açúcar dos olhos,
Dos meus olhos, sem qualquer telescópio
Ou qualquer fonte de angústia que valha
Me dizer enquanto saga homérica;
Vou seguindo nessa trilha de estrelas,
Genuíno sabor, mel e ambrosia,
Flor agreste e relutante, blindada,
Ó meu verso mortuário, artefato;
Se te sei todo feito ouro, ente vivo,
A ti dou a vida, devoto o imo tempo!

42
***5

Sendo o frio também espécie de arroubo


Dado àqueles que escalaram montanhas
De si, os próprios ares, alpes, entranhas,
Conhecendo o farejar de seu lobo;
Se terrores de seu espírito probo
Têm agora atormentado sua cama
Com demônios de passado, de lama:
– É que só na imperfeição há um ser novo; –
Sendo torto o caminhar, a verdade,
Se é que há mesmo verdade plausível,
Nosso ser de todo é o nada mais crível,
Sendo o todo que preenche as idades
Desde o abrir dos olhos às tempestades
Dos sós, últimos momentos vivíveis!

43
***6

Sendo toda a vida espírito, chuva,


Vou correndo pelo dorso das águas,
Trespassando toda dor, que cavala,
Esfarela-me em farinha de puba;
Sendo a vida verbo, ideia, pura luta,
Dou-me todo enquanto homem de garra,
Escrevendo loucos versos em ágata
Aos poetas solitários, às putas;
Ó castelo, duras forças, ar simples,
Se teu mar é de corvetas e naus
O teu templo é de esquecidos degraus,
Mas guardando o puro fogo da esfinge;
Garatuja ou não só escrevo o meu pão,
Essa força de trom, verbo em canhão!

44
11.6.22

Brincando com as palavras


Descubro as náufragas flores,
Todas de memórias ágrafas,
Sem identidade ou amores;

Quando as vejo no céu, tétricas,


Abortam-se os sonhos maus,
Pois tenho delas a feérica
Visão de Jesus com seu Graal;

Sei que não as vejo sozinho,


Pois em mim habitam muitos
Que lhes fazem poemas, hinos

De alegrias, glórias e vultos;


Todos tocando ternos sinos
Nas aldeias do meu tumulto!

45
11.6.22

Que darei de mim ao mundo


Que só me dá socos, cuspe;
Que farei do ser imundo
A que chamo de meu embuste?

Quanto de mim ainda vive;


Quanto em alma já morreu?
Desse eu, que, solto no ringue,
Já de todo se perdeu!

O teu abc, mundo, é mudo,


Já não pronuncia a lição,
A que dá de comer à alma,

Mas esfacela o coração;


Guardo-te todas as mágoas
E o punhal da solidão!

46
O SILÊNCIO

O silêncio é sepulcral
E paira sobre a Poesia,
Que em seu vasto lodaçal
É como uma cega encíclica;

O silêncio é pastoral
E sabe as guerras do dia,
Mas mesmo às sombras do mal
Não dá ouvidos ou vigília;

Eis o silêncio, abissal,


Violento e vil como um vândalo,
Que na surdina da noite

Com suas dor, miséria e foice,


Atravessa a praça igual
A quem atravessa um pântano!

47
16.4.22

O som da chuva é mais leve


Que o clássico do violão,
Mais seda é a queda da neve
Que o dedo em oco bordão;

A queda da chuva é de ouro


Ao ouvido do atento poeta,
Que a todo sopro do logro
Responde com a alma inquieta:

— Tu não hás de me vencer,


Pois de toda a tua imundície
Retiro a minha riqueza! —

E assim cai a chuva a entreter


Meus sentidos baços, grises...
Ó boa e gentil natureza!

48
GATUNO

Roubo o pão da dura fome,


Dessa fome urgente, abrupta,
Da vogal que forma um nome
Junto à consoante muda;

Meus lábios, tão sós, atritam


Buscando o sumo da fruta,
A carne e a raiz que gritam
Essa linguagem já pútrida;

Roubo o verso de outra boca


Como se a um alimento santo,
Minha mão que em nada treme

Só sabe a vertigem louca


Do coração que se espreme
Na jaula-cova do pranto!

49
13.4.22

Poesia, te carrego! ó cruz!


Te carrego no dia santo;
Te carrego à pouca luz;
Te carrego em vastos prantos!

Poesia, és troca de saúde;


És o meu rosto barbado
Chorando à beira do ataúde
Os brancos fios desbotados!

Ó tu, meu castigo e prenda,


Pago-me da tarefa árdua
De fazer-te fogo em renda,

Essa, de meu povo bravo,


Tão afeito a peias e contendas;
Ó poesia: sopro, brio e lenda!

50
14.4.22

É dentro de mim o abrigo


Dessas aves sós, perdidas;
É em mim o quente do ninho,
De palhas e folhas vivas!

É dentro de mim o tempo


Dessa muda de plumagens,
Do cisne em oiro, de ventos
Que vão além dessas paragens!

É dentro de mim o teto


Dessas manhãs tão chuvosas,
De um Deus na fúria dos gestos,

Da natureza em gaivotas,
Que dando de beber aos fetos,
São corações de ocas portas!

51
SONATA DA CHUVA

Nado as turvas águas de um sonho,


As águas de um tempestuoso poema;
Em meio à estranha madrugada ele me surge
Como uma chuva de sonata e alfazema;
E tal botão que desabrocha no inverno
Ele conhece a anatomia da beleza,
Tem a musculatura de um fruto sempre doce
E a cadência dos sons em sua leveza;
Ó meu poema, cavalgada de vida e morte,
És a eletricidade de uma mente menina;
És o pássaro que paira sobre a sorte;
De ti guardo os cheiros, defuntas alegrias,
Ó sopro vivo, milenar, feroz em seu bote!

52
16.2.22

Sou esta flor que aspira dor e agonia,


Sempre disposto a roer feito traça
Livros, mundos e ficções dos meus dias
Em que dou murros em ponta de faca;
Sou só um pássaro canoro que trina
Contra essa ordem de certezas já gastas,
Arapuca da palavra em que brilha
O diamante das fatais gargalhadas;
Sou palhaço desses circos sem lona
Ou até o rei que destronado pirou,
Cavaleiro de uma dama que é dona
Por inteiro dessa joça de amor;
Sou o poeta da tragédia, que à tona
Trouxe o AGORA em seu drama e furor!

53
O LAMPEJO DO POEMA

É um contato com o sopro


De vida que torna à porta,
À porta dessas surpresas
Negando-se à chama morta;

É um contato com estrelas


Que brilham além das docas
Nesta noite tão sem medos
Onde tudo me rui e brota;

É um contato que viceja


À presença desta chama,
Que de tão silente, arqueja,

Como se em ancestral trama,


Eu visse o Deus que lampeja
Sobre a treva que é tamanha!

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