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Instituto de Letras – UFRGS

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

Disciplina: Literatura Portuguesa II


Professora responsável: Cristina Forli

Poemas selecionados de Florbela Espanca e Sophia de Mello Breyner Andresen

Florbela Espanca

POETAS Se te sentem gemer hão de pisar-te!

Ai as almas dos poetas Se às vezes tu fraquejas, pobrezinho,


Não as entende ninguém; Essa brancura ideal de puro arminho
São almas de violetas Eles deixam pra sempre maculada;
Que são poetas também.
E gritam então os vis: “Olhem, vejam
Andam perdidas na vida, É aquela a infame!” e apedrejam
Como as estrelas no ar; A probrezita, a triste, a desgraçada!
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar! ***

Só quem embala no peito A MULHER II


Dores amargas e secretas
É que em noites de luar Ó mulher! Como és fraca e como és
Pode entender os poetas. forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
E eu que arrasto amarguras Como sabes fingir quando em teu peito
Que nunca arrastou ninguém A tua alma se estorce amargurada!
Tenho alma pra sentir
A dos poetas também! Quantas morrem saudosas duma
imagem
*** Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
A MULHER I Enquanto a boca ri alegremente!

Um ente de paixão e sacrifício, Quanta paixão e amor às vezes têm


De sofrimentos cheio, eis a mulher! Sem nunca o confessarem a ninguém
Esmaga o coração dentro do peito, Doces almas de dor e sofrimento!
E nem te doas coração, sequer!
Paixão que faria a felicidade
Sê forte, corajoso, não fraquejes Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Na luta; sê em Vênus sempre Marte; Que se esvai e que foge num lamento!
Sempre o mundo é vil e infame e os
homens
*** ***

VOZES DO MAR CHARNECA EM FLOR

Quando o sol vai caindo sobre as águas Enche o meu peito, num encanto mago,
Num nervoso delíquio d’oiro intenso, O frêmito das coisas dolorosas...
Donde vem essa voz cheia de mágoas Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Com que falas à terra, ó mar imenso?... Nos meus olhos as lágrimas apago...

Tu falas de festins, e cavalgadas Anseio! Asas abertas! O que trago


De cavaleiros errantes ao luar? Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Falas de caravelas encantadas Murmurar-me as palavras misteriosas
Que dormem em teu seio a soluçar? Que perturbam meu ser como um afago!

Tens cantos d’epopeias? Tens anseios E nesta febre ansiosa que me invade,
D’amarguras? Tu tens também receios, Dispo a minha mortalha, o meu burel,
Ó mar cheio de esperança e majestade?! E, já não sou, Amor, Soror Saudade...

Donde vem essa voz, ó mar amigo? Olhos a arder em êxtases de amor,
...Talvez a voz do Portugal antigo, Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Chamando por Camões numa saudade! Sou a charneca rude a abrir em flor!

*** ***

À GUERRA! EU

Fala o canhão. Estala o riso da metralha Até agora eu não me conhecia,


Os clarins muito ao longe tocam a julgava que era Eu e eu não era
reunir. Aquela que em meus versos descrevera
O Deus da guerra ri nos campos de Tão clara como a fonte e como o dia.
batalha
E tu, ó Pátria minha, ergues-te a sorrir! Mas que eu não era Eu não o sabia
E, mesmo que o soubesse, o não
Vestes alva cota bordada e rosicleres dissera...
Desfraldas a bandeira rubra dos Olhos fitos em rútila quimera
combates, Andava atrás de mim... e não me via!
Levas no heroico seio a alma das
mulheres Andava a procurar-me – pobre louca! –
E ergue-se contigo a alma de teus vates! E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!
Levanta-se do túmulo a voz dos teus
heróis, E esta ânsia de viver, que nada acalma,
Cintila em tua fronte o brilho desses E a chama da tua alma a esbrasear
sóis, As apagadas cinzas da minha alma!
Até o próprio mar t’incita a combater!

Nun’Álvares arranca a espada de glória


E diz-te em voz serena: “Em busca da
vitória
Meu belo Portugal, combate até morrer!”
Sophia de Mello Breyner Andresen E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos
campos
Arte poética Com seu fuso sua faca e seus novelos

A dicção não implica estar alegre ou Em vão busquei eterna luz precisa
triste
Mas dar minha voz à veemência das ***
coisas
E fazer do mundo exterior substância da Mar
minha mente
Como quem devora o coração do leão I
De todos os cantos do mundo
Olha fita escuta Amo com um amor mais forte e mais
Atenta para a caçada no quarto profundo
penumbroso Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
***
II
Corpo Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Corpo serenamente construído Mas neles só quero e só procuro
Para uma vida que depois se perde A selvagem exalação das ondas
Em fúria e em desencontro vivido Subindo para os astros como um grito
Contra a pureza inteira dos teus ombros. puro.

Pudesse eu reter-te no espelho ***


Ausente e mudo a todo outro convívio
Reter o claro nó dos teus joelhos Inscrição
Que vão rasgando o vidro dos espelhos.
Quando eu morrer voltarei para buscar
Pudesse eu reter-te nessas tardes Os instantes que não vivi junto do mar
Que desenhavam a linha dos teus
flancos ***
Rodeados pelo ar agradecido.
Revolução
Corpo brilhante de nudez intensa
Por sucessivas ondas construído Como casa limpa
Em colunas assente como um templo. Como chão varrido
Como porta aberta

*** Como puro início


Como tempo novo
Assim o amor Sem mancha nem vício

Assim o amor Como a voz do mar


Espantando meu olhar com teus cabelos Interior de um povo
Espantando meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas Como página em branco
Tardes que oscilavam demoradas Onde o poema emerge
Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

27 de Abril de 1974

***

As fontes

Um dia quebrarei todas as pontes


Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora


A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,


Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Poemas retirados de:


ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Coral e outros poemas. São Paulo: Companhia
das Letras, 2018.
ESPANCA, Florbela. Poesia de Florbela Espanca. Porto Alegre: L&PM, 2012.

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