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Ser Poeta de Florbela Espanca

 
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior 
Do que os homens! Morder como quem beija! 
É ser mendigo e dar como quem seja 
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! 

É ter de mil desejos o esplendor 


E não saber sequer que se deseja! 
É ter cá dentro um astro que flameja, 
É ter garras e asas de condor! 

É ter fome, é ter sede de Infinito! 


Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... 
É condensar o mundo num só grito! 

E é amar-te, assim, perdidamente... 


É seres alma e sangue e vida em mim 
E dizê-lo cantando a toda gente! 
Autopsicografia de Fernando Pessoa
 
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
 
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
 
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Há Palavras que Nos Beijam de Alexandre O’Neill
 
Há palavras que nos beijam 
Como se tivessem boca. 
Palavras de amor, de esperança, 
De imenso amor, de esperança louca. 

Palavras nuas que beijas 


Quando a noite perde o rosto; 
Palavras que se recusam 
Aos muros do teu desgosto. 

De repente coloridas 
Entre palavras sem cor, 
Esperadas inesperadas 
Como a poesia ou o amor. 

(O nome de quem se ama 


Letra a letra revelado 
No mármore distraído 
No papel abandonado) 

Palavras que nos transportam 


Aonde a noite é mais forte, 
Ao silêncio dos amantes 
Abraçados contra a morte.
No silêncio dos olhos de José Saramago
 
Em que língua se diz, em que nação, 
Em que outra humanidade se aprendeu 
A palavra que ordene a confusão 
Que neste remoinho se teceu? 
Que murmúrio de vento, que dourados 
Cantos de ave pousada em altos ramos 
Dirão, em som, as coisas que, calados, 
No silêncio dos olhos confessamos?
De um Amor Morto de Sophia de Mello Breyner Andresen
 
De um Amor Morto
De um amor morto fica 
Um pesado tempo quotidiano 
Onde os gestos se esbarram 
Ao longo do ano 

De um amor morto não fica 


Nenhuma memória 
O passado se rende 
O presente o devora 
E os navios do tempo 
Agudos e lentos 
O levam embora 

Pois um amor morto não deixa 


Em nós seu retrato 
De infinita demora 
É apenas um facto 
Que a eternidade ignora 
Para ser grande, sê inteiro de Ricardo Reis
 
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui. 
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes. 
Assim em cada lago a Lua toda
Brilha, porque alta vive.
Adeus de Eugénio de Andrade
  Já gastámos as palavras. 
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,  Quando agora digo: meu amor, 
e o que nos ficou não chega  já se não passa absolutamente nada. 
para afastar o frio de quatro paredes.  E no entanto, antes das palavras gastas, 
Gastámos tudo menos o silêncio.  tenho a certeza 
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,  que todas as coisas estremeciam 
gastámos as mãos à força de as apertarmos,  só de murmurar o teu nome 
gastámos o relógio e as pedras das esquinas  no silêncio do meu coração. 
em esperas inúteis. 
Não temos já nada para dar. 
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.  Dentro de ti
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;  não há nada que me peça água. 
era como se todas as coisas fossem minhas:  O passado é inútil como um trapo. 
quanto mais te dava mais tinha para te dar.  E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. 
E eu acreditava. 
Acreditava, 
porque ao teu lado 
todas as coisas eram possíveis. 

Mas isso era no tempo dos segredos, 


era no tempo em que o teu corpo era um aquário, 
era no tempo em que os meus olhos 
eram realmente peixes verdes. 
Hoje são apenas os meus olhos. 
É pouco, mas é verdade, 
uns olhos como todos os outros. 
Fado Português de José Régio
 
O Fado nasceu um dia,  Mãe, adeus. Adeus, Maria. 
quando o vento mal bulia  Guarda bem no teu sentido 
e o céu o mar prolongava,  que aqui te faço uma jura: 
na amurada dum veleiro,  que ou te levo à sacristia, 
no peito dum marinheiro  ou foi Deus que foi servido 
que, estando triste, cantava,  dar-me no mar sepultura. 
que, estando triste, cantava. 
Ora eis que embora outro dia, 
Ai, que lindeza tamanha,  quando o vento nem bulia 
meu chão , meu monte, meu vale,  e o céu o mar prolongava, 
de folhas, flores, frutas de oiro,  à proa de outro veleiro 
vê se vês terras de Espanha,  velava outro marinheiro 
areias de Portugal,  que, estando triste, cantava, 
olhar ceguinho de choro.  que, estando triste, cantava. 
Na boca dum marinheiro 
do frágil barco veleiro, 
morrendo a canção magoada, 
diz o pungir dos desejos 
do lábio a queimar de beijos 
que beija o ar, e mais nada, 
que beija o ar, e mais nada. 
Do Sentimento Trágico da Vida de Natália
Correia
  E só depois de informado 
Não há revolta no homem  só depois de esclarecido 
que se revolta calçado.  rebelde nu e deitado 
O que nele se revolta  ironia de saber 
é apenas um bocado  o que só então se sabe 
que dentro fica agarrado  e não se pode contar. 
à tábua da teoria. 
Aquilo que nele mente 
e parte em filosofia 
é porventura a semente 
do fruto que nele nasce 
e a sede não lhe alivia. 
Revolta é ter-se nascido 
sem descobrir o sentido 
do que nos há-de matar. 
Rebeldia é o que põe 
na nossa mão um punhal 
para vibrar naquela morte 
que nos mata devagar. 
Poeta Castrado, Não! de José Carlos Ary dos Santos
 
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição De fome já não se fala
teorema corolário - é tão vulgar que nos cansa -
poema de mão em mão mas que dizer de uma bala
lãzudo publicitário num esqueleto de criança?
malabarista cabrão. Do frio não reza a história
Serei tudo o que disserem: - a morte é branda e letal -
Poeta castrado não! mas que dizer da memória
Os que entendem como eu de uma bomba de napalm?
as linhas com que me escrevo E o resto que pode ser
reconhecem o que é meu o poema dia a dia?
em tudo quanto lhes devo: - um bisturi a crescer
ternura como já disse nas coxas de uma judia;
sempre que faço um poema; um filho que vai nascer
saudade que se partisse parido por asfixia?!
me alagaria de pena; - Ah não me venham dizer
e também uma alegria que é fonética a poesia !
uma coragem serena Serei tudo o que disserem
em renegada poesia por temor ou negação:
quando ela nos envenena. Demagogo mau profeta
Os que entendem como eu falso médico ladrão
a força que tem um verso prostituta proxeneta
reconhecem o que é seu espoleta televisão.
quando lhes mostro o reverso: Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado, não!

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