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leonardo marona
Címbalo de Extrema-Unção, Carícias sem gesto, Pompa
morta à sombra, Óleo de horas dormidas – livra-me da re-
ligião, porque é suave; e da descrença por que é forte.
se ao menos eu fosse um desses fabricantes de canções de ninar, pintávamos com liquid paper as unhas e amarrávamos
eu seria aliviado, quem sabe, da minha dor no intestino delgado,
que de certo é pela tristeza ao ler minhas canções despedaçadas,
elásticos em torno dos braços para que nos saltassem
e quando as meto no papel a mim serão perfeitas, pouco importa as veias como as dos que imaginávamos ser
se a morte se concluiu em gelo da montanha e tinta desperdiçada. os jeans genets das penitenciárias da infância,
e as veias explodiam como a vida explodia, mas nós
quando as meto no papel pouco importa, sem pé, mão ou cabeça, traçávamos as saliências das veias intumescidas
elas irão aos olhos sem aviso e, já quase sem ternura, sem licença,
farão dormir a besta dura e sua presença trará quem sabe um riso,
com caneta bic e, por vários dias, reforçávamos
alguma crença, mas suo feito um porco-príncipe, é inútil a crença. o traço e conhecíamos o nosso corpo nos intervalos
das aulas de francês de madamme albinou, e no mais
se ao menos eu pudesse fabricar a mais simplória canção de ninar, havia as marcenarias de nossa primeira química
ah eu dormiria para sempre, com o riso leve dos que sabem dormir. e os quartos mofados dos nossos hormônios.
mas sou pobre e tenho fome, tenho medo de morrer no longo sono,
nós então sabíamos que o antigo torna-se brinquedo,
nada me resta além de arder em brasa, acordar a canção com fogo, sabíamos como sabem os facínoras e os papas,
pois que sou operário de um tempo sem descanso para olhos vivos: apenas que em nós a violência era ainda sem pecado,
posso apenas contemplar minha criação através de seus escombros. mas as costas da revolução nos costuraram os olhos
e hoje não passamos de contrarrevolucionários cegos.
“breviário de uma puta aposentada” “a barca de niterói”
a orgia virou cinza à luz da enxaqueca – gosto do teu hálito de sono, do cheiro
choro porque dentro de mim há um surdo inconstante de esperma e travesseiro –
e este surdo representa a cor do meu erro, me sinto muito bem na barca de niterói.
que de tanto cometer aprendi a amar lúcido
como o pai distante ama o filho enforcado, enquanto todos correm para seus lugares,
e as trombetas se encolhem nos corações lambo meus beiços e cheiro meu bigode,
encharcados de tanta fuga e tantos em fuga, feliz por um momento apesar das botas
e, na verdade, é uma festa pagã, mas que é dos mortos que boiam na baía semiextinta.
a festa pagã se é também um tempo pagão?
são mortos que nunca sentiram teu cheiro,
olho minhas unhas pintadas, que, de roídas, o cheiro de dentro de ti nos bigodes, pobres,
tornaram-se as unhas de uma prostituta velha. se afogaram porque sempre falta alguma coisa
a um homem quando ele decide deixar as botas
não haverá ninguém nos esperando, doçura, em pleno mar, mas na verdade, não importam
quando saltarmos para esse estranho infinito. as botas flutuantes – estou feliz porque você
não me dá pressa quando tudo grita pressa!
as flores, nós teremos que levá-las no bolso,
amanhã estaremos assombrosamente perto, então me recordo de quando eu acordava
é devido não amassar com mãos trêmulas e ia à janela enorme, e a rua já tão cedo
as flores do medo que levamos nos bolsos, tão cheia de pressa, e eu agora sem nenhuma.
é devido também, se possível, evitar tocá-las,
fundamental referência se vê melhor ao longe, ver você era a voz que diz não tenha pressa,
agora que, à luz da enxaqueca, cinza, a orgia olhe mais para ela, como dorme sem culpa,
se apresenta com as mil línguas infectadas, e eu, como bom católico, pecava sem culpa
refratárias da beleza com a visão em brasa. por te olhar, tua pele oleosa, teu quase ronco,
tua forma espatifada de ser simplesmente tudo,
e tudo me fazia esquecer janela, pressa, carros,
e pensar apenas num nome para um filho, assim,
despreocupadamente, como quem diz eu te amo.
“sobre a boa amizade” “primeiro para marina”
estarei aqui quando os concretos se virarem este é o primeiro para ti, coisa minúscula,
e vierem nos cobrar as cinzas da beleza, porque agora estás longe – e é domingo,
estarei aqui, com os olhos costurados, e no domingo almoçávamos e tentávamos,
mas você escutará, a cada morto desabado, depois de um pouco de choro pelo ultraje
meu coração pigarrear e meus dedos amarelos do abandono semanal, comunicar algo de um
suplicarem por este silêncio de cidade grande para o outro, com nossos famigerados trejeitos.
dividido com os únicos ombros firmes
desta viscosa irmandade que justifica mas não te preocupes, pequena, que agora tudo
sermos fúteis o suficiente para lustrar pareça insuficiente de sentidos, afinal és pequena
a vergonha úmida de nossos cílios florescentes demais, mas não te preocupes, mesmo aos trinta
e derramar o sangue como balas doces cocaína continuarás pequena para tais questões, e é só
porque nossa queda de joelhos será a liberdade por ti que eu jamais aceitarei novamente alguém
não reconhecida nos pequenos túneis funéreos me diga morreu o último romântico: eu estarei
e que são nada, meu amor, nada além do escuro vivo e por mim tu viverás por mais cem anos.
frágil com o qual costumamos amar sem aspas.
enquanto isso, pequena, enquanto agora desbravas
novas terras onde não colherás provavelmente muito,
enquanto isso, haverá algo de poucos gestos, mínimo,
mas que já sabe acenar adeus e sorrir sem dentes firmes,
algo minúsculo, que é como tudo que nos mantêm vivos,
porque nos vemos e não sabemos de nada, mas sabemos
que somos pedaço do mesmo pedaço, mas não comemos.
“brasília” “um a menos”
só o que eu espero é que você me cale, no momento você deve resolver seus dentes e voltar para mim.
que me sufoque de amor e me roube as raízes quedaram-se para baixo e penduram nossa infecção.
não vale a pena falar a pena não vale falar uma pena não falar.
palavras com seus símbolos antigos, acordamos a manhã a dentadas e vestimos a borracha da dor.
acenda seus olhos imensos e me cale, não há o que falar não fale o que há o que há não fala falamos.
exploda na minha cara seus dentinhos copio as folhas que se abrem mortas num catavento carmesim.
esses que são dentinhos como de coelho, as falhas nossas de cada dia nos dai hoje mas não perdoe nada.
e que sempre que eu falar “dentinhos!” não se pode perdoar o que cobre nossa intenção traumatizada.
das ruínas dos castelos erguemos cartas com furiosas carrancas.
você os ponha para fora feito um coelho, da felicidade apalavrada fizemos um pacto para nossa espera.
mas isso ainda não me cala e aqui falo, nossos medos apavoram a síndrome dos frágeis coelhos pardos.
só o que eu espero é que você me cale, há belezas vagarosas no entremeio do teu molho para saladas.
que roube minha carne e me germine, e meu suco ralo de humanidade vindoura é doce como a morte.
que reanime meus restos e me espante, e mordiscas meu antebraço com a promessa de um despejo feliz.
para sempre quero ficar boquiaberto
diante da imperatriz do meu destino,
e tiraremos algodão puro das pedras,
e muitas vezes, de nossas entranhas,
emergirão os ancestrais afogamentos,
e teremos o dobro de ar nas brânquias,
porque somos marítimos e caramujos,
e nosso fôlego será dividido em pistões,
e nossas bocas estarão sempre coladas.
“depois de fassbinder” “ando ouvindo belchior”
o comitê invisível tem razão, não haverá mais um new deal, como criança sem pernas mergulho
as passeatas tornaram-se blocos de carnaval em que se embriagar, perplexo sobre o indivisível feixe.
o sentimento social se evaporou em pequenos contratos sociais, mais que perplexo e, na verdade,
os revoltosos serão festivos e desesperados por sentimento puro, não mergulho, empurram-me na direção
o sentimento puro será o que se pode sentir sozinho, observado, do meu destino de criança sem pernas,
a nova insurreição virá da falta de uma linguagem comum. e sou obrigado a me diluir ou morrer.
estamos à beira de um ataque de nervos, fechados em salas
brancas como a morte ou com cheiro de anteontem, sala negras a escolha óbvia sobrepõe a resolução
nos pesadelos que alimentam o suor da nossa perdição sabida. das pendengas, sem chance ou esperança
não haverá a ligação telefônica dos antigos partidários da causa, sinto-me pasmo com o rumo das coisas,
com uma semana de enclausuramento cessarão as tremedeiras, caverna e dinheiro, as duas simbologias
seremos capazes de compreender tudo, com monossilábicos. me determinam e me arrancam pedaços.
fechados pelas sirenes, conseguiremos no máximo imaginar as pernas que me faltam eu tento forjá-las
o desenvolvimento de nossas cáries em rasos canais de amor. na cabeça, e nada me resta a não ser criar
um novo gólem, e então admitir: o futuro
é para os mortos, presente a morte anunciada.
estátuas de silêncio abutres iluminam nossos pulmões, somos o que podemos ser e não podemos
temos as pernas em chamas e, muitas vezes, torcemos tempos fechaduras para a chave do medo
os joelhos para trás incrédulos; é assumir a carga de deus asfixiados os corações pelas artérias azuis
e escorregar um pouco ralando braços, vermelho disforme correntes literárias em bicicletas mujiques
que dispara nossos desabamentos ladeira abaixo, diante a palavra prêmio virá do impossível passo
de uma fome um pouco mais estranha e a obsessiva ida nosso pódio será idílio de anões circenses
ao pico de nossas incertezas seguiremos e muitas vezes taxistas falam nossa doença a vinte pratas
olharemos para baixo e esperaremos a tal morte, talvez, o torcicolo de deus inaugura a paz humana
súbita morte que acompanha tão bem a sorte provisória as impossibilidades fazem crescer os cílios
de ser pela primeira vez presa do que nos fez nascer assim. o amanhã pertence a latas e trilhas extintas
pintaremos quadros com sorrisos de baleia
latem cães na madrugada de meus líquidos
escorrem édipos pelas ventosas do silêncio
tumores desabrocham no ouvido do suspiro
o livro da consciência gera o pelo da fome
roubaram da Terra a sua caixa de temperos
as têmporas embrulham o tifo da vontade
coleciono guimbas no chão de minh’alma.
não temos sido amigos, nem ao menos amigáveis. sei de ti em minúsculas pílulas,
nos despedimos regularmente, mas sem nobreza. como se fôssemos dependentes químicos,
diria até que nos despedimos com certa rispidez. selvagens amorosos que merecem cuidados,
mas são apenas pílulas,
quando faço por acaso bom uso da tua matéria que você cresceu, logicamente,
fico eufórico, te deixo de lado, nem me despeço e sempre está oferecendo seus pertences
e me lanço vesgo à embriaguez e falo, falo muito. às outras crianças e às tias.
os cabelos ainda bem clarinhos saltam
isso já vai mal, já vai muito mal e é impossível. já em cachos e chucas, as pernocas
como um leitãozinho encabulado,
você sabe que preciso de você e que só em você e que você fala, conta até dez, assina já
posso existir e só em você eu sou eu, só em você o próprio nome (ainda não sei o que é fazer isso),
garanto um instante entre os deuses e se te odeio e que, portanto, o pai está preocupado,
é porque você me assusta, você detém todo poder. ele me disse parece que marina
tem uma inteligência acima do normal,
embriago-me, portanto, quando sinto que te venço, mas em compensação não pula e se mexe
mas é justamente quando te venço, e ao te expulsar como as outras crianças, e tem uma sensibilidade
a hora errada de saber que levará um longo tempo. excessivamente mental.
enfim, saiba que isso é normal,
aceite meu ódio e pavor como forma de respeito. não mudará em milênios, e que pais nasceram,
vieram ao mundo para se preocupar conosco.
o que se odeia é a que indubitavelmente se pertence você ainda agradecerá por lhe ter dito isso,
e você é a minha granada silenciosa dentro de mim. e mesmo os erros se transformarão
em pequenas ternuras invioláveis,
e agora que você já troca umas palavras
e inclusive falou comigo ao telefone,
despedindo-se com a frase um beijo, amor,
agora é chegada a hora, porque seremos
sempre outra coisa que não mais essa agora,
que já foi, seremos amorosos um com o outro
e, espero, poderei te contar algumas boas histórias
pelo que – não tema – você dirá internamente “pé na estrada”
nossa, papai do céu me arrumou
um irmão um tanto esquisito, o amor fugiu, a estrada por onde foi
e temeremos, não há como evitar o sangue, leva para muito longe.
juntos pelas coisas, porque você é e, agora que ele se foi,
esse maior privilégio que me foi concedido, não sei mais o que dizer sobre ele,
alguém que posso ver como a um espelho melhor, não posso com emoção discerni-lo,
e que ainda por cima, com sorte, não terá problemas pois a fuga do amor nos deixa mais práticos,
com as questões de física, química e matemática. e para discernir é preciso todo erro do coração.
suando e tremendo e sinta só meu coração valente foram anos sem ver seu corpo nu em pelo,
escorrendo a beleza única dos olhos virados mas ontem você precisou de um homem
quero escrever teus ossos tua carne e pelos e eu estava lá, meio homem meio morto,
preciso romper na tua carne o prazer do dia
quando uma cigarra invadiu o seu quarto,
tuas costas teus ombros teus dedos olhos nariz sobrancelhas
e meu deus esqueça as linhas exatas quero ser atropelado aos prantos ela pronunciava a seu modo
e fazer torta minha estrofe ansiosa de margens a morte que viria, não fosse a sua nudez
curta e longa e curta e longa como nosso ritmo é preciso diante dos anos sem que eu a visse nua,
variar através dos tempos porque agora aqui é o início dos tem- e você sabe o quanto temo insetos em geral,
pos e com medo eu disse não se preocupe,
quero que um carro me atropele esses bichos não duram mais que um dia,
quero que um cachorro morda meu tornozelo com raiva mas você viu que eu não olhava seu corpo
quero cair do mais alto penhasco diretamente, porque, afinal, os anos cegam,
quero colocar pedras nos bolsos e submergir no rio e reparou também no meu medo ancestral
quero um tiro no peito e gritar ó minha dulcinéia
de insetos e disse é uma cigarra, ela só canta,
e te juro meu amor eu cairei sorrindo e te darei meus dentes
então, diante do meu pavor e do seu corpo
e gengivas e sexo e pudor e sorrisos tímidos eu te darei a mim
eu quero te engordar eu quero te engordar eu quero te engordar nu eu me inflei de heroísmo e embrulhei
eu quero rasgar esta página e fazer com ela pássaros sombrios a pobre cigarra já sem voz num pano sujo
algo precisa acontecer uma catástrofe e a lancei pela janela e ela talvez até tenha
ou do contrário estarei apaixonado sobrevivido àquilo, pelo que me agradeceria
e apaixonado você disse para isso não é preciso muita coisa e eu a ela, se eu falasse a língua das cigarras,
uma aqui outra ali mas que se dane como é isso teria dito obrigado cigarra, pelo corpo nu
o que é preciso é preciso ou do contrário... dessa mulher que um dia eu conheci e que,
afogado em banheira de hotel congelado em desamor russo de mim, é provável, tenha também pensado
é preciso que de alguma forma eu me desintegre não se preocupe, esses bichos não duram
e retome o espírito ancestral sem causa e com fome
mais que um dia, e eu nem ao menos canto.
mas eles chegaram finalmente os homens com trabucos
eles não pediram identidade ou permitiram o desejo final
entraram e eram finalmente os piedosos em ação
a gente vai se tornando a gente muito lentamente
não dá tempo de mudar nada eu pensei quando o tiro
finalmente me fez em vermelho e eu estava com flores para ti.
“a palavra” “a comédia soturna”
nos separamos por não mais que duas semanas, duvidar de deus é crer nele
na terceira enlouqueço, mas no começo confesso (pascal via balzac)
que nem sinto falta, agarro-me a expressões inúteis,
agravo-me em dissipações alegres, escudos de bonança, já fizeram a comédia de deus e a comédia do homem,
afundo-me em risos falsos mas muito contagiantes, agora basta, é hora de falar a sério.
mergulho em piruetas acrobáticas de láudano sutil. a risada não deve mais ser um deboche ou uma análise perspicaz.
precisaremos em breve de um meio-termo, ou será o nosso fim.
engano-me demais e você some por não mais que duas semanas.
esse meio-termo é duvidar de tudo,
vai para bem longe, creio aliviar-me, iludo-me de certo livre-arbítrio, que é ao mesmo tempo deboche e análise perspicaz,
no entanto você vai, agora mesmo foi, e repare bem no meu estado: e não é também nenhum dos dois.
sorrio com firmeza, mas sem as alucinações da pureza serpentina.
mas para chegar a este equilíbrio perfeito,
sou capaz de dizer que amo, de fazer um brinde ao amor, já que descambamos para a pastelaria,
mas repare em mim: não sou nada, não sinto nada, sou feliz. é preciso endurecer a risada por uma ou duas gerações.
preciso que volte logo, agora digo que preciso imediatamente evitar a comédia é inevitável, somos seus portadores temporais.
ou recorrerei a esferas ainda mais desconhecidas e temerárias, mas endurecer é possível, mesmo que achem
provavelmente letais porque te chamo coceira púrpura, – os detentores das risadas anteriores –
cura e beleza pré-histórica, dobra da primeira separação. que nossos métodos sejam talvez muito truculentos.
por uma ou duas semanas no máximo você se afasta. ah certamente eles dirão: como são endurecidos,
como negam os bons momentos ou, se os aceitam,
e de repente volta quando sinto que estourei entre nós a fina fita como choram sem parar, como não sabem dizer sim.
e perdi o que não se pode recuperar, mas você volta,
e é quando penso numa espécie de divindade sinistra finalmente é preciso saber de uma vez por todas
e imediatamente quero que você vá novamente e me deixe, que não levam nada os que permitem passar.
mas eu simplesmente minto e me atiro em resoluções revoltosas estão aqui para isso: endurecer a risada, duvidar de tudo,
contra as benesses do deus solar de nossas peles. arrancar de uma vez as roupas coloridas que nos levaram ao disparate;
colorir a alma, em suma, é sempre mais difícil do que colorir as vestes.
clamo que volte e decepcione-me ainda uma última vez,
eu grito no que explodo em fragmentos de mil meteoros nos chamarão mancha negra da ressurreição, seremos duros,
e aqui está você, brilhando, luzindo, e já não me satisfaz. sim, duvidosos por nós e contra nós, mas num futuro próximo
tenho sido pessimista, enquanto, ao meu lado julia bicalho mendes, você é meu peixe boi,
alguém se veste sem pressa e chora pesado. você é meu peixe espada, você deve furar a bolha
e penso que alguém que chora é bom partido e engolir, pois não há problema engolir um pouco,
para quem é impossível encontrar um caminho. o esgoto do mundo que é o que dá velocidade
e presença às nossas dores e alegrias terrenas,
ao meu lado alguém chora sem pressa, durmo, o que faz as pessoas crerem que nos divertimos
já não tenho lágrimas para entender o absurdo ou que nos fechamos, como disse o seu pai,
de quem chora por coisas em que falta o verbo. porque o mundo é muito grande, mas não é tudo,
afasto, calo, fujo, grito, inauguro-me de inverno. estamos suspensos por uma vontade de flutuar
um pouco sobre as lâminas de nossos pulmões,
com verbo demais me descontento, daí declino, portanto fure a bolha, meu peixe macio, meu girino
e como é linda, no fundo, essa raiva de menino de coração ventoso, espie belo buraco da fechadura
que acolhe com olhos inchados o que assusta. e então sente o pé na porta, afine as serpentes do cu,
jogue-se porque jogar-se é para nós, que carregamos
porque chora do que não sabe dizer, e a busca o coração em cadeiras de rodas rumo a china town.
por achar vida no sem verbo e no verbo demais não se esqueça, meu peixe martelo, de que os ventos
é a manta sobre o inverno, dos trapos da paz. sempre sopram ao largo quando a casa é de passagem.
“sírio coração”
levo a síria em meu peito. mas não sei o que é a síria. não
sei onde é a síria. não sei onde o meu peito. mas nele eu levo
a síria, com pequenos e grandes homens da síria. há bombas
nucleares, dizem, na síria que levo em meu peito. há bombas
nucleares e seres malignos negociando por sua paz. há mor-
tos na síria, mas não posso conhecê-los. não têm rosto os
mortos da síria que levo em meu peito. síria de meu peito,
não pronunciada potência enigmática, estás calada agora,
teus efeitos nucleares aceleram meu coração que, dizem,
também levo em meu peito. mas onde, em que espaço, entre
que mil outras bombas tão maiores? a síria pode causar preo-
cupação de poder à rússia ou aos estados unidos da américa,
mas não há megapotência avassaladora que propague a paz
na síria de meu peito. o negócio do mundo é a paz, ela é tudo
pelo que se fala e pelo que se promove a guerra. está sempre
noutro lugar, onde quem sabe chegaremos, enquanto
fabricamos foguetes nucleares, pela seguridade da paz.
todos lutarão, com seus pares e seus enganos e seus
interesses, pela síria que está lá fora – onde, não sei; o que
é, tampouco. mas ah, pobre síria morena e desvairada,
descabelado ornamento de esporas em ferrugem, ninguém
se procura enquanto te levo comigo a não sei mais que sítios,
e meu peito se abre para o anonimato das imensas sensações,
encobertas pelas bombas químicas que senhores frágeis, de
ternos e com bigodes ralos ou poucos cabelos, negociam
pelo bem do futuro, enquanto explodes em mil cores para
dentro da imposição de teu fogo constante em mim.
SONO PESADO
“porto alegre, preciso ir” “tudo é concha”
sou eu aquele rapaz pulando eu sei, meu amor, que contigo aqui no meu colo,
uma cerca no interior de uma vila tuas pernas duras, eu não preciso de mais nada,
e eu sei, meu amor, eu sei, todos nós sabemos,
quente e seca num verão estorricante que você está certa, eu sempre sonhei com um amor
enquanto espero o ônibus, e tenho que, como você, pudesse me ver escrevendo,
um bigode de viking e um coração trabalhando no que mais amo e não trocaria nunca,
pálido, desavenças pelas quais fugi e eu sei, mamacita, dizemos sempre, ou tentamos,
de onde nasci e agora me entranho coisas doces um ao outro, dessas de seguir vivendo,
mas acontece, meu amor, que eu preciso morrer,
no centro da lama de um lugar alheio, eu preciso morrer horrivelmente, vergonhosamente,
meus trapos, meus sonhos beatniks eu preciso morrer como morreram meus heróis,
me embalam em direção ao mundo, eu preciso morrer numa estrada para o méxico,
os cães passam voando com suas línguas eu preciso morrer de tifo, de sífilis, de paixões abissínias,
de fora e sua adorável delicadeza eu preciso morrer sem deixar nada além de um prêmio nobel
e comentários inteligentes de homens já sem próstata,
estúpida e assassina, são perros románticos enquanto, nos jornais, eles dirão: grande escritor, abençoado
e vieram para nos matar de amor, com a capacidade de narrar as questões medulares da raça humana,
com o peso da fartura de nossos corpos morre de forma chocante, paródica, um tiro de espingarda na boca,
que correm ao léu, e deixam rastros e isso não será de todo feio, minha paixão, eu espero
e pistas selvagens sobre a sobrevivência que você me entenda, eu não preciso de cura ou benção,
estou abençoado pelas caronas nos trens de carga,
heroica dos pequenos abençoados quero estar tremendo um dia, numa estrada de neve,
exilados de deus – sou eu aquele rapaz, quero saber quem é quem nesse dia, por essa estrada,
o estômago pelo avesso, sou aquele e, sabendo quem é quem, quero tremer de medo, pensar:
rapaz que não pede, pequeno petulante: vergonha por tudo que pensei ter feito, e sentar,
aqueles eram meus longos cabelos. tocar uma bela punheta no meio do mato e sorrir
com os mesmos velhos dentes dos quais um dia disseram:
um belo sorriso, rapaz intrigante, a febre da raposa,
e quero morrer fulminantemente neste dia, no meio da neve,
mas agora você me dá seus pés, você deita seus pés no meu colo
enquanto escuto highway 61 e isso é tão bom quanto uma bravata,
mas talvez não tanto quanto esta porque, meu amor, eu farei.
“marina completa quatro anos” “poema para meu amor”
vagarosamente, mas com olhos rápidos, há uma ponte de safena entre nós,
há uma insuperável metamorfose que, e o problema, baby, é que ela nasce
se deixa de nos espantar, é porque de um aborto cultivado, a poesia é
é uma metamorfose também da percepção, uma outra coisa e, talvez, ela possa
de modo que tudo em volta começa também ser má comigo, com o que
a ganhar um novo critério, e estarás chamamos de nós-dois-juntos, ela
muito em breve acostumada a não saber nasce do sangue excessivo que nos
do que és feita, pois um novo critério joga na vida sem veias – e, é lógico,
afetará novamente a tua percepção é possível amar ainda, faremos isso,
cada vez mais deformada e, portanto, mas vive-se da poesia, vá perguntar
com nova forma, porque entenderás ao safenado – e a poesia, meu bebê,
em teu próprio corpo, agora pequeno, é uma outra coisa: as bases hesitam,
que o que deforma é também o que dá forma, há uma ponte de safena entre nós.
e nesse imbróglio de peles saltitantes
e partículas minúsculas em plena anarquia
saberás de onde vens cada vez menos –
isso poderia ser triste e talvez seja um pouco,
mas ao menos vale para todos nós e haverá,
contudo, algo mais espesso, como se fosse
uma espécie de secreção, escuro, fraterno pacto,
corrente em nossas alterações e nossas perdas,
e dentro de meu próprio caos incompreensível
saberei que haverá também o teu, porque viemos
dessa mesma calma, que esqueceremos juntos.
“mahler” “roman jakobson”
é chegada a frente polar enquanto jovens destemidos agora é o fim das nossas noites áticas,
aumentam estatísticas oficiais e algo soca para a proa é preciso destruir um novo testamento.
o futuro de minhas células, o frio entra pela fresta enchemos de varizes as casas diárias
da janela e eu já não sei, estou desfazendo a mesa e pouco sobrou à comunhão do adeus.
parca e olhando para os farelos no chão machucado,
ela se arruma para ir embora e não me reconhece daremos as mãos e andaremos juntos,
e me dá impressão de que logo será a sibéria, enfrentaremos poderes inalcançáveis
estamos vivos porque ainda nos assustam e voltaremos para casa empalidecidos
as lágrimas que escorrem de nossos olhos já que o novo é mais forte que a vida.
abertos e cansados e sem saber o que mais olhar,
estão flácidos os corpos, arrastados pelo chão o desejo será comum a todos e todos
com máscaras medievais, há risadas murchas saberão exatamente o certo e o errado.
com bocas para baixo no eterno sono da bondade, os ratos serão defenestrados e haverá
espreme-se em meu peito a violência infligida paz para o ofício de uma vida artística.
durante a cega viagem, nunca percebi que na força
contrária às estatísticas estaria também o engano nada nos ocupará além de nós e tudo
da supervalorização do que em mim seríamos nós, o mais estará justamente aproveitado
metades arrastadas pelo chão em brasa dos últimos e criaremos uma arte sublime e cool
acontecimentos, votos de esperança, mensagem com judas enterrado aos sete palmos.
à magnífica acolhida cristã, pelas ruas o sangue
dos ungidos atua conforme mandam as escrituras mas judas jamais falece, ele ressurge
e eles tombam valentes por uma causa cooptada, em nós quando nos afastamos demais
enquanto separo a louça e sinto um frio nas ideias, do seu cerco, ele será adido cultural
porque agora ela se foi e era tudo o que faltava ir. na europa, e nós seremos brasileiros.
por entre os fios se abre uma estrada é preciso causar ainda alguma beleza,
que só aos cegos é permitido olhar. nem que seja o lenço caído no soalho,
aos que enxergam, as mãos atadas ou uma valsa vienense de outrora,
recriam nos fios a paz obrigatória tanto faz se não sabemos seu nome,
de quem pingou amor pela estrada ou mesmo se com sede recebemos
e agora, seco de paz, morto de amor, o que mais tarde iremos cuspir fora.
recolhe com os pés o vale do tempo. é preciso ainda assim alguma beleza,
um suspiro contínuo é só o que cabe uma palavra que acalente o coração,
ao potro sem capim do esquecimento. uma revelação diminuta de esperança,
fora das teorias humanas, ó humanos!
fora dos intestinos delgados do inferno,
numa jaula de pétalas, uma luz amarela,
algo no fim de algo que está no seu fim,
porque é acima de tudo agora preciso
causar alguma beleza nem que esteja
no triz que tremeluz pálpebras de aço,
na gota perene que se afoga no umbigo,
um vento no rosto, ainda que marcado
pela areia que escorreu pelo caminho
de outros que passaram e, sem saber,
deixaram restos do que nunca se soube
mas ainda assim chamaremos nossa fé.
“de qualquer outra forma não seria” “chopin”
sou o músico que não conhece o seu instrumento, às vezes sinto que sou um polonês,
mas ama-o, e quanto mais o ama, menos o conhece, um polonês entre a espada e a ditadura,
e só daí tira força para aumentar ainda mais um polonês que se esqueceu da música,
esse desconhecimento vital, que também se chama morte, um polonês ainda assim, baixo e robusto,
quando o silêncio se alimenta de rachaduras que sofre fora do mundo como bom polonês,
e tu que és o músico te sentas mais uma vez viajante paralisado nas alturas oceânicas.
diante de teu instrumento, com as mãos trêmulas
e nenhum domínio da tua língua, nada que possa encobrir às vezes sinto que sou um polonês
o catálogo de teus erros, a gota da tua seiva cujos pais viraram sabão e o sabão
secou no amparo da tua sorte, tudo se afasta agora tornou acético o que era sujeira tão nossa
e reconheces o milagre, o duro milagre da falta e as costas entortam no escambo do ouro
que te move para dentro, quando te assustas e as facas dão forma a superfícies macias.
e queres então sair e não há para onde sair
já que nunca entrastes, sempre observando à distância às vezes sinto que sou um polonês,
o que te cobra o cerne, tão lindo quanto mais distante, uma corda puxada por duas forças imensas,
tão puro quanto mais profundo é teu desamparo, pequenino diante do curso dos enganos,
mas de qualquer outra forma não seria amor. gigantesco no que explode para dentro
a nota segura da última barcarola.
“as datas” porque dessa forma já não dura muito a rosa criada,
não é preciso mais um holocausto para definir a espécie.
escrever história significa
dar fisionomia às datas que venham as datas e debaixo das datas a rosa
(walter benjamin) e dentro da rosa o não dito em seu corpo imperturbável.
é preciso no entanto dar nome às datas, não tens agora inteligência para o verbo concluso
essas feras esquecidas que só nos visitam aos pedaços. e a poesia gosta de coisas caras como as datas
o amor pelas datas e a vontade imensa de lembrá-las. que, marcadas, definem a fisionomia da morte.
minha barba cheira a algo idealizado. troco sândalo por vândalo em sandalismo.
há uma sede de bílis em minhas pedras. muletas, cores de um despertar.
você precisa de tênis vermelhos,
o corpo de enfermagem, me diz a menina de vinte um anos.
escolho o corpo de enfermagem.
o corpo de enfermagem,
palhaços calvos como os dos filmes de terror escolho o corpo de enfermagem.
adentram aos risos o quarto cirúrgico.
há o escolher a vida ou o método, autorizam-me finalmente a cobrir as partes.
mas as doses aumentam é um vestido antigo o elo até a cabeça.
nos poros da minha curiosidade.
são lindos olhos os que o senhor tem.
instalações,
todos querem saber das instalações. fazer um colar com as pedras de bílis
parece fora de cogitação.
amanheço fora de todo concreto.
pastoso o frio no corpo superior. esta é apenas uma pesquisa
um incômodo de panos feita na casa de partos.
nas tranças de meu abecedário.
acima dos olhos os cílios de um paradeiro.
um homem muito bonito existem filas para a prevenção
entre os gases da minha adequação. de problemas bem maiores.
nublado e as pedras de bílis. se um vinho ao menos lembrasse
sem frio agora as rampas da vesícula. a preguiça de meus engenhos.
outra manhã se descalça num abracadabra civil. impossível não recordar o magro senhor doce;
cabeceio a inscrição das trinta e duas unhas da estação. farol irregular, o dia induz a dar-te algo.
um escândalo de mel se equilibra em meus trapézios. sei dos noivos defuntos desse diamante implacável.
escolha furtiva essa do bruto livre. dóceis se aproximam com sua fixada técnica.