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O Carapuceiro

(2009)
O AMOR ENTROU MUDO E SAIU CALADO

Um casal vive há 20 anos, na mais perfeita harmonia, sem trocar uma palavra.
Nem um monossílabo, nem um pantim, nem um grunhido, nem um muxoxo,
nem um arrulho, apenas o silêncio a lastrear o lindo amor dos pombinhos.

Talvez seja a fórmula do sucesso, o Santo Graal dos relacionamentos, a chave


do mistério. Assim vivem João e Maria, como aqui batizamos camufladamente
a parelha evitando o som e à fúria dos urubus plantonistas.

Meu primo Zé Humberto contou a bela história ali na calçada de Tica e Dison,
sábios e queridos tios que também convivem com sabedoria e poucas palavras
no discreto Sítio das Cobras, no mesmo município de Santana do Cariri adonde
reina o casal mais calado do mundo.

João e Maria, meia dúzia de meninos, estão na faixa dos 65 de idade e


deixaram de se falar por besteira e capricho. Certo dia, João a procurou, com
teimosia e macheza, e Maria recusou-se a fazer os gostos sexuais do marido.
Não estava a fim, pronto, queria ficar na dela.

O cabra voltou a insistir por mais cinco vezes nas semanas seguintes. A
católica Maria, cansada de guerras e gravidezes, manteve-se na resistência.
Com o orgulho de macho ferido, ele fechou a cara. Em pouquíssimo tempo
descobriram o bem que fazia aquele silêncio, passaram a conviver sem
discussões ou arengas, estavam a dois passos do paraíso na terra.

Com a economia de palavras, não inventam conflitos, não brigam por


miudezas, não ferem e não são feridos com o mal que sai da boca do homem.
Meu primo Zé Humberto, que visita aquele lar doce lar semanalmente para a
venda de carne em domicílio, assegura: não há casal mais feliz nas
redondezas.

Até mesmo quando estão em dúvida se compram um talho de contrafilé ou de


costela, por exemplo, eles tocam de ouvido. Num simples olhar espatifam-se as
dúvidas sobre o cimento da sala como em uma mágica.

Dias desses, o homem da carne flagrou João morrendo de saudade. Maria


estava passeando em São Paulo. Ele morria por dentro de tanta falta. De
gozação e chiste, o visitante sugeriu um telefonema, pelo menos umas duas,
três unidades de crédito no orelhão da esquina. O marido saudoso até se
benzeu para evitar a tentação da proposta.

João aprecia mesmo, na mirada certeira dos seus olhos semi-áridos, é olhar a
sua mulher sem que ela perceba. Admirá-la dormindo, por exemplo, a extrema
beleza da calada da noite. Fica horas neste exercício, relembrando o tempo em
que estragavam o amor com palavras como tapurus que botam a perder as
melhores goiabas.

João e Maria agoram contemplam a vida, ali nos ares da Chapada do Araripe,
como um jovem casal de mãos dadas no silêncio escuro do cinema.
A ROSA AMALDIÇOADA DO REI ROBERTO

-Depois que peguei aquela rosa no show do Roberto - ela disse, já de pé, indo
ao banheiro.

Era uma desconhecida, mas daquele tipo de mulher que nos dá a impressão
de ter passado uma vida inteira ao nosso lado.

-Só pode ser maldição da rosa do Roberto -a senhorita ainda anônima volta do
WC resmungando. -Só pode!

Por causa da zoada no botequim, ela fala aos berros no meu ouvido esquerdo:

-Eu sou de se jogar fora?, me diga, amigo!

-Não, de forma alguma, muito pelo contrario - respondo, sem carecer mentir, o
que é raro nesse gênero de interpelação avulsa.

Não é de se jogar fora mesmo.

Tem covinha no sorriso. Resistir quem há de?

-Pois acredite, moço, desde o dia em que peguei a maldita rosa do Rei a vida
tem sido um desmantelo só -ela conta, buscando fôlego lá no escondidinho
d´alma penada.

Escuto pacientemente como um ouvidor-geral da boemia e da noite, um


paciente ombudsman das criaturas que vagam sem rumo e de tantos outros
barcos bêbados da madruga.

-A vida ficou mais feia que virada de Kombi, amigo! -ela ri, escondendo o
sorriso com a mão esquerda, a do lado do coração, por uns instantes. -Rio para
não chorar, se é que você me entende.

Não me chama de amigo à toa. Desde que arrastou a cadeira e pediu licença
para sentar na mesa, parecia que éramos velhos conhecidos. Daqueles de
chorar no ombro e tudo.

Entendo, amiga.

Pegou a danada da rosa em um show do Rei no ginásio Geraldão, no Recife,


há um punhado de anos, no dia do seu vigésimo quinto aniversário, um quarto
de século de convívio com a humanidade.

-Ainda na mesma semana do concerto perdi meu marido -ela desfia a tragédia.
-Tudo bem que não era lá essas coisas, a bem dizer era um traste, mercadoria
sem nota.
-Quer beber alguma coisa quente? -indago, todo-ouvidos para a sua história
verdadeira.

Certo tipo de história forte não combinava nada com as espumas flutuantes da
cerveja.

-Garçom, por favor, um campari, copo longo, muito gelo.

-Como eu ia dizendo ao senhor...

-O senhor está no céu, por favor, me trate por você mesmo -interrompi, típica
freada de velho contra as palavras que nos trazem mais rugas no vento.

-Como estava contando, amigo...

-Garçom, vê também um uísque, o de sempre.

-Como estava contando, amigo, perdi o desalmado do homem que dormia


comigo, mas tudo bem, até contei como uma ajuda da sorte - ela zomba mais
uma vez da própria desgraça. -O miserável da costela-oca me pegou sorrindo
para o cachorro do cambista (do jogo do bicho) e achou que a gente estava de
amancebo, vê se pode uma calúnia dessas?

Depois de mais um rosário de infortúnios amorosos e uns quatro camparis no


juízo, ela continua com a saga da rosa amaldiçoada do Rei Roberto:

-Ele (Roberto) não é todo cheio de manias, só veste azul e branco, todo
supersticioso, pois passou todo azar desse mundo para aquela rosa,
descarregou geral o mal-assombro -- insiste. -Eu logo vi, eu que nunca tive
sorte em nada, nunca peguei um bouquet de noiva, e vem aquela rosa
vermelha, linda, fresquinha, e cai direto no meu colo?!

E assim vimos o sol raiar iluminando aquele copázio vermelho de Marinês em


uma esquina da rua Augusta. Marinês, sim, era o nome da moça da rosa.
Acabara de chegar a São Paulo, vinda de Juazeiro do Norte, para onde mudou-
se do Recife, e onde igualmente nunca mais teve sorte com homem. Para não
dizer que nunca mais atraiu costelas, mesmo com os seus olhos de onça e o
sorriso em covas, recebeu um tempestuoso pedido de casamento na rodoviária
de Teófilo Otoni, de um cigano negociante de pedras preciosas.

-Quando a gente está apagadinha para a vida, nem uma mina inteira de
diamante nos ilumina -disse ela, lágrimas derramando no campari.
NOSSOS PLANOS SÃO MUITO BONS -O RETORNO

MODOS DE MACHO

Nossos planos são muito bons, como na canção dos Doces Bárbaros, nossos
planos são recicláveis, como os de mil novecentos e antigamente, nossos
planos são os mesmos que se arrastam desde século seculorum, nossos
planos são tão conhecidos, tão íntimos, eles nos acompanham há tanto tempo
que viraram nossos amantes, nossos melhores amigos, nossos planos
renascem a cada começo de ano como os nossos melhores cúmplices.

Nossos planos sabem que se os realizássemos todos a vida perderia a graça,


seríamos perfeitos demais, estávamos todos magérrimos, malhados, gozando
a saúde dos deuses ou dos imortais da Academia Brasileira de Letras,
seríamos todos um bando de Davids Beckhans e Gisele Bündchens.

Nossos planos são muito bons, mas sinto muito por eles, coitados, mais uma
vez não serão cumpridos na íntegra no ano da graça de 2009. Cumpriremos,
no máximo, os 10% da humaníssima cota do possível, os 10% do garçom,
justa medida.

Nossos planos são muitos bons e nunca foram atrapalhados por crise alguma.
O que nossos planos enfrentam para valer é uma invencível guerra interna nos
fracos juízos repletos de defeitos de fábrica.

Nossos planos são muito bons, mas, como sempre, ainda temos o benefício da
dúvida, ainda temos a complacência e, se, por acaso, faltar alguma conversa
fiada no estoque, botamos a culpa nos outros - nosso inferno mais próximo.

Nossos planos mal devoraram a ceia do Natal, nossos planos famintos, nossos
planos eivados pela fome histórica de todos os semi-áridos e Jequitinhonhas, e
lá estão nossos planos a dormir a mais preguiçosa das siestas espanholas.

Nossos planos estão dengosos, como nunca, para este 09 que já se arrasta,
aproxima, nossos planos querem colo, nossos planos odeiam uma academia
de ginástica, um cooper às cinco da manhã, uma dieta saudável.

Nossos planos não têm medo do colesterol e muito menos da gordura trans,
nossos planos adoram uma costelinha de porco, como aquela que Maria fez no
Paraíso, costelinha com cerveja preta, ah, nossos planos lamberam os beiços,
mesmo não sabendo o que seríamos de nós dali a duas voltas do sol no eixo
da existência.

Nossos planos não se desgastam à toa, não vivem de estresse, não andam de
automóvel na cidade grande, nossos planos são eternos pedestres e adoram
uma rede depois do almoço.
Nossos planos são do mato e ruminam um capinzinho entre os dentes
manchados pelo cigarro brabo do tempo. Nossos planos se espreguiçam,
estralando todas as juntas e costelas, quando ouvem falar outra vez de novos
planos.

Nossos planos se enfileiram com novas contas no gigantesco colar das coisas
não-feitas!

& MODINHAS DE FÊMEA

Perder quilos, malhar a barriga, fazer ioga, pilates e fechar a boca... Terminar
aquele doutorado e ser mais sabida... Reabrir as matrículas, escrever um livro,
fazer todos os cursos, mudar de casa, endoidar a cabeça... Ser a Barbarella de
Roger Vadin ou a Vera Fischer no papel "Superfêmea", a incrível
pornochanchada de ficção científica do tempo em que era gostoso o nosso
cinema.

Livrar-se daquele traste, amar um bom homem, fazer uma viagem para bem
looonge, ler Manuel Bandeira em uma cadeira de balanço arrodeada de
meninos, como no sonho de Isabela Rocha, morena bela do Cordeiro, musa de
Caxangá, Várzea, Engenho do Meio e alhures.
Enfim, fazer coisas e mais coisas, e nunca fazer mal às moças.

DO VERBO LEVAR E SUAS COREOGRAFIAS DE CALÇADA

LEVO minha menina na calçada, pelo lado de dentro, o da parede, que é o


lugar da moça no passeio público, que é o lugar que diz o status do enlace
para o mais lesado dos transeuntes. do lado de fora, a bonequinha na beira do
asfalto, é amizade; do outro, como na coreografia dos meus passos de fred
astaire do crato , do hellcife ou das augustas: romance, namoro, amor de
muito, amancebo social clube.

Levo ao cine, ao concerto de rock, ao original olinda style, à tapioca, às quiches


com com alface americana ou aos três acordes arroz, feijão e bife -por favor,
uma farofa de ovo e uma cerveja preta, please, sim, ela ama uma banana
assada, noooosa!, traga.

Não esquecer de levar também, viu, para comprar vestidos e roupas de


veraneio, q prazer nada viado aquele barulhinho da cortina dos provadores
vagabundos. levo porque levar é a grande função do bicho macho
contemporâneo nesses tempos de frouxidões e covardias no atacado e no
varejo.

Levo de avião ou de busão, mas sempre mantendo a classe, levo, pq o


resgate do cavalheiro roots está no levar a dama na riqueza ou no pé-sujo, na
cachaça ou na campanhota, no free jazz ou no bolero, levar a moça, inclusive,
para conhecer as nossas contradições, talvez a mó fortuna crítica dum homem.
Levar e não esquecer dos degraus e altos e baixos da cidade, donde damos
uma mão como amparo e prova inconteste do amor que sobra em todos os
nossos membros... inferiores, superiores, robóticos, polvos de todos os mares
trabalhando para o bem-estar, conforto e requinte da pequena.

ASSOMBRAÇÕES DO HOMEM DO TEMPO

Mal curamos a ressaca da virada e já tem gente por ai a bufar a velha


sentença: ´Como o ano está passando rápido!´. Tem gente que diz isso a cada
folhinha do calendário. ´Já já é carnaval, Nossa Senhora´, estrebucha o
infalível Homem do Tempo com a sua trombeta diária.

Ainda no sábado de Zé Pereira, quando mal tem saído o Galo da Madrugada, o


representante do deus Cronos na terra, sempre à frente da sua época, solta
bombas caseiras e anuncia as festas juninas. Mal pula as brasas da fogueira,
decreta, com ares de sábio: ´Já já é Natal, esse ano correu como nunca´.

Apressado, assina mais um cheque, repare que ainda estamos em pleno mês
dos desgostos, e o mal-assombrado Homem do Tempo mira a data e toca o
terror de novo: ´Bem que eu avisei, 2010 chegou voando´.

O Homem do Tempo, esse infeliz das costas-ocas, esse vampiro das horas, é
capaz de matar de susto qualquer criatura temente à Velha da Foice. Não
estamos falando daquele desavisado e pobre sujeito que comenta, por mera
falta de assunto, a contagem dos dias, o envelhecimento do homem e as suas
circunstâncias.

Este é um inocente camarada. O mesmo que olha para os céus e fala que vem
chuva, o mesmo que mostra as Três Marias para as crianças, o mesmo leitor
de Bilac que recita, orgulhoso, ´Ora direis, ouvir estrelas´.

Tratamos do cruel e temeroso Homem do Tempo, assombração ambulante que


a esta altura já deixou em pânico uns dez velhinhos na fila dos aposentados do
Funrural ou do INSS.

Sim, amigos, a triste figura é perversa, um carrasco sem guilhotina, e adora


tocar a sua trombeta justamente onde estão os mais idosos.

´Quem diria, já chegou de novo a Copa do Mundo´, alardeia com a


antecedência mortal de sempre. ´Vamos ver quem tem garantia de vida até a
próxima´, cutuca o belzebu, mais uma vez, com o seu pobre chiste publicitário.

O mais cruel Homem do Tempo que conheço, tão cruel que parece
personagem de programa humorístico, é o meu ´padrinho de fogueira´ Antonio
Carneiro, habitante de Santana do Cariri, na região sul cearense - padrinho de
fogueira, para quem não sabe, é o mesmo que padrinho de São João, costume
antigo dos pais de fazer novos e bons compadres, enquanto queimam as
brasas afetivas do período junino.
Não tenho uma queixa sequer do nosso Carneiro, excelente na condição de
padrinho, mas não queria estar na pele dos moradores do Sítio das Cobras e
arredores, onde ele reina com os poderes sagrados de Cronos.

Além do avexamento de praxe dos homens do agouro, ele é mestre em


comentar as rugas e outros maltratos que fazem residência em nossos pobres
rostos. A saudação mais leve que apresenta a um velho conhecido, depois de
meses de ausência, é mais ou menos assim: ´Amigo, você está acabado,
derrotado pelo relógio, tem gente a quem o tempo nem dá bom dia, não
respeita mesmo´.

Pode ser homem, pode ser mulher, independentemente da idade e do natural e


belo estrago da vida. Ninguém escapa. Uma peça!

CATALOGANDO O MACHO MODERNO

Homem-hortinha - Aquele mancebo que, ao receber as moças elegantemente


para um jantar, usa o manjericão cultivado na própria hortinha que mantém no
quintal ou na área de serviço. Cultivar o próprio manjericão não é exatamente o
defeito do rapaz. O problema é que ele passa duas horas a discorrer sobre o
cultivo da hortinha, os cuidados, o zelo, uma chatice só, para não dizer outra
coisa. Uma amiga, coitada, conheceu um destes exemplares que cultivava até
a própria minhoca usado como "fator adubante" da própria hortinha. Corra,
Lola, corra, corra mesmo, corra enquanto é tempo!

EPÍGRAFE DO BIG JATO, MI NUEBO LIBRO

Daqui em diante não peço mais boa-sorte,


boa-sorte sou eu.
Daqui em diante não lamento mais,
não transfiro, não careço de nada;
nada de queixas atrás das portas,
de bibliotecas, de tristonhas críticas;
forte e contente vou eu
pela estrada aberta. WALT WHITMAN, in Folhas das Folhas de Relva.
Tradução Geir Campos. São Paulo, Brasiliense, 1983.
DA RECEITA PARA ENXUGAR O DESASSOSSEGO*

da cor das lentes dos meus óculos verdes o absinto que os amigos
terron & zabel me trouxeram da curva do rio tejo.
bebo lentamente a garrafa, para enxugar o desassossego, para invocar
sá-carneiro e a sua ponte do tédio entre ele & o outro, bebo para celebrar as
quedas e por amor desesperado aos meus passos mais trôpegos.
meus óculos de absinto cada lente é uma roda de imaginária bicicleta
bêbada tentando andar no fundo do cálice.
vejo uma menina que não tive sobre os aros da mesma bicicleta,
vestidinho com flores que se acendem no atrito da roda e do dínamo..
e que coincidência, amigos de belas noites e tranqueiras: no dia em que
a garrafa pousou na minha sorte, ela estava a mudar-se, malas e cuias, para
os ares lisboetas... seria a mãe da menina fictícia.
há uma canção no fundo da garrafa desse absinto, destampo-a, ela
salta: algo como nick cave cantando um fado.
há um desespero na minha dança.
fome de viver da gota!
vida modo de usar as 78 rotações de uma agulha sobre o bolero de
dores & vinil de palmeira carnaúba.
ela, cabelos feito algas marinhas, bóia no fundo da garrafa verde. as
sobrancelhas espessas e cheias de dúvidas, misturo mulheres do passado
como se fossem bebidas.
entorno a morte amorosa, destilada e pura, envelhecida nos barris das
devoções mais ímpias.
Quando a vida dói/drinque caubói.

*do "catecismo de devoções, intimidades et pornografias",


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TUDO O QUE QUERO PARA SEMPRE HOJE

como são estranhas as noites que não dormes comigo, noites brancas, como
aquelas russas noites narradas pelo Homem Doente dos subterrâneos gelados
de Bem Longe, como o sol se põe mais tarde tão-somente para tingir de paixão
roxa a minha miopia e o meu astigmatismo, aquele degradè borrado por
melancólicos nanquins na chuva de san pablo derretendo sobre mis gafas-
parabrisas, como são atípicas não pelo costume, mas pelo desproveito do
calendário, a folhinha do quando, que não marca dia santo nem feriado para o
desejo, como são estranhas as noites riscadas pelos relâmpagos do ciúme e
como são lindas as madrugas e manhãs entorpecidas pelo amor-de-muito que
ficou guardado nas dobrinhas, glândulas, suores dos corpos e das roupas
vagabundamente atiradas sobre os tacos de todos os “últimos tangos”, como
enfio as pernas entre os lençóis tentando achar o que quero para sempre hoje.
A LINDEZA DAS ESTRÁBICAS

“Era uma mulher alta, morena, com ossos e músculos de homem; usava o
cabelo curto, penteado para trás; no seu rosto trigueiro notava-se alguma coisa
de fixo de abstrato. Poderia ter sido bela se não fosse um pouco estrábica“. É a
descrição da personagem Amélia feita na “Balada do Café Triste”, o livro que
cito na crônica abaixo, encontrável baratinho nos bons sebos do ramo. E desde
quando estrabismo é defeito, querida Carson? Nada mais lindo do que uma
vesguinha mirando o inferno e o paraíso ao mesmo tempo, com o olhar perdido
da cadela Laika no Sputinik russo.

AMOR É COMO A PLACA DO FIADO: SÓ AMANHÃ

“Amor só amanhã”, como na placa do fiado das velhas bodegas, como


pragueja Esmeralda, ela mesma sábia e ex-proprietária de uma mercearia de
secos & molhados que negociou toda uma vida na base da fiança e da
caderneta.
Não parece nada ressentida além da conta imposta pelos tantos
janeiros, vê-se nas feições de mulher grande, que pisa forte e justifica com
beleza uma a uma das rugas. “Amor só amanhã” é apenas um dos seus tantos
chistes contra escravidão barata a sentimentos doentios tipo Síndrome de
Maysa.
“Meu mundo caiu uma pitomba”, gargalha, “isso é coisa de gente fraca”,
diz sobre o teledrama e escancara o riso mais ainda, pense em uma grandeza,
senhoras e senhores.
Esmeralda, como ela mesma diz, é viúva de um morto e viúva também
de um marido vivo, como brinca com o seu atual e lesado consorte, varanda do
rio São Francisco, ali adonde o mundo se divide entre Juazeiro e Petrolina.
Além de lembrar um tanto a minha mãe na sua disciplina virginiana -a
gente vive por ai a enxergar a mãe nas belas senhoras-, Esmeralda é a cara da
personagem Amélia, não a Amélia submissa da canção de Mário Lago, mas a
destemida criatura do livro “A Balada do Café Triste”, de Carson McCullers,
escriba do sul dos Estados Unidos da América tão boa quanto o velho William
Faulkner, bravo senhor também daquelas bandas.
De fala certeira e braços fortes, Esmeralda, assim como miss Amélia,
cuidou por muitos anos da sua taberna e das plantações nos arredores de
casa.
Assim criou, praticamente sozinha, oito filhos, meia dúzia de machos e
duas fêmeas. Capaz de enxotar no tapa os pés-de-cana que roubavam-lhe a
paz no balcão da bodega e no mesmo embalo ainda bater na calçada uma
montanha de feijão em vargens. Em um silêncio bruto que encorpa ainda mais
o sangue da auto-suficiência e do orgulho de não precisar de homem.
Quando se diz viúva de marido vivo, Esmeralda se refere à leseira
ribeirinha de Donato, com quem se casou há dez anos e cinco meses. Ela
entrou para os sessenta anteontem; o traste, como ela diz, tem meio século de
penitência nas costas.
Não é que o caboclo seja leso de tudo, até que se mexe o sujeito, é que
diante daquela mulher qualquer um toma chá de sumiço, se encanta,
desaparece, se apequena, amofina.
Mas se não tem queda alguma para o amor, por que casou outra vez,
criatura?, pergunto, levando em conta a proteção de ser parente distante da
fera.
“Por pena do desalmado, eu juro, vivia ai pelos cantos com um
declaratório infeliz, ainda por cima fraco das pernas e do juízo”, argumenta.
“Como os filhos se largaram tudo no mundo, botei dentro de casa, serve ao
menos para tanger galinha e também como carranca contra os maus espíritos”,
zomba da feiura do peste.
De um canto da sala, encolhido em uma rede, o marido ri bonito diante
da grandeza de Esmeralda. Desce mais uma Caribé com este inoportuno
cronista visitante e a mira morto de preguiça e felicidade.

HEI-DE TE COMER CUMA UMA PIEDRA FODA-SE LOBO ANTUNES

pego primeiro na tua mão, digo uma coisa, tipo assim "uma viagem",

VAMO, LEVO, qualquer imperativo, crasse,

parágrafo cortado como meu idolo musical LOBO ANTUNES/


ai tu pegas o metrô e vais ao paraíso possível, o bairro; donde arrumo uma
mochila idiota de velho que não sabe o que cabe no tempo dos homens jovens
com mochila depois da era do tempo de homens velhos que não sabem que
mochila agora é novamente coisa de homem muito jovem, ai esqueço a
escova, donde tu lerás depois, no pente fino do teu inconsciente: queria comer
não solamente o que eu como como queria também comer os meus dentes e
aquilo que fica entre os ditongos decrescentes que independem dos
paroxítamos das reformas...

pego primeiro na tua mão, donde esqueço na mochila o “coisas frágeis”,


livraço de neil gaiman, ai tu me lembras ja rio adentro, que tu tens uma mão,
pelo menos uma, que, cuja, tem medo do aviao caindo na baía de guanabara
pero deus tomara e daqui ya poco beijo na boca e usted vestindo a calcinha
mais linda para irmos ao/s concierto do tatatatatatatatata cérebro eletrônico,
como é bom tocar assim um general eletric como quem, entonce después a
gran fueda, eu e a minha mulher mó desta floresta, carayo, quão linda, e na
quarta una revista, DE MODO GERAL, responsa do paulo scott, cinemateque,
ave,

así bamus nozzzoswtros, kompays, cuma é bueno tocar o amor e a punheta


possível, quiero ver o escroto do patrão KAPITALISTA FALIDO que nos tira
esse gosto d´alma!

Ninguno hah de tirarsh um punhado de nuestra sina lexicografica, estamus


bibus, e yo siempre rino cá minha chica, donde sabemos q o amor é a graça
palavrosa dum macho e d´uma fêmea num sentindo da fulerage lacaniana,
aquela coisa cuma se fossemos uns macacos bananosos, um diz uma palavra,
outro abocanha o pau-palavroso pussivi, vilge, engole, num cospe, eita porra!!!

FAZ DE CONTA QUE SOU O PRIMEIRO

[Texto republicado orgulhosamente para celebrar o retorno de um


dos maiores garçons do planeta -Ailton do Filial- à noite de San Pablo].

Ailton não é apenas um bom garçom. É especial. Criatura abençoada.


Especialíssimo. Do tipo que cria laços de estima e consideração com os
fregueses. Do tipo que ouve, aconselha, amansa os traídos, acalma as
mulheres de bêbados infiéis, bota ordem na casa, devolve uma certa paz ao
universo.
Melhor ainda, Ailton é do tempo em que garçom sempre sabia o
resultado do futebol. Do tempo em que torresmo não fazia mal, do tempo em
os homens não tinham medo da sorte nem do colesterol.
Toda essa “sabença”, como ele trata a soma de sabedoria com
experiência, é servida de bandeja à freguesia.
No boteco, ele é tudo ao mesmo tempo: sócio-proprietário, caixa,
segurança e DJ _e só toca vinilzão, LP de samba antigo. Adora João Nogueira.
“Oh, minha romântica senhora tentação/ não deixes que eu venha sucumbir/
neste vendaval de paixão”. Essa toca até furar o disco. Principalmente quando
tem alguém chorando as pitangas amorosas. Entre tantas serventias, esse
negócio de amor e dor é com ele mesmo. É mestre, rima e solução da parada.
Eu mesmo já fui perdidas vezes consolado pelo cara. Dor de corno,
daquelas que não passam com cachaça ou aspirina, é com ele mesmo. Vai no
ponto, na veia, um neurocirurgião do amor. Primeiro o afago, a compreensão e
o ouvido ao alcance do freguês. No fundo musical, põe logo o long-play com
“Peito Vazio”, de Cartola _``Procuro afogar no álcool a tua lembrança/ mas noto
que é ridícula a minha vingança...” Dois, três conselhos depois a gente está
pronto para outra, digo, outro chifre.
Numa dessas sessões “macho em crise”, Ailton me deu uma dica genial.
Notou, sensível que é, a minha dificuldade em descolar uma nova costela, uma
nova deusa para enfeitar o meu pobre lar doce lar em desalinho. Uma dica
importantíssima. Simples, simples de tudo, até boba, mas de uma sabedoria e
tanto. Uma beleza de estratégia.
“Seguinte, meu amigo, chega de saudade... Senta aqui, nessa primeira
cadeira do boteco, que a vida vai sorrir pra ti”, disse, arrumando uma mesa
bem na calçada, quase na rua, quase no esgoto, de frente para o crime.
Sem deixar a bola cair, emendou:
“Ora, compadre, todo dia tem uma mulher que sai para o bar, revoltada,
muito revoltada, e diz para ela mesma: ´Hoje eu vou dar pro primeiro que
encontrar pela frente!”
Desde então procuro sempre ser esse `primeiro´ homem
estrategicamente bem localizado que pode tirar proveito, com toda delicadeza
desse mundo, da fúria justa e caseira de uma mulher.
POR POUCO MUITO POUCO POUCO MESMO

Aprendi e viciei-me, pura influência e obra e graça de Gilberto Freyre,


que me dava conselhos, pitacos de varejo e porres de licor de pitanga no
quintal de Santo Antônio de Apipucos, Hellcife, em ler exaustivamente os
anúncios classificados dos jornais. Os eróticos, então, são uma fonte
inesgotável de sabedoria e novas crônicas de costume.
Depois do adjetivo “indecepcionável”, neologismo usado pelas cariocas
do ramo para avalizar a "decepção zero" da freguesia inzoneira, o hit do
momento é o “quase mulher”. É assim que os travestis e operadas mais
femininas se apresentam nos tijolinhos dos periódicos. Por pouco, muito pouco,
pouco mesmo não são belas fêmeas, bonecas do barro das nuestras costelas.
O desejo (assim como Deus e o gol) está nos pequenos detalhes, como
diz o Fraguinha, também conhecido em terreiros como "Meu Moreno Fez
Bobagem".
Na mesma levada, cantarola o amigo Junio Barreto, el vingador lírico do
agreste, parodiando monsuetísticas convicções de primeira: "Eu quero essa
quase mulher assim mesmo”. E bendita sejam as moças de todos os sexos,
meu velho Joaquim Ferreira dos Santos! Por elas desabotoamos todos os
botões das nossas camisas sociais de macho à modinha antiga.

MODINHAS DE FÊMEA

E por falar em King Kong, a capa de “Época” mostra que vocês, amadas
e nobres costelas, não são nada óbvias, nada fracas. São capazes de ficar
excitadas até com um filme de sexo entre animais –no caso os macacos
bonobos. A matéria é baseada em estudo de uma pesquisadora da
Universidade Queen, no Canadá, a doutora Maredith Chivers. Nós, os ditos
machos, diz a investigação, somos, noves fora alguns perversos soltos por ai,
mais certinhos. Ficamos nas cenas humanas mesmo. É, amigos, é como
naquela música de Caetano Veloso da trilha de “A Dama do Lotação”, filmaço
com uma Sônia Braga enlouquecedora: “Quando a gente volta/ O rosto para o
céu/ E diz olhos nos olhos da imensidão:/Eu não sou cachorro não!/A gente
não sabe o lugar certo/De colocar o desejo”.

DAS LIÇÕES QUE TIRAMOS DE KING KONG E JOHN WAYNE

E eis que a galega linda, gostosa e bela, toda adjetivosa, a Jessica


Lange, lembra?, se vira para o macacão tarado, obsessivo como um Nelson
Rodrigues em flor, e conclui, minuto de candura em uma cena de pânico entre
mamíferos desproporcionais e em estágios diferentes, Ilha da Caveira,
exterior, pleno crepúsculo selvagem:
-Você não está vendo que isso não vai dar certo?!
De fato, tudo levava a crer na razoabilidade da sentença da loira,
embora tal criatura, comendo as bananas da humildade na mão do mico
gigante hollywoodiano, fizesse aquela cara de biscate zoofílica de última
categoria.
Mesmo com todos os descontos darwinistas possíveis, não podemos
olvidar que a referida cena do King Kong versão 1976, que revi outro dia com a
cria da minha costela, desaba como Niágara, como uma Sete Quedas de
obviedades, no atoleiro de metáforas dos encontros & desencontros do macho
perdido e da mulher que se acha –típicos seres que habitam hoje a face da
terra.
Acontece que a leseira masculina é tanta que somente décadas depois
do mal-fadado investimento do símio na pequena criatura cinematográfica
percebemos que o bicho estava pegando para a nossa banda.
Foi necessário aparecer o David Beckham, o Falcon ludopédico, e
outros representantes do novo gênero anfíbio, para que alertássemos sobre o
espectro que assombra o macho roots, o macho-de-raiz de Europa, França e
Bahia.
Não, amigo, não somos destes apocalípticos precoces que assistiram ao
enterro da última quimera com o filme “Quando um homem é um homem”
(1963), com o glorioso John Wayne na pele de um fazendeiro playboy que
enfrenta algo mais ameaçador do que fazendeiros invejosos ou ladrões de
gado: a teimosia de uma fêmea.
Ele enfrenta a esposa, a evoluída K., que não abre mão do divórcio.
McLintock, digo, o personagem do nosso irmão John, diz não e não e não.
Deseja reconquistá-la com ganas nem que seja obrigado a sujar as botas no
atoleiro do amor e da sorte. E é justamente na lama uma das pelejas mais
corajosas e bonitas de um homem e de uma mulher desde que o Criador
resolveu usar o barro para fazer algo à sua imagem e semelhança.
Ali começou nossa provação, nosso calvário... Da lama para a luta no
gel, velho John Wayne, foi um pulo. Que falta você nos faz, meu caubói amigo!

MISS METRÔ ENFEITA SOLO E SUBSOLO DE SAN PABLO

Miss Metrô trafega da Consolação ao Paraíso com a sua mochila laranja, Miss
Metrô deixou um homem feliz lá em cima da Paulista, Miss Metrô desce as
escadarias e o seu homem seguramente vai para casa ver os gols da rodada,
Miss Metrô hoje está com um penteado à antiga, Miss Metrô desce as
escadarias com uma nobreza cosmopolita, Miss Metrô prefere o barulho do
rock´n´roll ao silêncio dos humanos que já ensaiam a corrida com bolas de
ferros nos pés de todas as segundas, Miss Metrô e suas longas pernas
marcadas pelo sol dos trópicos, Miss Metrô aprecia os subterrâneos e assim
não gasta suas preciosas vistas com paisagens mortas de domingo, Miss
Metrô escreve belas histórias na cabeça, Miss Metrô não pensará no filme do
Oscar do doidão matemático que esculacha Leonardo di Caprio, Miss Metrô
sabe que tudo em volta está deserto, tudo certo como 2 e 2 são cinco.
PELOS PODERES DE GRAYSKULL

As mulheres com filhos são especiais, especialíssimas, mas o


inesperado encontro com os seus rebentos, em um corredor estreito, minutos
antes do dia clarear direito, podem nos deixar mais perdidos do que barata em
salão de forró ou gafieira, uma loucura, uma batalha napoleônica, aquela coisa
toda, pinel mesmo, sentindo-me um boa-praça da Tamarineira azeitando o
eixo do sol na quarta-feira de cinzas, um calouro no Mira y Lopez, um trelelé
que acabou de dar entrada no Galba Veloso, para ficar apenas em alguns dos
sanatórios gerais do Recife, Fortaleza e Belo Horizonte.
Foi assim que me vi, revi, quando, numa ressaca miserável, rumei do
leito amoroso em busca de um copo de água gelada depois da primeira noite
com uma ex-ex-ex.
Tem mercadoria mais preciosa, amigo, em um final de madruga, depois
de uma farra monstra, do que um copo de água gelada? Vale por um açude de
Orós, vale por uma barragem de Tapacurá, vale por toda a bacia hidrográfica
do rio das Velhas, prosseguindo aqui a nossa conversa com o Ceará,
Pernambuco e Minas, a santíssima trindade que publica em respeitosos jornais
essa crônica.
Pois sim, mal este abestalhado que vos bafeja a prosa abriu a porta...
Mal este mamador profissa chutou aquele taco solto do apartamento da nega...
Mal este infame mirou uma luz mínima, uma réstia de nada...
Mal este carga-torta, com uma brasa em cada branco do olho, tomou
consciência do universo, Nossa Senhora dos Paus d´Água, mal arrumou os
óculos fundo-de-garrafa sobre a napa moura, e já veio aquela criatura
enfurecida com uma espada toda iluminada, incandescente, de modo a me
deixar mais areado e perdido do que pitomba em boca de banguela.
As mulheres com filhos ainda em casa, repriso, são especiais,
especialíssimas, mas confesso: foi a maior batalha da minha vida. Fiquei me
sentindo assim um duelista de Joseph Conrad, um espadachim acuado, um
cavaleiro sem armas, um homem morto.
Irrompi daquele quarto macio e escuro, amigo, com o único e banal
objetivo de matar a minha sede, e eis que me deparo com o endiabrado
menino, na saúde sem freio e sem controle dos seus cinco, seis anos, no
máximo, disposto a tudo nesse mundo, inclusive disposto a se vingar das
maldições gregas e freudianas, disposto a passar por cima do meu então
magro cadáver, disposto a proteger sua Jocasta, o cão chupando manga, a
febre do rato, um pirraia dos infernos, um cabinha destemido, um mutum em
redemoinhos e t´esconjuros tantos.
O endiabrado menino, senhoras e senhores, portava uma daquelas
armas iluminadas que me levou direto para um conto de ficção científica do
Bráulio Tavares com Zé Ramalho, deus-mor da raça, como personagem, amo
os dois à vera, por supuesto.
Uma tocha de fogo que aumentou ainda mais a minha sede e a minha
ressaca...
E pensar que eu me contentaria, àquela altura da quase manhã, com um
simples copo de água, desejo sagrado que não se pode negar a nem uma
criatura da face da terra.
Sim, leitores de Jó, o diabo do menino, sorriso sádico, estava armado
com uma daquelas miseráveis espadas de He-Man, ali no final dos anos 80, e
me espetou como o demônio espeta uma alma vagabunda que chega ao
inferno durante o cochilo da sua sesta, puro descuido.
O menino acabou comigo, à vera, antes uns bons cutucões das
peixeiras do Beco da Facada... O filho da mãe, da amante, da amada, me tirou
o couro e o osso, parecia um Delmiro Gouveia comprando pele de bodes e de
cabras, sertões afora, saudade daquele menino que duelou de homem para
homem ainda no estreito corredor escuro da sua infância.

SOB O CÉU QUE NOS PROTEGE OU O AMOR É UMA PIPA DE MÃOS


DADAS

Só há um lugar de fundo que deixa você mais linda ainda: as nuvens. Você
pagando uma siesta aérea, essas coisas lá do alto, livrinho da coleção L&PM
Pocket PLUS largado entre as coxas, a janela, forma única de comunicação
com as mulheres, horizonte e abismo, isso mesmo, Tristessa do Kerouac, o
poder das belas moças, celulares desligados, guaraná, sanduiche de
meteoritos, o incomparável ensaio de amor assim nos céus como jamais na
terra... e alguém, pânico no juízo, pensando naquele tiozim salvador que caiu
sobre as águas qual um Moisés das aeronaves na América, e você, falemos só
de usted, cacomigo, de novo, a mina que comeu o C do Crato do meu
nascimento na identidade momesca como se fosse um ácido.

EM NOME DA FESTA DA CARNE

Minha amiga D., fornecedora de grandes motes para este cronista


muitas vezes perdido e sem assunto, debate comigo: “Cadê a carne do
carnaval dos últimos desfiles, a carne qu e deu origem ao batismo da festa
religiosa, agora só vejo músculos, como se todas as mulheres da avenida
tivessem virado travestis”, ela protesta.
“Lembra as carnes balançando diante das câmeras, o grande e lindo
açougue humano?”, a mesma moça decente cutuca os sovacos da polêmica.
Eu dou corda, a discussão é mais que procedente, não acham?
E não vale apenas para as passarelas e avenidas. Vale para tudo nesse
mundo. Repare bem, não estamos tratando de gordas e magras, de uns
quilinhos a menos e de uns quilinhos a mais. O nó é mais embaixo.
O que pega, amigo, é a falta de maciez mesmo, o confortável amaciante
das carnes das moças, air-bags que nos protegiam contra a dureza e grosseria
do mundo, aquela coisa reconfortante, colo para além do simplesmente
materno, aconchego, “venha para cá meu nego”, o homem é a terra, é a luta, a
batalha, mas também o repouso do guerreiro.
Esses corpos da avenida não são mais os corpos originais de mulheres
para os quais fomos sentimentalmente educados.
Claro, acostumamos, mulheres são mulheres e padrões publicitários são
padrões publicitários.
Mas, amigo, é muito músculo à força, exército de Esparta, elas estão
mais fortes do que todos os zagueiros que enfrentamos nas nossas peladas
amadoras.
Sim, entendo, não pode relaxar muito, questão até de saúde, tem que
correr, Lola, fazer algum esporte, mas, peraí, sem exagero, moça.
Até pode ser uma boa onda transar com uma musculosa dessas, tipo
capa de revista, afinal de contas estamos drogados por estas imagens que
poluem o branco dos nossos olhos a cada segundo, mas, amigo, é
desconfortável demais da conta dormir com uma criatura de tal natureza.
Amanhecemos todo quebrado, todo dolorido, é como se dormíssemos com o
Mike Tyson.
Com o microfone, nessa tribuna livre sobre o tema, ele, Roberto, o rei:
“Gosto de me encostar/ Nesse seu decote quando te abraço/ De ter onde
pegar/ Nessa maciez enquanto te amasso.’’
É aquela canção sobre as cheinhas, bela elegia. O rei é meio
marqueteiro sentimental, mas o cara sabe das coisas, com a ajuda da pena e
dos acordes do Erasmo, claro.
Ora, uma perna pode ser bonita sem ser obrigatoriamente tão
musculosa, tão perna de traveco ou de homem. Assim valendo também, lição
primária de anatomia, para braços, barrigas, rádios, perônios.
Mais carne e menos músculo, sr. açougueiro do balcão da humanidade,
e um contrapeso de coração, se é que você me entende, se é que não é pedir
muito em pleno carnaval de Pernambuco, o melhor carnaval de todas as
galáxias de todos os tempos.

DA SOCIEDADE DOS AMIGOS DO CRIME E DE ALGUNS DOS SEUS


MANDAMENTOS *

Só nos resta uma saída honrosa a esta altura da balbúrdia que toma
conta do mundo: inscrevermos nossos batismos na velha Sociedade dos
Amigos do Crime. As regras são quase as mesmas, com algumas poucas
atualizações da crônica de costumes dos tempos do marquês. Vale sobretudo
o artigo segundo:
“O indivíduo que queira ser admitido na sociedade deve renunciar a toda
espécie de religião, submetendo-se a provas que constarão seu desprezo por
esses cultos humanos e seu quimérico objeto. O mais leve retorno de sua parte
a tais asneiras implicará sua exclusão imediata.”

Lembremos também o artigo 12º:

“Nos horários consagrados ao prazer, todos os irmãos devem estar nus


e misturar-se uns com os outros, gozando indistintamente...”

*do Catecismo de Devoções, Intimidades et Pornografias. para


baixar o livro inteiro e de graça só falar com o bispo, clicando aqui, ó!
DE UM AMOR PERRO NO MAIS LEGÍTIMO PORTUNHOL SELVAGEM *

não sei se escucho um boleron ou um tango, se bebo caubói ou on the rocks,


se camarón de la isla ou biño das beiras fartas do rioja, se naranjas de sebillya
ou pitombas semi-áridas, se lago azul de ypacarai ou sete lagunas non stop, se
trampo focado ou trabalho com margem -como diz o hermanito inconfidente
das geraes-, se tu ou tu mesmo cabô chorare, e sempre tu e tu e solamente tu,
pois mi corazón tututututututu de teléfono ocupado, se entrego aos deuses da
sarjeta ou bote faixa en la calle, faixa como quem procura su perro amado,
gratifica-se etc etc, ai mi perrito que me sorria latindo, mi perrito hojalata, mi
perrito vira-asurero.

se” de “se” de cullo és ruella, por supuesto, não hay banda non hay banda... y
don estebito a esta altura sobe no palco nuevo do PRAGA, el cetegê del
rokenrô, se não fosse o diablo desta fiebre da selva amorosa yo estaria bem
dentro, te procurando, chica, no googlezito de mis gafas, mis anteojos pára-
brisas, mis lunetas de camiñoneiro perdido nos entornos de um bielorizonte
llorado como en la canción de roy orbison.

*do libreto LA MUJER ÉS UN GLUEBO DA MORTE (editora YiYi-Jambo,


Asunción, Paraguay, 2008, à venda na Mercearia São Pedro, SP, donde
aliásssss, hoje, jueves, quinta dos infernos, 05/03, tem fiesta de lançamento da
incriible chica Del Fuego (Nego Fogo, contos) e de Respiração do Labirinto, do
poeta mexicano Mario Papasquiaro, traduzido pela Beatriz Bajo. Papasquiaro é
aquele carinha, saca?, o cabrón mexicano que foi o melhor amigo de Roberto
Bolaño, simmm, o poeta que inspirou o personagem Ulises Lima da saga Os
Detetives Selvagens. Coisa fina da ed. Dulcinéia Catadora. E por um
precito franciscano: apenas seis realetas.Imperdible.

DA ARTE DE ESPREMER CRAVOS E ESPINHAS

Aqui nos pegamos, mascando o chiclete Ploc da nostalgia precoce, para


lembrar os tempos em que as mulheres espremiam nossas espinhas e tiravam
todos os cravos do nariz e arredores _inclusive aqueles na ponta da napa,
motivo suficiente para gritaria e espirros tantos da nossa parte.
Reclamávamos nesse momento, éramos chamados de frouxos.
Inevitáveis comparações com a dor do parto e outras dores femininas ecoavam
no ar nessa hora solene. E quando elas escolhiam justo a hora do futebol, o
ataque do time do coração, vilge, nossa!
Hoje, quando estão praticamente extintas as mulheres da brigada contra
cravos e espinhas (suerte que a cria da minha costela mantém-se na
resistência gaulesa e aproveita a boa luz das manhãs dominicais) , sentimos a
perda, uma vez que nunca dominamos muito bem essa arte. Nem mesmo na
adolescência, quando nos transformamos em verdadeiros e monstruosos Mr.
Hydes _culpa, óbvio, do glorioso vício solitário, que além das espinhas ainda
nos pregava pêlos na palma da mão, de modo a nos devolver ao
darwinianíssimo macaqueamento do macho.
Como não acreditamos nos milagrosos creminhos usados pelos
metrossexuais _esse novo tipo de homem moderno gerado da costela de David
Beckhan_ preferimos incentivar o resgate da prática feminina de tirar cravos e
espinhas, essa bela e útil mania praticamente extinta nos dias que correm.
Vez por outra ainda damos a sorte de avistar, em alguma parada de
ônibus, uma voluntariosa senhora ou senhorita a espremer o rosto de um
camarada. Sempre uma bela cena produzida pelos suburbanos corações.
Sim, não tem a menor graça, nesse mundo tão imbecilmente
profissionalizado, a limpeza de pele dos salões de beleza. Seu rosto ali
entregue a amistosas funcionárias sem nenhuma intimidade, mulheres que
nunca ouviram os nossos roncos de noite na cama. É o tipo de serviço que
exige histórico de intimidades. Tal arte carece de pelo menos um mês de
namoro ou acasalamento. Não é tarefa para qualquer uma. É tão delicado
quanto tirar a roupa pela primeira vez na frente de outrem - e, pensando bem,
uma reveladora prova de devoção.
A menos que seja uma perversa incatalogável, uma gazela não
escarafuncha suas crateras à toa. Quando ela posiciona aqueles dois
indicadores sobre a sua bíblica face, parece aceitar a convivência harmoniosa
até com as nossas mais indignas impurezas. É provação, é decência feminina
no último. E quando ela mostra o resultado na ponta da unha, aquela linda
revoluçaozinha dos cravos domingueiros contra o tédio da existência!?

DONDE SE TOMA CIÊNCIA QUE HOMEM É VIRGULA E MULHER É PONTO


FINAL
Sim, homem é frouxo, só usa vírgula, no máximo um ponto e virgula;
jamais um ponto final.
Sim, o amor acaba, como sentenciou a mais bela das crônicas de Paulo
Mendes Campos: “Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova,
depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos
parques de ouro onde começou a pulsar...”
Acaba, mas só as mulheres têm a coragem de pingar o ponto da caneta-
tinteiro do amor. E pronto. Às vezes com três exclamações, como nas
manchetes sangrentas de antigamente.
Sem reticências...
Mesmo, em algumas ocasiões, contra a vontade. Sábias, sabem que
não faz sentido prorrogação, os pênaltis, deixar o destino decidir na morte
súbita.
O homem até cria motivos a mais para que a mulher diga basta, chega,
é o fim!!!
O macho pode até sair para comprar cigarro na esquina e nunca mais
voltar. E sair por ai dando baforadas aflitas no king-size do abandono, no
Continental sem filtro da covardia e do desamor.
Mulher se acaba, mas diz na lata, sem metáforas.
Melhor mesmo para os dois lados, é que haja o maior barraco. Um
quebra-quebra miserável, celular contra a parede, controle remoto no teto,
óculos na maré, acusações mútuas, o diabo-a-quatro.
O amor, se é amor, não se acaba de forma civilizada.
Nem no Crato...nem na Suécia.
Se ama de verdade, nem o mais frio dos esquimós consegue escrever o
“the end” sem uma quebradeira monstruosa.
Fim de amor sem baixarias é o atestado, com reconhecimento de firma e
carimbo do cartório, de que o amor ali não mais estava.
O mais frio, o mais “cool” dos ingleses estrebucha e fura o disco dos
Smiths, I Am Human, sim, demasiadamente humano esse barraco sem fim.
O que não pode é sair por ai assobiando, camisa aberta, relax, chutando
as tampinhas da indiferença para dentro dos bueiros das calçadas e do tempo.
O fim do amor exige uma viuvez, um luto, não pode simplesmente pular
o muro do reino da Carençolândia para exilar-se, com mala e cuia, com a
primeira criatura ou com o primeiro traste que aparece pela frente.
E vamos ficando por aqui, pois já derrapei na curva da auto-ajuda como
uma Kombi velha na Serra do Mar... e já já descambarei, eu me conheço, para
o mundo picareta de Paulo Coelho. Vade retro.

DECÁLOGO DO MAL-DIAGRAMADO

Dez coisas que um homem feio deve saber para tirar mais proveito da
vida, essa ingrata:
I) Que a beleza é passageira e a feiúra é para sempre, como repetia o
mal-diagramado Sérge Gainsbourg – o tio francês que pegava a Brigitte Bardot
e a Jane Birkin, entre outras deusas. Sim, aquele mesmo francês cabra-safado
autor do maior hino de motel de todos os tempos, “Je t´aime moi non plus”,
claro.
II) Que as mulheres, ao contrário da maioria dos homens, são
demasiadamente generosas. E não me venha com aquela conversinha miolo-
de-pote de que as crias das nossas costelas são interesseiras. Corta essa,
meu rapaz. Se assim procedessem, os feios, sujos e lascados de pontes e
viadutos não teriam as suas bondosas fêmeas nas ruas. Elas estão lá, bravas
criaturas, perdendo em fidelidade apenas para os destemidos vira-latas.
III) Que o feio, o mal-assombro propriamente dito, saiba também e repita
um velho mantra deste cronista de costumes: homem que é homem não sabe
sequer a diferença entre estria e celulite.
IV) Que mulher linda até gay deseja e encara, quero ver é pegar
indiscriminadamente toda e qualquer assombração e visagem que aparecer
pela frente.
V) Que homem que é homem não trabalha com senso estético. Ponto.
Que não sabe e nunca procurou saber sequer que existe tal aparato
“avaliatório’’do glorioso sexo oposto.
VI) Que as ditas “feias” decoram o Kama Sutra logo no jardim da
infância.
VII) Que para cada mulher mal-diagramada que pegamos, Deus nos
manda duas divas logo depois de feita a caridade.
VIII) Que mulher é metonímia, parte pelo todo, até na mais assombrosa
das criaturas existe uma covinha, uma saboneteira, uma omoplata, um
cotovelo, um detalhe que encanta deveras.
IX) Que me desculpem as muito lindas, mas um quê de feiúra é
fundamental, empresta à fêmea uma humildade franciscana quase sempre
traduzida em benfeitorias de primeira qualidade na alcova.
X) Saiba, por derradeiro, irmão de feiúra, que a vida é boxe: um bonitão
tenta ganhar uma mulher sempre por nocaute, a nossa luta é sempre por
pontos, minando lentamente a resistência das donzelas. Boa sorte, amigo
esteticamente prejudicado, nesse grande ringue da humanidade!

REESCREVENDO AD INFINITUM O CATECISMO DE DEVOÇOES &


PORNOGRAFIAS

DA JUSTIFICATIVA ESPECÍFICA DA PEDAGOGIA DA MANGA.


Chupar manga desde a aurora dos anos educa para o ato de sorver uma moça
com gosto e delicadeza. Lambuzamento sem cerimônia. Vezes só um fiozinho
de fibra entre os dentes, como um pêlo; vezes o mergulho da face toda sobre a
vulva amada. Chupar com gosto, deixar o nariz pleno daquele cheiro o dia
todo, assim como o aroma preservado nas falanges, falanginhas e falangetas.
Evitar lavar as mãos para explorar, nos passeios, hedonismo do flâneur, o
olfato para sempre na ponta dos dedos.

PSICANÁLISE DE POBRE II E/OU UM CANALHA À PROVA DO MESTRE


LACAN

Minha gente e a minha não-gente, não se trata de um libelo contra a


psicanálise (falo do falo do último post), muito menos contra os psicanalistas,
tudo não passou de uma defesa dos que escutam os outros, daí os vira-latas
como heróis da crônica. Chegou a hora de exaltar, na contramão do jogo, como
os bichos escutam mais os homens do que o contrário. Apenas isso, o que não
é nada pouco.

Se os analistas, inclusive os bons lacanianos, também escutam, lindo. A


diferença, e isso não passa de um chiste, é que os cães não cobram e jamais
viverão da miséria humana. É pouco?

Sim, com os vira-latas podemos pegar algumas pulgas e isso não é


desconsiderável para quem já tem tantas coceiras no juízo, mas que diferença
faz para quem já tem broncas-cachorras na existência?

Minha gata Déli, por exemplo, sabe quando estou ás vésperas do choro. Fica
ali por perto e prepara o anti-bote, o pulo no colo para dar o abrigo a um
homenzarrão que vai desabar daqui a pouco, desabou, fudeu, lá vem o cara a
gastar as dores do mundo.

“E olhe que ele bebe, amigas,” conta a gata para las gatitas colegas no dia
seguinte, olhe que é um homem protegido sob o escudo de um vício, porque
um homem virtuoso de tudo é um fraco, só serve ao Kapital, a mais nada. “E
mire que ama uma mina incrível”, completa a moça de quatro patas, “mas
chorar não tem nada a ver com suposta felicidade”, completa o tanque das
incompreensões gasolinosas.
Chorar é mais lá para dentro do mato e de todas as veredas possíveis, mas
chorar para os céus não tem graça, daí ai pouco já estaremos lembrando de
Deus e dos homens, não era isso o combinado, chorar é focinho, chorar é
cachorro, no máximo um lobo de Jack London que estica a língua para la luna
caliente em uma adivinhação do suposto divino e do fracasso.

PSICANÁLISE DE POBRE

Foi numa prosa molhada com a melhor bagaceira de Salinas, aquela


que entorta as pernas e endireita a alma, que discorremos, este cronista vira-
lata e o menino bom Cláudio Assis, sobre a capacidade que os cães têm de
ouvir os homens.
Já reparou, meu caro, como tem sempre um miserável se queixando da
vida para o seu cachorrinho magro debaixo do viaduto, dentro do seu barril à
Diogenes ou debaixo da marquise da esquina?
Sim, doutor Freud, psicanálise de pobre é blasfemar para o cão amigo.
O danado não fala nada, mas nos ouve que é uma beleza, presta mais
atenção do que uma sábia coruja.
Falamos por horas, infinitas sessões pelo custo de um osso, o mesmo
da sopa, aquele clássico osso que desce e sobe na cordinha gasta da rotina
em molambos.
A mulherzinha, também só o fiapo de gente, foi embora com outro
vagabundo mais lascado ainda? É com o cachorro que desabafamos, não com
um semelhante, que ainda é capaz de espalhar e fazer chacota do nosso
humaníssimo chifre.
Tirávamos a onda e Assis, que é do ramo do tal cinema, já pensava na
cena. Corta para um cabra macho chorando diante do seu humilde cãozinho
sem plumas lá no Mercado do Pirajá, em Juazeiro, o maior ajuntamento de
cachorro magro do universo.
Mas claro, meu velho, que o vira-lata também um dia nos dá alta, enche
o saco, finge que estamos curadíssimos, saudáveis até os miolos, não suporta
mais as repetidas malices.
O cão, assim como Diógenes, o filósofo grego envelhecido no mais
cínico dos barris de carvalho, como me contou o amigo Duda Fonseca, não
suporta algumas frescuras humanas, como a ressaca moral, por exemplo. O
bicho detesta.
Ora, ressaca somente a física, aquela capaz de aniquilar um homem
depois dos seus 40 janeiros, aquele estadão das coisas que mais parece uma
dengue sartreana, aquela falta das cortinas matinais da existência.
No mais, o cachorro é mais paciente do que qualquer figurão da nossa
sociedade psicanalítica. Melhor até do que os grandes garçons, também
exímios na arte de deixar as nossas dores virarem cera nas suas generosas
oiças. O mestre Reginaldo Rossi que o diga.
Não, amiga, os poodles não servem, tampouco os cães treinados para a
segurança patrimonial da empresa ou da família. Para efeitos terapêuticos,
quanto mais vagabundo mais eficiente no divã canino. Pedigree só atrapalha, é
o que concluímos naquela prosa movida pela água na qual nem os passarinhos
de Salinas ou Januária arriscariam molhar o bico.
DE UM SAMBA DE UM GRANDE AMOR, MENTIRA

“Tinha cá pra mim que agora sim, eu vivia enfim o grande amor,
mentira!”
Encontro minha amiga A., no nosso botequim predileto, e a desalmada
vai logo anunciando, com a ironia fina que a acompanha na riqueza e na
pobreza, na saúde e na doença.
Sempre tem boas histórias e uma mania louca de escolher uma música,
normalmente Chico Buarque, para trilha das sagas românticas.
Como Chico tem um vasto elenco de personagens femininos e incorpora
as dores e delícias das mulheres, ela escolhe no capricho, no ponto. Moleza,
garoto.
“Tinha cá pra mim que agora sim, eu vivia enfim o grande amor,
mentira!”, ela repete e repete, enche o saco com o “Samba do grande amor”.
Essa música nem é protagonizada por uma fêmea, e sim por um homem
desiludido, um cabra cujo destino parafusou-lhe na testa belos objetos
pontiagudos, como diria o compay Marçal Aquino.
Mas ela insiste e canta assim mesmo. Pior: canta e ri, uma loucura. Que
diabo de sofrimento é esse com essas gargalhadas todas?
A moça é assim mesmo. Não tem jeito. E olhe que nem pediu
caipiroscas de frutas vermelhas nesse dia, ficou apenas no chope, coisa fina e
civilizada.
“Morrer dessa vez é que não vou”, tira onda. “Ih, estou escaldada, velho
Francisco”.
O que A. me contou uma das coisas banais que mais escuto das minhas
amigas nos últimos tempos. E olhe que sou conselheiro, ombudsman das
moças, cupido e ouvidor-geral de muitas crias das nossas costelas.
“Sua carteira de desesperadas é grande”, ela mesma tira uma boa onda
sobre um ofício que desenvolvo com gosto e curiosidade desde os verdes anos
–quando sequer eu sabia o era uma mulher para valer, conhecia apenas as
cabritas e as bananeiras.
A amiga deparou-se com mais um desses homens que prometem,
ensaiam, jogam um charme, cultivam, cantam de galo... comparecem e..., sem
dizer nada, tomam o clássico chá de sumiço.
“Por essas e por outras é que agora prefiro um bom canalha a um
homem frouxo”, prega a amiga, conquistando rapidinho o apoio da mesa
feminina ao lado. “Um canalha pelo menos me pega com gosto e temos noites
deliciosas”.
Defende a tese e emenda, riso desavergonhado: “Passava um verão a
água e pão, dava o meu quinhão pro grande amor, mentira!”
É rapazes, é tempo de homem frouxo, que corre mesmo diante da
possibilidade de uma história mais densa e afetiva. Não sabem o que estão
perdendo. A começar pela minha amiga cantante, belo exemplar da raça, no
auge dos seus 3 ponto 6, boa conversa, boa lábia, gostosa, bocão-Jolie e um
humor capaz de tornar o mais nublado dos dias no dia mais alegre e
comovente para o cara que estiver ao seu lado. Sorte desse homem!
NA PELE DE UM METROSSEXUAL OU ESFOLIADO E MAL-PAGO

Para quem enfrentou o protocologista antes do prazo, só para dar bom


exemplo aqui aos seus semelhantes, esfoliar a pele com grãos foi uma moleza.
No embalo, uma desintoxicaçãozinha facial, hidratação, banho com pétalas de
rosa, ofurô... Assim, com o meu personal-beauty de lado, comecei a
transformação de macho-jurubeba, como me classifico na vida, em
metrossexual.
Isso mesmo, qualé, vai encarar? Quase um dia na clínica de beleza.
Ainda levei para casa, amostra grátis, uma sacola de potinhos de creme. Para
as mãos, face, pés-de-galinha, corpo inteiro... Demais para um cabra
nordestino que nunca havia ultrapassado os limites da clássica latinha de
Minâncora, do Leite de Rosas e, nos momentos de delicadeza máxima, um
tubinho de Avanço.
Esfoliado e mal-pago, era chegada a hora de dar um trato nos panos.
Empório Armani já, como todo metrossexual que se preze. Fiquei lindo. Só
pensava na minha mãe: ah se ela visse! Só pensava no meu pai, o grande
Francisco Nildemar: se ele me visse assim me daria uma bela de uma surra,
com cipó de marmeleiro, como nos verdes anos, e seria a mais justa das
surras. Tão digna quanto a sova que fez o velho Graça, nosso gênio Graciliano
Ramos de todas as angústias, ter a primeira noção daquilo que os homens
chamam de justiça, como relata o escritor no livro “Infância”.
Parecia milagre, o mal-diagramado rapaz do Crato transformara-se em
um dândi, um flâneur parisiense no auge da modernidade. Experimentei a loja
inteira. Cada vez mais metrossexual, apesar das feições de xilogravura. A
ilusão só passou quando vi o extrato bancário para simples conferência. Sem
bala para levar um Armani, comprei um genérico na 7 de Abril, no Centrão aqui
de Sumpaulo, e completei o guarda-roupa no brechó -estabelecimento de uma
senhora cheia de cachorros que odeia vender, odeia que atrapalhem seu
sossego na cadeira de balanço justo na hora do programa do Datena.
Para manutenção, haja creminhos... O banheiro, nesta maldita
semana de experiência, tinha mais Lancômes do que a bancada da casa da
Adriane Galisteu que eu vi numa revista “Caras” da vida. E o personal-beauty
não parava mais de ligar, queria fazer mesmo o serviço completo. Próxima
estação: tirar as cutículas e fazer sobrancelhas. Ai também já é fuleragem,
calma ai, devagar com a santa. Como gosto de futebol, o personal tentou
convencer usando justo o exemplo do David Beckhan.
Sim, amigo personal, da costela do Beckhan Deus fez o metrossexual,
mas perai, tem limite, tô fora. Cutículas, tudo bem, agüentei o tranco. Mas
amarelei depois de duas estocadas na pinça. Ai eu nunca mais pisaria os pés
na casa do velho Francisco mesmo, caminhoneiro nos áureos tempos da
marca Fenemê.
Mirei no espelho e vi que as feições já estavam levemente abaitoladas.
Dali para o quarto escuro da “Louca” (famosa boate gay da cidade) seria um
pulo. Epa! Foi ai que larguei a brincadeira, um desafio de jornalismo-verdade
proposto, tempo desses, pela Revista da Folha.
DA COISA OBSCENA E DOS CARTUNISTAS COMERCIAIS

Confesso e comungo com o amigo platônico californiano Craig Yoe -e não há


nem uma baitolagem ou perobice nisso, por supuesto- ao tratar de mais uma
bela questão de nostalgia precoce: como são lindas e inesquecíveis as fêmeas
dos desenhos obscenos dos cartunistas comerciais.

Yoe é mestre do ramo e dá as caras na EleEela* –como anda boa a velha


revista da Manchete-, a que está nas bancas, verão de 2009, sobre a falta que
os tais desenhos nos fazem. “Estou surpreso”, assim falou o monstro, toco as
aspas de ouvido, “é necessário que haja mais arte boa, mais humor e
imaginação no mundo da pornografia. Deus nos livre da Internet”.

A surpresa do gringo viejo é simples: nesse mundão de tantos cartunistas,


quase ninguém com um trabalho de sexo adulto, o que anda fazendo essa
gente?

Por que a molecada genial não suja aos mãozinhas bem-criadas? Há coisa
mais importante no mundo, meu velho Zéfiro?

*entrevista a Andre Maleronka.


COMO ERA GOSTOSO MEU PORTUÑOL SELVAGEM

Cap. XIII – NO QUE LO ATIRADOR DE FACAS TE ATINGE ADONDE NUNCA


DANTES YO HABIA LLEGADO

Si, bien ao epicentro de tu corazón.


No miocárdio.
Ainda lambi el sangre e arranquei la faca...

-Santa Maria del circo – gritou nuestro anão querido.

*da noubellita La Mujer és un Gluebo da Muerte, ed. YiYi-Jambo,


Asunción,2008

DEUS CASTIGA

Em momento de assombro com o eterno retorno às trevas por parte da Igreja


Católica Apostólica Romana, na pessoa do arcebispo de Recife e Olinda, cujo
batismo prefiro não expor em respeito aos saudáveis homens de boa vontade
nessa grave hora, é o momento para repassar, no papel de ex-coroinha e
pecador irrecuperável, alguns pontos do catecismo em voga rubricado pelo
Papa Bento XVI. Reparem só no perigo que corremos, de acordo com as
normas da santíssima cúpula do Vaticano:
Luxúria - desejo desordenado do prazer sexual, quando buscado por si
mesmo, isolado das finalidades de procriação e da união (tópico nº 2351 do
supracitado catecismo). Masturbação - excitação voluntária dos órgãos
genitais a fim de conseguir um prazer sexual. Ato intrínseco e gravemente
desordenado (tópico nº 2352). r

Fornicação - união carnal fora do casamento entre um homem e uma mulher


livres. É gravemente contaria à dignidade das pessoas e da sexualidade
humana, naturalmente ordenada para o bem dos esposos, bem como para a
geração e a educação dos filhos (idem, nº 2353).

Pornografia - retirar os atos sexuais, reais ou simulados, da intimidade dos


parceiros para exibi-los a terceiros de maneira deliberada. Atenta gravemente
contra a dignidade daquele que a pratica (idem, nº 2354).

Prostituição - viola a castidade à qual a pessoa comprometeu no seu batismo


e mancha, seu corpo, templo do Espírito Santo. É um flagelo social. (idem, nº
2355).

Homossexualidade - sua origem psíquica continua amplamente inexplicada.


Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações
graves (Gn 19,1´29 ; Rom 1,24´27; 1 Cor 6,10; 1 Tm 1,10), a tradição sempre
declarou que os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados.
São contrários a lei natural. Em caso algum podem ser aprovados´(idem, nº
2357).
A menos que você também queira ser castigado pela nova inquisição,
como o pessoal do movimento recifense “Eu quero ser excomungado”, que
teve início no último fim de semana em agitação gastro-alcóolica no
revolucionário edifício Caetés, ali na rua da Aurora, é melhor ficar atento aos
ditames da cúpula romana.

Todo cuidado é pouco, meu chapa, do padim Ciço do Juazeiro, que


partiu desta, no ano da graça de 1934, sem se livrar da excomunhão eterna,
até o caso mais recente -infinitamente mais grave- dos médicos que salvaram a
vida da menina de 9 anos de Pernambuco.

Por estas e por outras é que é melhor bater um fio metafísico


diretamente com Deus, caso dos que acreditamos, do que ficar tentando
entender os seus representantes na terra. E je vous salue, Marie, pleine de
grâces, ave Maria, cheia de graça, salve Santo Godard e a alma linda das
crianças.

DE MAIS UM INDECIFRÁVEL ENIGMA DE SAIAS

É um segundo da mais absoluta beleza. Lá vinha a morena. Minhas


retinas mareadas fecham em close. Que maravilha. Aquele sorriso, como digo,
indecifrável. Porque não se trata de um sorriso besta de alguma felicidadezinha
passageira, de um ganho financeiro, da sorte no amor ou no jogo.
É mais enigmático. Muito mais do que o sorriso da Monalisa, que reza a
lenda, era o sorriso de uma grávida. Não é o sorriso dos paraísos artificiais dos
remédios tarjas pretas ou de alguma pastilha psicodélica. Nada.
Não é apenas o sorriso de quem recebeu uma notícia alvissareira,
passou no concurso ou viu o regime fazer o efeito pretendido, uns quilos a
menos, nova silhueta, que beleza! Nem chega perto.
Também não é o sorriso de quem ouviu uma cantada de amor com
requintes de vida eterna.
A moça que ri sozinha na calçada é um mistério.
Não é o riso de quem ouviu uma piada, um “gostosa”, “tesouro” etc etc.
É bem mais profundo.
De que ri a moça?
Será que a moça que vem na calçada ri de alguma coisa que
despencou-lhe, naquele exato instante,do trapézio da memória? Alguma coisa
muito engraçada dos tempos em que ela era uma pequena, uma pirraia, quem
sabe uma queda de uma árvore ao subir pela primeira vez no pé de jambo da
frente da casa suburbana?
Não é o sorriso de quem recebeu carta do estrangeiro, carta do amor
que um dia escafedeu-se, saiu para comprar o king size do desamor e do
desprezo.
Às vezes parece um pouco com um certo sorriso de maldade. Uma
pontinha de vingança, quem sabe. Mas que nada. Só parece. Nada disso.À
medida, mesmo naquele rápido segundo, que os lábios voltam ao normal,
desfazendo o sorriso, vê-se que não tem nada de maldoso naquele retrato.
Muito menos é tingido pelo gloss sabor uva da ironia ou o batom vermelho das
vinganças. Não, não é nada irônico, nada ressentido.
Quanto mistério num sorriso de tão pouco tempo. Daria uns cinco anos
de vida em troca do esclarecimento desse enigma de um segundo.Chego até a
refletir, cofiando a barba rala e dando pequenos nós na costeleta: será que é
consciente, será que elas sabem que o misterioso sorriso toma conta do rosto
naquela hora?
Não, também não é só sexo. Por mais que o gozo, a pequena morte,
como dizem os franceses, faça bem à pele e seja motivo do carnaval particular
no peito,não é esse ainda o motivo isolado daquele sorriso, um sorriso mais
invocado do que o sorriso do gato de Alice.
Gastaríamos esse jornal inteiro em especulações ainda sem rumo. Coisa
de agoniar o juízo. Melhor mesmo apreciar abestalhadamente esse lindo
mistério das crias das nossas costelas.

QUANTOS IDIOTAS VIVEM SÓ

Assim como o Sr. Detalhes é um dos maiores personagens masculinos, a


Senhorita Estupidez figura, ao lado da Namoradinha de um amigo meu, como
grande criatura feminina do inimitável mundo Roberto & Erasmo.

Só um pezinho ai pra gente cantar junto e fechar o tema: “Meu bem, meu bem/
Use a inteligência uma vez só/ Quantos idiotas vivem só, sem ter amor/E você
vai ficar também sozinha, eu sei porque/Sua estupidez não lhe deixa ver que
eu te amo...”

O ORGULHO MACHO DO SR.DETALHES

Não vá dizer meu nome sem querer à pessoa errada.


Está ai, nesse verso de Roberto e Erasmo, um dos maiores orgulhos da
raça humana.
Mais importante do que o chifre em si, amigo de infortúnio e gaia ciência,
seria a simples pronuncia do seu abençoado batismo.
Pense num cara que zela pelo seu próprio nome na praça!
A vaidade é tão grande que o nosso personagem, um dos melhores da
canção romântica brasileira, parte do pressuposto que qualquer outro rapaz,
que não ele, é apenas a pessoa errada, o cavaleiro da triste figura troncha,
nada mais.
Nem do outro cabeludo, que pode aparecer na sua rua, o ciúme
orgulhoso era tanto. Reza a lenda do velho Pasquim, aliás, que o cabeleira em
questão teria sido o Tarso de Castro, escriba e macho de Passo Fundo, tchê.
Zero em modéstia e altruísmo, o Outro, o urso, o dom Ricardão de las
Pontas, não passa de um coitadinho capaz de fazer a pequena lembrar do sr.
dos detalhes tão pequenos.
Pense em um cara convencido: não adianta nem tentar me esquecer,
durante muito tempo em sua vida eu vou viver.
Apenas em um capítulo do conhecimento humano, a criatura esquece o
pecado da soberba e reconhece que não é o pai da matéria. Sim, no caso dos
erros do português ruim, naquele 1971 pós-reforma ortográfica. Mas mesmo
assim, observe, a falha é motivo de orgulho –duvida que a “pessoa errada” pise
maltrate mais a língua pátria do que ele.
Pense em um cabra metido a besta!
Haja pabulagem, amigo, uma carrada de amor próprio, caminhões e
mais caminhões auto-estima ladeira arriba.
No cinqüentenário de carreira de Roberto, efeméride desde ano da
graça de 2009, há quem diga que é a melhor música da sua obra. Certamente
é uma das mais representativas. Eu prefiro “O divã”, aquela das recordações
que me matam, espécie de biografia de nós todos, esses moços, pobres moços
interioranos dos Cachoeiros dos Itapemerins, das Santanas e dos São Joões
dos Cariris.
É, relembro a casa com varanda, muitas flores na janela, minha mãe lá
dentro dela, me dizia num sorriso, mas na lágrima um aviso, pra que eu tivesse
cuidado, na partida pro futuro, eu ainda era puro, mas num beijo disse adeus.
Professor titular da disciplina Educação Sentimental do brasileiro, cada
um tem o seu Roberto preferido. Qual o seu, por acaso?
Eu só sei que vou deixar de pensar em você para prestar atenção na
estrada.

DOIS PARAGUAYS E UM UÍSQUE DUPLO COM EFRAIM MEDINA REYS

Agora que os livros didáticos da Secretaria de Educação de São Paulo


reinventaram a geografia, brindando-nos com dois Paraguays, como uma
mirada bêbada sobre o mapa de Latino América, reabro um viejo moleskine de
viagens com uma modesta aventura por Asunción. Bamus nessa.

Certa feita, numa tertúlia lítero-futebolística na Mercearia São Pedro, ali na


cumeeira da vila Madalena, neste pueblo de san Pablo de Piratininga, o escriba
colombiano Efraim Medina Reys, por graça e chiste, soltou essa: “O Paraguai
não existe”. Realizávamos, na ocasião, uma espécie de Libertadores da
América sem bola e sem pegação de macho em campo, uma Libertadores
dionisíaca, pura diversão entre novos e velhos amigos na bodega que se
tornou o grêmio das letras do Mercosul, Caribe y alhures até adonde alcança a
vista estes mares possibles.

Desde aquele instante, uma idéia fixa grudou na alma cigana como um fiscal
corrupto gruda num pobre sacoleiro sem galáxias: haberia de gastar mi
portuñol numa visita a Assunción, por supuesto. A tríplice fronteira, com direito
a quedas d´águas e de pressão, por causa das belas moças –algumas
inclusive com burcas fundamentalistas- já conhecia dos meus tempos de
repórter de las investigaciones malditas. Investigaciones suicidas que já vão
tarde, lead que me perguntava sempre “o que que eu sou, onde estou, como
sou, fazendo o quê, seu idiota?” Donde lead, para quem, gracias a Diós, não é
do ramo, vem a ser aquele princípio de texto das matérias jornalísticas chatas
que explicam explicam e não dizem nada.
És que chega a grande oportunidade. O primeiro e informal encuentro del
Portuñol Selvagem, que agora faz parte do calendário extra-oficial da
Paraguaylândia. O encontro nasceu justamente no tempo em que o
patenteador da nova língua, don Douglas Diegues, escriba brasileiro com
madre paraguaya e longa vivência na tríplice fronteira (Brasil, Argentina e
Paraguai), rapay ali de Ponta Porá y arredores, iria lançar, um livro que tem
dado o que falar em toda a América Latina: “Rocio” (editorial Jakembo), um
baita idílio lírico-guarany-expressionista acerca da gostosa Rocío Núñez, a
mais linda das mulheres, modelo internacional, já saída do Paraguay pós
Castiñeras y Perlas otras.

Sim, o Efraim tem razão, o Paraguai é uma bela de uma ficção, diz o poeta e
editor Cristino Bogado, responsável pelo lançamento do portuñol selvagem e m
Assunción. “Aqui o brasileiro tem que chegar sem pressa, rondar pela cidade, ir
ate a beira do rio Paraguay, comer um peixe, andar sem o vexame de quem vai
a Nova York”, completa El Domador de Jacarés, um lendário personagem que
flana pela bela e inesperada noche da capital paraguaia.

Assunción é para caminhar devagar pela manhã, tomando um mate


rejuvenescedor que se encontra a cada esquina, Assunción não é da agonia
capitalista de tentar resolver a vida em segundos, lá, como na Madrid dos
exploradores, se dormem belas siestas, o comércio fecha na hora do almoço,
que progresso, que sabedoria, meu Deus, lá você chega e inventa um páis
fictício longe dos preconceitos sem graça que os paraguaios foram vítimas
desde que Brasil, Argentina e Uruguai inventaram de exterminar uma nação, na
chamada grande Guerra patrocinada pelo império inglês -jovens, ao google e
outros programas de busca, pois.

O Paraguay não é turismo babaca. Precisa dos seus olhos e do seu gasto de
sapatos para ser reinventado a cada instante. Como todos os países do
mundo, lá tem o melhor da vida em comida, bebida, escrita (Salve Roa Bastos
y Kaneze) e arquitetura de palácios manchados por ditadores e lendas, mas ou
você viajante inventa os lugares por onde anda ou melhor você ficar em casa
dando voltas ao redor do próprio tédio.

A MENTIRA TEM PERNAS CURTAS, MAS TORNEADAS

A mentira tem pernas curtas mas bem torneadas, como as de Lurdinha,


por exemplo, minha prima e musa da lan house de Solidão, Pernambuco.
A mentira tem pernas curtas, mas é pra lá de sexy, usa um shortinho
que só vendo, de parar a Rebouças, de fechar o comércio.
A mentira é só um modo menos doloroso de se editar a vida, um corte,
uma linguagem, diz um amigo que não sai da sua gelada ilha de edição nem
para ir ao banheiro.
Democrática, a mentira nasceu para todos como o sol dos trópicos.
Mente o católico e o evangélico também mente ao dizer que esse mal
jamais sairia da sua boca. Mente o judeu, mente o árabe da Faixa de Gaza e
só não mente o homem-bomba porque não volta para contar a história.
O macho mente, mas mente muito melhor a fêmea, ela tem a manha, o
esmero, o escopo, a marcenaria da coisa, o dom de iludir como na canção de
Noel & Vadico, a treta, o apuro, a língua, o domínio.
De tanto abusarmos da moça de pernas curtas, nós, os marmanjos,
banalizamos tal prática, nos entregamos pelo olho, pelos trejeitos, mesmo
quando se trata da mentira mais sincera.
Se for jornalista o sujeito, nooossaa, só deixa de mentir quando artista
morto, como na música de Fred 04.
É isso mesmo, até os melhores exemplares da raça masculina cometem
as suas trapaças, dissimulações, subterfúgios, maquiagens na face da quase
sempre insuportável realidade. Do presidente da corte superior ao
trombadinha. A diferença é que uns ainda coram, enquanto outros nem se
incomodam com as faces infestadas por cupins.
Todo esse nariz de cera, esse lero-lero da cumeeira dessa crônica, para
dizer que folheei dia desses, na espera do dentista, “101 mentiras que os
homens contam _e por que elas acreditam” (ed. Ediouro), da norte-americana
Dory Hollander, um clássico da psicologia barata. Aliás, nem no dentista foi, o
fato deu-se no consultório do homeopata, quer dizer, no analista...
Minto. Comprei mesmo o livro no sebo, por dever de ofício, e o devorei,
olhos de traça. Que mentira que lorota boa, seu escriba de meia tigela, seu
Zelig, que fica inventando desculpas para as leituras mais vagabundas.
Dane-se, comprei, li e gostei, pronto.
Melhor assim. E quer saber, é um clássico da psicologia popular
universal. Está para a fofoca de salão como “A Interpretação dos Sonhos” [by
Freud] está para a psicanálise. São frases que podem ser ditas tanto em
Manhattan como no sertão do Crato. Dona Hollander fez uma pesquisa séria,
ouvindo muita gente, sobre nossas mentiras, nem sempre sinceras, e nossas
piores promessas.
Vai de um inocente "estou cansado demais" a um irresponsável "eu te
amo" _dito na hora errada à mulher errada, no lugar errado”. Começo, meio e
fim e a nossa cuca ruim, como na canção do príncipe Ronnie Von.
Por que elas acreditam, entonce? A psicóloga arrisca respostas. Uma
delas: as mulheres acham que ceticismo e romantismo não podem andar
juntos, sob pena de estragar as coisas.
Dona Hollander nos separa em dois blocos: os perigosos e, digamos,
aéticos, que abusam da mentira, que enganam por "esporte e lucro", de forma
inescrupulosa como donos de bancos; os mentirosos ocasionais, que se
mostram dissimulados sob pressão e desviam a realidade com pequenas
lorotas, artifícios para se livrar da "fúria feminina" etc.
Nessa categoria estão também aqueles que poderíamos chamar de
canalhas líricos, inocentes galanteadores como o Bertrand Morane do filme "O
homem que amava as mulheres".
Seja qual for a sua classificação, a leitura pode ser feita de forma séria
e compenetrada, na linha auto-análise, ou apenas como um delicioso chiclete
para a mente, ora. À guisa de tira-gosto, ficam ai algumas casquinhas e
caldinhos das nossas melhores mentiras captadas pela autora:
"As únicas fantasias sexuais que tenho são com você".
"Você é maravilhosa, merece alguém melhor do que eu".
"Relaxe, é apenas uma amiga".
"Vou deixar minha mulher".
"O que me atrai em você é a sua mente".
"Não, não acho você gorda".

NÃO ME SIGA, NÃO SOU NOVELA

“Acordei, fui ao banheiro...”


E eu com isso, meu amigo, você diria, ai na sua moita existencial, nem ai
para o que se passa na vida de seu ninguém.
“Dei a descarga...”
E daí, colega, não fez mais que o recomendável pela boa educação
materna.
“Bebi um copo d´água...”
Peraí, meu rapaz, que diabos eu tenho a ver com isso? Sim, eu sei,
ingerir o precioso líquido nas primeiras horas da manhã é um hábito saudável,
mas entorne o seu copázio lá com as suas negas, não careço de tais notícias
particularíssimas, vê se me erra, camarada.
Fosse pelo menos uma daquelas garrafas do velho Anísio Santiago, aí
sim, até levaria uns torresmos, um marreco, um ponche, um capote para o
banquete na taverna.
“Agora suco de laranja com torradas e queijo fresco, light, claro...”
Certo, amigo, você se cuida, seguramente vai morrer cheio de saúde –
pense em um defunto rosado!-, mas não carece encher o saco dos outros.
E por ai segue a narração, tintim por tintim, de tudo que se passa na vida
da tal criatura. Só não comunica das suas humaníssimas ventosidades
intestinais e traques do gênero. O resto vale na miudeza cotidiana.
Eis o espírito da mais nova modinha da Internet, meu jovem, o tal do
twitter, que você, novidadeiro por excelência, já deve ter enfadado de ouvir
falar.
A moral desta rede de relacionamentos é o troca-troca de mensagens
rápidas sobre o que cada um está fazendo a cada minuto. Uma leseira monstra
com milhões de seguidores do mundo inteiro. De Nova York à lan house da
pracinha de Solidão, Pernambuco; do Recife a Bodocó; de BH a Veredinha; de
Fortaleza aos sertões dos Inhamuns.
Tal rebuliço virtual me faz lembrar um velho conselho, ainda em voga em
algumas plagas: “Mata uma galinha gorda e chama ele/ela para conversar em
tua casa”.
Era apropriado às ocasiões em que as pessoas se demoravam muito ao
telefone ou conversavam, por exemplo, de um carro para outro, atrapalhando o
tráfego. Conveniente também quando o freguês entretinha o balconista em
uma animada prosa ou a mocinha contava a sua vida inteira para a outra
mocinha do guichê de atendimento público.
Sim, amigo, a mania de fazer do simples e transparente gesto de beber
um copo d´água manchete dos novos tempos já possui até um verbo
abrasileirado: tuitar. Eu tuito, tu tuitas, ele tuita...
É muita perobice ou não é, meu velho?
Por via das dúvidas, fica valendo a lição preventiva da filosofia do antigo
pára-choque: “Não me siga, eu não sou novela.” E tenho dito.

DA CARNE E DE OUTROS PECADOS

A melhor coisa da Semana Santa, além de não ter aula de segunda até
sexta, era a proibição de tomar banho de quarta-feira por diante.
Uma bênção dos céus.
E ai de quem teimasse contra as leis divinas. Ficava aleijado, óbvio,
como nos milhares de relatos ouvidos a cada ano.
Quarta-feira de Trevas. A folhinha do calendário já deixava o veto ao
banho mais do que explícito. Não podia mesmo.
Só os desnaturados pecadores, e eles estão em toda parte,
desdenhavam dos costumes, mesmo sob o risco de ficarem tronchos e
empenados.
A pequena gente, a meninada, sempre arisca ao banho naquelas terras
de pouca água, pedia a Deus que a lei cristã fosse perpétua.
Parecíamos aquele garoto que faz o Woody Allen criança no filme “A Era
do Rádio”. O pirraia, fina ironia, chega à conclusão de que há uma grande
vantagem em ter nascido em uma família pobre naqueles anos 1940, arredores
de Nova York: não ser obrigado a escovar os dentes com o mesmo rigor que
os filhos dos mais abastados.
Os católicos mais tementes ainda guardam os preceitos antigos da
Semana Santa, mas, pelo que sabemos, esse capítulo da higiene pessoal não
é mais tão ortodoxo.
Nem mesmo a distância da carne vermelha é questão de vida ou morte.
A própria igreja relaxou o expediente. Digamos que a carestia na venda do
bacalhau e do peixe tenha contribuído, ano a ano, para esta reforma do
cânone.
O que os mais fervorosos não arriscam de jeito algum é a conjunção
carnal. Continua um tabu nos grotões e vilas. Até os pequenos cabarés, os
velhos bregas e lupanares, fecham suas portas.
É mesmo uma tristeza a vida de rapariga na Semana Santa, mas elas
sempre fizeram questão, justiça histórica seja feita, de suspender as atividades.
É hora de jejum e penitência.
Ao macho que comete o tresloucado gesto sobra um impiedoso e cruel
destino: a impotência para todo o sempre, como prega a crendice.
Um amigo do Cariri, o Clóvis, ex-coroinha, católico à vera, papa-hóstia
juramentado, vivia a paranóia de que as moças só lhe davam bola durante a
Semana Santa. Era um daqueles donzelos que estampavam nas feições os
vincos da estiagem e da carência. Um queijudo mesmo, coitado.
Tempos depois ficamos sabendo que se tratava de pura perversidade
feminina. Só para testar a resistência católica e apostólica do garoto que
ajudava delicadamente o padre nos rituais da missa.
TEM GENTE!

Esta crônica é para aqueles que um dia acordaram com a macaca, que
choraram as pitangas, que não entregaram a rapadura, que fizeram das tripas
coração, que fundiram a cuca, que não deixaram a vaca ir pro brejo, que
ficaram numa sinuca de bico, que um dia se estreparam, que jogaram aquele
plá, que subiram nas tamancas, que ficaram em maus lençóis e que, enfim,
puseram as barbas de molho.
E também para vocês, nobres gazelas e pobres moços, ah esses
moços, que não sabem patavinas sobre tais expressões das antigas. Não
sabem mas agora ficarão amarradões, pois um dia já ouviram da Pampulha,
ouviram do Capibaribe, ouviram do Cocó e ouviram do Ipiranga, música ao
longe, na boca dos seus titios e vovôs coisas bem parecidas.
Esta crônica é sobre um certo “Admirável Mundo Velho!”, com
exclamação e tudo, como nos títulos dos jornais do tempo do onça. E antes
que o distinto leitor me mande chupar prego ou pentear macaco, depois de
todo esse lero-lero vida noves fora zero, é bom que se frise: trata-se de um
livro (editora Globo) muitíssimo bem bolado pelo jornalista e escritor Alberto
Villas, moço de Belo Horizonte que sentou praça na capital bandeirantes
depois de estudar no estrangeiro.
E cá com os meus botões, amigo, este cronista que vos bafeja, este
cabeça-chata que não passa de um José dos Anzóis Carapuça, ficou com tanta
inveja, a boa inveja dos achados lítero-afetivos da vida, que acabou plagiando
até a dedicatória do sr. Alberto que abre esse texto.
Uma pouca vergonha, coisa de boco moco, mas que nem me deixou
assim tão encafifado, afinal de contas, desde menino, lá na Chapada do
Araripe e seus arredores, não faço outra coisa senão remedar os outros. Já
imitei até Camões, mais conhecido no interior do Nordeste como um anti-herói
à moda João Grilo e Pedro Malasartes -nada de poeta épico do orgulho
português. Aliás, naquele nosso mundinho, o velho caolho era chamado de
”Comonge”. Talvez, quem sabe, uma mistura com Bocage, pois era atribuído
ao cabra dos Lusíadas toda uma sorte de versos fesceninos ou de sacanagem.
Eita que agora deu vontade, com o livro do Villas debaixo do braço, de
voltar para casa de mãe, lá em Juazeiro, e repassar com ela esse mundão de
expressões. Certamente iria retornar com o embornal repleto de outras.
Na última visita, aliás, no final do ano, quando ela chamou o neto Felipe
de “crânio”, que realmente é um menino sabido da gota, melhor do que Malba
Tahan -o homem que calculava-, foi um assombro. A família inteira chorou às
gargalhadas com o termo aplicado por dona Maria do Socorro.
Havia também um outro modo genial de dizer que alguém era um Rui
Barbosa, ou seja, um crânio, como no “Admirável Mundo Velho”: Fulano de tal
é “ginasi”. Claro, era uma corruptela e o jeito da fala nordestina para dizer
ginásio, um alto grau escolar da época para nós, como lembrei outro dia com o
irmão Evardo Costa.
E quando tinha alguém no banheiro, mesmo o de casa, você chegava
apertado e ouvia sempre um apocalíptico “tem gente!” Pense no desespero!
& MODINHAS DE FEMEA

Fulaninha ficou para titia. “Ficar para titia era chegar aos 20, 22, 25 anos
–e nada de casar”, como consta do livro do Alberto Villas. Nessa mesma faixa
etária, no costume do interiorzão do Brasil, quando a moça não contraía
núpcias dizia-se que “deu o primeiro tiro na macaca”. O segundo tiro seria aos
35; o terceiro e derradeiro tiro pipocaria uma década depois. Ai, adeus, sem
cura ou jeito, o destino seria mesmo o caritó, jamais a sujeita casaria, como
rezava a crendice da época.

* da coluna "modos de macho & modinhas de fêmea", publicada


pelos jornais Diário de Pernambuco, Diário do Nordeste (Fortaleza) e O
Tempo (BH). a crônica é distribuída pela agência BR Press.

XÍCARA

- Você toma com ou sem açúcar?


Era tudo que tinham para conversar naquela manhã.
- Com açúcar.
Como ele tomava sem açúcar, açúcar não tinha.
Nem adoçante.
Ela pegou a xícara na mão, com gosto, reclamou que logo naquele dia estava
com a pior das suas calcinhas _é bege!, não gosto, mas tive que usar essa por
causa do vestido semi-transparente_, algo assim ela disse.
-É ótimo sem açúcar!
Os dois haviam dançado e beijado na pista na boate. Ou no clube, como
chamam.
Não haviam trocado uma só palavra, não careciam, não são poetas, não se
ouve o que se fala nestes lugares, melhor ainda.
-Saco esse tal de minimal techno – ela, viciada no gênero, disse também para
agradá-lo. –Plip-plop,plip-plop a noite inteira.
Nunca mais se viram.
Ela nunca mais tomou café com açúcar, mas só lembrou do cara anteontem
porque estava se achando um tanto quanto dadeira demais da conta e foi
passar a régua na coivara de homens para saber com quantos ficara naquele
semestre letivo.
Todos com camisinha, ufa, que alívio, duas brochadas fenomenais, petite mort
que é bom apenas uma que valesse ser lembrada.
Na oportunidade de tal contagem, ela também lembrou da falta mínima de
gentileza dos mancebos: apenas 33,3% deles lhe ofereceram café-com-ou-
sem-açúcar. 66% deles disseram “A GENTE SE VÊ!”, como se ela se
importasse com isso.
Os que foram na sua casa e ficaram até de manhã saíram de banho tomado e
sorrisos do sucrilhos dos campeões. E ela disse a todos, civilizadamente, como
o corvo do tio Edgar A. Poe: “NEVER MORE”.
NÃO HÁ DIAMANTES QUE COMPREM UMA ALMA PERRA *

Tudo que sei é que esta é uma história em primeira pessoa. Blow-up. Quando
dei fé, cão vadio, aos teus pés lá embaixo estava, mulher-abismo.
Enfiei-me entre os dedos lambi como um lazarento... pulgas passionais ainda
tentaram me avisar, epa!, durante a queda, em vão. Uma mulher muito grande,
alma desenhada por R. Crumb. Pulgas mais avexadas, sado-camonianas,
escreveram no meu couro, em caligrafia-coceira, “o amor é fogo que arde e
não se sente”, ah, se eu pego esse caolho eu furo o outro. Lambi os dedinhos,
um a um, mas não com ritmo, queria que você visse o desassossego desse
pobre cardisplicente sob a forte chuva de granizo. Não há guarda-chuvas para
o amor, Catherine. Nem mesmo quando se tem 20 anos. Não há diamantes
que comprem uma alma perra, Catherine, não há barcos, salva-vidas, só
perdição e enchentes. Não à-toa os sofás bóiam nos aguaceiros. Sofás
dormidos por homens que erraram, homens que já partiram. “As mulheres são
todas diferentes. Quando se perde um homem, há outro igual ao virar da
esquina. Quando se perde uma mulher, é uma vida”. Desde o dia em que cai
aos seus pés não sabia se estava a ganhá-la ou perde-la. O AMOR É FODIDO,
do amigo ultramarinho Miguel Esteves Cardoso, me ensina coisas. Ao contrário
das pulgas sado-camonianas, este gajo, certa noite das antigas, na cidade de
São Paulo, boate Love Story, dizia que as lágrimas das raparigas são
coquetéis sem álcool. Dizer “não chores” funciona sempre, porque só
mencionar o verbo “chorar” emociona-as e liberta-as, dando-lhes carta branca
para chorar ainda mais. As raparigas, depois de chorar, soprou-me o gajo,
lirismo-Morrisey, ficam com vontade de fazer amor.

*do livro "Cão vadio aos pés de uma mulher-abismo" (editora Fina Flor,
esgotado).

CÓDIGO DE BOM-TOM DOS TEMPOS MODERNOS

CAP. I -§ 1º

Se beber não passe email. As chances de dar merda, ora, são enormes. Pedir
alguém que você mal viu em casamento, desmanchar o namoro dos sonhos,
sabotar os projetos em andamento, escrever pornografia para a madre
superiora do Colégio das Damas, xingar o amigo, zoar o freguês, desonrar o(a)
parceiro (a), desmerecer os carinhos, atordoar os sentidos, desmascarar os
ímpios, passar óleo de peroba na cara dos eventuais incorruptíveis,
desmoralizar o ombudsman, entregar as Bovarys e os dons Juans com farta
distribuição na rede de fotinhas digitais...

Ao sair para beber, deixe o computador desligado, travado, imploda as


tomadas, faça uma barreira na porta do escritório, ponha um rastro de cascas
de bananas para que você desabe no chão antes de alcançar a máquina de
alta periculosidade. Faça tudo, amigo(a), que dificulte a volta [do boteco] direito
para o outlook da insensatez, o gmail das perdições, a pororoca de um spam
cardíaco, a irrecuperável ressaca moral dos itens enviados.

MODINHAS DE FÊMEA

Retomando a questão do post anterior, indago e peço ajuda das leitoras


para decifrá-la: que loucura das mulheres corresponderia à nossa paixão
histérica pelo futebol? O vestuário? Os cosméticos? As novelas? A paixão
propriamente dita não vale, posto que aniquila também os mancebos. Aguardo
as respostas para tentar entender um pouco mais sobre a cria das nossas
pobres e bíblicas costelas.
Em tempo: este blog anda devagar devagarinho por causa do tal Speedy
e sua gloriosa Telefónica de Espanha -depois de mais de uma semana de
mudança de casa, os caras não conseguiram acertar os fios por aqui. Sim, ja
desisti dessa firma, e estou transmitindo em outras ondas.

TESTOSTERONA FUTEBOL CLUBE


Diante do sofrimento, digo, quase infarto, deste macho ludopédico na
rodada da última quarta-feira, matutava, com a pitomba metafísica
chacoalhando na boca: será que as mulheres têm um sacrifício do mesmo
porte, tão de graça mas ao mesmo tempo tão de verdade como a nossa
maluca devoção pelos times do peito?
A minha costela amada ria do meu estado de nervos. Palmeiras 1x1
Sport. O Leão resistia com apenas dez homens em campo no Palestra Itália.
Eu respirava por milagrosos balões de oxigênio. Ufa, fim de jogo, o homem de
preto, que fizera de tudo para ajudar o adversário paulista, assopra a latinha.
Abro a cerveja do guerreiro justiçado.
Fim de jogo e começo da mesa-rendonda caseira. Que loucura essa dos
machos pelo futiba. E o que diabo você, mulher, ganha com isso?
Foi ai que lembrei de uma pesquisa sobre o assunto, que vale repeteco.
Coisa animadora para as fêmeas. Repare só: a quantidade de testosterona
produzida por um homem fanático aumenta 27,6% quando o seu time do
coração triunfa. Mesmo que seja contra o Íbis, considerado historicamente
como o pior time do mundo.
É um desses estudos malucos feitos pelos norte-americanos. Neste
caso, uma turma de acadêmicas da Universidade da Geórgia.
Sim, as mulheres devem tirar proveito desta pesquisa e aprender com os
seus parceiros tudo que sempre quiseram saber sobre tiros de meta, meia
ofensivos, escanteios e, queira Deus, até mesmo os mistérios da lei do
impedimento _uma das coisas mais enigmáticas para as fêmeas.
Um dado cruel da pesquisa, principalmente naquelas fases capengas
dos nossos clubes: nas seguidas derrotas, o "homo-fanaticus" perde um tanto
da sua capacidade de produzir hormônios (os mesmos 27,6%) e apresenta-se
inapetente para o amor ou o sexo propriamente dito.
Agora, as mulheres, que jamais compreenderam o banzo sartreano dos
machos derrotados no futebol, podem entender aqueles domingões tristes e
monossilábicos.
O pior é que não adianta nada pedir para um sujeito mudar de time e
tornar-se mais vencedor. Mesmo com a promessa de 27,6% de testosterona-
plus, é mais fácil um homem-que-é-homem mudar de sexo do que de clube.

V DE VENENO, V DE VANZOLINI, V DE VINGANÇA

A mulher chega na frente do bar, assim como não quer nada, vasculha
com as vistas, e vai embora. Mais adiante repete o mesmo ritual em outra
freguesia. Está desesperada à procura do marido, do traste, do vagabundo,
como deve ser tratado doravante.

De tanto ver tal cena na capital paulista, quando trabalhava como


patrulheiro de ruas no baixo meretrício, Paulo Vanzolini fez a música “Ronda”,
como relatou esta semana durante uma série de homenagens -aos 85 anos, o
poeta e sambista é celebrado em filme (“Um homem de moral”, direção de
Ricardo Dias), shows, bate-papos, conferências, etc.

Ele merece, ô, se merece, embora prefira receber honras pelo seu


trabalho como zóologo da USP, doutor em biologia em Harvad, cientista
especializado em répteis. No momento, para se ter idéia da obsessão do
homem que não pára de pesquisar a vida, Vanzolini estuda o comportamento
das cascáveis.

Criatura que rasteja, seja macho, fêmea ou bicho é com ele mesmo. A
sua música está repleta da gente que esperneia, desassossego, como a dama
que procura o seu marido, amante ou cacho em uma longa viagem ao fim da
noite paulistana.

E foi ao ouvir de novo a canção que joguei na mesa do botequim o


debate: esta mulher ainda existe? A destemida que enfrenta o frio e as almas
sebosas da madruga em busca do seu homem?

Há controvérsias, como diriam os diplomáticos. Ora, hoje em dia existe o


celular, ela não careceria de tanta humilhação, diriam outros mais espertos. E
se ele desligou o aparelho, como muitas vezes acontece nos chá-de-sumiço do
gênero?

Um pouco da canção enquanto o leitor reflete sobre o tema: “De noite eu


rondo a cidade/ A te procurar sem encontrar/ No meio de olhares espio em
todos os bares/Você não está...”

O problema é que agora somos nós, os homens, que rondamos em vão


à procura da cria das nossas costelas, opinariam amigos que se pelam de
medo de um chifre. Até que faz sentido. Sintoma dos tempos, coisas da vida.
Bem feito. Eu acho é pouco. Levamos o troco da história.

Vanzolini gira na agulha: “Volto pra casa abatida/ Desencantada da vida/


O sonho alegria me dá/ Nele você está...”
Coitada, você diria a essa altura, abaixou-se mais do que os répteis
investigados pelo Vanzolini. Recolha a sua piedade, amigo, e aguarde as
cenas dos próximos capítulos.

“Ah, se eu tivesse/ quem bem me quisesse/ Esse alguém me diria/


Desiste, esta busca é inútil/ Eu não desistia...”

Até ai tudo bem, rola o vinil na vitrola, mas a dama, logo adiante, já
ensaia a tragédia: “Porém, com perfeita paciência/ Volto a te buscar/
Hei de encontrar/ Bebendo com outras mulheres/ Rolando um
dadinho/Jogando bilhar.”

Como vê, amigo, o ciúme sempre corre na frente da realidade e puxa o


rabo de todos demônios interiores.

Até o trágico epílogo: “E neste dia então/ Vai dar na primeira edição/
Cena de sangue num bar/ Da avenida São João.”.

Não foi por falta de aviso. Os seres que rastejam depuram no alambique
do peito os venenos mais trágicos.

CADERNO AMARELO DE RECORDAÇOES MATERNAS

Mãe, ainda me lembro quando tu colocaste a rede no fundo da mala, mala de


couro, forrada com brim cáqui, e perguntaste, tentando sorrir no prumo da
estrada: “Filho, será que na capital tem armador (gancho) nas paredes?”

Naquela noite eu partiria para o Recife, que conhecia apenas de fotos e do mar
de histórias trazidos pelos amigos. Lembro de uma penca de fotografias em
especial, que ilustrava uma bolsa de plástico que usava para carregar meus
livros e cadernos. Lá estavam as pontes do centro, casario da Aurora ao fundo,
lá estava a sede da Sudene, símbolo de grandeza naquele apagar dos anos
1970, lá estava o Colosso do Arruda, o estádio do Santa...

Quando o ônibus gemeu as dores da partida, aquela zoada inesquecível que


carregamos para todo o sempre, tu me olhaste firme, e eu segurei as lágrimas
tão-somente para dizer que já era um homem, que era chegada a hora de
ganhar o mundo, o mundo que conhecia somente pelo rádio, meu vício desde
pequeno, no rádio em que ouvia os Beatles, as resenhas e as transmissões
esportivas da Globo e Nacional, além de todo um sortimento de novidades
daqui e do estrangeiro.

Lembro que naquele dia, mãe, ouvimos juntos o horóscopo de Omar Cardoso,
na rádio Educadora do Crato (ou teria sido na Progresso de Juazeiro?). Que
falava dos novos rumos do signo de Libra. Você disse: “Tá vendo, meu filho,
você será muito feliz bem longe”.
A voz de Omar Cardoso e o seu mantra ecoava no juízo: “Todos os dias, sob
todos os pontos de vista, vou cada vez melhor!”

Foi o dia mais curto de toda a existência. O almoço chegou correndo, a


merenda da tarde passou voando... e quando dei fé estava diante da placa
Crato/Recife, Viação Princesa do Agreste.

Todo choro que segurei na tua frente, mãe, foi derramado em todas as léguas
seguintes. Mal chegou em Barbalha eu já estava com os dois lenços de pano –
outro cuidado seu com o rebento- molhados. Em Missão Velha, uma moça
bonita, uma estudante que voltava de férias, me confortou: “É para o seu bem,
foi assim também comigo”.

Quando chegou em Salgueiro, além dos lenços e da camisa nova – xadrezinho


da marca Guararapes –, o livro Angústia, de Graciliano Ramos, um dos motivos
da minha vontade de conhecer a vida, também já estava encharcado.

E assim foi a viagem toda. Com direito a soluços, que acordaram a velhinha
que ia ao meu lado, quando o ônibus chegou ao amanhecer no Recife.

Arrastei a mala pelo bairro de São José e procurei a pensão mais econômica.

Sim, mãe, tem armador de rede, escrevi na primeira carta. Era tudo na base do
“espero que esta te encontre com saúde”, como a gente escrevia na
formalidade das missivas.

É mãe, neste teu dia, que está quase chegando a hora, quero lembrar que a
coisa que mais me comoveu foi tua coragem, que eu até achava, cá entre nós,
que fosse dureza além da conta d’alma. Até falei, um dia no divã, sobre o
assunto, como se eu quisesse que naquela despedida o sertão virasse o teu
mar de pranto.

Eis que recentemente me contaste como foi duro, que tudo não passava de um
jeito para não fazer que eu desistisse de ganhar a rodagem. Aí me lembrei de
uma sabedoria que citava nas cartas e bilhetes, quando eu esmorecia um
pouco na sobrevivência da cidade grande: “Saudade não bota panela no fogo”.
E ainda reforçava: “Saudade não cozinha feijão. Coragem, filho, coragem”.

Em nome das mães de todos os meninos e meninas que partiram, dona Maria
do Socorro, quero te deixar beijos e flores.

Sim, mãe, agora já sabes que somos de uma família de homens chorões, são
04h06 de uma quarta-feira e eu choro um pouco, como fazia no fundo daquela
rede colorida que puseste no fundo da mala. Chorava tanto nos sótãos das
pensões do Recife que os chinelos amanheciam boiando no quarto, como se
quisessem tomar o caminho de volta para casa.
MOÇA TRISTE DA BOATE KALLIFA *

No cyber café da augusta, o lindo travesti atualiza a sua página de anúncios; a


puta bloga, unha vermelha e dedógrafa. O tio, meio homeless, lua minguante
como elegante chapéu, style, sai do “nove canções”, cambaleante,
paudurescente, bolinações, as coxas ruivas, longas, o cinema.
O tio, cada dia um hotel, cada noite uma cama, adormece com o neonzinho
piscando um coração vermelho no branco do seu olho.
O tio sonha com a moça da beira daquela estrada perdida, São Sebastião do
Paraíso... A menina dos olhos mais verdes e mais tristes, cor de lodo de uma
existência escorregadia. A moça da boate Kallifa. Infinita tristeza n´alma, petite
mort, encomenda dos deuses.
O piercing na língua. O céu pela fresta da goteira, a lua em vírgula.

Um “eu te amo” tão precoce, mesmo depois do sexo bem pago. Ou terá sido o
assobio do vento, como no conto de Tchecov? O barulho dos caminhões no
asfalto impedem de ouvir outras promessas, chove elipses pelo buraco da
telha.

* da série "ficções à beira da estrada", ano da graça de 1.999, textos de


um possível livro que acabei de achar em uma caixa de mudança.

COM O PÃO DEBAIXO DO BRAÇO

É tanta onda com essa tal de “crise do macho” -mote de peças, colóquio
chique e cafés filosóficos em São Paulo- que este anacrônico que vos bafeja o
cangote resolveu lembrar algumas atitudes e costumes capazes de reorientar
esta criatura que se julga perdida no milharal da existência.
Nada devolve mais a macheza perdida como retornar para casa no
começo da noite com aquele clássico pacote de pães debaixo do braço. É
nessa hora que um homem se faz homem de verdade e consolida a admiração
da cria da sua costela, dos rebentos, da mulher do vizinho etc.
Essa dica é o consenso da Chapada do Araripe, reserva de
pterossauros e berço dos varões da família deste cronista.
Não importa se é a patroa a nova provedora do lar. Deixe ela, toda
poderosa e orgulhosa da nova posição social, pagar a escola das crianças,
completar o tanque do carro, encher a geladeira, abastecer a despensa e até
saldar aquele “pindura” no botequim da esquina.
Nada disso envergonha um macho.
Só não abra mão do direito sagrado dos homens de boa vontade: voltar
para casa no começo da noite com o dito saco de pães debaixo do braço.
Limpe, amigo, na boa o cocô-abacate do pimpolho, chore com a cebola
cortada, desenvolva os dotes culinários e de corte e costura, passe a cera no
piso, dê o brilho, rale a barriga no tanque, rale.
Pouco importa se é ela quem manda mesmo, pouco importa se só lhe
resta, tempos modernos, dizer “sim, minha senhora”, “xô, galinha” e “pra
dentro, menino”.
Só não deixe escapar, amigo, a oportunidade do eterno retorno com o
pão nosso de cada dia a caminho do lar doce lar. Não, amigo, não deixe essa
responsabilidade com a empregada, a funcionária, não é a mesma coisa. Toma
tenência, se liga na simbologia do universo.
Pouco importa se a digníssima, toda executiva, toda trabalhada no azul
do seu tailleur, já passou com o carrão na boutique de pães –é assim que
chama a gente de bem- e trouxe baguetes e ciabatas para o jantar.
Ainda assim, não se deixe impressionar pela modernidade e submissão.
É importante a imagem pública e o cumprimento do protocolo caseiro. Mesmo
que esteja aposentado, finja que precisa ir às ruas e volte com o embrulho
debaixo do sovaco. É um ritual espartano, é a prerrogativa zero zero um de um
homem que honra suas calças.
Falar em calças, amigo, mesmo que já não tenha mais tanta utilidade
assim debaixo daquele teto –até para apertar as costas, ela tem um japonês
profissa!- evite o processo de pijamização. Um homem o dia inteiro em pijamas
perde de vez o respeito. Fuja também dos moletons, vista-se com a decência
do velho tergal vincado de sempre, fale alto nas esquinas, compre boiadas,
lembre histórias da fazenda imaginária em Goiás ou Minas, movimente
fortunas, mas reserve sempre umas patacas, umas moedas, para uma meia
dúzia de pães a caminho de casa.

AMIGO TORCEDOR, AMIGO SECADOR

Amigos, enquanto batuco aqui na velha Remington a nova croniqueta, mais um


pouco de autopromoción e cabotinismo explícito. O Cartão Verde, mesa
redonda que participo na TV Cultura, rola todas as quintas, hoje, por supuesto,
às 20h. Canal aberto para quem mora em São Paulo, cabo em alguns outros
Estados e parabólica para todo o país. Mas quem não teme assombrações,
pode ver também o bate-bola dos machos ludopédicos na página da emissora
na internet. É só apertar aqui, minha gente. E dá-lhe Bombril na antena!

MISSÃO MACHO: ENGRAVIDAR A VIZINHA

Meu amigo, você ai que anda mais liso que mussum de brejo, que anda
comprando fiado e pedindo o troco, repare na moleza desse emprego: R$
5.700,00 para fazer um menino, engravidar uma fêmea. Não uma fêmea
qualquer, não uma criatura avulsa e não-sabida, nada de cobaia de pesquisas,
nada disso, meu caro, simplesmente a mulher do vizinho.

Imagine a cena. Certa manhã, você acorda ali sofrido com as dívidas,
olhão arriado de tanta tristeza, ai vem o morador do apartamento ao lado e diz:

-Costa, meu chapa, estou precisando muito dos seus préstimos,


podemos falar um minutinho?.

Você, que é do ramo, pensa logo em um pedido de grana, a velha e


cordial “facada”, e se antecipa:
-Amigo, no momento estou sem condições, mas quem sabe para o
mês...

-Que que é isso, vizinho, muito pelo contrário. Tenho é uma proposta
para te fazer...

Nisso a mulher do proponente chega na área:

-Deixa que eu mesma falo, Miltinho, pode ser?

O velho Costa estranha o movimento, afinal de contas o nível de


intimidade com o casal do 303 era o mínimo. Nada além de ois, boas noites,
feliz páscoa, etc.

-Sou eu que estou precisando, então eu mesmo desembucho –atalhou a


mulher, impaciente, olho no olho do nosso amigo.

-Tudo bem, tudo bem, não está mais aqui quem estava falando –diz
Miltinho, coitado, um banana.

O velho Costa fica mais encafifado ainda e ensaia um drible de corpo


para pegar o elevador, fingindo algum atraso –como se aquele desocupado
tivesse algum compromisso na vida.

-Preciso que faças um filho em mim –desembuchou a fogosa fêmea,


objetiva, sem nove-horas.

O velho Costa até que já havia pisado na bola inúmeras vezes com o
último dos dez mandamentos, mas nada que tivesse ido além da cobiça e do
desejo na mulher do próximo. Nada além do platônico.

-Como assim, gente, não estou entendendo mais nada, que pegadinha é
essa!? –assombrou-se o camarada.

-Isso mesmo que o nosso querido vizinho ouviu: preciso que faças um
neném em mim, com a máxima urgência possível.

A vizinha não era nada de se jogar fora. O velho Costa, amante das
mulheres fartas, sempre admirou o seu latifúndio dorsal.

-E, querido vizinho, estamos dispostos a te remunerar pelo trabalho,


bem sabes que nessa vida não tem almoço de graça, não é mesmo?! –
declarou o manso corno de resultados.

-Cinco mil e setecentos pela labuta –sorriu a fogosa.

O velho Costa não pegava um galo, como ele sempre chamou a cédula
de 50, havia meses. Imagine a cara de espanto da infeliz criatura.
-E já podemos começar as tentativas hoje mesmo, não é benhê? –disse
a mulher, toda sedutora, sob o olhar resignado e sincero do esposo.

-Chega de pegadinha, cadê a câmera da tevê?, fala sério! –apelou,


acuado, o velho Costa.

Para mostrar que o movimento era sexy e a proposta à vera, a fogosa


fêmea foi logo puxando o vizinho para o sofá da sua sala.

O maridão foi até o botequim da esquina, tomar um suco com um


sanduíche natural –era um corno saudável!-, enquanto os dois se pegavam
pela primeira vez.

E assim continuou a safadeza. Mas acontece que depois de quase seis


meses, com direito a três tentativas semanais, o velho Costa, assim como o
maridão estéril, não conseguiu emprenhar a maldita. O pior é que o miserável
já havia embolsado quase todo o dinheiro.

Resultado: o casal processou o vizinho por ineficiência e outras


brochuras capitais. O rolo segue na Justiça.

DE FATO & DE DIREITO

O caso acima, amiga, parece mentira, mas aconteceu de fato e de


direito na Alemanha. Só adaptei a safadeza para o solo pátrio. É que o velho
Costa e este cronista ficamos mesmo morrendo de inveja da missão do Frank
Maus, o vizinho alemão encarregado de embuchar dona Traute, o nome real da
fogosa. O maridão atende pelo batismo de Demetrius Soupolos. A informação
saiu originalmente no “Bild”, periódico alemão.

RAÍZES DO METROSSEXUALISMO OU PRÉ-HISTÓRIA DA POUCA


VERGONHA

Ainda no madrugador ano de 1926, um circunspecto editorial do Chicago


Tribune pôs na conta do galã Rodolfo Valentino (1995-1926) a culpa pela
primeira onda de afemenizaçao do homem na América. Pura sacanagem dos
jornalistas, óbvio, como nos relata o escriba H.L.Mencken n´O Livro dos
Insultos, relançado agorinha pela Cia. das Letras.
Jornalismo marron à parte, quem teria sido, cá na terra do mulato de
inzonas tantas, o responsável pelas primeiras influências na baitolização do
macho brasileiro de raiz?
O Databotequim, instituto de pesquisas nocturnas deste cronista de
costumes, despachou as suas mais gentis funcionárias para ouvir o distinto
público nas boas casas do ramo.
O cantor Mário Reis (1907 -1981), rapaz de fino trato, teria sido o nosso
primeiro homem célebre a influenciar a plebe rude nesse quesito, conforme o
levantamento feito por nossas vestais e imparciais pesquisadoras.
Não que fosse construído à imagem e semelhança do Valentino de “Os
quatro cavaleiros do apocalipse” ou de “O Sheik”, por exemplo. Simplesmente
por emprestar uma sensibilidade mínima ao então cenário de macheza
absoluta. O intérprete de “Carinhos da vovó” e “Deus nos livre do castigo das
mulheres” era um moço cuidadoso com o visual, um dândi, sempre na estica e
nos bons modos.
O mais lembrado é Mário Reis, sim senhor. A fila de possíveis pioneiros,
todavia, nela incluídos héteros e homos semi-declarados, dobra quarteirões.
Castro Alves, rival do abolicionista Joaquim Nabuco nessa peleja, tem
destaque na galeria, como lembra a amiga Bia Abramo ao cronista. Beirava o
janota, é o que diz o seu biógrafo Alberto da Costa e Silva.
Ai vemos também na fila o João do Rio, o Cauby Peixoto, a Carmem
Miranda –praticamente inventora do travestismo no país-, o boleiro Heleno de
Freitas, que de tão preocupado com o visual chegava a jogar futebol com um
pente no bolso e tantos outros gamenhos do meu Brasil varonil, como diz o Zé
Bonitinho, este o mais radical e testosteronizado dos nossos ídolos televisivos
do gênero.

CÃO DE GUARDA DO SONO DA AMADA

“Amar, além de muitas outras coisas, quer dizer deleitar-se na


contemplação e na observação da pessoa amada”, sopra o velho escritor
Alberto Moravia, sempre aqui na cabeceira.
Uma das melhores coisas da vida é observar a pessoa amada que
dorme, entregue, para além dos pesadelos diários.
Como bem disse Antônio Maria, um homem e uma mulher jamais
deveriam dormir ao mesmo tempo, embora invariavelmente juntos, para que
não perdessem, um no outro, o primeiro carinho de que desperta.
Experimente você também, sensível leitora, vê o seu homem quando
dorme. Há uma beleza nessa vigília que os tempos corridos de hoje não
percebem.
Amar é... vê-lo(a) dormindo.
Cada mexidinha, cada gesto. O que sonha nesse exato momento?
Tomara que seja comigo, você pensa, pois o amor também é egoísmo.
Gaste pelo menos meia hora por semana nesse privilegiado
observatório.
Psiuuuuu!
Ela dorme.
Mãozinha no ar, como se apanhasse pássaros, que coisa mais linda.
Uns 23 minutos assim, mirei no rádio-relógio. A mão desce ao colchão, quase
dormente, formigamentos. Coça o nariz. Põe a mãozinha direita entre as coxas.
Agora vira de lado, como os antigos LPs quando gastavam as seis músicas do
A. E me abraça como nunca fosse partir, corpos viciados, almas em busca de
um acerto.
Dorme, meu anjo.
Ela obedece.
Vigio o sono dela como um soldado zapatista.
Como um cão zela o sangue do dono.
Como se fosse um homem-exército e pronto.
Amar, no início era o verbo intransitivo da alemã professora de amor de
Mario de Andrade. O idílio tem sobrevida, não como gênero, mas como vício,
vício de amar. Amar de muito.
A mão desce agora sobre o meu peito, como se medisse meus
batimentos.
A mão direita volta para a arte de apanhar pássaros, que beleza, que
diabos!
O ideal é que você, amiga leitora, durma do lado esquerdo da cama, o
do coração, sempre.
Mãozinha no ar catando pássaros. Até se acalmar de vez.
Calmaria danada de horas, sem coreografias ou narrativas. Sonha,
sonha, sonha, minha menina.
Como é lindo a vigília ao sono dela.
Coça o nariz. Sussurra umas onomatopeiazinhas lindas de sonhos de
besouros.
Ela arruma os cabelos como algas, entorpeço num mergulho.
Observar o sono do(a) amado(a) é a melhor maneira de mapear a sua
beleza.
É a melhor maneira de conhecer o homem ou a mulher com quem
dormimos.
E como são lindas aquelas marquinhas deixadas pelos lençóis no corpo
dela. Um mapa de delírios! Melhor é lê-las como quem adivinha os sonhos e o
futuro no fundo da xícara árabe ou nas cartas.

ALTA ROTATIVIDADE NO CEMITÉRIO DE AMORES

Agora renova o gloss-urucum no espelho das ruas.


Pensa nos homens como um cemitério de sapatos que poderiam estar naquela
vitrine.
Os homens são apenas um cemitério de sapatos que ficam embaixo das
camas enquanto nos comem ou nem isso.
Sapatos de bicos finos.
Sapatos bem engraxados.
Sapatos sujos na poeira do trabalho e dos dias.
Sapatos cujos bicos já pedem água.
Sapatos de todos os números.
Quantas vezes, como num mergulho, numa vertigem, avistara aquele cemitério
de homens mortos de véspera na sua memória.
“Os homens já sobem mortos para as nossas camas”, pensava ela.
Ela sempre gostou de dormir bem na beirada da cama, quase como se
imaginasse que cairia dali em sonhos e seria levada por mares artificiais de
filmes.
UM HOMEM PRA CHAMAR DE SEU

Sim, não se pede mais em namoro, já soltamos esse brado retumbante


aqui mesmo desta tribuna testosteronizada. Diante do vacilo do macho
moderno, um magote de fêmeas bonitas do Rio e de São Paulo promete sair
em passeatas para manifestar o fastio e a revolta.

Claro que por trás do agito das moças tem uma ação de marketing -ê
mundão perdido e sem porteiras. Pois é, trata-se de um apelo de um site de
relacionamentos, que vai usar a efeméride liberal-picareta-capitalista do Dia
dos Namorados.

Tudo bem, publicidades à parte, os homens andam frouxos mesmo,


molengas, cheio de dúvidas (oncontô, proncovô, que diabo sou?!), mas ainda
acho que é essa é uma realidade apenas entre os mauricinhos, moderninhos,
os filhinhos da nossa gloriosa classe média.

Quando digo acho, amigo, quero dizer teimo, insisto, aposto. Até porque
o amor jamais pode ser circunscrito a uma questão geográfica ou de classes,
mas que os sertões e os subúrbios estão cheios de homens de verdade, ah,
isso ainda procede.

Meus primos nordestinos que moram de Itaquera em diante continuam


pedindo em namoro, noivando, casando, fazendo festas de arromba a cada
celebração normal da vida antiga. O mesmo vale para os que evitaram a
migração óbvia de São Paulo, os que pegaram seus torrões nos melhores
tempos atuais.

Claro que as bacaninhas que irão ganhar um cachê para sair na


passeata marketeira preferem os playboys, óbvio dos óbvios, mas se
quisessem namorariam firme esta semana mesmo. Bastava apenas trocar o
sentido da mão. Em vez de subúrbio/centro, centro/subúrbio, como manda o
GPS do amor e da sorte.

Sim, querida patricinha, você carece também pensar no relacionamento


não como um negócio, mas como uma história, um encontro bonito entre um
rapaz e uma moça.

Repare, amigo, no que disse uma senhorita, ouvida pelo portal G1 a


respeito do assunto: “Eu nunca namorei sério porque, para namorar, você
precisa colocar tanta energia em uma relação que ainda não achei alguém que
valha a pena todo esse investimento”.

Ela é identificada na notícia como Fernanda Portela, 23 aninhos. Repare


como a palavra INVESTIMENTO, minha Nossa Senhora dos Aflitos,se destaca,
pisca como néon no léxico da linda. Tudo virou investimento, negócio, contrato,
ganho, o que-eu-vou-levar-com-isso e outros absurdos encobertos no fundo
das “verdades” padronizadas.
É, amigo, enquanto uma parcela das moças da capital vai às ruas em
busca de namoro, minhas priminhas do subúrbio e do interior tomam uma
coca-cola de saco cheio de mancebos que só pensam em casamento.

ESTOU CONFUSO, "ESTOU CAFUSO", ESTOU CONFUSA

Amigos machos, amigas fêmeas, como berram nas suas manchetes as


revistas de modas & modinhas, o homem é mesmo a nova mulher e vice-versa.

O que impressiona o cronista não é nem o troca-troca de sexos,


tampouco a confusão dos gêneros e suas modernidades. O que mais chama a
atenção é o discurso amoroso de mãos trocadas: cada vez mais a mulher fala
como homem e o homem, por seu turno, cada vez mais afina a voz e
choraminga como uma mulher leitora de romances do tipo Sabrina, saca?

Óbvio que resguardamos, nessas pás-viradas todas, os cafundós à


prova de redemoinhos nos costumes e outras acontecências ditas civilizatórias,
como nos sertões profundos, por exemplo, onde homem continua sendo
homem, mulher segue mulher e é dito homossexual apenas a passiva criatura,
jamais a que faz o agrado de fato e de direito.

Mas paremos nosso jegue metafísico no câmbio dos discursos. Sim, a


apropriação da fala desculposa e masculina por parte das mulheres, já
notaram? Não chega a ser bem um plágio histórico, mas é uma beleza, quase,
quase!

E nos interessa sobretudo a enganação-mor, o clássico dos clássicos da


nossa principal mentira. Aquela usada desde priscas eras, lembra?

Então dois pontos para acochambrar os parafusos da memória: “Estou


confuso, não é culpa sua, você é ótima, mas acho que não vou lhe fazer bem
nesse momento, bla-bla-bla-bla”.

Haja enganação, nove horas, truque, fraude...

Já ouviram esse fragmento do discurso nada amoroso, né?

Pra completar: “Você merece algo melhor!!!”

Repito, era um clássico das desculpas dos machos. A nossa maior falta
de vergonha na cara. Agora ouvimos a mesma ladainha da boca das moças,
que onda!

Já faz tempo que essa desculpa _ “ESTOU CONFUSA...”_ só sai da


boca delas.

Não faz mal, quantas vezes não usamos do mesmo artifício, da mesma
falta de argumento, tá legal, eu aceito o fingimento...
Mas por favor, crias das nossas costelas, devolvam o meu caô, o meu
171, o meu agá, a minha enganação-mor, a minha forma de me livrar mais fácil
e, de preferência, de forma indolor.

Encanta-me o avanço das mulheres em todos os campos e engrenagens


pesadas, rebimbocas & parafusetas, só é desnecessário o quase plágio dos
nossos discursos, ora, ora. Vocês não carecem disso, vocês são mais
sofisticadas, mais inteligentes, mais lindas e labirínticas.

“Estou confusa...”

(Me veio até, do sótão do cocoruto, a velha imagem de Didi Mocó no seu
clássico “Estou cafuso, estou cafuso!”

Estou confuso. Isso era apenas coisa de macho frouxo, não de


elegantes mademoiselles. Tudo bem que vocês, belas raparigas, avancem em
tudo, mas não careciam furtar logo o pior dos nossos defeitos.

Somente nesta última semana, deparei-me com quatro amigos


sorumbáticos e macambúzios. Todos vítimas do “eu estou confusa, não é culpa
sua etc...”

Devolvam o nosso discurso picareta, façam-me favor!

Nosso 171 exclusivo de volta!

Sim, outro clássico, o “não é nada disso que vocês estão pensando”, já
mudou de boca também faz tempo. Agora derrete o batom e o gloss das lindas
filhas de Eva.

É, amigos, toda vez que ouço um diplomático “estou confusa” saco logo
meu velho serrote de galhas e chifres para poder, ao menos, entrar,
humildemente, na porta de casa.

TALENTO PASSADO EM CARTÓRIO *

Nestas plagas, amigo, mesmo quando o filho é adotivo, o talento é


hereditário. O sucesso aqui é como um latifúndio, um imóvel, passa-se em
cartório. Claro que se a tua cria levar jeito para as artes, mesmo as
ludopédicas, melhor ainda. Futuro asseguradíssimo.
Seja no Eixo midiático das modas e imposturas -a ponte Rio-São Paulo-,
no Recife assombrado de Gilberto Freyre, na Fortaleza de Nossa Senhora de
todas as Assunções ou na Belo Horizonte dos velhos arraiais, currais D´El Rei
e dos novos mandatários.
Como um Pêro Lopes, um Duarte Coelho ou um Martim Afonso das
velhas Capitanias, vale o brasão heráldico no frontispício ou na fachada. Nada
como um século atrás do outro para reafirmar a nossa gloriosa tradição de um
batismo bem composto.
Sabes com quem está falando?
Um bom sobrenome, amigo, acende automaticamente o foguetório da
glória e da fama. Disso já sabia o velho Pestana, músico frustrado, ainda no
século XIX, protagonista do conto “Um homem célebre”, de Machado de Assis.
Faltou-lhe uma marca sanguínea mais decente, o que levaria aos píncaros –
seu sonho era ser um Schumann, um Mozart. Jamais, porém, para o seu
desgosto-mor, o artista passou de um festejado autor de polcas e outras chulas
modinhas da praça.
Coitado!
Do mundo de Machadão às telenovelas, com um bom batismo vai-se ao
longe, avança-se sempre umas seis casas sem carecer da sorte no jogo de
dados ou nos lances cruéis do destino e do acaso.
A não ser que o amigo se contente em ser apenas uma celebridade-
miojo, daquelas que fervem e viram gases de três a cinco minutos.
Seja qual for o ramo de atuação, recomendo um mantra sagrado nos
Tristes Trópicos: eu tramo, tu conspiras e nós assinamos embaixo.
Faça você um biscoito fino ou um pão bolorento para as massas.
Na falta total de um bom sobrenome, colar, grudar mesmo em quem
ostenta uma marca sanguínea impoluta pode ser uma ótima idéia. Ser da
“turma”, de alguma forma, é adquirir, sob módica bajulação diária, um
parentesco distante.
Eu tramo, tu conspiras e nós assinamos todos embaixo. Feito! Aí é só
mandar o motoboy reconher a firma em cartório.
Mais fácil do que empurrar bêbado ladeira abaixo.
“Se liga”, amigo, nas técnicas modernas de alpinismo social e cultural da
nova era. “Fazes por ti que eu te ajudarei”, eis o eco bíblico que bafeja o teu
cangote montanha arriba.
Só não caia nessa lorota de que as coisas mudaram, tão-somente
porque temos um Silva na cumeeira do poder da República.
Nas artes é diferente. Entre agora mesmo naqueles sites que pesquisam
árvores genealógicas e descubra o caminho das pedras, uma boa ligação
sanguínea com a elite cultural moderna. O que conta é a sua defesa, a sua
narrativa, afinal de contas todos fomos filhos do mesmo casal de macacos um
dia. Se Darwin é por nós, quem será contra nós nestas hereditárias e
bravíssimas capitanias?
* versão compacta de um ensaio-crônica publicado na revista
Continuum.
SALVE O DIA INTERNACIONAL DAS PROSTITUTAS
O comércio volta-se para o dia dos pombinhos. Antes, porém, temos o
Dia Internacional da Prostituta, neste 02 de junho. Nesta mesma data, no ano
da graça de 1975, em Paris, as damas do trottoir fizeram uma grande
manifestação contra a violência da civilizadíssima polícia francesa. Daí o marco
no calendário para celebrar e renovar os protestos em nome da dignidade da
mais antiga das profissões. A todas estas honestíssimas garotas que ainda não
têm no Brasil a função regulamentada pelo Congresso –a Casa da Mãe Joana
teima em desconhecer o ofício- meus sinceros parabéns pela batalha. Deixo ai
uma velha crônica, ainda do livro “Modos de macho & modinhas de fêmea”
(ed.Record, 3ª edição) para todas vocês:

Amor ao primeiro cheque

Por que os homens, mesmo os que têm mulheres incríveis, mulheres


maravilhosas, procuram as putas?
É uma pergunta tão antiga quanto a humanidade. Uma indagação tão
respeitável quanto a clássica "o que querem as mulheres?''.
Segundo o meu pequeno repertório sobre o caso, uma das melhores
respostas sobre o assunto foi a do monstro sagrado Jack Nicholson.
Quiseram saber do velho lobo da celulóide o motivo pelo qual pagava
para que prostitutas o servissem, sempre em domicílio. Por que, afinal, um cara
charmoso, fueda e interessante como ele, capaz de ficar com as melhores
mulheres desse mundo, ainda apelava para tal expediente?
Nicholson não titubeou um segundo sequer.
"Ora'', disse, "não pago somente para que essas respeitáveis mulheres
se desloquem até a minha casa. Pago caro, sim, pela possibilidade de poder
mandá-las embora na hora em que eu bem entender, nisso elas são lindas,
generosas e imbatíveis''.
Essa liberdade, na versão do ator, é a grande vantagem do comércio do
sexo sobre as ditas "mulheres normais''.
Assim como essa, existem várias respostas possíveis. Todas com o
chamado fundo de verdade, todas deliciosamente furadas. Aí é que entra em
cena Nickie Roberts, uma ex-stripper de Londres, autora do mais vasto ensaio
sobre as ditas mulheres de vida nada fácil: "As Prostitutas na História''.
O livro é um show de experiência própria e compilação de dados
históricos, com finas citações de Hobsbawm, sobre as chamadas
"trabalhadoras do sexo'' _como são politicamente tratadas.
O calhamaço, com 430 páginas, pode até não responder a nossa
dúvida, mas certamente nos ajudará a entender melhor essas moças e o poder
que exercem e sempre irão exercer sobre nós, aquele segredo, o mistério, o
amor ao primeiro cheque, mesmo depois de tantas vistas.
Seja sob a luz do poste da rua Augusta, nos inferninhos pulverizados de
eucalipto ou nas alcovas de luxo das impagáveis Belas da Tarde, Catherines,
Severines...
Como são lindas!
Mas falo das putas de verdade, luz vermelha n´alma, olhos que não
enganam, tenham qualquer corpo ou idade, as damas que nos acolhem além
do amor possível, além da própria psicanálise, um colo além-mãe, além do
calor dos amigos, outra linguagem, linguagem própria que vai além do sexo,
além do colo, além de dizer coisas, um dengo parado no tempo,
suspenso, cafunés nos cinco sentidos.
Falo das putas de verdade. Não essas garotas neoliberais ao extremo
que praticam um sexo-chuchu para pagar faculdade, para comprar roupa de
grife... Parecem mulheres com taxímetros, sexo do tipo flat-cemitério-
apartamento... Essas não entram na minha casa nem no lar doce lar do velho
amigo Nicholson.

SE CASAMENTO FOSSE BOM...

Se casamento fosse bom, não precisava testemunha, pra que padre, pra
que juíz, se o que faz a gente ser feliz é amar, amar, amar... Amor não faz mal
a ninguém.
Cantarolo ai, mal e abestalhadamente, alguns versos de um antigo forró
do genial Trio Nordestino, para entrar de sola, como se diz no futebol, em um
tema que incomoda feito pulga ou carrapato em orelha de cãozinho de
madame: a exploração da indústria do casamento.
Nada contra o enlace dos pombinhos, é lindo, é sonho, aquele vestido
branco, o atraso da noiva, as piadas dos amigos com o noivo, o cunhado
bêbado bolindo com as moças, bouquet para o alto, as coroas aos tapas, as
coroas com a humanissima inveja que rói as vestes qual o rato roía as roupas
do rei de Roma, as coroas em fuga dos seus caritós, as coroas à beira de um
ataque de nervos como as Carmens Mauras...
Ai vai todo mundo para casa... Fim de festa, aquela bangunça, uns
parentes intrigados por passar na cara uns dos outros “umas verdades”
encobertas que careciam de umas canjibrinas, umas doses a mais etc.
Fim de festa e o o noivo e a noiva, meu Deus, nem podem ir para um
hotelzinho barato lá em Poços de Caldas, um chalezinho em São José da
Coroa Grande, Guaramiranga, Ubajara... Sim, passa a régua, estão entregues,
na bacia das almas, às prestações, às dívidas, ao crediário. Pense em uma
ressaca cheia de cálculos.
Foram fazer bonito para os convidados, parentes e amigos e agora, no
noves fora zero da tabuada, o saldo é vermelhíssimo. Pior, amigo noivo, é que
ainda sairam falando. Não gostaram dos salgados, como lhe contou aquela
prima ranzinza e seca de tão ruim, só o couro, o cabelão de crente e os ossos.
Deixa pra lá, amigo, o importante é que foi bonita a festa, pá, e não tem
mais jeito. Não poderia deixar uma data nobre passar em branco, celebrare,
celebrare, celebrare. Não está mais aqui o cronista cri-cri para lhe ampliar a
ressaca.
O problema, distinto noiva e respeitável noiva, é que ninguém casa mais
de um jeito simples. Todo mundo cai no conto do bufê, dos salgadinhos
padronizados e sem gosto, da filmadora, do álbum nada familiar, dos carrões,
das carruagens, da transmissão pela internet (a nova modinha é essa) e de
outros tantos pacotes completos.
Agora mesmo acontece em São Paulo uma tal de Expo Noiva, feira
milionária que mostra o que se transformou uma cerimônia de casamento. Os
números que saem de lá assustam qualquer barão. Estima-se que os
pombinhos torram pelo menos uns R$ 8 bilhões por ano nos seus enlaces em
todo o país.
Não quero aqui provocar a ira santa dos bispos e pastores e recomendar
que se ajuntem, se amancebem, se amiguem, grudem as costelas e sejam
felizes até o eterno enquanto dure. Só não precisa é cair no conto do vigário
das cerimônias caríssimas. Amigo noivo, engorde umas galinhas, uns capões,
um porco, um cabrito e estamos conversados. Acordar devendo em plena lua
de mel é a pior das traições, é como ser corno de si mesmo. Amém e até a
próxima.

O MILAGROSO PAU DE SANTO ANTÔNIO

As coroas largam seus caritós e vão pegar no pau de Santo Antônio, as Lolas
também brincam em cima do tronco, as desenganadas fazem um chá da
casca, os homens seguem os poetas Josélio, negão Wilson e o barco de
cachaça, os ecologicamente corretos protestam –não contra a festa do santo,
mas contra a derrubada da árvore gigante, arre palavra, aroeira, arre, Ibama na
área-, o vigário desfia os seus contos e enterra os seus níqueis na botija, a
rádio Salamanca toca Eleonor Rigby dos Beatles, o arroz jogado nas noivas
rende um banquete aos mendigos, o pau do santo é milagreiro, quem pega
casa mesmo, todo cuidado é pouco para um lobo solitário, o santo passa no
andor muito sorridente, bochechas coradas de tanto paparico, ô mamãe ô que
calor, ô mamãe ô que calor, calor calor na bacurinha, as coroas com fogo nas
entranhas, meu Santo Antoniozinho, nos dai hoje um velho tarado e
aposentado, fazei subir nossa pressão atmosférica, Barbalha acordou
manhosa, Barbalha barbarela, o pau de Santo Antônio nunca foi tão
casanovístico, teso, grosso, imenso, rosa, valhei-me meu padroeiro, as coroas
gozam só de vê-lo, é festa, pá, bendita efeméride e ninguém sabe direito onde
começa o sagrado e muito menos adonde o profano acaba com a gente.

CARTA ABERTA AO REI ROBERTO *

E/ou Educação Sentimental do Macho Popular Brasileiro

Amigo Roberto, antes de tudo agradeço a oportunidade de te escrever


esta carta, aberta como um coração de um homem que sempre amou e sofreu
em público, daqueles que marejam os olhos com uma canção pensando nela,
mesmo a mais ingrata das crias das nossas costelas, mesmo uma mulher tão
errada quanto aquela tua matemática do dois e dois são cinco.
Um homem que faz de todo amor um escândalo, amigo Roberto, seja
bem ou mal-sucedido o amor em jogo, afinal de contas quem disse que pode
haver amor guardado apenas para si e pronto?
Para mim, Roberto, o amor é a coisa mais pública, que se diz no balcão,
que se chora no ombro do amigo, que se põe anúncio no rádio, que se derrama
em chuvas de flores de helicóptero, que faz a gente se achar um daqueles
caras sofridos de cinema americano, que faz a gente cantar “el dia en que me
quieras” na chuva, em lágrimas, parando em cada orelhão público para ouvir a
queda das fichas telefônicas comidas pela garganta do silêncio da linha do
outro lado, como me acontecia antes dos aparelhos móveis.
Amor de verdade, amigo Roberto, a gente fala, agente conta até para o
cachorro, aquele que nos sorri latindo, que tanto nos serve de analista na
emergência do desabafo.
Amor tem que ser dito bem alto para qualquer passante, como se fosse
tua involuntária canção que toca no rádio do táxi.
Falar nisso, Roberto, já reparaste que toda vida que estamos fodidos de
amor, lascados como maxixe em cruz, toda música tua, até mesmo aquela que
ouvimos sem querer no fanhoso alto-falante da festa do padroeiro de Aratama,
é como se fosse nossa biografia precoce ou nosso horóscopo daquele dia,
daquela semana, daquela quinzena?
Quando chorei pela primeira vez com uma música tua, e do Erasmo,
claro, foi no Natal de 1974, e vou te contar, nem era música de amor por
moça, nem queria comer ninguém (ainda), foi aquela do milhão de amigos, mas
quando falas da possibilidade do choro do irmão e do querer estar por perto.
Naquele tempo tive a primeira noção de perda e dor de um homem: o tio
Nelson, teu maior fã nessa terra, se fora precocemente aos trinta e poucos.
Durante todo o ano chorei ao ouvir aquela canção, mas o que era muito
triste foi abrindo o céu fechado, “sem abrigo a dor”, e era como o visse dizendo
assim, lá pelas tantas, em sonhos, “quando sair o disco novo do Roberto canta
dai para mim, meu rapaz?”
Poxa, ela não gostava daquela tristeza, Roberto, aí chegaste com uma
perfeita para eu pensar que ele estava mesmo a ouvir as coisas terrenas, mas
na buena: “Além do horizonte deve ter um lugar bonito pra viver em paz...” Fui
para o meio de uma descampado, em cima de um murundu, um deserto de
tudo nordestino, alí onde havia chorado cacimbas, e cantei bem do alto, desta
feita sem choro, com uma coragem que só tu vendo, disposto para enfrentar
todas as futuras perdas, como se isso fosse possível.

Depois, amigo, corta do Cariri para o Recife, aí já adulto recebo, pelo


rádio, a mais importante lição do Roberto, professor titular de educação
sentimental do homem brasileiro, simples como um prato de arroz, feijão, bife:
“O amor está sempre na moda”.
Falou e disse!
Foi em uma canção dos anos 1980, quando as declarações amorosas
andavam um tanto em baixa, quando uma certa modernidade e frieza tomavam
conta do mundo, quando começávamos a perder de vez o cavalheirismo,
quando já esquecíamos a possibilidade de unir testosterona, pegada e
delicadeza...
Foi justamente no perigo dessa hora, que tu cantaste, disco da safra 83,
um dos mais importantes manifestos para alertar-nos sobre burrice que
imperava:
“Olha, tudo é questão de momento
Homem que tem sentimento
Briga por tudo que quer
Ama, independente da moda
Macho, mas não se incomoda
De ser um doce com sua mulher.”
E assim em todas as nossas crises, és o cara que conversa com a
gente, que manda os plás, os recados, és aquele cara, ombro amigo, que nos
conforta nas dores do chifre e na tremelica nos orienta, nos mostra o rumo qual
um Humphrey Bogart ensinando truques a um abestalhado Woody Allen
(“Sonhos de um sedutor”, o filme).
Roberto, mostraste a nós todos, até à mais bruta das criaturas, que
tratar bem a pequena jamais será uma fraqueza, muito pelo contrário, isso é
que é ser homem completo, os 12 trabalhos de Hércules, a beleza do encontro,
barro, andaime e reboco das nossas costelas.
Por isso que bradaste, escutas só, te lembras dessa?:
“Mas o amor está sempre na moda
Não me deixam mentir os casais
Pelos cantos escuros das ruas
E entre quatro paredes bem mais”.

Sim, amigo, numa canção que nem dão muito por ela, nem virou
clássico, mataste a pau, antes mesmo do debate dessa parada do macho
perdido de hoje, sacas?
Nossa Senhora, o título da música já diz tudo: “O amor é a moda”.
Que lição de vida, como se perder com tal bússola?
Aquela estrela é dela, vida vento leva-me daqui, como é lindo quando
cantavas a dos meninos do Ceará, lembras?
Mais lindo ainda quando cantou as fofinhas, as macias, as de óculos,
tens a manha da isonomia anatômica, bem sei que não se trata de média, nós
pegamos todas, desde que seja com a mínima moral amorosa, além, muito
além dos botões da blusa.
Sim, me diga aí amigo meu, se tudo que a gente gosta é ilegal é imoral
ou engorda?
Agora mesmo, sabe, cara, todas as vezes, sabe aquela moça que
sempre passa e não nos vê... Os dias passam correndo... Preciso dar um jeito
de chamar a atenção da desalmada, que tu achas, se ele nem liga para minha
existência?
Que jeito, amigo, para chamar a atenção da sujeita?
Sim, o meu melhor sorriso eu dei, segui o teu conselho, não adianta, só
me falta ficar nu pra chamar sua atenção, mas tu sabes, amigo,
anatomicamente não sou lá essas coisas todas, o que se faz nessas horas?
Chega de te encher o saco, amigo Roberto, parabéns pelos 50 anos de
educação sentimental do macho brasileiro e desculpa pelo desabafo, e o resto
é a rotina do dia-a-dia que está mudando tudo lentamente, mas estamos
firmes, como machos, antigos ou modernos, que não deixam nunca o amor sair
de moda, por supuesto.

*crônica publicada na revista RC EMOÇÕES, a revista


comemorativa do cinquentenário do cara.
O CASO DA VIUVA DE JABOTICABAL

Entre as minhas tantas costuras para fora, uma, em especial, me encanta: a de


conselheiro sentimental. Talvez herança da minha mãe. Ouvia moças e mais
moças que passavam naquela beira de estrada rumo a Nova Olinda e Crato.
Eu ficava só ali, na botuca, pegando a manha, o que me renderia o primeiro
estágio no rádio, em Juazeiro, no programa Temas de Amor, no qual escrevia –
mesmo sem conhecer o que seria uma mulher- as dicas para chicas
abandonadas ou cheias de dúvidas. Depois ocupei a mesma função com o
pseudônimo de Miss Corações Solitários (batismo roubado do livro do escriba
Nathanael West) em sites e periódicos. Nos últimos anos, a experiência se
repetiu na revista feminina UMA e em um blog temporário da revista Trip.

Por causa dessa ficha corrida, sempre me mandam, até hoje, cartas e emails
com alguma demanda amorosa. Não estava respondendo publicamente às
consultas, mas como Eliete faz questão de tornar explícita a sua dúvida,
deixamos ai aberta aos leitores.

Xico, sou viúva e tenho um pretendente em outra cidade. Sou pobre e ele
rico. Ambos temos filhos.Você acha que largo tudo e caso com ele ou
desisto desse amor? Muito obrigada. Um abraço afetuoso, Eliete,
Jaboticabal, São Paulo

Prezada Eliete, desistir qual o quê, encantadora senhora! Se achas que é amor
por que fugir à luta? Por que o dito sr. mora em outra cidade? Quando é amor,
criatura, vale se mudar com mala e cuia até para Tegucigalpa, o que não deve
ser o caso –imagino que mores na mesma região do pretendido homem
maduro. Mas o que você vais largar, criatura? Filhos? Se eles já tiverem
grandinhos, não há motivo para mascar o jiló cristão da culpa. Que faças tua
vida, serás compreendida pelos garotos. Até porque eles não terão cerimônia
alguma em mais adiante, naturalmente, deixar a mãezinha querida e seguir a
merecida vida deles, casarem, terem também os seus rebentos etc etc.

Amiga consulente, por que tu achas que a riqueza do sr. pretendente pode
atrapalhar vossa vida amorosa e de convivência? Não careces dar ouvidos a
estranhos comentários, que, por maldade, insinuam algum interesse teu na
fortuna dele. Se ele diz que ama, por que temê-lo? Temos que correr de quem
vive afundado em um poço de dúvidas, da turma do “estou confuso”, da turma
do “oncotô, quêque-eu-sou, oncovô” etc.

Mira, encantadora Eliete, a gente não pode desperdiçar certas oportunidades


na vida, sob pena de arrependimentos e rancores futuros que ficam
dependurados no trapézio do cocoruto até o fim dos dias. Meio amor não é
amor, como nos lembra o titio Nelson, mas se sente que é amor inteiro, segura
na mão de Deus e vai, sem medo. Te juega, criatura. Beijo, com o carinho de
sempre, XS
PERTO É UM LUGAR QUE NÃO EXISTE

ou Breve manifesto brego-piegas antes do macarrão domingueiro


Tudo bem, tem dia que a gente acorda meio velho patético, fazer o quê,
vamos em frente, e a queixa senil da semana, a blasfêmia que divido com
vocês é mais ou menos a seguinte: a capacidade que as pessoas têm no
momento de se comoverem com as coisas ou personagens lá de longe, bem
distantes mesmo, e a injeção de anestesia que tomam para as coisas e os
personagens bem de perto, ali na esquina, na porta de casa, as Susan Boyle
que existem em cada rua, em cada povoado, em cada sítio, em cada vila,
usina, engenho, montanha.
Não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia e nem
no algo mais, como diria o meu amigo Antônio Carlos Gomes Belchior
Fontenelle Fernandes, porém, meu velho, é muito fácil, moleza, safadeza,
quase crocodilagem, chorar e prestar apoio virtual somente para o que está a
milhares de léguas de nós. Há uma Susan Boyle, para voltar à modesta e
simpática senhorinha inglesa, em cada quintal, em cada meia-água, em cada
beco, em cada província.
Sim, traço o meu torresmo populista em público e cobro com o
megafone das dores mais antigas: por que ninguém ampara mais o epilético
que se debate na Conde da Boa Vista, na Afonso Penna, na Praça do Ferreira,
na avenida Ipiranga, na beira do Guaíba, na praia de Iracema, no calçadão de
Copacabana?
Todo mundo chora e se comove com as vítimas de bem longe e dá
bananas, na República apropriada, para as Susan Boyles locais. Assim é fácil,
amigo, quero ver sentir e amparar as dores a 50 metros de casa.
Sim, os personagens das dores mais próximas são todos picaretas,
enganadores, querem apenas o seu dinheiro, são ladrões travestidos, gatunos
em trapos, não prestam etc etc. Você, amigo, adora se comover mesmo é com
as lágrimas expostas nas correntes do youtube ou no Fantástico.
Nunca foi tão fácil o choro. Quero ver é chorar pelo pai-de-família
perdido no álcool debaixo do viaduto, que conta apenas com o vira-lata como
divã das dores de todos os infernos possíveis. Tudo bem, tranque o vidro do
carro e vá chorar em casa pela Susan Boyle, até entendo, é bem mais cômodo.
Você tem que chorar por alguma dor nesse mundo e a senhorinha inglesa,
explorada até o tutano pelo show de horrores, é apenas a vítima da hora.
Nunca foi tão fácil, com ou sem tragédias, comover-se pelas coisas ou
personagens de bem longe. Isso não é feio, é bonito, nunca as nossas
glândulas foram tão globalizadas. Seria mais lindo ainda se não estivéssemos,
como jamais nessa vida, tão frios e anestesiados para os que desmaiam ou
morrem na nossa frente. Nunca estivemos tão fracos no nosso próprio terreiro.
Com licença da palavra, estamos uns merdas para os que sofrem ao nosso
lado.
DA SÉRIE SUPER-HERÓIS SENSÍVEIS E MODERNOS

Episódio de hoje: O HOMEM-LAXANTE

Na saúde, na doença, na TPM... E muito mais ainda na prisão de ventre.


Prova de devoção maior não há. Do que viver de perto este drama, seguir
todos os passos da costela amada, na pista, na vida, no WC. O carinho, o
cafuné, o chamego, o homem-laxante com a nega onde a nega estiver.

Existem mulheres de todos os naipes, mas elas se dividem basicamente


em duas classes: as que fazem bem e as que têm certas dificuldades.
Os machos também assim se organizam, segundo Garcia Márquez, os
que evacuam fácil e os que se enfezam ao extremo. O escriba mesmo, em
conversa sobre o tema com o psicanalista Helio Pellegrino, declarou-se ruim de
serviço, um enfezado nato.
O temor feminino diante do trono exige atenção redobrada do macho.
Melhor, valiosa leitora, não esconder essa pequena agonia diária. Ponha o
tema na roda. Melhor ainda, meu rapaz, é você antecipar-se, assim que notar,
pelos sinais exteriores de enfezamento _aquele riso sem graça e a sobrancelha
com medo da vida_ que a amada carece de maiores dengos, cuidados,
delicadezas.
Ou sinais vindos das prateleiras das farmácias: Cascara sagrada,
Ducolax, Tamarine... “Ameixas, ame-as ou deixe-as”, como no hai-kai de
Leminski, também são bons indícios para despertar nossos trabalhos de
Hércules.
Vale todo esforço.
E ainda fica um lembrete sábio, que parece indiano, mas foi me
ensinado pela minha vó Merandolina, brava filha de índios de Águas Belas,
Pernambuco: quem mira as próprias fezes, dizia ela, cria-se sem o menor
pecado da inveja.
Lição mais sábia.
Outro bom conselho, que deixamos aqui de graça, é o da voz da
experiência de “Tia Julia e o Escrevinhador”, melhor livro de Vargas Llosa:
“Para dores de amor, nada melhor do que leite de magnésia(...). Na maior parte
das vezes, os chamados males de amor, etcétera, são distúrbios digestivos,
feijões duros que não digerem, peixe estragado, entupimento. Um bom
purgante fulmina a loucura do amor.”

[De mi libro “Catecismo de Devoções, Intimidades & Pornografias”,


editora do Bispo]
CARTA ABERTA A GILBERTO FREYRE *

Caro mestre de Santo Antônio de Apipucos, o motivo desta é tão-


somente te dar notícias sobre os modos de homem e, principalmente, sobre a
involução das modas de mulher.
Amigo, se já temias o avanço da modinha europeizante no madrugador
1986, não te darei uma boa-nova, muito pelo contrário: a fêmea brasileira se
tornou a maior consumidora de tinta loira do planeta. Sei que não és de
espanto, viste de tudo nesse mundo –aqui incluído as assombrações como os
pernambucaníssimos papa-figos-, mas a nossa morenidade sofre um golpe
atrás do outro.
Sim, ainda vemos grandes bundas, ótimos latifúndios dorsais, mas na
maioria dos casos contra a vontade das suas angustiadas proprietárias. Elas
perseguem um outro corpo, um outro ideal de belezura,sonham com Giseles e
outros fetiches ao melhor estilo vara-pau, bunda-seca, bundinhas que não
rendem um pastel de feira.
Estás sentado, amigo? Então escutas mais esta: os cabelos
encaracolados que enfeitavam as cumeeiras das nossas Sônias Bragas,
lembras?, eita, estes sumiram de vez da nossa paisagem. Alisaram o mundo
todo, amigo. A humanidade das fêmeas virou Vera Fischer por estas plagas.
A chapinha esquentou em todos os cocorutos, mesmo nos mais
melanizados. Temos um salão de beleza a cada esquina, nos sobrados e nos
mocambos, na casa-grande e na senzala.
O clareamento é a tônica.
E não tão-somente nos quesitos capilares, meu velho G.F.. Do teu livro
"Modos de Homem & Modas de Mulher" (1986) para cá, tem sido uma
reviravolta, um sururu na área a cada instante.
Sabes a maciez da mulher brasileira, as carnes de se apalpar em
safadezas tantas? Pois bem, meu caro, todas correm a perdê-las na primeira
fórmula milagrosa que encontram.
Não existem mais os corpos para os quais fomos sentimentalmente
educados. Os colos macios de moças são cada vez mais raros. Tudo músculo
endurecido de traveco ou de zagueiro. Não é mais nem aquela coisa assim
Roberta Close, por quem nutrias uma admiração pela fartura da bunda, É só
dureza. E pronto.
As cheinhas ou desapareceram ou estão meio desgostosas, isso é
trágico, meu velho. Claro que molho a pena no tinteiro do exagero, mas
precisamos ser panfletários para evitar a catástrofe definitiva.
Aqui me despeço, atenciosamente, mirando uma bela bunda, essa sim
uma rara morena, uma jambo-girl, como diríamos em tempos de aldeias
globais, uma legítima afilhada dos trópicos que passa sob a luz do final da
tarde da vila Pompéia, a melhor iluminação natural, sem filtro, para se ver a cor
morena.

crônica escrita originalmente para a revista Continente.


ABECEDÁRIO DE FÊMEAS *

Homem lá conhece mulher, meu amigo. Homem morre menino


nesse aspecto do saber humano. Homem mata outro, promove estripolias no
mundo, joga bola, vai à guerra, planta batatas, fabrica robôs, desenha
videogames, mas não sabe da missa um terço sobre as Angélicas ou
Zenaides, para ficarmos apenas na primeira e na última costela do abecedário
de fêmeas que tratarei mais adiante.
Homem lá sabe do que está falando quando se trata desse quesito.
Poucos, raríssimos, seriam aprovados em um Enem do gênero, em um
vestibular da área. Somos analfabetos funcionais, somos quase todos do
Mobral quando o assunto é o feminino à vera. Ficamos muito no raso, na beira
do açude, rosto no espelho d´água da cacimba, medrosos, covardes, uma
preguiça sentimental da gota serena, uns Macunaímas do amor e da sorte.
As Angélicas e Zenaides, estimado amigo macho, estão em um livro de
chapar o quengo, um livro capaz de bulir com as nossas ignorâncias, remexê-
las, e nos tornar mais cúmplices e interessados por completo nestes seres
colossais que guardam mais mistérios do que a Santíssima Trindade e o bicho
da seda. O livro, sem mais nove-horas, desembucha seu cronista enrolado:”As
filhas de Lilith” (ed.Caliban, Rio, 2009), da poeta Cida Pedrosa, com ilustrações
de Tereza Costa Rego.
Leia se for homem e volte das suas páginas com um outro
encaibramento do mundo. Não tema, “o pênis de Angélica, era de plástico/
passou a vida a esfregar-se no espelho”. Berenice, animal de quatro patas,
está exposta ao pássaro. Cecília, você já viu muitas, mas nunca conheceu
mais de perto; ela lava a calçada, diz a autora, como quem lava o mundo. Tem
coisa mais bonita?
Coitada de Diana. Coitada nada. Faz as loucuras de dietas porque bem
quer: “A sopa a lua o brócolis a proteína o shake/ a balança a fita métrica o
manequim”.Elisa tem olhos quase infantis e se perde naquele teto da igreja
povoado de ovelhas próximas ao cajado do pastor. Alma atada aos cânticos,
menino!
São biografias de mulheres de todos os tipos e quereres. Lirismos a doer
no juízo & bofetadas no gosto besta e mediano. Dona Fátima, por exemplo,
vende goiaba na feira, participa da associação comunitária e espera o dia em
que a agência de modelo convide Priscilla para desfilar no shopping center e
que Wesley termine o curso de informática para pilotar o caixa do
supermercado Carrefour.
Tem ainda Grace e o seu café coado na hora; Hilda e o sexo de manhã
antes do ônibus Rio Doce-Piedade; Ívis que fumou, riu e comeu; Juanita tem
uma dor grande que não cabe no confessionário; Khady, ah, Khady; Luíza no
jogo de buraco; Melissa nasceu loiríssimo e com olhos azuis, era o bibelô das
tias e foi criado à luz dos ensinamentos do doutor Rinaldo Delamare...
Coube a Nely entender desde criança que o corpo era a morada dos
loucos, desvão dos homens e ganha-pão dos pobres. Eis o cascudo poético de
Cida Pedrosa na moleira do mundo. Só podia ser de Bodocó (PE), só podia ser
do sertão do Araripe, só podia ser libriana, porque outubro naquelas plagas é o
mês mais quente do universo inteiro.
Deixei outras mulheres e letras pelo caminho e aqui arriado os quatro
pneus e o estepe encosto em Rosana. Porque em um dia de junho, agora
mesmo, ela resolveu diminuir as horas: secou seu homem a tarde toda,
prendeu-o entre as pernas e ao som de Bob Dylan diluiu-o na boca.

& Modinhas de Fêmea

Nem deu pra falar de Tereza no IML e de outras musas do abecedário


de Cida. Úrsula, porém, era por causa da xará e atriz Andress mesmo: sapato
só arezzo, bolsa victor hugo, relógio rolex, calcinha mourisco, perfume chanel,
jeans m. officer, caneta mont blanc, creme lancôme, camisinha, infelizmente, a
que tiver no motel. Pense numa mulher de grife! Coitada de Zenaide, coitada
nada, dividiu em 12 suaves prestações, aos 60 de idade, a aplicação de botox.

da coluna "modos de macho & modinhas de fêmea",


semanalmente no Diario de Pernambuco, Diario do Nordeste e O Tempo
(BH).

O MAIOR PASSO DA HUMANIDADE

Reproduzo ai, a pedidos, croniqueta deste mesmo Carapuceiro publicada em


17 de outubro de 2004:
Nascimento do Passo, gênio das 70 e tantas mungangas do frevo, que me
desculpe; os velhos e bons b-boys, idem ibidem; os mestre dos baques solto e
virado que me perdoem; Elvis, pomba-gira da pele branca, negocie; Fred
Astaire, qualé, não se revire no desenho pontilhado dos seus respeitáveis sete
palmos; funkadeliks forever, Chicago e Belém com as suas aparelhagens,
samba, samba, samba, candomblé, os deuses que dançam, a todos o meu
respeito e o sangue sem mertiolate dos meus joelhos...
Mas, na boa, o maior passo da humanidade se deu quando o primeiro negro
pisou na lua: salve Michael Jackson, um, dois, espírito a três passos do chão,
me encoxe, wanna take you on a moonwalk...
Ele vai pagar a vida inteira por ter sido maior que Armstrong e sua gangue, por
ter fincado a bandeira da sua tara acima de todos os musicais de todas as
tendências... Wanna take you on a magic carpet ride…
Salve os bois bumbás, os tchans, o samba duro, as lias de itamaracás, a
ciência sob o calçamento do mangue, a fulerage, a macumba da japonega,
mas, peraí, ninguém levitou tão bonito quanto esse rapaz!
Forever my love, you'll be mine. A lua, esse conhaque, o passo da
humanidade, comovido com alma perra e carapuça de jabá-pop à vera.
Eu sei, ele perdeu o nariz original como o carinha do barbeiro de Gogol, mas
pouco importa, nao o diminui como o primeiro negro a pisar a areia movediça
da lua.
A América nunca vai perdoar o seu primeiro negro mais leve que as folhas das
folhas da relva, coitada d´América...
Ninguém, nem o mais mungangueiro dos artistas populares, nem os
comedores de vidros, ninguém sob a lona do nosso Soleil, ninguém no farol,
ninguém no sinal... Nunca houve um passo tão lindo, ajoelhe e reze sr. Balé
clássico, bata palmas, morra de inveja, gaste a arrogância das sapatilhas...
Nunca houve um passo como moonwalk, nunca houve mais linda invasão à lua
dos doidos varridos, Michael Jackson nunca caiu nesse agá minúsculo, pra
enganar moça, ora direis, de pisar nos astros distraído.
Ele andou palmos acima, seu mar vermelho, tábuas sagradas, Moisés da hora,
por entre as nuvens do auto-engano, por entre os dez mandamentos, a terra é
azul.... e ele, marcha à ré, se move.
Estátua!
Stop.
Parou ele ou parou o pop?

MISS CORAÇÕES SOLITÁRIOS ESTÁ ENTRE NÓS

Depois dos mais histéricos pedidos, depois de ameaças de suicídios à base de


overdoses de Frontal com Domecq, barbitúricos com Drury´s, depois de roletas
russas de grossíssimo calibre e gritos lancinantes à Kim Novak na Golden
Gate...

Depois de pulsos cortados e vinis furados de Elvis Costello, Roberto das


antigas, lupicínicos arranhões da agulha sobre os sulcos das dores mais
profundas, Odair José [“mande pelo menos um telegrama/ dizendo que me
ama...”, como entoa na madruga o amigo Bruno Torturra...], Velvet, Nick Cave
e Leonardo Cohen[I can't forget but I don't remember what]...

Ufa!

Depois de todas as dores de corno que não curam com cachaça, aspirina ou
morfina, Miss Corações Solitários, cigana-mor das cólicas andaluzas, bálsamo
dos almodovares corazones, pegou o seu helicóptero vermelho-sangue, ao
qual se refere apenas como “o colibri rubro a serviço dos deuses”, e aqui se
encontra, na redação deste Carapuceiro, a serviço dos molambos e outros
farrapos humanos.

Primeira cartinha, sem mais delongas:

Redentora e fecunda Miss C., não é a primeira nem a última vez que lhe
escrevo esses lacrimosos garranchos, provas da minha vida de m... ah, de
merda mesmo, pronto, falei o que todo mundo aqui já sabe desde que provei o
mingau da inconveniência de haver nascido... Ah, Miss C., não busco mais a
cura, preciso apenas de uma resposta, à nível de uma aposta aqui entre as
balzacas do bairro dos Aflitos, atrás do campo do Náutico, essa outra desgraça
da minha existência!. Gloriosa Miss C., qual a coisa mais difícil dessa vida: 1)
Parar de fumar?; 2)parar de beber?; 3)parar de amar? Ansiosa pela sua luz,
Madá do MADA.

RESPOSTA:

Querida consulente, envelhecida em barris de Jerez, eu diria, no auge da


minha antologia de ressacas monstras, que parar de beber é a luta mais vã;
parar de fumar só quando parar de fuder _o que fazer?, a não ser baforar o
king size da desilusão depois da foda meia-boca aqui de casa?; parar de
amar? Ah, mulherzinha, esse povo do MADA está a carecer é de um bom
tanque de roupa suja ou um corte de cana da Zona da Mata pernambucana,
sob o chicote do latifúndio da Casa Grande, essa outra praga que teima em
não ser extinta. Mas vamos com calma... Cariño, Miss C. Solitários.

DE COMO PERÉIO REPRESENTA A RESISTÊNCIA ETC ETC

Com vocês, Paulo César Campos Velho, vulgo Peréio, gaúcho de Alegrete,
ator, poeta e macho. Uma vida de resistência contra a androginia (“Esse
camarada se androginou/ a moça deu bola a ele e ele nem ligou!”, ouve-se ao
fundo a lírica de Luiz Ayrão) e os desvios demasiadamente humanos da raça.
-Demasiadamente humanos para ti, cronista vagabundo, esse basquete
do Nietszche não rola aqui na minha masmorra, corta essa, estoy fuera –
manifesta-se o homem, o mito, a lenda viva, o bom animal à espreita.
É isso ai, a mata é virgem porque o vento é fresco, vamos em frente,
conosco o Peréio, na mira da bola preta, roda a madeira sobre o giz italiano,
buraco do meio, suave como aquela do Miles Davis, caçapa.
-Sabe, amigo, é preciso manter o senso de escrotidão – cutuca, solene
como no primeiro Shakespeare. –Não obrigatoriamente com as mulheres, mas
com esse garçom, por exemplo, que não chora no meu uísque.
Bola no canto, ele ajeita a manga da camisa cor de rosa, dribla dois fãs
chatos no mesmo mosaico, drible curto, seco, de futebol de salão, gênio, fecha
um olho como no tiro ao marreco, erra na mira, por pouco, muito pouco, pouco
mesmo.
-Chegou mulher bonita começa a dar merda no ambiente –admoesta a
diva que flana na área.
Homem que é homem não chama uma moça à atenção, homem que é
homem admoesta, mata no peito, desliza na coxa e faz do pito uma tese
dramática de catega, jamais uma cantada, tão-somente uma isca para os
movimentos futuros.
É o que nos professa o monstro de Alegrete, agora já retomando a sua
melhor fase no jogo depois do alumbramento bucetístico.
-E digo mais, meus rapazes, ser amado pode até nos encher a bola,
ampliar o orgulho macho etc, acontece, mas não olvidem jamais: toda mulher
que ama, porra, se acha no sagrado direito de chutar o teu saco em qualquer
calçada, a qualquer hora. E isso não é uma metáfora, porra, homem que é
homem não trabalha com metáforas.
Como assim, meu guru, explique a teoria. Antes, porém, peço um uiscao
duplo para nós outros.
Peréio cascaveliza o copázio e manda, de prima, no ângulo:
-Certa vez uma ex mandou a porrada nos meus culhões. Ali ainda no
solo pátrio, me contorcendo em dores, deblaterei, blasfemei, e quis saber o
motivo de tal ira.
Pausa para a chegada de Mário Bortolotto, que desafia o monstro de
Alegrete na sinuca, assobia um um blues, e fica de botuca para ouvir as
danações em andamento.
-No que a amada se explica, senhores, magnâmica: ´É que eu te amo
demais´.
A essa altura, garçons, putas, rufiões, jogadores profissas e umas duas,
três moças de bem indagam, em uníssono:
-E ai, o que fizeste, hombre de Diós?
-De chofre, gostaram do ´de chofre?´, admoestei: pois trata de me amar
menos, porra! (...)Desse dia em diante, sempre adverti as fêmeas: por favor,
me amem menos, cada vez menos, e de lá para cá tenho preservado o meu
lindo saco cor de rosa.

CARAPUÇAS PARA TIPINHOS DE HOMENS CONTEMPORÂNEOS

Tudo bem, bravas fêmeas, os homens são todos iguais, blábláblá etc.
Alguns, no entanto, são bem mais perigosos que os outros. Em mais um
serviço de utilidade pública, este cronista de costumes volta a exibir os tipinhos
contemporâneos da mais alta periculosidade.
Muito prazer, Homem-bouquet. Sim, é aquele macho que entende de
vinhos finos, abre a garrafa, cheira a rolha, balança na taça, sente o bouquet
da bebida dos deuses. O tipinho faz mil cursos, não perde um programa
especializado na tevê, entra em sites franceses do gênero, reúne os amigos
para encher o saco com o tal bouquet, o sabor e o aroma amadeirado etc.
Mais uma advertência: o mesmo elemento costuma apreciar também o
que ele chama de “um bom jazz”, uma “MPB de qualidade”... Corra, Lola, corra
de criaturas desse naipe. Esse camarada é frutado!
Homem que entende e gosta mesmo de vinho não sai arrotando
conhecimentos por ai, simplesmente aprecia e faz a sua companhia apreciar
sem arrogância ou jequice alguma.
Mesmo as heroínas que conseguem escapar do “In vino picaretas”
dificilmente escaparão da arapuca do inominável e desqualificado Homem-
hortinha. Trata-se do distinto mancebo que, ao receber as moças
elegantemente para um jantar, usa o manjericão cultivado na própria hortinha
que mantém no quintal ou na área de serviço. Cultivar o próprio manjericão não
é exatamente o defeito do rapaz. O problema é que ele passa duas horas a
discorrer sobre o cultivo da hortinha, os cuidados, o zelo, samba de um
tempero só, degustação ao pé do saco.
Uma amiga, Ty, coitada, conheceu um destes exemplares que cultivava
até a própria minhoca usado como “fator adubante” da própria hortinha. Corra,
Lola, corra, corra mesmo, corra léguas, eis um tipo irrecuperável.
Com o Homem-Ômega 3 não carecemos cozinhar tanto o juízo, não
representa lá, sejamos generosos, grandes dramas para a humanidade. É
simplesmente um sujeito doente, com alguma cota de paranóia, que tenta
pregar a causa da vida saudável, como se isso fosse pelos menos 10%
possível. Preocupado em combater os radicais livres, o elemento enche
imoderamente o saco dos que enchem a cara. É o tipo do macho que costuma
morrer cedo, mas cheio de saúde, uma beleza, com todas as células
empenhadíssimas em retardar o envelhecimento.
Todo politicamente correto, benza-te Deus, o Homem-ONG, ou homus-
oenegê, é o que há de mais maçante nesse mundão sem porteira. Adora um
abaixo-assinado, uma passeata, põe nariz de palhaço a cada cinco linhas que
lê do noticiário e está sempre morto de decepcionado com o governo, qualquer
governo, mesmo que a sua entidade não-governamental encha as burras, lave
a égua no brejal mais público. Sim, ele acredita na humanidade, na
responsabilidade social, no terceiro setor, na arte como redenção dos pobres...
Se você reparar, leitora do meu coração, ele quase levita, de tão puro, de tão
bom. Some, Lola, some que é roubada-mor.

DO AMOR ILHADO DE AMOR OU CONTA OUTRA, VELHO JIM JARMUSCH

Estávamos em paraty, lembra, meu amor?, e, uma vez cumprida a obrigação


lítero-guntenberguiana-boêmia-picareta-cachacística da Flip, buscamos um
barco para fugir, de ressaca, para uma ilha, quando o moço triste nos arrastou
mar-adentro, tão lentos o motor e o rapaz, seguimos nada esperávamos a não
ser trocar umas palavras novas como são os vocábulos inaugurais do amor
sobre as águas repisadas pelos moços dos sertões e pelas mais lindas
mineiras.

O moço triste nos contou tb uma história de amor sem sentido, como a nossa.

Passamos pelas ilhas dos milionários idiotas e eu gastei uns impropérios


liricamente comunistas...

Passamos por um navio que lembrava uma favela romântica ou um navio


igualmente milionário lindamente saqueado por piratas profissas.

Sim, amor, era Paraty, seguimos e o moço com cara de filme de Jim Jarmusch
nos ancourou em um quintal de família. Parou o barco e achava que
estávamos no paraíso. Nada havia lá de tão bom assim que já não
esperássemos nos nossos coraçõezinhos superbonders & aralditosamente
colados. Até as crianças eram chatas e não bebiam sangria como los niños de
Espana. Nada para vender ou comprar, baby, nada mesmo, só uma areinha de
nada, cinco metros se muito, e uma família triste, tão triste que nem havia um
gordo feliz e sequer um radinho deixado por R. Crusoé ao pé de uma
bananeira artificial.

O moço do barco dormiu (no barco) e silenciosamente lesou de boa na proa.


Eu estava tão feliz que nem notei nada disso. Se não fosse a companhia de
uma linda mulher sequer havia notado que segue a vida e muito menos que
vida ali havia. Só a beleza cutuca um homem de modo a acordá-lo para Jesus.
Levanta-te e anda!

Paramos depois numa ilha-bar, povo já indo embora, mas sol pedindo saideira
e vocábulos de corações lesados.

Nem mais lembro o que meu amorzinho falava àquela altura.

O moço do barco contava uma história parecida. Lentamente dizia que nada
lhe faltava quando inventava histórias de amor como essa. Mostrou a luz da
sua mulherzinha ao longe como quem mostra o farol da existência na mão
trocada, afinal de contas é o faroleiro quem deve mostrar o rumo das coisas ao
barqueiro.

Sua mulherzinha bem longe, ele rezava a reza de quem vai chegar em casa e
pegá-la de jeito. O moço falava uma língua meio jamurschiana mesmo, assim
perdido no paraíso. Minha mulher ao cair da noite foi ficando cada vez mais
incrível, o moço chegou, pegou seu dinheiro e foi para casa. Até adonde deu
na vista, feliz.

(copiado dos garranchos do caderno amarelo do amor de muito, paraty, julho


do ano da graça de 2008).

A ARTE DE JOGAR CONVERSA FORA

Ainda comovido com a leitura de “Chá das Cinco com Aristóteles”


(Lacerda Editora, Rio, 1999, disponível nos bons sebos do ramo), O Carapuça
deixa as suas dicas sobre a arte da conversa em mesa de bar, tablados
praieiros, sombreros praianos e alhures. Sem cerimônia, fizemos um reearanjo
para os dias que correm, a levar em conta a realidade dos Tristes Trópicos e
um punhado de sugestões do velho dândi Oscar Wilde.
O.W. escreveu artigo sobre o tema em crítica ao livro “The principles of
the Art of Conversation: A Social Essay”, de um tal de J.P. Mahaffy, publicado
em 1887 na Inglaterra.
Como a arte da boa conversa está cada vez mais em baixa - e é tão
necessária como o silêncio elegante em uma pista ou salão de danças -,
prometemos, a partir desse número, um madureza ginasial completo sobre o
tema. É triste a ausência de prosa ou o bodejar inoportuno de certos senhores -
só às grandes mulheres é permitido uma prosódia marcada por elipses
preguiçosas (intervalos para cafunés) ou até mesmo o sábio silêncio, quando
metidas em náusea ou tédio bem particulares.
“A este falta café”. Assim os espanhóis do tempo de Mariano José de
Larra (o maior articulista de costumbres de Espanha, escriba do século XIX)
reclamavam dos ruins de papo, atribuindo a culpa à ausência do hábito de
frequentar rodas de bares e cafés de Madri. É realmente na cachaça, entre os
amigos ou adversários cordiais, que adquirimos tal arte. Ao nosso pequeno
manual, pois.
1) Um ligeiro gaguejar pode até oferecer um entusiasmo peculiar à
conversa, ampliando o suspense nas suas boas palavras.
2) Nada pode ser mais irritante do que um pesquisador que diz o tempo
todo: “Exatamente!, exatamente!!”
3) Nunca diga “não tenho nada contra isso, mas...” Adversativa
imperdoável.
4) Nunca diga “no meu tempo...”
5) Nunca termine uma sentença com um inescrupuloso “você não acha?”
6) Evite o samba-exaltação na linha “encantador, encantador!”. Murmúrio
de pseudo-artista.
7) Nunca seja escrupolosamente sincero ao ponto de questionar cada
fato e corrigir qualquer impropriedade.
8) O mentiroso de qualquer espécie sabe que a recreação, e não a
instrução, é a alma da conversa e acaba sendo muito mais civilizado do que o
cabeça-dura que fica alardeando sua desconfiança em relação a uma história
que é contada apenas para entreter a platéia.
9) Nelson Rodrigues e outras usinas de boas frases. Citações ad
infinitum, evitemos, pois. Prefira o naturalismo-realista e conte histórias ou
situações do seu próprio cunhado safado, da sobrinha tentadora, da vizinha do
704 etc.
10) Não conte filmes.
11) Muito menos sonhos. Interpretá-los em público, nem pensar,
senhoras e senhores.
12) Não demonstre o seu cabacismo tecnológico, de modo a exaltar
qualquer nova geringonça ou novidadismo do gênero.
13) Prefira a superfície bem fundamentada ao obscurantismo das teses
ditas profundas -nota de rodapé em mesa de botequim é um desperdício.
14) Em caso de desconhecidos na mesa, não faça a maldita pergunta "o
que você faz" logo nos primeiros goles;
15) Nunca se exalte demais diante de uma mulher bonita e gostosa ao
ponto de querer discutir Faulkner com ela nos primeiros cinco minutos de
conversa.

MISS CORAÇÕES SOLITÁRIOS RESPONDE

MESMO em justo e merecido gozo de férias na Serra do Rola-Moça, Minas, a


nossa cigana andaluza, hoje habitante de uma tenda no Lameiro, na
subida pra chapada do Araripe, volta aos seus despachos normais para
atender os aflitos e agoniados do amor e da sorte:

Senõra,
Tu que conheces os recônditos da alma humana do alto de sua bola de cristal,
tu que vês passado, presente e futuro nas cartas do tarô dos sóis, luas e
estrelas andaluzes, responde a esta jovem atormentada: o fogo que
queima minhas entranhas se apagará com a volta do falcão querido que foi
voar para outras paragens e, vira e mexe, dá sinais de vida, ainda que
virtualmente? Ou o falcão só está maltratando meu pobre músculo
cardíaco, enredando-me em sua confusão infinita - e assim, devo buscar um
novo xodó bem bom por esse mundão de Deus?
Grata pela resposta,
Moça Ansiosa.

Resposta - Dadivosa gazela,


se manuseias o teu obscuro objeto de desejo como bolinas as palavras, esse
falcão está feito, nos céus e na terra, pois muito me admira o ritmo e a
prosódia da tua missiva. Se o macho-de-rapina saltou mesmo a cerca para
outras plagas, te viras com os gaviões que arranham o zinco do teu barraco. Te
joga, moiçola, e apaga esse fogo em destemidas mangueiras. Não gastes à toa
os cotovelos da espera, não chupes facilmente o chicabon da saudade...
Melhor gastar os joelhos nos vagabundos carpetes, melhor gastar o palato em
ritmados e artísticos boquetes! Carinho, tua M.C. Solitários.
Escreva você também, criatura em rebuliços e desassossegos, para a
nuestra sábia cigana.

DE UM SAMBA DO GRANDE AMOR, MENTIRA!

“Tinha cá pra mim que agora sim, eu vivia enfim o grande amor,
mentira!”
Encontro minha amiga A., no nosso botequim predileto, e a desalmada
vai logo anunciando, com a ironia fina que a acompanha na riqueza e na
pobreza, na saúde e na doença.
Sempre tem boas histórias e uma mania louca de escolher uma música,
normalmente Chico Buarque, para trilha das sagas românticas e congas na
bunda.
Como Chico tem um vasto elenco de personagens femininos e incorpora
as dores e delícias das mulheres, ela escolhe no capricho, no ponto.
Moleza, garoto.
“Tinha cá pra mim que agora sim, eu vivia enfim o grande amor,
mentira!”, ela repete e repete, enche o saco com o “Samba do grande amor”.
Essa música nem é protagonizada por uma fêmea, e sim por um homem
desiludido do amor, um cabra cujo destino parafusou-lhe na testa belos objetos
pontiagudos, como diria o compay Marçal Aquino.
Mas ela insiste e canta assim mesmo. Pior: canta e ri, uma loucura. Que
diabo de sofrimento é esse com essas gargalhadas todas?
A moça é assim mesmo. Não tem jeito. E olhe que nem pediu
caipiroscas de frutas vermelhas nesse dia, ficou apenas no chope, coisa fina e
civilizada.
“Morrer dessa vez é que não vou”, tira onda. “Ih, estou escaldada, velho
Francisco”.
O que A. me contou uma das coisas banais que mais escuto das minhas
amigas nos últimos tempos. E olhe que sou conselheiro, ombudsman das
moças, cupido e ouvidor-geral de muitas crias das nossas costelas.
“Sua carteira de desesperadas é grande”, ela mesma tira uma boa onda
sobre um ofício que desenvolvo com gosto e curiosidade desde os verdes anos
–quando sequer eu sabia o era uma mulher para valer, conhecia apenas as
cabritas e as bananeiras.
A amiga deparou-se com mais um desses homens que prometem,
ensaiam, jogam um charme, cultivam, cantam de galo... comparecem e..., sem
dizer nada, tomam o clássico chá de sumiço, saem para comprar o king size,
sem filtro, do abandono.
“Por essas e por outras é que agora prefiro um bom canalha a um
homem frouxo”, prega a amiga, conquistando rapidinho o apoio da távola
redonda das gazelas ao lado. “Um canalha pelo menos me pega com gosto,
como se fosse mesmo a última noite”.
Defende a tese e emenda, riso desavergonhado: “Passava um verão a
água e pão, dava o meu quinhão pro grande amor, mentira!”
É rapazes, é tempo de homem frouxo, que corre mesmo diante da
possibilidade de uma história mais densa e afetiva. Não sabem o que estão
perdendo. A começar pela minha amiga cantante, belo exemplar da raça, no
auge dos seus 3 ponto 6, boa conversa, boa lábia, gostosa, bocão-Jolie e um
humor capaz de tornar o mais nublado dos dias na mais promissora e
comovente folhinha do calendário. Sorte desse homem!

DE UMA CARTA ABERTA AOS COVARDES NO AMOR ETC

Amigas, peço a devida licença para me dirigir exclusivamente aos meus


semelhantes de sexo, esses moços, pobre moços, neste panfleto
testosteronizado e inflamável, CUIDADO FRÁGIL. Sim, amigas, esses seres
que andam tão assustados, fracos e medrosos, beirando a covardia amorosa
de fato e de direito.
Destemidas fêmeas, caso notem que eles não leram, não estão nem ai
para a nossa carta aberta, mostrem aos seus homens, namorados ou
pretendentes, mostrem, recortem e colem nas geladeiras deles, larguem a
página aberta no banheiro, na mesa do computador, na cabeceira da cama,
deixem esta crônica grudada na tv, mas não antes do futebol da quarta, pois há
o risco de simplesmente ser ignorada, enfim, me ajudem para que esta minha
carta aberta aos rapazes chegue, de alguma forma, ao alcance deles.
Amigos, chega dessa pasmaceira, chega dessa eterna covardia
amorosa. Amigos, se vocês soubessem o que elas andam falando por ai.
Horrores ao nosso respeito. O pior é que elas estão cobertas de razão como
umas Marias Antonietas cobertas de longos e impenetráveis vestidos.
Caros, estamos sendo tachados simplesmente de frouxos, medrosos,
ensaios de macho, rascunhos de homens, além de tolos, como quase sempre
somos.
Prestem atenção, amigos, faz sentido o que elas dizem. A maioria de
nós anda correndo delas diante do menor sinal de vínculo, diante da menor
intimidade, logo após a primeira ou segunda manhã de sexo. O que é isso
companheiros? Fugir à melhor das lutas?
Nem vou falar na clássica falta de educação do dia seguinte. Ora,
mandem nem que seja uma mensagem de texto delicada, seus preguiçosos,
seus ordinários. O que custa um telefonema gentil, queiramos ou não dar
seqüência à historia?!
Ora, depois daquela intimidade toda! Tudo bem que não mandemos
flores, mas um mimo em palavra, nem que seja um lacônico: “Foi ótimo, noite
linda!”.
Amigos, estamos errados quando pensamos que elas querem
urgentemente nos levar ao altar ou juntar os trapos urgentemente. Nos
enganamos. Erramos feio. Em muitas vezes, elas querem apenas o que nós
também queremos: uma bela noitada! E, claro, delicadeza.
Por que praticamente exigimos uma segunda chance apenas quando
falhamos, quando brochamos, algo demasiadamente humano? Ah, eis o ego
do macho, o macho ferido por não ter sido o garanhão que se imagina na
cama.
Sim, muitas querem um bom relacionamento, uma história com firmes
laços afetivos. Primeiro que esse desejo é legítimo, lindo, está longe de ser um
crime, e além do mais pode ser ótimo para todos nós.
Enquanto permanecermos com esse medinho de homem, nesse eterno
e repetido “estou confuso” –“eu tô cafuso”, como dizia Didi Mocó!-, a vida passa
e perdemos mil oportunidades de viver, no mínimo, bons momentos do gozo e
felicidade possível. Afinal de contas para que estamos sobre a terra, apenas
para morrer de trabalhar e enfartar com a final do campeonato?
Amigos, mulher não é para ser temida, é para nos dar o melhor da
existência, para completar-nos, nada melhor do que a lição franciscana do “é
dando que se recebe”, como cai bem nessa hora. Amigos, até sexo pra valer,
aquele de arrepiar, só vem com a intimidade, os segredos da alcova, o desejo
forte que impede até o ato que mais odiamos, a velha brochada da qual
tratamos aí acima.
Caros, esqueçamos até mesmo o temor de decepcioná-las, no caso dos
exemplares mais generosos do nosso clube. Não há decepção maior no mundo
do que a nossa covardia em fugir do que poderia representar os bons
momentos da felicidade possível, repito, não a felicidade utópica, que é bem
polêmica, mas a felicidade que escapa covardemente entre nossos dedos
sujos de caneta Bic a toda hora. Acordemos, para Jesus, amigos homens,
levanta-te e anda condenado!
Rapazes, o amor acaba, o amor acaba em qualquer esquina, de
qualquer estação, depois do teatro, a qualquer momento, como dizia Paulo
Mendes Campos, mas ter medo de enfrentá-lo é ir desta para a outra
mascando o jiló do desprazer e da falta de apetite na vida. Falta de vergonha
na cara e de se permitir ser chamado de homem para valer e de verdade.

CARTA PARA VOCÊ

Nada sofreu um baque tão grande com a internet como a carta de amor.
Falo da missiva de punho próprio, selada na língua, carimbada, que segue no
bico do pombo-correio ou é entregue pelo bravo homem de amarelo, o velho
mr.Postman da canção dos Beatles, esse grande homem, o carteiro, sempre
enxotado pelos cães e recebido pelo sorriso das moças que sentem saudades
dos mancebos que saíram para comprar cigarro.
Já fiz campanha aberta, aqui mesmo nesta bodega lírico-boêmia, pela
volta de tal correspondência. Mesmo sabendo que só malucos ainda usam tal
expediente.
Até longos namoros são dissolvidos por email, covardemente, como o
pé-na-bunda mais famoso do mundo, o do escritor francês Grégoire Bouillier na
artista Sophie Calle. Ela fez da história uma obra. Na semana passada fizeram
uma D.R.-cabeçosa e civilizadíssima na Flip, uma Discussão de Relação com
notas de rodapés e tudo. (Estou fuera, prefiro a barbárie sincera dos corações
selvagens e doloridos, me cutuca aqui a gatinha manhosa no meu colo).
Volto ao tema, que merece panfletos permanentes, por causa da
publicação de um livro que é mais uma bela peça de defesa da missiva à moda
antiga. Chama-se “Carta para você –Declarações de amor em tempos
modernos” (editora Alfaguara), uma antologia que junta os mais diversos
escritores, inclusive este vagabundo cronista –por ai voce tem ideia da
amplitude.
Mas a genialidade são os outros. Fico muito orgulhoso e confesso, não
vou mentir, dona Maria do Socorro, madrecita querida, de estar em uma capa
ao lado de varões como o Neil Gaiman e o Leonard Cohen. São os caras, mãe,
cada um do seu modo de macho, e a causa é nobre demais da conta.
O Cohen, Maria, agora falando de outra linda homônima da mãe do
cabeludo da cruz, a que amo hoje além muito além daquela serra azulada e
edipiana do Araripe donde eu vim ao mundo, escreveu uma carta linda. Sim, o
Cohen das baladas de todos os cafés e uísques caubóis tristes.
A Maria ouve o belo compositor e cantor canadense enquanto eu rego
as flores dos jardins suspensos e a lua fura o barracão de zinco. Os versos do
Cohen fazem qualquer planta crescer sem adubo. E talvez sem chuva.
Sim, dona Sophie Calle, o Cohen sabe muito mais sobre pé-na-bunda.
Tem carta com desculpas, carta para a mamãe, carta chocante, carta
para a melhor amiga e Margaret Atwood fez uma carta misteriosíssima. Miguel
Sanches Neto, do time brasileiro da coletânea, escreveu o melhor começo de
todas as cartas do livro: “Querida J., tudo vem com a distância”.
Não é nada não é nada, o fardo das missivas, nos mais diversos jeitos –
estilo é coisa de Hemingway e Faulkner para cima!- é, para dizer o mínimo, um
empurrãozinho para estimular esses moços, pobres moços, a assentar no
papel aqueles garranchos que bolem por dentro e viram caligrafia mais torta
ainda.
Amigo, no tempo em que os homens lambiam selos, sabiam adular
também as moças de um jeito mais bonito e delicado, se é que você me
entende. Eu volto com mais devoção no próximo post, eis a minha missão
reencarnada nessa terrinha azul que se move não se sabe para donde.

PROCURA-SE UM ESCRITOR SEM PRÊMIO

Pereira, meu guarda-livros e auxiliar da manguaças tantas, se queixa: procura-


se um autor contemporâneo que não tenha sido premiado ou, para dizer o
mínimo, indicado a alguma honraria da praça. Ele acaba de voltar da Livraria
Cultura. Praticamente todos os volumes espalhados pelos tabuleiros e vitrines
continham uma tarja, um invólucro, um selo qualquer anunciando glórias
passadas ou possíveis glórias futuras dos escribas. Quem ainda não jabutizou-
se jabutizar-se-á no próximo certame, para citar apenas um dos tantos prêmios
da safra. Ah, Pereira, que mal há nisso, homem de Deus, literatura foi sempre
tão marginal e escondida, tento admoestá-lo (ele sempre diz q homem que é
homem não adverte, homem que é homem admoesta).

Além do mais, caro Pereira, é uma graninha que entra, uma festa para os
autores, quase sempre mais lascados que maxixe em cruz. Não tem conversa.
Pereira, cuja regra 01 é ler apenas autor morto, blasfema: até admito ler um
autor vivo, desde que sem loiros, sem honrarias ou méritos de campeonatos de
livros. Danou-se. Pena que vou morrer e não conhecerei este dito cujo. Pereira,
lido e metido, lembra de um conto do Villiers de l’Isle-Adam, um simbolista
esquisitão de França, em que um moço se oferece a um diretor de jornal de
Paris dizendo-se o único jovem literário sem talento da época, o séc. XIX, pelo
que recorda. É o seu grande atrativo para ganhar um emprego, que acaba não
levando, por ter demonstrado algum naco de talento durante a entrevista, pelo
que conta o Pereira.
Por favor, ajudem o Pereira descobrir um autor contemporâneo que não tenha
sido premiado ou sequer indicado. Cartas para este armazém de carapuças.

HOMENS AO DERREDOR DA CARNE QUEIMANDO

Quando o carvão começa a pegar fogo, no churrasco da laje suburbana ou na


beira da piscina do Lago Sul, Brasília, os homens automaticamente passam a
se sentir mais poderosos. Mesmo em um banquete de mendigos a
carne,mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm (a minha gata pisa vez
por outra no teclado e interrompe a crônica) fortifica as vaidades e espalha, por
algumas horas, as brasas da auto-estima.
O mesmo fogo que assa a picanha e a costela chamusca também a
testosterona e os básicos instintos do macho, como diria Fausto Fawcett, o
poeta-mor de Copacabana e dos arredores fumacentos da Guanabara.
A tese-crônica e carnívora vale para qualquer lugar, até mesmo para a Índia,
claro, onde os bois e as vacas são sagrados. Lá eles preferem estraçalhar
outros quadrúpedes. Amam um cordeirinho, por exemplo, sempre com o
melhor dos currys.
Falar em tal perversidade, me vem à fogueira agoniada do juízo um velho
sucesso de Luis Gonzaga, “Fogo Pagou”, que ele cantava mais ou menos
assim: “Teve pena da rolinha que o menino matou/ Mas depois que torrou a
bichinha, comeu com farinha...gostou!”.
O ser humano não vale mesmo uma moeda enferrujada de botija. Luta vã
embirrar contra isso.
Desde as caçadas dos nossos semelhantes das cavernas, nem um alimento
simboliza tanto a macheza quanto ela, a carne -fraca apenas na concepção do
pecado, mas ai já falamos da “marvada” pele sob os olhares apostólicos
romanos.
A carne, desde os tupinambás e os caetés brasileiros que canibalizaram os
jesuítas e outros bispos Sardinhas, é o que nos há de mais sagrado nos tristes
trópicos.
Uma paradinha à guisa de breve ressalva antropológica: as tupinambás, digo,
as belas índias guerreiras, decidiam tudo no processo de engorda dos inimigos
a serem assados na brasa. Do pasto à ordem de quem seria comido primeiro,
como me lembra o historiador e amigo João Azevedo. Elas que mandavam na
melhor das carnes da época. Quem manda nas carnes, manda na sociedade,
naturalmente.
Dos indígenas às calçadas do subúrbio carnívoro de hoje, motivo da ótima tese
de mestrado do carioca Rolf Ribeiro de Souza, a reunião em torno da brasa é
um grêmio óbvio ao redor da simbologia do macho, do poder e do algo mais,
como diria um Jorge Ben das antigas.
“A confraria da esquina: o que os homens de verdade falam em torno de uma
carne queimando” (ed. Bruxedo) ,trabalho de mestrado de Souza, na Uerj
(Universidade Estadual do Rio de Janeiro), pode ser apenas a minha desculpa
acadêmica para a baixaria sob fumaça, mas nem tanto.
Seja na rua, onde significa demarcação do território da masculinidade, como
afirma Souza, seja na churrascaria chique, donde representa decisões,
convenções partidárias e negócios particularíssimos, a carne é que manda nos
homens.
Alguém já testemunhou algo importante ser acertado diante de folhinhas de
alface?
Não estamos apenas falando de monta, de dinheiro a perder de vista, estamos
falando de importância, do futuro de um grande amor, por exemplo.
Não, o alface não inspira confiança.
Não à toa, reza a mística dos conventos e internatos, a folha verde serve para
acalmar os noviços e seminaristas contra possíveis manifestações dos básicos
instintos.
O perigo está na carne. Sempre. O resto é fundamentalismo de vegetarianos
que se acham imortais e melhores do que o resto da humanidade. Não troco o
meu pedaço de carne, a sagrada mistura, por nada nesse mundo. Se for
cabrito ou carneiro, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, aí é que a troca
supostamente saudável fica mais inegociável ainda. Com fava ou feijão verde,
seu moço. Sim, uma farofinha de ovo. Mas antes me traga uma cachaça, que
hoje estou amargo demais pra beber cerveja. Ora veja, termino aqui ouvindo a
banda Eddie, “e quem não gosta de fumaça, minha querida, não entende de
bebida. Nessa vida, eu já caí na desgraça.”

COMO FAZER UM DISCURSO DE CASAMENTO *

Já escrevi de tudo nesse mundão perdido e sem porteira, cujo prazo é sempre
ontem e a musa inspiradora é, na maioria das vezes, a dona Encomenda. Haja
costuras para fora, bicos, rendas e babados. Nunca, porém, estivera às voltas
com a confecção de um discurso de casamento.

Não um enlace qualquer da praça. Um casório de dois amigos especiais,


daqueles para sempre, do fundo do fundo do pote de barro adonde só se
alcança com a caneca amassada de alumínio das fortes emoções que nos
escampam.

Como se o rapaz andasse com um tubo de Araldite ou Superbonder no bolso


do lado esquerdo do peito e grudasse no coração por debaixo daquele vestido.

Ele vindo de Cuiabá, curva de um rio sujo, Mato Grosso; ela, do Crato, via
Fortaleza e Paris. Os belos encontros das gentes múltiplas de São Paulo, na
Mercearia São Pedro, taberna lítero-boêmia, o verdadeiro e único caminho dos
jardins que se bifurcam.

Para ampliar ainda mais o grau de cosmopolitismo destes inacreditáveis


cosmonautas na autopista do amor e da sorte, eles quase se casam no Egito,
por ocasião de uma viagem literária do moço e da musa. A egípcia do Crato,
como o mancebo a chama, resistiu bravamente.

Uma plantação de flores dos pais da distinta criatura, no Sítio Santa Fé, no
município cearense de Maranguape, exalou mais forte o perfume que roubara
de Belzita, como a tratamos carinhosamente. Pronto, é lá mesmo que se dará o
enlace, neste final de semana.
Não poderia ser em outro canto ou galáxia. As rosas não falam, mas não são
bobas: obedecem ao que há de mais sagrado na agricultura celeste inventada
pelos poetas alquimistas. Assim foram plantadas, assim estarão abertas aos
noivos que desafiam os tempos de homens frouxos, tempos em que os
rapazes não pedem mais gazelas em namoro, tempos de amores líquidos que
funcionam como bombeiros de todos os fogos, el fuego.

Sim, já escrevi até conselhos sentimentais antes mesmo de conhecer uma


fêmea, ainda na Rádio Vale do Cariri, Juazeiro, no programa Temas de Amor,
do seresteiro e mestre Jevan Siqueira, mas que diabos direi aos noivos nessa
bela hora?

Não queria improvisar, já cometi esse pecado para os dois nos últimos tempos.
O desejo é escrever uma peça lírico-pombilínea à guisa de ´viva os noivos´.
Será que consigo? Viva Isabel & Joca e o resto é jazz de um escriba, seu
uísque e sua velha Remington, que soa a essa altura da noite como um banjo
para os gatos no telhado.

& MODINHAS DE FÊMEA

Se tudo falhar no discurso, moças, aplicarei uma velha fórmula de um libreto


luso das antigas: ´Começa por agradecer ao noivo pelo facto de o ter
convidado para padrinho; conta alguma história engraçada sobre o noivo,
poderá contar alguma anedota - sendo bastante cauteloso com o que diz para
não ferir susceptibilidades a ninguém. Se quiser, poderá propor um brinde aos
noivos desejando-lhes toda a felicidade na sua vida conjunta; deve fazer um
brinde aos pais dos noivos, afinal de contas como trabalharam para que tudo
saísse uma beleza enquanto os pombinhos arrulhavam suas promessas
amorosas.

da coluna "modos de macho & modinhas de fêmea",publicada semanalmente


nos jornais O Tempo (BH), Diário do Nordeste e Diário de Pernambuco.

NO QUE CONCERNE AO BELO TEATRO DO ORGASMO FINGIDO *

O fingimento do gozo também pode ser uma prova de amor, como o amor
vadio das putas;

antes o fingimento do que a ausência da dramaturgia amorosa de fato;

tem um quê de distanciamento brechtiano no orgasmo fingido;

tem até mesmo um gozo que deveras sente;


tem mais de verossímil no fingido do que em muitos ditos verdadeiros;

a favor das que fingem com decência;

melhor que fingir a velha dor de cabeça;

contra a verossimilhança exagerada dos orgasmos com caras & bocas;

a favor do agrado do teatro, puro teatro, como na canção almodovariana de La


Lupe.

UM FEIRANTE É TUDO NA VIDA DE UMA MULHER

Hoje tem feira aqui na Vila Pompéia. Motivo para lembrar de uma velha
crônica sobre as loas dos pregoeiros:

***

Nada melhor que uma mulher que acabou de chegar da feira.


Sacola na mão, fome de viver, sorriso de princesa.
Os vendedores de frutas, peixes e verduras são mestres na arte de
reconhecer talentos e animar as moças com os seus adjetivos. Adjetivos às
pencas, elogios às dúzias, mimos, dizeres, samba exaltação, graças.
Meia hora de uma mulher na feira vale mais do que um mês de análise,
do que a onda de orientalismos tantos do mercado, do que a yoga, do que o
mestre japonês das agulhas, do que uma banheira de sais, do que um dia na
Oscar Freire...
Nem mesmo quando as mulheres estão acompanhadas, os feirantes
dão sossego. Esperam você, jovem mancebo, se distanciar um pouco, dois,
três passos, e tome gracejos e flertes à baciada.
''Olha a manga, gostosa!'', bradam, administrando com malícia a vírgula
e o duplo sentido na ponta da língua.
“Ovo e uva boa!”, arriscam para as elegantes damas de preto.
“Essa é modelo!”, capricham para as gazelas saltitantes. “Gisele!”
“Essa é da Globo!”
É a boa guerra dos mascates. Eles vão no ponto, exatos como
neurocirurgiões do desejo. Sabem de longe, por exemplo, quando uma mulher
tem alguma encrenca com a idade. Em um segundo, sapecam um tratamento
carinhoso: ''Pra mulher nova, bonita e carinhosa, eu não vendo... eu me dou
todinho!” E mais: “Só vendo pra menores de 18 acompanhada pelos pais”.
Em dias de chuva, mandam ver de acordo com o meteorologista: ''Essa
é enxuta até debaixo d'água'', alardeiam.
Um bom feirante reduz até os efeitos de uma TPM, de uma dívida nunca
paga, de uma culpa que corrói o juízo, de um regime ainda sem resultados
_elas ainda não sabem que uma polegada a mais, uma a menos, pouco
importa para quem tem gosto de fato por mulher.
Nada como incentivar o caminho da feira mais próxima da sua casa para
as mulheres.
No Ceasa, então, os adjetivos saem a grosso e a varejo, na bacia ou
nos caixotes.
Os feirantes não mentem jamais. Eles sabem, mais do que ninguém,
que em toda mulher, seja quem for, existe um traço ou um aspecto de beleza.
Afinal de contas, mulher é metonímia, parte pelo todo, você passa a
apreciá-la por uma boca, um pé, uma orelha, uma mão, uma omoplata, um belo
ilíaco ressaltado, uma saboneteira, uma marca sulcada de vacina, um corte no
joelhinho esquerdo, uma cicatriz de artes de infância, uma bela bunda faceira,
uma falsa magra, um umbiguinho do mundo, aquele tom cinza dos cotovelos
da espera...
Na passarela dos feirantes, a insegurança feminina, mesmo naqueles
dias em que o cabelo acorda brigando com as leis do cosmo, dissolve-se em
segundos, num suspiro, na velocidade de um pastel, na ligeireza de um caldo-
de-cana.

*Do livro "Modos de macho & modinhas de fêmea" (4a edição,


ed.Record)

EU VOU SUBIR UMA LUZ LÁ NO ALTO EU VOU OUVIR

"...subindo montanhas pra rezar, fazendo as crianças rirem e deixando os


velhos contentes, deixando meninas alegres e moças ainda mais alegres,
todos esses zen-lunáticos que ficam aí escrevendo poemas que aparecem na
cabeça deles sem razão nenhuma e também por serem gentis e também por
atos estranhos inesperados vivem proporcionando visões de liberdade para
todo mundo e todas as criaturas vivas.” (Jack Kerouac)

MARCAÇÃO HOMEM A HOMEM

Muito engraçado –sim, minha senhorita, pode chamar também de


ridículo- como os homens se cumprimentam. Um dos costumes imutáveis da
natureza do macho. Seja em inglês, nordestinês, mineirês ou na língua dos
esquimós. É de uma delicadeza de fazer corar o Charles Bronson.
No “Gran Torino”, filmaço que andou pelos cinemas e já chegou em
DVD, o Clint Eastwood, diretor e ator principal, dá uma aula ao seu pequeno
pupilo sobre as saudações iniciais nos encontros dos cavalheiros. De morrer de
rir. Ou de “se abrir”, como se diz na minha terra sobre o ato de gargalhar sem
culpa ou cerimônia.
Falo da cena da barbearia, que não é capital no enredo mas injeta uma
cápsula de testosterona no filme digna dos grandes faroestes. O durão Walt
Kowalski (Clint), veterano da guerra da Coréia, mostra para o adolescente
como adentrar o recinto e cumprimentar o barbeiro.
“Seu italiano ladrão de merda” é o mais agradável dos tratamentos que
se ouve na pedagogia do velho. O sr. Walt treina o guri, que entra e sai no
estabelecimento, repetindo a lição. O barbeiro responde à altura. “Seu china
miserável eu acabou com a sua raça”. Uma onda.
Assim é no dia-a-dia, encontramos um chapa, amigão mesmo, e
detonamos. Temos várias formas de esculhambá-lo carinhosamente: pelo seu
lugar de origem, pelo seu time do peito, sexualidade, chifre, tamanho da pança,
pouca resistência para a cachaça ou pela donzelice propriamente dita, claro,
caso das criaturas que acumulam o queijo coalho do desejo no juízo.
Tudo é motivo para a gozação, o chiste, a pilhéria, a gréia, a fuleiragem
social clube propriamente dita. É, macho, a gente não cresce nunca nesse
aspecto. Neste e em mais uns seiscentos itens da existência. E olhe que não
estamos falando daquela perobice do Peter Pan e sua roupinha clorofilada de
viagem. A gente não cresce mas também não tergiversa. Essa lorota da Terra
do Nunca ou Jardins de Kensington, sei não, melhor voltar à velha e resistente
conversa de barbearia, please.
Quando estamos na frente de algumas damas, amigo, até aliviamos na
hora das cordiais saudações. O mais comum, porém, é a selvageria. Às vezes
não apenas via oral. Tem uns ignorantes que chegam aos bofetes, agarrões na
área, rasteiras, gravatas, golpes baixos. Eu prefiro ainda na base da prosódia
molhada, socialmente, com cerveja ou um scotch. Se tiver um leitão ou
carneiro assado, eu agradeço a gentileza, mas não carece se preocupar, meu
querido, a gente celebra a vida do mesmo jeito. Agora uma cachaça e um
caldinho de sururu, faz favore, e pergunta ao freguês ao lado qual foi o
resultado do meu rebaixável Sport.

TE CUIDA, HOMBRE

Muito bacana o vídeo que o Galinho de Quintinho, o genial Arthur


Antunes Coimbra, Zico, gravou para a campanha de combate e prevenção ao
câncer de pênis. “Te cuida, homem”, manda o camisa 10 da Gávea, sabedor e
consciente do medo do macho diante de um urologista. Ele tem um exemplo
dentro da própria família de como o nosso preconceito é fatal. O pai morreu de
câncer de próstata. Era um dos bravos caballeiros que fogem como o diabo do
exame do toque.

Este cronista envelhecido em barris de carvalho também corria léguas


da indesejada hora. Até que um dia, ao adentrar a casa dos quatro ponto zero,
resolveu dar um bom exemplo para os semelhantes. Ainda hoje me lembro do
fatídico dia:

-Senhor Francisco?!

-Sim...

Chegou a hora da verdade. As rotas de fuga estão obstruídas. Não há


escapatória.Naquele instante, o primeiro homem de gerações e mais gerações
do ramo sertanejo dos Sá Menezes seria submetido ao labiríntico mundo da
"procto-investigação". Que fazer?, resigno-me, leninista rendido ao mais
dialético dos toques da humanidade.
Ao adentrar o recinto, lembrei logo da infame pilhéria. “O médico
introduz o dedo no respeitável cidadão e pergunta: 'Sentes alguma coisa?'. Ao
que o paciente sussurra: “Sinto que te amo.”
Recordei também de um amigo, rapaz de Serra Talhada, terra de
Lampião, que era tão macho, mas macho de um jeito, que usava dois
sabonetes no seu banho: um Phebo para a parte dianteira e um Lux de Luxo
exclusivo da traseira. “Esse contato é perigosíssimo, não se deve misturar as
vocações”, dizia, no banheiro coletivo da Casa do Estudante.
Era chegada a hora. Ao sacrifício, pois. Segura na mão de Deus e vai! O
simpático doutor tenta disfarçar suas feições mal-assombradas à Anthony
Hopkins. Foco nas mãos do monstro. Dedos médios, mas habilidosos como um
manipulador de teatro de bonecos.“Que macho sou eu, ora bolas!”, penso, para
me encorajar. O médico ordena que eu deite. Um amigo da firma me contou
que a primeira vez dele havia sido na clássica posição “de ladinho”. A minha
foi, napoleonicamente falando, de bruços mesmo, quase de quatro, diria.
No meu retrovisor imaginário, vejo o dublê de Hopkins colocar uma
espécie de camisinha de dedo. Depois, a vaselina, o lubrificante, sei lá. E não
foi com o mindinho, muito menos com o seu vizinho, coube o serviço ao
matreiro fura-bolo, como no folguedo infantil.
Mas tudo dentro do maior respeito, uma escaneada tecnicamente
irreparável, uma rápida mexida, como diria o bardo lusitano, Fernando Pessoa,
no meu “eu profundo e outros eus”.
Próstata em ordem, do tamanho clássico de uma noz, segundo a
autoridade médica, voltei para casa engajado na brigada preventiva contra
esse tipo de câncer, uma das maiores causas de mortes de cavalheiros por
estes tabuleiros.
Seja homem, cabra, treine em casa, com a namorada e/ou mulher. Em
última instância, é seguir o conselho do filósofo Emerson, que em velho
anúncio do uísque Johnnie Walker recomendava: “Faça tudo aquilo que você
mais teme”.
Sinceramente, o que custa um dedinho de prosa com o seu homem de
branco predileto? Eu recomendo!

POBRE COTOVELO SEM POESIA

Nada iguala mais as fêmeas do que o cotovelo. Como é feio e cinza um


cotovelo. Agora mesmo prestei atenção em uns 30 pares de cotovelos em uma
fila de aeroporto.
Até já vi mulheres passando um creminho nessa estranha e miserável
parte da anatomia, mas nunca ouvi uma deusa orgulhosa e envaidecida por tal
dobradura.
Sim, nos homens é mais feio ainda, afinal de contas tudo em nós,
degradados e mal-diagramados filhos de Eva, está a léguas da beleza das
moças.
Sempre entendi que mulher é metonímia, parte pelo todo. Mesmo na
mais desfavorecida das crias das nossas costelas haverá uma parte de rara
beleza: um pescoço, a omoplata, um queixo, um perônio, uma tíbia, um rádio, a
bunda e suas Raimundas que rimam e solucionam os desejos urgentes da
humanidade...
O cotovelo, porém, nunca entra nesse jogo de Polyanna, a mais otimista
das meninas. Ou você, generoso tarado brasileiro, já suspirou de tesão
enquanto ela levantava romanticamente a taça de vinho e exibia a extremidade
pontuda?
Não, amigo, acho que ainda estar por nascer a criatura que se devote à
essa área do conhecimento humano.
Tem tara para tudo, menos para cotovelo.
Beijar e cultuar uns pés, por exemplo, é comigo. Nado no seco e levo o
gosto de esmalte na língua para casa. Devoção das mais fáceis e com milhões
de seguidores em todo o planeta.
Um certo pendor por axilas também consta do catálogo universal de
taras. Não é das mais triviais, mas existem às pencas os católicos praticantes.
Mas um cotovelo, meu Deus, o que fazer com ele?
Coitado desse acidente da geografia humana. Claro que é
importantíssimo nas funções esqueléticas, não é isso o que se discute, mas
cadê a poesia e o sex-apeal do pobre ossinho de cor triste e cinzenta?
A saboneteira de uma moça mereceu a loa e o lirismo do Vinícius, que
cantou de tudo na mulher amada. Menos o cotovelo, repare só que a dobradiça
das musas não rende mesmo sonetos.
Uma moça, na receita do poetinha, podia até não ser lá essa beldade no
capítulo das nádegas, admitia-se, desde que tivesse uma bela saboneteira.
Uma mulher sem saboneteira, pregava nos seus versículos, era como um rio
sem ponte.
Do cotovelo, o velho cúbito, tão importante na anatomia e no apoio do
balcão das esperas e das dores de amores, nem uma só rima ou poema. Ô
miséria humana!
Só o cotovelo de Maria escapa dessa feiúra indiscriminada. Apenas
com os óculos esverdeados e 3-D do amor, a terceira dimensão sobre todas as
coisas, é possível reparar na beleza cotovelística. O do braço esquerdo, então,
é uma coisa, espetáculo, oitava maravilha!

P.S. Se não rendeu poesia ou metonímia, a triste e ossuda articulação


cinzenta deu origem ao gênero música de dor-de-cotovelo, que teve no gaúcho
Lupícinio Rodrigues o seu mestre. Segundo o autor de “Nervos de aço”, o
termo surgiu por causa das longas esperas dos amantes nos bares, cotovelos
amparando a angústia nas mesas e balcões. As Carolinas, que vêem o tempo
passar na janela, também sabem da importância dos cúbitos na triste arte da
espera por um lance do acaso ou da sorte amorosa.

MISS CORAÇÕES SOLITÁRIOS ATIVA E OPERANTE

Estimada, idolatrada e consagrada Miss de todos os Corações, bálsamo


dos Aflitos – não os geraldinos e arquibaldos do Clube Náutico Capibaribe, de
volta às glórias -, mas aqueles que padecem, frágeis almas penadas, de todas
as agonias e aperreios amorosos. Como este mancebo que vos fala, nem bofe
nem vadia, nem Esparta nem Atenas, uma coisa assim meio anfíbia aqui das
bandas do Guaíba - embora tenha ligações sentimentais com o Beberibe. Mas
chega de embromar, gloriosa Miss. Direto na ferida, o que tenho a dizer é
simples: tô arrasada, vazia mesmo, nada orna, me sinto, como li num volume
de Will Self (“Cock & Bull, Histórias de Phadas & Phodas”), uma verdadeira
parasita de emoções. Apenas sugo as emoções alheias e nada fica aqui
dentro, nem mesmo amor de pica, como reza a sabedoria popular mais
escrachada. Que fazer, minha guia genial dos arrasados? Voltar a ser bofe,
continuar nessa luta renhida de bonequinha de luxo, virar travesti de vez,
operar, em que diabo de situação ou sexo andará a minha cara-metade?
Enfim, dá-me uma luz, quero luz! Com a devoção de hoje e siempre, Anfíbio do
Guaíba, POA, 30 de julho do corrente

Resposta:
Menina, menino, seja lá que diabo for tens o meu respeito e calor... Que
rebuceteio d´alma te meteste, criatura! Mas chega de aflição, amigo é pra
acudir outro. Gostei foi desse expressão “parasita de emoções”. Que coisa fina,
hein, nega, nego, sei lá!? Para sair desse grau zero, querido anfíbio, não há
remédio na prateleira, a não ser o tempo, um bom trabalho de feitiçaria e a
corrente dos dias e da espera. É engraçado como te pegas com a mesma
Síndrome do Príncipe Encantado de todas as moiçolas de família. O bom é que
para um anfíbio pode rolar pelo menos um sapinho terno e sentimental,
daqueles de várzea, que já está de bom tamanho, não é, biba? Mas, lembra-
te, cobra que não anda não engole sapo. Te joga na saúna mais próxima e
deixa o cheiro de eucalipto dilatar os poros e desentupir as veias desse
coração parasita. Com a bênçao e as flores brancas de sempre, Miss C.
Solitários.

DA PONTUAÇÃO AMOROSA ETC

(Peço um naco de paciência a quem já leu, mas, atendendo a pedidos -e


de homi, veja só!- republicamos mais uma das antigas do Carapuceiro.Como
muitos novos leitores nao viram, tá valendo):

Sim, homem é frouxo, só usa vírgula, no máximo um ponto e virgula;


jamais um ponto final.
Sim, o amor acaba, como sentenciou a mais bela das crônicas de Paulo
Mendes Campos: “Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova,
depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos
parques de ouro onde começou a pulsar...”
Acaba, mas só as mulheres têm a coragem de pingar o ponto da caneta-
tinteiro do amor. E pronto. Às vezes com três exclamações, como nas
manchetes sangrentas de antigamente.
Sem reticências...
Mesmo, em algumas ocasiões, contra a vontade. Sábias, sabem que
não faz sentido prorrogação, os pênaltis, deixar o destino decidir na morte
súbita.
O homem até cria motivos a mais para que a mulher diga basta, chega,
é o fim!!!
O macho pode até sair para comprar cigarro na esquina e nunca mais
voltar. E sair por ai dando baforadas aflitas no king-size do abandono, no
Continental sem filtro da covardia e do desamor.
Mulher se acaba, mas diz na lata, sem metáforas.
Melhor mesmo para os dois lados, é que haja o maior barraco. Um
quebra-quebra miserável, celular contra a parede, controle remoto no teto,
óculos na maré, acusações mútuas, o diabo-a-quatro.
O amor, se é amor, não se acaba de forma civilizada.
Nem no Crato...nem na Suécia.
Se ama de verdade, nem o mais frio dos esquimós consegue escrever o
“the end” sem uma quebradeira monstruosa.
Fim de amor sem baixarias é o atestado, com reconhecimento de firma e
carimbo do cartório, de que o amor ali não mais estava.
O mais frio, o mais “cool” dos ingleses estrebucha e fura o disco dos
Smiths, I Am Human, sim, demasiadamente humano esse barraco sem fim.
O que não pode é sair por ai assobiando, camisa aberta, relax, chutando
as tampinhas da indiferença para dentro dos bueiros das calçadas e do tempo.
O fim do amor exige uma viuvez, um luto, não pode simplesmente pular
o muro do reino da Carençolândia para exilar-se, com mala e cuia, com a
primeira criatura ou com o primeiro traste que aparece pela frente.
E vamos ficando por aqui, pois já derrapei na curva da auto-ajuda como
uma Kombi velha na Serra do Mar... e já já descambarei, eu me conheço, para
o mundo picareta de Paulo Coelho. Vade retro.

FAZ DE CONTA QUE SOU O PRIMEIRO

Hoje, 11, é dia do Garçom. Em nome (e a pedidos) de um destes


luxuosos profissionais que tanto me servem de bebidas, conselhos e
sabedorias, republico esta singela crônica:

Amigos, antes de tudo um brinde, salve, salve!


Dito isto, vos apresento o nosso convidado especialíssimo. Sim, Ailton
não é apenas um bom garçom, o que já é muito para a humanidade. O cara é
especial. Criatura abençoada. Especialíssimo. Do tipo que cria laços de estima
e consideração com os fregueses. Do tipo que ouve, aconselha, amansa os
traídos, acalma as mulheres de bêbados infiéis, bota ordem na casa, devolve
uma certa paz ao universo.
Melhor ainda, Ailton é do tempo em que garçom sempre sabia o
resultado do futebol. Do tempo em que torresmo não fazia mal, do tempo em
que os homens não tinham medo da sorte nem do colesterol.
Toda essa “sabença”, como ele trata a soma de sabedoria com
experiência, é servida de bandeja à freguesia.
No boteco, ele é tudo ao mesmo tempo: sócio-proprietário, caixa,
segurança e DJ _e só toca vinilzão de samba antigo. “Oh, minha romântica
senhora tentação/ não deixes que eu venha sucumbir/ neste vendaval de
paixão”. Essa toca até furar o disco. Principalmente quando tem alguém
chorando as pitangas amorosas. Entre tantas serventias, esse negócio de amor
e dor é com ele mesmo. É mestre, rima e solução da parada.
Eu mesmo já fui perdidas vezes consolado pelo cara. Dor de corno,
daquelas que não passam com cachaça ou aspirina, é com ele mesmo. Vai no
ponto, na veia, um neurocirurgião do amor. Primeiro o afago, a compreensão e
o ouvido ao alcance do freguês. No fundo musical, põe logo o vinilzão com
“Peito Vazio”, de Cartola _``Procuro afogar no álcool a tua lembrança/ mas noto
que é ridícula a minha vingança...” Dois, três conselhos depois a gente está
pronto para outra, digo, outro chifre.
Numa dessas sessões “macho em crise”, Ailton me deu uma dica genial.
Notou, sensível que é, a minha dificuldade em descolar uma nova costela, uma
nova deusa para enfeitar o meu pobre muquifo em desalinho. Uma dica
importantíssima. Simples, simples de tudo, até boba, mas de uma sabedoria e
tanto. Uma beleza de estratégia.
“Seguinte, meu amigo, chega de saudade... Senta aqui, nessa primeira
cadeira do boteco, que a vida vai sorrir pra ti”, disse, arrumando uma mesa
bem na calçada, quase na rua, de frente para o crime.
Sem deixar a bola cair, emendou:
“Ora, compadre, todo dia tem uma mulher que sai para o bar, revoltada,
muito revoltada, e diz para ela mesma: ´Hoje eu vou dar pro primeiro que
encontrar pela frente!”
Desde então procuro sempre ser esse `primeiro´ homem
estrategicamente bem localizado que pode tirar proveito, com toda delicadeza
desse mundo, da fúria justa e caseira de uma mulher.

CASA COR DO MACHO SOLTEIRO

Noves fora o “homem de predinho antigo”, aquela criatura "evoluída" que


adora um pé-direito alto, um sofá de época, objetos de design e uma luz
indireta, o MACHO SOLTEIRO ROOTS é um desastre no capítulo decoração.
Tem lá o seu sofá velho, a sua tv, uma cama barulhenta, três ou quatro panelas
_sem cabo_ encarvoadas pelo tempo, e copos de requeijão, muitos copos de
requeijão, alguns deles ainda com um pedaço do papel do rótulo. Se brincar, o
cara coleciona também os velhos copos de geléia de mocotó, um primor de
utensílio “vintage”.
E quando a fofa, toda fina e fresca, nova namorada, chega lá no
“muquifo” com a sua garrafa de champanhe?! Procura, procura as taças, para
fazer uma graça com o marmanjo, e nada. O jeito é beber Veuve Cliquot em
copo de extrato de tomate. Quem mandou apaixonar-se por um macho-
jurubeba autêntico, que vem a ser justamente o avesso do metrossexual,
aquele mancebo da moda que se lambuza de creminhos da Lancôme e decora
o loft, sim, ele mora num loft, de acordo com as tendências da revista
“Wallpaper”.
Pior é quando ela tenta mudar tudo. E põe aquele seu quadro caríssimo
e de grife numa sala que não tem nem mesmo um sofá que preste?!
Um desastre.
A fofa, toda classe média metida a besta, não desiste nunca. Ai
presenteia o bofe -sim, ela está doida e perdidinha pelo vagabundo- com uma
batedeira prateada ultramoderna com 600 funções, que nunca será usada. Ai
fica aquela batedeira high-tech fazendo companhia aos três pratos chinfrins e
aos garfos tortos _como se o Uri Geller, aquele parapsicólogo que aparecia no
Fantástico das antigas, tivesse jantado por lá ou feito faxina na área.
Ela começa a revirar geral, um deus-nos-acuda, numa casa onde
ninguém havia mudado sequer uma planta de lugar. O reino vegetal, aliás, é
outro ponto fraco do macho solteiro. Jarros, flores? Nem de plástico.
Na casa do homem solteiro típico, a utilidade triunfa sobre a estética. O
cúmulo do utilitarismo. Sofá da tia-avó vira cama, como diz a minha amiga D.,
co-autora dessa crônica. A cama vira sofá, a rede vira sofá e cobertor, o
cobertor vira cortina preso à persiana...
A falta de cortina é outra marca registrada do desmantelo do cavaleiro
solitário. Quando muito, papel filme.
Abajur? De jeito maneira. Tosco no último, ele não tem cultura de luz
indireta, nem nunca terá, esqueça.
Outro traço de personalidade do macho solteiro: tudo que chega até a
cozinha vira tupperware -aquelas embalagens plásticas de lasanha comprada
pronta, caixinha de entrega de comida chinesa ou japonesa, potes de sorvete...
Uma festa!
Sim, na geladeira só latinhas de cerveja, uma garrafa de água vazia e
uma triste e chorosa cebola partida ao meio.

NINGUÉM MAIS PEDE EU NAMORO

(da série Velhos posts q movem o lirismo, mais uma crônica das
antigas, a pedidos)

É namoro ou amizade? Rolo, cacho, ensaio de amor, romance ou pura


clandestinidade?
“Qualé a sua, meu rapaz?!”, indaga a nobre gazela.
E o homem do tempo nem chove nem molha. Só no mormaço, só na
leseira das nuvens esparsas.
No tempo do amor líquido, para lembrar o título do ótimo livro de
Zygmunt Bauman sobre a fragilidade dos encontros amorosos, é difícil saber
quando é namoro ou apenas um lero-lero, vida noves fora zero...
Cada vez mais raro o pedido formal de enlace, aquele velho clássico, o
cara nervoso, se tremendo como vara verde: “Você me aceita em namoro”?
O tempo passava e vinha mais um pedido clássico e igualmente tenso.
O pedido de noivado.
Mais adiante, a hora fatal, mais uma tremelica do jovem mancebo: Você
me aceita em casamento?
E pedir a mão,aos pais, meu Deus, haja nervosismo, melhor tomar um
conhaque na esquina para encorajar-me.
São raros, raríssimos hoje esses nobres pedidos. Em alguns setores
mais modernos e urbanos, digamos assim, talvez nem exista mais.
O amor e as suas mudanças.
A maioria dos homens, além de não pedir em namoro, além de não
pegar no tranco, ainda corre em desespero diante de uma sugestão ou
proposta de casamento feita pela moça.
O capítulo bom da história é que agora as mulheres também partem
para o ataque e, diante de uns temerosos ou acanhados sujeitos, escancaram
suas vontades, suas paixões, e fazem suas apostas, seus pedidos, põem na
mesa os seus desejos e as cartas de intenções.
Voltando ao mundo dos homens, lembro que era bem bacana esse
suspense masculino do “você quer namorar comigo?”
Havia sempre o medo do fora. Um sim, mesmo o mais previsível, era
uma festa.
“Quer namorar comigo?”
No tempo do “ficar”, quase nada fica, nem o amor daquela rima antiga.
Alguns sinais, porém, continuam valendo e dizem muito. O ato das
mãozinhas dadas no cinema, por exemplo, ainda é o maior dos indícios.
Tanto quanto um bouquet de flores, mais do que uma carta ou um email
de intenções, mais do que uma cantada nervosa, mais do que o restaurante
japonês, mais do que um amasso no carro, mais do que um beijo com jeito,
daqueles que tiram o gloss e a força dos membros inferiores.
“Vamos pegar uma tela, amor?”, como se dizia não muito antigamente.
Eis a senha.
Mais até do que um jantar à luz de velas, que pode guardar apenas um
desejo de sexo dos dons Juans que jogam o jogo jogado e marketeiro.
O cinema, além da maior diversão, como diziam os cartazes de
Severiano Ribeiro, é a maior bandeira.
Nada mais simbólico e romântico.
Os dedos dos dois se encontrando no fundo do saco das últimas
pipocas...
Não carecem uma só palavra, ainda não têm assuntos de sobra.
Salve o silêncio no cinema, que evita revelações e precoces besteiras.
Ah, os silêncios iniciais, que acabam voltando depois, mas voltando sem
graça, surdo e mudo, eterno retorno de Jedi. Nada mais os unia do que o
silêncio, escreveu mais ou menos assim, com mais talento, claro, Murilo
Mendes, poeta dos melhores e mais líricos.
Palavras, palavras,palavras...
Silêncio, Silêncio, silêncio...
Dessas duas argamassas fatais o amor é feito e o amor é desfeito.
Simples como sístole e diástole de um coração que ainda bate.

O MACHO E A MODINHA DO XIXI SENTADO

Ih, rapaz, por essa a gente não esperava tão cedo. Mas vem da Suécia,
pátria de todos os clichês do sexo loiro, uma lufada revolucionária capaz de
virar de cabeça para baixo as nossas tristes existências. As gazelas daquele
país passaram a obrigar os cavalheiros a mijar sentados. Postura que nos
impõe um distanciamento brechtiano em relação ao nosso confidente-mor:
agora escondido, mergulhado no vaso, encoberto pela barriga, ele sente que
perdeu o arrastado e cansativo debate sobre a pontaria. Ele abaixa a cabeça,
num quase mergulho suicida, existencialista perdido diante do trunfo da nova
moral burguesa do Politicamente Correto.
Que fazer?
Saltamos, leninistas, abestalhados a buscar uma solução para essa onda
que deve varrer o mundo. Aqui em SP, a cidade proibidona, o alcaide não
demora por implantar a tal modinha.
Claro que se trata de mais uma novidade do chamado projeto
internacional para tentar forjar o dito prospecto do macho sensível. Ora, outro
dia admitíamos, no máximo, uma camadazinha de minâncora sobre uma
espinha trabalhosa. Hoje vejo íntegros camaradas se lambuzarem de Lancôme
sem a menor cerimônia, com a maior cara lavada. Que fazer?, repetimos,
estrategicamente leninistas.
Daqui a pouco não restará um só mictório na cidade. Em Estocolmo,
apontam entusiastas da nova mania, não é mais possível mijar em pé em
alguns bares e restaurantes. O fim do mundo. Tentam acabar com aquela cena
clássica de um magote de marmanjos, lado a lado, inveja do pênis do vizinho
ou não, tirando água do joelho.
Claro que fizemos por onde ser derrotados nessa peleja. Foram décadas
e mais décadas de reclamações. Erramos. Não levamos a sério os quesitos
pontaria, tampa levantada etc. Zombamos da boa vontade daquelas que
lustram o nosso chão de estrelas. Deu no que deu. Agora, compadres, só nos
restarão o Firestone na saída dos bares, a cerca do vizinho, um baobá
qualquer a caminho de casa ou o asfalto propriamente dito. (Como este é um
espaço proustiano, recordo-me de quando mijávamos na areia quente do
sertão, tentando escrever os nossos nomes no chão com vigorosos jatos-
mirins.)
Não adianta estrebuchar, pouco importa o direito ao juris esperneandi. O
certo é que querem nos civilizar a qualquer custo... É a conspiração
internacional da qual tratei linhas atrás. Querem nos androgenar, como diria o
lírico sambista Luis Ayrão. “Esse camarada se androginou/ a moça deu bola a
ele/ e ele nem ligou”.
Só nos resta aceitar a derrota histórica. Mijar sentado, tudo bem, mas
pelo amor de Deus, sem aquele barulhinho erótico de que só uma dama é
capaz. Devagar, rapaziada guerreira.

LIBELO CONTRA A EXTINÇÃO DAS DENTUCINHAS *

Denúncia urgente: estão acabando com as dentuncinhas. Sim, não é de


hoje, faz tempo, mas agora beiramos realmente a extinção da espécie. Essa
moda de encher de arames os dentes das moças. Essa modinha de
desentortar os lindos dentinhos das raparigas em flor ainda cheirando a leite.
Sim, os mancebos também são vítimas da ortodentia moderna, mas os
moços, pobres moços, que se virem, que se defendam. Este panfleto lírico e
sentimental se preocupa tão-somente com as meninas, como um tardio e
lesado Lewis Carroll sertanejo.
No início do modismo, era mania apenas dos mais aquinhoados; depois
alastrou-se de vez, como as cirurgias plásticas.
Estão acabando com o charme das dentucinhas. Toda sala de aula tinha
sua dentucinha, toda repartição, toda rua, todo bairro, todo clube, todo cabaré,
toda casa de tolerância que se prezasse...
Já já eliminam de vez o charme das estrias, e todas as mulheres ficam
iguais, bundas iguais, peitos do mesmo tamanho, lábios de branquinhas com
recheios artificiais para imitar a lindeza da mestiçagem...
Reparem os cabelos, por exemplo, onde andam os caracóis, os cachos,
os black-powers?
Está tudo dominado, tudo esticado, a chapinha, modinha que nasceu em
pleno apagão da energia elétrica, veio para ficar de vez, para sempre, fudeus.
Já já escrevem na bandeira nacional: ordem e escova progressiva!
Mas o que está em jogo agora, camaradas, é o fim das dentucinhas. Uma
lástima, uma tragédia dos nossos dias. Vocês lembram como eram especiais
os beijos das dentucinhas? E os dengos orais das dentucinhas? Céus, o
nirvana com direito a uma sinfonia de Iggy Pop com Goran Bregovic!

*publicado originalmente em 2002, no livro "modos de macho & modinhas


de fêmea" -ed.Record, 4a edição

DA ARTE DE ESPIAR AS MULHERES

Tem alguma coisa que não bate nessa pesquisa inglesa, compadre. Ora,
como assim, só gastamos, em média, 43 minutos por dia mirando las chicas,
olhando para as mulheres?!
É o que revelou o estudo feito pela Kodak Lens Vision Centres, uma
firma evidentemente interessada no que se passa na nossa vista, afinal de
contas é do ramo e vive disso.
Menos de um tempo de jogo de futebol por dia de tocaia?
Não, compadre, mesmo os entrevistados sendo todos ingleses, rapazes
mais tranqüilos, mais “cool”, como eles se acham, não é possível. O pior: na
terra da Rainha ainda ficaram espantados com os números. Acharam que era
tempo demais, tempo perdido, como se gastar as retinas com as fêmeas fosse
coisa d´outro mundo, mal-assombro que balança as cortinas mesmo quando o
vento está parado.
Tudo bem, as britânicas não possuem os belos latifúndios dorsais das
nossas mulheres, mas 43 minutos a gente atinge nos trópicos assim que deixa
o lar doce lar e pisa na calçada, caso dos pedestres inegociáveis como este
bípede cronista. Aliás, gasto bem antes, pois adoro aquele momento em que a
cria da minha costela escolhe as vestes, ah, quanta angústia, que lindo. E
quando ela diz, dramática, como uma atriz de tragédia grega, “saco, não tenho
roupa!” Mesmo com o armário repleto. Eu entendo. Aliás, ela nem diz mais, só
pensa, e eu já adivinho.
Você, ai, macho sobre quatro rodas, também bate essa cota inglesa em
dez minutos no trânsito ou em meia hora na firma, não acha? Se estou errado,
me corrija, faz de conta que a sua amada não lê essa coluna porco-chauvinista,
não quero provocar cizânia nos lares doces lares, só desejo que os pombinhos
arrulhem em paz.
(Falar nesse verbo, um dos melhores da nossa língua, um parêntesis
para citar o justo momento em que ele, o verbo, se tornou inesquecível em
minha pobre vida, sim, em uma passagem de “Ubirajara”, de José de Alencar,
ê, coisa linda, velha ficha de leitura do grupo Virgílio Távora, em Juazeiro: “A
juriti arrulhou docemente na mata..."
Sim, mas como ia dizendo, tem alguma coisa que não bate nessa
enquete inglesa. Pelas suas contas, entre os 18 e os 50 anos, o homem perde
um ano olhando para mulheres. Como assim, filhos da mãe? Perde? Não seria
o contrário?
Ora, até nos grandes faroestes sabe-se da importância de mirar uma
dama. Na fita “Era uma vez no Oeste”, do Sergio Leone, em um certo
momento crucial, um velho caubói diz para a mocinha: “Vai lá fora e leva uma
xícara de café para eles, os homens mudam de assunto ou calam quando
vêem uma mulher bonita”. Era a forma de evitar que os dois se matassem.
Infelizmente, ela, Claudia Cardinale, tesouro, não obedeceu, quer dizer, não
chegou a tempo. Acontece.

& MODINHAS DE FÊMEA

E o que pensam as gazelas sobre o mesmo tema? Apenas 16%


disseram se sentir nas nuvens quando são devoradas pelas retinas dos
mancebos. Pouco, não? E sabe quanto tempo elas gastam olhando os
boyzinhos ingleses? Apenas 20 míseros minutinhos diários. A maioria mira nos
olhos, romanticamente, ao contrário da baixaria masculina que vai direto às
lições de anatomia e abundâncias.

PELEJA DO METROSSEXUAL CONTRA O MACHO-ROOTS-JURUBEBA

Eu venho lá das quebradas


De grotões e de veredas
Donde diabo perdeu as botas
Maconha boa na seda,
Sou Zé Limeira e Breton
Viagem de ácido bom
Lenha nova e lavareda.

que é isso, cachaceiro?,


Peço licença a vocês,
Vou narrar uma peleja
Guardada faz mais de mês,
A de um macho-jurubeba
Encardido feito ameba
Conto ao gosto do freguês!

Do outro lado do ringue


Um sujeito,uhn, autoral...
Bonitinho, mas ordinário
Codinome: me-tros-se-xu-al!!!
Foi criado na Inglaterra
Tem o afeto que se encerra
Na maquiagem do mal.

Os sinos dobram, dom King,


E a contenda começou
O jurubeba enfezado
De cara já perguntou:
-Onde tu compras tem pra homi?
És aquilo que consome?
Qualé, rapá?, androginou?

Com fleugma de bom inglês


O metro não perdeu a linha,
Ajeitou seu terno Armani
Que elegância na bainha!
O jurubeba, eu nao sei,
Mas perdeu logo o fairplay
E pediu uma cachacinha!

Marquinhos deu a cachaça


E o cabra cresceu no jogo,
A Mercearia veio abaixo
Nego fez u´a roda de pôgo.
E o cabôco free-style
Mandou pra casa do caraio
Tudo que tava em jogo!

Foda-se a esportiva
Disse o jurubeba de cara
Não tolero a espécie
Que desgosto!, avis rara...
Lá da terra donde venho
Esse rapaz eu emprenho
Apollinaire, minha vara!.

Donde o metrossexual
Na contramão da barbárie,
Gabola e cheirosinho
Via de longe minha cárie...
Seus perfumes no ajuste
Qual o bolinho de Proust
Levava todos nos ares.

E o vento também levou


O modismo desse metro,
Ele num pega nem uma letra
De um macho analfabeto...
Prefiro meu travesti
Jesus Cristo!, eu estou aqui
E ai?, estás por perto?

Macho velho, invejoso,


Sou sensível e muito cool,
Só pego “Pati” cheirosa
Te viras com tribufu,
Uso todo meu Lancôme
E não deixo de ser homem
Vade retro, cafuçu!
Se isso é ser macho, haha!...
Renuncio ao velho sapiens,
Gasto minha testosterona
Salve Mussum, dá-me um traguis!
Tu gosta é de cheirar a rolha
E sentir o bouquet da trolha
Afasta de mim esse cálice!

Fala sério, cachaceiro,


Como rejeitas esse bouquet?,
Tua vida bagaceira
É maldição démodé...
Já sei que não te habilitas
Eu sigo In vino Veritas
E vejo os vermes te roer.

Minha antologia de ressacas


É grandeza d´alma, amiúde,
A lua na sarjeta ensina mais
Do que uma obra de virtudes...
Serás um belíssimo defunto
E para a cidade de pés-juntos
Irás gozando toda saúde!

Entrou pela perna do pinto


Saiu pela perna do pato,
Quem quiser que conte outra
E siga Rosseau no contrato,
Pois o homem nasce direito
Mas depois vira um suspeito
Vou m´embora é lá pro Crato!

A CANTADA COMO REVOLUÇÃO PERMANENTE


(da série post das antigas republicado a pedidos)

A cantada, amigos, é como a revolução de Mao Tse-Tung, tem que ser


permanente.

Existem mulheres que a gente canta no jardim da infância para dar o


primeiro beijo lá pelos treze, quatorze.

Mas é necessário que a cante sempre, não aquela cantada localizada,


neoliberal e objetiva, falo do flerte, do mimo, do regador que faz florescer, como
numa canção brega, todos os adjetivos desse mundo.

A cantada de resultado, aquela imediata, é uma chatice, insuportável, se


eu fosse mulher reagiria com um tapa de novela mexicana, daqueles que
fazem plaft!
A boa cantada é a cantada permanente.

E mais importante ainda depois que rolam as coisas, depois que


acontece, aí a cantada vira devoção, oração dos pobres moços a todas elas.

Porque cantar só para uma noitada de sexo é uma pobreza dos diabos,
qualquer um animal o faz.

Porque cantar, à vera, é cantar todas e não cantar nenhuma ao mesmo


tempo.

Explico: é espalhar pacientemente a devoção a todas as mulheres como


quem espalha sementes nos campos de lírios.

Mesmo que elas digam, com aquele riso litografado na covinha do


sorriso, que você diz isso para todas.

E claro que para cada uma dizemos uma loa, fazemos uma graça, não
repetimos o texto, o lirismo, o floreado.

Porque amamos mesmo as mulheres.

Cantemos indiscriminadamente, e que me perdoe o velho e bom Vinícius


de Moraes, mas cantemos sobretudo as ditas feias, esse conceito cruel e
abstrato de beleza. Elas merecem, até porque as feias não existem, nunca
conheci nenhuma até hoje.

Não por sermos generosos, piedade, ou algo do gênero... É que a dita


feia, quando bem cantada, vira a superfêmea, para lembrar a bela
pornochanchada com a Vera Fischer.

A cantada permanente e indiscriminada é irresistível, quando você


menos espera, acontece o que você tanto sonhava.

Sim, tem que ter o cuidado para não ser simplesmente um chato que
baba diante do melhor dos espetáculos, a existência das mulheres.

Ter que cantar sempre a mesma mulher e parecer que está apenas de
passagem, que o estribilho é sempre novo, nada de larararás que mais
parecem refrões do Sullivan e do Massadas, lembram dessa dupla de músicas
chicletosas?

Ah, digamos que você cantou a Sônia Braga ainda naqueles tempos em
que Gabriela subiu com aquele vestidinho no telhado –a cena mais quente da
teledramaturgia brasileira até hoje- e e continuou cantando, sempre, sutil e
sempre, e agora ela, passados tantos calendários, se comove e resolve
recompensá-lo! Vai ser lindo do mesmo jeito, não acha? Na tela do nosso
cocoruto vai passar o videotape de todos os desejos antigos e despejados no
ralo pela morena cravo & canela.
ELE É CASADO

As mulheres solteiras preferem mesmo, à vera e cientificamente, seduzir


os homens casados. É o que consta em mais uma dessas pesquisas malucas
da gringa. Agora é coisa de doutores em psicologia da Universidade de
Oklahoma (EUA). Como dizia meu avô João Patriolino, lá do município do Exu:
“Vôte, capirôto!” (algo como vade-retro satanás!).

Repare bem, graciosa cria da nossa costela: 90% das mulheres passam
a achar um homem mais tchan, mais cobiçável, mais tampa de Crush, quando
descobrem que ele é casado. Os homens que portam aliança, assobiam os
números da enquete, tornam-se até quatro vezes mais atraentes aos olhares
das fêmeas.

Besta é tu que escondes o anelão dourado no bolso ao flanar pela noite,


bares e festas. A considerar o levantamento gringo e a intuição de umas
raparigas nacionalíssimas consultadas aqui pelo meu Databoteco, a sagrada
aliança é mesmo a roda da fortuna, do sexo, do amor e da sorte. Não tem nada
de bambolê de otário, como rezava a lenda popularesca das antigas.

E DEUS OXIGENOU O MUNDO -SÉRIE COISA DE CINEMA

Ela pode. Ela pode tudo. A galega está podendo.

E deus oxigenou o mundo quando fez Scarlett Johansson.

A única poderosa de Hollywood pós-Marilyn que passa aos homens do


mundo inteiro a sensação de que eles também podem tudo com ela.

Scarlett parece aquela loira que lava o carro da família, no final da


manhã de domingo no subúrbio, qualquer Babel do mundo, com aquele
shortinho vermelho que enlouquece a humanidade, a aldeia, o universo
globalizado.

Scarlett tem de Monroe aquela suposta ingenuidade que deixa todo


homem de quatro. A falsa ingenuidade que faz crer que as mulheres precisam
muito dos homens, hahahahahahaha. Nisso que elas nos escravizam, ao nos
justificar como necessários.

Mas é na fita de Sophia Coppola, que ela está mais linda.

“Encontros e desencontros”, o velho Bill Murray passex, passado, dá-


me saquê que a vida é nada, play again karaokê, que a vida é menos ainda.
Em “Dália Negra”, outro filmaço, ela consegue unir dois homens, o frio e
o quente, ela pode. Ela vira mocinha século XVII naquela fita dos brincos de
pérola, safadeza-vintage. Com Woody Allen, no Match Point, está completa:
santa, diva e puta.

COM A BÊNÇAO DO PAI DOS BURROS *

Esta semana tentei passar o máximo de dias possíveis sem comentar


sobre as condições do tempo. Não falei nem mesmo que fazia um calor
senegalesco (ou senegalês), esse lugar-comum maravilhoso que não se escuta
mais por ai. E olhe que fez mesmo um calorzão à moda de São José da Lagoa
Tapada(PB), como diz o Daniel Brito no seu blog, diz com a moral
meteorológica de paraibano que já morou em Toronto, Canadá, onde o inverno
impõe, fácil, uns 30 graus abaixo de zero.
Os momentos mais difíceis da privação foram em duas corridas de táxi.
Todos os motoristas puxam o tema assim que disparam o taxímetro. Eles
suavam em bicas, este outro espetáculo de clichê, e eu permanecia
grosseiramente calado.
Os amigos que telefonaram com o apelo de uma cerveja, enfrentei com
galhardia. Topei os convites sem manifestos sobre os termômetros de São
Paulo. À mesa, discorri até sobre o pré-sal e não dediquei um monossílabo às
condições atmosféricas.
Em casa, confessei o juramento à compreensível amada, que me ajudou
a evitar o tropeço. E assim consegui ultrapassar as 48 horas, pela primeira vez
na vida, sem um pio sobre o calor senegalesco.
Sucumbi, no entanto, ao terceiro dia. Um vacilo e este homem do Cariri
que vos escreve, em elogio à cria da sua costela, caiu na tentação -ó
pecaminosas filhas de Eva- e quebrou a jura. Fiz a graça de dizer que no
verãozão fora de época a sua boniteza aumentava.
Aprecio estes desafios de varejo, as pequenas apostas, besteirinhas que
fazem a vida mais leve. Não obtenho lá grandes êxitos nos caprichos, porém
logo encontro nova teima para não deixar o diabo ocupar o aeroporto de
mosquitos.
Antes da peleja climática havia enfrentado os cliclês, um combate que
iniciei na noite do lançamento de “O Pai dos Burros”(Arquipélago Editorial),
divertidíssimo dicionário de lugares-comuns e frases feitas colhidas e
genialmente ajambradas pelo jornalista e escritor mineiro Humberto Werneck.
Não resisti a um tempo de jogo de futebol. Lá estava com as minhas
“favas contadas” e outros balaios de sediças expressões. Só não rolou “calor
senegalesco” por causa do “frio siberiano” da ocasião.
O paulista Mário de Andrade, em carta ao pernambucano Manuel
Bandeira, preferia usar “um sol de matar passarinho” para descrever a mesma
atmosfera africana. É o que achei aqui em outro ótimo livro sobre o tema:
“Dicionário brasileiro de provérbios, locuções e ditos curiosos”, de R.Magalhães
Júnior, cearense de Ubajara (1907-1981).
É justamente no verbete “calor senegalesco” que R.,de Raimundo, traz
uma defesa de Mário: “Comecei também a usar lugares-comuns brasileiros. É
um meio de generalizar, de humanizar minha escrita”. Na mesma missiva, ele
pede a Bandeira que mande um apanhado, do norte e do sul, de tais
expressões.
E dado o adiantado da hora, Antônio Portela, amigo e bamba no
assunto, me despeço, afetuosamente, e dedico esta crônica.

* publicada originalmente nos jornais O Tempo(BH),Diário de


Pernambuco e Diário do Nordeste

DICAS A UM JOVEM ESCRIBA,COM CARINHO

 Com ou sem diploma, livros que valem por um curso completo para um
jornalista-escritor:
 A alma encantadora das ruas -João do Rio
 Um Bom Par De Sapatos E Um Caderno De Anotaçoes -- Como Fazer
Uma Reportagem -de Anton Tchekhov
 Balas de Estalo - reunião crônicas políticas e de costumes de Machado
de Assis
 Dez dias que abalaram o mundo - John Reed
 Paris é uma festa - E. Hemingway
 Na pior em Paris e Londres - George Orwell
 O SEGREDO DE JOE GOULD, de Joseph Mitchell (AULA GENIAL DE
COMO FAZER UM PERFIL DE UM PUTA PERSONAGEM
PRATICAMENTE ANÔNIMO)
 Tudo de Nelson Rodrigues, claro
 Malagueta, perus e bacanaço -João Antônio
 Vidas Secas e + Angústia - Graciliano Ramos
 "Bartleby, O Escriturário" - de Herman Melville
 A milésima segunda noite da av. paulista - Joel Silveira
 Dicas úteis para uma vida fútil -um manual para a maldita raça humana -
Mark Twain
 O perigo da hora - o século XX nas páginas do The Nation (textos de
Kurt Vonnnegut, H.L. Mencken, Gore Vidal, John dos Passos entre
outros bambas) -tem uma tradução brasileira da editora Scritta
 O livro dos insultos - H.L.Menken
 Etiqueta Moderna -finas maneiras para gente grossa - P.J. O´Rourke
 Modesta proposta para acabar com a fome na Irlanda (também
traduzido no Brasil como Modesta proposta para fazer das crianças
pobres churrasco), de Jonathan Swift
 Autobiografia de todo mundo - Gertrude Stein.
CÃO DE GUARDA DO SONO DA AMADA

“Amar, além de muitas outras coisas, quer dizer deleitar-se na


contemplação e na observação da pessoa amada”, sopra o velho escritor
Alberto Moravia, sempre aqui na cabeceira.
Uma das melhores coisas da vida é observar a pessoa amada que
dorme,entregue, para além dos pesadelos diários.
Como bem disse Antônio Maria, o grande cronista que aparece com
ciúmes até da própria sombra no livro da Danuza , um homem e uma mulher
jamais deveriam dormir ao mesmo tempo, embora invariavelmente juntos, para
que não perdessem, um no outro, o primeiro carinho de que desperta.
Experimente você também, sensível leitora, vê o seu homem quando
dorme. Há uma beleza nessa vigília que os tempos corridos de hoje não
percebem.
Amar é... vê-lo(a) dormindo.
Cada mexidinha, cada gesto. O que sonha nesse exato momento?
Tomara que seja comigo, você pensa, pois o amor também é egoísmo.
Gaste pelo menos meia hora por semana nesse privilegiado
observatório.
Psiuuuuu!
Ela dorme.
Mãozinha no ar, como se apanhasse pássaros, que coisa mais linda.
Uns 23 minutos assim, mirei no rádio-relógio. A mão desce ao colchão, quase
dormente, formigamentos. Coça o nariz. Põe a mãozinha direita entre as coxas.
Agora vira de lado, como os antigos LPs quando gastavam as seis músicas do
A. E me abraça como nunca fosse partir, corpos viciados, almas em busca de
um acerto.
Dorme, meu anjo.
Ela obedece.
Vigio o sono dela como um soldado zapatista.
Como um cão zela o sangue do dono.
Como se fosse um homem-exército e pronto.
Amar, no início era o verbo intransitivo da alemã professora de amor de
Mario de Andrade. O idílio tem sobrevida, não como gênero, mas como vício,
vício de amar. Amar de muito.
A mão desce agora sobre o meu peito, como se medisse meus
batimentos.
A mão direita volta para a arte de apanhar pássaros, que beleza, que
diabos!
O ideal é que você, amiga leitora, durma do lado esquerdo da cama, o
do coração, sempre.
Mãozinha no ar catando pássaros. Até se acalmar de vez.
Calmaria danada de horas, sem coreografias ou narrativas. Sonha,
sonha, sonha, minha menina.
Como é lindo a vigília ao sono dela.
Coça o nariz. Sussurra umas onomatopeiazinhas lindas de sonhos de
besouros.
Ela arruma os cabelos como algas, entorpeço num mergulho.
Observar o sono do(a) amado(a) é a melhor maneira de mapear a sua
beleza.
É a melhor maneira de conhecer o homem ou a mulher com quem
dormimos.
E como são lindas aquelas marquinhas deixadas pelos lençóis no corpo
dela. Um mapa de delírios! Melhor é lê-las como quem adivinha os sonhos e o
futuro no fundo da xícara árabe ou nas cartas.

COM ELVIS EM GUADALAJARA

Nem me venha miss Friaca, Ingmar Bergman está morto e não caio mais no
conto sartreano, há tempos assassinei aquele anão perverso, o marido de dona
Simone e mudei de mala-e-cuia, mystery train, pra Guadalajara, adonde Elvis
já me esperava naquele bar imundo que fedia a mijo, limão e coragem, nem me
venha Jean-Paul, você não me pega mais com a sua velha cartilha sem-saída,
estoy careca mas meus longos cabelos renascem no vento do deserto road-
movie, nem venha me fazer usar gola rulê e acreditar no frio d´alma, adiós, cá
em Guadalaraja os homens não têm tempo para frescuras do naipe, faz sol, e
Lourdes y Felipe me ensinam os segredos do tequila e do agave.

HOMEM-TUPPERWARE

Minha amiga M.Y. se especializou em pegar aquele tipo de homem


noturno e boêmio que não economiza nos tragos e, invariavelmente, retorna
para o rancho sem condições técnicas para a conjunção carnal ou qualquer
abofelamento que possa se chamar de sexo. São os melhores, ela prega: a
excelência, o suprassumo, o filé em matéria de abate e diversão em tempos
modernos. A este ser avulso, clandestino e simpático, que à noite ronda a
cidade, batizamos de homem-tupperware.
A desalmada M.Y., típica predadora do ciclo do macho perdido, nos
explica a terminologia adotada no folclore baladeiro: trata-se do sujeito que a
gente guarda no final da noite para comer na manhã seguinte. O homem-
tupperware, ela diz, com toda a sinceridade desse mundo, é o novissimo
Casanova, um monstro na cama, um demônio, desde que seja respeitado no
seu intocável estado de porre. Ele desperta com a fúria dos grandes e
imbatíveis amantes, relata a moça, ainda com os lábios febris a derreter o gloss
da tara e do desejo.
O macho desse gênero é uma dócil criatura que não dá quase trabalho,
prossegue a bela afilhada de Balzac, um mulherão para 300 talheres. Segundo
M.Y., esse tipinho de homem se encontra ali na faixa dos 40 ou mais, já foi
casado ou se trata de um solteiro convicto e não vai grudar na barra da sua
saia como faria um imaturo homem mais jovem.
O sujeito que se guarda como a um bom fiambre no tupperware, reforça
a amiga, é um homem quase perfeito: apaga assim que deita na cama,
portanto não corre o risco de desfiar besteiras ou tecer falsas promessas. É
praticamente um homem sem mentiras, o que se torna um épico em se
tratando da raça, diz M.Y., com mais uma demão nas suas peculiares tintas do
exagero.
A criatura do gênero nem sempre percebe a sua condição de presa
guardada para o abate matinal. A não ser os profissionais do ramo, figuras
menos machistas que flanam pela noite com o desapego e o lirismo de um
poeta do século XIX. Estes adoram e ainda fazem sonetos, com odes ao
acaso, enquanto a predadora ingere sua inocente tigelinha de iogurte com
cereais.
Para M.Y., é bom que se frise, pouco importa se o tal sujeito tem
pendores românticos ou não passa de um tosco que usa apenas 10 por cento
da cabeça animal. O que vale é a serventia da presa, ri a desgraçada,
enquanto mapeia a geografia boêmia para os próximos ataques como um
tubarão recifense que mira as canelas dos surfistas mais cevadinhos de Boa
Viagem.
Sim, a amiga especialista reconhece: com a lei seca no volante diminuiu
um pouquinho, um pouquinho de nada mesmo, o número de homem-
tupperware dando sopa nos bares e botecos. Esse tipo de macho, além de
prevenido, tem uma confiança danada no próprio taco –já sai de casa dando
como certa a carona do bonde chamado desejo.

COMO ELIMINAR O AMANTE -SEM GASTAR UMA BALA DA AGULHA

O leitor aflito me escreve. Quer ajuda, conselhos, alguma filosofia de


consolação, ombro, ouvidos... Invoco a Miss Corações Solitários que costuma
fazer morada nesta pobre caveira envelhecida em barris de bálsamo.
Não posso deixá-lo a mascar o jiló do abandono. Está desconsolado,
como o Sizenando de Rubem Braga, que viu a amada cair nos braços de um
playboy. Um idiota que não sabia sequer uma palavra de esperanto.
A vida é triste, Sizenando, como soprou-lhe o cronista.
Com Amaro, chamemos assim o nosso ensaio de Bentinho, não foi
diferente.
Quis o destino parafusar-lhe objetos pontiagudos à testa, como diria o
amigo Marçal Aquino.
Sim, ela tem um amante. Daqueles amantes que se encontram à tarde,
num intervalo qualquer, no recreio da vida chata.
Nem foi preciso contratar o detive particular, conta-me o nosso Amaro.
Ele mesmo fez as vezes de cão farejador de sua própria desgraça.
Que fazer?, indaga, num email no qual até a arroba bóia em poças de
lágrimas.
Mato o desgraçado?
Tiro a vida da desalmada?
Vou-me embora pra Tegucigalpa?
Salto mortal da ponte Buarque de Macedo?
Um trágico, esse rapaz. Como os de antigamente. Amaro é do tempo em
que os homens coravam. Ainda tenho vergonha na cara, envaidece-se o
próprio.
Sossega, Amaro.
O melhor que fazes, respondi ao marido em fúria, é sumir por uns dias,
inventar uma viagem, e dar todo tempo do mundo ao infeliz desse amante.
Banalizar o amante, meu caro e bom Amaro.
Entendeste?
Deixar que eles durmam e acordem juntos. Que tenham seus
problemas, que percam o luxo dos encontros fortuitos e vespertinos, que se
esbaldem.
É necessário deixar a Bovary sentir o bafo matinal da rotina.
A vida dos amantes dura porque eles só vivem as surpresas e valorizam
cada minuto do relógio que põem sobre a cabeceira daquele motel barato.
Nada mais cruel para o amante da tua mulher que presenteá-lo com o
pão-com-manteiga do dia-a-dia. A rotina é o cavalo de tróia do amor.
Amaro, nada de violência ou besteiras desse naipe.
Ao amante, todas as chances do mundo. Ao amante aquela D.R., a
famosa discussão de relação, em plena TPM.
Um amante nunca sabe o que venha ser uma mulher sob o domínio da
TPM. Ela faz questão de reservar todos os direitos desse ciclo ao pobre
marido.
Ao amante, Amaro, a tapioca fria e sem recheio da rotina do calendário.
Ao amante, Amaro, a falta de assunto.
Ao amante, os cabelos revoltos da mulher, naqueles dias em que nem
mesmo ela se agüenta ou encara o espelho. Naqueles dias em que os cabelos
brigam com as leis do cosmo e não há pente ou diabo que dê jeito.
Ao amante tudo, Amaro, depois me conta se deu certo ou não. Eu
aposto.

A MOÇA QUE CHORAVA NO METRÔ

Uma das grandes vantagens das mulheres sobre nós é a coragem, o


destemor, de chorar em público. Se o choro vem, as mulheres não congelam
as lágrimas, como os moços,pobres moços... Não guardam as lágrimas para
depois, como sempre adiamos, não levam as lágrimas para chorar escondidos
em casa.
Pior ainda é o homem que não chora nunca. Além de fazer mal ao
coração, esse tipo não merece muita confiança. As mulheres não, falo da
maioria das moças, desabam em qualquer canto e hora. Se estão mal de amor,
choram na firma, no escritório mesmo, na fábrica, choram no trânsito, choram
no metrô, simplesmente choram.
Como invejo as lágrimas sinceras das fêmeas.
Quantas vezes a gente não se preserva, por fraqueza, enquanto as
lágrimas, em cachoeira, batem forte no peito machista e viram apenas pedras
do gelo do uísque.
Como invejo as mulheres que misturam sim o trabalho com o drama
heavy metal da existência. Desconfio da frieza profissional, das icebergs de
tailleur, que imitam os piores homens e guardam tudo para molhar o
travesseiro solitário numa noite de inverno.
Ora, as mulheres podem ser infinitamente poderosas, administrarem
plataformas de petróleo nos mares... e chorarem um atlântico diante de uma
alma perra, de uma alma cachorra, de alma vira-lata e sem cuidados, essa é a
grandeza.
Lindas e comoventes as mulheres que choram em público, nas ruas, nos
bares, nos restaurantes, nos busões, nas malocas, no táxi. São antes de tudo
umas fortes. Tristes dos que estranham ou ficam envergonhados com o mais
verdadeiro dos choros. O medinho do macho diante do pênalti que vale uma
vaga no torneio da dignidade.
Triste dos que acham que não levam a sério, que tratam como sintomas
da TPM e chiliques do gênero, que fracasso. Ora, até mesmo os choros de
varejo, não importam as causas, são comoventes. Chorar engrandece. Fazer
amor depois de lágrimas, então, é sentir o sal da vida sobre os olhos,
romanticamente, sem medo de ser ridículo, brega, cafona, São Waldick nos
proteja, amém.
Coitados dos que escondem suas lágrimas
Acabei de testemunhar uma dessas lindas e corajosas moças, chorava no
metrô da avenida Paulista, aqui entre a Consolação e o Paraíso, as estações
que nos separam.
Por que chorava aquela moça?
Sempre acho que todo choro é ou deveria ser por amor, que me perdoem
a pobre rima antiga com a dor.
Uma grande dívida nunca nos põe a chorar de verdade. Por um familiar,
choramos diferente. Desemprego? Não. Se não teríamos um Tietê, um
Capibaribe, um Paraíba, um São Francisco a cada segunda-feira, cada
esquina, lágrimas que manchariam a tinta dos classificados e seus
quadradinhos lógicos, portas na cara, quem sabe da próxima, projeto ilusões
perdidas...
A moça não escondia os soluços do choro. Terá discutido a relação, a
velha D.R., à boca da estação Paraíso? Veste roupa de trabalho sério, e chora.
Daqui a pouco estará sentada na sua cadeira de secretária, exímia, bilíngüe, a
serviço da grana “que ergue e destrói coisas belas”.
Teria levado um pé-na-bunda, um fora? Teria visto o casamento pelo
binóculo do sr. Nelson Rodrigues? Perdoa-me por me traíres?
A moça que chorava no metrô sabia que o amor é como as estações da
avenida Paulista, começa no Paraíso e termina na Consolação.

TESTOSTERONA FUTEBOL CLUBE

Recentes pesquisas revelaram um dado que sempre pareceu bastante


óbvio, mas precisava da aura científica para se eternizar: a quantidade de
testosterona produzida por um homem fanático aumenta quando o seu time do
coração é vitorioso, mesmo que seja contra o Íbis, considerado historicamente
como o pior time profissional do mundo.
Ora, sendo a testosterona um hormônio ligado diretamente aos
estímulos sexuais, é claro que um homem de bem com o seu time será um
animal pelo menos 27,6% mais desenvolto nos trapézios e bambuais do Kama-
Sutra.
O percentual acima representa a quantidade do hormônio produzida a
mais no corpo de um homem nos dias de vitórias do seu clube. A pesquisa foi
feita pela Universidade da Georgia (EUA).
As mulheres devem tirar proveito desta pesquisa e aprender com os
seus parceiros tudo que sempre quiseram saber sobre tiros de meta, meia
ofensivos, escanteios e, queira Deus, até mesmo os mistérios da lei do
impedimento _uma das coisas mais enigmáticas para as mulheres normais.
Mais um dado interessante da pesquisa, aterrorizante para quem torce
por times tipo "B", é o seguinte: nas seguidas derrotas, o "homo-fanaticus"
perde um tanto da sua capacidade de produzir hormônios e apresenta-se
inapetente para o amor ou o sexo propriamente dito.
Agora, as mulheres, que jamais compreenderam o banzo sartreano dos
machos derrotados no futebol, podem entender aqueles domingões tristes e
monossilábicos.
O pior é que não adianta nada pedir para um sujeito mudar de time e
tornar-se mais vencedor. Mesmo com a promessa de 27,6% de testosterona-
plus, é mais fácil um homem-que-é-homem mudar de sexo do que de clube.

NADA COMO AQUELA OLHADINHA SAFADA

Nada como aquela olhadinha que ela dá quando lá embaixo.


Ainda e pra sempre, da série “detalhes tão pequenos de nós dois”. A
vida se resume a observar, microscópio de eros, tio Nelson, a mulher e o seu
drama.
Nada como aquela olhadela, sobrancelhas assanhadas, mirando lá de
nossos países baixos cá para cima do nosso cocuruto alumbrado.
Tão lindamente sacana, ah, que nega a minha nega, derreto-me como
manteiga!
Ela quer saber se estou gostando, claro que estou mortinho ali no pré-
gozo. Tem um orgulho, “vê como faço bem feito e com gosto”, ali naquela
olhadinha plongé, contra-plongé, depende de quem vê...
Como eu gosto, ela diz, posso?
Aperto com força os seus cabelos, resvalando numa fração de segundo
para um carinho no rosto, lado esquerdo, com o lado B da mão e dedos,
quiromancia e mistérios.
Ela desce lá naquele cantinho fronteiriço, desenha a história do olho
com riscos da língua em círculos, lambe a última costura da minha pobre
existência, nirvaniza-me, petite mort, e assina nossos batismos lindos com
lambidas góticas, assim como quem escreve inocentemente na areia,
coraçãozinho flechado, e o nome de quem aposta, como se o amor fosse um
jogo do bicho.
Não resisto a olhadinha lá de baixo, vem cá, estou longe e perto, meu
amor, tudo em volta está deserto, tudo certo, como na canção do 2 e 2 são
cinco. Como nosso universo é tão perfeito aqui na cama, só na cama, lá
embaixo, na cama zen, japão do amor, horizontalizo-me, para sempre, viro
réptil, nunca mais me levanto, nunca mais me levanto e ando, odeio meus
Lázaros internos, agora eu quero mais é nadar no seco, melhor jeito de
navegar aos teus pés, e de vez em quando, quer saber?, afundo as mãos nos
arrecifes e te dou um peixinho, como aquele do conto de Virgílio Piñera, que
aprisiono nas profundezas sujas das nossas existências.
CINEMASCOPE

No que concerne ao olho masculino nas visões matutinas:

Quando ela acorda, aquelas marquinhas no corpo feitas pela noite, atrito de
peixes que passeiam nos subterrâneos dos lençóis.

Cabelos feitos algas doidas, o seu incômodo mais bonito; algum tédio diante da
reabertura do mundo chato, ela se espreguiça, ossinhos que estalam sob a
réstia do sol dos sérios que atravessa a cortina.

Agora ouço o barulho do mijinho dela, música ao longe aqui do quarto.


Paudurescência da aurora; ensaio um gozo memória, nostalgia precoce, como
se a danada tivesse ido embora num teletransporte de fio terra; ela volta ainda
mais manhosa, quase um gato a inventar botes câmera lenta num sashimi da
véspera.

O pau toca a sua bundinha sem a pressa da foda, quase como fossem feitos
um para o outro e tivessem todo o tempo do mundo. As almas já se entendem,
os corpos quase, ela pensa “qualé a desse cara?”.

Toco fogo no café e o cheiro sobe, polvo do amor mobilizo-me entre o forno,
esquentar os pães, as frutas dos impressionistas, a manteiga do primeiro
tango, acorda maria bonita, que a polícia do pensamento já está de pé. Um
homem nos ensaios de amor, velho J.L.Godard, carece de muitas mãos,
línguas, dedos, certezas.

QUANDO ELAS DIZEM ESTOU CONFUSA...

Amigos machos, amigas fêmeas, como berram nas suas manchetes as


revistas de modas & modinhas, o homem é mesmo a nova mulher e vice-versa.

O que impressiona o cronista não é nem o troca-troca de sexos,


tampouco a confusão dos gêneros e suas modernidades. O que mais chama a
atenção é o discurso amoroso de mãos trocadas: cada vez mais a mulher fala
como homem e o homem, por seu modo, cada vez mais afina a voz e
choraminga como uma mulher leitora de romances do tipo Sabrina, saca?

Óbvio que resguardamos, nessas pás-viradas todas, os cafundós à


prova de redemoinhos nos costumes e outras acontecências ditas civilizatórias,
como nos sertões profundos, por exemplo, onde homem continua sendo
homem, mulher segue mulher e é dito homossexual apenas a passiva criatura,
jamais a que faz o agrado de fato e de direito no fiofó do seu semelhante.

Mas paremos nosso jegue metafísico por aqui, na questão dos


discursos. Sim, a apropriação da fala desculposa e masculina por parte das
mulheres, já notaram? Não chega a ser bem um plágio histórico, mas é uma
beleza, quase, quase!
E nos interessa sobretudo a enganação-mor, o clássico dos clássicos da
nossa principal mentira. Aquela usada desde priscas eras, lembra?

Então dois pontos para acochambrar os parafusos da memória: “Estou


confuso, não é culpa sua, você é ótima, mas acho que não vou lhe fazer bem
nesse momento, bla-bla-bla-bla”.

Haja enganação, nove horas, truque, fraude...

Já ouviram esse fragmento do discurso nada amoroso, né?

Pra completar: “Você merece algo melhor!!!”

Repito, era um clássico das desculpas dos machos. A nossa maior falta
de vergonha na cara. Agora ouvimos a mesma ladainha da boca das moças,
que onda!

Já faz tempo que essa desculpa _ “ESTOU CONFUSA...”_ só sai da


boca delas.

Não faz mal, quantas vezes não usamos do mesmo artifício, da mesma
falta de argumento, tá legal, eu aceito o fingimento...

Mas por favor, crias das nossas costelas, devolvam o meu caô, o meu
171, o meu agá, a minha enganação-mor, a minha forma de me livrar mais fácil
e, de preferência, de forma indolor.

Encanta-me o avanço das mulheres em todos os campos e engrenagens


pesadas, rebimbocas & parafusetas, só é desnecessário o quase plágio dos
nossos discursos, ora, ora. Vocês não carecem disso, vocês são mais
sofisticadas, mais inteligentes, mais lindas e labirínticas.

“Estou confusa...”

(Me veio até, do sótão do cocoruto, a velha imagem de Didi Mocó no seu
clássico “Estou cafuso, estou cafuso!”)

Estou confuso. Isso era apenas coisa de macho frouxo, não de


elegantes mademoiselles. Tudo bem que vocês, belas raparigas, avancem em
tudo, mas não careciam furtar logo o pior dos nossos defeitos.

Somente nesta última semana, deparei-me com quatro amigos


sorumbáticos e macambúzios. Todos vítimas do “eu estou confusa, não é culpa
sua etc...”

Devolvam o nosso discurso picareta, façam-me favor!

Nosso 171 exclusivo de volta!


Sim, outro clássico, o “não é nada disso que vocês estão pensando”, já
mudou de boca também faz tempo. Agora derrete o batom e o gloss das lindas
filhas de Eva.

É, amigos, toda vez que ouço um diplomático “estou confusa” saco logo
meu velho serrote de galhas e chifres para poder, ao menos, entrar,
humildemente, na porta de casa.

ORAÇÃO À NOSSA SENHORA DOS QUE AMAM SOZINHOS

Nossa Sra. dos que Amam Sozinho, perdoa-me pela insistência, nem
mais é por tanto quere-la, é por deixar claro, nega que sopra das intimidades
dessa oração, que só ela me faz passar da conta, perversa, cair no abismo
mais lindo do gozo sem volta, como naquele encosto de beira de estrada, como
na rodovia estrangeira de Sam Shepard, crônicas de motel, simbora!
Nossa Sra. dos que só pensam nela, cotovelos lanhados de tanta
espera, tantos sustos nas ruas, nos bares, “é ela!!!”, Nossa Sra. Dos Cotovelos
da Surpresa e das janelas, tão gastos, cinzas, peles, dobras, e tanta fome de
viver aqui dentro, megalomaníaco, épico, terá sido a força do desprezo???
Não creio, sr. Albero Moravia.
É mesmo a paudurescência, nostalgia precoce das grandes histórias, o
tempo inteiro, pensando, pensando, pensando, mas no fundo gostas!
Os joelhos lanhados pela romaria, devoção e insistência.
Nossa Sra. da Vida Alongada que consegue, nos seus exercícios de
Kama Sutra, me levar à coisa mais sagrada.
Nossa Senhora!!!
Amor demorado, anjo exterminador da alcova sem pílulas milagrosas.
Amor por tê-la, rara.
Beijá-la delicadamente, como um cristão que dissolve na boca uma
hóstia.
Amar por horas, riachinhos d´águas que não se sabem donde, cada
cantinho dum mapa que se inventou só pra se perder depois, sentimento é a
verdadeira bússola dum homem, perdido docemente lá embaixo, lá embaixo,
daquelas tuas vestes modernas que nunca te escondem.
Lua cheia, vida crescente.
Escuto Lê Déserteus, Boris Vian, ouviste?.
Nossa Senhora dos que sentem muito e amam sozinho, rogai por nós
que recorremos a vós!
CINEMASCOPE, PARTE II

Do cinema lindo & phoda de existir e de como uma mulher pode encantar nos
detalhes e cortes de nós dois. Quando ela pede pra gente virar os olhos ou
fechá-los bem fechados. Só enquanto troca a calcinha, vupt, mesmo com toda
intimidade desse mundo, às vezes intimidade de anos. Só enquanto troca o
sutiã, biquíni, parte de cima, ajeita a parte de baixo, areia do doce balanço da
beira dos mares, só enquanto tira uma toalha do banho, viagem de fim de ano,
só enquanto está lindamente menstruada e quer guardar-se, embora saiba que
atravessamos com amor e gosto todo o seu mar vermelho e ainda mais mares
houvesse a cada mês. “Feche os olhos”, diz. “Vira o rosto”, safadeza-se, diva
sob seguras telhas. Só para manter o suspense do cinesmascope debaixo do
mesmo teto. “Pronto, pode olhar”. Ai ela ressurge mais linda ainda, cabelinhos
molhados, com aqueles cremes todos da Lancôme ou com simples sabonetes
Dove ou aqueles de nove em cada dez estrelas de Hollyood, Lux, deluxe, eu
morro nesses lapsos de tempo, elipses do desejo, frações de segundo que são
eternas de olhos fechados para quem meus olhos na terra, que há de comê-los
inté os aros dos óculos, mais abriram e justificaram seu brilho castanho mesmo
em dias de torpor e existência lusco-fusco.

TRATADO GERAL DOS CHATOS -O REMAKE

Sem nenhuma pretensão de atualizar a brochura “Tratado Geral dos


Chatos”, que o homem de teatro _sim, existem, habemus homens de teatro!_
Guilherme Figueiredo pôs no mundo há mais de meio século, cá estamos com
uma nova lista destas criaturas capazes de nos subtrair a paciência e nos
deixar tão inquietos quanto as vítimas do Pediculus púbis, como são
conhecidos cientificamente os insetos homônimos que atacam as partes mais
baixas e indefesas de um cristão de fé.
Bons e inocentes tempos aqueles em que os chatos se resumiam aos
tipos agrícolas, como o chato-pra-chuchu, ou às criaturas crentes na
meteorologia, como os chatos-de-galocha, que já saíam de casa prevenidos
contra qualquer enchente, vento ou maré. Haviam ainda os menos ofensivos,
como os da espécime aforismática _sempre com uma filosofia de pára-choque
na ponta da língua para importunar a vida alheia.
O certo é que eles se multiplicaram como os invertebrados homônimos e
hoje dominam o país, os lares, as repartições, os logradouros públicos, as
salas de espera... Estão em todas as partes. Existem os chatos-24 horas, estes
vampiros da paciência alheia, como diria o bruxo do Cosme Velho _só para
citar outro tipo fenomenal de chato, que é aquele que sempre inicia uma
conversa com a inseparável locução “como diria...”
Enfim, só nos resta ser mais chatos ainda, o que tenho buscado nestas
linhas, afinal de contas ainda não nasceu o ser humano capaz de chatear um
chato sem que portasse a mesma peçonha. Como perdemos, nesses tempos
corretos, o gosto pelo assassínio e maltratos do gênero, sobra a este cabeça-
chata que vos impacienta mapear os maçantes mais visíveis e
contemporâneos. Ei-los:
Mega-super-ultra-hype – O chato mais veloz do Oeste. Trata-se da
criatura atualizadérrima nas últimas tendências e apostas do mundinho dos
modernos da noite e da mundanidade em geral. Sabe a nova gíria dos clubes
de Londres e já baixou no computador a última faixa do DJ paquistanês pós-
electro-cool-de-cu-é-rola que será a sensação no inverno novaiorquino. Na
hora de falar, apresenta-se como um Guimarães Rosa clubber, ninguém
compreende um só vocábulo.

Fêmea sitcom – Aquele tipo metropolitano metido a chique que acha


que a vida é um seriado americano, um Sex and City sem fim, século
seculorum. Nos salões, principalmente nas bocas-livres, está sempre com um
prosseco à mão. Adora vernissages.

Chatos de época - Rabugentos, inconsoláveis, sempre a resmungar


pelo borogodó que se foi. Não é uma questão de idade, ataca também
raparigas em flor, como as gazelas que fazem um tipo “virgens suicidas” e
ouvem Renato Russo e Smiths como se fossem mademoiselles do século XIX.

Garçonete-cabeça – Aqui encarno um rápido chato de época para


lembrar o tempo em que garçom vestia preto e branco, com gravatinha
borboleta, o chopp chegava gelado, ele sabia o resultado do futebol e ainda
nos servia de ombro para uma dor amorosa de ponta. Hoje, nos bares de
moda, as garçonetes são lindas, descoladas, podem passar a noite a discorrer
sobre cinema coreano, mas o serviço que é bom... nécaras, como diz o meu
amigo Sabião Bestunes, o monstro de Sabará y alhures.

Mario de Andrades digitais – Pessoas que escrevem e-mails enormes,


como as famosas cartas do modernista paulistano. Esse homem matou muitos
pobres e desnutridos carteiros de tanto fazê-los gastar sola de sapato, pois se
correspondia com o país inteiro... Embora desse a impressão a cada
interlocutor que aquela troca de cartas embutia uma linda e única afinidade
eletiva. Todos os anos vem à tona um novo carregamento de missivas do
gênero. Escreveu para tocadores de coco do Nordeste, índios, mitos
amazônicos, gorilas...

SOB O DOMÍNIO DO SOL DE BOLSO

ah, vamos esquecer por uma semana nosso sol de bolso, como João Cabral
chamava a aspirina, como Paulo Henriques Britto batizou o milagroso
antidepressivo, remate de males do cocoruto, vamos esquecer por uma
semana as cartelas, as receitas, as tarjas negras, vamos ver o que acontece,
vamos dar um bom dia tristeza, vamos nos tornar lindamente melancólicos ao
lusco-fusco, vamos deixar q a espessa neblina encubra o pára-brisa, vamos
tentar..., e se der merda, e se a gente não segurar a onda, a gente enche a
cara, noite na taverna, a gente volta correndo pra casa e faz dos lençóis uma
cabana, uma barraca de praia no escuro, a gente se agarra como se fosse
mesmo o fim do mundo, e daí?, posso querer os seus zolhinhos com aquele
velho spleen?!
A GENTE SE VÊ (O REMIX)

Em uma megalópole como SP e outras tantas grandes cidades, haja


encontros e desencontros, Sophia querida, alguns não tão graves, acontece,
outros infinitamente dolorosos, que nos perturbam os sentidos, que fazem a
gente maldizer os céus, os astros, o destino.
Fica tudo na base do “a gente se vê”... E fudeus, adeus!
Não que fosse acontecer um casamento ou algo do gênero a partir
daquele encontro, nada disso, mas foram encontros bonitos, fortes, que se
acabam ali mesmo, na poeira da estrada, numa tarde fria, em um café da
manhã, numa simples despedida sob a neblina na Dutra ou Anchieta.
“A gente se vê.” Pronto, eis a senha para o terror, o “never more”, o
nunca mais do corvo do escritor Edgar A. Poe.
A gente se vê. Corta para uma multidão no viaduto do Chá.
A gente se vê. Corta para uma saída de estádio lotado em dia de
decisão do campeonato.
A gente se vê. Corta para “onde está Wally”.
Nada mais detestável de ouvir do que essa maldita frase. Logo depois a
porta bate e nem por milagre.
Jovens mancebos, evitem essa sentença mais sem graça. Raparigas em
flor, esqueçam, esqueçam.
Melhor dizer logo que vai comprar cigarro, o velho king size filtro do
abandono. Melhor dizer que vai pra nunca mais. Melhor o silêncio, o telefone
na caixa postal, o telefone desligado, o fora da área, a clandestinidade
amorosa, o desprezo on the rock´s.
A gente se vê uma ova. Seja homem, troque de palavras, use o código
do bom-tom e da decência. A gente se vê é a mãe, ora, ora.
Como canta o Rei, use a inteligência uma vez só, quantos idiotas vivem
só...
Esse “a gente se vê” deveria ser proibido por lei. Constar nos artigos
constitucionais, ser crime inafiançável no Código Penal.
A gente se vê é pior do que a gente se esbarra por ai. Pior do que deixar
ao acaso, que jamais abolirá a saudade, que vira uma questão de azar e sorte.
Melhor dizer logo “foi bom, meu bem, mas não te quero mais”. YO NO
TE QUIERO MÁS, como na camiseta mexicana que ganhei de una hermosa
chica. Dizer foi bom meu bem e pronto, ficamos por aqui, assim é a vida,
sempre mais para curta do que longa-metragem.
A gente se vê é a bobeira-mor dos tempos do amor líquido e do sexo
sem compromisso. A gente se vê é a vovozinha, foda-se!
Seja homem, seja mulher, diga na lata.
Não engane a moça, que a moça é fino trato, que não merece desdém.
A fila anda, jogue limpo.
A gente se vê. Corta para uma multidão no show do Morumbi. A gente
se vê. A gente se vê. Corta para a multidão no Campo de Marte. A gente se vê.
Corta para o formigueiro do Maracanã. A gente se vê. Corta para a São João
com a Ipiranga. Corta para a 25 de Março em véspera natalina. A gente se vê.
Corta para um engarrafamento gigante na marginal do Tietê...
A gente se vê. Então aproveita e vai olhar se eu estou na esquina!

A ARTE DE PEDIR EM NAMORO -REEDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA

É namoro ou amizade? Rolo, cacho, ensaio de amor, romance ou pura


clandestinidade?
“Qualé a sua, meu rapaz?!”, indaga a nobre gazela.
E o homem do tempo nem chove nem molha. Só no mormaço, só na
leseira das nuvens esparsas.
No tempo do amor líquido, para lembrar o título do ótimo livro de
Zygmunt Bauman sobre a fragilidade dos encontros amorosos, é difícil saber
quando é namoro ou apenas um lero-lero, vida noves fora zero...
Cada vez mais raro o pedido formal de enlace, aquele velho clássico, o
cara nervoso, se tremendo como vara verde: “Você me aceita em namoro”?
O tempo passava e vinha mais um pedido clássico e igualmente tenso.
O pedido de noivado.
Mais adiante, a hora fatal, mais uma tremelica do jovem mancebo: Você
me aceita em casamento?
E pedir a mão,aos pais, meu Deus, haja nervosismo, melhor tomar um
conhaque na esquina para encorajar-me.
São raros, raríssimos hoje esses nobres pedidos. Em alguns setores
mais modernos e urbanos, digamos assim, talvez nem exista mais.
O amor e as suas mudanças.
A maioria dos homens, além de não pedir em namoro, além de não
pegar no tranco, ainda corre em desespero diante de uma sugestão ou
proposta de casamento feita pela moça.
O capítulo bom da história é que agora as mulheres também partem
para o ataque e, diante de uns temerosos ou acanhados sujeitos, escancaram
suas vontades, suas paixões, e fazem suas apostas, seus pedidos, põem na
mesa os seus desejos e as cartas de intenções.
Voltando ao mundo dos homens, lembro que era bem bacana esse
suspense masculino do “você quer namorar comigo?”
Havia sempre o medo do fora. Um sim, mesmo o mais previsível, era
uma festa.
“Quer namorar comigo?”
No tempo do “ficar”, quase nada fica, nem o amor daquela rima antiga.
Alguns sinais, porém, continuam valendo e dizem muito. O ato das
mãozinhas dadas no cinema, por exemplo, ainda é o maior dos indícios.
Tanto quanto um bouquet de flores, mais do que uma carta ou um email
de intenções, mais do que uma cantada nervosa, mais do que o restaurante
japonês, mais do que um amasso no carro, mais do que um beijo com jeito,
daqueles que tiram o gloss e a força dos membros inferiores.
“Vamos pegar uma tela, amor?”, como se dizia não muito antigamente.
Eis a senha.
Mais até do que um jantar à luz de velas, que pode guardar apenas um
desejo de sexo dos dons Juans que jogam o jogo jogado e marketeiro.
O cinema, além da maior diversão, como diziam os cartazes de
Severiano Ribeiro, é a maior bandeira.
Nada mais simbólico e romântico.
Os dedos dos dois se encontrando no fundo do saco das últimas
pipocas...
Não carecem uma só palavra, ainda não têm assuntos de sobra.
Salve o silêncio no cinema, que evita revelações e precoces besteiras.
Ah, os silêncios iniciais, que acabam voltando depois, mas voltando sem
graça, surdo e mudo, eterno retorno de Jedi. Nada mais os unia do que o
silêncio, escreveu mais ou menos assim, com mais talento, claro, Murilo
Mendes, poeta dos melhores e mais líricos.
Palavras, palavras,palavras...
Silêncio, Silêncio, silêncio...
Dessas duas argamassas fatais o amor é feito e o amor é desfeito.
Simples como sístole e diástole de um coração que ainda bate.

CARENÇOLÂNDIA -BREVE VISITA SEM GUIA

Bravas fêmeas expulsas do paraíso por um deus misógino fundaram um


reino nada encantado. Deram a este pueblo o nome de Carençolândia.
Embora tenha sido criado pelas mulheres no tempo em que só existia o fogo e
o verbo, foram os machos que se impuseram, muitos séculos depois, como os
mais legítimos cidadãos carençolandeses.

Cuidado, frágeis!, eles estão perdidos, sejam metrossexuais, übersexuais


ou brechossexuais [aqueles que só usam roupas com encosto de brechó].
Fracos, não agüentam o tranco das mulheres mais destemidas. Arrotam
macheza nos botecos, mas logo que põem as patas em casa uivam para a lua
minguante e sonham com uma chuva de coleiras.

O macho carançolandês não passa meia hora separado, não vive sequer o
luto amoroso da resoluta que aplicou-lhe um conga no meio da bunda - a
padoca mole e farta que dantes já prescrevia o chute. Ele vai lá e agarra a
primeira que passa, nem que seja um manequim de gesso, como ocorreu ao
meu amigo Sizenando, aquele mesmo que trabalhava como galhudo-mor nas
crônicas de Rubem Braga. Enquanto o manequim era levado de um lado a
outro da rua, para uma troca de vitrines, ele abofelou-se com a loira gessificada
e a entope de gala até hoje.

Bem-vindos ao reino da Carençolândia, esse golfo inevitável da existência.

Sim, na Carençolândia ninguém vem a passeio e o turismo é proibido. A


Carençolândia é uma espécie de Mali, de Níger, de Burkina Fasso, de Guiné
Bissau, de Chade... d´alma.

A Carençolândia é o vale do Jequitinhonha metafísico que chia como


catarro em nossos pulmões e tórax _diga 33!!!

Carençolândia não tem sequer feriado.Um programa populista e eleitoreiro


de saúde pública agora trouxe Prozac, Lexotan, Frontal e zilhões de remédios
tarjas pretas para este reino. Os compromidos foram postos em toda a rede de
água de Carençolândia... Adicionados ao sal, ao açúcar... Mesmo assim não
houve um sorriso sequer, nem mesmo do gato lisérgico de Alice.

NOSSO AMOR BEM PUTO

Nem fomos ao mar para ver o nosso amor morrer na praia. Nosso amor morreu
engarrafado, na correria do povo para deixar São Paulo, babilônicos corações
de fumaça a 10 km por hora. Nosso amor largou o automóvel e saiu
caminhando, melancólico, entre motoboys e miragens, crepúsculo cubatanesco
a escorrer do nariz.

Stop, parou o nosso amor ou é apenas um sinal fechado?

Minutos antes, nosso amor foi visto saindo do Paraíso e saltando na


Consolação, a linha do último metrô de todos os amores expressos. Aí nosso
amor, puto da vida, bebeu cachaça, cheirou cola, acendeu o cachimbo na
Cracolândia, perdeu os óculos, as lentes de contato, pegou um papelote de
quinta na Augusta, gastou a pele, fez besteiras e vomitou bem muito o foie-gras
dos nossos próprios fígados. Nosso amor não conseguiu dormir direito nesse
dia, zumbizou geral o malaco, e não foi apenas o barulho da construção mais
demorada do que a catedral de Colônia, a Transamazônica ou o castelo de
Kafka.

Nosso amor só pode estar tirando onda da nossa cara, é o tipo do amor que
sabe rir da nossa desgraça, um amor de rapariga da última luz vermelha do fim
do mundo, um amor da porra, que não respeita as leis do cosmo, nosso amor é
uma ficção barata, café puro, pão na chapa, nosso amor nem esfriou ainda o
cadáver, acabou no auge, como a carreira de Pelé, como os Beatles, nosso
amor era sábio. E como os amores reencarnam, muito cuidado, senhoras e
senhores, nosso amor pode estar rondando ai a sua área. Prendam o
criminoso, onde está a polícia que não vê uma coisa dessas, tio Nelson?

EU QUERIA SER BILL MURRAY

Eu queria ser Bill Murray. Em Flores Partidas do Jim Jarmusch.


Indo em busca do filho que talvez não tenha tido. Bill Murray parado.
Não diga que silêncio; diga “não ouço nada”. Bill Murray on the road, no
sossego, na moral e na elipse. A máquina de escrever cor de rosa, a
motocicleta cor de rosa, flor de obsessão, rosa. Bill Murray dom Juan
em fim de feira _a festa acabou, José, para onde?_ e a carta anônima,
o vizinho Sherlock com ácido, a busca do rebento que não teve, teve?,
não importa. Eu queria ser Bill Murray diante daquele gato, nem carecia
a Sharon Stone, o gato feito à imagem e semelhança de Bill Murray,
felino metafísico da porra. Ali, dizendo, o gato: “Você veio aqui, velho
Bill, com segundas intenções, não, não sou teu filho, hombre”. Eu
queria ser Bill Murray naqueles sonhos, a reprise. A lolita na vitrine,
Lola, bundinha americana, mas safada, é o que vale. Bill Murray vaga
pela América, ô, mas num me venha com essa de metáfora da
América, apenas uma história sem final, como todo enredo de busca,
como a própria cara de Bill Murray que se procura. Eu queria ser Bill
Murray emparedado na quarta parede, sem foco.

SÓ VINGANÇA,VINGANÇA,VINGANÇA*

Amigo torcedor, amigo secador, que prazer tem uma ex-mulher, ainda
magoada ou não, quando o time do desalmado leva um belo tombo. É
sadismo ludopédico no último.
Ela pode nem apreciar tanto o esporte, mas só por uma lupicínica
vingança, faz um foguetório com a desgraça do miserável. Sabe que a única
dor que deveras sente o canalha é a da tragédia do seu clube.
Como me diz agora a M., com perversidade e alguma saliva histérica na
risada, ainda comemorando o fracasso do do Palmeiras, alviverde imponente
do homem que a trocou por outra.
É, amigo, no peito de cada mulher abandonada explode um coração de
secadora vingativa.
“Mas enquanto houver força em meu peito/ Eu nao quero mais nada/ Só
vingança, vingança, vingança/Aos santos clamar...”, cantaria o gaúcho
Lupicinio Rodrigues, o rei da dor de cotovelo.
A explosão de M. é tão comovente como no momento dos safanões do
menino Maurício e do Obina, que acabaram expulsos, no embate contra o
Grêmio, por pura sinceridade de rapazes humildes que buscam a todo custo o
triunfo. O zagueiro ainda passou a noite chorando. Coisa de homem mais
ainda. Merece todo o respeito.
Deixemos a crise verde lá no Parque Antarctica. Bom mesmo é a
maldade das mulheres contra a paixão clubística dos seus marmanjos.
Outra amiga, carioca, que já superou a dor amorosa e enxerga a fila que
anda, comemorou, o porteiro do prédio está de prova, a queda do Sport do
mancebo. E olhe que a danada é Fluminense, também sob risco de
Segundona.
O primeiro episódio que me recordo de belas vinganças femininas
ocorreu naquela decisão do Brasileiro de 1996, com Grêmio x Lusa.
Segundo gol do tricolor gaúcho. 2x0. A amiga G. pára o carro, voltava de
uma cachoeira nas cercanias de Brasília, ajoelha na estrada, ergue as mãos
para os céus, agradece, vibra, tinha certeza que A.estaria mais triste que o anjo
inútil e todos os fados da Amália Rodrigues.
No Recife, L., uma jambo-girl com toda a morenidade exaltada por
Gilberto Freyre, enviou para o ex, um torcedor do Náutico, integrante da torcida
Timbucana, uma saca de areia de Boa Viagem, logo depois de vitória do
bravíssimo Santa Cruz, meados dos anos 90. É que o alvirrubro dos Aflitos tem
uma fama histórica de nadar, nadar e morrer na praia.
Com as nossas exs, infelizmente não temos esse gosto sádico
ludopédico. Por mais que sejam fanáticas, creio que as fêmeas sofrem menos
com as dores do futebol. Para variar, são mais sábias também nesse capítulo.
TUDO EM VOLTA ESTÁ DESERTO, TUDO CERTO

Final feliz, que alívio no faroeste da Pompéia, terra onde o caminhão do gás,
como avisou M.L., musa do cine-cama, toca Enio Morricone.

Final Feliz. O vaqueiro consegue levar a sua Cherie para o rancho em


Montana.

Aos vinte e tantos anos, nunca havia sequer beijado uma garota. Só queria
saber da sua vida de cowboy e guardava uma certeza na dobra dos braços da
camisa de homem forte: um tempo qualquer encontraria o “anjo” e pediria em
casamento imediatamente. O destino apontaria: “É esta”.

Como deu trabalho esse anjo loiro quando surgiu na sua estrada. Nunca havia
sido santa. A galega só tinha uma obsessão: trabalhar em Hollywood. Veio a
tempestade. Nevou no coração da gazela mais ainda. O amigo Virgil tocou
belas canções, não o suficiente para amansar o selvagem. O cantil de uísque
também não foi o bálsamo daquela pobre alma. O enfrentamento com outros
brutos, tampouco.

O jovem Bo Decker, capaz de domar o mustang mais brabo de todas as


pradarias, desmontava aos pés da criatura na taverna. Certo dia, porém, ao
mendigar um beijo de despedida, o sol derreteu bregamente e lindamente a
neve que encobria aquelas sístoles e diástoles. Destino: o rancho de Montana.
Como me aliviam os felizes finais dos filmes. Durmo em paz no meu deserto.

AUTO-AJUDA PELO MÉTODO TRUFFAUT -PARTE III/FINAL

O amor e também seus arredores – como as paixões ou até mesmo uma


galinhada lírica – se move graças a um único combustível: a dificuldade. Eis a
gasolina azul dos que amam ou tentam. Dos que se apaixonam ou tentam. Dos
que perseguem um pedaço de beleza mundo afora, como o bravo Bertrand de
“O Homem que Amava as Mulheres”, filme e livro do xará François Truffaut
(1977).
Discorro sobre o tal combustível por ter esbarrado, dia desses, com o site
que permite o envio de mensagens, via e-mail, entre pessoas que se paqueram
no trânsito – que não é o meu caso, pedestre convicto e inveterado discípulo
do velho Johnny Walker. Pois os tais sites podem resolver, na velocidade de
uma ejaculação precoce, o drama inicial de Bertrand na citada película. Qual
graça há em eliminar os pequenos nós que nos levam aos bons alvos? No
amor, de nada adianta "solucionáticas", só "problemáticas", para inverter o
aforismo de Dadá Beija-Flor.
Estava o jovem Bertrand na lavanderia de mademoiselle Carmem, sua
chegada, quando avista as pernas – só o par de pernas da “esplêndida
desconhecida”, como diz o moço – e enlouquece. A bela dona desaparece e
ele só tem tempo de anotar a placa do veículo em um maço de Gitanes: 6720
RD 34.
O bicho endoida a cabeçorra. Vai no Detran local e tenta convencer os
burocras da necessidades do nome da proprietária do veículo que evadiu-se.
Nada feito, a França é uma Pátria séria e preserva a privacidade dos filhos
seus. “Se a pessoa tivesse batido no seu carro, ainda vá lá, pois a sua
seguradora poderia ter acesso aos dados da pessoa”, ouviu, oba!, mais ou
menos assim, de outro burocra gordinho com feições de Balzac dos Pobres.
Os olhos de Bertrand brilharam como nunca. Não teve dúvida: no
estacionamento mesmo cuidou de estilhaçar o farol traseiro e o pára-lama do
seu Renault ( ou Pegeout, velho Otto?) contra a mureta. Provocada a batida,
retoma o labirinto da burocracia para tentar o reencontro com as esplêndidas
pernas desconhecidas. Não havia visto sequer o rosto da moça, numa prova,
como tem discursado este mal-diagramado que vos fala, que mulher é
metonímia, parte pelo todo -basta uma omoplata, um rádio, um perônio, um
queixo, uns braços, uns pezinhos... para que nos apaixonemos.
Só sei que vai lá, vem cá, guichês e mais guichês, advogado no meio, um
buruçu danado, e o jovem Bertrand finalmente se vê diante da sua perseguida.
Uma hora de café e conhaque depois... descobre que não está diante da
esplêndida, mas da sua prima, proprietária legal do veículo. O par de pernas,
que atendia pelo batismo de Marianne, já deixara a cidade, de volta a Montreal.
Não que o nosso herói não tenha apreciado uma metonímia qualquer na prima.
Muito pelo contrário. Gostou e mutcho, mas...
É que no trapézio do cocuruto já balançava outra idéia: Bernadette, a
recepcionista de uma locadora de carros onde Bertrand esteve na sua busca
pela identidade do par de pernas. “Se tiver algum problema, venha me ver”,
dissera a moça na ocasião. Lá ia Bertrand, novamente com o coração
despedaçado.
Mas sempre movido pelo metanol de alguma dificuldade.
A boa conquista amorosa nunca dependerá do avanço tecnológico, dos
miojos sentimentais, da “multidão sem ninguém” (MSN etc), dos serviços
profissionais, caso dos sites de encontros ou placas, e sim das travas e
lombadas do caminho.
A boa conquista, amigos, nunca será uma corrida de 100 m livres. Será
sempre uma corrida com barreiras. Às suas marcas, senhoras e senhores!
AUTO-AJUDA PELO MÉTODO ROLLING STONES

Abrindo o coração para uma cadela chapada e bêbada*. Pq só ela me ouvirá


esta noite como uma lady scarpin decente. Apenas ela é mais honesta do que
o mais harmônico dos lares. A cachorra chapada e bêbada sabe como
ninguém onde mora a sacanagem deslavada e sonsa. Entende um velho triste
e sem coleira. Sabe que sinuca, uísque duplo e rolling stones curam qualquer
ressaca e adiam as outras dores para depois de auroras reinventadas.

*livremente inspirado em letra do mundo livre s/a,2007

AUTO-AJUDA PELO MÉTODO WONG KAR-WAI *

suar o amor correndo no parque, como sugere zed, corrida e leonard


cohen no ipod, "amor é água", sopra o policial em bicas dos “amores
expressos”, a película chapa 1994 de wong kar-wai, o cara de shangai e hong-
kong, aquele mesmo do “amor à flor da pele”, no qual os vestidos e a fumaça
dos cigarros falam mais do que todas as línguas de pentecostes; suar como o
personagem derretendo-se em água e vapores do outro lado do mundo, como
a garçonete maluquete que chacoalha juízo e esqueleto ouvindo “califórnia
dreams”; a mocinha linda e sound system, sabor gengibre, marinados
corazones ao molho de ovas esfarinhadas de peixe amarelo; suar o amor e sair
voando pela janela de bicicleta ergométrica; suar no ibirapuera e no parque da
água branca suar de novo as redundâncias amorosas todas; suar num estirão
do pina ao terminal de boa viagem; suar de olinda ao janga; suar do leblon ao
arpoador sem distrair a vista com as bundas, assim não vale, perde o sentido a
mandinga; suar os amores líquidos e as represas dos amores do passado; suar
uma baia de guanabara de amores em cardumes e mais uma lagoa rodrigo de
freitas de olhos de peixes mortos; fazer chover por todos os poros o amor que
fica, o amor platônico e o amor de pica; suar o amor com uma sopa de feijão
bem quente, seis horas da tarde, no hellcife de todas as glândulas; suar o amor
em teresina, com um prato de capote ao molho ou uma fina iguaria do cabaré
de beth cuscuz; suar, amigo, a derrama das nódoas por dentro, suar no
pedalinho, mas nada de suar para perder peso ou por esporte, falo suar, por
enquanto, para limpar-se dos amores sem futuro. A gente se vê, quem sabe,
em 2046.

*do livro "Tripa de cadela & outras fábulas bêbadas",ed.dulcinéia


catadora,sp, R$ 5 mangos
A GENTE SE VÊ - RETROSPECTIVA A PEDIDOS I

Em uma megalópole como São Paulo e outras tantas grandes cidades


brasileiras, haja encontros e desencontros, minha estimada Sophia Coppola.
Alguns não tão graves, acontece, outros infinitamente dolorosos, que nos
perturbam os sentidos, que fazem a gente maldizer os céus, os astros, o
destino.
Fica tudo na base do “a gente se vê”... E adeus!
Não que fosse acontecer um casamento ou algo do gênero a partir
daquele encontro, nada disso, mas foram encontros bonitos, fortes, que se
acabam ali mesmo, na poeira cósmica, numa tarde fria, em um café da manhã,
numa simples despedida.
“A gente se vê.” Pronto, eis a senha para o terror, o “never more”, o
nunca mais do corvo do escriba Edgar A. Poe.
A gente se vê. Corta para uma multidão no viaduto do Chá.
A gente se vê. Corta para uma saída de estádio lotado em dia de
decisão do campeonato.
A gente se vê. Corta para “onde está Wally”.
Nada mais detestável de ouvir do que essa maldita frase. Logo depois a
porta bate e nem por milagre.
Jovens mancebos, evitem essa sentença mais sem graça. Raparigas em
flor, esqueçam, esqueçam.
Melhor dizer logo que vai comprar cigarro, o velho king size filtro do
abandono. Melhor dizer que vai pra nunca mais. Melhor o silêncio, o telefone
na caixa postal, o telefone desligado, o desprezo propriamente dito, o desprezo
on the rock´s.
A gente se vê um carajo. Seja homem, troque de palavras, use o código
do bom-tom e da decência. A gente se vê é a mãe, ora, ora.
Como canta o Rei, use a inteligência uma vez só, quantos idiotas vivem
só...
Esse “a gente se vê” deveria ser proibido por lei. Constar nos artigos
constitucionais, ser crime inafiançável no Código Penal.
A gente se vê é pior do que a gente se esbarra por ai. Pior do que deixar
ao acaso, que jamais abolirá a saudade, que vira uma questão de azar e sorte.
Melhor dizer logo “foi bom, meu bem, mas não te quero mais”. YO NO
TE QUIERO MAS, como na camiseta mexicana que ganhei de una hermosa
chica. Dizer foi bom meu bem e pronto, ficamos por aqui, assim é a vida,
sempre mais para curta do que longa-metragem.
A gente se vê é a bobeira-mor dos tempos do amor líquido e do sexo
sem compromisso. A gente se vê é a mãe, aquela vaca, ora!
Seja homem, seja mulher, diga na lata.
Não engane a moça, que a moça é fino trato, que não merece desdém.
A fila anda para os dois, jogue limpo.
A gente se vê. Corta para uma multidão no show do ACDC no Morumbi.
A gente se vê. A gente se vê. Corta para a multidão no 1o de Maio no Campo
de Marte. A gente se vê. Corta para o formigueiro do Maracanã no Flamengo x
Grêmio. A gente se vê. Corta para a São João com a Ipiranga. A gente se vê.
Corta para um engarrafamento gigante na marginal do Tietê...
A gente se vê. Então aproveita e vai olhar se eu estou na esquina, com
teu coração de gelo-baiano de uma figa!

TEMPO DE HOMENS FROUXOS

Generosos leitores, deixo esta crônica de despedida de 2009, aqui


desligo os transmissores e agradeço a todos pelas visitas. Vou buscar novas
forças no Cariri de onde eu vim e nos mares donde passei. Em 2010 este
blog será finalmente menos arcaico e deve migrar de portal etc. Buenas
fiestas e entradas fuedas. Inté dias finais de janeiro. Fiquem com os deuses
que dançam!
Agora sim, com ou sem carapuças, la croniqueta TEMPO DE HOMENS
FROUXOS:

A prosa nada cabulosa da nossa távola redonda salta de mesa em


mesa, entre cavalheiros e damas, naquela madruga na taberna:
“Pois saibam todos vocês, a teoria da moça ao lado está mais certa que
boca de padre e mais justa do que boca de bode”, emenda Ailton, o garçom
pernambucano, de prima, sem deixar a peteca fazer gracinha pelos ares.
“Antes mesmo um bom canalha, com pegada, do que um macho frouxo
e vacilão”, exalta Carol, amplifica Maíra, declama Guta, acentua Luciana,
amacia Beth e Clarice gagareja com sua caipirinha de frutas vermelhas.
Era a tese da hora, porque bebedeira só é boa mesmo com uma tese de
costumes para a gente beliscar noite adentro.
Sem deixar um farelo de dúvidas sobre a mesa de acepipes, bar Filial,
madrugada de São Paulo, as meninas, agora em coro, decretam:
“Paz na terra aos canalhas de boa vontade, eles merecem nosso
crédito!”
No que o Coppola, o amigo calabrês sempre vestido de nuvens azuis em
corte de camiseta pólo, manda o seu mr. Sinatra antes que os sabiás das
quatro da matina se manifestem:
“Fly me to the moon
Let me sing among those stars…”, canta, como sempre, depois do décimo
chope.
As gazelas vão à lua e retornam divas mais radicais ainda para a
saideira clássica sob a paisagem de cadeiras levantadas e água com sabão
nos pés.
“Antes um bom canalha de ressaca do que um saudável bom moço
perfumado com a boca sempre cheirando a antisséptico”, Guta vai mais longe
ainda.
A tese ganha versões, puxadinhos semânticos, penduricalhos, novas
frases refeitas:
“Mais vale um cafa na mão do que dois playboys vacilões”.
“Nesses tempos de homens frouxos, quando não se pede mais ninguém
em namoro, a canalhice é o nosso parque de diversões”, Lu ataca novamente.
A tese se torna tão valiosa, uma obra aberta, que alguém anota em
guadanapos, como se fosse a ata da bebedeira. Fica como “pindura” para a
próxima farra.
“Mais vale um Paulo César Peréio na mão do que dois Tony Ramos com
depilação definitiva”, manda uma ex-feia que acaba de se consagrar musa-mor
da madruga.
Àquela altura não há mais ninguém feio no mundo. Nem mesmo um mal-
diagramado pela natureza como este cronista, que aprendeu, com o seu ídolo
Sérge Gainsbourg, que a beleza é passageira e a feiura é para sempre. Eis o
nosso mantra eterno, amém.

PRÓLOGO ON THE ROCKS PARA O LEITOR SALTA-PÁGINA

Saiu a 3a ediçao de mi noubella "Caballeros Solitários rumo ao sol


poente"(ed.do bispo).Pra celebrare, o prólogo,revisto e atualizado:
“Só o leitor que salta me interessa”, disse, pelo que entendemos do seu
escorreito castelhanês, o recém chegado à taberna dos cavaleiros
fatalistas.”Ao leitor que pula páginas me dirijo. Asseguro-te que leste todo o
meu romance sem te dares conta, te tornaste leitor seguido à tua revelia, à
medida que vou te contando tudo dispersamente e antes de iniciar o romance.
Comigo, o leitor que salta é quem mais se arrisca a ler seguido”, deu tintas
finais à tese-chiste, era de fala pouca, voz miúda, don Macedonio Fernández,
egresso da província de Buenos Aires.
Donde outro forasteiro, novidade em nuestra tertúlia, salta do seu
místico biombo com os segredos típicos daquelas criaturas que vêm de longe,
muito longe:
“Se vocês quiserem que eu conte, eu conto, mas têm de me pagar uma
bebida antes, para que eu possa molhar a garganta”, diz sr.o Steven Brust,
chamemos assim o distinto viajante.
Sabe-se que o sr. Steven Brust é um cara decente que toca bateria e
dumbek, aquele tambor árabe do dança do ventre, numa banda gypsi-punk. O
distinto cavaleiro, conforme a mística, sempre muda de nome para fugir das
groupies-motosserras, aquelas garotas selvagens que decepam todos os paus,
troncos e membros dos seus ídolos estrangeiros.
Na tempestade, Steven Brust estica a mão na janela com o seu copo
longo de uísque, enchendo-o de granizo até as bordas. Celebra a vida nos
trópicos, onde se diverte, deixando para trás o passado de menino criado num
castelo escuro. Agora tem o sol o dia inteiro para brincar com a própria sombra.
Steven também bebe previsíveis cowboys quando a melancólica besta-
fera do lusco-fusco embaça seus óculos verdes com a poeira do amor ou da
ira.
Steven Brust tem aquele jeitão de cigano húngaro, é o que dizem, mas
como nunca vi um cigano húngaro na minha frente, Steven continua a ser
apenas aquele escriba vagabundo que encontrei na secção Baixo Augusta do
Sandman´s Drinks, célebre no recinto por trocar boas histórias e solos de
dumbeck por bebida e sexo.O que mais o diverte nesta vida é contar, com a
musa da encomenda e a velha da foice a bafejarem prazos fatais no juízo,
pequenas biografias de assombrações nocturnas. Tínhamos a mesma
impressão sobre o mundo, além do mesmo ofício, pelo menos é o que me ficou
como areia especulativa na memória. “Anjos e demônios habitam as
coincidências”, disse a nuestra garota predileta, de cujos olhos saltavam
melancólicos peixes de água doce e aquela fagulha de beleza que habita a
alma dos esquizofrênicos.
Viejo cigano, te pago todas, nos vemos mais adiante na taberna do sr.
Knut, embora a síndrome de Korsakov, já tenha comido as beiradas do juízo.
Mas vamos devagar, amigo, temos todo tempo do mundo, deixemos que os
nossos personagens encham a caveira, nadem no seco -tarefas das mais
simplórias para estas pobres almas-, só assim arrancaremos deles um material
de primeira.Nos vemos.
Assinado: Don Augusto Sombra, biógrafo andarilho, San Pablo de
Piratininga, maio do ano da graça de 2006

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