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PESSOA
FERNANDO PESSOA' PORTRAIT (1983) - JULIO POMAR (1926) | FLICKR
@ N A T H A L I A A L V E S D C
SOBRE O CLUBE DE
LEITURA LITERATURA
DESCOMPLICADA
O Literatura Descomplicada é um clube criado
pela Nathalia Alves, uma leitora que teve sua
vida transformada pela literatura e quer
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@ N A T H A L I A A L V E S D C
QUEM FOI
FERNANDO PESSOA?
@ N A T H A L I A A L V E S D C
-2-
POEMAS
1
POEMA EM LINHA RETA
2
AUTOPSICOGRAFIA
3
ANIVERSÁRIO
4
MAR PORTUGUÊS
5
UNS, COM OS OLHOS POSTOS NO
PASSADO...
-3-
POEMAS
6
PRESSÁGIO
7
NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO
8
TODAS AS CARTAS DE AMOR…
9
O CEGO E A GUITARRA
10
TABACARIA
-4-
1
POEMA EM LINHA
RETA
@ N A T H A L I A A L V E S D C
5
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar
banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das
etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo
ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido
emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas
ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
@ N A T H A L I A A L V E S D C
8
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
2 - Autopsicografia 9
3
ANIVERSÁRIO
@ N A T H A L I A A L V E S D C
10
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há
séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma
religião qualquer.
3 - Aniversário 11
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme
através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo
frio…
3 - Aniversário 12
4
MAR PORTUGUÊS
@ N A T H A L I A A L V E S D C
13
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
4 - Mar português 14
5
UNS, COM OS OLHOS
POSTOS NO
PASSADO...
@ N A T H A L I A A L V E S D C
15
Uns, com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.
@ N A T H A L I A A L V E S D C
17
O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.
6 - Presságio 18
7
NÃO SEI QUANTAS
ALMAS TENHO
@ N A T H A L I A A L V E S D C
19
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
@ N A T H A L I A A L V E S D C
21
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
@ N A T H A L I A A L V E S D C
23
O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.
Cheguei à janela
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.
9 - O cego e a guitarra 24
10
TABACARIA
@ N A T H A L I A A L V E S D C
-25-
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
10 - Tabacaria 26
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e
esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por
dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de
pensar?
10 - Tabacaria 27
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de
gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que
tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do
que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant
escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao
pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da
cama;
10 - Tabacaria 28
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
10 - Tabacaria 29
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que
inspire!
10 - Tabacaria 30
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha
tirado.
10 - Tabacaria 31
(Se eu casasse com a filha da minha
lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à
janela.
10 - Tabacaria 32
Valeu a pena?
Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Fernando Pessoa
33