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Para a tradução simultânea PORTOGHESE

(em expressão brasileira)

Castelgandolfo, maio de 2008

O sentido de si e a aceitação do limite

1. Desorientação e busca de si

Para o homem contemporâneo não é fácil definir o sentido de si num contexto


cultural fragmentado e em vertiginosa mudança que parece condicioná-lo fortemente
e inibir a sua liberdade. Ele parece desorientado, incapaz de autonomia e de visão
crítica.
Revela-se frágil a sua capacidade de reação, onde ele manifesta mais essa
desorientação profunda é na dificuldade de definir si mesmo e o seu relacionamento
com o outro. A incomunicabilidade o isola, acentua a sua solidão, o obriga a buscar
obsessivamente uma estéril e incontentável "companhia" na relação com o objeto
comprado e rapidamente "consumido".
A cultura moderna em muitos aspectos tinha "sacralizado" o homem,
libertando-o dos "laços" que o impediam de ser plenamente “ele mesmo”. Contudo
hoje percebemos que essa "sacralização" produziu no homem a sua aniquilação, um
narcisista fechamento em si mesmo, a dolorosa incapacidade de colher por inteiro
toda a complexidade ínsita na sua própria existência.
Ele vive num conjunto social que não o contém e não o alimenta, porque não
consegue mais exprimir uma comunidade.
A sua individualidade tem dificuldade em vir a ser pessoa.
A sua é uma "noite" não só cultural, mas também "psicológica", feita de
angústias, de dores, de frustrações, de sofrimentos, de vazios.
O que caracteriza o transtorno psíquico do homem pós-moderno parece ser
um sofrimento indizível. Os “novos sintomas” emergem continuamente de
experiências que só é possível narrar de modo parcial e superficial.
Essa "incomunicabilidade" faz com que os novos distúrbios mentais sejam, em
muitos aspectos, impenetráveis.
A experiência subjetiva do sofrimento pode ser vivida numa forma indizível e
pode se tornar indecifrável, incompreensível quando ninguém escuta realmente este
grito ou o silêncio que atormenta, que dilacera o coração, que não concede trégua. É
o "inaudível", porque dificilmente aceitável1.
1
. Cfr. K. Jaspers, Psicologia delle visioni del mondo,Astrolabio, Roma 1950

714841950.doc 1.
2. Espiritualidade de comunhão e busca do sentido de si

Uma espiritualidade – vista também a partir da perspectiva de um estudioso


ateu ou leigo – na medida em que "intervém" na vida de um homem, orientando-o
ou modificando radicalmente o seu estilo de vida e as suas convicções, constitui uma
realidade não secundária e de real valor não só segundo a vertente puramente
antropológica, muito mais ainda num plano especificamente psicológico. Partindo
dessa premissa, é legítimo fazer algumas perguntas. Como a espiritualidade de
comunhão concebe o indivíduo e a sua realização? Através de que paradigmas
conceituais ela pode contribuir, no âmbito psicológico, como suporte ao homem
contemporâneo na busca do “sentido de si”?
Para o homem de hoje, uma das expressões mais típicas da dificuldade de
chegar ao sentido de si parece ser a não aceitação do limite.
O assunto do limite logo evoca Jesus abandonado.
Para Chiara, Jesus crucificado e abandonado, como medida do “amor
verdadeiro”, do extremo dom de si, da completa e incondicional aceitação do limite,
é “o antídoto para a desunidade” entre os homens, é o remédio que sana cada dor,
que recompõe a separação, o conflito.
Chiara identifica no limite da condição humana, um limite com forte valência
psicológica (sofrimento, vazio, fracasso, tristeza), o obstáculo mais importante para a
realização de si na comunhão com o outro. Todavia, indica na aceitação desse limite
a possibilidade da sua superação, seguindo o exemplo do homem novo, de Jesus
crucificado e abandonado. A intuição de que a aceitação do limite é a porta de
ingresso para a sua superação não é desconhecida pela psicologia do século
passado.
“O grito de abandono que ecoa sem obter resposta audível – segundo F.
Dolto – torna-se o modelo da palavra de amor e de desejo para os limites da
2

“articulação”, para os limites do som. (...) Este grito é, então, uma invocação para
que alguém intervenha e socorra”.
A partir deste momento extremo, onde tudo fala de fracasso, de
esfacelamento físico e psíquico, um grito tão inesperado e misterioso torna-se a
revelação da essência mais profunda do ser humano: o ser em si mesmo relação e
transformado em relação por um Outro.
Ao gesto de gritar – afirma E. Severino 3 – estão ligados os aspectos decisivos
da existência humana. É típico do homem recolher-se ao redor do próprio grito para
reatar a trama da existência.

2
. Cfr. La psicanalisi del Vangelo, Rizzoli 1978
3
. E. Severino, Il grido, in Il parricidio mancato, Adelphi 1985

714841950.doc 2.
3. Auto-realização e aceitação do limite

Segundo Freud, como sabemos, a saúde mental de um indivíduo está


fortemente ligada à sua capacidade de aderir à "realidade". O desenvolvimento
psicológico da criança será fortemente determinado pela sua capacidade de aceitar
as limitações e as normas colocadas pelo pai, como margens para a relação afetiva
com a mãe. A adesão ao princípio de realidade se delineia assim como a passagem
nodal para uma adequada evolução dos relacionamentos interpessoais e para um
equilíbrio psíquico maduro.
A adesão à "realidade", como critério de maturidade psíquica, anima também
a abordagem da "iconoclastia" da religião por parte de Freud 4. Ele afirma que o
homem projeta em Deus um desejo arraigado de onipotência, que é
sistematicamente frustrado e contrariado pelo encontro com o "real". Desse modo a
ilusão de um Deus onipotente permite que o homem compense a frustração causada
pela própria incancelável impotência e o consola em relação a uma realidade que
continuamente o "limita".
Esta destruição da imagem de Deus, esta atitude decididamente
"iconoclástica", exibida pela psicanálise, mais do que um ataque irreverente à
religião, pode ser interpretada como uma tentativa legítima leiga de “purificá-la" de
qualquer tipo de tentação idolátrica 5. Freud evoca a "realidade", a aceitação
completa sem falsas ilusões da própria humanidade, a aceitação desencantada de
uma vida "limitada", é uma condição insuprimível para atingir não só a maturidade
psíquica, mas, paradoxalmente, também a religiosa.
A convicção, segundo a qual a aceitação do limite representa o elemento
constitutivo do equilíbrio psíquico, está fortemente presente em Jung.
A experiência do limite, vivido e aceito por amor, é considerada por Jung o
"símbolo" por excelência6. Ele acaba afirmando que, também no plano psicológico, a
aceitação do limite não é reação passiva e masoquista submissão, mas pelo
contrário, é manifestação de uma grande força e dignidade, capazes de posicionar
"além" do limite quem é por ele esmagado.
A coragem de se expor à derrota e a determinação de aceitar e "atravessar" o
limite se exprimem como atitudes que fundamentam a saúde mental de um
indivíduo. Vice-versa, a rejeição da derrota e a não aceitação do limite criam uma
personalidade psicologicamente perturbada. Quem exprime com clareza essa
convicção é Frankl. Ele afirma que neurótico é quem não consegue assimilar a
inevitabilidade da morte, a ferida da derrota, a frustração do fracasso. Assim sendo,
o seu obsessivo controle da realidade e a sua espasmódica busca de segurança o
4
. Cfr. M. Aletti, Psicologia, psicoanalisi e religione, op. cit.; P. Ricoeur, Dell’interpretazione.
Saggio su Freud, tr. it., Il Saggiatore, Milano 1965.
5
. Cfr. S. Freud, Psicoanalisi e fede: carteggio col pastore Pfister, op. cit.
6
. Cfr. S. Cola, Morte e resurrezione, op. cit.

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impedem de ser autenticamente criativo e de conceber a vida como uma incessante
“adaptação criativa”7.
Perls, seguindo as pegadas de Frankl, afirma que a experiência do sofrimento
é uma passagem obrigatória de todo o processo de crescimento. Como conseqüência
disso, a atitude mental de "abertura" e até de "abandono" à dor, promove o
crescimento e uma rápida superação da dor em si. Pelo contrário, a atitude de
"fechamento" e de "resistência" ao sofrimento, bloqueia o crescimento e alimenta os
sintomas neuróticos8.
Também para Frankl o beco sem saída, o fracasso, são situações concretas
nas quais o indivíduo é "desafiado" pela realidade, é impelido a “se transcender”, a ir
"além". Colocado diante do próprio destino, o homem tem sempre algo em seu
poder. Ele tem a possibilidade de criar, de experimentar escolhas para ele inéditas,
de ativar energias e potencialidades adormecidas, de elaborar novos significados 9, de
acionar a transformação da própria personalidade, como diz May 10.
Até o “ter que morrer” pode ter, segundo Kubler-Ross, a extrema função de
impelir ao desenvolvimento, o último teste diante da vida 11.
Bruner afirma que inclusive os limites biológicos impostos ao homem pela
natureza constituem um potente estímulo para a invenção, para a busca, para o
progresso cultural. Vista a partir dessa ótica, a cultura pode ser entendida como uma
espécie de “prótese” mediante a qual os seres humanos são capazes de superar ou
redefinir os “limites” impostos pela natureza. Portanto, se a biologia representa “o
limite”, a cultura representa o poder humano de transcender esse limite. Por isso,
Bruner convida a concentrar a nossa atenção não tanto nos limites biológicos, mas
sobretudo na criatividade cultural do homem, que sabe ir "além"12.
Se ficarmos dentro de um horizonte psicológico unipessoal e intrapsíquico, o
limite se manifesta ao homem na sua condição e sua história, por meio de uma
daquelas experiências que o expõe ao risco da frustração, da derrota, de uma grave
perda. A não aceitação deste limite produz o bloqueio evolutivo e a patologia
psíquica.
Se, superando a perspectiva unipessoal, nos colocarmos numa dimensão
psicológica relacional, na qual o indivíduo se experimenta como sujeito que constrói
em conjunto relações com outros sujeitos, então o limite será vivido como
dificuldade para "reconhecer" as diferenças do outro e a “ser reconhecido” pelo outro
na manifestação da própria específica identidade. Os estudiosos da comunicação
humana, os teóricos das relações objetuais e do Eu (si-mesmo), os expoentes da
7
. Cfr. E. Becker, Il rifiuto della morte, tr. it., Paoline, Roma 1982.
8
. Cfr. F.S. Perls, R.F. Hefferline, P. Goodman, Teoria e pratica della Terapia della Gestalt, tr.
it., Astrolabio, Roma 1971.
9
. Cfr. V.E. Frankl, Alla ricerca di un significato della vita, tr. it., Mursia, Milano 1990.
10
. Cfr. R.May,L’arte del counselling, Astrolabio, Roma 1991
11
. Cfr. Kubler-Ross, La morte e il morire, cittadella, Assisi (Pg) 1976
12
. Cfr. J. Bruner, La ricerca di significato. Per una psicologia culturale, op. cit.

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abordagem sistêmica, os pesquisadores que analisaram a matriz intersubjetiva da
mente, nos ensinaram, cada um com argumentações diferentes, que a patologia
psíquica de um homem tem a sua origem num angustiante "vazio": o não
"reconhecimento" da própria identidade, da própria específica diversidade, por parte
de pessoas significativas, do contexto relacional que lhe serviu de fundo durante as
etapas evolutivas.
Por outro lado, o não ter sido reconhecido pelo outro expõe, por sua vez, o
indivíduo à dificuldade de reconhecê-lo, de “vê-lo”, e isso, como é evidente, constitui
mais um elemento de sofrimento mental, outra fonte de desajuste e de
conflitualidade. Assumir o limite ínsito na dificuldade, totalmente relacional, de
reconhecer o outro e de ser por ele reconhecido, significa sustentar a identidade do
outro e alimentar a própria, equivale a tornar possível a reciprocidade relacional,
para construir a forma mais “sadia” de interação humana.
A resposta da doutrina de Chiara não se detém aqui, mas abre um novo
horizonte.
Destaca a existência de uma forma ainda mais “evoluída” e complexa de vida
relacional: a comunhão. Ela se baseia num "novo" modo de viver a reciprocidade que
poderíamos definir reciprocidade comunional. As características psicológicas e as
implicações emocional-afetivas da reciprocidade comunional são significativamente
diferentes daquelas que caracterizam a mais genérica reciprocidade relacional.
Esta última, de fato, se fundamenta no recíproco reconhecimento dos
parceiros relacionais, na interpretação e na leitura da mente um do outro, na
empatia, na aceitação das diferenças recíprocas, mas não implica necessariamente a
incondicionada acolhida daquilo que do outro é "lido" e "interpretado" ou a total
disponibilidade para partilhar o que é "reconhecido" no outro. A reciprocidade
comunional, ao invés, não só implica o reconhecimento e a aceitação recíprocas, mas
presume a “total” hospitalidade do outro, a inclinação à comunhão plena, a recíproca
pertença, a abertura à partilha total, a radical disposição ao dom gratuito de si.
No horizonte psicológico que se abre por meio da relação de comunhão o
limite se manifesta não tanto, como antes, na falta de "reconhecimento", mas
sobretudo na falta de "correspondência". Num cenário implícito, constituído pela
recíproca e radical disponibilidade à comunhão, emerge a “não-correspondência” do
outro à minha abertura, se delineia a sua rejeição a corresponder, se manifesta o
seu fechamento, a sua "fuga". A intencionalidade e a ação do outro não são já
“pressupostos”, mas passam despercebidos à dinâmica da comunhão. Eu faço a
trágica experiência de estar exposta a um novo limite, isto é, à frustração e à solidão
que derivam do fato de não ser "correspondida" com o mesmo radicalismo, na minha
mesma disposição à abertura comunional.
A aceitação do limite, neste caso, se concretiza em doação de si ao outro,
doando-lhe a minha expectativa desiludida, a minha expectativa não correspondida,

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de ter uma “base” implicitamente partilhada, que, porém, não conseguiu explicitar-
se. Em definitiva, trata-se de ser um dom gratuito de si a fim de que o outro possa
emergir nos tempos, nas modalidades e nas diferenças com as quais exprime a sua
unicidade, a sua identidade individual.
É evidente, de resto, que essa “não-correspondência” pode inesperadamente
ser originada também por mim. Apesar da minha inicial disponibilidade, a
reciprocidade comunional pode improvisamente encontrar em mim mesma, na minha
desmotivação, no meu fechamento, no meu debruçar-me sobre mim mesmo, o
bloqueio psicológico que impede que se desenvolva. Também aqui, a aceitação do
fracasso, que dessa vez se origina em mim, pode vir a ser a atitude decisiva para
reatar novamente aquela trama relacional, potente, mas ao mesmo tempo delicada,
frágil, que é a comunhão.
A aceitação do limite, que se refere ao relacionamento consigo mesmo,
produz o crescimento pessoal e a capacidade de adaptar-se à "realidade" da própria
vida. A aceitação do limite, que se refere à relação com os outros, dá lugar a
relações mentalmente sadias, capazes de alimentar e sustentar o si-mesmo de cada
parceiro. Enfim, a aceitação do limite, que se manifesta na ausência de
"correspondência", torna possível a reciprocidade comunional e, com ela, a mais
elevada forma de relação entre os homens, a comunhão, onde finalmente a pertença
e individualização, unidade e multiplicidade, se integram em toda a sua plenitude.
Para realizar essa forma "evoluída" de relação, é preciso recuperar e
repercorrer as mesmas dinâmicas psicológicas daquele homem novo, daquele
homem-comunhão, que Cristo mostrou na cruz e que agora esperam ser
compreendidas na sua totalidade pelo saber da psicologia. Revelado o homem-
natureza, descoberto o homem-relação, a psicologia é chamada a confrontar-se
agora com o homem-comunhão que realiza a si mesmo, anulando-se, doando-se
gratuitamente ao outro e tornando possível assim a relação de comunhão, com a
qual a família humana pode alimentar a esperança quanto ao próprio futuro e a força
para estar além da densa escuridão que hoje a envolve e impede o seu caminho.

4. O encontro com o outro na espiritualidade de comunhão

Mas de que comunhão estamos falando? Não é uma comunhão que resulta de
um conjunto anárquico de irredutíveis individualidades, as quais fogem de uma
experiência de real "pertença". Nem mesmo de uma comunhão que não reconhece a
dignidade do indivíduo e que absorve o eu no “nós”, sacrificando a individualidade
até ignorá-la totalmente.
Queremos mesmo nos referir a uma comunhão "diferente", onde a
individualização e a pertença não se contrapõem, mas se integram plenamente; onde
cada um exprime a própria identidade sem negar o outro, mas abrindo-se para o

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encontro com ele; onde a pertença não mortifica a diversidade, mas a reconhece e a
acolhe no seu desdobramento multiforme.
Na espiritualidade de comunhão a minha individualidade alcança a sua
plenitude e a sua realização se estiver totalmente aberta ao outro. O outro que
encontro nunca é um “qualquer e genérico” outro. Cada indivíduo, de fato, é sempre
expressão de uma palavra, de uma singular e originária Idéia, que o Amor, teve ao
chamá-lo à vida13.
Chiara enfatiza que Jesus, no abandono extremo da cruz, “separando-se de
Deus, permaneceu um homem particular (...), sem deixar de ser Deus, divinizou o
particular (...) e isso demonstra que num homem particular pode estar contido o
Universal”14.
Neste "inédito" modelo antropológico, cada identidade não se afirma mais
impondo-se, negando que os outros sejam diferentes ou reduzindo-os a si,
devorando os filhos, como no mito de Crono, ou matando o pai, como no mito de
Édipo, muito importante em Freud.
O homem novo, que se delineia e que ajuda a humanidade a dar um decisivo
salto evolutivo, afirma a si mesmo na absoluta “doação de si”; é “não-ser” em favor
do outro, numa relação com o outro na qual ele se faz "dom" gratuito e se torna
termo de reciprocidade. Dentro dessa relação, as diferenças não emergem para
contradizer o outro, para competir com ele, mas para cooperar na sua edificação.
Cada diferença é a favor do outro e, por isso, é continuamente transformada em
"dom".

5. A reciprocidade e o dom de si
Uma "especial" forma de relação que "definimos " reciprocidade comunional,
se apresenta essencialmente como “edificação recíproca”, como recíproco dom das
próprias diferenças. Nesta “recíproca interconexão” de dons, cada identidade realiza
e exprime si mesma sem por isso negar a comunhão. Assim se traça um paradigma
relacional novo, em virtude do qual podem coexistir e se desenvolver juntas a
personalidade individual e a comunhão.
Numa relação de reciprocidade, entendida nesses termos, a centralidade da
comunhão não elimina, nem assume em si, a centralidade da personalidade
individual. A experiência do “nós”, onde chega a reciprocidade comunional, não
cancela, nem absorve em si a diferença e a distinção por meio das quais se exprime
a identidade única e irrepetível do eu. Abrindo-se para o outro, numa abertura
acolhedora que se faz dom de si, até não-ser-para-o outro, o eu passa pela
experiência do nós para depois reapropriar-se de uma identidade mais enriquecida,
13
. Cfr. H. Blaumeiser, “All’infinito verso la disunità“. Considerazioni sull’inferno alla luce del pensiero
di Chiara Lubich, in “Nuova Umanità”, 1997, 113, pp. 543-570.
14
. C. Lubich, testo inedito del 1949 citato in S. Cola, Morte e resurrezione: la dinamica del “saper
perdere” per lo sviluppo integrale della persona, in “Nuova Umanità”, 2001, 134, p.235.

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qualitativamente diferente da primeira, "individual" em maior medida, pois é capaz
de conjugar a afirmação plena de si com a doação de si.
Focalizando com extrema convicção o evidente valor psicológico dessa nova
dinâmica relacional que une o eu ao outro, Chiara Lubich afirma: «o meu amor não
somente confirma o outro no seu ser distinto de mim, igual a mim, transcendente
como eu, mas “me faz ser eu”. Só o amor se dá conta da diversidade (ou distinção),
salvando a igualdade e tornando possível a unidade» 15.
A espiritualidade de comunhão concebe um homem que plasma a própria
identidade e a enriquece de sentido na medida em que se doa ao outro e com ele se
compromete em um movimento de recíproco "reconhecimento". A reciprocidade de
que estamos falando não se fundamenta no intercâmbio do dar e ter, não é a
reciprocidade da amizade, que não sabe abrir-se ao “não-amigo”.
É uma reciprocidade que envolve “cada” outro e que é gratuita, não espera
restituição ou recompensa, é "incondicional". É uma reciprocidade que acolhe por
inteiro a fragilidade da relação e da fraqueza dos seus protagonistas, transformando
esses limites em outras experiências de doação. A possibilidade de doar, de fato,
abre duas perspectivas de sentido. Uma se refere à dinâmica da reciprocidade em si,
a outra à realização individual.
O dom se torna possível não só graças à "diversidade", mas também graças
ao seu limite, à sua necessidade, à sua deficiência ou lacuna. Não pode existir dom
se não for em forma de resposta a um limite que o outro apresenta. Então, é assim
que o limite não só torna possível o dom, mas se torna também um aspecto saliente
e indispensável do recíproco relacionar-se. De muitas maneiras precisamos um do
outro. Precisamos de "algo" que não possuímos e que também é necessário para que
a nossa vida se nutra, cresça, assuma forma.
Este "algo" nos remete continuamente aos nossos limites, é a marca
inequívoca da nossa recíproca dependência, da nossa comum dependência do dom
que recebemos do outro.
Outra perspectiva - partilhada por muito autores como Fromm, Nuttin e Frankl
– que o dom nos propõe é a da realização individual. O autêntico dom se caracteriza
sempre pelo fato de que o doador perde definitivamente o que livremente doou. No
dom, com efeito, o que vem "sacrificada" é sobretudo a intenção da troca, a
reivindicação do que me pertence, do que é "parte" de mim e renuncio a tudo isso
de modo definitivo para doar-me ao outro. Este "sacrifício" de si, da própria intenção
de recompensa, não deve ser considerado como uma subtração, nem como uma
"diminuição" de si, mas pelo contrário é a plena experiência do total "possesso" de si
mesmo, como afirma Jung16.

15
. C. Lubich, Lezione per la laurea Honoris Causa in “Lettere” (Psicologia). Malta 26 febbraio 1999, in
“Nuova Umanità”, 1999, 122, p. 186.
16
. Cfr. C.G. Jung, Il simbolismo della Messa, Boringhieri, Torino 1979.

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De fato, ninguém pode doar algo que não possui. Visto que no dom,
paradoxalmente, experimento a posse de mim, do que com efeito sou, dos recursos,
das capacidades que fazem parte de mim e que me constituem na minha singular
individualidade. O doar-me ao outro, assim, me revela a mim mesmo, permite que
eu me conheça, que experimente o que realmente sou, que transforme em realidade
tangível o que só potencialmente estava encerrado em mim. De acordo com Silvano
Cola poderia afirmar que o dom e a “perda de mim”, inesperadamente, me fazem ser
o que não sabia ser e de tal modo fazem com que eu me “realize” e me exprima
como presença única e irrepetível17.
A este propósito, Chiara Lubich afirma que “eu sou maximamente pessoa
quando livre e conscientemente afirmo o outro arriscando a minha vida (...). Em
outros termos, ninguém é tão Eu, tão pessoa, como aquele que, para salvar a
transcendência do outro, transcende a si mesmo, negando-se (...). É este o mais
autêntico "humanismo" que se pode conceber e atingir 18.
O humanismo de que Chiara Lubich fala não só introduz um horizonte de
intensa luminosidade na “noite escura” da cultura ocidental, mas nos deixa intuir
que, além de muitos desvios da pós-modernidade, a psicologia contemporânea está
por muitos motivos "incubando" este “novo humanismo”. Trata-se de uma
"incubação" que é possível imaginar, ainda que num estado incipiente, sobretudo
através daquelas correntes de pesquisa que indicam na relação com o outro, na
experiência de reconhecer e de ser reconhecido, na dinâmica da reciprocidade alguns
dos principais traços salientes e constitutivos da vida mental de cada indivíduo.

6. Psicologia e comunhão
Depois que o humanismo renascentista havia exaltado o homem, colocando-o
no centro do universo, depois que o iluminismo havia engrandecido a razão humana
a ponto de considerá-la um "deus", Freud teve o grande mérito de recordar ao
homem que é "somente" um homem, colocando-o diante dos problemas produzidos
pela civilização, focalizando as suas irracionalidades e as múltiplas interferências de
uma natureza que, à surdina, o limita e o orienta.
Não menos importante foi a contribuição, oferecida neste sentido, pelo
behaviorismo e pelo cognitivismo, que souberam destacar com eficácia os
condicionamentos sofridos pela mente humana nos seus processos de aprendizagem
e na elaboração dos seus modelos de conhecimento. Após o segundo conflito
mundial, quando o homem aparece com toda evidência profundamente ofendido na
sua dignidade, prostrado pela desconfiança em si, a psicologia humanística recorda

.
17
Cfr. S. Cola, Morte e resurrezione, op. cit.
.
18
C. Lubich, Lezione per la laurea Honoris Causa in “Lettere” (Psicologia). Malta 26 febbraio 1999, op.
cit., p. 187.

714841950.doc 9.
que a humanidade sempre teve um potencial de criatividade e de adaptação capaz
de lhe fazer recuperar a esperança numa sociedade melhor.
Na época do pós-modernismo, quando o indivíduo se dobra de modo
narcisista sobre si mesmo e se torna "órfão" do outro, a psicologia dos últimos
séculos declara, com rara segurança, que a mente é relacional e que o
relacionamento com o outro fundamenta e dá sentido à identidade psíquica de cada
indivíduo19. Não só a mente é relacional, mas a sua relacionalidade se nutre
constantemente de uma dinâmica impregnada de reciprocidade. Cada mente
subsiste e se organiza na medida em que estabelece contatos intersubjetivos, ativa a
“leitura” de outras mentes, experimenta a "interpretação" de outras mentes numa
dinâmica relacional de reciprocidade20.
Nos últimos anos as neurociências demonstraram que o nosso sistema
nervoso é construído para poder “se encaixar” naquele dos outros seres humanos, a
ponto de poder fazer a experiência dos outros “como se” estivéssemos na sua pele 21.
A vida mental de cada indivíduo humano é fruto de uma “matriz intersubjetiva”, isto
é, de uma constante co-criação, de um contínuo diálogo com a mente dos outros 22.
No início do novo milênio, podemos afirmar com certeza que o “centro de
gravidade” da psicologia saiu do intrapsíquico para o intersubjetivo. A matriz
intersubjetiva, a recíproca interação da nossa mente com a mente dos outros, se
revela fundamental, indispensável. Essa matriz está presente desde o nascimento da
psique de cada indivíduo, é o que evidencia Stern nos seus estudos sobre os recém-
nascidos. Braten faz a hipótese de que ele nasce com um outro virtual na mente.
Podemos deduzir que a primeira relacionalidade no íntimo do indivíduo.
A matriz intersubjetiva está para a nossa vida mental como o oxigênio para os
nossos pulmões. Nós respiramos o oxigênio sem ser conscientes, sem perceber que
na falta dele pararíamos logo de viver.
Todavia, a reciprocidade que fundamenta a matriz intersubjetiva da mente
não constitui um horizonte “último”, suficiente para conter a complexidade e as
potencialidades do indivíduo humano. O desafio que hoje aguarda a psicologia
consiste não só em colher e teorizar, como já foi feito, a reciprocidade que faz nascer
a intersubjetividade, o reconhecimento do outro, a leitura e a interpretação das
mentes, mas também aquela forma particular de reciprocidade, ainda inexplorada,
que torna possível a comunhão entre os indivíduos e que se enraíza no dom de si, na
gratuidade, na acolhida sem condições.

19
. Cfr. S.A. Mitchell, Il modello relazionale. Dall’attaccamento all’intersoggettività, tr. it., Raffaello
Cortina, Milano 2002; D.J. Siegel, La mente relazionale. Neurobiologia dell’esperienza interpersonale, tr. it.,
Raffaello Cortina, Milano 2001.
20
. Cfr. D.N. Stern, Il momento presente, op. cit.
21
. ?
Cfr. G. Rizzolatti, C. Sinigaglia, So quel che fai. Il cervello che agisce e i neuroni specchio, Raffaello
Cortina, Milano 2006.
22
. Cfr. J. Bruner, La ricerca del significato. Per una psicologia culturale, tr. it. Bollati Boringhieri, Torino
1999; D.N. Stern, Il mondo interpersonale del bambino, tr. it., Bollati Boringhieri, Torino 1998.

714841950.doc 10.
Em outros termos, o desafio consiste não só em reinterpretar e redefinir a
realidade individual e intrapsíquica, não só aprofundando e explicitando mais a
perspectiva relacional e intersubjetiva, mas sobretudo orientando com maior decisão
a pesquisa da psicologia tanto para uma forma mais "elevada" de relação humana
que é a comunhão, quanto para aquela especial forma de reciprocidade que a torna
possível e que antes chamamos reciprocidade comunional.
Quais são as atitudes mentais que tornam possível a comunhão e quais as
chaves de leitura psicológicas que nos permitem compreendê-las de modo
adequado? Que elementos psicológicos, caracterizam a reciprocidade comunional?
Aquela da comunhão pode ser considerada, no plano psicológico, a mais elevada
expressão da realização individual? Sobretudo quais são os bloqueios emotivos e os
elementos conflituosos que se opõem à comunhão entre os indivíduos humanos?
Abrindo-se para o confronto com essas questões, a psicologia pode encontrar
um ponto de referência importante na espiritualidade de comunhão. Dela podem
emergir indicações preciosas e decisivas para "orientar" a busca que antes
desejamos. A espiritualidade de Chiara, de modo especial, focaliza a existência de
um forte nexo entre comunhão e aceitação do limite, entre comunhão e doação
desinteressada de si.

Traduzione di Iracema Amaral, rivista da


Conceição, Ufficio Traduzioni, ****
714841950.doc, 27/05/2008

714841950.doc 11.

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