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A psicologia de ligação
e o psicólogo de
referência em
psicologia hospitalar
HELOISA BENEVIDES DE CARVALHO CHIATTONE
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recursos internos e externos que possui. Portanto, a dor do adoecer concretiza-se pela
confrontação com obstáculos e restrições no decorrer da existência e estes fazem parte
de nossa facticidade, constituindo os limites pessoais na vida de todo ser.
Somos vivos, mas também mortais. Vivemos e morremos, de certo modo simul-
taneamente, pois a cada dia que passa nossa existência tanto vai se ampliando quanto se
tornando mais curta. No decorrer de nosso existir caminhamos, a cada dia, para viver
mais plenamente, assim como para morrer mais proximamente. E no adoecer, a dor
se dá exatamente pela intensidade dessa proximidade com a possibilidade de morrer
(Forghieri, 1984).
É importante considerar que, ao adoecer, o paciente descobre sua característica
fundamental: o ser no mundo, mas também a possibilidade de não estar mais-com-os-
-outros (Olivieri, 1985). O homem é um vir-a-ser que vivencia sua realidade de forma
subjetiva e a partir de um caráter pessoal, em que se baseia a significação que dá ao
mundo, bem como à experiência da doença e do ser-doente.
Dessa forma, além da dor física, o paciente vê-se enredado pela dor psíquica
– a dor da perda da saúde. E a dor sentida com mais intensidade não é a dor que a
doença traz, mas a de saber-se doente, de perder a condição de sadio (Coelho, 2001).
O adoecer transforma a pessoa de sujeito de intenções em sujeito de atenção (Gala e
Bressi, 2000).
Neste sentido, não há um doente efetivo, mas um projeto em andamento e um
tempo vivido pelo ser, com possibilidades: vitórias ou derrotas (Olivieri, 1985).
É real que, ao adoecer, além da dor física, o paciente vê-se rodeado por dor emo-
cional, “a dor da perda da saúde”. No entanto, a dor sentida com mais intensidade não
é a dor que a doença traz, mas é a de saber-se doente, de perder a condição de sadio
(Coelho, 2001).
Assim, o adoecer traz consigo a mudança da condição de saúde para a de doente.
E após o diagnóstico, o indivíduo sente-se ameaçado e muitos sentimentos são sen-
tidos e vivenciados. A doença acarretará uma parada no tempo interior do paciente
frustrando sonhos, projetos e expectativas futuras. Essa experiência poderá ser muito
perturbadora, acarretando grande insegurança e ansiedade na sua vida (Chiattone e
Sebastiani, 1991).
Dessa forma, em toda perda que ocorre na vida do indivíduo, é necessário um
processo elaborativo, que também é acompanhado por um processo de enlutamento.
O luto, portanto, tende à superação, caracterizando-se como um processo de cicatri-
zação doloroso, mas necessário, em que ocorre a despedida de uma situação para que
o indivíduo possa se adaptar à nova realidade – a de ser doente (Coelho, 2001).
As reações ao adoecer podem seguir estágios sequenciais, tais como proposto por
Bowlby, Parker e Kubler-Ross e discutidas por Coelho, em 2001, considerando-se que
o processo de enlutamento pela perda da saúde segue estes mesmos estágios.
Acresce-se o fato que o luto pela perda da saúde pode ser elaborado de forma
normal ou patológica, sendo esta última aquela em que pacientes e familiares utilizam
formas desadaptativas ou recursos negativos de enfrentamento na situação vivida no
adoecer.
Neste contexto, pode-se diferenciar o luto normal do patológico, já adaptado na
tabela a seguir para a realidade da perda da saúde (Coelho, 2001).
O Modelo de Psicologia de Ligação surge então como uma estratégia para rede-
senhar o trabalho e promover a qualidade dos serviços em psicologia hospitalar. Entre
as vantagens do modelo podemos citar:
– o planejamento de serviços;
– o estabelecimento de prioridades na assistência;
– a redução da duplicação dos serviços;
– a geração de intervenções mais criativas;
– a redução de intervenções desnecessárias pela falta de comunicação entre
os profissionais.
Se o caminho parece bastante coerente, ainda temos, a meu ver, um longo per-
curso para atingi-lo. Vejamos e façamos uma breve reflexão sobre o cenário atual em
Psicologia e em Psicologia da Saúde e Hospitalar.
Dados de 2010 apontam que somos 236.100 psicólogos em exercício profissio-
nal no país. Nos últimos quatro anos, a proporção de psicólogos no interior (48%)
superou a das capitais (32%) (Bastos, Gondim e Rodrigues, 2010). No Brasil, a força
de trabalho na saúde compreende 1,5 milhão de profissionais da saúde registrados em
conselhos profissionais. A rede do SUS é o principal empregador do país: 52% dos
enfermeiros; 44% dos médicos; 27% dos dentistas; 11% dos farmacêuticos e 10%
dos psicólogos são funcionários públicos.
É interessante constatar que as maiores articulações de nossa categoria profissio-
nal nos anos 1980 foram com o campo da saúde, o que ampliou significativamente (e
de forma mais sistemática) o ingresso de psicólogos no campo das políticas públicas
no Brasil (Macedo e Dimenstein, 2011). No período de 1976 a 1984, a taxa de cresci-
mento dos empregos no setor de saúde pública foi de 21,47%, quase a mesma dos em-
pregos para os médicos-sanitaristas (Dimenstein, 1998). No final da década de 1990, a
categoria profissional de psicólogo foi a que teve mais contratações pelas instituições
públicas de saúde.
No entanto, é curioso analisar o processo na vertente da Psicologia. Em pesquisa
realizada, em 1988, pelo CFP, 60,9% dos psicólogos inscritos e ativos atuavam em
consultórios particulares (Conselho Federal de Psicologia, 1988). Em 2004, também
o CFP indicou que 55% dos psicólogos realizavam atendimento clínico individual ou
em grupo, porém não mais restrito ao consultório particular, mas também em servi-
ços públicos de saúde (Psi – Jornal de Psicologia, 2004). Apesar de a formação buscar
habilitar o aluno para atuar em várias áreas, os psicólogos continuavam tendo uma
formação centrada no modelo clínico-liberal, com a priorização do atendimento indi-
vidual em consultório, norteado por conhecimentos e procedimentos especializados.
Quando se transpõe essa reflexão para a área da saúde, percebemos que, apesar de
algumas exceções, ainda há o deslocamento da psicologia clínica para a saúde, a diver-
sificação de setores de atuação e de serviços e a mera transposição para o ambulatório,
a unidade básica de saúde, o hospital, entre outros, do modelo clínico tradicional,
centrado no atendimento psicoterapêutico individual/grupal e restrito ao consultório.
Em interessante estudo realizado por Boarini, em 1996, o autor aponta que os
psicólogos que atuavam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) demonstravam não
ter clareza dos limites de sua intervenção na área da saúde. Os psicólogos apontaram
que os conhecimentos que lhes foram transmitidos na universidade são os grandes
responsáveis por suas atuações, já que eram fragmentados, com uma visão de mundo
elitista e compostos de um ideal de profissão liberal, que provavelmente deveriam
prepará-los para o trabalho em consultório.
Em síntese, observamos que, apesar de a Psicologia atualmente pertencer à área
da saúde e do aumento do número de psicólogos que atuam no SUS, a formação do
psicólogo continua sendo efetivada com fortes resquícios do mesmo modelo da época
de sua criação.
A própria ABEP definiu, em sua Oficina Nacional de 2006, princípios norteado-
res para a área:
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