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Desenvolvimento
Gerencial do SUS
COLETÂNEA DE TEXTOS
MINISTÉRIO DA SAÚDE Formação de Tutores
Ministro: ALEXANDRE PADILHA Alba Regina Silva Medeiros
Aluísio Gomes da Silva Júnior
Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde Fátima Ticianel Schrader
Secretário: MILTON DE ARRUDA MARTINS Geny Catarina Francisca Rodrigues Lopes
Júlio Strubing Müller Neto
Diretora de Programa Nereide Lúcia Martinelli
Diretora: ANA ESTELA HADDAD Regina Lúcia Monteiro Henriques
Roseni Pinheiro
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Sueli Batista de Almeida
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO Tutores e Participantes das Oficinas de Avaliação e Reformulação
Reitora: MARIA LÚCIA CAVALLI NEDER Alba Regina Silva Medeiros (tutora)
Vice-Reitor: FRANCISCO JOSÉ DUTRA SOUTO Aline Paula Motta
Pró-Reitora Administrativa: VALÉRIA CALMON CERISARA Amaury Ângelo Gonzaga (tutor)
Pró-Reitora de Planejamento: ELISABETH A. FURTADO DE MENDONÇA Ana Paula Louzada dos Anjos (tutora)
Pró-Reitora de Ensino de Graduação: MYRIAN THEREZA DE M. SERRA Ana Paula Silva de Faria
Pró-Reitora de Ensino de Pós-Graduação: LENY CASELLI ANZAI Crisley Suzane Rodrigues Araújo (tutora)
Pró-Reitor de Pesquisa: ADNAUER TARQUÍNIO DALTRO Diógenes Marcondes (tutor)
Pró-Reitor de Cultura, Extensão e Vivência: LUIS F. CIRILLO DE CARVALHO Edson Brunetti
Pró-Reitor do Campus Universitário do Araguaia: JOSÉ MARQUES PESSOA Elizabeth Jeanne Fernandes Santos
Pró-Reitora do Campus Universitário de Rondonópolis: CECÍLIA F. K. Fátima Cristina M. Manfrin
KIMURA Fátima Ticianel Schrader (tutora)
Pró-Reitor do Campus Universitário de Sinop: MARCO ANTÔNIO PINTO Geny Catarina Francisca Rodrigues Lopes (tutora)
Júlio Strubing Müller Neto
Instituto de Saúde Coletiva Landrimar Trindade (tutora)
Diretora: MARTA GISLENE PIGNATTI Ligia Regina de Oliveira
Márcia de Campos (tutora)
Núcleo de Desenvolvimento em Saúde Maria José Vieira Silva Pereira (tutora)
Coordenadora: NINA ROSA FERREIRA SOARES Maria Salete Ribeiro
Maria Silva Souza (tutora)
CONSELHO DE SECRETARIAS MUNICIPAIS DE SAÚDE-MT Marina Atanaka dos Santos
Presidente: ANDRÉIA FABIANA DOS REIS Miriam Tereza Vale Solé Rocha (tutora)
Nereide Lúcia Martinelli (tutora)
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Oliani Nouey Machado Godoy
Reitor: RICARDO VIEIRALVES DE CASTRO Ruth Terezinha Kehrig (tutora)
Simone Charbel (tutora)
Instituto de Medicina Social Sônia Maria de Souza Correa (tutora)
Diretor: CID MANSO DE MELLO VIANNA Terezinha de C. Viana Gimenes (tutora)
Theodoro Carlos Magalhães Pinto (tutor)
Laboratório de Pesquisa sobre Práticas de Integralidade em Saúde Vânia Salete Marchese (tutora)
Coordenadora: ROSENI PINHEIRO
Caderno de Indicadores
Centro de Estudos e Pesquisa em Saúde Coletiva Irani Machado Ferreira
Presidente: CID MANSO DE MELLO VIANNA Leila de Arruda Alencar
Noemi Dreyer Galvão
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PÓS-GRADUAÇÃO Terezinha de C. Viana Gimenes
EM SAÚDE COLETIVA
Presidente: LUIZ AUGUSTO FACCHINI Revisão e Normalização
Ana Maria Auler M. Peres
CURSO DE DESENVOLVIMENTO GERENCIAL DO SUS Valéria Marinho Nascimento Silva
Tatiana Coelho Lopes
Coordenação
COMPOSIÇÃO DO CONSELHO EDITORIAL DA EDUFMT
Fátima Ticianel Schrader
Presidente: MARINALDO DIVINO RIBEIRO
Júlio Strubing Müller Neto
Maria Angélica dos Santos Spinelli
Membros
Ademar de Lima Carvalho
Equipe Técnico-Administrativa
Aída Couto Dinucci Bezerra
Aline Paula Motta
Bismarck Duarte Diniz
Ana Paula Louzada dos Anjos
Eliana Beatriz Nunes Rondon
Fátima Ticianel Schrader
Frederico José Andries Lopes
Ilva Félix do Nascimento
Janaina Januário da Silva
Landrimar Trindade
José Serafim Bertoloto
Patrícia Santos Arruda
Jorge do Santos
Karlin Saori Ishii
Responsável pelo Desenvolvimento do Projeto Pedagógico
Marluce Aparecida Souza e Silva
Fátima Ticianel Schrader
Marly Augusta Lopes de Magalhães
Júlio Strubing Müller Neto
Moacir Martins Figueiredo Junior
Taciana Mirna Sambrano
Consultoria Pedagógica
Aluísio Gomes da Silva Júnior Elisabeth Madureira Siqueira
Roseni Pinheiro
Júlio Strubing Müller Neto
Fátima Ticianel Schrader
(Orgs.)
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial do SUS
COLETÂNEA DE TEXTOS
Cuiabá - MT
2011
copyright ©2011, júlio strubing müller neto e fátima ticianel schrader (orgs.).
todos os direitos reservados.
Supervisão Editorial
Ana Silvia Gesteira, Janaína Januário da Silva e Aline Paula Motta
Diagramação
Fabiano Grillaud
Impressão
Gráfica e Editora Defanti
Esta obra foi produzida com recurso do Governo Federal Projeto realizado em parceria com:
APRESENTAÇÃO DO ISC/UFMT........................................................................................... 9
APRESENTAÇÃO DO COSEMS/MT ..................................................................................... 11
UFMT COOPERA COM MUNICÍPIOS: desenvolvimento de novos saberes e práticas na gestão do Sistema
Único de Saúde em Mato Grosso ............................................................................................� 13
ESTRUTURA DO CURSO ................................................................................................... 25
COLETIVA COLETÂNEA
DE TEXTOS
Prezado(a) aluno(a),
É um prazer tê-lo(a) como participante do CDG-SUS, uma proposta de desenvolvimento das pessoas
e das práticas de gestão e do cuidado em saúde que adota a perspectiva da ética e da integralidade da
atenção, visando à construção do perfil e das competências desejadas para os gerentes dos serviços
municipais de saúde.
O curso, desenvolvido à luz da política nacional de educação permanente, é apoiado financeiramente
pelo Ministério da Saúde e coordenado pelo Núcleo de Desenvolvimento em Saúde (NDS), que inte-
gra o Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
Desde 2007, o NDS realiza parcerias com as seguintes instituições para garantir a implementação do
CDG-SUS: Fundação Uniselva, Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde
(LAPPIS/IMS/UERJ), Conselho de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS/MT) e Secretarias
Municipais de Saúde de 52 municípios do Estado de Mato Grosso.
Para sua realização recebeu apoio integral da Diretora do Programa de Capacitação Gerencial do
Ministério da Saúde, Dra. Márcia Hiromi Sakai.
A proposta foi alavancada em razão da demanda crescente do SUS por qualificação de gerentes e pro-
fissionais da saúde, da complexidade do sistema, da diversidade de atores e de processos de trabalho
em espaços da gestão, o que requer a superação do modelo de planejamento e gestão normativo e
pouco participativo ainda predominante nas instituições.
Seus objetivos específicos são: a) despertar o aluno para a sua corresponsabilidade com o processo
de gestão e do cuidado, colocando o usuário no centro do processo; b) estimular a organização e
integração dos processos administrativos gerenciais entre as equipes gestoras e prestadoras de servi-
ços; c) estimular a realização de parcerias e o intercâmbio de conhecimento e experiências entre os
profissionais da rede municipal; d) ampliar o conhecimento dos participantes, identificando técnicas
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e procedimentos utilizados na resolução dos problemas; e) propiciar mais interação entre os profis-
sionais e trabalhadores de saúde e os usuários do SUS, seja individual ou coletivamente; f) fortalecer
a Rede de Apoio ao SUS do COSEMS.
Para alcançar esses objetivos, o NDS realiza a capacitação permanente de tutores por meio de ofici-
nas e de atividades denominadas laboratório de práticas. Tais profissionais são apoiados pelo trabalho de
uma coordenação e ministram, em duplas, o CDG-SUS.
Os 25 tutores habilitados ao longo desses anos são atores sociais comprometidos com a proposta de
ensino-aprendizagem – valorizam o conhecimento e as práticas dos participantes e apoiam-se no
desenvolvimento profissional e no fortalecimento dessas competências.
Outro ponto de destaque é a metodologia do CDG-SUS, que favorece a análise da realidade muni-
Maria Angélica dos Santos Spinelli
tiva do conhecimento, cuja organização foi realizada pelo NDS/ISC/UFMT em cooperação com o
LAPPIS/IMS/CEPESC/UERJ. O aluno recebe também um Caderno de Indicadores preparado para
cada município e um CD contendo legislações do SUS, textos e aulas.
Por fim, apresentamos o artigo Desenvolvimento de Novos Saberes e Práticas na Gestão do Sistema Único
de Saúde em Municípios de Mato Grosso publicado na Revista Divulgação em Saúde para Debate - Série
CONASEMS / CEBES, Número 44, sobre a primeira fase da experiência do CDG-SUS em Mato
Grosso realizado em oito municípios, que traz o perfil dos alunos e a avaliação dos cursos, destacando
a relevância do projeto de cooperação da UFMT.
Aproveite. O CDG-SUS foi desenvolvido especialmente para você.
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Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
APRESENTAÇÃO DO COSEMS/MT do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
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ferentes projetos de extensão, integrando o ensino, a pesquisa e os serviços no processo de educação
permanente em saúde desenvolvida.
Nessa parceria, não podemos deixar de ressaltar as ações estratégicas realizadas, potencializadas
e disseminadas com a participação de integrantes do Projeto Rede de Apoio ao SUS, constituindo
intenso processo de mobilização e capacitação que vem atingindo as regiões de saúde do estado. A
experiência tem permitido vivenciar novas práticas integradoras e o empoderamento dos sujeitos co-
letivos, e tem como raiz e fonte geradora a interação ensino e serviços, viabilizada pela ação conjunta
do COSEMS/MT e ISC/NDS desde 2004.
A avaliação positiva dos executores, alunos, monitores e gestores envolvidos na realização dos cursos
em 2008 fortaleceu a decisão do COSEMS de priorizar a realização de novos cursos em 2009 e 2010,
e, em agosto de 2008, aprovar, na Comissão Intergestores Bipartite de Mato Grosso, 48 novos cur-
sos para promover a educação permanente e o fortalecimento gerencial de aproximadamente 1.680
trabalhadores e conselheiros de saúde, atingindo as 14 regiões de saúde do estado. Nesse sentido, o
Andréia Fabiana dos Reis
CDG-SUS integra o programa estratégico de ação do COSEMS no estado e sua execução somente
tem sido possível na dimensão e amplitude propostas em decorrência da estreita articulação e parce-
ria entre as instituições promotoras.
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Apresentação do COSEMS
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Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
UFMT COOPERA COM MUNICÍPIOS: do SUS
COLETÂNEA
Desenvolvimento de novos saberes e práticas na gestão do Sistema DE TEXTOS
1 Texto adaptado do artigo publicado originalmente na Revista Divulgação em Saúde para Debate - Série CONASEMS / CEBES,
Número 44
2 Professor Adjunto do Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal de Mato Grosso (ISC/UFMT); Doutor em Saúde
Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ).
3 Enfermeira da SES/MT e SMS/Cuiabá, e pesquisadora do Núcleo de Desenvolvimento em Saúde (NDS/ISC/UFMT); Mestre
em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (ISC/UFMT).
4 Técnica do Núcleo de Desenvolvimento em Saúde (NDS/UFMT); Discente em Direito do Centro Universitário da Várzea
Grande (UNIVAG).
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estudos de processos de trabalho em saúde e na teoria do agir comunicativo, desenvolvida por Haber-
mas, que contribuem para o entendimento do trabalho em equipe de saúde e para a compreensão e
intervenção na realidade, com vistas às mudanças das práticas, respeitadas as diferenças culturais e a
Júlio Strubing Müller Neto, Fátima Ticianel Schrader, Aline Paula Motta
vontade e opinião política dos trabalhadores e usuários do sistema público de saúde. Conhecer e atuar
sobre o mundo não são mais atividades individuais de um ator ou sujeito, mas uma relação intersubje-
tiva linguisticamente mediada onde o sujeito, além de ter interesse em atuar sobre o mundo, está in-
teressado em entender-se com outros sujeitos sobre o significado das questões (HABERMAS, 1987;
2003). É o paradigma da comunicação a promover a ruptura com a velha moldura da relação sujeito
versus objeto, substituindo-a por uma relação intersubjetiva, onde se resgatam pretensões de validade.
De acordo com Siebeneichler (1989), para a razão centrada no sujeito, vale o critério de verdade no
conhecimento dos objetos e de domínio sobre as coisas, enquanto a razão centrada na comunicação
procura sua validade na argumentação. Nessa perspectiva, a intervenção sobre a realidade social e
sanitária dessa comunidade, ou seja, a implementação de uma determinada política pública de saúde
no âmbito local, por exemplo, também deve obedecer às mesmas premissas. É importante ressaltar
que as práticas correntes, hegemônicas, de formulação e implementação de políticas de saúde no SUS
partem do universo cultural dos gestores e técnicos de saúde, sobretudo da área de planejamento em
direção ao universo cultural dos grupos demandantes, esquecendo-se, com freqüência, que quando
dois ou mais grupos pertencentes a diferentes mundos da vida interagem para pensar uma ação con-
junta, a decisão não pode ser tomada a partir dos valores e normas de um só grupo. Os atores sociais
e os trabalhadores de saúde devem ser reconhecidos como sujeitos portadores de valores, crenças,
Curso de direitos e competências para agir comunicativamente e participar de um discurso racional (ART-
Desenvolvimento MANN, 2001; RIVERA; ARTMANN, 2006).
Gerencial
do SUS
Para a teoria do agir comunicativo, os sujeitos partilham uma tradição cultural na medida em que
COLETÂNEA
DE TEXTOS se entendem mutuamente e concordam sobre sua condição; quando coordenam suas ações por meio
de normas intersubjetivamente reconhecidas, os sujeitos agem como membros de um grupo social
solidário; os indivíduos que crescem no interior de uma tradição cultural e participam da vida de um
gestão dos Sistema Único de Saúde em Mato Grosso
UFMT Coopera com Municípios: desenvolvimento de novos e práticas na
grupo social, além de desenvolverem identidades individuais e coletivas, processos esses mediados
pela interação intersubjetiva propiciada pela linguagem. Os sujeitos em relação intersubjetiva são, ao
mesmo tempo, produto e produtores do contexto em que estão inseridos, pois a ação comunicativa
tem a função de realizar a reprodução cultural, garantir integração social e solidariedade e promover
processos de socialização.
Na leitura habermasiana da realidade social, há uma relação dialética entre o mundo da vida, media-
do pela linguagem e pela cultura e representado pela razão comunicativa, e o sistema, mediado pelo
poder e pelo dinheiro e representado pela razão instrumental. O mundo da vida não esgota todos os
aspectos da vida social e a reprodução material da sociedade é desempenhada pelo sistema, no qual as
ações são orientadas para o êxito. O sistema é resultante da diferenciação dentro do mundo da vida,
dos subsistemas de ação especializados, sistema econômico e sistema administrativo (SIEBENEICH-
LER,1989).
Apoiando-se nessas referências teórico-metodológicas, o curso foi desenvolvido à luz da política na-
cional de educação permanente e incorporou a participação dos gestores e técnicos municipais de
saúde na sua formulação, execução e avaliação, como forma de fortalecer as parcerias entre as insti-
tuições de ensino e pesquisa e os serviços de saúde locais. Nesse sentido, responde a antiga demanda
dos gestores municipais de saúde ao estreitar os laços de cooperação entre as instituições formadoras
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e os serviços, fortalecendo a gestão municipal e os processos de mudança das práticas de trabalho no
cuidado e na docência (BRASIL, 2005).
O CDG-SUS teve como objetivo geral contribuir para a qualificação das práticas de gestão e do cui-
Júlio Strubing Müller Neto, Fátima Ticianel Schrader, Aline Paula Motta
dado em saúde no município, além de fortalecer a relação entre as instituições de ensino e pesquisa e a
gestão municipal do SUS na implementação da educação permanente em saúde. Foram desenvolvidos
instrumentais teóricos e metodológicos com foco na realidade do município, incluindo um conjunto
de textos e informações que possibilitam reflexão, avaliação e construção coletiva do conhecimento.
5 A Rede de Apoio ao SUS é coordenada pelo COSEMS/MT com apoio de instituições parceiras. Tem abrangência estadual com
pontos de conexão e integração de gestores, profissionais e conselheiros em todas as 16 regiões do Estado, favorecendo a articulação
nas principais áreas de atuação do Conselho e o fortalecimento do papel do município na regionalização e implementação do Pacto
pela Saúde.
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monitores ocorreu em três oficinas de trabalho, totalizando 76 horas, sendo que na primeira houve
a participação de 34 profissionais de todo o estado com potencial para assumir a monitoria do curso.
As demais oficinas priorizaram a preparação do curso, sendo que a terceira ocorreu após o curso
Júlio Strubing Müller Neto, Fátima Ticianel Schrader, Aline Paula Motta
piloto no município de Sinop, onde se validou a metodologia e o conteúdo. Ao término dos cursos,
foram realizadas duas reuniões com os monitores centrais para elaboração dos relatórios por municí-
pio. A execução do curso foi feita por treze desses monitores, sendo oito ligados a gestão municipal.
O projeto do CDG-SUS foi coordenado pelo Professor Júlio Müller e pela Enfermeira Mestre Fátima
Ticianel Schrader, com apoio da técnica e estagiária Aline Paula Motta. A coordenação do projeto foi
responsável pela formulação do conteúdo, da metodologia, da grade curricular do curso e pela elabo-
ração do material pedagógico para capacitação dos monitores e do material instrucional distribuído
aos alunos, incluindo: um caderno de informações sobre a situação de saúde de cada município, o
programa do curso, textos e aulas em CD, reprodução de DVD de filme sobre o SUS e sobre o Pacto
pela Saúde.
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Conteúdo
Os conteúdos da unidade I, Política, Planejamento e Gestão do SUS, foram organizados em quatro mó-
dulos:
Júlio Strubing Müller Neto, Fátima Ticianel Schrader, Aline Paula Motta
1. Contextualização e análise da saúde pública no Brasil e em Mato Grosso (CUNHA;
CUNHA, 2001);
2. Contextualização e análise da saúde pública no Município: história e aspectos político-
-institucionais, estrutura e organização da Secretaria de Saúde e a gestão do sistema, pla-
nejamento, financiamento, recursos humanos e controle social (BRASIL, 2007; GRUPO
DE SAÚDE POPULAR, 2007);
3. Informação e planejamento em saúde: a importância e o papel da informação em saúde,
diagnóstico sociodemográfico e de saúde do município, gerenciamento de informações,
Planeja SUS, papel da gestão e do controle social no planejamento, principais instrumen-
tos de planejamento e gestão do SUS (ANDRADE; SOARES, 2001; BRASIL, 2007;
DE’SETA, 2002);
4. Trabalho de campo: orientações sobre leitura dos textos selecionados; entrevista com usuá-
rios e trabalhadores de unidades de saúde, com enfoque na organização da rede e dos servi-
ços, fluxo dos usuários, acesso/acessibilidade, vínculo, acolhimento, trabalho das equipes
e gerenciamento de materiais.
A Unidade II abordou Gerenciamento e a organização do sistema e serviços de saúde: integralidade e direito Curso de
Desenvolvimento
à saúde, enfatizando o trabalho em equipe na saúde e o processo de trabalho, e o agir comunicativo Gerencial
do SUS
(PEDUZZI, 2007).
COLETÂNEA
1. Modelos assistenciais em saúde e a estratégia da saúde da família: rede de serviços e orga- DE TEXTOS
RESULTADOS E DISCUSSÃO
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GRÁFICO 1 – Percentual dos alunos inscritos no CDG-SUS, segundo faixa etária, Cuiabá (2008)
Júlio Strubing Müller Neto, Fátima Ticianel Schrader, Aline Paula Motta
COLETÂNEA
No item escolaridade dos alunos, 73,23% possuíam ensino superior completo e destes 63,98% eram
DE TEXTOS pós-graduados. Em relação ao tempo de serviço dos profissionais na Secretaria Municipal de Saúde,
51,37% dos alunos referiram trabalhar há um a cinco anos na instituição, 16,08% entre seis a dez
gestão dos Sistema Único de Saúde em Mato Grosso
UFMT Coopera com Municípios: desenvolvimento de novos e práticas na
anos e 13,73% há mais de 11 anos. Quanto ao vínculo empregatício, 69,41% eram estatutários,
14,12% contratos temporários, 1,18% celetistas e 15,29% não informaram.
O perfil dos alunos inscritos no curso evidenciou o predomínio de uma força de trabalho jovem,
com menos de 40 anos, com nível superior e do sexo feminino, sendo que o tempo de vinculação às
instituições era recente, inferior a dez anos. Destaca-se, também, a alta proporção de trabalhadores
estatutários, contrariando a noção muito difundida da precariedade de vínculos da força de trabalho
da saúde municipal. Esses dados sinalizam a importância do investimento em processos de educação
permanente nos municípios como estratégia para o fortalecimento gerencial e qualificação do SUS.
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Já a linguagem do material didático foi considerada acessível e de muito boa compreensão dos te-
mas estudados por 55,79% dos alunos e avaliada como boa por 40,53%. Para a maioria dos alunos
(92,75%) os monitores tinham domínio do conteúdo abordado e da metodologia adotada (89,58%).
Júlio Strubing Müller Neto, Fátima Ticianel Schrader, Aline Paula Motta
A estrutura física para realização do curso foi avaliada como muito boa (adequada e confortável) para
a realização do curso, segundo 56,25% dos alunos e como boa para 39,06%.
A participação ativa do grupo nas atividades e discussões propostas durante o curso foi avaliada como
muito boa, segundo 66,32% dos alunos. A participação individual de forma ativa nas atividades e
discussões propostas foi avaliada como muito boa por 51,83% e boa por 41,88% dos alunos. A contri-
buição do curso para ampliar os conhecimentos sobre o SUS foi avaliada como muito boa por 89,12%
dos alunos (Gráfico 2).
GRÁFICO 2 – Avaliação dos alunos do CDG-SUS quanto à contribuição do curso para ampliar o
conhecimento sobre o SUS, Mato Grosso, 2008
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
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GRÁFICO 3 – Avaliação dos alunos do CDG-SUS quanto às possibilidades do curso de contribuir
para mudanças das práticas de trabalho do SUS municipal, Mato Grosso, 2008
Júlio Strubing Müller Neto, Fátima Ticianel Schrader, Aline Paula Motta
BERMAS, 1987, 2003; PINHEIRO; MATTOS, 2006; PEDUZZI, 2007), procurando identificar e
relacionar a apropriação dos conceitos-chaves de integralidade, interdisciplinaridade e trabalho em
equipe, educação permanente, participação social na saúde e gestão comunicativa ou participativa.
A maioria das respostas foi afirmativa no sentido de apontar a vontade individual para implementação
de novas medidas a serem incorporadas no trabalho gerencial a partir do curso, que iam desde o me-
lhor conhecimento acerca do funcionamento e as atividades desenvolvidas pelas equipes e os setores
da saúde; o fomento da discussão entre as equipes de trabalho utilizando-se os subsídios do curso
(trocar e multiplicar conhecimento); iniciativas de realizar encontros mensais para a abordagem de
temas importantes para o desenvolvimento do trabalho e motivação dos profissionais, visando à inte-
gração da equipe e a compreensão das limitações das abordagens disciplinares tradicionais; gerenciar
melhor os recursos da unidade e fazer o planejamento local.
Na avaliação de um aluno pudemos observar o desenvolvimento da percepção que o curso proporcio-
na quanto à responsabilidade de cada um no processo de mudança das práticas:
[...] Sim, porque a partir dessas discussões nós podemos melhorar as ações em saúde na nossa unida-
de. Entendi que a mudança pode começar em mim, então devo fazer minha parte (A1, CDG-SUS).
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A construção de técnicas para melhorar o acolhimento ao usuário por parte dos profissionais da
rede foi abordado como um desafio, no sentido de aumentar o comprometimento de cada um e a
resolutividade das ações. Nesse caso, o cidadão teve destaque como o centro do trabalho da equipe
Júlio Strubing Müller Neto, Fátima Ticianel Schrader, Aline Paula Motta
e a razão de ser do próprio trabalhador de saúde. A confiança, o interesse, a corresponsabilidade e
a determinação na prática do agir e conquistar as ações, promover a ação comunicativa (diálogo,
escuta), colaboração e interação entre equipes das unidades foram outros tópicos significativos que
emergiram na avaliação. Assim, comentou um aluno:
[...] Sendo mais flexível na minha conduta, dando mais chance à comunicação tanto com a equipe
como com usuários. Ter mais espírito de coletividade e iniciar um processo para atuar visando
ao acolhimento, à responsabilização / vínculo, à qualidade da assistência, ou seja, à integralidade
(A2,CDG-SUS).
[...] O curso foi muito bom, consegui ter uma visão mais ampla de todos os setores e seus problemas
e também que irei levar isso em prática através do grupo (efetivação) da educação permanente. (A4,
CDG-SUS).
[...] Este curso contribui em muito para meu aprendizado. Em relação ao SUS, ampliou meus co-
nhecimentos. O meu desejo é que todos coloquem em prática o que aprendemos aqui e estaremos
contribuindo para que nossa sociedade melhore através de gestores comprometidos. (A5, CDG-
-SUS).
[...] Antes de começar o curso não imaginava que fosse possível aprender tanto em tão pouco tempo.
A forma de aprendizado dinâmica permitiu uma melhor memorização, estimulou-nos a realizar
ações e tentar resolver os problemas existentes. (A6, CDG-SUS).
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[...] Sinto nossos servidores mal aproveitados; temos excelentes na rede; pena que por questões po-
líticas ou outras não são convocadas ou solicitadas a colocar em prática sua experiência profissional.
Às vezes ele vem de locais onde tudo é destaque na área e ele já viveu isso. Pena que por falta de in-
vestimento de recursos, de dar condições de trabalho vamos embora; pois a sensação é que paramos
Júlio Strubing Müller Neto, Fátima Ticianel Schrader, Aline Paula Motta
[...] O curso foi de extrema valia para o conhecimento, participação. Foi realizado com uma didá-
tica muitíssimo boa. Fez enxergar problemas que estão ao nosso lado e fez a gente saber que temos
subsídios para resolvê-los em planejamento, integração da equipe e capacitação. (A 8, CDG-SUS).
[...] O curso atingiu seus objetivos nos seguintes aspectos: ampliar nossa visão quanto aos problemas
enfrentados no dia-a-dia e criou nossa corresponsabilidade frente a soluções de problemas. (A1 9,
CDG-SUS).
Considerações finais
Como observado na avaliação dos alunos, o CDG-SUS cumpriu com seus objetivos propostos, prin-
cipalmente o de despertar os profissionais para o potencial de cada um no processo de construção
do SUS com qualidade e integralidade, indicando a existência de excelentes profissionais no sistema
e a falta de oportunidade para o desenvolvimento da percepção em relação a si mesmo, do potencial
do trabalho em equipe a favor do usuário, da comunidade. O CDG-SUS foi uma pequena iniciativa
Curso de
Desenvolvimento que potencializou a apropriação das estratégias da educação permanente pelos atores que fizeram as
Gerencial
do SUS mudanças.
COLETÂNEA A experiência exitosa realizada em Mato Grosso foi apresentada em diversos fóruns do COSEMS/
DE TEXTOS
MT e nos Colegiados de Gestão Regional (CGR) que apoiaram a iniciativa e decidiram considerá-la
uma das prioridades da política de educação permanente no SUS estadual.
gestão dos Sistema Único de Saúde em Mato Grosso
UFMT Coopera com Municípios: desenvolvimento de novos e práticas na
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Referências
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HABERMAS, J. A nova intransparência. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n. 18, p. 103-114, set. 1987.
HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de
Curso de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. Desenvolvimento
MANDELLI, M.J. A gerência dos meios de produção na Unidade da Rede Básica de Saúde: um enfoque integrado Gerencial
do SUS
da administração de materiais, serviços gerais e orçamentária-financeira. In: SANTANA, J.P. (Org.). Desenvolvimento
gerencial de unidades básicas do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: OPAS, 1997. p. 236-251. COLETÂNEA
DE TEXTOS
MATO GROSSO. Caderno de indicadores. Cuiabá: CDG-SUS/NDS/ISC/UFMT, 2008.
MÜLLER NETO, J.S.; SCHRADER, F.T.; PEREIRA, M.J.V.S.; NASCIMENTO, I.F.; TAVARES, L.B.; MOTTA,
23
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
O CDG-SUS está estruturado em duas unidades e um eixo integrador, que correspondem a oitenta
horas de qualificação, com aulas presenciais e um período de dispersão para o desenvolvimento de
um trabalho de campo. Dessa forma, garante ao aluno acesso às principais noções de saúde e doença,
conceitos de política, planejamento, gestão do SUS, organização do sistema e dos serviços de saúde,
tendo a integralidade, o direito à saúde e a educação permanente como eixos.
Temas abordados
Módulo 1 – 8 horas: Condição de vida e política de saúde
Módulo 2 – 10 horas: Política e gestão de saúde no município
Módulo 3 – 12 horas: Informação e planejamento em saúde
Temas abordados
Módulo 4 – 12 horas: Modelos tecnoassistenciais em saúde e avaliação do cuidado
Módulo 5 – 6 horas: Trabalho em equipe
Módulo 6 – 7 horas: Gerência de recursos na unidade
Módulo 7 – 5 horas: Educação permanente para fortalecimento gerencial
25
UNIDADE I
CONDIÇÃO DE VIDA, POLÍTICA E GESTÃO DO SUS
Módulo 1: condição de vida e política de saúde
1.1 Condições de vida, saúde e doença
Principais noções e concepções de saúde e doença.
A urbanização acelerada e a industrialização como processos mais frequentes e que têm determinado impactos
sobre as condições de produtividade, como as condições de trabalho e a qualidade de vida da classe trabalha-
dora.
As diferentes formas de organização social para enfrentamento das transformações nos diferentes contextos
históricos.
Determinantes socioeconômicos, culturais e ambientais, formas de organizações e relações sociais, estilos de
vida dos indivíduos e outros fatores tais como idade, sexo, hereditariedade.
Relação entre determinantes sociais e rede de usuários: diferentes abordagens de redes para entender o papel
intervencionista do Estado de um lado, e, de outro, a sociedade civil.
COLETÂNEA
DE TEXTOS
1 Publicado originalmente em: SABROZA, Paulo. Concepções de saúde e doença. In: OLIVEIRA, Roberta Gondim de;
GRABOIS, Victor; MENDES JÚNIOR, Walter Vieira (Orgs.). Qualificação de Gestores do SUS. Rio de Janeiro: EAD/Ensp, 2009.
[CD]. Reprodução autorizada pelo autor.
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sistemas coletivos urbanos de distribuição de água, causando epidemias letais, sempre acompanha-
das de pânico. Levando, aqueles que podiam, a abandonar as cidades, que passaram a ser identifi-
cadas como locais insalubres.
Os hospitais públicos, onde principalmente os indigentes eram internados, particularmente preci-
savam ser evitados, e a mortalidade nas maternidades fazia do parto uma situação de alto risco. A
prática médica era mais prejudicial que eficaz.
A tuberculose, conhecida havia séculos, encontrou novas condições de circulação, capaz de ampli-
ficar de tal modo sua ocorrência e letalidade que passou a ser uma das principais causas de morte,
atingindo principalmente jovens nas idades mais produtivas.
Há duzentos anos, essa imensa crise sanitária colocou em risco o projeto capitalista.
A grande crise sanitária certamente não era apenas uma crise setorial. Expressava, de modo muito
sensível, os impasses e contradições acumulados no processo de reprodução daquela organização
Paulo Chagastelles Sabroza
social. Quando até mesmo a sobrevivência das pessoas fica ameaçada, o próprio pacto social pode vir
a ser questionado.
Epidemias e revoltas populares eram conhecidas formas de expressão das crises dos processos de
reprodução social, sempre presentes nos modos de produção anteriores.
Sabemos que, em sistemas abertos e complexos, o ruído e a contradição não são simplesmente dis-
funcionais, como nos sistemas simples e fechados. Ao contrário, são também elementos indispensá-
Curso de veis à auto-organização e capacidade de inovação.
Desenvolvimento
Gerencial Os movimentos coletivos e organizados dos trabalhadores urbanos, reivindicando melhores salá-
do SUS
rios e condições de vida e trabalho, em confronto com os interesses individuais dos proprietários
COLETÂNEA
DE TEXTOS dos meios de produção, foram processos emergentes que impuseram o encaminhamento de novas
soluções para a crise.
Concepções de saúde e doença
O outro componente daquela organização social que possibilitou sua superação, em interação não line-
ar com os movimentos dos trabalhadores, foi a participação dos Estados Nacionais na regulamentação
das condições de trabalho e de uso do espaço urbano, através da introdução de legislações específicas e
mecanismos de controle social efetivos, capazes de assegurar melhores condições de vida aos trabalha-
dores, ainda que contrariando alguns proprietários, mas no interesse do capitalismo em seu conjunto.
Sob o paradigma da teoria dos miasmas, foram realizadas as reformas urbanas nos centros industriais
que reduziram, de modo importante, a transmissão de várias doenças e a mortalidade infantil. Ao
mesmo tempo, o modelo da higiene procurava difundir nos grupos populares comportamentos con-
siderados adequados para a saúde, dirigidos principalmente aos problemas das crianças e da sexuali-
dade, vinculados à concepção de mundo burguesa.
Teve início também a aplicação de métodos estatísticos para contabilizar as mortes e identificar di-
ferenças de risco de morrer entre lugares e grupos sociais, contribuindo para o debate que marcou o
período, sobre a importância da determinação ambiental ou social.
O projeto da saúde pública moderna nasceu então, no início do século passado, como um componen-
te estratégico do processo de controle social sobre as condições de reprodução dos grupos sociais,
direcionado ao saneamento do ambiente urbano e mudanças nos padrões culturais do proletariado,
através de práticas normativas e educativas.14
34
Os avanços das ciências da vida observados na segunda metade do século XIX, com a identificação
da estrutura celular, dos principais processos fisiológicos e da teoria evolutiva das espécies, fun-
damentaram de modo científico a ideia de saúde enquanto situação de adaptação às condições do
meio externo. O modelo de necessidade de equilíbrio entre os meios interno e externo, de Claude
Bernard, e da seleção natural dos mais aptos, de Darvin, mostraram-se muito pertinentes enquanto
paradigmas capazes de integrar questões como ordem, diferença e mudança.
A metáfora das sociedades como um grande organismo permitiu a elaboração da noção de patologia
social e que fossem, desde então, propostos métodos próprios para o estudo das doenças neste nível,
dando início à estatística vital e à epidemiologia.
Uma concepção positiva de saúde, vinculada a condições de vida adequadas, pode, então, ser elabora-
da e difundida amplamente, ficando as enfermidades bem caracterizadas como resultado da pobreza
e da injustiça, e sua possibilidade de superação vinculada ao progresso social.
Nas áreas rurais, e principalmente nas colônias, este modelo, que dependia da transformação das
condições de vida do conjunto da população, com reflexos diretos sobre a saúde, não foi implemen-
tado. Aqui o controle social era exercido pelas mais diversas formas de violência institucionalizadas,
35
sem encontrar resistência organizada por parte dos trabalhadores, e a mortalidade excessiva foi,
durante algum tempo, simplesmente contrabalançada pela importação de escravos e pela migração
de novos colonos.
Ainda no início deste século, epidemias de doenças transmissíveis, principalmente a febre amarela
e a malária, produziam impacto dramático na mortalidade nas cidades e nos principais canteiros de
obras localizados nos países periféricos, causando prejuízos ao comércio e dificultando a expansão
do capitalismo.
A solução, na época, veio através do incentivo público às pesquisas biomédicas, principalmente aque-
las dirigidas às doenças tropicais, e à formação de equipes de trabalho organizadas em moldes milita-
res, capazes de intervir com disciplina e eficácia quando necessário, as campanhas sanitárias.16
A intervenção focal, localizada, limitada apenas ao controle de certas enfermidades definidas como
prioritárias na perspectiva dos governantes, foi a estratégia característica de atuação sobre a saúde nas
Paulo Chagastelles Sabroza
36
Capitalismo de Estado, desenvolvimento e políticas de saúde
Durante algum tempo foi inegável o sucesso desse modelo de organização social, centrado na compe-
tição e na divisão social do trabalho, tanto no incremento da produção econômica como na elaboração
de conhecimento científico e no controle daqueles problemas de saúde definidos como prioritários.
Em uma perspectiva de conjunto, entretanto, os conflitos decorrentes da luta de classes e da luta
pelo controle dos mercados resultaram, na primeira metade desse século, em instabilidade social,
revoltas, revoluções e contrarrevoluções, e, ainda, duas guerras de abrangência mundial, que produ-
ziram mortes, mutilações e sofrimento em dezenas de milhões de pessoas, em uma escala inédita na
história da humanidade.
Mesmo o controle conseguido sobre as doenças transmissíveis foi obscurecido por uma nova ca-
tástrofe de âmbito global, a epidemia de gripe que assolou os diversos países na segunda década do
século XX, relacionada com a amplificação da transmissão do vírus nos cenários de guerra. Em
COLETÂNEA
Os Estados nacionais, além das suas funções tradicionais de regulação das relações econômicas e de DE TEXTOS
trabalho, manutenção da ordem e defesa da propriedade e do território, passaram a desempenhar
novas funções, inerentes ao modelo desenvolvimentista.
37
Esta transformação tecnológica, conhecida como revolução verde, também assegurou a dependência
das áreas rurais aos grandes centros urbanos, rompendo com sua tradicional autonomia.
Uma maior disponibilidade de alimentos e o controle de certas doenças transmissíveis possibilita-
ram grande crescimento da população mundial, sobretudo nos países periféricos.
No período do capitalismo de estado, a concentração dos investimentos em apenas alguns poucos polos
econômicos resultou em importantes desigualdades regionais. Além da concentração de capital, de
energia e de trabalhadores nesses centros industriais, induzida pelas políticas e investimentos públicos,
a outra característica espacial marcante foi a necessidade de integração das mais diferentes unidades
territoriais, de modo a viabilizar os fluxos indispensáveis de insumos, mercadorias e trabalhadores.
Com isto, grandes movimentos populacionais passaram a ocorrer entre as regiões, e das áreas
rurais para as metropolitanas.
Mas esses processos de urbanização e crescimento populacional, dissociados da industrialização, da
Paulo Chagastelles Sabroza
criação em larga escala de novos empregos nas indústrias e do movimento de organização dos traba-
lhadores, não resultou em mudanças na estrutura social e nas condições de vida desses contingentes
populacionais urbanos, que passaram a depender diretamente, para sua sobrevivência e controle
social, das políticas públicas.
Durante muito tempo, esse intenso crescimento urbano foi considerado disfuncional, um certo tipo
de inchamento, patologia social do subdesenvolvimento.
Curso de Sabe-se agora que a produção ampliada, simultânea e integrada do desenvolvimento e do subdesenvolvi-
Desenvolvimento
Gerencial mento é uma característica inerente do capitalismo, e que este só pode se materializar através da repro-
do SUS
dução de desigualdades sociais e espaciais, nas várias escalas, de países, regiões e lugares. Só assim são
COLETÂNEA assegurados os gradientes que viabilizam os fluxos, garantindo o dinamismo do processo econômico.17
DE TEXTOS
Durante a segunda metade desse século, esse crescimento das populações urbanas foi fundamental
Concepções de saúde e doença
38
A transição demográfica e a ideologia do desenvolvimento
Na saúde, a descoberta e síntese em escala industrial de antibióticos, inseticidas capazes de eliminar
vetores de doenças, hormônios e medicamentos realmente eficazes para muitas doenças, veio modi-
ficar radicalmente as práticas da saúde pública e da clínica médica, que passaram cada vez mais a se
caracterizar pelas intervenções fundamentadas no conhecimento técnico-científico, em detrimento
das práticas tradicionais.
A disseminação desta medicina moderna ocorreu como parte integrante de um projeto de mundo em
mudança e desenvolvimento imaginado linear. Nesta ideologia evolucionista, todas as diferentes for-
mações socioespaciais seguiriam, na medida em que fossem ocorrendo as acumulações necessárias, a
mesma trajetória, passando pelas mesmas etapas históricas já registradas pelas nações desenvolvidas.
Um modelo importante que expressa esta concepção é o da transição demográfica, que procura
apresentar as relações entre crescimento e estrutura das populações e seus diversos padrões de mor-
e grande variação entre os anos, devido à ocorrência de epidemias com alta letalidade. As taxas de COLETÂNEA
DE TEXTOS
natalidade, também muito altas, nos limites do potencial reprodutivo da espécie humana, eram ape-
nas um pouco maiores, assegurando apenas a reposição da população e um pequeno crescimento.
39
Esta relativamente rápida e recente modificação na estrutura populacional, acompanhando um gran-
de aumento na expectativa de vida, de cerca de 40 anos para mais de 70, foi certamente um marco
na história da espécie humana.
É importante registrar que, nos países capitalistas centrais, ela não decorreu da incorporação de
técnicas específicas de controle de doenças, mas, fundamentalmente, das grandes transformações
estruturais observadas nas suas formas de organização social.
Paulo Chagastelles Sabroza
Curso de
Desenvolvimento Indicadores de mortalidade, passíveis de serem calculados a partir dos registros civis, foram então
Gerencial
do SUS amplamente utilizados para caracterizar as diferenças de nível de desenvolvimento entre regiões e
COLETÂNEA países, e para avaliar o impacto de políticas sociais e transformações econômicas. Três se mostraram
DE TEXTOS
particularmente sensíveis:
O coeficiente de mortalidade infantil, ou número de óbitos de crianças de menos de um ano de
Concepções de saúde e doença
40
Doença, pobreza e desigualdade
41
Programas de cooperação internacional apoiaram, com recursos financeiros e transferência de tec-
nologias, as ações de controle de doenças, em escala global, como parte integrante da proposta de
consolidação de blocos políticos e militares.
Campanhas verticais permanentes, institucionalizadas, com forte organização burocrática, foram
então utilizadas para implementar, em áreas consideradas estratégicas, as novas práticas de saúde,
mesmo na ausência de uma rede de serviços assistenciais com cobertura adequada.
A erradicação total do vírus da varíola, a eliminação da febre amarela urbana das Américas, a inter-
rupção da transmissão da malária e da doença de Chagas, na maior parte das áreas anteriormente
endêmicas, a eliminação da poliomielite e o controle da raiva urbana e do sarampo comprovaram a
efetividade dessas práticas.
Como não ocorreu simultaneamente redução nas taxas de natalidade, as populações passaram a cres-
cer exponencialmente, até com taxas maiores que 3% ao ano, exercendo fortes pressões sobre os
Paulo Chagastelles Sabroza
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Também algumas enfermidades características da infância, como a difteria, tiveram sua expressão
muito reduzida pela oferta e demanda de vacinação nos serviços públicos.
O monitoramento dos problemas de saúde dependia do diagnóstico dos casos, notificação e consoli-
dação sistemática das informações em informes estatísticos regulares de uso restrito aos serviços. A
vigilância epidemiológica passou a ser atividade prioritária.21
A efetividade desse modelo assistencial estava diretamente relacionada à extensão de cobertura dos
Curso de serviços, à capacidade de programação das ações de saúde e à ampliação e mobilização da demanda
Desenvolvimento
Gerencial individual por cuidados curativos e preventivos.
do SUS
Essas condições nem sempre estiveram presentes, mesmo nos países centrais, fazendo com que seg-
COLETÂNEA
DE TEXTOS mentos numerosos da população ficassem excluídos dos benefícios das novas formas de prevenir e
curar doenças.
Concepções de saúde e doença
No Brasil, apenas na década de setenta do século passado a proposta da medicina preventiva foi im-
plantada, através da reforma do ensino médico e da saúde pública.
Na década seguinte, pela primeira vez pode ser constatada a dissociação entre o aumento da pobreza,
medido a partir da queda do valor do salário mínimo real em São Paulo e o aumento da mortalida-
de infantil. Enquanto ocorria a progressiva queda do poder aquisitivo dos trabalhadores urbanos, a
mortalidade infantil continuou diminuindo de modo importante, mostrando que já não era mais um
indicador sensível das condições de desenvolvimento.22
Medidas de saúde pública, como o saneamento das periferias urbanas, programas ampliados de vaci-
nação, a disseminação da reidratação oral e a redução da natalidade nos grupos de alto risco foram os
determinantes desta relação aparentemente paradoxal.23
Nas grandes cidades, a crescente medicalização das diferentes queixas dos grupos populares foi outro
processo estratégico promovido através dos serviços públicos de saúde, na medida em que ampliou
imensamente o mercado por serviços e produtos e, ao mesmo tempo, mostrou-se eficaz instrumento
de controle social, viabilizando sistemas de informação capazes de monitorar tendências na popu-
lação e transformar em demanda por serviços de saúde as reivindicações populares, que, de outra
forma, poderiam se expressar como revolta em relação às suas condições de vida.
44
Nestas circunstâncias, para esses grupos sociais, a ideia de saúde foi sendo associada cada vez mais ao
acesso a serviços médico-assistenciais, embora estes mostrassem baixa resolutividade em relação aos
seus problemas concretos.24 Para o Estado, ausência de crises.
COLETÂNEA
De certo modo, este modelo apenas estendia às doenças não transmissíveis a mesma concepção de DE TEXTOS
que cada doença deveria ter fatores causais externos e específicos, e que estes poderiam ser identifi-
cados através da aplicação rigorosa do método científico.
sibilidades e interesses.
O atendimento dessas demandas não seria mais relevante nem para a dinâmica do processo de pro-
dução nem para a reprodução e o controle social da população.
Esta singularização radical da questão da saúde levou até mesmo a que se passasse a questionar a per-
tinência de propostas de saúde pública, no novo contexto social.
A emergência da pandemia de AIDS veio recolocar o problema da relação entre o individual e o
Curso de coletivo em outros termos, além de mostrar a vulnerabilidade das sociedades atuais, impondo a ela-
Desenvolvimento
Gerencial boração de novos projetos de saúde, nos diferentes níveis.
do SUS
O modelo capitalista de estado, centrado na industrialização, no uso intensivo de energia e no pla-
COLETÂNEA
DE TEXTOS nejamento econômico e social, já apresentava sinais de esgotamento desde a década de 70, sendo a
queda continuada da produtividade da economia e a questão ecológica, definida pelo esgotamento
Concepções de saúde e doença
dos recursos não renováveis e a poluição, duas dimensões críticas da crise mais geral. Dezenas de
milhões de casos de pessoas infectadas com AIDS vieram dramaticamente expressar as limitações
de seu projeto de saúde pública.
46
países, muitas enfermidades infecciosas continuam prevalentes,31 embora o acesso às diversas formas de
atenção médica tenha efetivamente reduzido tanto a mortalidade como a frequência de formas graves.
Não seria mesmo esperado que o atual modelo médico-assistencial, centrado no atendimento de
doentes, tivesse impacto sobre os processos de transmissão dos parasitas.
A questão é que, ainda assim, nas últimas décadas várias doenças infecciosas foram controladas, ou
mesmo tiveram sua transmissão interrompida, através da aplicação sistemática de ações simples, de
forma programada, quando isto passou a ser considerado prioridade. Mas outras, ao contrário, pare-
cem estar fora de controle, apresentando tanto aumento na incidência como maior difusão espacial,
em relação à sua área anterior.19
O importante aumento de mortalidade de adultos jovens, principalmente homens, por causas violen-
tas é outra característica do que vem sendo chamado de “terceiro padrão”.
Para entendermos esta proposta, e suas implicações, precisamos compreender melhor as relações
sas populações urbanas, com desemprego e redução dos investimentos públicos em políticas sociais, mas
sem risco de revoltas e crises sanitárias capazes de trazer limitações à reestruturação econômica.
As estratégias têm sido a fragmentação do território, assegurando maior controle social através de
poderes políticos locais, e a segmentação social, com a emergência de um novo componente, o cir-
cuito inferior urbano, integrado e dinâmico. Este circuito espacial de produção, descrito
ora como economia informal, ora como estratégia de sobrevivência popular, caracteriza-se por sua
produtividade e relativa autonomia, pois representa custos sociais mínimos para o capital e para o Es-
Curso de
Desenvolvimento
tado, e ainda gera renda que garante a reprodução, o consumo ampliado e transferência importante
Gerencial de recursos para o circuito principal.36
do SUS
COLETÂNEA Embora sua importância seja variável entre as diversas metrópoles, o circuito capitalista inferior ur-
DE TEXTOS
bano está presente, e aumentando, também nos países centrais.
Do ponto de vista social, representa uma nova pobreza, muito distinta da pobreza rural dos do-
Concepções de saúde e doença
mínios conservadores, e que tem sido denominada de pobreza radical, pois é escolarizada e tem
conhecimento da sua situação de desigualdade, não vê mais como perspectiva realista a mudança
desta condição, e, sendo urbana e estando exposta aos contrastes todo o tempo pelos meios de
comunicação de massa, é irada.37
Duas características marcantes desse circuito, mais importante que o nível da renda, são a baixa
incorporação de inovações técnico-científicas e a ausência de seguridade social.
Uma nova segmentação da população urbana é produzida, com aqueles integrados ao circuito
principal, os denominados vulneráveis, por sua inserção no circuito inferior, dinâmico mas inse-
guro, e os excluídos, aqueles que não conseguem mais trabalho ou outra fonte de renda, e acabam
perdendo até mesmo sua condição de cidadania.38
O setor que mais cresce é o dos vulneráveis, por suas características demográficas e pela dinâmica
dos processos econômicos. Eles não devem ser considerados uma classe social, pois entre eles existem
trabalhadores assalariados, empresários, autônomos, contraventores e desempregados. Também não
podem ser classificados como lumpen, pois integram um circuito dinâmico e produtivo da sociedade.
O problema é que, quando um trabalhador desse circuito é incapacitado, por doença, acidente ou
velhice, tende a ser deslocado, com sua família, para o grupo dos excluídos.
48
É evidente que os níveis de desgaste, projetos de saúde e perfis epidemiológicos dos grupos sociais
que integram os diferentes segmentos são muito diferentes.
Os integrados têm expectativa de vida, problemas de saúde e acesso a serviços, através dos planos
de saúde, semelhantes àqueles dos países centrais, independentemente do lugar onde vivem. Pode-se
esperar que a forte pressão pelo aumento de produtividade e instabilidade no emprego vá aumentar
os problemas da saúde mediados pelo stress, mas ao também induzir mudanças no estilo de vida,
como meio de assegurar competitividade.
Os excluídos urbanos certamente têm altas taxas de mortalidade, mas não existem propostas de
saúde específicas para esse grupo social. Pode-se esperar que tuberculose, desnutrição, alcoolismo e
doenças mentais sejam problemas muito importantes entre eles.
Os vulneráveis são o grupo mais complexo, onde os problemas de saúde se avolumam, impondo no-
vos modelos assistenciais. Como não estão mais diretamente vinculados aos setores mais dinâmicos
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
das doenças,40 que introduz conceitos como incapacidade e anos potenciais de vida perdidos no cál-
culo de uma nova geração de indicadores de saúde.
No Brasil, a incorporação nas práticas de saúde dessa dimensão estratégica de interesse global ainda
é incipiente, embora inevitável.
O projeto de saúde do Estado Brasileiro parece haver chegado a um impasse, devido à superposição
de objetivos e modelos mal resolvidos, inerentes a conjunturas passadas,41 respondendo a múltiplos
interesses que não são aqueles do conjunto da população, nem estão relacionados com o desenvol-
vimento das forças produtivas. O que é bem característico da nossa modernização, pactuada com
poderes regionais conservadores.
De qualquer modo, a fragmentação territorial e o aprofundamento da segmentação social colocam
em questão a viabilidade de um projeto comum, ainda que mantendo a concepção operacional de
Sistema Único de Saúde.
Três componentes se impõem:
O assistencialismo, voltado aos grupos dos excluídos, tanto aqueles dos bolsões de pobreza nos do-
mínios conservadores como, e principalmente, os novos excluídos urbanos. Como é feito em muitos
países, por razões éticas e morais, é urgente a implantação de programas de distribuição gratuita de
alimentos e medicamento, eliminando a dor e a fome agudas, e o controle de doenças transmissíveis.
50
A preservação da saúde e da capacidade de trabalho daqueles integrados nos processos dinâmicos
do circuito principal, através da difusão mais eficaz de informações sobre saúde, induzindo mu-
danças nos estilos de vida, minimizando fatores de risco bem conhecidos, e da implementação de
modelo assistencial centrado na eficácia dos procedimentos médicos.
Para aqueles que integram o circuito inferior, o projeto de saúde pública tem que estar centrado
na implementação de programas efetivos de prevenção específica de doenças, particularmente as
não transmissíveis para as quais já se dispõe há décadas de recursos preventivos eficazes, capazes
de reduzir a incidência e o risco de evolução para formas graves, e para o tratamento das enfermi-
dades tratáveis, de modo a assegurar a recuperação da saúde.
Os serviços públicos de saúde têm também que assumir sua dimensão comunitária, já que estão na
interface do circuito inferior com as políticas de Estado, podendo atuar como instrumento de con-
trole social ou na promoção da saúde.42
Grupos de ajuda mútua, assistência psicológica por grupos religiosos, mutirões comunitários para COLETÂNEA
DE TEXTOS
ações de saneamento e vacinação, ações comunitárias de atenção aos idosos, incapacitados e crianças
vulneráveis, grupos de apoio aos dependentes de drogas, são exemplos de como as soluções têm sido
51
Esta mesma municipalização, entretanto, na medida em que reforça o poder de decisão de políticos
locais, também possibilita o reforço do uso clientelista dos recursos de saúde, direcionando-os para
práticas assistencialistas ineficazes.
Os profissionais de saúde pública, nesta interseção crítica, podem vir a ter, atuando junto com os
grupos sociais organizados, um papel relevante na composição de uma nova proposta, de interesse
do Estado e da população, mas centrado nos problemas concretos das pessoas, que articule o conhe-
cimento científico e o saber popular, a capacidade técnica de prevenir e curar certas enfermidades
com a competência de viver com aquelas que não podem ser curadas, e de dar assistência respeitosa
à morte, integrados em um só projeto de vida e saúde.
Referências
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Paulo Chagastelles Sabroza
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LEAL, M.C.; SABROZA,P.C.; RODRIGUEZ, R.H.; BUSS, P.M.(Org). Saúde, Ambiente e DesenvolvimentoVol 2. São
Paulo-Rio de Janeiro Hucitec-Abrasco, p. 56-77, 1992.
52
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SUS. 2 Abr / Jun, 1996.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
53
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: PRINCÍPIOS1 do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
1
Texto publicado originalmente no Caderno Planejamento e Gestão em Saúde, organizado por Francisco Eduardo Campos, Lídia Maria
Tonon e Mozart de Oliveira Júnior. Belo Horizonte: Coopmed (Caderno de Saúde, 2). Reprodução autorizada pelos autores.
2
CUNHA, João Paulo Pinto da; CUNHA, Rosani Evangelista da Cunha. Sistema Único de Saúde: princípios. In: BRASIL.
Ministério da Saúde. Gestão municipal de saúde: textos básicos. Rio de Janeiro: MS, 2001. p. 285-304.
55
O processo histórico de construção do SUS
O Período 23-30: nascimento da Previdência Social no Brasil
O surgimento da Previdência Social no Brasil se insere num processo de modificação da postura libe-
ral do Estado frente à problemática trabalhista e social, portanto, num contexto político e social mais
amplo. Esta mudança se dá como decorrência da contradição entre a posição marcadamente liberal
João Paulo Pinto da Cunha e Rosani Evangelista da Cunha
Curso de
Em relação às ações de saúde coletiva, este período é marcado pelo surgimento do chamado “sani-
Desenvolvimento tarismo campanhista”, nascido da Reforma Carlos Chagas em 20-23. Este sanitarismo se pautava
Gerencial
do SUS por uma visão de combate às doenças de massa, com forte concentração de decisões e com estilo
COLETÂNEA repressivo de “intervenção sobre os corpos individual e social”. Alguns anos antes, em 1920, havia
DE TEXTOS
sido criado o Departamento Nacional de Saúde Pública, responsável por estas ações.
Sistema Único de Saúde: Princípios
Pública (SESP), com atuação voltada para as áreas não cobertas pelos serviços tradicionais.
As ações de Previdência são agora caracterizadas pelo crescimento dos gastos, elevação de despesas,
diminuição de saldos, esgotamento de reservas e déficits orçamentários. Isto levou a um processo de
repartição simples, e não mais à capitalização, como no período anterior. Tais mudanças podem ser ex-
plicadas como resultado de uma tendência natural (maior número de pessoas recebendo benefícios, uma
vez que esta é a época de recebimento de benefícios dos segurados incorporados no início do sistema);
e também em decorrência de mudanças de posições da Previdência Social (desmontagem das medidas
de contenção de gastos dos anos 30-45; crescimento dos gastos com assistência médica, que sobem de
2,3% em 45 para 14,9% em 66; crescimento dos gastos com benefícios em função do aumento dos
beneficiários e de mudanças nos critérios de concessão de benefícios e no valor médio destes).
A legislação pós-45 é marcada pela progressiva desmontagem das medidas de cunho contencionista
do período anterior. Na Constituição de 46, a assistência sanitária é incorporada à Previdência So-
cial, e em 1953 é promulgado o “Regulamento Geral dos Institutos de Aposentadoria e Pensão”, que
formaliza a responsabilidade dos mesmos com a assistência médica. A Lei Orgânica da Previdência
Curso de Social (LOPS), promulgada em 1960, uniformiza direitos dos segurados de diferentes institutos,
Desenvolvimento
Gerencial
o que agrava as dificuldades financeiras crescentes da Previdência no período. Esta lei pode ser
do SUS considerada um marco da derrota do modelo contencionista anterior, estendendo ao conjunto dos
COLETÂNEA segurados um plano extremamente amplo de benefícios e serviços. Além da assistência médica e dos
DE TEXTOS
benefícios pecuniários, a legislação se refere a habitação, empréstimos e alimentação.
Sistema Único de Saúde: Princípios
A uniformização dos benefícios alcançados com a LOPS, assim como a extensão da Previdência So-
cial aos trabalhadores rurais, por meio do Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado no governo João
Goulart, não são acompanhadas de novas bases financeiras concretas para sua efetivação. Para fazer
frente aos novos gastos, a contribuição dos segurados é progressivamente elevada. Quanto à contri-
buição do Estado, a LOPS rompe com o conceito de contribuição tripartite. Cabem à União, a partir
de então, apenas os gastos com administração e pessoal.
Nessa mesma época, o Brasil passa a ser influenciado pelas ideias de seguridade social que são am-
plamente discutidas no cenário internacional após a Segunda Guerra mundial, em contraposição ao
conceito de seguro da época anterior. Ao mesmo tempo, vive-se um intenso processo de construção
e compra de hospitais, ambulatórios e equipamentos, por parte dos institutos, e de celebração de
convênios para prestação de assistência médico-hospitalar aos segurados.
Com o golpe de 1964 e o discurso de racionalidade, eficácia e saneamento financeiro, ocorre
a fusão dos IAPs, com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Este fato,
ocorrido em 1966, marca também a perda de representatividade dos trabalhadores na gestão do
sistema. A unificação enfrentava resistências dos grupos privilegiados pelo antigo sistema corpora-
tivo. O governo, no entanto, alegava que a centralização de recursos poderia ser a alternativa para
viabilizar o cumprimento do direito de assistência à saúde.
58
Em relação à assistência médica, houve um crescimento dos serviços médicos próprios da Previ-
dência e dos gastos com assistência médica em geral, mas persistia uma demanda elevada, agravada
pelo fato de este direito ter sido estendido a todos os segurados. Os serviços próprios continuavam a
conviver com o setor privado conversado e contratado, também em expansão.
O sanitarismo desenvolvimentista, característico do período, teve sua contribuição mais voltada
para as discussões conceituais relacionadas à saúde. Os sanitaristas da época estabeleceram relação
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
acompanha a postura do governo federal como um todo. De 1969 a 1975, a porcentagem de serviços
comprados de terceiros representou cerca de 90% da despesa do INPS.
A modalidade de compra de serviços adotada possibilitou o superfaturamento por parte dos serviços
contratados, com prejuízo do atendimento médico prestado e colocando em risco o sistema financei-
ro da instituição. Para aumentar o faturamento, estes serviços utilizavam os expedientes de multipli-
cação e desdobramento de atos médicos, preferência por internações mais caras, ênfase em serviços
cirúrgicos, além da baixa qualidade do pessoal técnico e dos equipamentos utilizados.
A expansão do complexo previdenciário criou uma nova modalidade de atendimento, a medicina de
grupo, estruturada a partir de convênios entre o INPS e empresas, ficando estas com a responsabili-
dade pela atenção médica de seus empregados. O convênio-empresa foi a forma de articulação entre
o Estado e o empresariado que viabilizou o nascimento e o desenvolvimento do subsistema que viria
a se tornar hegemônico na década de 80, o da atenção médica supletiva.
Apesar das atribuições definidas pelo Decreto-Lei 200/67 para o Ministério da Saúde, com subor-
Curso de dinação da assistência médica previdenciária à política nacional de saúde, a prática mostrava um
Desenvolvimento
Gerencial ministério esvaziado em suas competências. São incorporadas a ele a Fundação SESP e a Fundação
do SUS das Pioneiras Sociais, dando início à autarquização do ministério, que acompanhava processo similar
COLETÂNEA da administração federal.
DE TEXTOS
Por parte da saúde coletiva, as ações estão dispersas num conjunto de ministérios: Agricultura,
Sistema Único de Saúde: Princípios
Transportes, Trabalho, Interior, Educação etc., e internamente ao Ministério da Saúde, num conjun-
to de órgãos da administração direta e indireta.
60
Em 1974, são criados o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e o Fundo de Apoio
ao Desenvolvimento Social (FAS). A criação do ministério significou o fortalecimento das ações de
Previdência no interior do aparelho estatal. A criação do FAS proporcionou a remodelação e a am-
pliação dos hospitais da rede privada, por meio de empréstimos com juros subsidiados. A existência
de recursos para investimento e a criação de um mercado cativo de atenção médica para os prestado-
res privados levaram a um crescimento próximo de 500% no número de leitos hospitalares privados
mas de relacionamento por meio de contratos, com pagamento de serviços prestados e convênios,
61
Tendo como referência as experiências em vigor, as recomendações internacionais e a necessidade
de expandir cobertura, em 1976 inicia-se o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Sa-
neamento (PIASS). Concebido na Secretaria de Planejamento da Presidência da República, o PIASS
se configura como o primeiro programa de medicina simplificada do nível federal e irá permitir a
entrada de técnicos provenientes do “movimento sanitário” no interior do aparelho de Estado. O
programa concentra suas ações nas Secretarias Estaduais de Saúde, que adotam modelos desconcen-
João Paulo Pinto da Cunha e Rosani Evangelista da Cunha
trados. Em 1979, é estendido a todo o território nacional, o que resultou numa grande expansão da
rede ambulatorial pública.
Esta época pode ser definida como o início do movimento contra-hegemônico que, nos anos 80, viria
a se conformar como o projeto da Reforma Sanitária brasileira. Em todo o país, surgem movimentos
de trabalhadores de saúde. São criados o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES) e a As-
sociação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), que participam do processo
de sistematização das propostas de mudança do modelo de saúde em vigor. Acontecem também os
primeiros encontros de secretários municipais de saúde, alimentando um incipiente, mas crescente,
movimento municipalista em saúde.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
A década de 80: eclosão da crise estrutural e consolidação das propostas reformadoras
Sistema Único de Saúde: Princípios
O Brasil vivia um quadro político e econômico marcado por dificuldades no panorama nacional e in-
ternacional, caracterizado por um processo inflacionário e uma crise fiscal sem controle, ao lado do
crescimento dos movimentos oposicionistas e de divisões internas nas forças que apoiavam o regime.
A derrota do governo nas eleições de 1982, agregada ao crescimento do processo recessivo, “quebrou a
coesão interna do regime, determinando um redesenho de seus pactos”. Têm início neste momento os
movimentos em direção ao processo de redemocratização do país. Teixeira & Oliveira (1976) definem
os anos 80-83 como o período de eclosão de três crises: ideológica, financeira e político-institucional.
A crise ideológica se caracteriza pela necessidade de reestruturação e ampliação dos serviços de saú-
de. As experiências antes relatadas e a repercussão interna da Conferência de Alma-Ata – cujos países
participantes reconhecem a atenção primária e a participação comunitária como estratégias para a
conquista da meta “Saúde para todos no ano 2000” – inspiram a formulação do PREV-SAÚDE. Este
projeto incorpora os pressupostos de hierarquização, participação comunitária, integração de servi-
ços, regionalização e extensão de cobertura. A discussão do projeto faz eclodir uma divisão profunda
entre a equipe responsável pelo mesmo e alguns setores interessados na questão saúde, principalmen-
te a Federação Brasileira de Hospitais. Isto origina versões diferentes do PREV-SAÚDE e faz com
que ele seja caracterizado como “natimorto”, não chegando a ser implementado.
A crise financeira é decorrente do déficit crescente desde 1980. Em contradição com um sistema em
franca expansão, a base de financiamento continuava sem qualquer alteração. Havia um desacordo
62
entre a crescente absorção de faixas cada vez mais extensas da população cobertas pela proteção so-
cial e a manutenção de um regime financeiro calcado na relação contratual.
Ao lado da restrição das fontes de financiamento, com ausência do Estado no financiamento da Previ-
dência e da expansão de cobertura, o modelo de privilegiamento dos produtores privados de serviços
de saúde implantado é corruptor, incontrolável e sofisticado, o que o torna extremamente oneroso.
Isto levou a propostas de contenção de despesas, especialmente da assistência médica.
O CONASP era composto por representantes de diferentes ministérios, por representantes da socie-
dade civil e de parte dos prestadores de serviços de saúde contratados/conveniados. As propostas, de
inspiração racionalizadora, visando cortar custos, têm sua maior expressão no documento “Reorga-
nização da Assistência Médica no Âmbito da Previdência Social”, formulado em 1982. O documento
recupera propostas antes apresentadas pelo PREV-SAÚDE no sentido da hierarquização, regionaliza-
ção, descentralização e integração de serviços, dentre outras. Propõe mudanças na sistemática de pa-
gamentos, introduz novos mecanismos de auditoria técnica e propõe a plena utilização da capacidade
instalada dos serviços públicos de saúde, incluindo os estaduais e municipais. Curso de
Desenvolvimento
Ao lado das propostas racionalizadoras do CONASP, cresciam os movimentos reformadores da saúde e Gerencial
do SUS
o movimento oposicionista no país. Em 1982, são eleitos vários prefeitos comprometidos com as pro-
COLETÂNEA
postas de descentralização, o que levou a bem-sucedidas experiências municipais de atenção à saúde. DE TEXTOS
A proposta do CONASP foi consubstanciada nas Ações Integradas de Saúde (AIS), que podem ser
63
Este documento serviu de base para as negociações na Assembleia Nacional Constituinte, que se
reuniria logo após.
Em paralelo ao processo de elaboração das propostas de mudança no setor de saúde, deu-se a confor-
mação de outro modelo, o chamado modelo neoliberal.
Durante o processo de elaboração da Constituição Federal, outra iniciativa de reformulação do sis-
João Paulo Pinto da Cunha e Rosani Evangelista da Cunha
tema foi implementada, o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). Idealizado como
estratégia de transição em direção ao SUS, propunha a transferência dos serviços do INAMPS para
estados e municípios. O SUDS pode ser percebido como uma estadualização de serviços. Seu prin-
cipal ganho foi a incorporação dos governadores de estado no processo de disputa por recursos
previdenciários. Contudo, a estadualização, em alguns casos, levou à retração de recursos estaduais
para a saúde e à apropriação de recursos federais para outras ações, além de possibilitar a negociação
clientelista com os municípios.
Como resultante dos embates e das diferentes propostas em relação ao setor de saúde presentes
na Assembleia Nacional Constituinte, a Constituição Federal de 1988 aprovou a criação do SUS,
reconhecendo a saúde como um direito a ser assegurado pelo Estado e pautado pelos princípios de
universalidade, equidade, integralidade e organizado de maneira descentralizada, hierarquizada e
com participação da população.
Quadro 6 – A década de 80: eclosão da crise estrutural e consolidação das propostas reformadoras
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Sistema Único de Saúde: Princípios
64
Ou seja, para se ter saúde, é preciso possuir um conjunto de fatores, como alimentação, moradia,
emprego, lazer, educação etc. A saúde se expressa como um retrato das condições de vida. Entretan-
to, a ausência de saúde não se relaciona apenas com a inexistência ou a baixa qualidade dos serviços
de saúde, mas com todo este conjunto de determinantes.
A saúde precisa, desta forma, incorporar novas dimensões e se torna responsável por conquistas que,
até então, se colocavam externas a ela. O sistema de saúde deve-se relacionar com todas as forças
Para ele, este poder pode ser traduzido como autoridade e responsabilidade sanitárias. Em segundo
lugar, a saúde faz parte de um sistema mais amplo, o Sistema da Seguridade Social. De acordo com
o artigo 194 da Constituição, a Seguridade Social “compreende um conjunto integrado de ações de Curso de
Desenvolvimento
iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinada a assegurar os direitos relativos à saúde, à Gerencial
do SUS
previdência e à assistência social”.
COLETÂNEA
Ao lado do conceito ampliado de saúde, o SUS traz dois outros conceitos importantes: o de sistema DE TEXTOS
e a ideia de unicidade. A noção de sistema significa que não estamos falando de um novo serviço ou
65
João Paulo Pinto da Cunha e Rosani Evangelista da Cunha
Princípios doutrinários
Universalização
Historicamente, quem tinha direito à saúde no Brasil eram apenas os trabalhadores segurados do
INPS e depois do INAMPS. Com o SUS, isto mudou: a saúde passa a ser um direito de cidadania de
todas as pessoas e cabe ao Estado assegurar este direito. Neste sentido, o acesso às ações e serviços
deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, renda, ocupação ou outras
Curso de características sociais ou pessoais. O SUS foi implantado com a responsabilidade de tornar realidade
Desenvolvimento
Gerencial este princípio.
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Equidade
O objetivo da equidade é diminuir desigualdades. Mas isso não significa que a equidade seja sinônimo
Sistema Único de Saúde: Princípios
de igualdade. Apesar de todos terem direito aos serviços, as pessoas não são iguais e, por isso, têm
necessidades diferentes. Equidade significa tratar desigualmente os desiguais, investindo mais onde a
carência é maior. Para isso, a rede de serviços deve estar atenta às necessidades reais da população a
ser atendida. A equidade é um princípio de justiça social.
Integralidade
O princípio da integralidade significa considerar a pessoa como um todo, atendendo a todas as suas ne-
cessidades. Para isso, é importante a integração de ações, incluindo a promoção da saúde, a prevenção
de doenças, o tratamento e a reabilitação. Ao mesmo tempo, o princípio da integralidade pressupõe a
articulação da saúde com outras políticas públicas, como forma de assegurar uma atuação intersetorial
entre as diferentes áreas que tenham repercussão na saúde e qualidade de vida dos indivíduos.
Princípios organizativos
Para organizar o SUS a partir dos princípios doutrinários apresentados e considerando-se a ideia de
seguridade social e relevância pública, existem algumas diretrizes que orientam o processo. Na ver-
dade, trata-se de formas de concretizar o SUS na prática.
66
Regionalização e hierarquização
A regionalização e a hierarquização de serviços significam que os serviços devem ser organizados em
níveis crescentes de complexidade, circunscritos a determinada área geográfica, planejados a partir
de critérios epidemiológicos, e com definição e conhecimento da clientela a ser atendida. Como se
trata aqui de “princípios”, de indicativos, este conhecimento é muito mais uma perspectiva de atua-
ção do que uma delimitação rígida de regiões, clientelas e serviços.
lização, ou municipalização, é uma forma de aproximar o cidadão das decisões do setor e significa COLETÂNEA
DE TEXTOS
a responsabilização do município pela saúde de seus cidadãos. É também uma forma de intervir na
qualidade dos serviços prestados.
Participação popular
O SUS foi fruto de um amplo debate democrático. Mas a participação da sociedade não se esgotou
nas discussões que deram origem ao SUS. Esta democratização também deve estar presente no dia-a-
-dia do sistema. Para isto, devem ser criados os Conselhos e as Conferências de Saúde, que têm como
função formular estratégias, controlar e avaliar a execução da política de saúde.
Os Conselhos de Saúde, que devem existir nos três níveis de governo, são órgãos deliberativos, de
caráter permanente, compostos com a representatividade de toda a sociedade. Sua composição deve
ser paritária, com metade de seus membros representando os usuários, e a outra metade, o conjun-
to composto por governo, trabalhadores da saúde e prestadores privados. Os conselhos devem ser
criados por lei do respectivo âmbito de governo, em que serão definidas a composição do colegiado
e outras normas de seu funcionamento.
67
As Conferências de Saúde são fóruns com representação de vários segmentos sociais que se reúnem
para propor diretrizes, avaliar a situação da saúde e ajudar na definição da política de saúde. Devem
ser realizadas em todos os níveis de governo.
Um último aspecto que merece destaque é o da complementaridade do setor privado. Este princí-
pio se traduz nas condições sob as quais o setor privado deve ser contratado, caso o setor público se
mostre incapaz de atender a demanda programada. Em primeiro lugar, entre os serviços privados
João Paulo Pinto da Cunha e Rosani Evangelista da Cunha
devem ter prioridade os não-lucrativos ou filantrópicos. Para a celebração dos contratos, deverão ser
seguidas as regras do direito público. Em suma, trata-se de fazer valer, na contratação destes ser-
viços, a lógica do público e as diretrizes do SUS. Todo serviço privado contratado passa a seguir as
determinações do sistema público, em termos de regras de funcionamento, organização e articulação
com o restante da rede. Para a contratação de serviços, os gestores deverão proceder a licitação, de
acordo com a Lei Federal no 8.666/93.
A criação do SUS, pela Constituição Federal, foi depois regulamentada através das Leis no 8.080/90,
conhecida como Lei Orgânica da Saúde, e no 8.142/90. Estas leis definem as atribuições dos diferen-
tes níveis de governo com a saúde; estabelecem responsabilidades nas áreas de vigilância sanitária,
epidemiológica e saúde do trabalhador; regulamentam o financiamento e os espaços de participação
popular; formalizam o entendimento da saúde como área de “relevância pública” e a relação do po-
der público com as entidades privadas com base nas normas do direito público, dentre outros vários
princípios fundamentais do SUS. Outros instrumentos têm sido utilizados para possibilitar a ope-
racionalização do Sistema, dentre eles as Normas Operacionais Básicas do Sistema Único de Saúde,
Curso de
Desenvolvimento publicadas pelo Ministério da Saúde, sob a forma de portaria.
Gerencial
do SUS
cípios brasileiros. Esta não tem sido uma tarefa simples e enfrenta obstáculos de toda ordem: dificulda-
des de financiamento, disputa de grupos com interesses divergentes, insuficiência de capacidade geren-
cial, excessiva burocracia nas formas de administrar a coisa pública, experiência ainda recente com os
processos de descentralização e democratização, insuficiência de mecanismos jurídicos para a regulação
da rede privada, formação de recursos humanos com perfil diferente daquele demandado pelo novo
sistema e uma lista interminável de outros problemas. Apesar disso, várias experiências bem-sucedidas
têm sido implementadas. O SUS se constrói no cotidiano de todos aqueles interessados na mudança da
saúde no Brasil. Entendê-lo é uma boa forma de fortalecer a luta por sua construção.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde. Brasília, 1986.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei n. 8.080/90. Brasília: Diário Oficial da União, 1990.
BRASIL. Lei n. 8.142/90. Brasília: Diário Oficial da União, 1990.
BRASIL. Ministério da Saúde. Incentivo à participação popular e controle social no SUS. Brasília: IEC, 1994.
GOULART, F. A. A. Distritalização e Responsabilidade Sanitária. Brasília, 1991.
MENDES, E. V. Distrito Sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo:
Hucitec/Abrasco, 1993.
TEIXEIRA, S. M. F. & OLIVEIRA, J. A. A. Previdência Social: 60 anos de história da Previdência no Brasil. Petrópolis:
Vozes/Abrasco, 1976.
68
POLÍTICA DE SAÚDE EM MATO GROSSO: Curso de
Desenvolvimento
DA REGIONALIZAÇÃO1 COLETÂNEA
DE TEXTOS
LUISA GUIMARÃES2
O estudo de aspectos da política estadual de saúde em Mato Grosso, no período de 1995 a 2000,
quando o desenvolvimento da atenção à saúde teve como prioridade a organização das ações e servi-
ços sob a lógica da regionalização, traz elementos relevantes para a discussão da cooperação intergo-
vernamental, necessária ao processo de descentralização.3 No caso de Mato Grosso, os municípios
foram estimulados pela gestão estadual a formar consórcios entre si e a estabelecer parcerias com o
Estado e, assim, viabilizar a provisão da atenção especializada – referência para a atenção básica – de
uma região definida. Buscava-se, nesse sentido, resolver de forma cooperativa problemas comuns,
cuja solução extrapolava a capacidade e os recursos de cada município ou do Estado, com benefícios
para todos. Os ganhos com a associação ultrapassavam, já em princípio, aspectos administrativos,
porque não se tratava de iniciativa isolada, mas integrante do processo de descentralização setorial,
que, a longo prazo, contribuiria para o aumento da integralidade da atenção no interior do Estado e
redução de iniquidades no sistema.
1
Publicação originalmente em: GUIMARÃES, Luisa. Política de Saúde em Mato Grosso: dois mandatos para a construção da
regionalização. In: MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Saúde. Regionalização da saúde em Mato Grosso: em busca da integralidade
da atenção. Mato Grosso: SES, 2002. p. 39-66. Este texto é parte do capítulo IV da Dissertação de Mestrado “Arquitetura da
Cooperação Intergovernamental: os Consórcios em Saúde de Mato Grosso”, defendida pela autora junto à ENSP/Fiocruz.
Reprodução autorizada pela autora.
2
Psicóloga, Mestre em Ciências e Psicóloga do Ministério da Saúde.
3
A pesquisa está delimitada no período de 1995 a 2000 e foi desenvolvida no contexto do Governo Dante Martins de Oliveira, de
1995 a 1998, reeleito para o período seguinte (1999 a 2002). O Governador, membro do Partido Social Democrata do Brasil (PSDB),
foi eleito por coalizão de 10 partidos, com 72,5% dos votos. Dante de Oliveira tem longa trajetória política, desde movimentos
estudantis e populares, até deputado estadual (1978, pelo Movimento Democrático Brasileiro – MDB), deputado federal (1982),
prefeito de Cuiabá (1985 e em 1992, pelo Partido Democrata Trabalhista – PDT), ministro de Estado (1986) e governador (1995 e
1999). Alcançou popularidade nacional em 1984, com a autoria da emenda constitucional que propôs a eleição direta para Presidente
da República e que impulsionou a campanha pelas Diretas-já. Os grandes projetos de seu governo no Estado foram empreendimentos
energéticos, consórcios intermunicipais de saúde, democratização do ensino e autonomia das escolas (Governo de Mato Grosso, 2001).
As metas para o segundo mandato incluem investimentos na área social e estímulo ao desenvolvimento econômico e industrial de forma
sustentável, de modo a assegurar o patrimônio ambiental de Mato Grosso (Governo de Mato Grosso, 2001). Nos dois mandatos, o
governador manteve à frente da pasta da saúde Júlio Strubing Müller Neto, médico sanitarista, ex-Secretário Municipal de Saúde de
Cuiabá, quando Dante de Oliveira foi Prefeito da Capital (Governo MT, 2001).
69
O incentivo à formação de consórcios de saúde foi um componente da política de Governo de Estado,
empreendida pela gestão estadual, como integrante da proposta de organização regional do sistema de
atenção à saúde (Governo do Estado de Mato Grosso, 1998), que incluía um conjunto de transforma-
ções, entre as quais: a reestruturação do órgão estadual gestor da saúde, a criação das Comissões Intergestores
Bipartite Regionais (CIBR), a realização da Programação Pactuada e Integrada (PPI), a implantação do Siste-
ma Estadual de Referência (SER) – com as respectivas Câmaras de Compensação Regionais (CCR) e Centrais
de Regulação Regionais (CRR) – e a organização de Câmaras de Auditorias Regionais (CAR). A ativação de
todos esses mecanismos, simultânea à efetivação do processo de descentralização, objetivava promover
mudança do modelo de atenção de fragmentado para regionalizado.4 O desenvolvimento da política de saú-
de de Mato Grosso, no período estudado, indica, finalmente, que, para a efetividade da implementação
do processo de descentralização, implantado por meio de normas federais – de caráter universal –, foi
necessária a coordenação e a atuação da gestão estadual na assessoria e na capacitação dos municípios, na
definição de incentivos e, fundamentalmente, na transferência da decisão referente à gestão de sistemas
de saúde para espaços regionais (SES/MT, 2000d).
A situação do Estado e dos municípios de Mato Grosso na construção de acordos e pactos, mediante o
consórcio e a regionalização na saúde, ainda que rica em potencialidades e expressiva nos resultados,
Luisa Guimarães
não pode ser generalizada para todos os demais, porque tem um valor agregado, resultante de espe-
cificidades locais – políticas e sociais – que confluem, por conseguinte, para um processo de organi-
zação regional próprio, baseado na cooperação entre municípios e Estado.5 Todavia, para analisar o
consórcio como instrumento de cooperação intergovernamental no processo de descentralização, o
Curso de caso de Mato Grosso foi identificado como significativo, porque nesse Estado seria possível observar
Desenvolvimento
Gerencial o surgimento e o desenvolvimento da cooperação entre os municípios e desses com o Estado, a partir
do SUS
de uma política ativa do governo estadual, adotada em 1995, e mantida no mandato seguinte.6
COLETÂNEA
DE TEXTOS Para alcançar os objetivos de pesquisa do consórcio como instrumento de cooperação intergover-
namental, partiu-se de uma panorâmica de características do Estado de Mato Grosso e da gestão da
para a construção da regionalização
Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos
4
Modelo de atenção à saúde é aqui entendido como a forma em que ocorre o atendimento das necessidades sentidas e não sentidas
da população, que resulta em um tipo de relação e de interação entre os recursos disponíveis e essa população. Há farta literatura
sobre o tema e opiniões contrastantes. Regionalização, por sua vez, é aqui entendida como articulação e mobilização municipal, que
considera características geográficas, fluxo de demanda, perfil epidemiológico, oferta de serviços e vontade política expressa pelos
municípios de se consorciar ou estabelecer outra relação de caráter cooperativo (NOB/93).
5
No caso específico do setor saúde, denota-se que o Secretário Estadual reúne características de liderança tradicional, carisma
pessoal e competência técnica, com compromisso social.
6
Políticas ativas e contínuas são expressas por níveis governamentais interessados na implementação dessas, mediante a indução
eficientemente desenvolvida e implementada, que pode compensar atributos estruturais dos governos e das próprias políticas, implicando
na redução de custos e aumento de benefícios. É traduzida em decisões favoráveis aos programas de descentralização de meios e de
recursos financeiros, políticos e administrativos necessários para implementar tais políticas. São coordenadas e coincidentes com
outras ações de governo e os incentivos são contínuos, compensando obstáculos administrativos (Arretche, 2000:73-4).
7
Mato Grosso ocupa 10,6% da área territorial do Brasil (Gazeta Mercantil, 2000).
70
predominantemente urbana, seguindo a tendência do País. Contudo, apresenta baixa densidade de-
mográfica, em torno de 2,5 habitantes por quilômetro quadrado (IBGE apud SES/MT, 1998). Mato
Grosso possui 126 municípios, representando 2,3% do total de localidades do Brasil, onde residem
cerca de 1,6% da população brasileira.8
Entre as regiões do Brasil, a Centro-Oeste vem consolidando-se como área de produção agroin-
dustrial, impulsionada por forte ação estatal, fundamental para a ocupação e a transformação
produtiva da Região. Os investimentos públicos ocorreram tanto em infraestrutura de trans-
portes, energia e armazenagem, quanto em políticas de crédito rural e de preços, programas
de colonização e incentivo à pecuária.9 A expansão econômica decorrente foi acompanhada
por grandes fluxos migratórios, geradores de taxas de crescimento populacional superiores às
médias nacionais. No caso de Mato Grosso, esse processo esteve mais concentrado na região
central, de sul a norte do Estado – área de maior produção agropecuária e de valor da produção
industrial –, onde os municípios receberam migrantes provenientes do Centro-Sul e do Nor-
deste do País (Unicamp, 1999).10
No Centro-Oeste, ainda que expressivo, o crescimento populacional concentrou-se em cidades-
Luisa Guimarães
-polo, atrativas de investimentos privados de grande porte e de modernas indústrias com alta produ-
tividade. Tais fatores, ao fim e ao cabo, reforçaram disparidades existentes, consolidando a economia
do Centro-Oeste como complementar à do Sudeste, sem alcançar, portanto, transformações nas
relações de produção da Região.
Uma heterogeneidade espacial marcou a existência de cidades pouco estruturadas, com fracos laços Curso de
Desenvolvimento
de articulação e complementariedade, predominando municípios de pequeno porte e baixo grau de desen- Gerencial
do SUS
volvimento das atividades e dos serviços urbanos, com pouca inserção no cenário regional e nacional
COLETÂNEA
(Unicamp, 1999:178). DE TEXTOS
As correntes migratórias, por sua vez, foram em busca de melhores oportunidades de trabalho e,
8
Em 2000, foram criados novos municípios, totalizando 139 no Estado. Os municípios novos tiveram o primeiro governo municipal
no ano de 2001.
9
O Governo de Estado tem programa de incentivos (ampliação, equipamento, pesquisa) direcionado às indústrias atrelado à redução
da carga tributária. Nos últimos anos, a arrecadação tributária do Estado aumentou em nove vezes. No ano de 2000, Mato Grosso
foi o maior produtor nacional de soja, líder de produção nacional de algodão, vice-líder na safra de arroz e o quarto em rebanho de
rezes. O ecoturismo está recebendo investimentos internacionais. As características geográficas do Estado impõem que o transporte
seja intermodal, utilizando de hidrovias, rodovias e ferrovias em um mesmo percurso. Os investimentos em infraestrutura e
serviços refletem diretamente sobre maior circulação de informações e tecnologias. A área de serviços públicos representa mais
de 50% dos investimentos entre os anos de 1998 e 2005. Na indústria, no ano de 1997, apenas 21% dos investimentos privados se
concentraram na Capital (Gazeta Mercantil, 2000).
10
O Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região de Teles Pires está situado nesse corredor produtivo, na região mais central do Estado.
71
ritorial (Brasil, 2000).11 Em decorrência da migração, a taxa de crescimento foi de 2,39% ao ano, na
segunda metade da década de 1990 (SES/MT, 2000).
Em Mato Grosso, os municípios são pequenos em termos populacionais e apenas três cidades têm
populações grandes, em faixas de mais de 100 mil habitantes (Tabela 1 e Mapas 1 e 2). Dos 126 mu-
nicípios, 90 localidades (71%) têm população inferior a 15 mil habitantes e, nessas, residem cerca
de um terço (27%) da população total do Estado. Na capital, Cuiabá, moram 20% da população do
Estado. No interior, por sua vez, há grande dispersão, com dificuldades de acesso, grandes distâncias
e barreiras geográficas entre as cidades. A população indígena no Estado representa 1,3% da popula-
ção estadual, e existem 39 etnias, presentes em 44 municípios. Para essa população étnica, existem
programas específicos de atenção à saúde (SES/MT, 1998).
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Fonte: Elaborado com Base em Estimativa Populacional do IBGE 1998 apud SES/MT, 1998.
para a construção da regionalização
Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos
11
O Centro-Oeste ocupa ainda posição estratégica em relação à Região Amazônica, fator relevante, considerando que fluxos
migratórios se dirigiram ao interior dos Estados, e novos municípios foram surgindo ao longo de rodovias. Propriedades extensas
de terras, carentes de infraestrutura e em presença de reservas indígenas fazem parte do perfil das novas cidades, modificando
profundamente a ocupação territorial regional. De 1970 a 1995, por exemplo, a área de pastagem na Região teve incremento de
150% (Unicamp, 1999).
O PIB de 1997 foi composto de 45% para os setores agrícola e pecuária, 42% para serviços e 13% para indústria (Gazeta
12
Mercantil, 2000).
72
Distribuição populacional por município de Mato Grosso - 1996
Luisa Guimarães
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
73
Mato Grosso - Densidade demográfica - 1996
Luisa Guimarães
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
para a construção da regionalização
Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos
Luisa Guimarães
de leitos existentes no Estado (público e privado) estavam disponíveis para o SUS. Os leitos privados
contratados (54%) responderam por cerca de 30% do gasto hospitalar. O número de internações
estava em torno de 8,6 por 100 habitantes/ano. Quanto à natureza das unidades ambulatoriais e
hospitalares, 104 eram privadas e 44 públicas (SES/MT, 1998).
Curso de
Quanto à atenção ambulatorial, no ano de 1998, 67% das unidades de saúde do SUS existentes em Desenvolvimento
Gerencial
MT eram postos e centros de saúde, sendo que o gasto per capita ambulatorial totalizava R$ 23,45. do SUS
Nesses, 55% dos procedimentos realizados eram por profissionais não médicos (Aveianm — Atos COLETÂNEA
de vigilância epidemiológica, imunização e atos não médicos). No período de 1994 a 1998, houve DE TEXTOS
13
O valor orçado para a saúde, no ano de 1998, em Mato Grosso, corresponde a cerca de 70% do estabelecido para o ano de 2000
pela Emenda Constitucional 29.
75
parque assistencial e no fluxo de pacientes (Lavras, 1999).14 O surgimento da articulação de muni-
cípios, sob a forma de consórcios em algumas regiões do Estado, nesse período, modificou o fluxo
de paciente entre cidades em Mato Grosso. Com o objetivo de prover meios para a assistência espe-
cializada e hospitalar em uma região, os municípios mato-grossenses foram estimulados pelo Estado
a constituir consórcios intermunicipais. Assim, dos 126 municípios do Estado, 74 estão organizados
nos dez consórcios existentes, no ano de 2000, cobrindo cerca de 30% da população.
Mesmo fortemente estimulados e apoiados pela SES/MT, tais consórcios buscam a autonomia muni-
cipal e a cooperação mútua e com o Estado, com finalidade de potencializar a capacidade gestora do
SUS como um todo (Lavras, 1999).
No transcurso desta pesquisa, foi assumido que o documento Política de Saúde em Mato Grosso: diretrizes,
estratégias e projetos prioritários continha as diretrizes e as estratégias propostas pela gestão estadual.
A observação das diretrizes explicitadas no documento revelou que apontavam, fundamentalmente,
para a transformação do modelo de atenção à saúde, com a definição das atividades e o comparti-
lhamento de responsabilidades entre governos municipais e estadual. As estratégias orientavam-se
para a organização do sistema de saúde pela via da regionalização e o consórcio apresentou-se como
a principal ferramenta para enfrentar problemas comuns, na expansão da integralidade da atenção e
da equidade no interior do Estado.
O reconhecimento da função desse documento como orientador básico para a gestão da saúde no Estado
parte tanto da equipe técnica quanto do titular da SES, o qual reafirma, ao assumir o segundo mandato,
a importância do seu conteúdo para a discussão das ações do governo e a definição das prioridades.
14
A nova reconfiguração desenvolvida pelo Estado contou, em seu início, com apoio do MS, dentro do Projeto de Apoio à Reforma do
Sistema Único de Saúde – Componente Federal, parte integrante da cooperação técnica do Brasil – Reino Unido. O objetivo geral, no
caso de Mato Grosso, naquele projeto foi implantar sistemas microrregionais de saúde que contribuam com os municípios no desenvolvimento de
suas responsabilidades no âmbito no SUS, favorecendo a articulação intermunicipal, a qualificação da atenção à saúde e a otimização dos recursos
existentes e possibilitando o exercício pleno das funções gestoras das Secretarias Municipais de Saúde e da Secretaria Estadual de Saúde (Lavras,
1999:12). Nesse processo, o aprimoramento dos consórcios para a organização da atenção hospitalar e dos serviços de diagnóstico
e terapêutico foi um dos objetivos específicos.
15
A descrição da política estadual está fundamentada em documentos de várias naturezas do Governo do Estado, os quais expressam
o plano, as estratégias e a decisão política que sustentaram o desenho de regionalização proposto.
76
O documento da SES/MT está organizado em três títulos e um anexo (SES/MT, 2000c). Do pri-
meiro título – Referências Gerais para a Política Estadual de Saúde –, consta a articulação e a integração
de políticas sociais (saneamento, habitação, educação, promoção social, justiça e segurança, cultu-
ra, esporte) com as demais áreas do governo (energia, transporte, comunicação), referidas como
necessárias para a consolidação do SUS e para a redefinição do papel institucional da SES/MT.16 A
articulação e a integração entre políticas de governo buscariam potencializar a atividade pública, para
enfrentar problemas relativos à pobreza, à fome, às questões ambientais, à violência, ao processo pro-
dutivo e à urbanização. A consolidação do SUS se expressaria no estabelecimento de novas relações
– entre os entes federativos, entre o setor público e o privado e entre o governo e a sociedade – e
integraria um processo mais profundo de reforma democrática do Estado. A redefinição do papel
institucional da SES/MT, por sua vez, se traduziria na implantação de novos modelos de gestão e na
reorganização setorial para a promoção da saúde e o atendimento da demanda assistencial.
No segundo título – Diretrizes para a Política Estadual de Saúde –, estão estabelecidas as referências para
a implantação da política de saúde no Estado, que são: democratização e participação social, priorida-
de às ações de vigilância à saúde, melhoria quantitativa e qualitativa dos serviços assistenciais, regio-
nalização, descentralização e novos modelos assistenciais. Para a consecução dessas transformações,
Luisa Guimarães
os instrumentos estariam previstos nas políticas de ciência e tecnologia e de recursos humanos, que
redefiniriam o papel institucional da SES/MT e os novos modelos de gestão e organização.17
O terceiro capítulo – Estratégias – trata, em última instância, do aumento da capacidade da Secretaria
na condução do processo de construção e de consolidação da política estadual de saúde, tais como
Curso de
o estabelecimento e a consolidação de parcerias, a atuação intersetorial, a cooperação técnica e o Desenvolvimento
Gerencial
trabalho orientado por problemas, objetivos, resultados e projetos. Foi privilegiada a atividade de do SUS
interação intergovernamental para cooperar na solução de problemas comuns, buscar a superação de COLETÂNEA
conflitos e formar consensos. Essa interação ocorre em espaços e fóruns específicos, entre represen- DE TEXTOS
tantes dos níveis governamentais, desses com a sociedade civil organizada, com a representação dos
16
O SUS compreende um conjunto de ações e serviços realizados nos três níveis de governo para atender às demandas sanitárias
coletivas e individuais da população. As atividades assistenciais realizadas nos serviços se dirigem a indivíduos ou coletividades e
são prestadas em unidades ambulatoriais, hospitalares ou domiciliares, e realizadas por estabelecimentos públicos e privados. Essas
unidades se organizam em redes regionalizadas e hierarquizadas e conformam subsistemas municipais de atenção integral inseridos
no sistema estadual correspondente (MS/SAS, 2000).
17
As diretrizes foram revistas em 1998 e aqui figuram as atuais (SES/MT, 2000c).
77
O conjunto de proposições, por sua vez, expressa que a intenção da gestão estadual seria a de trazer,
para o centro das discussões entre os governos, a questão da organização do cuidado sanitário, com
um modelo de atenção definido. Esse modelo reforçaria a responsabilidade pela atenção de uma
população adscrita, na definição de prioridade para a atenção básica – executada pelo município – e
na busca da garantia da integralidade, mediante a parceria intergovernamental.18 A ação cooperativa
entre municípios, assim fomentada pelo Estado, objetivaria configurar as regiões como espaços de
decisão e de articulação intergovernamental, nos aspectos de programação financeira, contratação
de recursos humanos, administração de unidades de saúde mais especializadas e ampliação da oferta
de serviços no interior. A SES/MT, para tanto, passaria a exercer papel protagonista de coordenação
do sistema estadual de saúde, mediante política ativa de indução de mudança de modelo de orga-
nização da atenção e, ao mesmo tempo, assumiria a liderança setorial, integrando outras áreas do
governo, atualizando os processos de negociação entre esferas de gestão e, dessas, com a sociedade
e com os prestadores.
A análise do documento sugere, ainda, que a gestão estadual tenha, ao assumir o governo da SES/
MT, a disposição de compartilhar com os municípios a definição de mecanismos para contornar
dificuldades e ampliar a oferta de ações de saúde no âmbito regional e, assim, alcançar a atenção
Luisa Guimarães
integral. A avaliação do Estado, naquela época, indica que, se de um lado os municípios isolados
tinham capacidade restrita para assumir a gestão da atenção básica, de outro, o Estado não poderia,
sozinho, assumir a provisão de serviços mais complexos (secundários e terciários). Uma forma con-
ciliadora seria, então, implantar, simultaneamente, processos de transferência de responsabilidades
Curso de e de recursos referentes à atenção básica, até então centralizados, para o município, bem como gerar
Desenvolvimento
Gerencial espaços regionais institucionalizados de articulação, negociação, pactuação e cooperação quanto à
do SUS
atenção mais complexa. A proposta da SES baseia-se no consórcio em saúde como instrumento a ser
COLETÂNEA
DE TEXTOS estimulado, para contornar as limitações e fortalecer a capacidade de ambos os gestores em assumir
o novo modelo. Em decorrência de seu caráter cooperativo, cada um se fortaleceria para cumprir
a sua responsabilidade e todos se beneficiariam dos resultados alcançados. A pesquisa e o estudo de
para a construção da regionalização
Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos
18
A integralidade é diretriz do SUS que pressupõe articulação entre promoção, proteção, recuperação e reabilitação (ver
Giovanella et al., 2000).
78
A implantação efetiva da descentralização da gestão do SUS, prevista nas NOB’s, no caso de Mato
Grosso, foi traduzida e expressada nas linhas gerais da Política de Saúde em Mato Grosso: diretrizes, estra-
tégias e projetos prioritários, considerando o plano político da gestão estadual e a realidade institucional
setorial dos municípios e do próprio Estado. Nesse sentido, a gestão estadual teve ação pró-ativa em
duas direções: na morfologia dos sistemas de saúde (estrutura) e nos mecanismos necessários a sua implanta-
ção (organização). No presente estudo, o primeiro aspecto – morfologia do sistema – será discutido
a partir da análise da forma de implementação dos conteúdos das NOB’s, referente à partilha de
responsabilidades entre Estado e municípios, no desenho dos sistemas locais de saúde. Quanto ao
segundo aspecto – mecanismos –, foram estudados os instrumentos que a gestão estadual utilizou,
para formalizar os processos da organização regional da atenção no Estado.
No novo modelo proposto pela SES/MT, o papel do município seria de: (i) elaborar a programação
municipal de serviços de saúde de baixa e média complexidade; (ii) gerenciar unidades de saúde do seu
território; (iii) executar ações básicas de saúde; (iv) garantir a prestação de serviços de saúde em seu
território; e (v) avaliar os resultados e desempenho do Sistema Municipal de Saúde (SES/MT, s/data).
No caso de Mato Grosso, avaliações prévias realizadas pelo MS para acompanhar a implantação da
Luisa Guimarães
descentralização, no tocante ao estabelecido nas NOB’s, demonstram que, no período anterior ao do
governo em estudo – ano de 1994, primeiro de vigência da NOB/93 –, a saúde no Estado caracteri-
zava-se por forte descentralização da gerência e da gestão para os municípios, com frágil participação
estadual nas funções de coordenação do Sistema (MS/SAS, 1995 e 1995a), ou seja, por aquela avalia-
ção, embora ocorresse a descentralização em direção aos municípios, a gestão estadual não exercia
Curso de
papel na definição de estratégias, mecanismos e instrumentos, para promover acordos e pactos entre Desenvolvimento
Gerencial
os gestores. Tais acordos eram avaliados como favorecedores da implantação da descentralização e, do SUS
em consequência dessa lacuna, a municipalização decorria de iniciativa isolada do próprio município COLETÂNEA
sem a coordenação do Estado.19 O governo estadual, que se inicia em 1995, assumiu com a proposta DE TEXTOS
19 De acordo com a tipologia desenvolvida pelo Ministério da Saúde, o modelo de gestão mato-grossense, até 1994, era atomizado,
porque cada sistema de saúde municipal desenvolvia-se de forma isolada, não configurando o conjunto dos municípios do Estado
um sistema de saúde estadual e, nesse sentido, tal modelo tendia a reforçar as iniquidades históricas dos sistemas locais e regionais
de saúde (MS/SAS, 1995).
20
Cabe recordar que esse estudo tem, como recorte de tempo, o período compreendido entre o ano de 1995 e o de 2000. Assim, o
primeiro mandato do governo estadual em estudo (1995 a 1998) coincide com o período de vigência da NOB/93, com exceção do
último ano, quando entrou em vigência a NOB/96, publicada em fins de 1996 e operacionalizada em 1998.
79
à rede de serviços existente no território, considerando que apenas a capital, onde se concentram os
serviços de saúde, habilitou-se na condição mais avançada de gestão (Tabela 2).
O número de municípios habilitados nos termos da NOB/93 em MT, como mostra a Tabela 2, cor-
respondeu a 49% do total de municípios do Estado (19%, na condição incipiente; 29%, na condição
parcial e 1%, na semiplena), nos quais residiam 71% da população (9% da população do Estado resi-
diam em municípios habilitados na condição incipiente; 42%, na condição de gestão parcial e 20%,
na semiplena). Cuiabá foi habilitada em abril de 1995 e, portanto, no início do primeiro mandato
do governo estadual em estudo; a partir daí, passou a receber um teto financeiro correspondente a
cerca de 32% do total do teto financeiro estadual. Esse último aspecto sinaliza que a rede de serviços
existente no território de Cuiabá era referência para uma população maior que a residente naquela
cidade (20%) e, por conseguinte, que o acesso a esse tipo de serviço permanecia concentrado na
Capital do Estado (Tabela 2).21
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Fonte: Elaborado com base em informações do MS/SAS, 1997.
para a construção da regionalização
Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos
Ainda que a habilitação de Estados, nos termos da NOB/93, não tenha significado a efetivação da
transferência financeira prevista, alguns habilitaram-se às condições de gestão estabelecidas. Mato
Grosso foi um dos poucos que pleiteou e foi habilitado na condição de gestão parcial, em junho de
1994, durante o governo anterior. Embora bastante formal, a habilitação de Estados implicava no
cumprimento de uma série de requisitos por parte da gestão estadual: a aprovação do pleito, no âm-
bito estadual, pelo Conselho Estadual de Saúde (CES) e pela Comissão Intergestores Bipartite (CIB)
e, finalmente, a apresentação do processo ao MS para análise e aprovação na Comissão Intergestores
Tripartite (CIT). Todo esse trâmite para a habilitação requeria da gestão estadual ações administra-
tivas, as quais, a depender da decisão política, poderiam resultar em mudanças reais, tais como a
formulação e a implantação de um Plano Estadual de Saúde (PES), o funcionamento de um Fundo
Estadual de Saúde (FES), de um Conselho Estadual de Saúde (CES) e da CIB e, ainda, a implantação
de mecanismos e sistemáticas de descentralização.
21
A procedência das internações realizadas na Capital demonstra variação importante entre os anos de 1995 e 1998. Em 1995,
47,9% das internações eram de residentes em Cuiabá e, no ano de 1998, passa a ser 61,6%. O atendimento de residentes em
Cuiabá, no Pronto-Socorro, em 1998, corresponde a 82,1% dos atendimentos. Ambos dados são fortes indicativos de melhoria da
capacidade de resolução das redes assistenciais do interior do Estado (SES/MT, s/data).
80
Em 1996, foi aprovada uma nova NOB, que começou a ser operacionalizada apenas em 1998, por-
que, no ano de 1997, na CIT, foi discutido o valor financeiro do piso da atenção básica (PAB) – valor
per capita, distribuído pelo governo federal, para a cobertura de catálogo de ações de atenção básica
–, definição essencial para a efetivação da habilitação. Esse adiamento compulsório da habilitação
marcou um período em que vários Estados, inclusive Mato Grosso, iniciaram a preparação da habili-
tação, junto aos municípios, mediante a pactuação de requisitos, ainda que provisórios, para orientar
o processo de pleito municipal. 22 Tal preparação resultou que, de modo similar à Norma passada,
no primeiro ano de vigência da NOB/96, ocorressem todas as habilitações do Estado. Prevaleceu o
acordo e somente a Capital foi habilitada na condição de gestão mais avançada (Tabela 3). Assim, se,
por um lado, a habilitação foi ampliada para todos os municípios, por outro, manteve a tendência de
concentração na condição de gestão menos avançada (plena da atenção básica), ainda que possa impli-
car em mudanças significativas no modelo de atenção e, no caso da regionalização em Mato Grosso,
participação efetiva dos municípios na gestão do sistema estadual de saúde.
Luisa Guimarães
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Fonte: Elaborado com base em informações do MS/SAS, 2000.
22
Em 1997, o Estado estava organizado em polos regionais; em alguns, havia CIB Regionais (CIBR), que recebiam os pleitos
municipais e preparavam parecer para apreciação da CIB estadual, conforme estabeleceu a Resolução CIB/MT 005/97, de 9/5/97
(SES/MT, 2000a).
81
potencializados pela organização, em âmbito regional, dos serviços especializados (de referência),
por intermédio dos consórcios intermunicipais de saúde.23
No ano de 1999, o Ministério da Saúde realizou nova avaliação do processo de descentralização
no SUS, a partir de indicadores de gestão (administrativos, financeiros e de utilização), aplicados
a um município de cada Estado brasileiro, geralmente a capital. Nesse estudo, os dados de Mato
Grosso, em princípio, apresentam resultados correlacionados à implementação dessa política. Essas
mudanças apontam para a execução da política de saúde proposta em 1995, a qual deu nova direção
ao processo de descentralização e, portanto, de habilitação. O eixo fundamental foi a ordenação da
referência de serviços especializados, de forma regionalizada, com simultânea organização municipal
da atenção básica.
Em Mato Grosso, o estudo do Ministério da Saúde mostrou que a Secretaria Municipal de Saúde de
Cuiabá, habilitada na condição de gestão plena do sistema municipal, teve a composição do teto para a
assistência revista, com o objetivo de incorporar a necessidade de serviços de outros municípios, que
permaneciam tendo por referência a rede assistencial sediada na Capital.24 A recomposição do teto
de Cuiabá incluiu a programação da referência do interior, definindo melhor a utilização de serviços
Luisa Guimarães
e de recursos decorrentes da organização regional. Foi constatado que a Capital gerenciava 91% das
unidades ambulatoriais existentes no seu território, as quais significam 54,5% da produção ambula-
torial total do Estado. As demais unidades ambulatoriais existentes no território da capital estavam
sob a gestão estadual, por serem unidades especializadas de referência para o interior do Estado.
Quanto à gestão hospitalar, o estudo do MS concluiu que Cuiabá recebia 100% da produção hospi-
Curso de
Desenvolvimento talar das unidades sediadas no município e, do total de internações realizadas na capital, 64% são de
Gerencial
do SUS residentes do próprio município.25
COLETÂNEA Em síntese, segundo a análise referida acima, a descentralização do SUS em Mato Grosso, estudada
DE TEXTOS
a partir da gestão da rede e do aspecto financeiro referentes ao Município de Cuiabá, indicou coe-
rência entre a condição de habilitação e o desenvolvimento da gestão em si mesma, visto que toda a
para a construção da regionalização
Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos
rede hospitalar e 90% da ambulatorial estão sob gestão municipal. No âmbito ambulatorial, a rede
é gerida junto com o Estado, porque a SES/MT permaneceu com a gestão de algumas unidades de
referência e de outras, nas quais desenvolvia programas de saúde específicos e, ainda, com a gestão da
assistência farmacêutica ambulatorial. O setor ambulatorial é demonstrativo também da dinâmica do
processo, em construção, de pactuação e negociação entre os governos. No caso de Mato Grosso, o
modelo regionalizado, à medida que vai organizando a referência no interior, gera ajustes no teto da
capital, para onde fluía a totalidade das demandas de média e alta complexidade até 1996. Os ajustes
23
A implantação de programas de atenção básica com experiência local virtuosa demanda rede regionalizada, resultante de processos
de articulação e negociação entre sistemas locais de saúde, de complexidade crescente para a referência e atenção integral. Outros
fatores influem na resolução dos serviços e incluem a composição tecnológica, a qualidade técnica dos profissionais e os recursos
disponíveis. A oferta mais próxima e a definição clara de responsabilidades, por nível de atenção e elenco de ações – básico, médio
e alta complexidade –, certamente ampliam o alcance dos programas comunitários (Sousa, 2000). Estima-se que o funcionamento
adequado de unidades básicas é capaz de resolver 80% das demandas de atenção à saúde. Programas comunitários permitem melhor
conhecimento da clientela, acompanhamento de casos, ordenação de encaminhamentos e racionalização do uso de tecnologias.
Mesmo com alto grau de resolução, esse nível de atenção requer uma rede de referência para especialidades e leitos.
24
Nem todos os níveis de complexidade de serviços estão disponíveis no interior do Estado, considerando inclusive questões de
viabilidade e economia de escala aplicáveis também nesse caso. O estudo do Ministério da Saúde parece indicar que os ajustes na
pactuação da referência e na composição do teto da capital resultava de melhor organização da prestação de serviços assistenciais no
restante do Estado. No entanto, foram mantidos serviços complexos da Capital como referência para todo o Estado.
25
Em Seminário sobre a Gestão Estadual do SUS – tendências e perspectivas, realizado pela Secretaria de Políticas da Saúde do MS, em
parceria com a Opas, em 1999, o Secretário Estadual de Saúde de Mato Grosso reafirmou as diretrizes da política estadual de saúde
em implementação desde 1995 (MS/SPS, 1999b).
82
no teto dos recursos ambulatoriais programados para Cuiabá, ocorridos no período de 1998 a 1999,
ilustram o deslocamento de recursos financeiros assistenciais para custear a ampliação dos serviços
no interior. Tais ajustes tiveram que ser processados, para que a programação da assistência refletisse
as melhorias nos serviços locais e regionais.
Luisa Guimarães
tência – adotados pela SES, em cooperação com os municípios, para promover a organização regional
da atenção à saúde.
Tais mecanismos vão sendo adotados em Mato Grosso na lógica regional, e em processo do qual
fazem parte os consórcios em saúde: reestruturação do órgão estadual gestor da saúde, a criação de
comissões intergestores, a realização da programação integrada, a conformação do sistema de refe- Curso de
Desenvolvimento
rência e contrarreferência e a organização da auditoria. Quanto aos resultados alcançados, podem ser Gerencial
observados: a ativação de espaços regionais de decisão consoante à política de saúde, a cooperação do SUS
(Decreto No 1129), com a inclusão do Fundo Estadual de Saúde (FES) no organograma e formaliza
também as estruturas dos Polos Regionais de Saúde de Cuiabá, Alta Floresta, Juara, Peixoto Azevedo e
Água Boa, totalizando 13 polos (SES/MT, 2000b).26
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial 4.2. Criação das Comissões Intergestores Bipartites Regionais (CIBR)
do SUS
Com a reestruturação do órgão gestor da saúde em processo, era necessário encaminhar acordos
COLETÂNEA
DE TEXTOS com os governos municipais para pôr em prática as mudanças contidas na política de saúde e, assim,
efetivar a descentralização pela via da regionalização.27
para a construção da regionalização
Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos
Em Mato Grosso, a SES ativou a função desse fórum, estabelecendo seu Regimento Interno e corre-
lacionando sua atuação aos temas correspondentes ao desenvolvimento da política estadual (Portaria
SES/MT No 085/93; SES/MT, 2000d) e, em seguida, começa a estimular a constituição dessas ins-
tâncias de negociação no âmbito regional. A opção de organização de CIB regionais, à semelhança de
outros Estados, tinha o intuito de viabilizar a construção de consensos em espaços mais próximos ao
municipal e facilitar a descentralização frente à grande extensão territorial. Discutidas nesse fórum,
as propostas são assumidas como pactos entre os governos e transformadas em resoluções, isto é,
formalizadas por ato específico (entrevista com assessores da SES/MT).
26
No ano de 2000, novo Plano de Carreira da SES/MT – Plano dos Profissionais do SUS – (Lei N.º 7360) sintetiza as dimensões
da Política de Recursos Humanos Estadual, institucionalizando mudanças implementadas desde 1995. Entre as quais, admissão por
concursos públicos; regularização do quadro de pessoal (em 1995, 65% dos servidores da saúde estavam contratados sem concurso
público); capacitação de profissionais; a implantação do Projeto Xamã, de formação de auxiliares de enfermagem indígenas; criação
da residência em Saúde da Família: e implantação da Escola de Saúde Pública.
27
Desde a NOB/93, Comissões Intergestores foram definidas como espaços privilegiados de formação de consensos para a
operacionalização dos sistemas. Formalizadas na NOB/93, foram reforçadas na NOB/96, como organismos colegiados de
negociação entre gestores, nos âmbitos federal e estadual. No federal, é constituída, de forma paritária, por representantes do
Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do
Ministério da Saúde. No âmbito estadual, é integrada por igual número de representantes do Conselho de Secretários Municipais de
Saúde (Cosems) e da SES, em cada Estado da federação. A principal característica desse tipo de fórum é a participação de gestores
do sistema de saúde dos respectivos níveis e, portanto, a possibilidade de discussão e de pactuação de aspectos operacionais para a
implantação da política de saúde.
84
Esse foi o segundo mecanismo utilizado pela gestão estadual, para proporcionar as condições téc-
nicas e políticas necessárias. A Resolução CIB/MT No 003/95 deu início ao processo regionalizado
de programação, controle e avaliação, no âmbito da atenção ambulatorial e hospitalar, e estabeleceu
ainda que a regionalização deveria ser realizada de forma gradual, com a participação da CIB (SES/
MT, 2000a). Tal decisão condicionou de forma favorável a pactuação e a participação da CIB/MT
na organização regional. Com a aprovação desse modelo, os gestores mato-grossenses decidiam, em
última instância, quanto à modalidade de funcionamento dos processos de planejamento, de progra-
mação, de avaliação e de controle.
A reorganização da estrutura do órgão gestor estadual em curso e a constituição das CIB regionais
consolidam-se no espaço regional, que é incrementado com a realização da programação integrada, a
organização do sistema de referência, a execução do controle e avaliação, a reengenharia dos polos de
saúde e os consórcios intermunicipais, conforme descrito à frente. Tais processos tanto impulsionam
a organização municipal quanto condicionam a articulação intergovernamental nos consórcios e, por
fim, favoreceram o avanço da descentralização.
Luisa Guimarães
4.3. Realização da Programação Pactuada e Integrada (PPI)
Mais lenta e complexa, a programação integrada da assistência ambulatorial e hospitalar foi o terceiro
mecanismo que a SES/MT ativamente utilizou para estimular o processo de descentralização pela via
da regionalização.28 No caso de Mato Grosso, a programação das ações ambulatoriais e hospitalares
ocorreram em momentos distintos, devido tanto às informações disponíveis para dar base à progra- Curso de
Desenvolvimento
mação em si mesma, quanto à necessidade de definição e de acordo dos parâmetros para programar Gerencial
do SUS
a atenção hospitalar e ambulatorial. Algumas características de concepção do Sistema de Informa-
COLETÂNEA
ção Ambulatorial do SUS (SIA/SUS), tais como o tipo e a extensão dos dados, a não identificação DE TEXTOS
procedimento-usuário e o nível de agregação, retardaram e tornaram mais complexas, na prática, a
28
A programação prevista desde a NOB/93 e reforçada na NOB/96 funcionou como um ícone que, ao ser adotado pelos gestores,
daria racionalidade na alocação de recursos em face às necessidades (NOB/96, item 9). Coerente com a lógica universalista das normas,
foi elaborado um modelo de programação denominado Programação Pactuada e Integrada (PPI), cujo formulário seria aprovado na CIT.
Contudo, apesar de esforços de todos, decorridos quatro anos de vigência da NOB/96, não se logrou consenso quanto à forma desse
instrumento. Contudo, o processo de programação avançou em vários Estados da federação, os quais desenvolveram instrumentos
próprios e os utilizaram para o planejamento da assistência ambulatorial e hospitalar, bem como para a negociação da distribuição
dos recursos financeiros federais e estaduais entre os municípios.
Vale notar que no caput dessa Resolução, está referido que os parâmetros estabelecidos eram para a cobertura ambulatorial e, no
29
30
A gradualidade da implantação da descentralização no SUS permitiu a existência simultânea de situações variadas de gerência
(administração) e gestão (política, administrativa e financeira) das cotas hospitalares por parte dos municípios, em decorrência
de decisão acordada entre Estado e municípios na CIB. Em alguns casos, foi estabelecido que o município, independentemente da
condição de gestão, teria a gerência da cota de AIH, o que significava o conhecimento, por parte de gestor municipal, do número
dessas Autorizações destinado para a população municipal e a distribuição entre os prestadores de serviços do território, bem assim
a cota de referência. Com respeito a essa última, ao gestor municipal era delegada a responsabilidade de autorizar a emissão da AIH
de referência pelas regionais de saúde, a partir de laudos médicos. O processo era denominado gerência, porque não implicava no
manejo dos recursos financeiros correspondentes.
31
Para a gestão da saúde no Município de Cuiabá, foi constituída pelo governo municipal, há alguns anos, a Fundação de Serviços
de Saúde (Fusc).
32
A referência a partir dos consórcios tem funcionado ainda com algumas imperfeições, mas representa mudança significativa na
busca de leitos de especialidades, na hierarquização e na integração da rede (entrevista com Diretora de Polo Regional).
86
Para muitos municípios, a prestação da atenção básica é o nível máximo de escala possível de ser
garantido, sendo que a resolução desse nível de atenção fica comprometida, se não há disponibilidade
para a referência aos outros níveis mais complexos. Os consórcios encontram sua razão de ser na
solução dessa dificuldade comum dos municípios e ocupam função de prover meios para a prestação
de serviços mais complexos e especializados em uma região, de acordo com as necessidades definidas
na PPI e acordadas na CIBR.33 Era urgente, então, definir fluxos entre os serviços e, para tanto, fazer
operar um Sistema Estadual de Referência (SER). 34 O sistema de referência, no caso de MT, objetiva
qualificar a prestação de serviços no SUS, mediante a organização do fluxo de pacientes na rede de
serviços, interligando os sistemas municipais, regionais e estadual para realizar as ações de atenção
básica e comunitária, de controle de enfermidades transmissíveis, de doenças crônico-degenerativas,
de assistência especializada e de alta complexidade. As bases da organização da referência foram a
programação pactuada e integrada e a sua implantação gradual (SES/MT, 1998 e 2000c).35
As informações da PPI, por sua vez, propiciaram a definição das unidades de referência, por níveis
de complexidade, para suporte às prioridades da política estadual, a saber: programas estratégi-
cos, enfermidades transmissíveis, enfermidades crônico-degenerativas, especialidades de média e
Luisa Guimarães
alta complexidade. O Sistema Estadual de Referência (SER) dividiu o Estado em 15 microrregiões,
acompanhando a regionalização dos consórcios, as afinidades geopolíticas e as condições de acesso.
Em cada microrregião, existe um hospital de referência de natureza estadual, municipal ou filantró-
pica, cuja unidade foi priorizada para investimentos, reformas, contratação de pessoal e capacitação,
com o objetivo de ampliar a sua resolução e adequar as finalidades, integrando-a ao SER.
Curso de
As bases institucionais e a criação do SER, com objetivos de reorganizar o fluxo de pacientes na Desenvolvimento
Gerencial
rede de serviços e garantir o atendimento, foram aprovadas na CIB (Resolução CIB/MT No 021/98). do SUS
Coordenado, controlado e avaliado pela SES e um grupo técnico interinstitucional (GTI), o SER COLETÂNEA
DE TEXTOS
realiza a conferência entre o que foi programado e o realizado – atividades programadas na PPI e
a assistência efetivamente prestada – e propõe as correções necessárias para a superação de pro-
Os consórcios foram formalizados como instrumento de organização da assistência à saúde no interior do Estado pela Resolução CIB/
33
87
fora da região respectiva.36 Os consórcios de saúde funcionam como centrais de marcação de consultas
e de regulação de fluxos em decorrência do sistema de referência, fator que imprime uma lógica hie-
rarquizada na organização regional, com definições claras de porta de entrada nos municípios, por
intermédio da atenção básica e, na rede estadual, via consórcios (SES/MT, 2000c). Essas definições
favorecem a redução de custos, inclusive sociais, porque distribui a demanda de acordo com dispo-
nibilidades mais racionais e indica a necessidade de melhorar o grau de resolução de cada região.37
Centrais de marcação e de regulação são formas de controle do uso e da vaga de leitos de referên-
cia, bem como da disponibilidade de agenda de consultas e exames especializados, de acordo com o
programado e o pactuado entre os gestores. Nas centrais, existe algum tipo de tecnologia (internet,
telefone, intranet, rádio), que permite agendar previamente os serviços necessários ao usuário (exa-
mes, consultas especializadas ou ocupar leitos). Funcionam como regulação, porque estão sediadas
em unidade de maior complexidade regional e controlam a indicação e a oportunidade dos encami-
nhamentos para outras unidades mais complexas fora da região, interligando serviços em rede. No
caso de Mato Grosso, as unidades dos consórcios exercem esse papel.38
Já a câmara de compensação integra o sistema de referência como instrumento de realocação dos re-
Luisa Guimarães
cursos financeiros ou para apoiar a organização da atenção regional, porque funciona como meca-
nismo de controle financeiro do fluxo de pacientes entre municípios. 39 No caso de Mato Grosso,
a câmara de compensação estadual foi criada por resolução da CIB e constituída de parte das cotas
municipais, programadas para cobrir atendimentos fora do município de origem; à semelhança da
central de marcação, era gerenciada pelo consórcio de saúde, de acordo com a Resolução CIB/MT
Curso de
Desenvolvimento No 001/98 (SES/MT, 2000a).40 Segundo o estabelecido nessa Resolução, as cotas de internação
Gerencial
do SUS
36
Um dos fatores de dificuldade apontados foi o limite do número de AIH’s programadas, implantado a partir de 1996, por
COLETÂNEA resoluções da CIB/MT, em atendimento às decisões federais. Impostos de forma gradativa, tais limites forçaram tanto os municípios
DE TEXTOS
quanto as unidades aos ajustes às necessidades e à ampliação do grau de resolução de unidades que referenciam pacientes. A busca
por maior grau de resolução dos níveis básico e intermediário, aliada ao mecanismo de compensações entre sistemas regionais,
para a construção da regionalização
Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos
foi um meio de alcance do atendimento da necessidade estimada regional. Para isso, o pacto entre municípios e Estado foi um dos
instrumentos adotados.
37
A central de regulação da referência ambulatorial e hospitalar mais importante é a da rede de serviços próprios, conveniados e
contratados de Cuiabá. Criada pela Resolução 31/99, de 16 de agosto de 1999, essa central visa ao acompanhamento e à avaliação
permanentes da PPI. Objetiva também controlar a oferta de vagas de leitos, exames e consultas, para integrar as atividades
ambulatoriais e hospitalares e atender aos tratamentos fora de domicílio (TFD). Por se tratar de mecanismo para garantir o
funcionamento da referência do interior para a capital, a gestão dessa central é compartilhada entre a SES/MT, o Cosems/MT e a
Fundação de Saúde de Cuiabá (Fusc) (SES/MT, 2000a).
38
Central de marcação, de regulação, de leitos ou de vagas não é um mecanismo previsto em normas do Ministério da Saúde,
mas muitos municípios e Estados organizaram a referência dos atendimentos do interior para os centros e polos, utilizando esse
mecanismo. Na central, existem listas atualizadas da disponibilidade dos serviços estimados como necessários à população de
referência, utilizados no momento de encaminhar pacientes, dispensando, assim, a negociação caso a caso. Na prática, a central
regula o encaminhamento de paciente, que passa a ser feito serviço-serviço, com base na programação prévia e disponibilidade atual
e não mais na busca espontânea ou errática do usuário.
39
Ainda que não estabelecida nas Normas de descentralização, a câmara de compensação foi criada pelos próprios gestores e está
presente em vários Estados, respondendo à demanda de regulação dos atendimentos de referência, gerador de copiosos custos
sociais. São compostas de cotas de atendimento, que se originam de parte da programação integrada – geralmente aquela
correspondente à atenção de média e alta complexidade hospitalar e ambulatorial – que não é atendida no município de origem.
Cada cota é trocada na câmara por laudo médico dos municípios de origem e o atendimento prestado é compensado com os recursos
previstos nos tetos municipais dos municípios de origem, para cobrir esses tipos de atendimento. Acordos prévios podem definir
que parte da cota de referência seja incorporada na programação ao montante do município de atendimento. O conjunto de cotas
dos municípios da região compõe, finalmente, a câmara de compensação regional e objetivava garantir o acesso daquelas populações
aos atendimentos mais escassos sem necessitar negociação caso a caso. A agenda era via central de vagas e a compensação, posterior
ao serviço prestado.
40
Resolução CIB/MT No 010/00 dispõe sobre a ampliação da competência dessas Câmaras para a Compensação de Consultas
Especializadas, Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapia (SADT), órteses, próteses e medicamentos de alto custo, definidos na PPI
(SES/MT, 2000a).
88
correspondentes aos municípios teriam gerenciamento variado, a depender da disponibilidade de
unidade hospitalar no município, do seu grau de resolução e da presença de consórcio.41 A auto-
rização de tratamento fora de domicílio (TFD), para fora do Estado, no entanto, seria sempre via
câmara de compensação; o controle de fluxo de internação de indígenas, por seu turno, seria es-
tabelecido pela Funai e, posteriormente, informado à SES/MT, conforme estabeleceu a Resolução
CIB/MT No 003/96 (SES/MT, 2000a).42
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de recursos, encaminhavam à CIBR para apuração). A SEA, quando constatava a malversação dos
recursos públicos, aplicava as sanções previstas em lei. A Resolução CIB/MT No 008/97 define as
competências do SEA e da auditoria municipal (SES/MT, 2000a).
Curso de
4.6. Implantação dos cinco mecanismos: morfologia do espaço regional Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
A conjunção dos mecanismos vistos acima – reestruturação do organismo gestor, implantação das
Comissões Intergestores Bipartites Regionais, elaboração da programação pactuada e integrada, a COLETÂNEA
DE TEXTOS
definição do sistema estadual de referência, a constituição das câmaras de auditoria regional – foram
instrumentos facilitadores da reengenharia dos polos regionais de saúde, no processo de organização regional.
41
Outra Resolução, CIB/MT No 006/00, dispõe sobre a definição do teto físico do SIH/SUS por municípios em MT, estabelecendo
que o teto municipal anual será composto por 7% da população residente, gerenciado pelo município; 1,5% da população residente,
gerenciado pela câmara de compensação regional; 0,5% da população residente, gerenciado pela câmara de compensação estadual
(SES/MT, 2000a).
42
A Resolução CIB/MT No 039/99 estabeleceu as unidades de referência para o atendimento aos indígenas (SES/MT, 2000a).
43
Decreto Estadual No. 1473, de 12 de maio de 1997, institui o Sistema Estadual de Auditoria do Sistema Único de Saúde e aprova
o regimento de sua atuação junto ao Sistema Nacional de Auditoria do SUS.
89
mediante a cooperação, gerar benefícios a todos. Os incentivos foram financeiros, implantação de
projetos prioritários, redirecionamento de investimentos e descentralização de recursos. Ademais, a
capacitação e o apoio político da SES/MT.
A implantação dos mecanismos para a consecução da política de saúde resultou, em última instância,
na construção de novas relações dos municípios entre si, desses com o Estado, com os prestadores
e com a sociedade. A Figura 1 busca ilustrar alguns espaços institucionais de negociação, controle e
pacto setoriais existentes em uma região, com os respectivos agentes integrantes. A transferência de
decisões para espaços regionais pode ser vislumbrada como a possibilidade de ampliar a participação
de atores e ativar estruturas de articulação e negociação previstas no SUS, entre outras. As estrutu-
ras formais têm composição e função distintas, embora, em muitos casos, sejam os mesmos atores
ou combinações diferentes desses. O conselho de saúde segue configurando-se como a instância com
representação mais ampliada de segmentos de governo, sociedade e prestadores. A complexidade
da negociação regional parece refletir a necessidade crescente de aprofundamento da discussão e da
decisão, que a cooperação entre os governos vai impondo.
Luisa Guimarães
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
para a construção da regionalização
Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos
Finalmente, o funcionamento integrado, no polo regional, dos cinco mecanismos abordados ante-
riormente, gerou duas transformações políticas fundamentais no Estado de Mato Grosso: consensos
regionais prévios às demandas encaminhadas à gestão estadual e a gerência cooperativa de sistemas.
Tais transformações decorrem do fato de que a edição dos mecanismos possibilitaram que os mu-
nicípios tivessem espaços reais de discussão e de construção de consensos, para orientar e articular
suas demandas à gestão estadual. Desse modo, afastaram, formalmente, a possibilidade de adoção de
soluções atomizadas ou isoladas, as quais fragmentam os investimentos no sistema estadual de saúde
(Mendes, 1999a).
A gerência cooperativa da atenção de referência pelo conjunto de municípios consorciados resultou
em uma forma de regulação interna ao sistema, que se expressou na formalização de compromisso
entre os governos. A partir do modelo pactuado, os municípios passam a comprometer-se a garantir,
90
no mínimo, a atenção básica em seu território e, em contrapartida, teriam a referência de atendimen-
to especializado, definida e garantida pelo consórcio.44 A demanda de cada município por serviços de
referência regional indicava, em certa medida, o grau de organização da atenção básica. Como a as-
sistência prestada pelo consórcio é previamente programada e custeada pelo conjunto de municípios,
o compromisso de cada governo municipal frente ao conjunto de municípios é permanentemente
checado, segundo o princípio implícito na cooperação de controle mútuo.45
As transformações geradas com a implantação dos mecanismos descritos implicaram, por fim, na re-
composição do tipo e da amplitude das decisões entre os atores local, regional e estadual (Quadro 1).
Com a reorganização regional, a discussão, a negociação e a decisão quanto a uma série de atividades
foram transferidas para o espaço regional, vindo a conferir mais autonomia e efetividade à descentra-
lização. Na representação do Quadro 1, por espaço regional foi entendido o conjunto de municípios
junto com o Estado, a SES/MT. Nos cinco aspectos destacados, referentes à organização regional da
atenção, observa-se que a maior autonomia de decisão está no âmbito regional.
Luisa Guimarães
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
44
Todos os municípios de Mato Grosso têm Pacs e 89 deles, equipes de saúde da família (ESF); considerando que, de acordo com
a população, a maioria dos municípios de Mato Grosso não possui viabilidade para serviços de maior complexidade (Levcovitz,
1997), é esperado que a questão da referência para esse atendimento seja mobilizadora da cooperação intermunicipal.
45
A cooperação ocorre, quando agentes se empenham em empreendimento conjunto, para o qual são necessárias ações definidas de
cada um, estabelecidas previamente em espécie de contrato, embora o conjunto de regras e acordos possa desenvolver-se no decorrer
da interação cooperativa. Em certo sentido, a cooperação leva à monitoração entre os agentes cooperadores das ações, uns dos outros,
porque o resultado da cooperação envolve a execução da parte de cada um no contrato. A ação cooperativa inclui, portanto, certo grau de
risco e de fragilidade, em que a confiança no cumprimento da regra do jogo pelo outro seria o ingrediente fundamental para contrapor
às incertezas. A complexidade sociológica do tema da cooperação, todavia, é ressaltada com a inclusão da questão da confiança. No
campo das ciências econômicas, por sua vez, a confiança é equiparada a um recurso, escasso e não reproduzível à vontade. Outras
correntes contestam essa posição e demonstram que a confiança não seria como os demais recursos, porque, ao contrário, se esgota se
não for usada, e pode ser produzida. Cooperação e confiança interagem permanentemente de variadas formas no cotidiano; contudo,
para se obter cooperação, a confiança mútua sempre está implícita. Ainda que a cooperação possa ocorrer sem a confiança, no fim,
influencia de modo positivo a confiança. Entre outros motivadores da cooperação está o cálculo, pelos agentes, das perdas, no fracasso
da cooperação, nas interações presentes e futuras. (Segundo verbete confiança e cooperação, do Dicionário do Pensamento Social do
Século XX Editado por W.Outhwaite e T.Bottomore, Jorge Zahar Editores, RJ, 119 e 120).
91
5. Reengenharia dos polos regionais: regionalização da atenção especializada
A proposta política do Estado de Mato Grosso para a implantação da descentralização teve, então,
como fundamento, a morfologia (organização) do sistema de saúde, de acordo com os marcos con-
tidos na NOB/96, e utilizou mecanismos previstos no SUS, como os consórcios e as instâncias de
pactuação, controle e avaliação, para criar alianças em espaços regionais (CIB Regional, PPI, SER e
CAR). Ao transferir o planejamento, a regulação e a monitoria do sistema para o âmbito regional,
a proposta ativou estruturas promotoras de consensos intergovernamentais e desses, com os presta-
dores e a sociedade (CIBR, conselhos municipais e consórcio). A arquitetura dos polos regionais de
saúde, por sua vez, teve dois eixos estruturais: a organização da atenção básica, a ser desenvolvida
pelo município, e a organização da atenção especializada, a ser compartilhada entre um conjunto de
municípios e o Estado, nos consórcios. Cada município, dentro dos marcos do novo modelo, res-
ponsabilizar-se-ia pela atenção básica de sua população, valendo-se, para tanto, de programas como
o PACS e o PSF. Com a demanda de atenção básica organizada e atendida, restava a organização da
referência da atenção especializada - de escala econômica distinta - a qual carecia da cooperação in-
tergovernamental e, na modalidade proposta, o instrumento foi o consórcio. Para promover a adesão
Luisa Guimarães
dos municípios a esses eixos, o Estado destinou incentivos financeiros às prefeituras e conferiu prio-
ridade aos investimentos em regiões que abrigavam consórcios.
Se os eixos deram os traços de conformação dos polos, os mecanismos utilizados para fomentar a or-
ganização da atenção básica e de referência, tratados anteriormente, forneceram o seu conteúdo. Cria-
dos em 1992, por Decreto Estadual, os nove polos existentes até o ano de 2000 atuavam como entes
Curso de
Desenvolvimento desconcentrados, exercendo funções restritas à distribuição de medicamentos e de vacinas. Até 1995,
Gerencial
do SUS portanto, os polos não executavam atividades de cooperação técnica com os municípios ou atuavam na
COLETÂNEA organização da atenção à saúde, ainda que estivessem presentes em todo o interior do Estado.46
DE TEXTOS
A transformação desses polos em espaço de decisão concertada, aqui denominada reengenharia, foi um
processo ocorrido a partir de 1995, decorrente da implantação da política de saúde estadual, de
para a construção da regionalização
Política de saúde em Mato Grosso: dois mandatos
46
A partir de 1995, portanto, para albergar o desenvolvimento da política de saúde, a estrutura dos polos regionais foi revista em face
às prioridades de descentralização da gestão assumidas pelo governo, buscando caracterizá-los como instâncias de operacionalização da
cooperação para a mudança no sistema. Com a transformação, os polos passavam a assumir, em âmbito regional, atribuições coerentes
com a execução e a coordenação de funções da gestão estadual, tais como: (i) a identificação de necessidades de profissionais e realização
de capacitação e desenvolvimento de recursos humanos, (ii) a detecção de necessidades de geração de informações para avaliação de
desempenho e crítica das ações, (iii) a elaboração de relatórios técnicos e gerenciais, (v) a assessoria para a implantação de consórcios,
(vi) a assessoria para a implantação e a implementação de conselhos municipais de saúde, (vii) a participação ativa nas câmaras regionais
de compensação de AIH; (viii) e a participação na CIB regional (SES/MT, 1998).
47
A SES/MT realizou investimentos para capacitação permanente de equipes lotadas nos polos, para atender, em nível regional,
demandas dos municípios, à medida em que assumiam responsabilidades. A partir do polo, a capacitação foi estendida aos governos
municipais, consoante à Resolução CIB/MT No 002/97 (SES/MT, 2000a). No mesmo período, foram capacitados conselheiros
municipais de saúde e realizada a formação, na lógica de território regional, de auxiliares de enfermagem e outros profissionais de
saúde. De acordo com a IV Oficina para Avaliar Prioridades e Repactuar Compromissos Rumo à Gestão Plena da Saúde, realizada pela SES/
MT, em abril de 2000, no Projeto de Capacitação de Conselhos de Saúde e Sociedade Civil, foram capacitados 1.642 conselheiros, oriundos
de mais de 90% dos municípios de MT (SES/MT, 2000c).
92
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MÓDULO 2: POLÍTICA E GESTÃO DA SAÚDE NO
MUNICÍPIO: A AVALIAÇÃO NA PERSPECTIVA DO
USUÁRIO, TRABALHADOR E GESTOR
1
Publicado originalmente em: ARAÚJO, Laura Filomena Santos de; BELLATO, Roseney; HILLER, Marilene. Itinerários
terapêuticos de famílias e redes para o cuidado na condição crônica: algumas experiências. In: PINHEIRO, Roseni; MARTINS,
Paulo Henrique. (Org.). Avaliação em saúde na perspectiva do usuário: abordagem Multicêntrica. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS-UERJ;
Recife: UFPE; São Paulo: ABRASCO, 2009. p. 203-214. Texto resultante da discussão coletiva do Grupo de Pesquisa Enfermagem
Saúde e Cidadania no âmbito das pesquisas “BR 163” e “PPSUS” e das reflexões oriundas dos diversos trabalhos nelas produzidos
- dissertações de mestrado, trabalhos de conclusão de curso de graduação em Enfermagem, Trabalhos de Conclusão de Bloco de
Ensino de Graduação em Enfermagem e Relatórios de Iniciação Científica - acerca dos itinerários terapêuticos de pessoas e famílias
que vivenciam a experiência de adoecimento e de cuidado em saúde.
2
Pesquisa “Desafios e perspectivas do SUS na atenção à saúde em municípios da área de abrangência da BR 163 no Estado de Mato
Grosso”, Edital/CNPq nº 402866/2005-3; e Pesquisa “Avaliação dos múltiplos custos em saúde na perspectiva dos itinerários
terapêuticos de famílias e da produção do cuidado em saúde em municípios de Mato Grosso”, Edital PPSUS-MT 2006/FAPEMAT
– nº. 010/2006, de “Apoio a projetos de pesquisa para o SUS”. Estas pesquisas foram desenvolvidas pelo “Grupo de Pesquisa
Enfermagem, Saúde e Cidadania” (GPESC) da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso (FAEN/UFMT).
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de saúde. Essa situação tende a se agravar ao considerarmos que esses sistemas foram organizados
para dar conta dos casos agudos e das necessidades imediatas, o que exige sua urgente reorganiza-
ção para atender a essa realidade.
Mattos (2008) diferencia doença crônica e condição crônica, enfatizando que a primeira nos re-
Laura Filomena Santos de Araujo, Roseney Bellato, Marilene Hiller
considerar os cuidados específicos que cada agravo requer, sem contudo desconsiderar a existência
de um conjunto de problemas comuns apresentados pelas pessoas em condição crônica, de maneira a
implementar políticas de saúde que de fato atendam a suas necessidades.
A análise das implicações da condição crônica permite duas perspectivas: uma macro, do sistema
de saúde, em termos de como o mesmo se organiza e disponibiliza os seus recursos; outra micro,
da dimensão cotidiana das famílias que necessitam gerenciar o cuidado e que empreendem, nesta
experiência, itinerários terapêuticos próprios. Entendendo que a primeira perspectiva tem sido mais
amplamente foco de estudos, nossa eleição por esta última perspectiva encontra respaldo em Cecílio
(2006), quando afirma ser importante analisar como o “micro” e o “macro” se implicam mutuamente
e, mais do que um recurso teórico, estas dimensões têm repercussões na organização de nossas práti-
cas, no que se refere ao campo da micropolítica, assim como em suas articulações, fluxos e circuitos
com a esfera da organização do processo de trabalho, gestão, planejamento e construção de novos
saberes e práticas em saúde – componentes da macropolítica em saúde.
Nossos estudos, ao empregarem a abordagem da História de Vida Focal (HVF), operacionalizada
pela Entrevista em Profundidade, têm-nos permitido compreender as implicações de diferentes or-
dens que a experiência de adoecimento por condição crônica tem para a família, visto a mesma ser a
principal gerenciadora dos cuidados requeridos.
102
Família como unidade cuidadora e como
unidade a ser cuidada na condição crônica
Temos evidenciado a necessidade de dar visibilidade à família como unidade cuidadora primária, para
a qual convergem os esforços da busca, produção e gerenciamento do cuidado cotidiano na experiên-
Também consideramos a necessidade de dar visibilidade à família como unidade a ser cuidada,
visto que para ela devam convergir os recursos em saúde, não limitados a insumos e serviços, mas
que sejam organizadas práticas em redes cuidadoras, com apoios de diferentes ordens ou maté-
rias, que possam oferecer certo amparo para que a família seja potente na produção e gestão do
cuidado continuado e prolongado que a condição crônica lhe requer. O relato que segue é da mãe
deste mesmo jovem acima citado, evidenciando que ela desconhecia o transtorno mental do filho,
embora este fosse acompanhado em serviços de saúde, com diversas internações e em tratamento Curso de
Desenvolvimento
medicamentoso há vários anos, demonstrando carência de apoio à família, no caso, pela falta da Gerencial
do SUS
informação básica sobre sua doença.
COLETÂNEA
Aí ele [o médico], no dia, ele chamo pra dá alta. Aí deu alta, passou os medicamento. Aí, tudo bem, DE TEXTOS
veio embora. Na terceira vez eu fiquei curiosa, cum que que meu filho tava tratando e eu num sabia
que que era. Aí ele, passo os medicamento, cunverso cum a gente. Aí dipois ele levanto e falo: “Tá
O transtorno mental, dentre outras condições que se prolongam no tempo, requer cuidado continu-
ado e prolongado; contudo, as narrativas evidenciam que este cuidado, embora também seja ofertado
pelo subsistema de cuidado profissional, o é pontualmente. No entanto, o cuidado é cotidianamente
desenvolvido pelas próprias pessoas, suas famílias e outros que dele participam de alguma forma,
constituindo suas redes para o cuidado nos diferentes subsistemas de cuidado. No sentido de buscar
respostas aos problemas de saúde de Nicolas, jovem em condição crônica há mais de um ano por aci-
dente motociclístico, Ágata, sua esposa, evidencia algumas pessoas que participam das redes tecidas
por sua família, para atender a demandas de cuidado de diversas ordens:
3
Todos os nomes de pessoas aqui empregados são fictícios, de modo a preservar o anonimato das mesmas.
103
[...] Teve a mãe dele também que não podia ficar né, com ele lá no hospital, mas sempre mandava
alguém, às vezes ela vinha pra dormir aqui também [...] Sempre quando precisava minha mãe vinha
pra cá, então ela teve que largar a casa dela lá e ficar aqui todos os dias comigo, aí imagina pra ela
ter que me largar aqui sozinha [...] A sorte que eu tenho uma amiga que o pai dela trabalha numa
indústria farmacêutica ele é representante, ele conseguiu bastante medicamento pra gente. [...]
Laura Filomena Santos de Araujo, Roseney Bellato, Marilene Hiller
Daí o que eles fizeram, eles fizeram uma rifa, arrecadaram dinheiro pra ajudar a gente a comprar
remédio, pra gente fazer exame. Um amigo tem a mulher que trabalhava no laboratório, ele sempre
disse no que eu precisasse né... dava conta... então tudo isso... ajudou [...] O pastor, ele ia lá, levava
muitas palavras mesmo, que acabavam animando ele, né [...] ele sempre deu esse apoio [...] tanto
que depois que a gente saiu do hospital, né [...] ele vinha, buscava a gente levava na igreja, quando ele
não podia também mandava algum irmão da igreja vir buscar, então isso ajudou bastante mesmo [...]
Na igreja a gente fez muito amigos, tem um casal, que eles moram aqui no bairro, eles sempre vêm
aqui em casa, ajuda bastante, o Carlos, que é o esposo da Andreia ficou muito amigo do Nicolas,
já é casado, tem filho, né, ele dá muito conselho pro Nicolas. (Banco de Dados Pesquisa PPSUS,
2008 – entrevista com a Sra. Ágata)
A narrativa mostra que as redes para o cuidado são “vividas” e movimentadas de acordo com a ne-
cessidade do momento, não sendo fixas, mas mutáveis em sua configuração, demonstrando os movi-
mentos mais individuais, reticulados, que acontecem “dentro” e “entre” redes próprias e próximas,
são mais efetivos para dar potência ao cuidado familiar. Propomos, assim, que a noção de redes para
o cuidado possa vir a ampliar o conceito de participação e movimento social ainda como ideias muito
formalizadas, pois desconsideram estes movimentos reticulados que ocorrem no cotidiano das famí-
lias em prol de um sujeito coletivo, idealizado e a ser emancipado.
Curso de [...] Ajudam, ajudam. Eles ajuda. Meu filho, inclusive, o [refere-se ao filho mais velho], ele todo mês
Desenvolvimento
Gerencial traz a compra pra casa. A compra grossa, como se fala, né. É, compra de mês. Ele traz a compra pra
do SUS
gente, a gente fala o que ta faltando, pra num dexá compra muita coisa. Ele traz. E, e o [refere-se
COLETÂNEA ao outro filho], assumiu a carne [...] A mistura, a mistura. É assim. Aqui é tudo controlado... prá
DE TEXTOS
num te...Graças a Deus, eu do muito graças a Deus por isso. Agradeço muito a meu pai por ele me,
me, me coloca dessa maneira. Porque eu trabalhava cum Avon, só, só pra mim ir vê minha mãe. E
CUIDADO NA CONDIÇÃO CRÔNICA: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS
ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS DE FAMÍLIAS E REDES PARA O
hoje, só é que ajuda... porque muita gente diz assim: ah, mas, mas isso aí é, é uma merreca, num,
num, num dá pra ninguém [...] Mas ajuda muito. Que hoje me ajuda a ir vê minha mãe. Que minha
mãe mora, perto de Porto Seguro. Eu viajo três dia pra chegar lá. Dia e noite. Eu saio daqui hoje, no
tercero dia eu chego lá, viajando dia e noite. E aí, já me ajuda muito, né. (Banco de Dados Pesquisa
PPSUS, 2008 – entrevista com a Sra. Rosa)
crônica extrapolam esta perspectiva de análise, abrangendo as dimensões familiar, profissional, so- COLETÂNEA
DE TEXTOS
cial, afetiva, dentre outras, tais como apontadas por Moisés, adulto jovem em tratamento por hemo-
diálise decorrente de insuficiência renal crônica por diabetes mellitus:
105
A Organização Pan-Americana da Saúde define que necessidades de saúde podem ser “necessidades
percebidas”, correspondendo àquelas que se expressam como demanda espontânea por bens ou ser-
viços de saúde, bem como “necessidades não percebidas”, ou aquelas que correspondem às definições
da autoridade sanitária e, entretanto, não expressas em demanda espontânea por bens ou serviços
Laura Filomena Santos de Araujo, Roseney Bellato, Marilene Hiller
(OPAS, 2003). Consideramos que existem “necessidades experienciadas” por pessoas e famílias em
experiência de adoecimento por condição crônica nem sempre “percebidas” pelos serviços de saúde,
pois estes não dispõem de tecnologias/ferramentas sensíveis para perceber, captar e tornar visíveis
tais necessidades, dada a racionalidade presente nas suas práticas, saberes e produções que não per-
mitem o alcance destas dimensões. Temos, assim, o fenômeno da exclusão que tem lugar no recorte
parcial, pela autoridade sanitária, das necessidades das pessoas, o que faz com que se definam estraté-
gias de resolutividade também parciais, fragmentares e apenas setorializadas no sistema saúde. Desta
forma, os princípios da integralidade e resolutividade deixam de ser atendidos.
A doença, sintetizada na taxonomia “CID-10” da Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde, constitui-se como o principal modo de visibilidade das pessoas em
experiência de adoecimento para os serviços e seus sistemas de informação, bem como para a medicina,
sendo utilizado não apenas para nomear, mas direcionar o olhar profissional à doença e não necessaria-
mente à pessoa. Trata-se, então, de estabelecer um recorte clínico às necessidades de saúde, conferindo-
lhe uma linguagem que é, ao mesmo tempo, autoexplicativa e sintética, e que não consegue expressar
o adoecimento como experiência vivida com uma gama de necessidades constantemente renovadas.
As propostas terapêuticas são em geral norteadas pelo CID, e na falta do mesmo, o cuidado profis-
Curso de
Desenvolvimento sional fica “em suspenso”, mostrando a fragilidade de se construir cuidado em saúde sob a égide de
Gerencial
do SUS tecnologias com as quais se leem apenas os corpos doentes. Como demonstra a narrativa da família
COLETÂNEA
de uma idosa em sofrimento por Alzheimer, e embora haja muitas incertezas em torno dessa doença,
DE TEXTOS o mero recorte clínico não tem contribuído de modo efetivo para a diminuição do sofrimento dessa
idosa e sua família.
CUIDADO NA CONDIÇÃO CRÔNICA: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS
ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS DE FAMÍLIAS E REDES PARA O
[...] Paguei pra uma doutora que era especialista. E o diagnóstico foi daí, começou a diagnosticar
como Alzheimer. Falo: “ó, sua mãe tem Alzheimer, é, o quadro...” aí junto, fez com a junta médica
tal e chegou-se à conclusão de que era Alzheimer. Clinicamente. Segundo eles, é, é, não tem como
faze isso, né, um exame de Alzheimer [...] ela foi mora com essa outra irmã minha [...] porque tro-
cava muito de médico, muito de psiquiatra, de geriatra. Teve um geriatra que desistiu dela, não sabia
o que ela tinha, desistiu dela. Os outros médicos, você chegava, o médico olhava assim: “como vai,
dona Ana?” (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2009 – entrevista com a Sra. Ivete)
E, aí ela, voltando ao processo depressivo, a gente procurou, quando meu pai morreu em 2004 ela já
tava com um psiquiatra, ela tomava remédio, nós trocamos de psiquiatra várias vezes, fomos em [...]
uns oito psiquiatras aqui [...] dez psiquiatras. É, sempre diagnosticado como depressão. Assim, num
sei, se o, se faltou atenção, acho que faltou até mais atenção dos psiquiatras em olha clinicamente,
olha é, profissionalmente ali o paciente. (silêncio) E, a gente sempre trocava remédio, sempre troca-
va de remédio, trocava de remédio, resolvia uma semana, começava de novo; resolvia uma semana,
começava de novo [...] (Banco de Dados Pesquisa PPSUS, 2009 – entrevista com o Sr. Felipe)
Diversos Itinerários Terapêuticos demonstram que, nesses tempos de “crises”, pessoas e famílias im-
primem um ritmo frenético às suas trajetórias de busca por cuidado no subsistema profissional, pois
a doença se exacerba em sua manifestação sintomática e requer intervenção profissional.
Particularmente no transtorno mental, esses momentos de crise repetidamente fogem do âmbito da
instituição saúde, e nas narrativas de familiares, outros setores, como a polícia, são acionados nem
sempre pela própria família. Dada a representação social de periculosidade que estes doentes têm e a
inabilidade para o cuidado por parte dos profissionais, geralmente o cuidado se reduz às medidas de
contensão, medicamentosa ou por força bruta. A representação social de perigo desses doentes leva à
indistinção com a marginalidade. Essa situação é mostrada, de modo dramático, na narrativa do filho Curso de
de dona Ana, idosa com Alzheimer que, durante uma das crises de sua mãe, nos relata o diálogo tenso Desenvolvimento
Gerencial
travado por ele com profissionais de saúde e policiais, ao tentar acalmá-la em seu delírio, ao mesmo do SUS
107
Já os períodos de estabilidade da doença crônica são expressos como “silenciamento” ou “normali-
dade”, traduzidos como períodos em que os esforços de busca por serviços de saúde e/ou cuidados
profissionais se tornam mais esporádicos e, quando ocorrem, são rotineiramente realizados de acor-
do com o modo de organização da oferta de insumos pelos serviços de saúde, tais como a medicação
Laura Filomena Santos de Araujo, Roseney Bellato, Marilene Hiller
O relato nos mostra que, para o Sr. Moisés, a “doença”, como uma entidade mórbida tratável, existe
Curso de
Desenvolvimento quando ela promove restrição na sua vida cotidiana, da mesma forma que a “dor”, como sofrimento
Gerencial
do SUS físico, é mais intensamente sentida quando esta restrição também se faz presente. Senão, a doença
COLETÂNEA
parece “entrar no rol dos sofrimentos próprios do viver e do estar vivo”.
DE TEXTOS
As diferentes temporalidades da doença crônica expressam exigências diferenciadas de produção do
cuidado pelos serviços de saúde e pela família. Parece-nos que, nos períodos de “normalidade”, a
CUIDADO NA CONDIÇÃO CRÔNICA: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS
ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS DE FAMÍLIAS E REDES PARA O
busca por cuidado profissional se faz em ritmo mais esporádico e/ou rotineiro; já o cuidado é exigido
da família de modo continuado e prolongado, sendo incorporado à cotidianidade marcando os ritmos
familiares. Esta normalidade é rompida por algo novo, “a crise”, que exige novos fluxos de esforços
que, embora possam ser temporários, levam à necessidade de uma profunda reordenação da coti-
dianidade familiar para que novos ritmos e modos de cuidado sejam realizados (BELLATO, 2001).
Neste momento, também se intensificam as trajetórias de busca fora do subsistema familiar de cui-
dado. Estas diferentes temporalidades da condição crônica trazem implicações ao modo como as
pessoas e famílias buscam, produzem e gerenciam o cuidado, bem como ao modo como o sistema de
saúde organiza e disponibiliza a atenção.
Para o sistema de saúde, a fase de agudização é voltada ao evento doença, tal como na crise cetoacidó-
tica da pessoa com diabetes, para a qual a dimensão da integração dos serviços é essencial no alcance
do princípio da integralidade. Práticas devem ser organizadas para que as intervenções profissionais
sejam acessadas nos diferentes níveis da atenção, montando um eficiente sistema de regulação que
gerencie estes momentos de crise. Entendemos que a resolutividade, nesta situação, é da ordem da
responsabilidade de gestão em sua capacidade de organizar uma linha de produção de cuidados, não
somente de intervenções profissionais, seja inter ou intra-institucional, tal como apontado por Fi-
gueiredo (2009) e Almeida et al (2009).
108
Na fase de silenciamento/normalidade, a experiência de adoecer, produzir e gerenciar cuidado é co-
tidianamente engendrada pela própria pessoa e sua família, sustentada e/ou apoiada pelas redes que
são capazes de tecer. Nesse período, a integralidade da atenção parece estar pautada na possibilidade
dos serviços de produzirem e disponibilizarem práticas profissionais cuidadoras, ainda que mais fo-
mandaram para eu vir cá. Fizeram exames e me mandaram vir para cá sobre o pé e o problema de COLETÂNEA
DE TEXTOS
rins. Fui pro hospital regional. Passei cinco dias lá [...] Passei cinco dias lá. E cinco dias. Cinco dias
e uma noite. Fui uma noite que eu fui para lá. E aí eles, o japonês [médico] não resolveu nada. É
109
A análise do IT de pessoas e famílias em experiência de adoecimento tem possibilitado este “mape-
amento da resolutividade focalizada”, bem como captar o movimento dessas pessoas na intrincada
rede hierarquizada e formalizada do SUS e o modo como ela pode ser capilarizada no desenho das
redes para o cuidado, quanto a seus estrangulamentos que emperram fluxos e impedem a integrali-
Laura Filomena Santos de Araujo, Roseney Bellato, Marilene Hiller
Considerações finais
Temos defendido a ideia da centralidade da família na experiência de adoecimento por condição
crônica de um ou mais de seus membros, por entendermos que, na maioria das vezes, o cuidado não
é individualmente produzido, mas engendrado no coletivo, seja este formado por pessoas com laços
consanguíneos e/ou afetivos, ou com proximidade física que a coabitação permite. Desta forma,
privilegiamos a vivência do cuidado familiar, segundo a perspectiva de compreensão das pessoas
Curso de adoecidas e daquelas que compartilham essa experiência. Não nos detivemos a definir “família”, visto
Desenvolvimento
Gerencial não ser este nosso objetivo, mas pudemos apreendê-la em conformações e dinamicidades próprias,
do SUS mutáveis no tempo e espaço, ao longo da experiência de adoecimento e cuidado. Especialmente
COLETÂNEA quando esta experiência envolve certa permanência, como é o caso da condição crônica, impõe à
DE TEXTOS
pessoa adoecida e sua família graus diversos de dependência do cuidado de outrem, sejam esses “ou-
tros” a própria família, os vizinhos, a comunidade, os serviços de saúde e seus profissionais, dentre as
CUIDADO NA CONDIÇÃO CRÔNICA: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS
ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS DE FAMÍLIAS E REDES PARA O
redes tecidas para buscar, produzir e gerenciar o cuidado em saúde, tal como temos evidenciado nos
estudos sobre Itinerários Terapêuticos.
Estas redes para o cuidado em saúde podem ser apreendidas a partir do Itinerário Terapêutico, como
tecnologia que permite dar visibilidade à experiência de adoecimento e cuidado familiar, através de
seus desenhos analisadores – das trajetórias de busca por cuidado, do genograma e do ecomapa – que
expressam a composição, a dinamicidade e os rearranjos dessas redes, bem como seus mediadores
nessa tessitura.
Nossos estudos sobre a experiência de adoecimento e, nela, a exigência do cuidado continuado e
prolongado, indicam a necessidade de rediscutirmos o próprio conceito de integralidade, a partir de
uma perspectiva centrada no usuário para outra que consiga abarcar as redes para o cuidado, sendo a
família o núcleo cuidador mais próximo.
Referências
ALMEIDA, Karla G. de A. Linha de Produção de Intervenções (LPI) - uma tecnologia avaliativa em saúde sob a perspectiva
da integralidade da atenção. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM ENF ERMAGEM, 15., 2009, Rio de
Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ABEN, 2009. 1 CD-ROM.
BELLATO, Roseney. A vivência da hospitalização pela pessoa doente. 2001. 210p. Tese (Doutorado em Enfermagem
Fundamental) – Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2001.
110
BELLATO, Roseney; ARAUJO, Laura F. S.; CASTRO, Phaedra. O itinerário terapêutico como uma tecnologia
avaliativa da integralidade em saúde. In: PINHEIRO, R.; SILVA JÚNIOR, A. G.; MATTOS, R. A. de. (orgs.). Atenção
básica e integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cepesc, 2008.
p. 167-185.
CECÍLIO, Luiz C. O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e equidade na
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
111
ITINERÁRIOS TERAPÊUTICOS DE FAMÍLIAS Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
E REDES PARA O CUIDADO NA CONDIÇÃO do SUS
ROSENEY BELLATO
LAURA FILOMENA SANTOS DE ARAÚJO
ANA PAULA SILVA DE FARIA
ALDENAN LIMA RIBEIRO CORREA DA COSTA
SONIA AYAKO TAO MARUYAMA
1
Publicado originalmente em: BELLATO, Roseney; ARAÚJO, Laura Filomena Santos de; FARIA, Ana Paula Silva de; COSTA,
Aldenan Lima Ribeiro Correa da; MARUYAMA, Sonia Ayako Tao. Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o cuidado
na condição crônica: alguns pressupostos. In: PINHEIRO, Roseni; MARTINS, Paulo Henrique (Orgs.). Avaliação em saúde na
perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS-UERJ; Recife: UFPE; São Paulo: ABRASCO, 2009.
p. 187-194. Pesquisa “Desafios e perspectivas do SUS na atenção à saúde em municípios da área de abrangência da BR163 no
Estado de Mato Grosso”, Edital/CNPq nº 402866/2005-3; e Pesquisa “Avaliação dos múltiplos custos em saúde na perspectiva dos
itinerários terapêuticos de famílias e da produção do cuidado em saúde em municípios de Mato Grosso”, Edital PPSUS-MT 2006/
FAPEMAT – Nº. 010/2006, de “Apoio a projetos de pesquisa para o SUS”.
113
agudização. Mas, em seu movimento, a condição crônica também comporta períodos de “silencia-
mento”, ou “normalidade”, como afirmam as pessoas, nos quais certa estabilidade parece ser viven-
ciada. Nesses períodos, com buscas por serviços e profissionais menos intensas, o cuidado familiar é
central e demanda acompanhamento à pessoa adoecida, instaurando no cotidiano outros modos de
andar a vida nem sempre fáceis.
Cuidados para saúde são, aqui, tomados como cuidados de modo amplo, uma vez que as trajetórias
empreendidas por pessoas e famílias têm sido motivadas por necessidades de saúde das mais variadas
naturezas. Esses cuidados são buscados onde elas possam encontrar resolução para suas necessidades,
empreendendo buscas que não se restringem a um “dado lugar institucional” formalizado, no caso,
pelo SUS/MT. Sendo assim, cuidados “para a saúde” são todos aqueles que expressam uma finalida-
de, ou têm, como termo, a saúde em sua promoção, prevenção, preservação e recuperação.
Diferenciamos problema de saúde como um recorte no âmbito das necessidades de saúde, sendo este
segundo termo tudo aquilo que é vivenciado, por pessoas e famílias, como “falta” ou “carência” – de
condições, de meios, de instrumentos – nem sempre identificável, no sentido de pontuada por elas,
Roseney Bellato et al.
para que possam cuidar de sua saúde a partir de sua lógica. Tais necessidades nem sempre são visi-
bilizadas pelo subsistema de cuidado profissional ou constituinte de demanda. “Problema de saúde”
parece ser um recorte, a partir das necessidades, feito pelas pessoas ao demandarem o sistema de
cuidado profissional, com base no reconhecimento daquilo que o serviço de saúde organiza e dispo-
nibiliza como oferta de atenção. Assim, “problema de saúde” encontra certa reciprocidade de senti-
dos entre usuários e profissionais, sendo estes sentidos cunhados nas práticas cotidianas profissionais,
Curso de
Desenvolvimento bem como na capacidade de resolutividade dos serviços de saúde.
Gerencial
do SUS O IT é definido por nós como trajetórias de busca, produção e gerenciamento do cuidado para saúde,
COLETÂNEA empreendidas por pessoas e famílias seguindo uma lógica própria, tecida nas múltiplas redes para o
DE TEXTOS
cuidado em saúde, de sustentação e de apoio, que possam lhes dar certa sustentabilidade na experi-
ência de adoecimento. Comporta, também, como os serviços de saúde produzem e disponibilizam
Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o
cuidado na condição crônica: alguns pressupostos
cuidados, segundo sua própria lógica, e atendem, em certo modo e medida, às necessidades de saúde
destas pessoas e famílias (BELLATO; ARAÚJO; CASTRO, 2008).
O IT é um analisador das trajetórias do cuidado para saúde, permitindo observar em quais espaços
do SUS o usuário encontrou a resolução buscada, bem como apreender a produção de sentidos na ex-
periência de adoecimento de pessoas e famílias. Neste sentido, possibilita compreender como se deu
o processo de adoecimento e a busca por cuidados, como a experiência foi interpretada pela própria
pessoa e família, o significado que o evento tem em suas vidas, uma vez que a vivência do evento tem
por referência os contextos socioculturais que compartilham no seu processo de socialização, bem
como as perspectivas de vida delineadas por elas.
O IT tem sido por nós considerado uma tecnologia avaliativa em saúde (BELLATO; ARAUJO; CAS-
TRO, 2008) que privilegia a experiência de adoecimento e busca por cuidados de pessoas e famílias,
na perspectiva de sua lógica nesta experiência e busca, bem como o modo de os serviços de saúde
disponibilizarem a produção de cuidados a estas. No âmbito das discussões fomentadas pelo LAPPIS,
o IT é tido como tecnologia avaliativa “centrada no usuário”, pois é sustentado por metodologias que
privilegiam a apreensão das vivências e lógicas das pessoas e famílias em experiência de adoecimento e
cuidado, permitindo emergir suas interpretações e sentidos tecidos nesse processo. Embora comparti-
lhem valores e crenças socialmente construídas, é muito singular a “teia” de significados tecida, pois es-
114
ses são constantemente ressignificados ao longo da experiência de adoecimento. São metodologias que
permitem, também, apreender o modo como os serviços de saúde produzem respostas mais ou menos
resolutivas e integrais às suas necessidades de saúde, tendo como referência os sentidos atribuídos pelas
pessoas e famílias à atenção em saúde recebida em cada instituição. Como tecnologia avaliativa centrada
no usuário, o IT permite avançar na compreensão dos sentidos da integralidade e resolutividade no SUS,
a partir de quem vivencia a necessidade de saúde, gerenciando ao mesmo tempo seu cuidado.
Utilizamos os termos “pessoas” e “famílias” ao conceituar IT, pois em nossos estudos a família tem-se
apresentado como elemento central na busca, produção e gerenciamento do cuidado. Além disso, as
trajetórias empreendidas para que o cuidado se concretize acontecem em diferentes subsistemas de
cuidado – profissional, popular e familiar (Kleinman, 1988 apud NABÃO 2008), nos quais a designa-
ção “pessoa” parece-nos mais adequada, pois, nesta perspectiva, o cuidado integra contextos sociais e
culturais, os quais não podem ser dissociados da experiência de adoecimento, e pode ser visualizado
quando utilizamos o IT. Já o termo “usuário” é utilizado para especificar o IT como tecnologia avaliativa
do sistema formal SUS, na perspectiva de seus “usuários”, trazendo a lógica destes como olhar privile-
profissional oferece certa capacidade de resolutividade para necessidades, ainda que recortadas como COLETÂNEA
DE TEXTOS
“problema de saúde”. Como exemplo, reportamo-nos à situação de um usuário com diabetes mellitus
(FARIA, 2007) para o qual, devido a um processo de necrose em hálux, foi realizada amputação
115
cotidianos que pessoas e famílias vivenciam e, neste movimento, desvelam esforços e empenhos para
obtenção de uma resolução para seu problema. Essas trajetórias são, muitas vezes, marcadas por
sofrimentos pela busca empreendida, que pode, na condição crônica, ser intensificada; e ainda, pela
baixa capacidade de resolutividade dos serviços e seus profissionais. Nas trajetórias, sentimentos de
positividade também podem ser expressos e parecem estar vinculados à capacidade de tessitura de
relações sociais marcantes e benéficas na experiência de adoecimento.
O IT permite a análise de Redes Sociais, com destaque às Redes para o Cuidado em Saúde, que são
tecidas pela pessoa e sua família na experiência de adoecimento, evidenciando, nas trajetórias nos di-
ferentes subsistemas de cuidado, o modo como vão se constituindo, quem delas participa, a qualidade
de suas relações, os sentidos impressos em sua tessitura, dentre outros elementos.
Em estudos sobre ITs vinculados às nossas pesquisas (FIGUEIREDO, 2009; MATTOS, 2008; OLI-
VEIRA, 2009), a família tem-se apresentado como elemento central do cuidado na experiência de
adoecimento em seu cotidiano. Temos nos detido na compreensão dessa experiência familiar, pois é a
família que busca, produz e gerencia o cuidado, muitas vezes para mais de um de seus membros. É con-
Roseney Bellato et al.
siderada, por nós, unidade produtora do cuidado (unidade cuidadora), mas também unidade que neces
sita de cuidados (unidade a ser cuidada) dos serviços e profissionais de saúde, o que demandaria a garan-
tia e a efetivação de políticas públicas para que tenha condições de cuidar e de ser cuidada, como lugar
de crescimento e desenvolvimento, sendo que seus membros estão em constante processo de interação.
Compreender a lógica de famílias nesta experiência, perceber sua dinâmica e dinamicidade no tempo e
Curso de espaço, sua forma de buscar, produzir e gerenciar o cuidado na condição crônica, dentre outros, pode
Desenvolvimento
Gerencial contribuir para a construção de um cuidar profissional ético, que resgate o cuidado a partir do outro,
do SUS que valorize suas experiências e que promova, proteja e preserve esta unidade produtora e gerenciadora
COLETÂNEA do cuidado. Assim, longe da ideia da família como executora das ações formuladas e prescritas pelos
DE TEXTOS
profissionais de saúde, o que temos observado é que ela (re)interpreta a concepção de saúde e de cuidado
a partir do mundo de significados que cada um de seus membros acumula ao longo da vida, sendo o
Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o
cuidado na condição crônica: alguns pressupostos
116
Redes para o cuidado em saúde na condição crônica
O cuidado na condição crônica demanda a organização de uma rede articulada de serviços de saúde,
com práticas profissionais cuidadoras, menos intervencionistas, tendo por foco as necessidades da
pessoa e sua família.
Ao analisarmos ITs, constatamos que as famílias empreendem trajetórias que são muitas vezes defi-
nidas em função dessa capacidade dos serviços de se organizarem em redes de atenção. No entanto
evidenciamos, sobretudo, que as famílias tecem redes próprias que lhes permitem sustentação e/ou
apoio para os cuidados requeridos a suas necessidades. Estas costumam ser tanto ou mais potentes, à
medida que as redes formais de saúde forem menos resolutivas e, nesta situação, as pessoas adoecidas
e suas famílias mobilizam outros recursos e pessoas, vinculadas a elas das formas mais variadas.
É relevante compreendermos, no estudo de ITs, os movimentos das pessoas e famílias na tessitura
de redes próximas e próprias para o cuidado, particularmente na condição crônica, e evidenciarmos
o modo como reconstroem os fluxos do SUS, através de suas trajetórias de busca, nas quais as redes
117
é biográfica, pois é vivida por cada pessoa e família; e ainda, aos diferentes “tempos” da condição
crônica, que intercalam períodos de agudização e de normalidade ou silenciamento da doença (AN-
JOS; BELLATO; CASTRO, 2008) e, neles, variadas intensidades de experiências, proporcionando a
percepção de duração no adoecimento (BACHELARD, 1988). Expressa-se, finalmente, em termos
dos vínculos, pois estes são construídos, mantidos e desfeitos ao longo da experiência biográfica do
cuidado pessoal e familiar.
Em nossos estudos de ITs evidenciamos, nas redes para o cuidado, “pessoas-chave”, ou mediado-
res de redes, que possibilitam, ou facilitam, o acesso da pessoa e família ao subsistema de cuidado
profissional, fazendo links entre essas pessoas que necessitam de cuidado e os serviços de saúde que
disponibilizam a atenção. Eles não necessariamente integram o corpo profissional da instituição de
saúde e, na função mediação, têm diferentes níveis de intervenção ou influência, podendo disponibi-
lizar as condições para o cuidado, intermediar o acesso à atenção em saúde e/ou ser, ele próprio, um
profissional que intervém pela pessoa e família junto aos outros profissionais.
Martins (2009) denomina “mediadores colaboradores” às pessoas de confiança acionadas com vistas
Roseney Bellato et al.
à resolução de problemas e conflitos e situa, dentre eles, aqueles que possibilitam o acesso aos servi-
ços de saúde. Salientamos a atuação do mediador no subsistema de cuidado profissional como “chave
para o acesso”, tornando-se importante elemento da acessibilidade ao fluxo formalizado pelo SUS.
Parece-nos que, nos subsistemas de cuidado popular e familiar, o mediador tem outras funções ou
atributos, de apoio emocional e de cuidado, dando certa organicidade à rede de sustentação para o
cuidado. Desta forma, a mediação se efetiva relacionada mais ao âmbito das condições para a produ-
Curso de
Desenvolvimento ção do cuidado, uma vez que a circulação das pessoas nestes subsistemas parece ser menos problemá-
Gerencial
do SUS tica, por se tratar de espaços mais abertos, com acessos mais franqueados.
COLETÂNEA Brandão (2008), ao analisar o IT de um adolescente com síndrome nefrótica, evidencia esta atuação
DE TEXTOS
de mediadores, tanto para o acesso aos serviços de saúde como para a produção do cuidado familiar
na condição de vulnerabilidade da família do estudo, através de uma “rede de mediadores” da comu-
Itinerários terapêuticos de famílias e redes para o
cuidado na condição crônica: alguns pressupostos
nidade que não necessariamente se reconhecia como mediadora, nem como rede. Assim, as redes
para o cuidado em saúde, de sustentação e de apoio, configuram-se de modo muito próprio ao longo
da biografia da pessoa/família. Através de sua tessitura, podemos analisar sua potência e qualidade
para o cuidado, em sua dinâmica, e o modo como as redes formais participam do cuidado.
Entendemos que estes desenhos diferenciados de redes podem se constituir como ferramentas ana-
lisadoras: das possibilidades, ou potencial, das famílias, de gerenciar a experiência de adoecimento,
bem como de buscar e produzir o cuidado continuado e prolongado requerido na condição crônica,
tecendo e articulando redes. E ainda, da capacidade do subsistema de cuidado profissional de pro-
duzir e gerenciar redes cuidadoras, na perspectiva da integralidade e da resolutividade, com práticas
de atenção e gestão que sejam capazes de acolher as necessidades dessas famílias. Compreendemos a
sustentabilidade para o cuidado da pessoa adoecida como resultante das possibilidades de tessitura de
redes para o cuidado pela família e da capacidade de gestão em redes do SUS.
A compreensão dos ITs de pessoas e famílias em experiência de adoecimento e, neles, a formação de
redes para o cuidado em saúde, pode oferecer elementos para a eleição de indicadores da qualidade
da atenção em saúde que sejam centrados nesta experiência.
118
Referências
AYRES, José R. M. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciência e Saúde Coletiva, v. 6, n. 1, p. 63-72, 2001.
ANJOS, Priscilla S. S. et al. “Me acode!”: itinerários terapêuticos de uma usuária com hipertensão arterial em busca
pelo cuidado. Um convite à reflexão sobre integralidade em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. de (Orgs.).
Ateliê do cuidado: serviço, pesquisa e ensino. Rio de Janeiro: Cepesc, 2008. p. 215-230.
BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988.
BELLATO, Roseney; ARAUJO, Laura F. S.; CASTRO, Phaedra. O itinerário terapêutico como uma tecnologia avaliativa
da integralidade em saúde. In: PINHEIRO, R.; SILVA JÚNIOR, A. G.; MATTOS, R. A. de. (Orgs.). Atenção básica e
integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: Cepesc, 2008. p. 167-185.
BELLATO, Roseney et al. Redes Sociais de Sustentação e de Apoio no cuidado em saúde. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
ENFERMAGEM, 60, 2008, Belo Horizonte. Anais... Minas Gerais: ABEN, 2008. 1 CD-ROM.
BRANDÃO, Kelly C. T. As múltiplas faces que tecem a rede de apoio informal em uma condição crônica: a experiência vivenciada
por uma família no município de Cuiabá-MT. Relatório de Iniciação Cientifica, Cuiabá: FAEN-UFMT, 2008.
FARIA, Ana P. S. A experiência de adoecimento e a busca por cuidado empreendida pela pessoa com diabetes mellitus. 2007. 224p.
Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Curso de Pós-Graduação em Enfermagem. Universidade Federal de Mato
Grosso, Faculdade de Enfermagem, Cuiabá, 2007.
119
Curso de
PLANEJAMENTO, EPIDEMIOLOGIA E Desenvolvimento
Gerencial
COLETÂNEA
DE GESTÃO1 DE TEXTOS
GISELE O’DWYER2
MARISMARY HORSTH DE SETA3
SÉRGIO PACHECO DE OLIVEIRA4
1. Introdução
Em nossa atividade gerencial nos serviços de saúde, nos deparamos com um número de problemas
urgentes que tumultuam nossa agenda decisória e não nos vemos com tempo para planejar. Sentimo-
-nos desconfortáveis nessa situação e, entre nós, nos definimos como “bombeiros”, já que gastamos
a maior parte do nosso tempo “apagando incêndios”. Se entendermos por que isto acontece será um
grande passo para que adotemos o planejamento como uma ferramenta indispensável para a gestão.
Quais são os aportes de que precisamos para planejar os serviços de saúde, ou de que podemos nos
valer para que nosso planejamento seja eficaz?
Em uma época em que as empresas se voltam para a diferenciação de seus produtos, procuram colo-
car seu “foco no cliente” e em que a produção em massa entra em declínio, como poderemos planejar
os serviços públicos de saúde sem que conheçamos a nossa clientela e o ambiente em que atuamos? Algu-
mas respostas a essas questões podem ser dadas pela epidemiologia.
Esta disciplina, a epidemiologia, representa uma forma científica de conhecer a realidade sanitária
que os serviços de saúde buscam enfrentar. A utilização das informações e do raciocínio epidemioló-
gico pode nos ajudar, e muito. Mas, nem sempre as informações estão disponíveis... Por outro lado,
sabemos que o gerente hospitalar não trabalha exclusivamente com base em informações e que estas,
1
Publicado originalmente em: O'DWYER, G.; DE SETA, M. H.; OLIVEIRA, S. P. de. Planejamento, epidemiologia e programação
como instrumentos de gestão. In: BRASIL. Ministério da Saúde. GESTHOS: gestão hospitalar. Modulo II. Gestão Contemporânea
nas organizações de Saúde, P. 27-77. Brasília: Ministério da Saúde, 2002.
2
Mestre em Ciências em Saúde da Mulher pela Fiocruz; Especialista em Vigilância Sanitária de Serviços de Saúde, Tecnologista
sênior da Fundação Oswaldo Cruz.
3
Mestre em Saúde Coletiva pela UERJ; Tecnologista sênior e professora do Departamento de Administração e Planejamento
em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz; Professora convidada do Curso de Especialização em Administração
Hospitalar da UERJ.
4
Mestre em Ciências e Engenharia Biomédica pela COPPE/UFRJ; Especialista em Administração Hospitalar e em Análise de
Sistemas; Professor do Departamento de Administração e Planejamento da Escola Nacional de Saúde Pública; Consultor para
desenvolvimento de Sistemas de Informação Hospitalares.
121
mesmo que muito atualizadas, sempre se referem ao passado. E o gerente/planejador precisa pensar o
futuro... Mas, se temos informação ou se podemos gerá-la, por que não a utilizamos para fazer nosso
planejamento e nossa programação?
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
A programação em saúde é muito importante para organizar a rede de serviços e mesmo os serviços
de saúde, internamente. A lógica da programação deve contemplar critérios de qualidade. Instalar
serviços de saúde e/ou reorganizar os que já funcionam não é tarefa simples. É preciso que sejamos
muito estratégicos... Afinal, (re)programar serviços na área social, em que se inclui a saúde, é traba-
lhar com muitas incertezas...
2. Planejamento
Suponhamos que temos que resolver um problema, aproveitar uma oportunidade ou transformar
uma realidade, seja ela qual for. Como parte do processo de reflexão, surge uma série de perguntas.
Algumas deles podem ser:
1. O que queremos?
2. Só depende de nós?
3. Quem ou o que pode nos ajudar ou atrapalhar?
4. De quem ou do que precisaremos para conseguir o que queremos?
5. O que pode mudar, nos criando dificuldades ou facilidades?
6. O que deveremos fazer se as coisas mudarem?
Curso de
Desenvolvimento 7. Por onde começar? Qual é a melhor sequência para agir?
Gerencial
do SUS
remos aqui apenas da sua aplicação ao campo da atividade gerencial nos serviços de saúde. As abor-
dagens administrativas ou teorias administrativas, em especial a Teoria Neoclássica da Administração,
definem o planejamento como uma das funções do processo administrativo.
O destaque anterior enfatiza o caráter de definição antecipada da ação e dos objetivos a serem atingi-
dos. Os objetivos mais amplos a serem alcançados, ou onde queremos chegar com a nossa gestão na
organização, eram chamados, até pouco tempo atrás, de imagem-objetivo. Ultimamente vêm sendo
chamados de Visão.
Voltemos ao nosso “plano”. Se respondemos afirmativamente à pergunta 2 (“Só depende de nós?”),
definiremos o que deve ser feito, os objetivos a alcançar, os recursos necessários, os prazos e os res-
ponsáveis por cada ação. Fazendo tudo de maneira correta, o nosso planejamento poderá ser classifi-
cado como um bem elaborado planejamento normativo. Acompanharemos a execução do nosso plano e
poderemos obter os resultados que desejamos.
122
Mas, a partir da definição citada, podemos dizer que o planejamento é caracterizado pela incerteza
por ser uma escolha de curso de ação, de caminhos, de opções, que se adota antecipadamente. Trata-
-se de agir desde já, no tempo presente, para alcançar os objetivos pretendidos ou para construir o fu-
Curso de
O que significa estratégia? E o caráter estratégico do planejamento? Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Nosso plano precisa ser exequível, viável. Para isto, os meios disponíveis podem ser insuficientes. Te-
remos, então, que criar as condições favoráveis para que a viabilidade do plano aumente. É entender a
motivação dos nossos oponentes pode nos ajudar a encontrar modos de aumentar os apoios, diminuir
as resistências ou neutralizar a ação dos nossos oponentes.
123
Responder às perguntas 5 e 6 (“O que pode mudar, nos criando dificuldades ou facilidades?” e “O
que deveremos fazer se as coisas mudarem?”) implica explorarmos a conjuntura atual para identificar
as variáveis de mudanças, positivas ou negativas, que têm relação com o nosso plano ou com o pro-
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
blema a ser enfrentado. Ao identificar essas variáveis e analisar seus possíveis comportamentos num
futuro próximo, estamos fazendo um exercício de construir os cenários nos quais o nosso plano irá se
desenvolver. Buscaremos formular um plano para cada cenário, ou, pelo menos, formularemos mais
do que um único plano para não sermos surpreendidos por uma mudança absolutamente inesperada.
A resposta à pergunta 7 (“Por onde começar? Qual é a melhor sequência para agir?”) deve sempre
considerar que, como resultado de algumas das nossas ações, acumulamos forças ou desgaste e que,
para enfrentarmos algo muito difícil ou desgastante, precisamos estar fortalecidos. Assim, a trajetória
estratégica a ser definida poderá contemplar inicialmente as ações menos conflitivas ou, se for o caso,
aquelas que mesmo envolvendo algum conflito potencial têm um alto custo de postergação, o que
quer dizer, aquelas que, se não forem enfrentadas em tempo hábil, causarão um grande desgaste. O
custo pode ser político (perder poder), econômico-financeiro (perder recursos), social (perder vidas
ou aumentar o sofrimento humano).
Para as finalidades deste estudo, o planejamento estratégico pode ser classificado em corporativo ou
situacional.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
O planejamento estratégico corporativo busca realizar uma análise da organização à luz de sua con-
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Para o planejamento estratégico, portanto, problema é algo que nos leva a agir, buscando a sua supe-
ração e não um mal-estar, um desconforto vago e impreciso. É claro que o que se julga ideal, deseja-
Agora tomemos como exemplo um fato imaginário, a publicação no Correio da Tarde sobre a Materni-
dade A, onde, no mesmo mês, morreram três mulheres e dez bebês. As mulheres morreram de parto
e os bebês, após contraírem infecção no berçário por falta de lavatório, sabão e toalhas de papel para
a lavagem das mãos. Consideremos quais são os problemas contidos neste exemplo:
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS Para o diretor da maternidade o problema que deve importar é a ocorrência dos óbitos. É um pro-
COLETÂNEA blema finalístico, que compreende o resultado, a qualidade da assistência prestada pela maternidade.
DE TEXTOS
Por mais que a notícia publicada no Correio da Tarde possa afetar, e afeta, a imagem da maternidade,
esse é um problema que decorreu dos óbitos evitáveis, portanto, representa um problema secundário,
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
aquele que é consequência de outro. Para melhorar a imagem da organização a simples estratégia de
divulgação de outros bons resultados organizacionais é insuficiente. O gerente precisa trabalhar para
que tal tipo de óbito não mais ocorra. Ou seja, ele deve atuar sobre as causas dessas mortes. Não basta
atuar sobre a consequência (ou problema secundário).
E a falta de lavatório, sabão e toalhas de papel?
São problemas importantes porque é consenso que os bebês são mais propensos a contrair infecção
e que a lavagem das mãos, isoladamente, é o modo mais eficaz de prevenir as infecções hospitalares.
A falta de lavatório e de material certamente contribui para que os bebês tenham contraído infecção,
causando impacto negativo nos resultados da assistência.
126
A solução para esse problema é conhecida: há que se dispor de lavatório e de material de consumo
para a lavagem das mãos. Se esse é um problema de solução conhecida e consensual, podemos dizer
que ele é um problema bem estruturado. Esse problema deve estar na esfera de preocupação dos técnicos
Dos dois problemas apresentados (baixa expectativa de vida e mortes na Maternidade X) podemos
tirar algumas conclusões e inferir algumas questões sobre a tipologia dos problemas.
Concluímos que existem problemas de solução conhecida e universalmente aceita, que são os bem
estruturados. Inferimos que deve existir uma outra classificação para os que não são bem estrutu-
rados. São os chamados problemas mal estruturados.
Concluímos que existem problemas finalísticos que têm impacto direto sobre os resultados organi- Curso de
Desenvolvimento
zacionais. Inferimos que deve existir uma outra classificação para os problemas que se relacionam Gerencial
indiretamente com os resultados organizacionais. São os chamados problemas intermediários. De do SUS
modo geral, os problemas relacionados aos processos administrativos internos da organização são COLETÂNEA
DE TEXTOS
problemas intermediários (por exemplo, os baixos salários do pessoal do hospital).
Sabemos que alguns problemas se apresentam hoje e que outros surgirão futuramente, nem que
Essas categorias de problemas podem ser combinadas entre si, segundo o quadro abaixo:
127
É claro que a vida organizacional, principalmente no campo sanitário, não se molda em um quadro
rígido como o anterior. O Quadro serve apenas como recurso didático. Até porque os problemas
bem estruturados que identificamos no campo do planejamento e da gerência em saúde costumam
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA 1. Porque partimos do princípio de que um problema a ser enfrentado com planejamento estratégico
DE TEXTOS
não é um problema simples, com uma causa única. Anteriormente apresentamos o exemplo dos
óbitos dos dez bebês por infecção hospitalar por falta de equipamento e material para lavagem das
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
mãos apenas para simplificar, didaticamente. Na realidade, sabemos que a infecção hospitalar é um
problema com várias causas... Para explicarmos um problema é necessário que façamos, sucessi-
vamente, uma série de perguntas do tipo “Qual é a causa disto?” ou “Por quê?”. Assim, poderemos
eleger causas que sejam importantes na geração do problema em vez de ficarmos atuando sobre
fatos ou consequências.
2. Porque, em se tratando de problemas no campo da gestão em saúde, nenhum diagnóstico “cien-
tífico” é neutro. Ele vai estar sempre referido à situação do ator e impregnado pela sua visão de
mundo. Então, nossa explicação do problema precisa considerar a explicação de outros atores
sociais envolvidos ou a se envolverem com o problema.
Trabalhar com a explicação do problema representa o esforço de incorporar a explicação de outros
atores importantes na geração e/ou na solução do problema em questão.
Por fim, restam uns conceitos importantes de planejamento estratégico a tratar:
governabilidade;
capacidade de governo;
projeto de governo
Esses três conceitos estão intimamente relacionados. Já ouvimos falar muito de governabilidade: “há
uma crise de governabilidade...”
128
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Quanto melhor a qualidade de um plano, maior a governabilidade de um dado valor social para a
execução de seu projeto. Quanto maior a capacidade de governo, maior a governabilidade, visto que
há um maior domínio dos recursos, por exemplo, cognitivos. Para representar graficamente essa
estreita relação e o seu dinamismo, Carlos Matus utilizou o chamado Triângulo de governo.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
129
A missão do hospital e os problemas que a afetam devem-se refletir na agenda do dirigente, que deve
ser prioritariamente voltada para enfrentar os problemas estratégicos da organização. Uma agenda
repleta de urgências e “incêndios” denota a precariedade do processo de planejamento e/ou a exces-
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Para o planejamento, pouco adianta tratar de declarações genéricas sobre o que uma organização
deve ou não deve fazer e como deve fazer. Quanto mais claros e de conhecimento geral forem os obje-
tivos a serem alcançados e mais alta a responsabilidade com os resultados organizacionais, maior será
a demanda por planejamento na organização. Em resumo, uma organização que não demanda por
planejamento, provavelmente não apresentará uma alta responsabilidade com os resultados organiza-
cionais. Permanecerá atendendo demandas, que tendem a ser crescentes, sem planejar o seu futuro.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Até agora abordamos os tipos de planejamento e buscamos justificar a pertinência da aplicação dos
princípios e conceitos de planejamento estratégico ao campo da saúde, área com muitos problemas
complexos e multicausados. Fizemos isto mediante a exploração das sete perguntas formuladas no
início deste estudo e da necessidade de abordá-las todas no processo de planejamento. Mas, o estudo
sobre planejamento não termina aqui e o nosso assunto é planejamento em saúde... Tratemos em
seguida da epidemiologia, que deve subsidiar a programação em saúde. Por enquanto, afirmaremos
que Programar também é Planejar.
Se você estiver interessado no debate sobre o planejamento em saúde, as diferentes escolas e métodos
na América Latina e no Brasil, ver Rivera (1989); Artmann et al. (1997) e Matus (1993).
131
Algumas observações sobre esses critérios.
Valor: estimado em alto, médio ou baixo.
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Governabilidade do ator sobre o problema: considerar o controle que o ator tem sobre os recursos
necessários para atacar o problema. Estimada em alta, média ou baixa.
Resposta de outros atores com governabilidade: esses atores podem ser indiferentes, favoráveis ou
contrários.
Custo de postergação da solução: o custo pode ser econômico, político, social, etc. Estimado em
alto, médio ou baixo.
Tempo de maturação dos resultados: pode ser dentro ou fora do período de mandato. Para um ator
que se mova estrategicamente para acumular forças ou ganhar posições, pode não ser interessante
atacar um problema de alto valor se os resultados aparecerem fora do período de sua gestão. Isto
não é desejável mas pode/costuma ocorrer.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
2.1.2. Descrevendo o problema
COLETÂNEA
DE TEXTOS Uma vez selecionado o problema a ser atacado, quanto mais precisamente nós o enunciarmos e o des-
crevermos, mais facilidade nós teremos para pensar o que fazer (as operações e ações) e para avaliar
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
O contexto
Um hospital geral do Ministério da Saúde, com emergência e vários centros de trata-
mento intensivo (UTI, Unidade Coronariana, Centro de Queimados), foi municipalizado
recentemente e lhe foi imposta uma realidade gerencial e administrativa substancialmente
diferente da que gozava anteriormente, com perda significativa da autonomia. Como hos-
pital público, está sujeito à legislação em vigor sobre compras e contratações de pessoal e
serviços. Com a integração à rede municipal, o hospital reduziu suas barreiras à entrada,
entre outras coisas, tornou mais flexível a triagem de pacientes que fazia para a emergên-
cia (para adequar-se à forma de funcionamento do restante da rede municipal). Reunida a
equipe, foram listados os problemas e resultou a escolha de um problema a ser enfrentado.
132
O problema
Incapacidade de atender à demanda com nível adequado de qualidade, principalmente no
Fontes de verificação
Prontuários dos pacientes, relatórios de enfermagem e das comissões de controle de in-
fecção hospitalar e de revisão de óbitos; estatísticas do SAME e boletins de atendimento
da emergência.
mais abrangente ela for. Essas causas podem ser agrupadas em um diagrama de causa-efeito, confor- COLETÂNEA
DE TEXTOS
me apresentado na Caixa de Instrumentos.
2.1.4. Identificando o que fazer (as operações necessárias) para enfrentar o problema
A definição de um problema costuma trazer implícita a sua solução, ou o que se imagina seja a sua so-
lução. Todavia, é desejável que seja feito um esforço sistemático para pensar o que fazer. O processo
de identificação do que fazer (as operações) pode se basear também em um brainstorming, se você de-
seja identificar operações criativas. Mas, de todo modo, para cada operação devem ser identificados
os recursos necessários, os prazos, os responsáveis e devem ser apontados os resultados desejados.
133
Algumas operações podem contrariar algum ator. São as chamadas operações conflitivas ou conflituo-
sas. Neste caso, deve ser analisado o peso político do ator que terá seu interesse contrariado e escolhidas
as estratégias para se trabalhar nessa situação (persuasão, negociação, confronto, cooptação etc.).
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
SÍNTESE
Segundo a Teoria Neoclássica da Administração, o planejamento é uma fun-
Curso de ção administrativa. Com ele buscamos construir o futuro mediante uma
Desenvolvimento
Gerencial ação que se inicia no presente.
do SUS
A demanda por planejamento é maior quando a organização se defronta com
COLETÂNEA
DE TEXTOS problemas ou oportunidades e quando é alta a sua responsabilidade com os
resultados organizacionais.
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
Nesse sentido, podemos estudar uma doença, um fator de proteção, o uso de algum medicamento, a DE TEXTOS
exposição a certas substâncias etc. Podemos estudar um fator isoladamente (por exemplo, número
Dos dez usos identificados por Pereira (2000), abordaremos apenas três neste estudo. São eles: o
diagnóstico da situação de saúde, a determinação dos riscos e planejamento e organização de servi-
ços. Os demais, embora muito importantes, ultrapassam o escopo deste estudo.
135
Tomemos o diagnóstico da situação de saúde de uma dada população. Ele representa o uso funda-
mental da epidemiologia e subsidia os demais. Trata-se da atividade de gerar dados quantitativos
sobre o estado de saúde da população, por meio de registros rotineiros ou de investigações especiais
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
(inquéritos de morbidade, por exemplo). As estatísticas vitais (registros de nascimentos – nascidos vivos
e mortos e óbitos) são fontes de dados.
Como registros rotineiros de morbidade temos aqueles que decorrem da demanda por assistência à
saúde, seja através do uso dos serviços ou dos resultados clínicos. Como registros especiais temos os
de câncer e malformações congênitas. Podemos, também, obtê-los nos sistemas de informação em
saúde (SIS), que serão abordados no Módulo III.
Quanto à abrangência, o diagnóstico da situação de saúde de uma população pode estar referido a
uma única doença ou agravo, a um fator de risco, ao uso de um serviço, a uma característica da po-
pulação ou a um grupo de doenças (cardiovasculares ou infecciosas); ou ser mais abrangente, como é
o diagnóstico de saúde de uma comunidade.
De todo modo, para descrever a situação ou estado de saúde de uma dada população, a epidemiologia
recorre ao uso de indicadores de saúde que retratem essa situação. Geralmente os indicadores utilizados
são os de morbidade e mortalidade. Os indicadores de saúde serão tratados no tópico seguinte.
Se você quiser saber mais sobre indicadores de saúde, inclusive sobre alguns indicadores “positivos”,
tais como qualidade de vida, consulte as referências sobre epidemiologia, no final da Unidade.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Vejamos o exemplo de câncer mamário de pulmão. Mesmo sem fumar, uma pessoa pode desenvolver
câncer pulmonar. Se ela fuma, a probabilidade de contrair câncer pulmonar é alta. E se, também,
ela trabalha com asbesto, a probabilidade é maior ainda. Desse exemplo extraímos tanto a noção de
que o risco pode ser aumentado pela exposição da pessoa ao cigarro e ao asbesto, quanto a noção de
fatores de risco. Se, em vem de uma pessoa, temos um grupo de pessoas com esses comportamentos
(fumar, fumar e trabalhar com asbesto) é o caso de se buscar construir os conceitos de risco absoluto,
relativo e atribuível.
No exemplo anterior, há um risco absoluto de que os dois grupos (fumantes e fumantes que trabalham
com asbesto) contraiam câncer de pulmão. Esse risco absoluto pode ser medido como taxa de incidên-
cia (número de casos novos no grupo de fumantes, em um dado período; número de casos novos no
136
grupo de fumantes que trabalham com asbesto, no mesmo período). Vemos, então que os valores nu-
méricos da taxa de incidência são diferentes para os dois grupos. O risco relativo é a razão entre essas
duas taxas e a sua interpretação seria a seguinte: o risco de contrair câncer de pulmão é Y vezes maior
Pensemos no caso das infecções hospitalares. São vários os fatores de risco para a infecção hospitalar.
Ela é inevitável em muitas situações em que o indivíduo mais suscetível (prematuros, idosos, desnu-
tridos etc.) é submetido a procedimentos invasivos e exposto ao ambiente hospitalar, onde existem
microorganismos muito mais resistentes do que os existentes na comunidade.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
Então, é esperado que haja uma determinada taxa de infecção hospitalar. Mas há riscos evitáveis. Evi- do SUS
tá-los ou minimizá-los significa reduzir o tempo de permanência do paciente, economizar recursos COLETÂNEA
DE TEXTOS
(por exemplo, antibióticos e exames complementares). Enfim, baixar os custos hospitalares e sociais.
Tomemos agora o uso da epidemiologia que Pereira (2000) denomina “Planejamento e Organização
137
Ou, como preferimos:
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
O diagrama de círculos concêntricos evidencia que há uma parte das necessidades de saúde e da
demanda que não se transforma em utilização de serviços de saúde. Em parte isto é explicado pelo
fato de existirem necessidades não percebidas. De outra parte, pela existência de uma demanda repri-
mida nos serviços de saúde. Quanto à demanda reprimida, podemos adiantar que a oferta de serviços
de saúde condiciona a sua utilização, bem como o acesso aos serviços. Um serviço não ofertado não
pode ser consumido.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Dever (1988) relaciona uma série de fatores que influenciam a utilização dos serviços de saúde. Agrupa-
-os em fatores socioculturais, organizacionais, relacionados com o consumidor e com o prestador.
Entre os fatores socioculturais encontram-se os valores da própria sociedade e a tecnologia emprega-
da. Por exemplo, em algumas culturas, o nascimento é um evento predominantemente social e me-
nos um evento médico; em uma sociedade em que o parto é, na maioria das vezes, realizado em casa,
como na Holanda, a utilização de hospitais pelas parturientes é muito baixa. Outro exemplo: nos
grandes centros urbanos do Brasil, nascer e morrer são eventos predominantemente hospitalares,
ao contrário de pequenas vilas brasileiras, onde não existe hospital. Nessas vilas, é “normal” que os
familiares, amigos e até crianças participem da agonia, da morte e do velório. Este exemplo ilustra,
também, além dos fatores culturais, o fato de a oferta condicionar a utilização.
138
O uso da tecnologia influencia a utilização de serviços de saúde. Um exemplo: com o desenvolvi-
mento da tecnologia para o tratamento da tuberculose, este tratamento deixou de ser ofertado em
regime de internação. Hospitais construídos para essa finalidade foram desativados ou reorganizados.
Como fatores organizacionais que condicionam a utilização dos serviços de saúde, Dever (1988)
relaciona:
a disponibilidade de recursos, ou seja, o fato de os serviços necessários existirem ou não;
a acessibilidade geográfica, que é geralmente medida em termos de distância/tempo de viagem/custo;
a acessibilidade temporal, que representa o período de tempo em que os recursos estão funcionando;
a acessibilidade social, que é o reflexo da aceitabilidade por parte do paciente e da sua disponibi-
lidade financeira; Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
as características da estrutura e processo de atendimento que envolvem tanto as chamadas “barrei- do SUS
ras ao acesso”, que incluem a cobrança pelo serviço e o próprio sistema de remuneração. Quanto COLETÂNEA
ao processo de atendimento, podemos citar, como exemplo, a existência de mecanismos restriti- DE TEXTOS
Existem outros fatores relacionados com a clientela e com o prestador, que condicionam a utilização
de serviços de saúde. Entre os fatores relacionados com a clientela podemos citar: idade, sexo, nível
social e de instrução e as atitudes e convicções. Entre os relacionados com o prestador, encontram-
-se: a composição da equipe, as inovações tecnológicas de que o prestador dispõe e o preço cobrado
(ou não) pelo serviço.
139
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Todos os fatores que influenciam a utilização dos serviços têm que ser considerados quando se pro-
grama ou se avalia um serviço de saúde. Existem predisposições diferentes por parte da clientela para
procurar serviços mais distantes de sua casa ou local de trabalho, ou mesmo para maior aceitabilidade
do tratamento por parte da clientela, se o problema de saúde é percebido como mais ou menos grave.
4. Indicadores de saúde
Um indicador de saúde, ou melhor, um conjunto de indicadores de saúde serve para revelar a situação
Curso de de saúde de um indivíduo ou de uma população. Um indicador pode ser expresso sob a forma de um
Desenvolvimento
Gerencial número absoluto (frequência) ou como um número relativo (coeficiente ou índice).
do SUS
Coeficiente é a relação entre o número de eventos que de fato aconteceram (eventos reais) e o nú-
COLETÂNEA
DE TEXTOS
mero de eventos que poderiam acontecer. Por exemplo, digamos que um coeficiente é 0,00010.
Isto significa que esse coeficiente é igual a 10/100.000. Ou seja, ocorreram dez eventos, mas po-
deriam ter ocorrido 100 mil. Se dez se refere a óbitos por câncer de próstata no mês na capital Y
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
no ano X, e 100 mil corresponde ao número de habitantes homens daquela capital, podemos dizer
que o coeficiente de óbitos por câncer de próstata naquela localidade é de 10/100.000.
Índice é a relação entre a frequência (número absoluto) de eventos e a frequência de eventos que
contêm, também, aqueles eventos registrados no numerador. Ou seja, o numerador está contido
no denominador. Por exemplo, digamos que um índice é de 0,35. Isto significa que esse índice é
igual a 35%. Ou seja, 35 eventos daquele tipo ocorrem no total de 100 eventos gerais. Imaginemos
agora que 0,35 corresponde ao índice de mortalidade infantil proporcional no mês na capital Y no ano
X, significa que o numerador corresponde ao total de óbitos de menores de um ano e o denomi-
nador corresponde ao total de óbitos na mesma localidade, no mesmo período.
140
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Existem indicadores de uso mais frequente. Abordaremos em seguida alguns deles:
mortalidade;
letalidade;
morbidade;
incidência;
prevalência;
evento-sentinela.
141
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Enquanto a mortalidade trata de uma população, mesmo quando analisa a mortalidade por uma
causa específica, a letalidade refere-se à morte por uma doença específica no grupo populacional com
aquela doença.
Entre os indicadores de morbidade, destacamos a incidência e a prevalência. A primeira refere-se ao nú-
mero de casos novos de uma dada doença, complicações ou agravos e reflete a dinâmica com que casos
novos aparecem no grupo populacional, num determinado período de tempo. Já a prevalência refere-se
a casos existentes, num determinado instante no tempo, independentemente de quando se iniciaram.
Vejamos o exemplo da infecção hospitalar, ao qual se aplica a vigilância epidemiológica. Os casos novos em
um dado período representam a incidência. Em um dado momento, o somatório de todos os casos
existentes (novos e antigos) representa a prevalência momentânea.
Exemplo I: no caso de cirurgia ortopédica eletiva, geralmente, não é esperado ocorrer infecção
Curso de pós-operatória. Já nas cirurgias ortopédicas de urgência a incidência de infecção pós-operatória é
Desenvolvimento
Gerencial maior. Portanto, neste caso, não podemos comparar a incidência de infecções pós-operatórias sem
do SUS
saber, no mínimo, se as cirurgias em questão são de urgência.
COLETÂNEA
DE TEXTOS Exemplo 2: a prevalência de infecção hospitalar, analisada isoladamente em um berçário de alto
risco, pode manter-se estável quando há aumento da incidência e da mortalidade, concomitan-
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
temente. Neste caso haveria uma necessidade de intervenção, já que a estabilidade do indicador
(prevalência) não corresponde a uma estabilidade dos níveis de infecção hospitalar (incidência).
Além dos indicadores citados, temos que discutir o conceito de evento-sentinela. Evento-sentinela é
a ocorrência de um fato não desejado e potencialmente evitável. Ele nos alerta para que adotemos
estratégias de avaliação e medidas de controle. Por exemplo, a ocorrência de tétano neonatal é um
problema sério, não desejado e evitável, se as rotinas de cuidados forem adequadas. Seu aparecimento
configura-se como evento-sentinela, sinalizando problemas nos cuidados à gestante e ao recém-nato.
Outro exemplo de evento-sentinela são as mortes maternas ocorridas em um dado hospital.
142
Partindo desse panorama, pense:
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Para responder a essa pergunta, temos que conhecer o perfil de agravos à saúde prevalecentes na
SÍNTESE
A epidemiologia é fundamental para o planejamento e para a programação
de ações e serviços de saúde. Afinal, mesmo em se tratando de um hospital
privado, a lógica não pode ser exclusivamente mercadológica. Pensemos que
a utilização de serviços de saúde por parte da população, se de um lado pode
contribuir para melhorar seu estado de saúde, por outro a expõe aos riscos
presentes no ambiente. Entre estes riscos encontra-se a infecção hospitalar,
Curso de
Desenvolvimento
para não falarmos do risco de iatrogenia.
Gerencial
do SUS Conhecer o perfil epidemiológico da região em que se localiza o hospital e o
COLETÂNEA perfil dos atendimentos nele realizados significa buscar uma maior adequa-
DE TEXTOS
ção às necessidades da clientela, pelo menos em relação àquelas necessidades
que a epidemiologia pode ajudar a definir. E uma das formas de se caracteri-
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
5. Programação
144
Tentaremos responder essas e outras perguntas com este estudo, mas antes precisamos adiantar que
a programação se utiliza de normas. É por isso que alguns planejadores a consideram uma atividade
menor, um planejamento meramente normativo. Todavia, a programação é um potente instrumento
na Comissão Intergestores Tripartite, cujo resultado é deliberado pelo Conselho Nacional de Saúde.
145
Por que dizemos que a programação é um “cálculo de aproximações sucessivas”? Por várias razões,
entre elas:
em saúde, os recursos são e tendem a continuar sendo escassos. Nosso país investe relativamente
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
pouco em saúde (o gasto público em saúde no Brasil corresponde a 3,17% do PIB – dado relativo
a 1996, o mais recente). Além disso, não se pode dizer que os recursos sejam empregados com
eficiência. Mesmo em países que investem mais em saúde, a alta incorporação de tecnologia gera
custos crescentes. Se os recursos são escassos, a programação feita hoje precisará ser avaliada e,
possivelmente, redirecionada;
as informações e dados disponíveis para se programar são insuficientes. Nem sempre dispomos
de informação de base epidemiológica para procedermos ao enfrentamento de todos os problemas
de saúde;
a programação se utiliza de normas. Elas são construídas com base em revisão bibliográfica, em
busca de evidências científicas para subsidiar a elaboração de rotinas e protocolos clínicos; opinião
de experts com ou sem utilização de métodos Delphi e Grupo Nominal, buscando-se consenso; ou,
mais frequentemente, pela observação sistemática de experiências e de processos, que incluem
estudos de utilização e séries históricas. E isto pode trazer consequências, tais como a aplicação
mecânica de normas geradas em um momento, em uma determinada realidade, para outra com-
pletamente diferente. Por sua vez, o emprego de estudos de utilização para a construção de nor-
mas para programação pode reproduzir a realidade que precisamos modificar. Então, não existe a
norma infalível, aplicável a todas as realidades, em todos os momentos.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
A programação dos serviços de saúde visa o aumento de eficiência, assegurando-se uma boa quali-
dade, a partir da melhor utilização dos recursos. Com a programação se define o que o serviço de
saúde vai oferecer, quais as ações, e como ele será organizado e disponibilizado para a população. No
processo de programação em saúde, segundo Taveira (2000), busca-se “articular três eixos princi-
pais. São eles:
o da saúde, em que se analisa o estado de saúde atual de um determinado grupo populacional e se
define o estado de saúde considerado desejável (futuro planejado), em determinado espaço de tempo;
o dos serviços, em que se precisa identificar e avaliar os serviços atualmente prestados (presente)
e os serviços necessários (futuro planejado) para modificar o estado de saúde atual;
o dos recursos, em que se precisa identificar e avaliar os recursos atualmente disponíveis (presen-
te) e os que serão necessários (futuro planejado) para executar os serviços propostos.”
146
5.2. As normas e a programação
Vimos anteriormente como são geradas as normas utilizadas para programar um serviço ou uma rede
Temos uma população de mil crianças de zero a quatro anos. Todas elas precisam ser protegidas con-
tra a poliomielite. Todas as crianças até quatro anos de idade receberão três doses de vacina e mais
uma de reforço. Este é um problema simples de programação de atividades.
Faremos o seguinte raciocínio:
População = mil crianças.
Temos que vacinar todas. Vacinar todas as crianças de zero a quatro anos corresponde a vacinar
100% das crianças até quatro anos. Então, 100% é a norma de cobertura.
Multiplicando a população pela norma de cobertura, chegaremos à população-alvo.
No caso, a população-alvo é de mil crianças.
147
Cada criança deve receber, até os quatro anos de idade, as quatro doses de Sabin. Então, quatro
doses é a norma de concentração.
Multiplicando a população-alvo pela norma de concentração, teremos o número total de doses de
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Problema 2
Temos uma população de 400 gestantes em um ano na localidade X. Imaginemos que 80% delas precisam
fazer consultas pré-natais na nossa rede de serviços. Cada gestante deve receber seis consultas de pré-natal.
Fazendo uma analogia com o exemplo anterior concluímos que:
a população é de 400 gestantes no ano;
a norma de cobertura é de 80%;
a população-alvo é de 320 gestantes no ano;
a norma de concentração é de seis consultas/gestante;
o total de consultas de pré-natal para essa população, utilizando esses parâmetros, é de 1.920
consultas anuais.
148
Problema 3
Temos uma população de 15 mil adultos e precisamos programar o número de internações no ano X.
Curso de
Problema 4 Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
Temos que oferecer atendimentos de urgência/emergência para uma população de 25 mil pessoas.
COLETÂNEA
O que fazer? DE TEXTOS
A única coisa que soubemos com a nossa busca é que 15% das consultas totais no ano correspondem
Problema 5
Temos um hospital para colocar em funcionamento. Os pacientes precisarão de roupa limpa para uso.
O que fazer?
Procuramos na biblioteca e encontramos um Manual de lavanderia do Ministério da Saúde. Nele são
apresentados alguns padrões de consumo de roupa limpa (ou geração de roupa suja) por leito hospi-
talar nas 24 horas.
Ao chegarmos a este ponto do nosso raciocínio vamos sistematizar nossos achados em uma planilha.
149
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Curso de
para calcular imunização Sabin e consultas de pré-natal utilizamos o mesmo raciocínio. Ele se apro-
Desenvolvimento xima muito das necessidades desses grupos populacionais, em relação a essas atividades específicas.
Gerencial
do SUS Podemos dizer, então, que esse modelo de cálculo corresponde a uma programação por necessidades;
COLETÂNEA para calcular as internações recorremos a uma taxa de utilização;
DE TEXTOS
para calcular a atividade lavagem de roupas recorremos a um padrão de consumo;
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
150
A - Vamos calcular o número de consultórios necessários, passo a passo.
Qual é o rendimento anual de um consultório? Ou seja, quantas consultas, em média, podem ser
realizadas em um consultório, em um ano? Ora, é possível realizar três a quatro consultas pré-
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
Os consultórios de pré-natal precisam ter sanitário anexo, os de ginecologia e proctologia também. do SUS
Então, em vez de termos consultórios ociosos em ¾ do tempo, por que não dividimos os turnos de fun- COLETÂNEA
DE TEXTOS
cionamento, no mínimo, com a ginecologia? Afinal, ginecologia e obstetrícia são especialidades afins.
B - Agora vamos calcular o número de leitos necessários para realizarmos as 1.500 in-
ternações anuais, passo a passo.
Qual é o rendimento anual de um leito hospitalar? Ou seja, quantas internações, em média, podem
ser realizadas em um leito hospitalar, em um ano? Quanto um leito vai “render” depende do Tempo
Médio de Permanência (TMP) e do percentual de tempo em que ele vai estar ocupado, ou seja,
de sua Taxa de Ocupação (TO). Tempo médio de permanência, taxa de ocupação e o número de
dias em que o leito está disponível para uso, ou sendo usado no ano, consistem nas chamadas normas
de funcionamento, no nosso exemplo, do leito hospitalar. Vamos trabalhar com as seguintes normas
de funcionamento: TMP = 7 dias; T= 80%; NF = 365 dias no ano. Então, temos:
Rendimento anual de um leito hospitalar = 365 x 0,80/7 = 41 internações/leito/ano.
151
Temos que realizar 1.500 internações no ano. Cada leito apresenta o rendimento de 41 internações
anuais.
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Curso de
Desenvolvimento
Sabemos que é relativamente rara a oportunidade de colocarmos um hospital novo em funcionamento.
Gerencial
do SUS A lógica empregada na programação aplica-se também aos serviços que já se encontram em funcio-
COLETÂNEA namento.Para isto, o cálculo pode ser feito, também, em sentido inverso, ou seja, dos recursos exis-
DE TEXTOS
tentes para o número de atividades, a fim de avaliarmos a eficiência na utilização dos recursos físicos.
Vamos consolidar os nossos achados em uma planilha:
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Uma questão fundamental no processo de programação é relativa ao balanço entre recursos neces-
sários e existentes e aos ajustes que precisarão ser feitos para melhorar a utilização dos recursos, do
152
acesso aos mesmos e da sua qualidade. Retornaremos ao balanço entre recursos necessários e exis-
tentes, após sistematizarmos os dois modelos de programação.
Podemos dizer, a essa altura, que existem dois modelos de programação, ou seja, dois modos básicos
Curso de
Desenvolvimento
Sobre os dois quadros anteriores, podemos dizer que: Gerencial
do SUS
os pontos de partida dos dois modelos são diferentes. Enquanto no primeiro quadro partimos das
COLETÂNEA
necessidades ou dos problemas de saúde, no segundo partimos da oferta ou da demanda; DE TEXTOS
o ponto de chegada dos dois modelos também é diferente. Após o balanço entre recursos neces-
153
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS Os pacientes que ocuparão os leitos a serem ampliados consumirão mais:
COLETÂNEA refeições;
DE TEXTOS
roupas lavadas;
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Teremos que analisar, no mínimo, o impacto dessa ampliação para o centro cirúrgico, central de
esterilização, serviço de anestesiologia etc. E assim por diante...
154
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
5.4. As estatísticas e os indicadores hospitalares de produção
A estatística hospitalar engloba a aplicação das técnicas estatísticas na análise dos dados hospitalares.
Os indicadores hospitalares são habitualmente produzidos pelo Serviço de Arquivo Médico e Estatística
(SAME), ou Serviço de Documentação Médica e Estatística do Hospital, sendo imprescindível a
adequada organização desse serviço.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
155
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Esse sistema pode ser informatizado. O Sistema Informatizado de Informações Hospitalares pode
variar de módulos independentes, que tratem de funções do hospital, tais como controle de estoques,
pessoal etc., até um sistema integrado, que tenha por base o Prontuário Eletrônico do Paciente. Os
dados de um sistema informatizado de informações hospitalares podem agilizar a avaliação da pro-
dutividade, dos resultados, análise de custos, simulações e outros, subsidiando a tomada de decisão.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS Em resumo, o SIG constitui-se em:
COLETÂNEA
DE TEXTOS
ferramenta de gestão que permite tomar decisões;
pp
fonte de informação objetiva, pertinente, confiável.
pp
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
156
Como a maior parte dos hospitais brasileiros não possui sistemas gerenciais informatizados, vamos
considerar o SAME, que costuma produzir suas estatísticas a partir do censo diário. Abordaremos uma
situação muito frequente: um hospital em que o censo não está informatizado.
Porque:
o paciente que entrou e saiu no mesmo dia consumiu recursos: roupa de cama, material estéril,
alimentação, energia etc. Se considerarmos só os pacientes que existem à meia-noite nosso hospi-
tal vai “quebrar” ou vai faltar algum insumo importante para o processo de atenção;
157
a maior parte dos indicadores hospitalares de produção/produtividade é calculada a partir do nú-
mero de pacientes-dia e do número de leitos-dia.
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Então, o Serviço de Arquivo Médico e Estatística desse hospital anota a cada dia do mês em uma
folha grande, ou num livro, o número de pacientes-dia e de leitos-dia, naquele dia, naquela clínica,
no espaço correspondente (a folha tem espaço suficiente para as anotações de todo o mês). No início
do próximo mês é feita a estatística mensal e o cálculo dos indicadores, clínica por clínica. Podemos
também proceder ao cálculo por trimestre.
A primeira fórmula é mais utilizada, pela facilidade de obtenção dos valores das variáveis. Porém,
costuma representar apenas um número aproximado do real e não deve ser utilizada para estabeleci- Curso de
Desenvolvimento
mentos de longa permanência. Gerencial
do SUS
Exemplo: No Hospital B constatou-se que, em janeiro de 2001, saíram 59 pacientes, de um total
COLETÂNEA
de 1.067 pacientes-dia. A média de permanência de cada paciente foi de 18,08 dias. Ou seja, cada DE TEXTOS
paciente do Hospital B permaneceu internado 18,08 dias, em média, em janeiro de 2001.
159
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Exemplo: No primeiro trimestre de 2001, 78 pacientes saíram da Clínica C. Esta clínica teve 30
leitos durante o período. A rotatividade de cada leito foi, em média, de 2,6 pacientes/leito. Ou seja,
cada leito da Clínica C gerou 2,6 saídas (em média), no primeiro trimestre de 2001.
Curso de
Desenvolvimento
D - Intervalo de substituição: expressa o número de dias em que cada leito permaneceu desocu-
Gerencial pado, em média, entre uma saída e a próxima admissão, num determinado período.
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Exemplo: A clínica médica do Hospital Z totalizou 2.100 leitos-dia no mês de janeiro de 2001
e 1.962 pacientes-dia. Nesse mesmo período teve 98 pacientes saídos. Vamos utilizar a primeira
fórmula, já que temos o valor das três variáveis. O intervalo de substituição foi de 1,4 dia. Ou seja,
cada leito da clínica médica do Hospital Z ficou vazio durante 1,4 dia, em média, entre uma saída e
a admissão seguinte, em janeiro de 2001. Podemos dizer que, comparado com a literatura nacional,
esse é um intervalo de substituição bastante satisfatório. Mas, ele sozinho, não informa muito sobre
o que acontece na clínica médica do Hospital Z...
Vamos utilizar os dados apresentados nesse exemplo para calcular outros indicadores.
Já vimos anteriormente que, para calcular a taxa de ocupação, precisamos do total de leitos-dia e de
pacientes-dia no período. Vamos calcular a taxa de ocupação da clínica médica do Hospital Z, em
janeiro de 2001?
TO = 1962 x 100 = 93,42%
2100
160
Temos, nesse exemplo, o total de saídas. Vamos calcular o tempo médio de permanência da clínica
médica do Hospital Z, em janeiro de 2001?
COLETÂNEA
DE TEXTOS
161
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Nessa análise, precisamos contextualizar os dados e informações tanto quanto a que tipo de serviço
Curso de e a que período de tempo se referem, e ao que eles expressam. Tomando como exemplo um dado
Desenvolvimento
Gerencial de realidade: a elevada frequência de pacientes com “pé diabético” nos hospitais e o agravamento das
do SUS
situações de amputação. Este é um problema de qualidade originado no hospital? Não, ele é gerado
COLETÂNEA pela deficiência do programa de diabetes no município. Ou seja, ele é consequência da baixa resolu-
DE TEXTOS
tividade da rede de atenção básica do município. Mas, já no hospital, a amputação foi mais extensa
porque o paciente esperou demasiadamente por ela? Então, há um problema relacionado à qualidade
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Cada indicador deve ser considerado no seu contexto; por exemplo, não podemos julgar se um tempo
médio de permanência de sete dias é alto ou baixo, se não soubermos que tipo de problema de saúde
é atendido naquele hospital. Vimos anteriormente que o grau de agregação do dado é importante
para quem de direito decidir e agir. Por outro lado, esse conhecimento só, não basta, pois temos que
analisar os resultados desta unidade com outras, com o mesmo tipo de atendimento, ou com dados
da literatura. Uma das fontes importantes de dados sobre atendimentos é a página do DATASUS
<www.datasus.gov.br>.
162
Olhemos com certas precauções a comparação dos resultados da assistência. Eles são influenciados
pela sazonalidade, pela gravidade dos casos atendidos e pela disponibilidade das tecnologias necessá-
rias ao bom atendimento. Caso você queira comparar os dados de seu hospital com os de outro, pode
Se não dispomos de um sanitarista ou epidemiologista, mas precisamos fazer comparações, que tal
compararmos os resultados de uma certa clínica em um determinado período de tempo, com os
resultados obtidos pela mesma clínica em outros períodos de tempo? Se a clientela não mudou subs-
tantivamente, o erro não será grande. Se for um Centro de Tratamento Intensivo, por exemplo, a
possibilidade de erro é menor ainda, visto que existe uma escala de classificação de risco e de gravi-
dade da doença, o APACHE, que tem duas aplicações:
avaliar o prognóstico de um dado paciente;
facilitar a comparação dos resultados de um, com os de outros centros de tratamento intensivo. Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
163
A estrutura refere-se ao espaço físico e às suas condições; ao número e composição da equipe de saú-
de, incluindo seu grau de qualificação; à existência de normas organizacionais e rotinas de serviços e
processos; aos recursos financeiros, humanos e materiais.
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Processo pode ser explicado como fluxo, movimento, transformação. No caso da assistência à saúde,
Curso de
Desenvolvimento processo refere-se ao conjunto de atividades desenvolvidas pelos profissionais na assistência prestada
Gerencial
do SUS ao paciente ou cliente.
COLETÂNEA A avaliação do processo inclui aspectos relacionados à qualidade técnica do atendimento (adequa-
DE TEXTOS
ção, continuidade e oportunidade) e às características da relação interpessoal entre os profissionais e
o paciente. Não é fácil avaliar o processo assistencial. Geralmente, se recorre à observação direta ou
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
Podemos trabalhar, também, com alguns dos indicadores hospitalares anteriormente abordados para
inferirmos sobre a qualidade do processo. Por exemplo, taxa de ocupação e tempo de permanência.
uma elevada taxa de ocupação pode nos levar a avaliar o processo para ver se os atendimentos estão
sendo adequados (exemplo: em caso de superlotação em UTI Neonatal, geralmente, os profissio-
nais não lavam corretamente as mãos entre o cuidado de um e outro bebê);
164
para a programação, utilizamos o Tempo Médio de Permanência (TMP). À primeira vista, uma
determinada clínica médica pode ter um TMP adequado. Mas, a média pode encobrir uma diver-
sidade de situações. Imaginemos que alguns pacientes ficaram internados durante dois dias e que
165
6. A programação e a produtividade
Mesmo nos países desenvolvidos, que investem muito mais em saúde do que o Brasil, o crescimento
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
dos custos com assistência médica supera em muito a inflação. Não é à toa que a produtividade dos
serviços de saúde tem recebido tanta atenção. E a programação, por objetivar a alocação eficiente de
recursos, mantém estreita relação com a produtividade.
Produtividade, neste estudo, representa a relação entre a produção obtida (por exemplo, número
de altas ou de consultas) por uma dada unidade produtiva (por exemplo, clínica médica), num dado
tempo, e os insumos utilizados para essa produção (leito hospitalar, consultório). O indicador de
produtividade pode ser expresso em unidades de produção por unidade do insumo utilizado (por
exemplo, altas/leito da clínica médica no mês de janeiro de 2001).
Até meados da década de 50, mesmo na área industrial, o conceito de produtividade limitava-se à razão
entre o produto e a hora trabalhada (produtividade dos recursos humanos). Tal como hoje é entendida
na área industrial, a produtividade, ou melhor, o seu indicador é constituído pela divisão de um produ-
to/serviço pelos fatores de produção. O indicador de produtividade pode ser parcial ou global.
É parcial quando se refere a apenas um insumo (mão-de-obra ou capital), que seja significativo e re-
presentativo. Em relação à mão-de-obra, podem ser empregados horas-homem ou número de funcio-
nários. No caso dos hospitais públicos, como os custos com pessoal representam, em média, segundo
Bittar (1994), 50 a 60% dos custos totais, esse é um insumo significativo. Esse percentual também
é válido, segundo o mesmo autor, para os hospitais privados, se considerados os salários e benefícios.
Curso de
Desenvolvimento A mensuração da produtividade global do hospital requereria um indicador que identificasse a contri-
Gerencial
do SUS
buição de cada fator de produção, da tecnologia que sobre ele se aplique e do tempo de sua utilização.
Na área hospitalar, devido à diversidade dos produtos/serviços oferecidos, isto é muito inviável.
COLETÂNEA
DE TEXTOS
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
166
A produtividade no campo da assistência à saúde encontra maiores dificuldades que na área indus-
trial, em parte por características comuns a toda a área de prestação de serviços, mas também por
características peculiares:
COLETÂNEA
DE TEXTOS
167
Bittar (1994) num estudo sobre a produtividade, que abrangeu oito hospitais gerais de grande porte,
localizados em São Paulo (seis privados e dois estatais de regime jurídico autárquico), concluiu que,
em face da complexidade do hospital e da diversificação das áreas de produção, torna-se impossível a
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
utilização de um único indicador para medir a produtividade e propôs o uso dos seguintes indicado-
res para avaliar a produtividade dos hospitais. São eles:
índice de produção/funcionários da área, que é a relação entre a produção (pacientes-dia, consul-
tas de ambulatório e de emergência, número de exames etc.) dividida pelo número de funcionários
da área (unidade de internação, do ambulatório);
média de permanência;
índice de renovação;
intervalo de substituição;
relação de funcionários por leito.
Curso de Bittar encontrou os seguintes valores para alguns dos indicadores acima referidos:
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
a relação funcionários por leito variou de quatro a nove, ressaltando-se que nem sempre são con-
tabilizados serviços contratados a terceiros;
COLETÂNEA
DE TEXTOS para o índice de renovação (ou giro de rotatividade) dos oito hospitais obteve-se uma média de
cinco, sendo que a amplitude variou de 3,7 a 6,6 utilizações no mês;
como instrumento de gestão
Planejamento, Epidemiologia e Programação
para o índice intervalo de substituição, que mede a ociosidade do leito, obteve-se uma média de
1,5 dia, com um valor mínimo de 1,2 e máximo de 2,7 dias.
Estes valores poderiam ser utilizados como normas para programação, em uma primeira aproximação.
Resta um problema não resolvido quanto à produtividade dos hospitais...
É a necessidade de uma certa qualidade do produto para se comparar à produtividade.
169
A epidemiologia subsidia a programação das ações e serviços de saúde, tanto
pela sua base metodológica, que propicia a análise da situação de saúde da
região em que se insere o hospital e da demanda atendida pelo mesmo, quan-
Gisele O’dwyer, Marismary Horsth de Seta, Sérgio Pacheco de Oliveira
Referências
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171
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
O DESAFIO DA GESTÃO DO TRABALHO NO SUS1 do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
1
Publicado originalmente em: BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. O desafio da gestão do trabalho no SUS. In:
BRASIL. CONASS. SUS: avanços e desafios. Brasília: CONASS, 2006. p. 129-151. (Coleção Progestores).
2
Reestruturação produtiva é o termo que engloba o grande processo de mudanças ocorridas nas empresas e principalmente na
organização do trabalho industrial nos últimos tempos, via introdução de inovações tanto tecnológicas como organizacionais e de
gestão, buscando-se alcançar uma organização do trabalho integrada e flexível. Dentre as mudanças organizacionais destacam-se
a redução substancial dos níveis hierárquicos, a polivalência e multifuncionalidade do trabalhador, o trabalho em grupos, mão-
de-obra com maior capacitação e disposta a participar, a aprendizagem, a autonomia, a cooperação, diferenciando-se da lógica da
especialização intensiva do trabalho (Garay, 2006).
173
Para alguns, trata-se de uma estratégia “moderna” para responder às novas formas de organização
do trabalho, decorrentes do processo de reestruturação produtiva e da incorporação tecnológica,
enquanto para outros é uma estratégia “antiga”, capaz de submeter o processo de qualificação às
exigências do mercado.
Nessa conjuntura, novas competências são requeridas dos trabalhadores: o aumento de escolaridade
exigida, exigência de conhecimentos gerais, capacidade de planejar, capacidade de comunicação, tra-
balho em equipe, flexibilidade, acesso a mais informações, capacidade de decisão frente a problemas
complexos, valorização de traços de personalidade (como responsabilidade, criatividade, iniciativa e
espírito crítico). Essas novas competências implicam redefinir as formas de formar, recrutar, selecio-
nar, qualificar e manter os profissionais em suas respectivas atividades, criando novas alternativas de
incorporação, e a remuneração da força de trabalho, cada vez mais especializada, como um instru-
mento gerencial essencial à Gestão de Recursos Humanos.
No Brasil dos anos 1980, em decorrência da crise econômica mais geral que se instala nesse
contexto, inicia-se um processo de desregulação do mercado de trabalho, marcado nessa
primeira etapa por um movimento contraditório: de um lado, ocorre uma desregulação impulsio-
nada pela tendência de desestruturação do mercado de trabalho; de outro, ocorre uma tentativa de
regulação3 motivada pela regulamentação desse mesmo mercado pela Constituição de 1988.
Para Nogueira (2004), os anos de 1980 e 1990 são marcados por mudanças profundas nas formas em
que o mundo do trabalho é organizado em sua estrutura, funcionamento e distribuição no espaço.
Curso de Segundo esse autor, a desregulamentação dos mercados de capitais e do trabalho, liberação de con-
Desenvolvimento
Gerencial troles e de fronteiras para os fluxos de capitais e diminuição do poder de intervenção do Estado sobre
do SUS a economia são alguns dos fenômenos mais proeminentes das décadas recentes.
COLETÂNEA
DE TEXTOS Por outro lado, as políticas públicas têm reconhecido que tais mudanças acarretaram consequências
negativas para as condições de vida e de trabalho dos assalariados. “Este processo é mais evidencia-
O desafio da gestão do trabalho no SUS
do nos setores produtivos, mas também já vem sendo notado nos setores de serviços, dentre eles, a
Saúde. Entretanto, uma das contradições evidentes no setor Saúde é o fato de que a flexibilização e
a precariedade do trabalho parecem manifestar-se devido a fatores que não o maciço desemprego,
na medida em que em alguns países detecta-se que este setor, tanto no segmento público quanto no
privado, comporta-se como um forte indutor de emprego, como é o caso do Sistema Único de Saúde
no Brasil.” (Nogueira, 2004).
O conceito de trabalho precário não tem obtido consenso entre os diferentes atores mais dire-
tamente envolvidos na implementação do sistema público de saúde, seja entre trabalhadores e gesto-
res, seja entre os gestores das diferentes esferas de governo.
Três principais conceituações de precariedade e informalidade do trabalho são encontradas entre os
autores:
3
A regulação do trabalho pode ser entendida como a síntese de dois fatores determinantes. Um é a estruturação do mercado de
trabalho, que está relacionada ao desenvolvimento econômico do país e ao avanço das relações de produção e tem implicações na
oferta de empregos e distribuição espacial dos empregos, bem como à qualificação exigida para os tais, dependendo, portanto,
do padrão de desenvolvimento que se instala na sociedade. O outro é a regulamentação do mercado de trabalho, que depende
do grau de organização política e social da nação e se apresenta como um conjunto de instituições públicas (estatais e civis) e
normas legais que visam fornecer os parâmetros mínimos de demarcação e funcionamento do mercado de trabalho, notadamente
no que diz respeito ao uso do trabalho (regulamentação das condições de contratação, demissão e da jornada de trabalho), sua
remuneração (regulamentação das políticas e reajustes salariais em geral e do salário-mínimo) e proteção ou assistência social aos
ocupados e desempregados (regulamentação dos direitos sociais e trabalhistas, da política previdenciária, das práticas de formação
e qualificação profissional, da ação sindical e da Justiça do Trabalho) (Cardoso, 2001).
174
1. caracteriza uma situação de déficit ou ausência de direitos de proteção social;
2. decorre de uma instabilidade do vínculo, do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores;
3. está associada a condições de trabalho de determinados setores da economia que criam vulnerabi-
lidade social para os trabalhadores aí inseridos4.
A heterogeneidade de vínculos, portanto, é outro dado importante que compõe esse conjunto
de transformações. As novas formas de contrato mudam radicalmente os mecanismos de ingresso
e manutenção do trabalhador, estabelecendo novas relações de trabalho, definindo também a ne-
cessidade de adquirir competências que habilitem trabalhadores e gestores como negociadores das
condições de trabalho.
Nessa conjuntura, as instituições deveriam estar preparadas para realizar negociações e preservar
a harmonização dos diferentes vínculos, função antes mediada pelos sindicatos e por outras enti-
dades da sociedade civil na direção do trabalho decente que é o conceito criado pela Organi-
zação Internacional do Trabalho (OIT) para um trabalho adequadamente remunerado, exercido
em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna, segundo os
padrões de cada sociedade.
Trazer essa discussão para o campo da Saúde é um desafio, na medida em que:
a. essa é uma área multi e interdisciplinar que compreende um largo espectro de atividades de pro-
dução e de serviços que abrangem desde a indústria de equipamentos e medicamentos até a presta-
ção de serviços médicos, em nível hospitalar, ambulatorial ou de unidades de saúde, passando pela
produção de conhecimento e informação; Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
b. o foco principal dessas atividades são pessoas e, portanto, o processo de trabalho é pautado no do SUS
contato humano e na relação entre as pessoas. COLETÂNEA
DE TEXTOS
Por outro lado, as tendências do trabalho em Saúde apontam para uma formação mais polivalente,
gerando a necessidade de revisão das atuais habilitações de nível médio, o que ao mesmo tempo causa
4
Esse último é o conceito de informalidade do trabalho adotado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Nesse caso, a
vulnerabilidade do trabalhador não é definida em termos da inexistência de proteção social ou da limitada duração do contrato de
trabalho, mas pelo fato de que esses empregos são facilmente destruídos pela falta de vigor e competitividade do setor econômico
que os gera (Nogueira, Almeida, 2004).
175
2. A gestão do trabalho no SUS
As reformas no setor Saúde na década de 1990 foram pautadas pela implantação do sistema único de
saúde com ênfase na descentralização das ações e serviços de saúde, sobretudo a municipalização. Hou-
ve uma grande expansão de serviços municipais e foram priorizados novos modelos de atenção voltados
para a atenção primária da saúde, tendo como proposta estruturante o programa de saúde da família.
A mudança do modelo de atenção exige estratégias de grande abrangência e de realização em
curto prazo. Essa expansão acelerada e em grande escala dos serviços ocasionou mudanças significa-
tivas na composição e estruturação da força de trabalho em Saúde, com concentração nas esferas
de governo estaduais e municipais. Ademais, coube a essas esferas governamentais a maior res-
ponsabilidade pela implementação das políticas sociais na nova ordem democrática advinda a partir
da nova Constituição, arcando com todo o peso financeiro, administrativo e de pessoal dos aparelhos
de segurança, educacional, de saúde, de saneamento básico e de assistência social. A possibilidade
de garantir os direitos sociais inscritos na Constituição é tarefa dos entes descentrali-
zados do Estado brasileiro.
A descentralização das ações e dos serviços sociais e de saúde tem um lado perverso, o da “des-
responsabilização” da esfera federal em relação à manutenção dessa força de trabalho respon-
sável pelas políticas sociais, fato agravado pela política fiscal e tributária que privilegia a União. Uma
evidência dessa assertiva é a indefinição adotada pela gestão federal do SUS em relação à reposição
dos servidores descentralizados (para Estados e municípios) do antigo Inamps – em 2002, aproxi-
Curso de madamente 50 mil servidores, com custo estimado de um bilhão de reais/ano – e da Funasa – 26
Desenvolvimento
Gerencial mil estimados –, porque, como se sabe, uma outra razão para a “precarização” da força de trabalho
do SUS
na Saúde está exatamente nas dificuldades encontradas pelos Estados e municípios para a reposição
COLETÂNEA
DE TEXTOS
desse importante contingente de trabalhadores em processo de aposentadoria (CONASS, 2002).
Essa questão se agrava com as restrições orçamentárias impostas pela Lei de Responsa-
O desafio da gestão do trabalho no SUS
bilidade Fiscal, que limita os gastos com pessoal, frente a necessidade de incorporação de pessoal
para atender às novas demandas trazidas pelas políticas de saúde. Para fazer frente a esses problemas
os gestores do SUS, nas três esferas, vêm lançando mão de estratégias de gestão de pessoal
diferenciadas, que incluem:
contratação temporária;
terceirização por meio de empresas ou cooperativas;
contratos por órgãos internacionais;
contratos através de serviços prestados;
bolsas de trabalho; estágios;
triangulações por meio de empresas privadas;
contratos com entidades privadas não lucrativas;
contratos de gestão com organizações sociais;
convênios com Organizações Sociais de Interesse Público – OSCIPs.
A utilização desses mecanismos tem auxiliado a gestão do SUS a dar respostas mais rápidas às
demandas por novos serviços, ou pela ampliação dos existentes, mas também tem levado a pro-
blemas de ordem legal e gerencial, gerando conflitos e impasses na implementação do SUS.
A gestão do trabalho no SUS é parte da gestão do trabalho na administração pública em geral e está
176
relacionada ao contexto político e econômico e sua repercussão no campo do trabalho. Pode ser
compreendida por três grandes eixos:
a mudança no modelo de Estado, que passa de um modelo provedor para um modelo regulador;
a reestruturação produtiva, que traz novas formas de relação de trabalho; e
a incorporação tecnológica que introduz novas práticas e novos processos de trabalho.
ciando formas de absorção e manutenção dos trabalhadores. Há ainda o debate sobre a legitimidade
profissionais de saúde no Brasil, tanto geográfica (regional) quanto qualitativa, revelada a partir do
processo de avaliação em curso no país desde a década passada.
No cenário acima descrito, dentre os problemas mais comuns que vêm impactando e dificultan-
do a gestão do trabalho no Sistema Único de Saúde destacam-se velhos e novos problemas:
a pouca flexibilidade do Regime Jurídico Único para a gestão do trabalho;
a indefinição quanto à regulamentação do Regime Celetista para o setor público;
trabalho desregulado e desprotegido;
regulação corporativa das profissões de saúde;
formação inadequada dos profissionais de saúde para desempenho nos serviços públicos;
inexistência de um processo institucionalizado de educação permanente para os trabalhadores do SUS;
a gestão do trabalho não ocupa lugar destacado na agenda política de pactuação entre os gestores;
baixa institucionalização do processo de planejamento de recursos humanos;
baixa capacidade gerencial para o monitoramento e a avaliação do sistema de recursos humanos e
sobre os gastos com pessoal;
baixa eficácia, qualidade e efetividade dos serviços;
a atuação das auditorias por Órgãos de Controle Internos e Externos, com questionamentos às
178
múltiplas interpretações da lei que se expressam em contratos efetuados com problemas de múl-
tiplas naturezas;
Termos de Ajuste de Conduta (TACs) realizados com o foco na questão trabalhista, como deter-
minante, mas nem sempre exequível pelos gestores, sem constrangimentos de outras despesas
também necessárias ao bom funcionamento do SUS;
insatisfação dos trabalhadores com mobilização de suas representações.
179
26,5% de elementar. Foram identificadas, ainda, particularidades características de algumas regiões
tais como a forte predominância de contratos de nível médio nos Estados da Região Norte.
No campo da identificação dos problemas, enquanto para os Secretários de Estado a maio-
ria dos problemas situava-se no campo de gestão do trabalho – os dois principais problemas aponta-
dos pelos Gestores foram a necessidade de contratação de pessoal/quantidade defasada e as diversas
modalidades de contratos temporários, respectivamente –, para os dirigentes de RH o maior
problema foi apontado nas áreas de RH das SES, sua estrutura e hierarquia, com maior ou menor
proximidade do eixo decisório, uma vez que em 14 SES essas áreas eram subordinadas à gestão ad-
ministrativa, financeira e patrimonial, ou seja, não participavam da equipe dirigente, o que pode
apontar para dificuldades na priorização das ações da área.
Na gestão do trabalho, muito embora todos os Estados tivessem planos de cargos, apenas 10 Es-
tados relataram a existência de Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS) específico da área de
Saúde e, desses, somente 5 eram posteriores ao ano 2000, o que evidencia a fragilidade da gestão das
carreiras nas SES. Foram identificadas também a baixa capacidade de planejamento, um espaço res-
trito de articulação política, limitada autonomia gerencial e um sistema de informação insuficiente
(falta de acesso à informação e à tecnologia da informação em 10 das 27 estruturas de RH nos Estados
e um sistema precário na maioria das que possuíam).
Finalmente, ficou evidenciado que as SES estão desempenhando um papel importante no desenvol-
vimento de atividades de formação, associando iniciativas de qualificação técnica com aquelas
Curso de voltadas para a integração ensino/serviço, apesar de que as iniciativas nessa área carecem de uma
Desenvolvimento
Gerencial proposta estratégica que visualize as necessidades estruturais do SUS.
do SUS
Outra conclusão importante foi que as SES que apresentam os maiores gastos com saúde foram
COLETÂNEA
DE TEXTOS justamente aquelas que têm contingente expressivo de trabalhadores de saúde, com remuneração
média significativa.
O desafio da gestão do trabalho no SUS
A situação nos municípios é ainda mais difícil. Publicação do Conselho Nacional de Secre-
tários Municipais de Saúde (CONASEMS, 2006)5 analisa a evolução da situação do emprego no
Brasil, com base nos dados da pesquisa Assistência Médico Sanitária (AMS/IBGE), de 2003, e revela
a profunda transformação ocorrida no país nas duas últimas décadas: de 1980 até 2003; o número
de empregos na área da Saúde nos municípios saltou de 43.086 (16,2% do total de empregos públi-
cos) para 791.397 (66,3%) enquanto o número de empregos na área Federal diminuiu de 113.297
(42,6%) para 96.064 (8,1%), aqui incluídos os servidores do ex-Inamps e da Funasa transferidos
para os Estados e municípios. Apesar de os empregos nos Estados terem aumentado 200% nesse
período, o seu peso relativo no conjunto do emprego público diminuiu, de 41,2% para 25,6%, em
decorrência do explosivo aumento na esfera municipal (1.740%). Cada novo programa implantado
no sistema público de saúde ou cada nova expansão do programa de saúde da família, por exemplo,
impacta fortemente esses números.
Uma das consequências desse fenômeno é o aumento de vínculos precários de traba-
lho, como mostra o estudo “Monitoramento da Implementação e do Funcionamento das Equipes
de Saúde da Família”, realizado em 2001-2002, pelo Departamento de Atenção Básica (DAB) do
5
Conasems, 2006.
180
Ministério da Saúde:6 20% a 30% de todos os trabalhadores inseridos nessa estratégia apresentaram
vínculos precários de trabalho, contribuindo para a alta rotatividade e a insatisfação profissional.
O caso dos agentes comunitários de saúde (ACS) é ainda mais complexo, pois a maioria dos 190
mil trabalhadores em atividade no país apresenta inserção precária no sistema e está desprotegida em
relação a legislação trabalhista. Mesmo com todas as ações judiciais por iniciativa do Ministério Público
do Trabalho e todas as alterações da legislação em 2005-2006, o problema continua quase inalterado.
Em estudo a respeito de Recursos Humanos em Municípios com população superior a
100 mil habitantes, realizado sob coordenação do Instituto de Medicina Social/UERJ,7 por inicia-
tiva da Rede Observatório de Recursos Humanos, detectou-se que:
apenas 19 (dezenove) gestores de recursos humanos, entre os 206 municípios que responderam à
pesquisa, detêm qualificação formal por especializações relacionadas ao exercício de suas funções;
esses gestores possuem baixa ou nenhuma autonomia com relação a questões como aquelas que
envolvem a utilização de recursos orçamentários ou contratação de pessoal;
o planejamento das ações não está plenamente incorporado à prática dos dirigentes da área;
a folha de pagamentos constitui-se como principal fonte de dados, não sendo utilizados outros
sistemas de informações de recursos humanos como ferramenta de planejamento e gestão.
O referido estudo também destaca que a maior parte dos dirigentes de recursos humanos pertence
aos quadros próprios das Secretarias Municipais de Saúde e apresentam tendência de baixa reno-
vação no cargo, com tempo médio de permanência de 48 meses.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
4. Gestão do trabalho no SUS como função estratégica e integrada do SUS
COLETÂNEA
Se hoje há um consenso no âmbito do SUS é o de que a questão do trabalho e da formação e qualifi- DE TEXTOS
cação dos trabalhadores de saúde é um desafio do tamanho do SUS.
181
no, com governo e legislação própria, exige soluções integradas; não se pode pensar soluções
isoladas, de um município ou Estado, ou mesmo do conjunto dos servidores federais, por exemplo. A
gestão do trabalho no SUS além de função estratégica é uma função integrada: só há alternativas reais
de mudanças se se tratar de projetos solidários, entre gestores e entre gestores e trabalhadores.
O Pacto pela Saúde, celebrado de modo tripartite pelos três gestores do SUS em 2006, configu-
ra um ganho importante ao incorporar a questão da gestão do trabalho na agenda de
pactuação, mas não se deve ter ilusões quanto ao alcance da iniciativa, insuficiente para enfrentar
os grandes desafios hoje encontrados na gestão do trabalho no SUS.
A seguir, para exposição mais clara do tema, agrupou-se as principais ações da gestão
do trabalho no SUS em três grandes conjuntos de atividades: a gestão das relações de tra-
balho, o planejamento e o gerenciamento e a gestão da educação do trabalhador em Saúde.
para gestores como para trabalhadores, já que não deve obedecer apenas a uma disputa política, mas
ser orientada pela busca da equidade, da resolutividade e da qualidade da atenção - a competência
para discutir e tomar decisões com base em informações e avaliar resultados de ações e de políticas.
Os vínculos precários também são alguns dos problemas mais relevantes a serem debatidos e enfren-
tados na gestão integrada das relações de trabalho. Apesar das diversas iniciativas no âmbito das três
esferas de gestão, ainda não se observam grandes alterações no quadro descrito. O Ministério da
Saúde criou o Comitê Nacional de Desprecarização do Trabalho, com participação de vários atores,
gestores e trabalhadores. O comitê definiu a condução do processo por etapas e, como prioridade
inicial procurar soluções para a situação dos agentes comunitários.
O CONASS (2004b) realizou uma oficina de trabalho em 2004 quando os gestores estaduais
definiram vários consensos para a gestão do trabalho, entre eles propor a regulamentação do
Programa Saúde da Família (PSF) por meio de um projeto de lei ao Congresso Nacional
que garanta o repasse dos incentivos aos municípios de modo permanente a fim de diminuir a inse-
gurança dos gestores municipais no que se refere à garantia de continuidade no pagamento dos incen-
tivos e com isso estimular soluções duradouras para a incorporação dos trabalhadores do programa.
Nessa oportunidade também foi consenso a adoção de medidas integradas e solidárias para
o enfrentamento das relações precárias do trabalho na gestão descentralizada do SUS, como:
182
apoiar a regularização da situação de precariedade dos vínculos nos Estados e municípios e em
relação à situação das equipes de saúde da família;
apoiar as secretarias municipais de saúde na realização de seus concursos, seja pela realização de
concursos de bases locais de acordo com as diferentes realidades dos Estados ou, ainda, aplicando
as provas para os municípios menores que assim quiserem.
A luta pela regulamentação do dispositivo da excepcionalidade, proposta pela Lei de
Responsabilidade Fiscal para a Saúde e a Educação, no cômputo dos limites estipulados pela
Lei, pode ser um outro item da agenda da política da gestão do trabalho no SUS.
O Conasems adotou medidas na mesma direção (CONASEMS, 2006), ao definir critérios
rígidos para seleção, contratação, monitoramento, prestação de contas e avaliação dos resultados
contemplados no contrato de gestão quando do estabelecimento de parcerias para o provimento da
força de trabalho para o PSF. Apesar da boa vontade demonstrada pelas propostas e iniciativas dos
gestores das 3 esferas de gestão do SUS, o problema dos vínculos precários permanece como um
desafio a ser vencido.
183
se limita à área de Gestão de Informação, como os estudos citados mostraram: a área de Gestão
de Recursos Humanos está situada no terceiro escalão da estrutura organizacional,
subordinando-se à área administrativa e financeira e, na maioria dos casos, não passa de um pequeno
e acanhado DP (departamento de pessoal).
Nas secretarias municipais, mesmo esse setor acanhado existe apenas nos municípios maiores e
nas capitais, enquanto na imensa maioria dos demais municípios a gestão do trabalho é indiferencia-
da, comum ao conjunto dos servidores municipais.
Não há registro da existência de um lócus institucional para a formulação das políticas de re-
cursos humanos na imensa maioria das secretarias estaduais e municipais, assim como se observa
a ausência de um processo sistemático de planejamento e programação da área.
A área de Gestão do Trabalho é separada da área de Educação assim como as duas são pou-
co articuladas com as áreas programáticas e finalísticas.
Enfim, há um descompasso imenso entre a importância do tema – as despesas com pes-
soal são a maior parte dos gastos em Saúde – e a sua pouca prioridade na agenda da política
de saúde. São ínfimos os investimentos na área da Gestão do Trabalho e na qualificação do pessoal
encarregado dessas atividades nas três esferas de gestão do SUS.
Do ponto de vista técnico, a institucionalização do planejamento de recursos humanos no
cenário atual, por parte dos órgãos gestores do SUS, no que tange à sua força de trabalho, pressupõe
a capacitação de pessoal nessa área, de forma a garantir o aporte de conhecimentos específicos de
Curso de
Desenvolvimento planejamento e gestão da força de trabalho inerentes ao desenvolvimento dessa proposta. A insti-
Gerencial
do SUS tucionalização do planejamento pressupõe sistema gerencial de informação que permita conhecer
COLETÂNEA a composição, a estrutura, o perfil, o gasto e as necessidades futuras com a força de trabalho, por
DE TEXTOS
unidade e por esfera de governo. Além disso, é necessário dotar o setor de gestão do trabalho nos
órgãos gestores do SUS da necessária infraestrutura e de capacidade institucional.
O desafio da gestão do trabalho no SUS
Algumas diretrizes com essa finalidade foram formuladas em 2004 pelos secretários
estaduais:
reforma administrativa para colocar os responsáveis pelo setor compondo a equipe de condução
estratégica da instituição;
a formulação de plano de recursos humanos articulado com o Plano Plurianual de Saúde, incluindo
o diagnóstico de necessidades;
o aumento do orçamento próprio para a área de Gestão e Educação de RH; o aumento do quadro de
servidores e especialistas do setor e sua qualificação por meio de um processo de educação permanente;
a integração da área de gestão de pessoas com área de desenvolvimento e formação;
a modernização administrativa da gerência de RH, incluindo a sua completa informatização; e
um programa de cooperação permanente para a gestão do trabalho entre as instâncias gestoras
(CONASS, 2004b ).
Um sistema estratégico e integrado de planejamento e gerenciamento do trabalho em um sistema
público universal implica ademais pensar o conjunto dos trabalhadores, públicos – de todas as
esferas de governo naquele âmbito de gestão – e privados, dos serviços contratados.
A definição das funções típicas de Estado – quais atividades terceirizar, quais as modali-
184
dades de incorporação de pessoal a serem adotadas – devem orientar a relação do Estado com o
mercado de trabalho.
É evidente que operação de tamanha envergadura somente terá possibilidade de ser viabilizada
e construída mediante a prioridade política absoluta do tema, a negociação permanente com os
trabalhadores da Saúde e o trabalho integrado e intensivo de cooperação entre União, Estados
e municípios.
O lançamento, pelo Ministério da Saúde, no segundo semestre de 2006, do Programa de Qualifi-
cação e Estruturação da Gestão do Trabalho no SUS, o Progesus, que estabelece a cooperação entre
os gestores do SUS – em um primeiro momento, apenas com os Estados e os municípios maiores –
nas áreas de infraestrutura (equipamentos de informática), implantação de sistemas de informação
e qualificação de pessoal para a gestão do trabalho, é um primeiro passo importante, mesmo sendo
ínfimo o montante de recursos destinados inicialmente para a iniciativa.
Finalmente, outro desafio para a gestão do trabalho em Saúde e o desenvolvimento gerencial dos
serviços é a definição das carreiras próprias de Estado e dos critérios de:
mobilidade;
ascensão e desenvolvimento na carreira;
remunerações e incentivos;
gestão do desempenho, e
gerenciamento do impacto orçamentário-financeiro do plano de cargos, carreira e salários no Curso de
orçamento da Saúde. Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
Um modelo de gestão integrada prevê um processo de gestão e desenvolvimento institucional
COLETÂNEA
voltado para resultados institucionais, organizacionais e individuais e, portanto, abrigando a possi- DE TEXTOS
bilidade de institucionalizar mecanismos de remuneração variável, gratificações por desempenho,
localização e qualificação.
185
de pessoal da Saúde com escala para propor um plano exclusivo do SUS. Além disso, muitos enfren-
tam dificuldades para a incorporação e a permanência de profissionais e especialistas.
Mantida a situação atual, é remota a possibilidade de implementar planos de carreira
do SUS, no conjunto do país, sobretudo nos pequenos municípios, a menos que haja o cofinancia-
mento por parte da União, ou o financiamento indireto, por meio da criação de uma Carreira Nacio-
nal com Base Local para o SUS, com o objetivo de responder a uma fração importante de municípios
que, hoje, enfrentam dificuldades severas na inserção e fixação de profissionais.
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DE TEXTOS CONASS. Estudo sobre a reposição dos servidores federais descentralizados no SUS. Brasília: CONASS;
2002.
O desafio da gestão do trabalho no SUS
188
Curso de
A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 29, Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
DE 13 DE SETEMBRO DE 20001 COLETÂNEA
DE TEXTOS
1. Introdução
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) elaborou um Manifesto com 14 itens
que foi entregue aos candidatos à Presidência da República que expressa as propostas prioritárias
para o fortalecimento do SUS. Uma delas refere-se a necessidade de regulamentação da Emenda
Constitucional n. 29 (EC 29).
Apesar de enormes resistências, fundadas no raciocínio de poderosas correntes econômicas contrá-
rias à vinculação de recursos orçamentários, a Emenda Constitucional n. 29 (EC n. 29) foi aprovada
em 2000 e ainda não foi regulamentada. A falta de definição precisa sobre o que são ações e serviços
de saúde tem levado à introdução nos orçamentos públicos uma série de ações e serviços que são
questionáveis.
O resultado são menos recursos para o financiamento do SUS. Desse modo, a luta política por mais
recursos públicos para a saúde deve centrar-se, em curto prazo, na regulamentação, pelo Congresso
Nacional, da Emenda Constitucional n. 29. Tal regulamentação será fundamental para orientar os
respectivos Tribunais de Contas no processo de fiscalização do seu cumprimento.
No livro SUS: avanços e desafios, lançado em 13 de dezembro de 2006, o CONASS analisa os avanços
do sistema e aponta seis desafios para a continuação da construção do SUS, sendo que no item refe-
rente ao financiamento e a regulamentação da Emenda Constitucional n. 29 afirma que:
...a luta política por mais recursos públicos para a Saúde deve centrar-se, em curto prazo, na regu-
lamentação, pelo Congresso Nacional, da EC n. 29.
... Essa regulamentação só será aprovada se for feito um amplo movimento de mobilização social
pelo SUS que chegue ao interior do Congresso Nacional.
1
Publicado originalmente em: BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A Emenda Constitucional n. 29, de 13 de
setembro de 2000. In: BRASIL. CONASS. O financiamento da saúde. Brasília: CONASS, 2007. p. 60-75. (Coleção Progestores –
Para Entender a Gestão do SUS, 3)
189
instrumentos de acompanhamento, fiscalização e controle, a Portaria GM/MS n. 2.047/2002 e
considerações do CONASS a seu respeito, o acompanhamento da EC n. 29, sua regulamentação, e o
Sistema de Informação de Orçamentos Públicos em Saúde (Siops).
2
Altera os artigos 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde.
3
No caso dos estados e do Distrito Federal, a vinculação incide sobre o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o
art. 155 e dos recursos de que tratam os artigos 157 e 159, Inciso I a e II da CF, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos
respectivos municípios. No caso dos municípios e do Distrito Federal, incide sobre o produto da arrecadação de impostos a que se
refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os artigos 158 e 159, inciso I, b e parágrafo 3º da CF.
190
nanceiro de 1999 acrescido de, no mínimo, 5%. Do ano 2001 ao ano 2004, o valor mínimo será
aquele apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do PIB. No caso dos estados e
do Distrito Federal, os recursos mínimos serão equivalentes a 12% da arrecadação de impostos
e das transferências constitucionais, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos municípios.
No caso dos municípios, os recursos mínimos corresponderão a 15% da arrecadação de impostos
e dos recursos de transferências constitucionais;
i. estabelece, para o caso dos estados, Distrito Federal e municípios que aplicam menos que os per-
centuais previstos, a obrigação de elevarem progressivamente suas aplicações até 2004, na razão
de pelo menos um quinto por ano;
j. define que a partir de 2000 as aplicações de estados, Distrito Federal e municípios serão de pelo
menos 7%;
k. obriga a aplicação pelos municípios de no mínimo 15% dos recursos federais vinculados ao setor,
em ações e serviços básicos de saúde. A lei complementar disporá sobre o assunto, incluindo o
rateio desses recursos segundo o critério populacional;
l. determina que os recursos das três esferas de governo sejam aplicados por meio dos Fundos de
Saúde – que serão acompanhados e fiscalizados pelos Conselhos de Saúde;
m.mantém as regras do art. 77 (ADCT), a partir de 2005, caso não seja criada a lei complementar
referida no art. 198, parágrafo 3º.
Os primeiros efeitos positivos da EC n. 29 logo se fizeram sentir, e em 2001 o gasto público em saúde Curso de
já apresentou um crescimento real de 10% em relação ao ano anterior e de 35% entre 2000 e 2004. Desenvolvimento
Gerencial
Os efeitos só não foram maiores por duas razões básicas: do SUS
Para os estados, a base de cálculo é a sua receita própria, calculada da seguinte forma:
Curso de
Desenvolvimento (+) Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF)
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
(+) Outras receitas correntes:
Receita da Dívida Ativa Tributária de Impostos, Multas, Juros de Mora e
A Emenda Constitucional N. 29, de 13 de setembro de 2000
Correção Monetária
192
(+) Receitas de Transferências da União
Quota-Parte do FPM
Quota-Parte do ITR
Quota-Parte da Lei Complementar n. 87/96 (Lei Kandir)
Segundo a EC n. 29, no caso da União, os recursos mínimos a serem aplicados em ações e serviços
193
3.3. Definição do que são ações e serviços públicos de saúde
Para efeito da aplicação da EC n. 29, considera-se despesas com ações e serviços públicos de saúde
aquelas com pessoal ativo e outras despesas de custeio e de capital, financiadas pelas três esferas
de governo, conforme o disposto nos artigos 196 e 198, § 2º, da Constituição Federal e na Lei n.
8.080/90, relacionadas a programas finalísticos e de apoio (inclusive administrativos), que atendam,
simultaneamente, aos seguintes critérios:
a) sejam destinadas às ações e aos serviços de acesso universal, igualitário e gratuito;
b) estejam em conformidade com objetivos e metas explicitados nos Planos de Saúde de cada ente
federativo;
c) sejam de responsabilidade específica do setor de saúde, não se confundindo com despesas relacio-
nadas a outras políticas públicas que atuam sobre determinantes sociais e econômicos, ainda que com
reflexos sobre as condições de saúde.
Além de atender a esses critérios, as despesas com ações e serviços de saúde realizadas pelos estados,
Distrito Federal e municípios deverão ser financiadas com recursos alocados por meio dos respecti-
vos Fundos de Saúde, nos termos do Art. 77, § 3º do ADCT (EC n. 29).
Atendidos esses critérios, para efeito da aplicação dessa Emenda, são consideradas despesas com
ações e serviços públicos de saúde as relativas à promoção, proteção, recuperação e reabilitação da
saúde, incluindo:
Curso de Vigilância Epidemiológica e controle de doenças.
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS Vigilância Sanitária.
Saúde do trabalhador.
Assistência à saúde em todos os níveis de complexidade.
Assistência farmacêutica.
Atenção à saúde dos povos indígenas.
Capacitação de recursos humanos do SUS.
Pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico em saúde, promovidos por entidades do SUS.
Produção, aquisição e distribuição de insumos setoriais específicos, tais como medicamentos,
imunobiológicos, sangue e hemoderivados e equipamentos.
Saneamento básico e do meio ambiente, desde que associado diretamente ao controle de vetores,
a ações próprias de pequenas comunidades ou em nível domiciliar, ou aos Distritos Sanitários Es-
peciais Indígenas (DSEI), e outras ações de saneamento a critério do Conselho Nacional de Saúde.
Serviços de saúde penitenciários, desde que firmado Termo de Cooperação específico entre os
órgãos de saúde e os órgãos responsáveis pela prestação dos referidos serviços.
Atenção especial aos portadores de deficiência.
Ações administrativas realizadas pelos órgãos de saúde no âmbito do SUS e indispensáveis para a
execução das ações indicadas nos itens anteriores.
194
Nesse mesmo contexto legal, para efeito da aplicação da EC n. 29, a Resolução do CNS não considera
como despesas com ações e serviços públicos de saúde as relativas a:
a. pagamento de aposentadorias e pensões;
b. assistência à saúde que não atenda ao princípio da universalidade (clientela fechada);
c. merenda escolar;
d. saneamento básico, mesmo o previsto no primeiro item do tópico anterior, realizado com recur-
sos provenientes de taxas ou tarifas e do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, ainda que
excepcionalmente executado pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria de Saúde ou por entes a
ela vinculados;
e. limpeza urbana e remoção de resíduos sólidos (lixo);
f. preservação e correção do meio ambiente, realizadas pelos órgãos de meio ambiente dos entes
federativos e por entidades não governamentais;
g. ações de assistência social não vinculadas diretamente a execução das ações e serviços de saúde e
não promovidas pelos órgãos de saúde do SUS;
h. ações e serviços públicos de saúde custeadas com recursos que não os especificados nas bases de
cálculos das receitas próprias de estados e municípios.
Fonte: SIAFI/SIDOR
197
1. Segundo a definição das LDOs: Gastos Totais do Ministério da Saúde, excetuando-se as despesas com Inativos
e Pensionistas, Juros e Amortizações de Dívida, bem como as despesas financiadas pelo Fundo de Combate e
Erradicação da Pobreza.
2. Além das exclusões previstas na LDO, excluiu-se também nesta coluna as despesas com programas de transferência
direta de renda.
3. Sob o enfoque de “Base Fixa”, o percentual de variação do PIB nominal é aplicado sobre o valor mínimo de recursos
calculado para o ano anterior.
4. Sob o enfoque de “Base Móvel”, o percentual de variação do PIB nominal é aplicado sobre o volume de recursos ex
ecutado no ano anterior, exceto quando este for inferior ao piso mínimo calculado .
5. Dados da Execução para 2006 correspondem à Dotação Inicial. Variação Nominal do PIB para 2005 estimada
preliminarmente em 8,9%.
Quanto aos governos estaduais, os questionamentos existentes também são de duas ordens de problemas:
Em relação às receitas, exclusão de algumas receitas de impostos, bem como, o Fundef (Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) e outros
mais;
Em relação às despesas, idêntica a das outras esferas, a inclusão de itens de despesas em ações e
serviços de saúde que não seriam consideradas para tal.
Para que essas controvérsias acabem, se faz necessária a regulamentação da Emenda Constitucional
n. 29 que desde 2003, tem projeto de lei tramitando no Congresso Nacional propondo sua regula-
mentação
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
6. O Sistema de Informação de Orçamentos Públicos em Saúde (Siops)
COLETÂNEA
O Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops) é um banco de dados cujo
DE TEXTOS objetivo é coletar informações sobre as receitas totais e despesas com ações e serviços públicos de
saúde das três esferas de governo.
A Emenda Constitucional N. 29, de 13 de setembro de 2000
Este artigo faz parte de um estudo mais amplo que analisou a incorporação das demandas populares
às políticas municipais de saúde, e identificou elementos e estratégias para a qualificação da gestão
participativa no Sistema Único de Saúde (SUS) em municípios de Mato Grosso. Sua realização deu-se
no contexto das práticas e experiências dos gestores, conselheiros, profissionais de saúde e vereado-
res e do compromisso das instituições envolvidas na luta pelo direito à saúde no Brasil.
O campo de análise da pesquisa compreendeu as conferências municipais de saúde (CMS) realizadas
em 2003, etapa municipal da 12ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), o contexto político-insti-
tucional das secretarias municipais de saúde e seus processos de gestão e planejamento, o Conselho
Municipal de Saúde, o Legislativo e as relações dessas instituições entre si e com os atores sociais. Na
medida que os conselhos e as conferências são espaços públicos com legitimidade para influenciar nas
políticas de saúde, o principal objetivo foi analisar se as demandas e as diretrizes aprovadas nas confe-
rências municipais de saúde estavam sendo priorizadas pelos próprios conselhos e pela equipe gesto-
ra, responsáveis pelo processo de formulação e planejamento, implementação e avaliação da política
de saúde. Partiu-se do pressuposto de que a CMS devia ser o espaço institucional para a aprovação
da agenda de prioridades, os planos deviam incorporar as prioridades aprovadas nas conferências e os
relatórios de gestão deveriam referir-se às mesmas prioridades.
1
Este artigo, adaptado para a presente coletânea, foi publicado originalmente em: MÜLLER NETO, Júlio Strubing et al.
Conferências de saúde e formulação de políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005. Saúde em Debate, Rio de Janeiro,
v. 30, n. 73/74, p. 248-274, maio/dez. 2006.
2
Médico sanitarista e psiquiatra; professor do ISC/UFMT. Núcleo de Desenvolvimento em Saúde; Instituto de Saúde Coletiva;
Universidade Federal de Mato Grosso. jmuller@terra.com.br
3
Enfermeira; mestre em Saúde Pública; assessora técnica NDS/ISC/UFMT. fticianel@brturbo.com.br
4
Enfermeira; especialista em Saúde Pública; assessora técnica do Grupo de Saúde Popular (GSP). marizeza@brturbo.com.br
5
Assistente social; especialista em Saúde Pública; assessora técnica GSP. ilvafelix@hotmail.com
6
Médica; mestre em Saúde Ambiental; assessora técnica NDS/ISC/UFMT. lytav@terra.com.br
7
Apoio técnico administrativo NDS/ISC/UFMT. alinepmotta@gmail.com
199
O estudo foi realizado em 16 municípios do estado de Mato Grosso, das diferentes regiões de saúde e
portes populacionais, incluindo a capital, Cuiabá, oito municípios polos regionais de saúde e sete mu-
nicípios não polos regionais. Foi desenvolvido pelo Grupo de Saúde Popular (GSP)8, em parceria com
o Núcleo de Desenvolvimento da Saúde (NDS) do Instituto de Saúde Coletiva/UFMT e o Conselho de
Secretários Municipais de Saúde de Mato Grosso (COSEMS/MT), com apoio financeiro do Ministério
da Saúde, por meio da Secretaria de Gestão Participativa. Procura-se, neste artigo, apresentar aspectos
metodológicos e alguns dos resultados do estudo, com foco nas conferências municipais de saúde: o pro-
cesso de organização, a representatividade e as características das deliberações aprovadas nas mesmas; a
análise comparativa dessas demandas com as ações incluídas no plano municipal de saúde e aquelas ações
implementadas, conforme relatório de gestão do ano seguinte à realização das mesmas.
As principais questões que nortearam o desenho da pesquisa foram: 1) os atores/sujeitos sociais re-
presentados nas conferências estão conseguindo ou não influenciar a construção da agenda da política
Júlio Strubing Müller Neto et al.
A construção metodológica
Quanto ao desenho metodológico, optou-se pelo estudo de casos múltiplos, utilizando material e
método da pesquisa quantitativa e qualitativa, cujas estratégias desenvolvidas contemplaram:
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
Constituição do grupo de pesquisa do nível central, seleção e treinamento dos pesquisadores de
do SUS campo, sendo alunos do I e II Cursos de Especialização em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde
COLETÂNEA realizados pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFMT) e COSEMS, como estratégia de forma-
DE TEXTOS
ção da rede de cooperação e educação permanente do SUS no estado;
Pesquisa exploratória no campo teórico metodológico para a construção do desenho do estudo,
Conferências de Saúde e Formulação de
Políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005
200
Sistematização dos dados, análise e produção dos relatórios de cada município;
Análise dos dados de acordo com os eixos: 1)Determinantes socioeconômicos e políticos; 2) Ca-
racterização institucional; 3) Processo decisório; 4) Percepções e valores dos atores institucionais;
5) Conteúdo das agendas. Cada eixo compreendeu diversas variáveis e seus respectivos indicadores
e a análise foi feita no âmbito das três instituições objetos do estudo: a Secretaria e o Conselho de
Saúde e o Legislativo Municipal.
As deliberações aprovadas constantes dos relatórios finais das conferências municipais e as ações incluí-
das nos planos e nos relatórios de gestão foram classificadas de acordo com os termos de referência dos
dez eixos temáticos da 12ª CNS (BRASIL, 2004), independente da classificação dada no relatório da
conferência municipal e do recorte do plano. Foram elaborados protocolos de consenso para a classifi-
cação das deliberações e das ações, assim como para a análise dos planos de saúde e relatórios de gestão.
O tema da 12ª CNS foi “Saúde: Um direito de todos e dever do Estado – A Saúde que temos, o SUS
201
Referencial teórico e definições legais
A descentralização e a democratização: princípios que materializam a participação
popular no SUS
A gestão democrática no âmbito do SUS é uma luta da sociedade brasileira, concebida por meio do
movimento da Reforma Sanitária, como processo social e político permanente, movimento que in-
fluenciou a organização da 8ª CNS, e a formulação do anteprojeto do setor saúde, aprovado no texto
da Constituição de 1988.
A formulação do SUS como política de Estado reafirmou a saúde como direito e a necessidade de
fortalecer o processo de descentralização, já iniciado antes, para garantir a equidade e a universali-
dade do acesso. A Constituição avança também na definição das competências da gestão dos sistemas
de saúde das três esferas de governo, ficando o município como principal executor das ações e dos
Júlio Strubing Müller Neto et al.
gados presentes nas conferências de saúde também cresceu: dos mil delegados presentes na 8ª CNS,
subiu para quatro mil delegados na 12ª CNS (ESCOREL; BLOCH, 2005).
Estes dados revelam que a existência dos conselhos de saúde e a mobilização em torno das conferên-
cias colocaram no cenário numerosos atores sociais, que contribuíram para a formação de um tecido
social de reflexão, negociação e de formação de opinião. Espaços políticos de democracia direta e de
manifestação de interesses divergentes e conflitos (CÔRTES, 2006).
202
se articulam diferentes atores sociais, criando redes e um novo tipo de associativismo. São diferentes
tipos de conselhos; redes locais, nacionais ou internacionais; fóruns temáticos; assembleias organiza-
das pela sociedade civil. O termo ‘participação popular’ tem sido usado em contraposição a outras
expressões de participação social, como forma de participação que enfatiza a expressão política de
grupos representativos da sociedade civil junto a espaços de definição de políticas públicas de cunho
social (ACIOLI, 2005). Acioli enfatiza, a partir deste conceito, a relação que se estabelece entre par-
ticipação popular e disputa por espaços de poder, incluindo a disputa por controle das verbas públicas
e sua importância na construção do processo democrático.
Na mesma linha, Santos Junior, Azevedo e Ribeiro (2004) chamam de ‘governança democrática’
os padrões de interação entre as instituições governamentais, agentes do mercado e atores sociais
que realizam a coordenação e, simultaneamente, promovem ações de inclusão social e asseguram a
participação social na formulação de políticas e nos processos decisórios. Tal padrão entre governo
Côrtes (2006) analisa diferentes concepções na literatura em relação à questão do impacto de fóruns
participativos sobre gestão e implementação de políticas públicas, principalmente no Brasil, relação
entre participação e governança, na articulação entre gestores e burocracia governamentais e os
interesses dos usuários, trabalhadores. Alguns autores são céticos em relação às possibilidades de os
fóruns participativos contribuírem para a democratização da gestão pública e o aprimoramento de
políticas. Outros respondem a esta questão de forma esperançosa.
No campo da saúde, Labra (2005, p. 379) destaca que os conselhos de saúde constituem uma “inova-
ção política, institucional e cultural da maior relevância para o avanço da democracia e uma singula-
ridade no contexto latino-americano”. (LABRA, 2005, p. 379)
203
Carvalho (1995), em trabalho pioneiro, conclui que os conselhos emergentes assumiram, ao lado de
atribuições de planejamento e controle das políticas de saúde, um papel de proteção dos direitos e
aperfeiçoamento de políticas sociais universalistas, com forte indução legal e administrativa origina-
da na esfera federal.
Entretanto, como assinala Viana (1998), os Conselhos têm seu funcionamento limitado e condiciona-
do pela realidade concreta das instituições e da cultura política dos municípios brasileiros, de modo
que a característica da gestão local pode interferir na dinâmica do funcionamento do Conselho. A
gestão centralizada não favorece a dinâmica autônoma dos conselhos, que na maioria das vezes passa
a existir como instância burocrática. O impacto do poder de direcionamento do executivo municipal
pode ser minorado pelas formas de organização e grau de desenvolvimento das estruturas adminis-
trativas das Secretarias de Saúde Municipais. Quanto mais autonomia administrativa e financeira,
gestão e organização descentralizada dos serviços tiverem as Secretarias Municipais, maior é a in-
Júlio Strubing Müller Neto et al.
fluência dos conselhos existentes na política local de saúde e novas modalidades de participação de
usuários e profissionais de saúde podem surgir, afirma a autora, para quem o conselho é um espelho
da política local e da representação dos interesses políticos.
Apesar do reconhecimento dos aspectos positivos e inovadores da participação em instâncias de
decisão do sistema de saúde, é preciso ter claras as possibilidades concretas de participação dos usu-
ários no controle dos serviços de saúde. A participação dos usuários constitui numa tarefa complexa
(PINHEIRO; DAL POZ, 1998). Para eles, essa complexidade é dada, primeiramente, pela responsa-
bilidade do conselho na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde; se-
Curso de
Desenvolvimento gundo, pela diversidade de temas, problemas e conflitos relacionados à organização do sistema e dos
Gerencial
do SUS serviços; terceiro, pela diversidade dos atores e interesses envolvidos na composição dos conselhos.
COLETÂNEA Outros mecanismos formais de controle social foram incorporados ao SUS na defesa do direito
DE TEXTOS
à saúde, tais como, ouvidorias e disque-denúncia, criando novas formas de expressão e de defesa
dos interesses dos indivíduos, grupos e comunidade. O voto sufragado na escolha dos governan-
Conferências de Saúde e Formulação de
Políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005
tes (executivos e legislativos), plebiscito, projeto de lei de iniciativa popular, Ministério Público,
órgãos de defesa do consumidor, mobilização popular, e a mídia em geral são outras formas de
controle social (MATTOS, 2005).
Decorridos 17 anos de implantação do SUS, os conselhos de saúde resistem, acumulam cultura de
gestão e democracia e são sujeitos políticos na política local. De acordo com Costa e Barros (2000),
a realização de seus fins pressupõe a existência de sujeitos políticos e sociais dotados de representati-
vidade e de legitimidade, pois a ação individual ainda não é suficiente para a ação política. Na opinião
de Barros (1994), o reconhecimento da representação confere legitimidade e poder. A representa-
ção só pode exercitar o poder que lhe é facultado. Para Dallari (1994), a legitimidade se manifesta
na permeabilidade que o Conselho adota às questões que são colocadas pelos diversos segmentos
sociais representados, em especial, os usuários dos serviços de saúde. Apesar da íntima relação com
o conceito de participação, as questões de legitimidade e representatividade política dos conselhos
e de seus membros, participantes do processo do controle social, têm sido pouco aprofundadas nas
análises teóricas e nos estudos empíricos. A representação pressupõe um conjunto de direitos políti-
cos (liberdade de expressão, de associação etc.), que permite a formação e manifestação da vontade
política dos representados, e constitui um fenômeno complexo, cujo núcleo consiste num processo
de escolha de governantes (ou representantes de segmentos sociais) e de controle sobre sua ação por
meio de eleições competitivas. Segundo Urbinati (2006), a representação política é um processo
204
circular (suscetível ao atrito) entre instituições estatais e as práticas sociais. Argumenta que, a repre-
sentação não pertence apenas aos agentes ou instituições governamentais, mas designa uma forma de
processo político que é estruturada nos termos da circularidade entre as instituições e a sociedade, e
não é confinada à deliberação e decisão na assembleia. Também, de acordo com ela, a definição mais
próxima dos princípios democráticos pertence à Hannah Pitkin: “a representação aqui significa agir
no interesse dos representados, de uma maneira responsiva a eles” (URBINATI, 2006, p. 202 apud
PITKIN, 1967, p. 209). Sua natureza ambivalente – social e política, particular e geral – determina a
ligação inevitável com a participação. O funcionamento da representação beneficia-se de uma cultura
democrática de participação. Do mesmo modo, a legitimidade desses novos espaços públicos de par-
ticipação social está ancorada, de um lado, no próprio processo participativo e sua representatividade
política, e, de outro, na crença dos sujeitos de que são legais as normas do Estado (ou do regime) e
seus aparelhos, assim como o direito de comando delas derivado.
As conferências nacionais de saúde fazem parte da história oficial da política de saúde brasileira desde
205
Planejamento e gestão do SUS: O que os conselhos e as conferências têm a ver com isto?
A construção da gestão democrática dá-se no cotidiano da gestão, na relação Estado/sociedade. É re-
sultante de troca de saberes e pressupõe a existência de conflitos de interesses, um campo de diversi-
dade de opinião e percepção quanto ao modelo de sociedade e do sistema de saúde. Este caminho cria
possibilidades para se construir novas metodologias de planejamento e avaliação, diálogos, pactos e
articulações entre os diferentes atores e redes sociais de relacionamento que poderão influenciar na
implementação do SUS e incorporar as demandas da população e suas necessidades biológicas, sociais
e culturais (PINHEIRO; MATTOS, 2006).
Para os autores citados, no processo de gestão democrática valorizam-se também os espaços já esta-
belecidos de controle social no SUS, sobretudo os conselhos e conferências, incorporando linhas de
prioridade para seu fortalecimento, enquanto espaços públicos de formulação da política, avaliação
e acompanhamento. Isso requer o uso de tecnologias de comunicação, informação para a formação
Júlio Strubing Müller Neto et al.
O planejamento constitui campo de investigação da saúde coletiva e uma função da gestão, que inclui
a formulação, execução e avaliação da política de saúde (LEVCOVITZ et al., 2003; SCHRAIBER
et al., 1999; TEIXEIRA; MOLESINI,2002). O plano de saúde é o principal instrumento de gestão
e expressa a responsabilidade municipal com a saúde da população, a síntese de um processo de
decisão sobre o que fazer diante de problemas e disponibilidade de recursos (TEIXEIRA, 2001). A
coordenação do planejamento e avaliação do sistema de saúde é uma atribuição do gestor público,
do dirigente municipal (TEIXEIRA; MOLESINI, 2002), cabendo à conferência analisar a situação
de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política e, ao conselho, atuar na formulação de
estratégias e no controle da execução da política (BRASIL, 2001a). Independente da obrigatoriedade
definida na legislação, o planejamento, a avaliação e a prestação de contas são necessidades de qual-
quer instituição pública, como as Secretarias de Saúde.
A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2006, p.39) definiu que “[...] as ações e serviços públicos de
saúde integram uma rede de serviços e constituem um sistema único com participação da comunidade”.
A Lei 8.080/90, no artigo 15º, definiu como competência de cada nível de direção do SUS a ela-
boração e atualização periódica do plano de saúde e a articulação política para sua viabilização.
Assim, os planos de saúde se tornaram os instrumentos de programação e orçamento de cada nível
de direção do SUS (BRASIL, 2001a). O artigo 36 da Lei 8.080/90 regulamentou o processo de
planejamento e orçamento do SUS como ascendente, do nível local até o federal, ouvidos seus
206
órgãos deliberativos, compatibilizando-se as necessidades da política com a disponibilidade de
recursos em planos de saúde (BRASIL, 2001a).
A Lei 8.142/90 regulamentou a participação da comunidade na gestão do SUS, por meio da realiza-
ção da Conferência Nacional de Saúde, a cada quatro anos, para avaliar a situação de saúde e propor
diretrizes para a formulação da política e instituiu o Conselho de Saúde como órgão colegiado, em
caráter permanente e deliberativo, com composição paritária entre representantes dos usuários e dos
demais segmentos, para atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política de
saúde na instância correspondente (BRASIL, 2001a). A referida lei condicionou a transferência de
recursos da União aos municípios ao cumprimento de requisitos como a criação do Fundo de Saúde
e do Conselho de Saúde, a existência de plano de saúde e relatório de gestão, e a comissão de elabo-
ração do Plano de Carreira, Cargos e Salários (PCCS).
A Norma Operacional NOB 01/96, instrumento de regulação do SUS, acelerou a municipalização
Resultados e discussão
Mato Grosso é um estado com grande dimensão territorial, baixa densidade demográfica, com eco-
nomia baseada na agropecuária, sobretudo na produção de soja, algodão, arroz, carne, madeira, sendo
exportador desses produtos. A atividade econômica concentradora de renda, as grandes distâncias e a
precariedade da infraestrutura de comunicação e transporte, somados à insuficiente estrutura urbana
das suas cidades, assim como a insuficiência de serviços essenciais na área da educação, saúde e seguran-
Júlio Strubing Müller Neto et al.
208
Capacidade institucional de planejamento e gestão das Secretarias Municipais de Saúde
As Secretarias Municipais de Saúde (SMS) também são relativamente recentes, metade é da década
de 1990, período pós-SUS; sete da década de 1980; e uma da década de 1970.
Para análise da autonomia do órgão gestor da saúde foi considerada a condição de habilitação do mu-
nicípio às normas operacionais do SUS, a gestão do fundo municipal de saúde e de pessoas (Tabela 1).
A maioria dos municípios (68,7%) está habilitada na condição de Gestão Plena da Atenção Básica e
(31,3%) na Gestão Plena do Sistema, conforme requisitos da NOB/SUS 01/96. A gestão integral do
fundo de saúde ocorre em 40% dos municípios, e de pessoas, em 33,3%, caracterizando um quadro
de autonomia limitado do órgão da saúde.
Em relação à capacidade institucional de planejamento, todas as Secretarias de Saúde elaboraram os
principais instrumentos de planejamento do SUS, plano municipal e relatório de gestão, referentes
rios analisados fez referência direta às deliberações das conferências ou resoluções dos conselhos de
saúde. Em síntese, pode-se afirmar que os relatórios de gestão foram de pouca utilidade para avaliar
a implementação das ações prioritárias e das deliberações aprovadas nas conferências de saúde.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Conferências de Saúde e Formulação de
Políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005
210
O processo decisório das Conferências Municipais de Saúde
As conferências de saúde, etapa municipal da 12ª CNS, foram realizadas em 2003 em 15 municípios
analisados, à exceção de um, que a realizou em 2004, seguindo calendário próprio, bianual. Nos
demais, as conferências vinham ocorrendo, via de regra, a cada quatro anos, conforme calendário
da nacional, mas 12 deles organizaram três ou menos CMS (Gráfico 1). Nota-se que, apesar de a lei
orgânica municipal normalizar o prazo da realização das conferências a cada dois anos, em alguns
municípios este prazo não foi cumprido. Assim, a influência da conferência nacional tem sido deter-
minante para desencadear as conferências municipais.
A maioria dos municípios organizou a conferência em dois dias, totalizando 2.486 participantes e 807
deliberações aprovadas. O processo de organização da conferência pela gestão, com apoio dos conselhos
de saúde envolveu recursos de logística, pessoal, articulação e divulgação, conforme o Gráfico 1.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
211
TABELA 2 – Caracterização do Processo Decisório em 16 Conferências Municipais de Saúde.
Mato Grosso, 2003-2004
Júlio Strubing Müller Neto et al.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Conferências de Saúde e Formulação de
Políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005
212
A representatividade dos delegados às conferências, com base no critério de paridade entre o seg-
mento de usuários (50%) e os demais segmentos, trabalhadores (25%) e governo e prestadores (25%)
– conforme resolução n. 333 do CNS, que determina a organização dos Conselhos de Saúde – ocor-
reu em apenas cinco conferências e como apresenta o Gráfico 2, a proporção de delegados eleitos
representou apenas 16,56%, predominando a forma de representação de delegados por indicação
(47,69%) seguido de delegados natos (29,50%).
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato
213
da nacional. Em apenas dois municípios (Tabela 2) houve deliberação com base nos eixos, e ainda
assim, de modo parcial.
A cooperação técnica para a realização das conferências ocorreu em todos os municípios, sendo a
mais frequente proveniente da SES/MT e do Conselho Estadual de Saúde (46,1 %), seguida do Con-
selho Nacional de Saúde e dos órgãos de representação de secretários municipais estadual (COSEMS)
e nacional (CONASEMS) (15,3%).
Outro aspecto que demonstrou a influência do processo de organização da Conferência Nacional de
Saúde foi o destino dado aos relatórios das conferências municipais, todos eles enviados como subsí-
dios à etapa estadual. Em contrapartida, quando foram analisados os processos de decisão do órgão
gestor da saúde em relação à formalização dos resultados das conferências (Tabela 2), observou-se
que o ato legal de aprovação do relatório ocorreu em apenas seis municípios, sendo cinco de respon-
sabilidade dos conselhos e um da secretaria. A divulgação local dos relatórios por meio impresso
Júlio Strubing Müller Neto et al.
também foi incipiente e ocorreu em seis municípios (37,6 %), indicando circulação e divulgação
limitadas das deliberações das conferências, para dentro e para fora da gestão municipal, e, conse-
quentemente, baixo grau de institucionalização dos resultados no processo de gestão e formulação
da política de saúde. Indicou, ainda, o acesso restrito da população em geral às informações, além
da dificuldade de monitoramento de seus encaminhamentos por parte dos órgãos de controle social,
incluindo o próprio conselho, o Legislativo e o Ministério Público.
Reafirma-se a importância da agenda nacional na tematização das conferências municipais e da coo-
Curso de peração das instâncias estaduais e nacionais de gestão e do controle social na indução das mesmas, na
Desenvolvimento
Gerencial orientação dos conteúdos e dos processos de organização, modelos de regimento, atos legais, entre
do SUS outros. Entretanto, percebe-se um desequilíbrio na relação, como se as CMS fossem apenas mais
COLETÂNEA uma etapa da nacional, valorizando-se pouco a agenda política e os interesses dos atores locais. Essa
DE TEXTOS
falta de sintonia fica patente também na definição do calendário: as conferências municipais ocorre-
ram em 2003, enquanto os planos plurianuais municipais (PPA) foram elaborados em 2002.
Conferências de Saúde e Formulação de
Políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005
214
maior concentração das demandas do eixo 5, relativas à organização da atenção à saúde (40%), seguida
das demandas do eixo 7 (17%) referentes à gestão do trabalho na saúde, do eixo 3 (13%), intersetoriali-
dade das ações de saúde, e do eixo 4 (11%), as três esferas de poder e a construção do SUS.
As demandas relacionadas ao eixo 6, controle social e gestão participativa e ao eixo 10, comunicação
e informação em saúde, somaram 14% do total das deliberações. Os eixos temáticos que apresenta-
ram menor número de demandas foram aqueles relativos ao direito à saúde, à ciência e tecnologia e
seguridade social, caracterizando um perfil de reivindicações muito mais próximo do cotidiano das
pessoas e pouco orientado para a formulação de princípios e diretrizes.
TABELA 3 – Classificação por eixo temático das deliberações das 16 CMS. Mato Grosso, 2003-2004
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Quando analisados os subeixos da organização da atenção à saúde (Tabela 4), as deliberações de mé-
dia e alta complexidade representaram 36% do total e a atenção básica 29%. As outras deliberações
deste eixo (34%) incluem ações de assistência farmacêutica, vigilâncias, saúde do trabalhador, rela-
ção público-privado, entre outras.
Nos subeixos do trabalho na saúde (Tabela 4) as deliberações relativas às reivindicações trabalhis-
tas representaram 50% do total deste eixo e as relativas à educação na saúde 50%. Esta contempla
deliberações de capacitação e qualificação do profissional da saúde, entre outras. As reivindicações
trabalhistas incluem PCCS, condições de trabalho, estabilidade, previdência social, entre outras.
Estes resultados sinalizam a importância dada pelos representantes dos usuários e trabalhadores da
saúde na organização da atenção à saúde no SUS, incluindo atenção básica e média e alta complexi-
dade, confirmando a insuficiência destes recursos tecnológicos no SUS, principalmente de média
complexidade, e a importância da estratégia da regionalização da saúde para superação das deficiên-
cias nas diversas regiões. A política de qualificação e valorização dos profissionais e trabalhadores de
saúde também é incentivada nas conferências municipais.
215
Destaca-se ainda a existência de algum tipo de deliberação, focada na intersetorialidade na maioria dos
municípios, com destaque para os municípios F e G e N, destacando a importância destas políticas na
garantia do direito à saúde. Observa-se também a significação do eixo relacionado às três esferas de
governo e à construção do SUS (eixo 4), que também teve deliberações na maioria dos municípios,
principalmente B, F, G, A, P e N, todos municípios sede de polos regionais, indicando a necessidade de
maior presença das esferas estadual e federal na gestão destes municípios e regiões de saúde.
TABELA 4 – Classificação por subeixo temático das ações do Plano de Saúde e do Relatório de
Gestão relacionadas às deliberações das 16 CMS. Mato Grosso, 2003-2005
Júlio Strubing Müller Neto et al.
Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato
Grosso”. Mato Grosso, 2007.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA Comparação das ações constantes nos planos municipais de saúde com as
DE TEXTOS deliberações das conferências
A classificação das ações constantes dos planos de saúde em relação às deliberações aprovadas nas
Conferências de Saúde e Formulação de
Políticas em 16 municípios de Mato Grosso, 2003-2005
conferências (Tabela 5) foi realizada por meio de análise comparativa entre elas, o que revelou a
existência de 197 ações idênticas ou equivalentes às aprovadas nas conferências. O eixo da atenção à
saúde apresentou o maior número de ações, enfatizando sua predominância na agenda de prioridades
da gestão municipal (47%). Em segundo lugar destacam-se as ações do eixo do trabalho na saúde
(18%), na terceira posição o eixo da comunicação em saúde (13%) e na quarta, o eixo referente à
intersetorialidade das ações de saúde, com 11% do total de ações constantes nos planos.
Quando analisados os subeixos da organização da atenção à saúde (Tabela 4), as ações de atenção
básica representaram 44% e as de média e alta complexidade 27% do total das ações. Este resultado
aponta uma inversão em relação ao resultado das conferências que apresentaram maior número de
deliberações de média e alta complexidade, referidas à média complexidade.
Nos subeixos do trabalho na saúde (Tabela 4) as ações relativas à educação na saúde representaram
32% e as reivindicações trabalhistas apenas 4% do total do eixo, resultados que assinalam a impor-
tância dada pela gestão municipal às ações de capacitação dos trabalhadores e profissionais de saúde.
A pouca inclusão de ações referentes às reivindicações trabalhistas nos planos de saúde pode estar
relacionada à autonomia restrita das secretarias municipais de saúde neste setor da gestão.
216
TABELA 5 – Classificação das ações dos planos de saúde, presentes nas deliberações das 16 CMS.
Mato Grosso, 2004-2005
Comparação das ações constantes nos relatórios de gestão com as deliberações das
conferências municipais de saúde
A classificação das ações constantes nos relatórios de gestão relativas às deliberações das conferências
Curso de
(Tabela 6) foi realizada com o auxílio da análise comparativa entre elas e revelou a existência de 52 Desenvolvimento
Gerencial
ações idênticas ou equivalentes às deliberações das conferências. A disposição das ações implemen- do SUS
tadas constantes nos relatórios de gestão indica a tendência apresentada em relação às deliberações e COLETÂNEA
as ações dos planos, ou seja, predominância das ações de organização da atenção à saúde (63%), e do DE TEXTOS
Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato
Grosso”. Mato Grosso, 2007.
217
Finalmente, na Tabela 7, verifica-se a comparação do percentual das ações contidas nos planos com
equivalência às deliberações das conferências (24,4%) e ao relatório de gestão (6,45%).
A opção metodológica de utilizar o relatório de gestão como referencial para esta análise deparou-
se com os limites e insuficiências dos mesmos, já referidos, de modo que os resultados encontrados
devem ser tomados com o devido cuidado e considerados como indicações ou tendências.
Fonte: Relatório da Pesquisa “Incorporação das Demandas Populares às Políticas de Saúde em Municípios de Mato
Grosso”. Mato Grosso, 2007.
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221
CONSTRUINDO A POSSIBILIDADE DA Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
PARTICIPAÇÃO DOS USUÁRIOS: CONSELHOS E do SUS
Este artigo se propõe, inicialmente, a discutir algumas afirmações presentes na literatura interna-
cional sobre a questão da participação no contexto do processo de reforma setorial em países em de-
senvolvimento, marcadamente no setor saúde. De acordo com os autores (Grindle e Thomas, 1991;
Ugalde, 1985), seria muito difícil criar canais participatórios nos chamados países em desenvolvi-
mento, em geral e na América Latina em particular, devido às características de suas instituições po-
líticas. Supõe-se que estas seriam dominadas por pactos e acertos informais elitistas e apresentariam
sociedades civis fracas (Grindle e Thomas, 1991). Na área da saúde as iniciativas para promover a
participação teriam resultado em manipulação dos participantes e na destruição de formas popula-
res de organização (Ugalde, 1985). A experiência brasileira, com os conselhos e as conferências de
saúde, não confirma integralmente tais afirmações. Estudos revelam que, em alguns casos e em de-
terminadas conjunturas, esses fóruns têm participado do processo decisório no setor e têm contado
com a participação de representantes dos usuários de serviços de saúde (Carvalheiro e outros, 1992;
Cortes, 1995, Cortes, 2000). Daí advém o questionamento sobre as origens e o papel institucional
e político desses fóruns no contexto da reforma do sistema de saúde brasileiro, bem como sobre as
condições que viabilizariam o eixo de tais experiências participatórias. A segunda e terceira partes
do artigo procuram responder a essas indagações.
Para que a discussão aqui promovida seja inteligível, é necessário fazer dois esclarecimentos iniciais.
Em primeiro lugar, a literatura sobre o tema tem tratado como participantes em potencial a comuni-
dade, o consumidor, as classes populares (participação popular), o cidadão e o usuário. A utilização
de um ou outro conceito de participante depende principalmente da orientação política e ideológica
de quem o empregar. Neste artigo é mais frequente o uso do conceito participação dos usuários. Ele
se refere àqueles que utilizam determinados serviços em uma dada área territorial. Embora tenha al-
1
Publicado originalmente em: CORTES, Soraya Maria Vargas. Construindo a possibilidade da participação dos usuários: conselhos
e conferências no sistema único de saúde. Sociologias, Porto Alegre, n. 7, p. 18-49, jan.-jun. 2002.
2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Saúde Coletiva (NIPESC).
223
guma similaridade com o conceito de participação do consumidor, ele não se restringe à perspectiva
mercantil e incorpora a noção de direito social que o conceito de cidadania normalmente pressupõe.
Além disso, desde a segunda metade da década passada, o termo participação do usuário tem sido o
mais empregado por estudiosos do tema e pelos documentos oficiais brasileiros. Em segundo lugar,
a literatura trabalha com diferentes modalidades ou gradações do que seria participação (Arnstein,
1969; Cortes, 1996(a); Ham, 1980; Lee e Mills, 1985; Paul, 1987). As formas de envolvimento dos
participantes podem ser qualificadas como manipulação, consulta, negociação ou até mesmo parti-
cipação. Neste artigo, considera-se que há participação quando o envolvido tomar parte no processo
de decisão política (Lee e Mills, 1985; Paul, 1987).
Durante as duas últimas décadas, nos países desenvolvidos, a institucionalização de mecanismos par-
ticipatórios tem sido vista como um complemento ou como uma alternativa às formas tradicionais de
representação política nas democracias liberais. No mesmo período, as agências internacionais têm
preconizado que nos países em desenvolvimento sejam promovidas a auto-sustentação econômica e a
participação comunitária, vistas como meios para atingir o desenvolvimento. Os cuidados primários
de saúde seriam uma das principais estratégias para melhorar as condições de saúde nesses países.
Uma de suas diretrizes centrais consiste no estímulo à participação comunitária. Tem sido questio-
nada, no entanto, a possibilidade de serem criados mecanismos que permitam a participação dos
Curso de
Desenvolvimento setores populares no processo de decisão política em países em desenvolvimento e, particularmente,
Gerencial
do SUS em países latino-americanos.
COLETÂNEA Desde os anos trinta, dirigentes políticos e acadêmicos consideravam que o Estado deveria ser o con-
DE TEXTOS
dutor do crescimento econômico e o promotor do bem estar social (Grindle e Thomas, 1991, p. 2).
Os governos centrais seriam os impulsionadores do progresso, particularmente, nos países em desen-
conselhos e conferências no Sistema Único de Saúde
Construindo a possibilidade da participação dos usuários:
volvimento. Neles, a grande distância entre os objetivos propostos e a realidade, marcada por enormes
problemas sociais e econômicos, parecia justificar a defesa do planejamento e execução centralizada.
Nos anos oitenta, o agravamento da crise econômica internacional e a ascensão ao poder de políticos
conservadores em países centrais da economia internacional determinaram uma mudança de enfoque.
Os dirigentes políticos desses países passaram a defender ideias inspiradas no pensamento da nova direi-
ta, influenciando as agências internacionais a proporem o “ajustamento estrutural” das economias dos
países em desenvolvimento, através de políticas que reduzissem drasticamente o tamanho do aparelho
estatal. As agências internacionais passaram a recomendar reformas baseadas em teorias econômicas
neoclássicas, desafiando a ideia do Estado indutor do crescimento econômico e do bem estar social. Ad-
vogava-se uma maior distribuição de poder, na qual a privatização e a devolução de funções e recursos
nos níveis subnacionais de governo tornaram-se noções chaves (Grindle e Thomas, 1991, p. 2). A nova
concepção de desenvolvimento, combinada com a ideia de cuidados primários de saúde, teve influência
profunda na reforma do sistema brasileiro de saúde iniciada nos anos oitenta.
A estratégia de cuidados primários de saúde criticava a concentração de investimentos em poucas uni-
dades complexas de saúde, principalmente hospitais, em geral localizados em alguns centros urbanos de
larga densidade populacional (Walt, 1994, p. 5, 24). Os recursos deveriam ser usados racionalmente,
enfatizando a aplicação de tecnologias simplificadas através de uma rede de serviços hierarquizada que
cobriria toda a população, embora tivesse como alvo prioritário os setores sociais mais pobres. Nos
224
países em desenvolvimento, a implantação de políticas inspiradas nessa estratégia frequentemente
resultaram na extensão da cobertura dos serviços de saúde a regiões rurais e a áreas urbanas que
concentravam populações de baixa renda (Paim, 1989, p. 19; Walt. 1994, p. 5). A administração da
rede de serviços deveria ser descentralizada e contaria com a participação da comunidade.
A noção de participação, tal como fora inicialmente concebida pelos defensores dos cuidados primá-
rios de saúde, era muito vaga, e seu significado variava conforme as peculiaridades da organização so-
cial e política de cada país, ou do posicionamento político-ideológico do ator político que abraçava a
ideia. Segundo Grindle e Thomas (1991, p. 43-69), nos países em desenvolvimento, os tipos de rela-
ções, que normalmente se estabelecem entre instituições políticas e sociedades civil, dificultariam a
constituição de mecanismos participatórios. Uma das características desses países seria a fraqueza ou
ausência de sociedade civil organizada capaz de contrabalançar o poder político das elites econômicas
e militares em aliança com a burocracia estatal. Particularmente na América Latina, o processo de
tomada de decisões políticas teria sido tradicionalmente conduzido através de canais informais, nos
segunda metade da década de oitenta, esses movimentos passaram a canalizar suas demandas para as
comissões interinstitucionais municipais de saúde, e depois, para os conselhos e as conferências de
saúde. Através desses canais participatórios, eram apresentadas formal e publicamente as demandas
daqueles setores sociais recorrentemente excluídos dos processos decisórios. Para que isso ocorresse,
de forma sistemática e continuada, seriam necessárias algumas precondições.
Em primeiro lugar, o estabelecimento desses canais de efetiva participação, requereria a existência de
organizações da sociedade civil, que pudessem sustentar e legitimar aqueles que representassem os inte-
Curso de resses dos setores sociais que elas aglutinavam (Marmor, 1983, p. 92). Em segundo lugar, seria necessário
Desenvolvimento
Gerencial contar com uma policy community interessada na construção de canais participatórios. Policy community é
do SUS
entendida como uma comunidade orgânica de atores políticos organizados em torno de um projeto co-
COLETÂNEA
DE TEXTOS mum de política social (Jordan e Richardson, 1982, p. 83). Um importante ator dessa comunidade é a
elite política setorial, composta por profissionais e acadêmicos que colaboram decisivamente para a elabo-
ração de projetos reformistas (Grindle e Thomas, 1991, p. 20). No caso da reforma do sistema brasileiro
conselhos e conferências no Sistema Único de Saúde
Construindo a possibilidade da participação dos usuários:
de saúde, havia os ativistas dos movimentos sociais, ansiosos por influenciar a formulação e implementação
das políticas do setor. Havia, também, uma elite de reformadores tentando criar alianças e coalizões para
influenciar o processo de tomada de decisões dentro do governo (Melo, 1993, p. 130-136).
Grindle e Thomas (1991, p. 32-4) relacionaram a fraqueza dos mecanismos de representação de
interesses coletivos, nos países em desenvolvimento, ao forte papel que assumiriam as elites polí-
ticas setoriais na formulação e na implementação de reformas, independente de articulações com
organizações da sociedade civil. No entanto, a elite de reformadores do sistema brasileiro de saúde
constituiu-se apenas em um dos componentes da policy community que defendia a reforma. Por um
lado, a elite de reformadores atraiu lideranças populares e sindicais para que esses se envolvessem
nos fóruns públicos de representação política que eram criados. Por outro, tomaram parte ativa no
desenho de políticas e de estratégias que impulsionassem o processo reformista. Ao invés de tomar
decisões através de um processo informal de consulta a uma sociedade civil debilmente organizada,
eles promoveram a normalização de mecanismos de representação de interesses coletivos no setor
saúde, tendo como pressuposto a existência de movimentos popular e sindical, suficientemente orga-
nizados para garantir a continuidade e a consistência desse processo de representação.
Embora, durante os anos oitenta, tenha havido intensa mobilização da sociedade civil no Brasil, a
estrutura organizativa daí resultante varia de acordo com a região do país, com o estado e com as ca-
226
racterísticas demográficas, econômicas e políticas das cidades. A força de instituições políticas e dos
movimentos popular e sindical em cidades grandes, por exemplo, tende a tornar viável a participação
de grupos de pressão, determinando o tipo de envolvimento que os usuários teriam nos conselhos e
nas conferências de saúde (Carvalhos e outros, 1992; Cortes, 1995; IBAM e outros, 1991; IBAM e
outros, 1993; L’Abbate, 1990; Martes, 1990). Clientelismo e paternalismo ainda são características
marcantes nas relações entre governo e grupos de interesse no Brasil, especialmente nas pequenas
cidades e nas áreas rurais menos industrializadas do país. Embora a existência desses fóruns possa co-
laborar para a consolidação de formas mais democráticas de representação de interesses, eles têm seu
funcionamento limitado e condicionado pela realidade concreta das instituições e da cultura política
dos municípios brasileiros. Mesmo levando em conta tais restrições, nos níveis federal, estadual e em
municípios onde os movimentos popular e sindical são mais organizados, tem havido envolvimento
constante de representantes dos usuários nos espaços públicos dos conselhos e das conferências de
saúde (Carvalheiro e outros, 1992; Cortes, 2000; Vargas e outros, 1985).
político, competências e recursos financeiros nas mãos da União. Ao lado da centralização de poder,
constituía-se um padrão autoritário de administração pública, que defendia o planejamento e a gestão
baseados em decisões técnicas e a supressão de canais abertos à manifestação pública de interesses
seccionais. Nesse contexto, foram fechados os mecanismos de participação dos trabalhadores em
órgãos decisórios e consultivos da previdência social.
A partir de 1974, no entanto, o governo passa a demonstrar maior preocupação com a promoção de
políticas que levassem a expansão da provisão de ações e serviços de saúde. Ao mesmo tempo em que
diminuía o ritmo do crescimento econômico, que caracterizara o chamado “milagre econômico bra-
sileiro”, o regime militar sofria o enfraquecimento de suas bases sociais de apoio. O novo presidente
militar, empossado naquele ano, propunha a gradual liberalização política e um novo discurso social,
consubstanciado no II Plano Nacional de Desenvolvimento (Paim, 1989, p. 19). O plano propugnava a
implementação de novas estratégias de planejamento social e a racionalização do sistema de saúde. De
acordo com novas diretrizes, foram criados os planos de extensão de cobertura, planejados e executa-
dos verticalmente pelo governo federal e impostos aos estados e municípios. As ações mais inovadoras
foram aquelas que visaram estender a cobertura a parcelas da população até então excluídas de qualquer
tipo de acesso a serviços de saúde. A proposta mais ambiciosa foi a tentativa, em 1979, de implementar
um Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREVSAUDE). Embora a iniciativa não tenha
tido sucesso, pela primeira vez discutia-se, nacionalmente, uma proposta que incorporava, entre seus
elementos centrais, a noção de participação comunitária no setor (Paim, 1989, p. 20).
228
Outro conjunto de iniciativas que visavam modificar os serviços de saúde pública tinha como prota-
gonistas algumas secretarias municipais de saúde. No final da década de setenta, em municípios de
pequeno e médio porte, em geral governados por opositores do regime militar, secretarias munici-
pais de saúde implementaram políticas inspiradas pelos princípios dos cuidados primários de saúde.
Além de oferecerem cuidados básicos para populações pobres, tinham como objetivo envolver usuá-
rios em decisões tomadas nos serviços de saúde municipais. O grau desse envolvimento variou caso
a caso, mas difundia-se, nessas localidades, a ideia de participação na área de saúde. Saliente-se que
muitos profissionais de saúde participaram intensamente dessas experiências.
Até o início dos anos oitenta, o sistema brasileiro de saúde era dividido entre os subsetores de saúde
previdenciária e de saúde pública, ambos atuando paralelamente, carecendo de integração no pla-
nejamento e nas ações. O subsetor previdenciário detinha a maior parte dos recursos financeiros.
Ele oferecia serviços de saúde ambulatoriais e hospitalares, acessíveis aos trabalhadores contribuin-
tes, através de unidades próprias e, crescentemente, através de prestadores contratados. A crise
democratização do acesso a serviços e a ampliação do controle estatal sobre os serviços financiados COLETÂNEA
DE TEXTOS
com recursos públicos, ressaltavam a importância de estimular a participação dos usuários.
Ao longo da década de setenta e na primeira metade dos anos oitenta, buscando liberalizar o re-
cial e outros, 1984, p. 8). À exceção das comissões regionais, as demais foram se institucionalizando
como importantes fóruns de debate no setor. Além de auxiliarem a integração interinstitucional, os
novos fóruns foram gradativamente se transformando em canais de representação política dentro da
organização estatal.
As comissões municipais deveriam decidir sobre a alocação de recursos financeiros previdenciários
transferidos para as municipalidades e monitorar o modo como eles eram gastos. Os cuidados de saú-
de oferecidos diretamente pelas esferas federal, estadual e municipal, financiados com recursos dos
Curso de orçamentos desses níveis da administração pública, não estavam incluídos nas agendas de discussão
Desenvolvimento
Gerencial das comissões. Particularmente nas capitais e nas cidades de grande porte, com movimentos social e
do SUS
sindical fortes, grupos de interesse – tais como associações de moradores, sindicatos, organizações
COLETÂNEA
DE TEXTOS que representavam profissionais e trabalhadores de saúde – pressionavam pela ampliação da pauta de
discussões. Eles viam no empowerment desses fóruns a abertura de possibilidades inéditas de participa-
ção no processo de decisão política setorial (Carvalheiro e outros, 1992, p. 116-127).
conselhos e conferências no Sistema Único de Saúde
Construindo a possibilidade da participação dos usuários:
Em agosto de 1987, o governo federal iniciou o Programa dos Sistemas Unificados Descentralizados
de Saúde, com objetivo de universalizar o acesso e cuidados de saúde e, ao mesmo tempo, racionali-
zar custos e o uso de recursos, através da unificação dos serviços de saúde dos subsetores previdenci-
ário e de saúde pública. A proposta era de integração dos serviços de saúde da previdência à rede des-
centralizada de unidades hospitalares e, principalmente, ambulatoriais do subsetor de saúde pública,
pertencentes aos governos estaduais e municipais. Os governos estaduais assinavam convênios de
adesão através dos quais a previdência social transferia aos estados recursos financeiros e funções de
gerenciamento dos serviços próprios e de contratação de prestadores privados. O programa também
estabelecia que as municipalidades que aderissem ao convênio estadual, poderiam receber recursos e
assumir o gerenciamento de unidades ambulatoriais e hospitalares anteriormente federais, e também
das estaduais, que se encontrassem em sua área territorial. O programa propunha integração, virtu-
almente extinguindo o envolvimento direto da previdência social na provisão de cuidados de saúde
e na compra de serviços. Havendo municipalização, as secretarias municipais de saúde se tornariam
os gestores dos serviços existentes em seus territórios, exceção feita àqueles que, devido ao seu nível
maior de complexidade, fossem referências para populações de mais de um município.
Os reformadores do sistema brasileiro de saúde consideravam como uma questão de princípio que a
sociedade civil tivesse controle sobre o sistema. Ao mesmo tempo, os grupos de interesse mobiliza-
230
dos através de fóruns de participação poderiam auxiliar para expandir os apoios políticos ao processo
de reforma. O programa abriu as comissões interinstitucionais estaduais de saúde à participação
popular e reforçou o papel de representantes da sociedade civil nas comissões municipais e locais. O
Programa habilitou as comissões municipais a tomar parte nas decisões sobre serviços contratados,
uma vez que houvesse ocorrido a municipalização.
A Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988 (Brasil, 1988), e as Leis 8.080 e 8.142 apro-
vadas pelo Congresso Nacional, em 1990 (Brasil. Congresso, 1990 (a); Brasil. Congresso, 1990 (b)),
foram influenciadas pela policy community de reformadores do sistema brasileiro de saúde em aliança
com organizações que representavam os interesses dos usuários. A estratégia geral era construir um
sistema universal e único de saúde, financiado com recursos da seguridade social – criada pela nova
Constituição – e dos orçamentos federal, estaduais e municipais. A maior parte da provisão direta
e da regulação dos serviços financiados com recursos públicos ficaria a cargo dos municípios. As
esferas federal e estadual assumiam a responsabilidade pelo monitoramento e avaliação do sistema e
3
Para receber recursos financeiros federais, as secretarias de saúde estaduais e municipais deveriam ter: (1) fundo de saúde, (2)
conselho de saúde, (3) plano de saúde, (4) relatório de gestão, (5) considerável contrapartida de recursos financeiros oriundos dos
orçamentos próprios destinados à função saúde, (6) plano de carreira, cargos e salários.
231
ses de usuários têm renovado esforços para aumentar sua influência nos conselhos de saúde nacionais,
estaduais e municipais. Elas parecem reconhecer que, no novo desenho institucional, foi aberta a
possibilidade para que os usuários participem do processo de decisão política setorial.
A mesma lei criava também as conferências de saúde, nos três níveis da administração pública, as quais
deveriam ter a mesma composição dos conselhos e ocorrer a cada quatro anos. Elas deveriam avaliar a
situação de saúde e propor diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes.
Embora tenham sido realizadas oito conferências nacionais de saúde anteriormente a 1990, apenas a
última delas – a 8ª Conferência nacional de Saúde – teve participação popular marcante, possivelmente
por ter sido realizada em 1986, no contexto da democratização política, dos conflitos e negociações que
precederam o processo constitucional e de intensa discussão sobre os rumos da reforma do sistema de
saúde. A partir de então realizaram-se duas conferências nacionais – em 1993 e em 1996 – precedidas
pela organização de cerca de cinco mil conferências municipais e estaduais em todos os estados da fe-
deração. A mobilização que elas provocaram pode ser atestada pelo processo de escolha de delegados,
Soraya Maria Vargas Cortes
cercado, muitas vezes, de disputas acirradas entre diferentes entidades buscando garantir a presença de
seus representantes no evento. Há indicações de que tem sido respeitada a exigência legal de paridade
entre representantes de usuários, vis-a-vis demais segmentos sociais (Cortes, 2000).
A legislação criou os conselhos e as conferências nos níveis federal, estadual e municipal da adminis-
tração pública, mas eles não foram instituídos a partir de um vazio institucional. Na maior parte dos
casos, os conselhos originaram-se da adaptação das comissões interinstitucionais existentes, desde
a segunda metade da década de oitenta, às novas exigências legais. A realização de conferências era
Curso de
Desenvolvimento tradição no setor, desde o início do século; a principal diferença introduzida foi o regramento em
Gerencial
do SUS relação à periodicidade e ao envolvimento de representantes da sociedade civil.
COLETÂNEA Esses fóruns vêm modificando seu caráter dentro de um sistema de saúde em processo de mudança.
DE TEXTOS
Desde 1984, quando as autoridades de saúde federais deram prioridade à integração interinstitucio-
nal e à descentralização, através do Programa das Ações Integradas de Saúde, os fóruns permanentes
conselhos e conferências no Sistema Único de Saúde
Construindo a possibilidade da participação dos usuários:
De outro lado, estão os liberais que defendem a provisão privada de serviços para aqueles que podem
233
os determinantes da participação dos representantes dos usuários nestes fóruns. A sistematização
da literatura sobre o tema (Cortes, 1995; Jacobi, 1993; Lee e Mills, 1985; Marmor, 1983; Martes,
1990; Vargas e outros, 1985) apontou os seguintes fatores como os mais influentes sobre esse pro-
cesso participatório: (1) mudanças recentes na estrutura institucional do sistema brasileiro de saúde,
(2) organização dos movimentos popular e sindical, (3) relacionamento entre profissionais de saúde
pública e lideranças populares e sindicais, (4) posições das autoridades federais, estaduais e muni-
cipais de saúde em relação a participação, (5) dinâmica de funcionamento dos fóruns. Duas obser-
vações preliminares devem ser feitas para esclarecer a natureza desses determinantes. Em primeiro
lugar, na realidade, todos eles se afetam mutuamente, compondo as partes de um todo integrado e
conflituoso. Em segundo lugar, os dois primeiros fatores são os mais decisivos. Ou seja, os fóruns não
existiriam não fosse a estrutura institucional que os criou e somente haverá participação se houver
organização da sociedade civil. Em certos casos podem ocorrer resistências das autoridades munici-
pais de saúde em relação à participação dos usuários e mesmo assim ela ocorrer em função da pressão
Soraya Maria Vargas Cortes
conselhos e das conferências de saúde, tanto como lócus de articulação das forças políticas favoráveis
à reforma do sistema de saúde, quanto como canal formal e aberto de encaminhamento de demandas
e proposições dos representantes dos setores populares, que são os usuários regulares dos serviços
financiados com recursos públicos.
No entanto, a força dos movimentos popular e sindical é que determinará a ocorrência ou não de
participação de representantes legítimos e autônomos dos setores populares nesses fóruns. Mais que
isso, o padrão de organização dos movimentos sociais influencia o modo como os usuários se envol-
vem nas atividades dos conselhos e das conferências. Se o padrão de organização for mais centrali-
zado, a tendência é que os representantes dos usuários se envolvam diretamente nas atividades dos
conselhos nacional, estaduais e municipais das cidades grandes. Se o padrão de organização for mais
descentralizado, os representantes usuários chegarão a eles através de organizações locais, tais como
os conselhos locais de saúde, clubes de mães, associações comunitárias ou de moradores, entre outras
(Cortes, 1995). A importância dos movimentos sociais urbanos, especialmente nas cidades maiores,
é decisiva porque os representantes do movimento sindical nos conselhos – excluídos os que repre-
sentam trabalhadores de saúde – têm sido minoria. Isso possivelmente se explica pelo fato de os seto-
res de trabalhadores mais mobilizados serem aqueles cujos membros já dispõem de seguros ou planos
de saúde especiais, não contando unicamente com o sistema público para atender a suas necessidades.
Em cidades pequenas, onde os sindicatos de trabalhadores rurais são fortes, eles se constituem na
234
principal base de sustentação para a participação continuada de seus representantes junto aos conse-
lhos municipais (Vargas e outros, 1985). Saliente-se que esses trabalhadores também dispõem apenas
do sistema público para suprir suas necessidades de atenção à saúde. As possibilidades de envolvimen-
to autônomo dos representantes de usuários nas conferências municipais, que escolhem os delegados
que participarão das etapas estaduais e federal, dependem da consistência do envolvimento nos con-
selhos municipais. O caráter episódico das conferências as transforma em momento culminante de
um longo processo gestado ao longo dos quatro anos que antecedem a realização de cada uma delas.
Um terceiro fator que tem estimulado o envolvimento de usuários nos conselhos e nas conferências
é a ação combinada dos reformadores do sistema brasileiro de saúde com a dos ativistas dos movi-
mentos sociais urbano, rural e sindical (Cortes, 1995; Martes, 1990; Vargas e outros, 1985). A
elite de reformadores tem atuado também junto ao executivo e legislativo, visando a introdução de
modificações político-institucionais que viabilizem a participação dos usuários. Esses reformadores
defendem a participação, porque eles acreditam na democratização do processo de decisão política
Ronda Alta no Rio Grande do Sul (Vargas e outros, 1985), a já existente intensa mobilização popular
235
Saliente-se que, na medida em que avançar o processo de descentralização, mais importante se torna-
rá o papel do gestor municipal no conjunto do sistema e sobre as possibilidades de haver participação
dos usuários, enquanto que a influência das autoridades federais e estaduais declinará.
Um quinto determinante da participação é a dinâmica de funcionamento dos fóruns. Ela está ligada à
forma de coordenação do fórum e à postura do gestor em relação à participação. Ela poderia explicar
mudanças de curto prazo no envolvimento dos usuários (Cortes, 1995). Nos conselhos a sobrecarga
de discussões detalhadas sobre despesas a serem realizadas, por exemplo, pode levar ao esvaziamento
de reuniões de conselho (Cortes, 2000). A divisão clara de competências entre comissões técnicas,
jurídicas ou similares pode ajudar a evitar esse tipo de problema, se a intenção for evitá-lo, caso con-
trário pode se constituir numa estratégia para diminuir o poder deliberativo do conselho. Da mesma
forma, ao limitar as questões que entram na pauta de discussão, o gestor pode fazer com que assuntos
importantes para as políticas de saúde municipal, permaneçam como não-questões (Bachrach e Baratz,
1963). Estando fora da agenda de discussões, as decisões relativas a eles serão tomadas em gabinetes,
Soraya Maria Vargas Cortes
Considerações finais
No Brasil, a partir dos anos oitenta, alguns setores da administração pública, marcadamente o de saú-
de, têm sido permeáveis à representação de interesses daqueles setores sociais tradicionalmente alija-
dos do processo político. É certo que essa novidade convive com a permanência de arranjos políticos
Curso de elitistas e de práticas clientelísticas e paternalistas que dificultam a generalização dessa nova per-
Desenvolvimento
Gerencial meabilidade. A crise econômica dos anos oitenta minou as bases do pacto autoritário que excluía as
do SUS representações de trabalhadores e de outros setores sociais populares dos centros de decisão política.
COLETÂNEA A liberalização política possibilitou a manifestação pública de uma sociedade civil que demonstrou
DE TEXTOS
capacidade de organização autônoma, pelo menos nos principais centros urbanos e nas áreas rurais
que concentravam os mais ativos sindicatos de trabalhadores rurais. A consolidação dos conselhos e
conselhos e conferências no Sistema Único de Saúde
Construindo a possibilidade da participação dos usuários:
das conferências de saúde, como espaços para os quais foram canalizadas as demandas dos movimen-
tos popular e sindical, teve sucesso onde formou-se uma “policy community” composta por uma elite
de reformadores do sistema brasileiro de saúde em aliança com lideranças dos movimentos popular e
sindical. A aliança que se solidificou nos conselhos de saúde tem se manifestado nas conferências de
saúde. Assim, as afirmações de Grindle e Thomas e de Ugalde, que consideraram pouco provável a
constituição de mecanismos formais e públicos de representação dos interesses das classes populares
na América Latina, não retratam integralmente, nem valorizam, a novidade que constituem os con-
selhos e as conferências de saúde para a vida político-institucional do país.
No entanto, a demora no processo de municipalização dos serviços de saúde, em muitos estados, tem
limitado as possibilidades de extensão da agenda de discussões dos conselhos municipais. Enquanto
o gerenciamento dos serviços de saúde nas cidades não estiver sob controle municipal, o poder de
decisão política dos conselhos e das conferências municipais, dentro do processo decisório geral do
setor, tenderá a ser limitado. Em outras palavras, sem a municipalização o aumento do controle dos
usuários sobre esses fóruns não significará ampliação do controle sobre a gestão dos serviços de saúde
da cidade. A municipalização apenas da atenção básica, como tem ocorrido na esmagadora maioria
dos municípios brasileiros, faz com que o gestor municipal e, por conseguinte, os conselhos tenham
influência limitada sobre o processo de decisão setorial.
Ressalve-se, ainda, que a assistência à saúde, no Brasil, está dividida entre os cuidados disponíveis
236
para aqueles que dispõem de convênios especiais ou que podem comprar serviços privados direta-
mente e aquela assistência acessível aos que somente podem recorrer aos serviços financiados com
recursos públicos. Isso tem levado a que principalmente as populações mais pobres e os portadores
de doenças crônicas – em menor proporção – se interessem em influir no processo de decisão polí-
tica que tem lugar nos fóruns participatórios.
Mesmo considerando tais limitações, tem-se constatado que, em alguns casos e em certas conjun-
turas, os conselhos e as conferências de saúde têm propiciado a representação pública dos interesses
dos setores populares e os representantes desses setores têm participado no processo de tomada de
decisão política que lá ocorre. Os principais determinantes da participação dos representantes dos
usuários nos conselhos e conferências têm sido: (1) mudanças no sistema brasileiro de saúde, (2)
características dos movimentos popular e sindical, (3) relacionamento entre profissionais de saúde
pública e lideranças populares e sindicais, (4) posições dos gestores federais, estaduais e, principal-
mente, municipais em relação à participação, e (5) dinâmica de funcionamento do fórum. Como foi
a qualidade dos serviços prestados e podem influenciar na formulação de políticas que favoreçam os
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239
Para saber mais
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e direito à saúde: liberdade ou necessidade? Algumas considerações sobre os nexos constituintes das práticas de integralidade. In:
PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben Araújo de (Orgs.). Construção social da demanda: direito à saúde, trabalho em equipe,
participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ; ABRASCO, 2005. p. 11-31.
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poder da informação. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben Araújo de (Orgs.). Construção social da demanda: direito à saúde,
trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ; ABRASCO, 2005. p. 225-238.
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CONASEMS, 2009. (Cartilha).
241
MÓDULO 3: INFORMAÇÃO E
PLANEJAMENTO EM SAÚDE
DA VISÃO MULTISSETORIAL1
COLETÂNEA
DE TEXTOS
ELIZABETH ARTMANN 2
1. Introdução
Entre as vertentes do planejamento estratégico que surgem na América Latina a partir dos anos 70,
destaca-se o Planejamento Estratégico Situacional, de Carlos Matus.
O Planejamento Estratégico Situacional - PES foi idealizado por Matus, autor chileno, a partir de sua
vivência como ministro da Economia do governo Allende, no período de 1970-73, e da análise de
outras experiências de planejamento normativo ou tradicional na América Latina cujos fracassos e
limites instigaram um profundo questionamento sobre os enfoques e métodos utilizados.
O enfoque do Planejamento Estratégico Situacional – PES (Matus, 1993, 1994a, 1994b) surge, en-
tão, no âmbito mais geral do planejamento econômico-social e vem sendo crescentemente adaptado
e utilizado em áreas como saúde, educação e planejamento urbano, por exemplo. Esse enfoque parte
do reconhecimento da complexidade, da fragmentação e da incerteza que caracterizam os processos
sociais, que se assemelham a um sistema de final aberto e probabilístico, onde os problemas se apre-
sentam, em sua maioria, não estruturados e o poder se encontra compartido, ou seja, nenhum ator
detém o controle total das variáveis que estão envolvidas na situação.
Embora o método tenha sido desenhado para ser utilizado no nível central, global, seu formato flexível
possibilita a aplicação nos níveis regionais/locais ou mesmo setoriais, sem, contudo, deixar de situar os
problemas num contexto global mais amplo, o que permite manter a qualidade da explicação situacional
e a riqueza da análise de viabilidade e de possibilidades de intervenção na realidade. Para tanto, Matus
desenvolve os conceitos de espaço do problema e espaço de governabilidade do ator, bem como propõe
o desenho de um plano de intervenção em dois níveis: o plano de ação que abrange as causas dos proble-
mas situadas dentro do espaço de governabilidade do ator e o plano de demandas que aborda as variáveis
sob o controle de outros atores. Estes conceitos serão melhor abordados adiante.
1
Este artigo, adaptado para a presente coletânea, foi publicado originalmente em: ARTMANN, Elizabeth. O planejamento
estratégico situacional no nível local: um instrumento a favor da visão multissetorial. Cadernos da Oficina Social, Rio de Janeiro, n.
3, p. 98-119. fev. 2000.
2
Pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da ENSP/FIOCRUZ, Doutoranda em Saúde Coletiva
no Departamento de Medicina Preventiva da UNICAMP.
247
Buscando ainda, enfrentar a questão da operacionalização de um método complexo e sofisticado no
nível local, Matus propõe a trilogia PES, ZOPP (sigla em alemão de Zielorientierte Projektplanung
- Planejamento por Projetos Orientado por Objetivos) e MAPP (Método Altadir de Planejamento
Popular), desenhados, respectivamente, para os níveis central, intermediário e local/popular. O
autor sugere a combinação desses métodos, segundo a hierarquia e a complexidade dos problemas
abordados, destacando a coerência e identidade de concepção metodológica entre eles.
O PES, segundo Matus, é um método de alta complexidade e alta potência, apropriado para o nível
diretivo de instituições de grande porte e com pessoal especializado. O ZOPP é um método de
complexidade intermediária, com limitações para fazer análise estratégica e abordar determinados
problemas que definem uma situação global (macroproblemas). É adequado para trabalhar em nível
operacional específico e sofreu algumas modificações do original alemão para integrar o sistema
PES. O MAPP constitui-se, para o autor, num bom método por problemas a ser operacionalizado no
nível popular, associações de moradores e instituições de pequeno porte mas possui também limita-
ções (ver crítica da trilogia de Matus em Artmann, 1993 e Sá & Artmann, 1994).
Concordamos com Matus que, muitas vezes, possa ser útil a combinação desses métodos. Chamamos a
Elizabeth Artmann
atenção, contudo, para o fato de que, nos níveis locais e intermediários também se apresentam proble-
mas estratégicos, havendo necessidade, portanto, de uma análise de viabilidade mais aprofundada. Ao
contrário do ZOPP que abandona as alternativas não viáveis na situação inicial, o PES propõe a constru-
ção de viabilidade para o plano. Sendo o ZOPP e o MAPP bastante limitados nesse aspecto, propomos
a operacionalização do PES mesmo no nível local, com as adaptações necessárias, tendo-se o cuidado de
Curso de
Desenvolvimento não simplificá-lo a ponto de perda de potência na abordagem global e estratégica dos problemas.
Gerencial
do SUS Optamos, portanto, para fins de elaboração deste texto, por apresentar os principais fundamentos
COLETÂNEA teórico-metodológicos do PES com adaptações propostas, sendo algumas já adotadas e testadas em
DE TEXTOS
experiências de planejamento no nível local (Artmann, 1993; Rivera & Artmann, 1993; Artmann,
Azevedo & Sá, 1997).
um instrumento a favor da visão multissetorial
O Planejamento Estratégico Situacional no nível local:
O PES é um método de planejamento por problemas e trata, principalmente, dos problemas mal es-
truturados e complexos, para os quais não existe solução normativa ou previamente conhecida como
no caso daqueles bem estrutrados. É importante destacar que, embora se possa partir de um campo
ou setor específico, os problemas são sempre abordados em suas múltiplas dimensões - política, eco-
nômica, social, cultural etc. e em sua multissetorialidade, pois suas causas não se limitam ao interior
de um setor ou área específicos e sua solução depende, muitas vezes, de recursos extra-setoriais e da
interação dos diversos atores envolvidos na situação.
248
O ator e o problema
Para Matus, um problema não pode ser apenas um “mal-estar” ou uma necessidade sentida pela po-
pulação. Um problema suscita à ação: é uma realidade insatisfatória superável que permite um inter-
câmbio favorável com outra realidade. Este é um ponto muito importante na abordagem matusiana
que significa que um problema nunca é “solucionado” definitivamente, mas uma intervenção eficaz na
realidade deve produzir um intercâmbio positivo de problemas. Outro ponto fundamental é a neces-
sidade de que seja definido e declarado como problema por um ator, disposto e capaz de enfrentá-lo.
O ator, para Matus (1994b) deve preencher três critérios:
Ter base organizativa
Ter um projeto definido
Controlar variáveis importantes para a situação.
O ator pode estar representado pela direção de um sindicato, de um partido político ou de uma asso-
ciação de moradores, considerando-se vários subatores (por exemplo, o presidente do sindicato pode
ter uma posição e outro membro importante outra) ou pode ser uma pessoa: o prefeito, o secretário
Elizabeth Artmann
de saúde ou de educação. Alguém deve sempre responder pelo plano, portanto não é correto nem
útil dizer que a secretaria de saúde ou a prefeitura são os atores. Neste caso, o prefeito e o secretário
de saúde seriam os atores. Matus (1994b) chama a atenção para o fato de que um assessor não é ator,
podendo ser chamado de autor do plano. Portanto, um grupo responsabilizado pela elaboração de
um projeto não pode ser considerado um ator; a autoridade que o instituiu é que representa o ator.
É importante ter claro o ator que assina o plano. Este sempre controla pelo menos algumas variáveis Curso de
Desenvolvimento
relevantes na situação e, além do ator-eixo ou ator principal, os outros atores que controlem recursos Gerencial
do SUS
ou variáveis importantes devem ser considerados.
COLETÂNEA
Com base em Ian Mitroff, Matus (1987) formula uma primeira classificação dos problemas em: bem DE TEXTOS
a definição de um local para reuniões etc. Uma escola deve prestar ensino de qualidade às crianças
de determinada faixa etária. Todos os problemas relacionados a esta missão, como alto índice de
repetência e evasão escolar são finais. Os intermediários seriam os baixos salários dos professores ou
rede física inadequada por exemplo, cujo enfrentamento se justifica na medida em que corrobora o
alcance dos produtos finais.
Curso de Os problemas atuais são aqueles que se manifestam hoje, no presente. Os potenciais referem-se a
Desenvolvimento
Gerencial processos tendenciais que levariam à expressão de problemas no futuro e para os quais é necessária
do SUS
uma atuação preventiva. Muitas vezes a identificação de problemas potenciais torna-se extrema-
COLETÂNEA mente estratégica no sentido de evitar situações graves e também de economizar custos, sejam
DE TEXTOS
econômicos ou políticos.
um instrumento a favor da visão multissetorial
O Planejamento Estratégico Situacional no nível local:
O conceito de situação
Com este conceito Matus (1987) questiona, a partir de autores como Gadamer (1975) e Ortega y Gas-
set (1936), a possibilidade de uma explicação objetiva e única da realidade por um sujeito que a olha
como objeto desde fora. Na explicação situacional o ator analisa a realidade, os problemas, desde dentro
da situação. A situação, enquanto um recorte problemático feito em função de um projeto de ação, está
constituída pelo ator-eixo da explicação situacional, por outros atores, pelas suas ações e pelas estrutu-
ras econômicas, políticas, ideológicas e culturais que condicionam os atores e suas ações.
A explicação situacional é sempre multidimensional e totalizante, ou seja, refere-se às múltiplas
dimensões da realidade: política, econômica, ideológica, cultural, ecológica etc. Exige uma visão in-
terdisciplinar e multissetorial e deve adaptar-se ao plano setorial sem abandonar as outras dimensões
e espaços de explicação. É dinâmica, articulando passado, presente e futuro, através do desvenda-
mento dos processos causais, da expressão atual e da análise das tendências futuras. É ativa, pois cada
ator busca com a explicação fundamentar sua ação. A situação está sempre referida a um ator, à sua
própria explicação da realidade, mas inclui a explicação, o ponto de vista dos outros atores envol-
vidos. É, portanto, além de autorreferencial, também policêntrica. Deve ser rigorosa no sentido de
buscar apreender as determinações essenciais, para além dos fenômenos aparentes e das causas ime-
diatas e, para isso, não pode prescindir de um modelo teórico de leitura da realidade. Matus (1982)
propõe como modelo de análise da realidade a Teoria da Produção Social.
250
A apreciação situacional, ao contrário do diagnóstico tradicional, é um diálogo entre um ator e ou-
tros atores cujo relato é assumido por um dos atores de maneira inteiramente consciente do texto
e contexto situacional que o faz participante de uma realidade conflitiva que admite outros relatos.
Elizabeth Artmann
Matus utiliza a metáfora do jogo para elucidar a ação e a produção humana em geral: as jogadas
seriam os fatos, produzidos pelos jogadores (atores) a partir de determinadas acumulações que es-
tariam ancoradas em capacidades individuais, intelectuais, no conhecimento do jogo e suas regras
e nas próprias acumulações geradas no processo de jogar. Uma diferença fundamental entre os ti-
pos comuns de jogos e o Jogo Social estaria representada pelas regras, que, se na maioria dos jogos Curso de
Desenvolvimento
estão predefinidas e são imutáveis (xadrez, monopólio etc.), neste último, são construídas pelos Gerencial
homens e não são imutáveis. Matus chama a atenção, contudo, para o fato de que é preciso muito do SUS
poder ou uma grande acumulação para se mudar as regras sociais que são desiguais, favorecendo COLETÂNEA
DE TEXTOS
mais a alguns atores em detrimento de outros.
251
O momento explicativo: selecionando e compreendendo o problema
Esse é o momento da seleção e análise dos problemas considerados relevantes para o ator social e
sobre os quais este pretende intervir.
Se a seleção é feita por um grupo de pessoas, o uso de técnicas como “tempestade de ideias” utilizada
pelo ZOPP, por exemplo, pode ser útil para a construção de uma primeira listagem de problemas
que, depois de agrupados por afinidade, poderão passar por um protocolo simples de seleção que
servirá para refletir sobre a relevância dos mesmos antes da seleção definitiva. Mesmo quando o
ator tem claro quais os problemas que devem ser enfrentados, o protocolo é útil para confirmar (ou
não) sua importância estratégica. O protocolo inclui alguns critérios como: valor do problema para
o ator principal, para outros atores e para a população; custo econômico das soluções; custo político
do enfrentamento ou postergação do problema; eficácia da intervenção, entre outros que podem ser
acrescentados, dependendo do âmbito dos problemas. Por exemplo, para problemas de saúde pode-se
acrescentar o critério “impacto na qualidade de saúde da comunidade ou população”.
Selecionados os problemas, passa-se à descrição dos mesmos através de indicadores ou descritores
Elizabeth Artmann
que os definam com clareza. Os descritores quantitativos ou qualitativos devem ser necessários e su-
ficientes para expressar o problema sem confundi-lo com outros ou com suas próprias causas e con-
sequências. A verificação desse critério de suficiência pode ser feita a partir da resposta afirmativa
à pergunta: “eliminadas as cargas negativas expressas pelos descritores, fica eliminado o problema?”
Caso contrário, é necessário rever os descritores. É importante assinalar a fonte de verificação do
Curso de descritor ou seja, a procedência da informação. A descrição, quando bem feita resultará nos indica-
Desenvolvimento
Gerencial dores que serão utilizados para avaliar os impactos do plano.
do SUS
Nem sempre é possível usar somente descritores quantitativos. Às vezes é preciso contar apenas com
COLETÂNEA
DE TEXTOS descritores qualitativos. É importante lembrar que o descritor não explica o problema, mas o carac-
teriza, o expressa através de “sintomas” que o definem.
um instrumento a favor da visão multissetorial
O Planejamento Estratégico Situacional no nível local:
Vejamos, a seguir, um exemplo de um problema processado pelos alunos do Curso de Gestão Hospi-
talar de 1991 na Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ/MS, e posteriormente enfrentado
com sucesso pela gestão municipal de Angra dos Reis.
252
Após a descrição, os problemas devem ser analisados através da construção de uma rede de causalidade
simplificada. Aqui optamos por não considerar a Teoria da Produção Social e a complexidade do fluxo-
grama situacional do PES explicitamente, embora, a organização dos processos causais do problema pos-
sa obedecer implicitamente a um esquema de hierarquização semelhante. Ao invés de ordenar as causas
em colunas de fatos, acumulações e regras, pode-se hierarquizá-las segundo causas mais imediatas, causas
intermediárias e causas “de fundo”. É importante considerar a noção de espaço de governabilidade o que
significa que as causas devem ser corretamente colocadas dentro ou fora do espaço de governabilidade
do ator. No espaço de governabilidade do ator estão situadas aquelas causas que estão sob o seu controle.
Isto dá uma primeira ideia sobre o grau de governabilidade ou controle sobre o problema, o que pode ser
considerado inclusive como um critério ou filtro de seleção. Mais adiante, no momento estratégico, esta
questão poderá ser verificada com mais profundidade, apontando-se os atores que controlam as variáveis
críticas (ou nós críticos) do problema e os recursos importantes para a intervenção.
Elizabeth Artmann
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
dores da avaliação dos resultados. Devem ser indicados os atores que controlam as variáveis dos nós
críticos o que ajudará a verificar o grau de governabilidade, da qual depende o plano de ação do ator-
eixo e o plano de demandas.
Imaginemos o seguinte exemplo:
Curso de
Desenvolvimento
O chefe de um posto de saúde (A1) de um bairro, com sua equipe processa o problema: “Alta mor-
Gerencial talidade por diarreia infantil” e, ao explicá-lo, encontra vários nós críticos (NC1, NC2...) sendo que
do SUS
alguns se encontram dentro de seu espaço de governabilidade e outros fora.
COLETÂNEA
DE TEXTOS
um instrumento a favor da visão multissetorial
O Planejamento Estratégico Situacional no nível local:
254
Cabe destacar que quando o nó crítico selecionado está dentro do espaço de governabilidade do ator,
é mais fácil enfrentá-lo, pois este controla os principais recursos dos quais dependem sua solução.
Mas pode ocorrer que uma causa seja um nó crítico, isto é, de seu enfrentamento depende a mo-
dificação dos descritores do problema, mas a intervenção direta não está ao alcance do ator-eixo.
Alguns autores que adaptam o PES para o nível local optam por selecionar somente os nós críticos
dentro do espaço de governabilidade do ator, na linha mais simplificada de métodos como o ZOPP,
por exemplo. Contudo, consideramos que um ponto altamente positivo na proposta do PES é a bus-
ca e construção de soluções criativas que envolvem a negociação com outros atores que controlem
variáveis importantes na situação problemática. Portanto, se a causa tem um alto impacto sobre o
problema, se existe oportunidade política de atuação e é possível intervir sobre ela, mesmo que es-
teja fora do espaço de governabilidade do ator, vale a pena selecioná-la. A intervenção sobre este nó
poderá situar-se em um plano de demandas e dependerá da capacidade de negociação, da criatividade
do ator(es) interessado(s).
Elizabeth Artmann
Este é o momento de desenhar o plano de intervenção, ou seja, de definir a situação objetivo ou situação
futura desejada e as operações/ações concretas que visam resultados, tomando como referência os
nós críticos selecionados.
A situação-objetivo é portanto a nova situação a ser atingida (com os problemas modificados positi-
vamente) através do Plano por Operações. Pode ser desenhada transformando-se os descritores do
problema em novos indicadores desejados, os indicadores de resultado. Cada descritor deverá ser Curso de
Desenvolvimento
transformado num resultado esperado, como decorrência das prováveis intervenções sobre o proble- Gerencial
do SUS
ma. Assim teremos um VDR (vetor de descrição de resultados) correspondente aos resultados finais
a serem atingidos pelo plano como um todo e os resultados intermediários ao vetor de descrição dos COLETÂNEA
DE TEXTOS
nós-críticos modificados a serem alcançados através de cada operação/ações. Às vezes, é necessário
complementá-la com um texto.
SITUAÇÃO OBJETIVO
255
As operações constituem meios de intervenção ou conjuntos de ações que empregam vários tipos de
recursos: organizativos, políticos, econômicos, cognitivos etc., que geram produtos e resultados. Os
produtos podem referir-se a bens e serviços produzidos, a fatos políticos, a conhecimentos gerados
ou transferidos, a normas, leis ou regulações criadas, a organizações, sistemas, obras realizadas etc.
Geralmente, em cada operação predomina um tipo de produto. Os resultados correspondem ao im-
pacto produzido sobre os descritores do problema. Por exemplo, o produto de uma operação “campa-
nha de vacinação contra o sarampo” deve ser “x crianças vacinadas” e deve gerar o resultado: “aumento
da imunidade” medido através da diminuição do número de casos da doença. É importante buscar
indicadores (quantitativos e/ou qualitativos) como forma de medir os resultados para que não se fique
em hipóteses ou divagações. As operações constituem-se em compromissos de ação.
Para cada nó-crítico deverão ser elaboradas uma ou mais operações que correspondem às propostas
de intervenção sobre o mesmo. A operações deverão ser enunciadas de forma sintética e deverão
expressar uma proposta de intervenção, através de verbos que expressem ações concretas. Por exem-
plo, sensibilizar não indica uma ação concreta mas o resultado de uma ação anterior como “realizar
campanha educativa”.
Elizabeth Artmann
Cada operação será então desagregada (detalhada) em ações, que expressem com maior precisão o seu
conteúdo. Para elaborar as ações o grupo deverá tomar como referência os descritores do nó-crítico.
Cada operação desagregada em ações deve ter seus produtos e resultados determinados, os respon-
sáveis pelas ações, os recursos predominantes empregados e o tempo de realização definidos, o que
Curso de pode ser feito já considerando-se o contexto ou cenário do plano, pois é importante observar que a
Desenvolvimento
Gerencial situação desejada não se configura somente a partir das ações do ator em pauta mas de inúmeras con-
do SUS dições que podem ser consideradas, através de uma análise de tendências e a partir da ação de outros
COLETÂNEA atores. Por isso, decidimos conservar em nossa proposta para o nível local, a análise de cenários,
DE TEXTOS
ainda que de maneira simplificada.
um instrumento a favor da visão multissetorial
O Planejamento Estratégico Situacional no nível local:
256
É importante lembrar que uma única variável não conforma um cenário, mas a combinação de di-
versas variáveis relevantes que se influenciam mutuamente. Por exemplo, no caso acima um cenário
determinado por uma variável econômica, de maior ou menor recessão com certeza terá influência
sobre os resultados do plano de habitação popular.
3-Combinar as diferentes possibilidades de comportamento das variáveis e construir três cenários
possíveis que poderão constituir o contexto do plano.
4-Identificar o cenário mais provável de realização do plano.
A situação objetivo deve ser repensada à luz do cenário mais provável para o plano. Cada descritor
deverá ser transformado num resultado esperado, como decorrência das prováveis intervenções so-
bre o problema.
Por fim, deve-se analisar as possibilidades de realização das operações/ações e redefinir a Situação
Objetivo (somente o VDR) para os demais cenários.
Tomando como referência o cenário mais provável, é necessário definir os recursos, produtos e re-
sultados esperados para as ações elaboradas anteriormente. Deve-se ainda identificar os responsáveis
Elizabeth Artmann
pelas operações/ações e o tempo necessário à sua realização.
Os recursos deverão ser definidos de forma bem específica, por exemplo:
recursos políticos: decisão sobre realização de convênio de cooperação técnica;
recursos econômicos: 3 microcomputadores 486 com valor monetário estimado;
Curso de
recursos cognitivos: conhecimento sobre montagem e manutenção de sistemas em rede. Desenvolvimento
Gerencial
Os produtos, como já afirmado, correspondem aos efeitos imediatos esperados para cada operação e do SUS
ação. Expressam bens e serviços produzidos, devendo ser bem precisos e de preferência quantificados. COLETÂNEA
DE TEXTOS
Os resultados correspondem aos efeitos finalísticos das ações (impacto) na situação analisada, espe-
rados como consequência dos produtos alcançados.
Nesse momento é realizada a análise de viabilidade do plano nas suas várias dimensões: política,
econômica, cognitiva, organizativa. No momento anterior já é feita uma pré-análise de viabilidade
mas agora é necessário um cálculo mais profundo através da simulação. Cabe lembrar a importância
de uma análise de viabilidade bem feita em situações em que o ator não controla todos os recursos
Curso de
necessários para a realização do plano.
Desenvolvimento
Gerencial Caso a análise de viabilidade resulte negativa, indicando operações não viáveis é necessário pensar
do SUS
na construção de estratégias que possam torná-las viáveis. A estratégia é necessária tanto para as ope-
COLETÂNEA
DE TEXTOS
rações que exigem cooperação com outros atores como para as de oposição e confronto e a escolha da
melhor estratégia depende do tipo das operações e da relação de forças, ou seja, dos recursos que
cada ator pode mobilizar a seu favor.
um instrumento a favor da visão multissetorial
O Planejamento Estratégico Situacional no nível local:
Elizabeth Artmann
bem um código como por exemplo x1, x2, x3 etc., sendo que x1 pode significar o controle dos recur-
sos financeiros de uma secretaria municipal de saúde, x2 pode ser o controle dos votos da maioria na
câmara de vereadores dos quais depende a decisão política sobre alguma operação, x3 o controle da
capacidade instalada para atendimento em saúde (leitos, enfermarias etc.).
O resultado dessa análise permite distinguir as operações de conflito viáveis das não viáveis. Com
Curso de
relação às não viáveis é necessária a construção de estratégias, especialmente se tais operações têm Desenvolvimento
Gerencial
um papel fundamental na viabilização do plano como um todo. do SUS
Vejamos quais seriam os possíveis meios estratégicos. O PES nos aponta cinco possibilidades. COLETÂNEA
DE TEXTOS
1. A utilização de estratégias específicas que podem ser classificadas, segundo Matus (1994b), em:
259
4. A elaboração da operações em forma de módulos que se adaptem às mudanças do plano e do cená-
rio, modificando-se determinados aspectos para atingir os objetivos previstos.
5. A trajetória ou ordenação temporal das operações. A melhor trajetória é a que respeita a prece-
dência de determinadas operações e permite uma acumulação progressiva de poder que ajude na
viabilização do plano.
As estratégias devem ser voltadas para os atores contrários à ação ou para aqueles indiferentes, vi-
sando a busca de apoio. Pode ser empregado mais de um tipo de estratégia, como por exemplo, a
de autoridade conjugada com uma estratégia de persuasão. Sempre que possível, segundo Matus,
é preferível evitar a confrontação direta e o conflito aberto pelo alto desgaste que pode significar.
Melhor é investir em estratégias de negociação e cooperação na busca de maior apoio e legitimação
para os projetos.
A construção de um encadeamento lógico e estratégico das ações corresponde à montagem da traje-
tória estratégica, o que permite ao ator eixo acumular poder ou evitar o desgaste político, facilitando
o desenvolvimento de cada ação do plano. De forma prática, a trajetória busca combinar da melhor
maneira possível, num dado horizonte temporal, operações consensuais e operações conflitivas de
Elizabeth Artmann
modo que as operações consensuais possam abrir caminho para as outras. É necessário definir um
período de tempo para a realização do plano.
A trajetória poderá ser elaborada graficamente, utilizando-se apenas os símbolos que representam as
operações interligadas por setas, onde “T” significa um período de tempo, no caso, de seis meses; OP
Curso de = operação 1, 2 etc. e “a” refere-se às ações.
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
um instrumento a favor da visão multissetorial
O Planejamento Estratégico Situacional no nível local:
As estratégias utilizadas em relação aos atores podem mudar ao longo do tempo, o que deve ser ob-
servado, atualizando-se a informação. Da mesma forma, a trajetória pode ser alterada.
260
1. A Agenda do Dirigente: em nível local o “dirigente” pode ser uma equipe de trabalho responsável
pelo plano. Ela deve se preocupar com os problemas e questões importantes e delegar os demais.
Não devemos esquecer que estamos tratando de planejamento estratégico, portanto o plano é sele-
tivo, trata das questões estratégicas, sendo que todas as demais devem fazer parte da programação
de atividades que é extensiva. As questões estratégicas e as questões de rotina devem ser tratadas
de forma diferenciada. Se todos se preocupam com tudo com a mesma intensidade, no mínimo,
não se alcançam soluções criativas. Essa questão é fundamental, pois é muito comum os dirigen-
tes gastarem praticamente todo o tempo com urgências/emergências e negligenciarem o que é
importante e estratégico. As questões urgentes sempre parecem importantes pela premência do
tempo, mas, sem a concentração da atenção e do tempo nos problemas estratégicos, não é possível
alcançar a situação objetivo.
2. Sistema de Petição de Prestação de Contas: em cada instituição local, em cada departamento,
até no nível mais descentralizado deve imperar o hábito - como rotina formal - de pedir e prestar
contas sobre cada atividade. Deve-se prestar contas regularmente do andamento das operações
que compõem o plano. Para que a prestação de contas se efetive realmente, deve haver alguém que
Elizabeth Artmann
tenha a função de solicitar e pessoas concretamente responsáveis pelas operações e cada uma das
ações do plano. Por isso a ênfase no momento normativo do desenho das operações na responsa-
bilização pessoal pelas atividades.
3. Sistema de Gerência por Operações: deve constituir-se em um sistema recursivo, até os níveis
mais operacionais (ações, subações) guiado pelo critério de eficácia, ou seja, como as operações e
ações realizadas afetam o VDP dos problemas. Sem esta responsabilização, torna-se impossível a Curso de
Desenvolvimento
avaliação do grau de realização do plano e das necessidades de adaptação ou possível revisão me- Gerencial
do SUS
diante mudanças na situação.
COLETÂNEA
Ao lado desses, é fundamental o Sistema de Monitoramento ou Acompanhamento e Avaliação do Plano, o DE TEXTOS
qual vai suprir as demandas de informação dos outros sistemas acima e permitir avaliar o desenvolvi-
Curso de
Desenvolvimento A matriz “Série Comparada” exige uma análise específica de cada descritor a partir da prestação de
Gerencial
do SUS
contas sistemática que permita a construção de uma série comparada. Essa lógica deve ser aplicada à
COLETÂNEA
análise do desenvolvimento das operações.
DE TEXTOS
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O Planejamento Estratégico Situacional no nível local:
Nem sempre é possível trabalhar com sistemas informatizados e sofisticados. Devido ao alto custo na
produção, distribuição e utilização de informações, muitas localidades do país ainda estão muito longe
do acesso a esse tipo de sistemas. Contudo, sempre é necessário trabalhar com informações e a melhoria
da qualidade dessas informações deve ser vista de forma prioritária em qualquer realidade. Na ausência
do acesso a tecnologias mais avançadas, deve-se trabalhar a informação através de processos mais arte-
sanais e buscar a produção principalmente daquelas necessárias ao acompanhamento do plano.
262
6. Considerações finais
Numa realidade fragmentada e permeada por questões complexas, onde os problemas sociais se
multiplicam, exigindo o posicionamento dos diferentes atores, inclusive da comunidade organizada
no exercício de sua cidadania na busca de soluções mais integrais, torna-se necessário um enfoque
de planejamento abrangente e participativo que possa dar conta dessa complexidade e que favoreça a
articulação dos distintos setores no enfrentamento dos problemas.
Iniciativas como os Projetos Multissetoriais Integrados, do BNDES, entre outras, que ampliam a
perspectiva com relação à abordagem das questões sociais representam um desafio e precisam ser
apoiadas com metodologias e técnicas adequadas.
Procuramos ao longo do texto argumentar a favor de uma visão ampla e descentralizada da reali-
dade problemática. Consideramos o PES como um enfoque capaz de proporcionar os instrumentos
de análise dos problemas bem como ferramentas operacionais para o enfrentamento dos mesmos e
destacamos as questões, a seguir.
A explicação situacional proporciona uma metodologia de análise da realidade que equivale a um
Elizabeth Artmann
enfoque multidisciplinar e que aponta para a necessidade de captar a problemática social como resul-
tante de um entrelaçamento de setores e que não pode ser reduzida a um processo de departamen-
talização analítica.
A técnica de análise de cenários e o desenho modular e flexível do plano favorecem uma adaptação
frente às mudanças conjunturais. A análise e construção de viabilidade proposta pelo enfoque per- Curso de
mite a identificação de recursos críticos e dos atores potencialmente envolvidos no plano de ação, os Desenvolvimento
Gerencial
quais não se restringem necessariamente a órgãos governamentais, ampliando-se o foco de interven- do SUS
ção. Diante da baixa governabilidade do ator principal, o PES não propõe o abandono do plano. Uma COLETÂNEA
DE TEXTOS
das possibilidades de ampliação da governabilidade sobre o plano é a busca de adesões, considerando
tanto atores vinculados a órgãos de governo, como atores da sociedade civil, desde que relevantes
263
Referências
ARTMANN, E., 1993. O Planejamento Estratégico Situacional: A Trilogia Matusiana e uma Proposta para o Nível Local de Saúde
(Uma Abordagem Comunicativa). Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação
Oswaldo Cruz.
ARTMANN, E., AZEVEDO, C.S. & SÁ, M.C., 1997. Possibilidades de aplicação do enfoque estratégico de planejamento
no nível local de saúde: análise comparada de duas experiências. Rio de Janeiro: Cadernos de Saúde Pública, 13(4):723-740,
out-dez, 1997.
GADAMER, 1975. Truth and Method apud Matus, C., 1987.
MATUS, C., 1982. Política y Plan. Caracas: Iveplan.
Matus, C., 1987. Adiós Sr. Presidente. Caracas: Pomaire Ensayos.
Matus, C., 1993. Política, Planejamento e Governo. Brasília: IPEA.
Matus, C., 1994a. El PES en la Practica. Caracas: Fundación ALTADIR. (mimeo)
Matus, C., 1994b. Guia de Análisis Teórico. Curso de Governo e Planificação. Caracas: Fundación Altadir.
Ortega y Gasset, 1936. História como Sistema apud Matus, C. 1987.
Rivera, F.J.U. & Artmann, E., 1993. Esquema Operativo do Planejamento Estratégico para o Nível Local. Revista do DAPS/ENSP.
Sá, M.C. & Artmann, E., 1994. O Planejamento estratégico em saúde: desafios e perspectivas para o nível local. In:
Elizabeth Artmann
Planejamento e Programação Local da Vigilância da Saúde no Distrito Sanitário (Mendes, E.V.,org.), pp19-44, Brasília: OPAS.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
um instrumento a favor da visão multissetorial
O Planejamento Estratégico Situacional no nível local:
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Curso de
Desenvolvimento
DADOS E INFORMAÇÃO EM SAÚDE: Gerencial
do SUS
A informação é necessária para qualquer decisão que tomemos em nossa vida cotidiana. Afinal de
contas, não seria bom acreditar na previsão do tempo de que vai chover, hoje, e levar o guarda-chuva?
Fazendo um paralelo com a área da saúde, informações também são imprescindíveis para que tome-
mos as decisões corretas para melhorar o nível de saúde de uma determinada população. Esta po-
pulação pode ser a do bairro no qual moramos ou trabalhamos, de uma cidade, de um país, de uma
escola ou até de um presídio.
Para termos a informação necessária, precisamos de dados. No entender de alguns autores (LAU-
RENTI et al., 1987; MORAES, 1994), os “dados” se diferenciam de “informação”, que por sua vez
se diferencia de “indicadores”, isto é:
Dados: são a “matéria-prima” da informação, ou seja, são valores ainda não trabalhados. Uma relação
de nascidos vivos segundo a idade materna e o peso ao nascer constitui-se um exemplo de “dados”.
1
Publicado originalmente em: ANDRADE, Selma Maffei de; SOARES, Darli Antonio. Dados e informação em saúde: para que
servem? In: ANDRADE, Selma Maffei de; SOARES, Darli Antonio; CORDONI JUNIOR, Luiz. Bases da saúde coletiva. Londrina:
UEL, 2001. p. 161-181.
265
Informação: é a tradução dos dados, após estes serem trabalhados, de forma que permita alterar
o conhecimento de outras pessoas. Faz o papel de “ponte” entre os dados e os usuários dessa infor-
mação (MORAES, 1994). A informação refere-se à descrição de uma situação real associada a um
referencial explicativo, ou seja, representa uma realidade com vistas a explicar ou entender situações
e problemas, de forma a possibilitar intervenções (MOTA e CARVALHO, 1999). Evidentemente, as
formas de explicar e entender as situações e problemas, tendo como base a informação, pode variar,
dependendo da experiência e “visão de mundo” (juízo de valor) de cada um. Como exemplo, a infor-
mação sobre a proporção de nascidos vivos com baixo peso ao nascer (inferior a 2500 gramas) pode
Selma Maffei de Andrade e Darli antonio Soares
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
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DE TEXTOS
Dados e informações em saúde: para que serve?
Na área de saúde, geralmente, trabalhamos com “números” para avaliar o nível de saúde de uma
população, produzindo os chamados “indicadores de saúde”. Quando os casos de doenças ou eventos
acontecem, estes entram na contagem, inicialmente, como valores brutos (por exemplo 550 casos de
dengue). Valores brutos, apesar de importantes para o planejamento de recursos a serem gastos com
o tratamento/seguimento dos casos (consultas, medicamentos, leitos hospitalares, etc.), não permi-
tem a realização de comparações com outros locais, entre grupos de pessoas ou em um mesmo local
ao longo dos anos, pois a população exposta ao risco de adquirir a doença ou sofrer o agravo pode
ser diferente em tamanho. Exemplificando: 100 casos de uma doença em Londrina é, proporcional-
mente, mais preocupante do que 100 casos da mesma doença em São Paulo, porque a população de
São Paulo é muito maior que a de Londrina.
Assim, usamos uma “padronização”, de forma que o valor numérico possa ser comparado. Dizemos:
ocorreram “x” casos da doença por 100.000 habitantes. Os 100.000 habitantes correspondem à
266
mesma quantidade em qualquer local. Dessa forma, os indicadores são construídos por meio de uma
razão (frequência relativa), em forma de proporções ou coeficientes, representados a seguir.
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Exemplos de proporções utilizadas na área de saúde: mortalidade proporcional por determinada cau-
sa, proporção de nascidos vivos com baixo peso ao nascer, mortalidade proporcional de menores de
1 ano, mortalidade proporcional de 50 anos ou mais (Indicador de Swaroop e Uemura), etc.
Por exemplo, se quisermos calcular o Indicador de Swaroop e Uemura (proporção de óbitos com
idade igual ou maior a 50 anos), realizamos os cálculos da seguinte regra de três:
267
Os coeficientes também são construídos em forma de razões e, geralmente, o denominador re-
presenta a população exposta ao risco de sofrer o evento que está no numerador. Grande parte dos
coeficientes necessita, no denominador, de dados sobre o número de habitantes. Esse número é,
geralmente, obtido através dos recenseamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) ou através de estimativas nos anos entre os Censos. Para o cálculo, estima-se a população
para o meio do ano (01 de julho), através de diferentes métodos, pressupondo que este valor médio é
o que melhor representa a população exposta em todo o ano (LAURENTI et al., 1987).
Para calcular um coeficiente, basta saber qual o tipo de denominador (habitantes, nascidos vivos,
Selma Maffei de Andrade e Darli antonio Soares
mulheres em idade fértil, etc.) que será utilizado e que representa a população sob risco de sofrer o
evento que está no numerador. Habitantes e nascidos vivos são os denominadores mais utiliza-
dos para cálculo de coeficientes em nível da população.
Ao invés de usarmos a fórmula, podemos também calcular por regra de três simples. Se numa popu-
lação de 50.000 habitantes temos 10 óbitos por diarreia infecciosa, podemos calcular o coeficiente
de mortalidade específico por diarreia infecciosa, nessa população, utilizando o padrão de 10 n (no
presente caso, 100.000 habitantes):
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Dados e informações em saúde: para que serve?
Observe que os 100.000 habitantes tornam-se a base para que possamos fazer comparação entre lo-
cais com diferentes tamanhos de população e representam o 10n colocado na fórmula de proporções
e coeficientes, sendo que, no presente caso, foi 105.
Como referido, o 10n é utilizado, em geral, para que o valor do resultado da divisão entre o numera-
dor/denominador não seja muito fracionado (pequeno), mas o valor do “n” também pode ser usado
para evitar que esse resultado seja muito grande (200, por exemplo). No caso do coeficiente de mor-
talidade específico por diarreia infecciosa, cujo resultado deu 20,0 por 100.000 habitantes, se não
multiplicássemos por 100.000 (105), o resultado seria 0,0002 (10 dividido por 50.000). Esse valor
(0,0002) é muito mais difícil de ser comparado do que 20,0 por 100.000 habitantes.
Imaginemos agora duas situações: uma doença que tem baixa incidência na população (raiva humana)
e outra que tem alta prevalência (verminose). Imaginemos que numa população de 7.000.000 de
habitantes ocorreram 7 casos de raiva humana e que 3.500.000 tinham verminose. As formas de
apresentação dessas informações (todas corretas) estão descritas no Quadro 1:
268
QUADRO 1 – Coeficientes de incidência da raiva humana e de prevalência da verminose em
uma dada população, em determinado ano, em diferentes formas de apresentação
269
Já a “cobertura” dos problemas de saúde refere-se à proporção de casos ou eventos que se consegue
captar em relação ao que realmente ocorre na população. Dessa forma, devemos lembrar que algu-
mas doenças podem ter vários casos assintomáticos (um exemplo é a cólera). Assim, os casos com
sintomas são apenas uma parcela do total de casos que realmente acontecem (casos sintomáticos e as-
sintomáticos). Entre os casos sintomáticos, ainda, pode ser que vários não procurem ou não tenham
acesso ao serviço para tratamento. Desses que chegam até o serviço, pode ser, ainda, que uma pro-
porção não tenha o diagnóstico correto feito. E, mesmo entre aqueles que tiveram o diagnóstico cor-
reto feito, podem ainda ocorrer casos não informados ao sistema de informação sobre aquela doença
Selma Maffei de Andrade e Darli antonio Soares
ou agravo. O que sobra (com diagnóstico e informados) representa, portanto, a “ponta de iceberg”
do que acontece em termos de doença na população. A proporção de casos que não são notificados
é conhecida como “subnotificação” e a proporção de casos em que o agravo não é registrado (por
exemplo, um óbito de criança menor de um ano) é conhecida como “sub-registro”.
FIGURA 1 – Mortalidade proporcional por causas mal definidas, causas externas de tipo
ignorado e neoplasias de tipo ignorado de residentes em Londrina, em 1992 e 1995.
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Dados e informações em saúde: para que serve?
Como exemplo de sub-registro, temos casos de existência de cemitérios clandestinos, em alguns lo-
cais do Brasil, nos quais as pessoas são enterradas sem a exigência (que é estabelecida por legislação)
do atestado de óbito. Outro exemplo de sub-registro é a criança que nasce viva e morre após alguns
minutos. Muitos desses casos são classificados, erroneamente, como “nascidas mortas”, interferindo
no cálculo do coeficiente de mortalidade infantil, um dos principais indicadores da área de saúde.
Com relação à oportunidade dos dados, como o próprio nome sugere, estes têm que ser conheci-
dos por quem vai fazer a ação antes que seja muito tarde (intervenção em tempo hábil). Por exemplo,
um caso de sarampo tem que ser imediatamente comunicado aos responsáveis pela Vigilância Epide-
miológica da Unidade de Saúde ou da cidade, pois há necessidade de estabelecimento rápido de ações
de controle (bloqueio da transmissão) para os comunicantes do caso.
270
Levantamento de dados (tipos e fontes)
Os levantamentos de dados podem ser de três tipos: contínuos, periódicos e ocasionais
(BERQUÓ et al., 1981).
Levantamentos contínuos: quando os dados vão sendo registrados à medida em que ocorrem.
Exemplos: óbitos, nascimentos, casamentos, divórcios, doenças de notificação obrigatória.
Levantamentos periódicos: são aqueles que acontecem periodicamente. Exemplo: recensea-
mento da população pelo IBGE, que é realizado, em geral, a cada 10 anos.
Tipos de dados
Com relação às fontes onde os dados podem ser obtidos, estes se dividem em:
Dados secundários (ou de fonte secundária): quando os dados já são existentes (arquivados,
registrados, processados ou publicados). Por exemplo, ao estudar a incidência do sarampo com
base nos casos registrados pelo serviço de saúde de um município, diz-se que está se trabalhando
com dados secundários.
Dados primários (ou de fonte primária): são os dados que são levantados diretamente na po-
pulação pesquisada. Por exemplo, um pesquisador vai coletar sangue na população para verificar Curso de
Desenvolvimento
a prevalência de anemia ferropriva. Outro exemplo: levantamento de opiniões da população sobre Gerencial
o serviço de puericultura prestado na Unidade Básica de Saúde. do SUS
COLETÂNEA
Atualmente, há consenso de que a informação em saúde não se refere somente à produzida pelo DE TEXTOS
setor Saúde.
Dados relacionados à qualidade de vida (incluindo as desigualdades sociais), embora mais difíceis
de serem obtidos, são também importantes para avaliação do nível de saúde. Nestes se incluem
as condições demográficas, alimentação, educação, condições de trabalho e emprego, transporte,
condições de moradia e saneamento, lazer e segurança, acesso aos serviços de saúde, entre outros,
271
enfim, condições que se relacionam às políticas de desenvolvimento social e econômico e às políticas
de saúde (LAURENTI et al., 1987; MORAES, 1994; MOTA e CARVALHO, 1999).
resultado; plano; método”. Dessa forma, um sistema de informação em saúde pode ser considerado
como “um conjunto de componentes que atuam integrada e articuladamente e que têm como propó-
sito obter e selecionar dados e transformá-los em informação” (MOTA e CARVALHO, 1999). Mo-
raes (1994) complementa que essa informação deveria ser a “necessária para o processo de decisões,
próprio das organizações e indivíduos que planejam, financiam, administram, proveem, medem e
avaliam os serviços de saúde”.
Essas definições nos remetem, primeiramente, à necessidade de articulação entre os diferentes níveis
do sistema de saúde (municipal, estadual e federal) na organização e funcionamento de um sistema
nacional de informação em saúde. Evidentemente, a parte que vai ser responsável por coletar e, se
possível, aprimorar os dados em saúde será o nível municipal, dado que é no município que os even-
tos acontecem e os dados são coletados, muitas vezes processados (digitados), e encaminhados, pos-
teriormente, ao nível estadual que, por sua vez, os encaminhará para o nível federal, para comporem
Curso de o quadro geral de informações no país.
Desenvolvimento
Gerencial Em segundo lugar, mas não menos importante, a informação deve ser utilizada, também, por todos
do SUS
os indivíduos envolvidos no planejamento, gestão (administração) e avaliação dos serviços de saúde,
COLETÂNEA
DE TEXTOS pois a informação não é um fim em si mesma, mas um meio para, em última instância, melhorar o
nível de saúde das populações para as quais essas informações são produzidas.
Dados e informações em saúde: para que serve?
Não devemos nos esquecer, neste contexto, que a informação sobre a avaliação da situação de saúde
deve ser disponibilizada aos próprios usuários dos serviços de saúde, os quais, por meio de instâncias
de controle social (como o Conselho Municipal de Saúde), podem interferir mais efetivamente nas
decisões setoriais a serem tomadas. Apesar de parecer óbvia esta afirmação, é importante ressaltar
que na época da ditadura militar, no Brasil, houve, durante muito tempo (meses), proibição de veicu-
lação de informação sobre a ocorrência de casos de meningite meningocócica em São Paulo, no início
da década de 1970. Ainda hoje, alguns dirigentes da área de saúde (secretários municipais ou esta-
duais) obstaculizam ou até impedem a divulgação correta de dados sobre seu município ou estado.
Outro aspecto que deve ser mencionado é o “retorno” da informação para aqueles que a produzem
(quem atende o paciente e registra a informação), pois somente assim essa informação será realmente
valorizada e aprimorada. Assim, para quem registra ou coleta os dados brutos, que serão transforma-
dos posteriormente em informação, além da necessidade de estar claro como coletar a informação,
deveriam estar claras, também, as respostas a duas perguntas que nos faz MORAES (1994): “Por
que se registra esta informação?” “Para que será utilizada?” [grifo nosso].
As Nações Unidas (apud MORAES, 1994, p. 30) recomendam, dessa forma, para um adequado fun-
cionamento de um sistema de informação em saúde, que:
1. os procedimentos de coleta [dos dados] devem estar convenientemente normatizados;
272
2. os manuais de operação devem prever todas as situações possíveis;
3. as pessoas responsáveis pelas atividades devem conhecer a importância do que fazem, em relação a todo o sistema;
4. deve haver supervisão e assessoria adequadas.
A Figura 2, extraída de Moraes (1994), ilustra o fluxo geral para a produção de informações, desde
a origem dos dados (coleta) até as opções de decisão, com consequente retorno para a origem dos
dados, redefinindo-os, se necessário.
No Brasil, há diversos sistemas de informação de interesse à saúde coordenados por órgãos do gover-
Curso de
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do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
273
O Sistema Único de Saúde (SUS) conta com sistemas específicos, gerenciados pelo Ministério da
Saúde. Entre estes se destacam o sistema de informação sobre mortalidade (SIM), sobre nascidos
vivos (SINASC), sobre agravos de notificação obrigatória (SINAN), sobre serviços e atendimentos
ambulatoriais (SIA) e sobre internações hospitalares (SIH) (MOTA e CARVALHO, 1999).
Três dos sistemas específicos da área de saúde (o SIM, SINASC e SINAN) são gerenciados, em nível
nacional, pelo Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI) e dois (SIA e SIH) pela Secretaria de As-
sistência à Saúde, ambos órgãos do Ministério da Saúde. O desenvolvimento da tecnologia e suporte
aos programas de computador são feitos pelo Departamento de Informática do SUS, mais conhecido
Selma Maffei de Andrade e Darli antonio Soares
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DE TEXTOS
Dados e informações em saúde: para que serve?
O Sistema mais antigo, criado em 1975, é o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), sendo
um dos mais utilizados para avaliação do nível de saúde. Origina-se da declaração de óbito e uma das
variáveis mais importantes é a causa básica do óbito. O conhecimento da causa básica é importante
para fins de prevenção, pois a causa básica significa, para mortes por causa natural, “a doença ou lesão
que iniciou a cadeia de acontecimentos patológicos que conduziram diretamente à morte” ou, para
mortes por causas não naturais, também chamadas de causas externas, “as circunstâncias do acidente
ou violência que produziu a lesão fatal” (OMS, 1993) [grifos nossos].
Assim, se soubermos qual a doença ou evento que começou todo o processo que levou ao óbito,
poderemos tentar intervir precocemente nessa cadeia de eventos, prevenindo a causa inicial e, conse-
quentemente, os processos decorrentes dessa causa que acabam por ocasionar a morte. Um exemplo
é um caso de sarampo que complicou, levando a uma broncopneumonia e, depois, insuficiência res-
piratória, causa final que ocasionou o óbito de uma criança. Nossa meta, portanto, deve ser prevenir
o sarampo (que é a causa básica), para evitar os dois processos posteriores (broncopneumonia e
insuficiência respiratória). Outro exemplo (de causa não natural, ou causa externa) é o pedestre que
274
foi atropelado por caminhão, teve traumatismo craniano e hemorragia cerebral. A causa básica será,
portanto, as circunstâncias do acidente (pedestre atropelado por caminhão), sendo as demais causas
(traumatismo intracraniano e hemorragia cerebral) decorrentes desse acidente.
Para classificar a causa básica e demais causas de óbito informadas numa declaração de óbito, antes
desses dados entrarem no sistema de informações, faz-se necessário o uso de uma codificação que
seja internacional, a fim de proporcionar consistência e comparabilidade. Para isso, usamos a Classi-
ficação Internacional de Doenças (CID).
COLETÂNEA
DE TEXTOS
275
A CID-10 pode ser utilizada também para a codificação dos dados de doenças (morbidade) e por
contatos com os serviços de saúde (para pré-natal ou vacinação, por exemplo), sendo já utilizada
nas internações do SUS (Sistema de Informações Hospitalares – SIH) e até por convênios médicos,
como a Unimed.
O Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) foi implantado em 1990 no Brasil e, em
Londrina, em 1 de setembro de 1993 (MELLO JORGE et al., 1997). Vem se constituindo em um
importante instrumento de avaliação do perfil de nascidos vivos e para a vigilância de recém-nascidos
que possam apresentar maior risco de adoecer ou morrer.
Selma Maffei de Andrade e Darli antonio Soares
Em Londrina, as Declarações de Nascidos Vivos (DN) são recolhidas pelo Serviço Municipal de Saúde,
nos próprios hospitais onde as crianças nascem, praticamente todos os dias. Posteriormente são codi-
ficadas e digitadas na Diretoria de Informações em Saúde (DIS) e comunicadas as Unidades Básicas de
Saúde (de forma online, por intermédio do sistema Hygia do Serviço Municipal de Saúde) sobre nasci-
mentos de crianças “de risco” em suas áreas de abrangência, quando estes ocorrem, para agendamento
de consulta precocemente e busca ativa da criança, se for o caso. Esses critérios de riscos foram esta-
belecidos quando da implantação do SINASC em Londrina, sendo redefinidos recentemente, ficando,
dessa forma, os seguintes critérios: crianças com peso ao nascer igual ou abaixo de 2700 gramas, de mães com
18 anos ou menos, nascidas prematuras, com Apgar no quinto minuto menor ou igual a 7, ou por algum outro critério
definido pelo médico do hospital. Além disso, toda semana, é feita e encaminhada uma listagem de todos os
nascidos vivos de cada área de abrangência das Unidades de Saúde, o que possibilita às Unidades estarem
avaliando a cobertura de suas ações ao grupo de crianças menores de 1 ano (vacinação, puericultura,
Curso de
Desenvolvimento etc.), além de realizarem visita domiciliária para as crianças que não comparecem para vacinação.
Gerencial
do SUS O Sistema de Informação sobre Agravos de Notificação (SINAN) processa as informações sobre as
COLETÂNEA doenças que são de notificação obrigatória (estabelecidas por legislação e portarias do Ministério da
DE TEXTOS
Saúde), sendo um instrumento importante para a vigilância epidemiológica dessas doenças. Permite
cálculo de indicadores como incidência, prevalência e letalidade e, dessa forma, possibilita
Dados e informações em saúde: para que serve?
detectar áreas de maior risco para a ocorrência dessas doenças, além de tendências dos agravos ana-
lisados (MOTA e CARVALHO, 1999).
A última portaria do Ministério da Saúde a respeito das doenças que devem ser notificadas (Portaria
1461, de 22 de dezembro de 1999), estabelece as seguintes doenças de notificação obrigatória em
todo o território nacional: cólera, coqueluche, dengue, difteria, doença de Chagas (casos agudos), doença
meningocócica e outras meningites, febre amarela, febre tifoide, hanseníase, hantaviroses, hepatite B, hepatite C,
leishmaniose visceral, leptospirose, malária (em área não endêmica), meningite por Haemophilus influenzae, pes-
te, poliomielite, paralisia flácida aguda, raiva humana, rubéola, síndrome da rubéola congênita, sarampo, sífilis
congênita, síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids), tétano e tuberculose (BRASIL, 2000a).
Os estados e municípios podem acrescentar outras doenças em seus sistemas de vigilância epidemio-
lógica, desde que justificada sua importância. Em Londrina, o SINAN funciona desde 1997. Antes
desse ano, existia o Registro de Doenças de Notificação Obrigatório (RDNO), que atuava de forma
semelhante, sendo ainda mantido atualmente, pois nem todas as doenças que são notificadas no Para-
ná e em Londrina são cobertas pelo SINAN. Exemplos de doenças que são notificadas em Londrina
e não em nível nacional: hepatite A, diarreia aguda, conjuntivites, várias doenças sexualmente trans-
missíveis, teníase e cisticercose, intoxicação por agrotóxicos, intoxicação alimentar, acidentes com
animal peçonhento (aranha, cobra, taturana), etc.
276
O Sistema de Informação Hospitalar (SIH) também vem se firmando como um importante sistema
de informações para a área de saúde e utiliza a Autorização de Internação Hospitalar (AIH) como
matéria-prima de informação. A AIH é preenchida para toda internação que é realizada com paga-
mento pelo SUS; dessa forma, ainda que os dados não cubram a totalidade das internações que ocor-
rem (excluem os pacientes particulares e os que possuem convênio ou plano de saúde), a cobertura
desse sistema pode atingir até 90% das internações em alguns locais (LEBRÃO, 1997), pois o SUS
ainda é o grande financiador do sistema de saúde brasileiro. Recentemente, Carvalho (2000) realizou
um estudo (dissertação de mestrado) sobre as internações hospitalares ocorridas no Município de
277
consolidada servirá, com certeza, para ampliar a utilização dos dados produzidos, contribuindo para
aprimorá-los e, quem sabe, colaborar para o estabelecimento de políticas voltadas para a redução das
desigualdades sociais e de saúde que hoje observamos em nosso país.
Referências
BERQUÓ, E.S. et al. Bioestatística. 1. ed. rev. São Paulo: E.P.U., 1981.
BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Lista nacional de doenças de notificação compulsória.
Disponível em: <http://www.fns.gov.br/epi/epi01.htm>. Acesso em: 5 abr. 2000a.
Selma Maffei de Andrade e Darli antonio Soares
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Datasus. Indicadores e dados básicos Brasil/1997. Disponível em
http://www.datasus.gov.br/cgi/idb97/ apresent.htm. Acesso em: 6 abr. 2000b.
CARVALHO, D.M. Grandes sistemas nacionais de informação em saúde: revisão e discussão da situação atual. Informe
Epidemiológico do SUS, Brasília, ano VI, n. 4, p. 7-46, 1997.
CARVALHO, B.G. Internações hospitalares em Londrina: 1990 – 1998. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) –
Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2000.
FERREIRA, A.B.H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
LAURENTI, R. et al. Estatísticas de saúde. 2. ed. rev. São Paulo: E.P.U., 1987.
LAURENTI, R. Análise da informação em saúde: 1893-1993, cem anos da Classificação Internacional de Doenças.
Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 25, n. 6, p. 407-17, 1991.
LEBRÃO, M.L. Estudos de morbidade. São Paulo: Edusp, 1997.
MELLO JORGE, M.H.P.; GOTLIEB, S.L.D.; ANDRADE, S.M. Análise dos registros de nascimentos vivos em
localidade urbana no Sul do Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 78-89, fev. 1997.
Curso de MORAES, I.H.S. Informações em saúde: da prática fragmentada ao exercício da cidadania. São Paulo: Hucitec; Rio de
Desenvolvimento Janeiro: Abrasco, 1994.
Gerencial
do SUS MOTA, E.; CARVALHO, D.M. Sistemas de informação em saúde. In: ROUQUAYROL, M.Z.; ALMEIDA FILHO,
COLETÂNEA N. Epidemiologia & Saúde. 5. ed. Rio de Janeiro: Medsi, 1999. Cap. 22, p. 505-21.
DE TEXTOS ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Manual de classificação estatística internacional de doenças e problemas
relacionados à saúde. 10. rev. São Paulo: Centro Colaborador da OMS para Classificação de Doenças em Português,
Dados e informações em saúde: para que serve?
1993. v.1.
278
Para saber mais
(Bibliografia complementar)
1. MATTOS, Ruben Araújo de. Pensando um pouco sobre planejamento: anotações sobre planejamento estratégico
situacional. (Mimeo).
2. BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema de Planejamento do SUS: uma construção coletiva – Instrumentos Básicos.
Brasília: MS, 2006. (Série B. Textos Básicos de Saúde. Série Cadernos de Planejamento, v. 2).
3. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 493, de 13 de março de 2006. Aprova a relação de indicadores
da atenção básica – 2006, cujos indicadores deverão ser pactuados entre municípios, estados e o Ministério da
Saúde. Brasília: MS, 2006.
4. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 91, de 10 de janeiro de 2007. Regulamenta a unificação do
processo de pactuação de indicadores e estabelece os indicadores do Pacto pela Saúde, a serem pactuados por
municípios, estados e Distrito Federal. Brasília: MS, 2007.
5. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 91, de 10 de janeiro de 2007. Anexo I – Relatório de indicado-
res de monitoramento e avaliação do Pacto Pela Saúde - 2007 (Adaptação SESAB, 2007). Brasília: MS, 2007.
279
UNIDADE II
GERENCIAMENTO E ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA E
SERVIÇOS DE SAÚDE: INTEGRALIDADE E DIREITO À SAÚDE
Módulo 4: Modelos tecnoassistenciais
em saúde e avaliação do cuidado
Os atributos e dispositivos da integralidade na atenção básica: acolhimento, vínculo, escuta e responsabiliza-
ção.
Dimensões do acolhimento e do vínculo.
O modelo assistencial diz respeito ao modo como são organizadas, em uma dada sociedade, as ações
de atenção à saúde, envolvendo os aspectos tecnológicos e assistenciais. Ou seja, é uma forma de
organização e articulação entre os diversos recursos físicos, tecnológicos e humanos disponíveis para
enfrentar e resolver os problemas de saúde de uma coletividade.
Consideramos que no mundo existam diversos modelos assistenciais calcados na compreensão da
saúde e da doença, nas tecnologias disponíveis em determinada época para intervir na saúde e na doen-
ça e nas escolhas políticas e éticas que priorizam os problemas a serem enfrentados pela política de
saúde. Por esse motivo, ressaltamos que não há modelos certos ou errados, ou receitas que, quando
seguidas, dão certo. Observem o que nos diz Merhy sobre o assunto:
O tema de qualquer modelo de atenção à saúde, faz referência não a programas, mas ao modo de se
construir a gestão de processos políticos, organizacionais e de trabalho que estejam comprometidos
com a produção dos atos de cuidar do indivíduo, do coletivo, do social, dos meios, das coisas e dos
lugares. E isto sempre será uma tarefa tecnológica, comprometida com necessidades enquanto valo-
res de uso, enquanto utilidades para indivíduos e grupos. (Merhy, 2000:2)2
1
Publicado originalmente em: SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; ALVES, Carla Almeida. Modelos assistenciais em saúde:
desafios e perspectivas. In: MOROSINI, Márcia Valéria G. C.; CORBO, Anamaria D.Andrea (Orgs.). Modelos de atenção e a saúde
da família. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007. p. 27-41.
2
Modelo de atenção à saúde como contrato social - Texto apresentado na XI Conferência Nacional de Saúde.
287
Na década de 1920, com o incremento da industrialização no país e o crescimento da massa de tra-
balhadores urbanos, começaram as reivindicações por políticas previdenciárias e por assistência à
saúde. Os trabalhadores organizaram, junto às suas empresas, as Caixas de Aposentadoria e Pensão
(Caps), regulamentadas pelo Estado em 1923.
A partir da década de 1930, a política de saúde pública estabeleceu formas mais permanentes de atua-
ção com a instalação de centros e postos de saúde para atender, de modo rotineiro, a determinados
problemas. Para isso, foram criados alguns programas, como pré-natal, vacinação, puericultura,
Aluísio Gomes da Silva Júnior, Carla Almeida Alves
288
da biomedicina. Uma dessas evidências foi quanto a pouca efetividade da ação da biomedicina no
enfrentamento dos problemas de saúde gerados pelo processo acelerado de urbanização. Esse foi um
processo que ocorreu em vários países desenvolvidos concomitantemente. Doenças psicossomáticas,
neoplasias, violência, doenças crônico-degenerativas e novas doenças infecciosas desafiavam a abor-
dagem centrada em características individuais e biológicas do adoecer.
Podemos recorrer a uma brincadeira para enumerar as dores mais frequentes nas unidades de saúde.
Primeiro a dor de cabeça, no início do mês, depois a de barriga, no meio do mês, e, a seguir, a ‘dor
e um auxiliar para fazer sua operação, o que aumenta os custos com mão-de-obra especializada. Há COLETÂNEA
DE TEXTOS
também as especulações tecnológicas,3 ou seja, produtos e medicamentos, muitas vezes sem utilida-
de claramente definida, que substituem medicamentos tradicionais, aumentando o custo dos trata-
3
Sobre o conceito de tecnologia empregada no processo de trabalho em saúde, ver Abrahão, texto 'Tecnologias: conceito e relações
com o trabalho em saúde', no livro O Processo Histórico do Trabalho em Saúde, nesta coleção (N. E.).
289
Propostas alternativas
Nesse contexto dos anos 70, estabeleceu-se, internacionalmente, um debate sobre modelos de as-
sistência que levassem em conta as questões anteriormente mencionadas. Prevaleceram as propostas
que enfatizavam a racionalização do uso das tecnologias na atenção médica e o gerenciamento eficien-
te. A mais difundida foi a de atenção primária à saúde ou medicina comunitária.
Desde o início, porém, essa proposta foi alvo de uma polarização de debates. Havia os que desta-
cavam os aspectos de simplificação e racionalização, caracterizando a medicina comunitária como
Aluísio Gomes da Silva Júnior, Carla Almeida Alves
‘medicina pobre para os pobres’, e havia aqueles que viam a proposta como uma estratégia racionali-
zadora, importando-se com o acesso de toda a população aos reais avanços tecnológicos na saúde. No
Brasil, no final da década de 1970, essa proposta foi encarada por grupos de oposição ao governo mi-
litar como estratégia para redemocratizar a política e levar assistência à saúde à população em geral.
A partir da década de 1980, várias experiências de governo originaram correntes tecno-políticas que
contribuíram sobremaneira na avaliação do que vinha sendo feito e na sugestão de elementos impor-
tantes na organização de modelos assistenciais coerentes com as escolhas técnicas, éticas e políticas
daqueles que queriam a universalização da saúde.
Vários municípios organizaram redes de unidades de saúde para atenção primária com a ajuda das
universidades, como Niterói, Londrina, Campinas, e outros. Essas experiências serviram de base
para o Movimento de Reforma Sanitária que culminou na VIII Conferência Nacional de Saúde, em
1986. As diretrizes dessa Conferência ganharam forma de lei na Constituição de 1988 e na Lei Orgâ-
Curso de
Desenvolvimento
nica de Saúde (8.080/90) e transformaram-se em objetivos a serem perseguidos pela reorganização
Gerencial
do SUS
de um Sistema Único de Saúde (SUS), tais como:
COLETÂNEA Atendimento universal. todo cidadão tem direito à atenção à saúde e é dever do Estado promovê-la.
DE TEXTOS
A ‘Atenção à saúde deve ser integral’, ou seja, cada cidadão deve ser compreendido em suas di-
mensões biológicas, psicológicas e sociais. As equipes de profissionais e a rede de serviços devem
Modelos assistenciais em saúde: desafios e perspectivas
4
Sobre sentidos da integralidade ver Mattos (2001).
290
Em relação às várias alternativas estudadas, verificamos certo consenso no que diz respeito à refor-
mulação dos serviços de saúde:
A noção de território não é compreendida apenas do ponto de vista geográfico, mas como territó-
rio-processo, onde a sociedade se estrutura e reproduz a vida, organiza a cultura, vive a história.5
A definição de problema de saúde é construída de maneira mais ampla que as doenças, por meio de
uma sistematização de causas e consequências das situações que interferem na saúde da população,
na programação de ações e na avaliação de seu impacto sobre problemas identificados.
Curso de
Desenvolvimento A construção dos modelos assistenciais do SUS
Gerencial
do SUS Mais recentemente, em meados da década de 1990, após muitas relutâncias e até mesmo entraves
COLETÂNEA governamentais ao processo de implantação do SUS, foi implantada uma estratégia para mudança do
DE TEXTOS
modelo hegemônico, a Estratégia de Saúde da Família (ESF), financiada pelo Ministério da Saúde.
A disseminação desta estratégia e os investimentos na chamada rede básica de saúde ampliaram o
Modelos assistenciais em saúde: desafios e perspectivas
A maior parte das propostas tecnoassistencias desenvolvidas para o SUS centram-se na reorganiza-
ção da atenção básica. Mas é fundamental que haja transformações no âmbito hospitalar e em outras
partes do sistema de saúde. Uma mudança importante será desenvolver práticas humanizadas de aco-
lhimento de pessoas na atenção hospitalar, tais como a incorporação da presença de acompanhantes
e familiares na internação.
Outra mudança será visualizar os serviços básicos, os ambulatórios de especialidades e hospitais
gerais ou especializados, formando um conjunto solidário, não hierarquizado e bem articulado de
serviços, cujo objetivo seja garantir o melhor acolhimento possível e a responsabilização pelos pro-
blemas de saúde das pessoas e das populações.
Por fim, obviamente, é necessário fortalecer a atenção básica como lugar do mais amplo acolhimento
às necessidades de contato com as ações e os profissionais de saúde. No lugar formal e burocrático
Curso de da pirâmide, podem ser desenhados os mais diversos diagramas, dependendo de quais serviços já se
Desenvolvimento
Gerencial dispõe, de quais as características da população e quais as possibilidades de investimento e apoio.
do SUS
A estrutura e os processos de gestão também se constituem em grandes desafios. Ainda são incipientes
COLETÂNEA
DE TEXTOS os mecanismos que favoreçam a construção coletiva de desenhos tecnoassistenciais. As instâncias for-
mais de pactuação entre gestores8 (comissões intergestores), de participação dos trabalhadores (mesas
Modelos assistenciais em saúde: desafios e perspectivas
Considerações finais
Pouco a pouco parece surgir a possibilidade de trazer aos serviços e à própria lógica de gestão setorial
o componente mais subjetivo dos usuários, aquilo que para as pessoas são necessidades de saúde, mas
para análise do trabalho no Programa Saúde da Família', no livro O Processo Histórico do Trabalho em Saúde (N. E.).
295
PINHEIRO, R.; FERLA, A. A. & SILVA JÚNIOR, A. G. A integralidade na atenção à saúde da população. In:
MARINS, J. J. N. et al. (Orgs.) Educação Médica em Transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. 1.ed.
São Paulo: Hucitec, 2004.
SILVA JÚNIOR, A. G. Modelos Tecnoassistenciais em Saúde: o debate no campo da saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 1998.
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PINHEIRO, R. & MATTOS, R. A. (Orgs.) Construção da Integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de
Janeiro: IMS, Uerj, 2003.
SILVA JÚNIOR, A. G. & MASCARENHAS, M. T. M. Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica da integralidade:
aspectos conceituais e metodológicos. In: PINHEIRO, R. & MATTOS, R. (Orgs.) Cuidado: as fronteiras da integralidade.
Aluísio Gomes da Silva Júnior, Carla Almeida Alves
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Modelos assistenciais em saúde: desafios e perspectivas
296
AVALIAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
SOB A ÓTICA DA INTEGRALIDADE: ASPECTOS do SUS
CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS 1
COLETÂNEA
DE TEXTOS
A reorganização do modelo tecnoassistencial do Sistema Único de Saúde (SUS), com base nos prin-
cípios da universalidade, integralidade, equidade, resolubilidade, intersetorialidade, humanização
do atendimento e participação social, ainda constitui um desafio para todos os atores sociais que
militam no campo da Saúde Coletiva. Muitas propostas têm sido implementadas em âmbito muni-
cipal, mas a partir da segunda metade da década de 90, esses esforços vêm se aglutinando em torno
da reorganização da Atenção Básica em Saúde, orientada, principalmente, pelo Programa de Saúde
da Família. A implementação desse programa, embora sob mesma orientação macropolítica, vem
produzindo experiências qualitativamente diferentes e, em muitos casos, reproduzindo o modelo
tradicional de assistência em novas embalagens, como já haviam alertado Silva Junior (1998, p. 125)
e Franco e Merhy (2000).
O acompanhamento dessas experiências vem se dando por meio de metas de cobertura, produção
de serviços e indicadores de impacto epidemiológico. Considerando que há uma diferença qualitativa
nos resultados, decorrente da forma como são feitas as ações de saúde e o processo de trabalho das
equipes envolvidas, como demonstrou Mascarenhas (2003), os aspectos relevantes na direcionalida-
de das mudanças no modelo tecnoassistencial são pouco percebidos pela forma de acompanhamento
do programa (avaliação normativa).
Essas questões, já apontadas por Hartz (2000, p. 29-35), nos remetem à necessidade de comple-
mentar o processo de monitoramento com a abordagem da pesquisa avaliativa na busca de perceber
1
Publicado originalmente em: SILVA JÚNIOR, Aluísio Gomes da; MASCARENHAS, Mônica Tereza Machado. Avaliação da
atenção básica em saúde sob a ótica da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS,
Ruben Araújo de (Org.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: CEPESC-UERJ/ABRASCO, 2005. p. 241-257.
2
Doutor em Saúde Pública; professor do Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense; pesquisador
associado do LAPPIS.
3
Doutora em Saúde Pública; professora do Instituto de Saúde da Comunidade da Universidade Federal Fluminense; pesquisadora
associada do LAPPIS.
297
os movimentos de mudança na qualidade da atenção no que se refere principalmente ao processo de
trabalho das equipes, na relação com as populações adscritas e a integralidade da atenção à saúde.
Este trabalho visa a refletir sobre alguns conceitos e abordagens metodológicos que possam aumentar
Aluisio Gomes da Silva Junior, Mônica Tereza Machado Mascarenhas
O terceiro conjunto de sentidos da integralidade aplica-se às respostas governamentais que são dadas
aos problemas de saúde da população ou às necessidades de certos grupos específicos. Neste sentido,
a integralidade é representada pela recusa dos formuladores de políticas públicas em reduzir a objetos
descontextualizados os sujeitos sobre os quais tais políticas irão incidir. Por outro lado, se expressa
na convicção de que a resposta do governo a certos problemas de saúde pública deve incorporar as
possibilidades de promoção, prevenção de doenças, cura e reabilitação.
Dada a polissemia do termo “integralidade”, resolvemos tomá-lo como atributo das práticas pro-
fissionais de saúde e da organização de serviço. Entendemos que alguns outros conceitos articu-
lados traduzem a integralidade nos sentidos adotados: acolhimento, vínculo/responsabilização e
qualidade da atenção.
Acolhimento é assim traduzido por Merhy (1997, p. 138):
uma relação humanizada, acolhedora, que os trabalhadores e o serviço, como um todo, têm que
estabelecer com os diferentes tipos de usuários, alterando a relação fria, impessoal e distante que
impera no trato cotidiano dos serviços de saúde.
Para esses autores, acolhimento é um dos dispositivos disparadores de reflexões e mudanças a respeito
da forma como se organizam os serviços de saúde, de como os saberes vêm sendo ou deixando de ser
utilizados para a melhoria da qualidade das ações de saúde. Significa a retomada da reflexão sobre a
universalidade do acesso e sobre a dimensão de governabilidade das equipes locais diante das práticas de
saúde. Representa o resgate do conhecimento técnico das equipes e ainda a reflexão sobre a humaniza-
ção das relações em serviço, bem como o resgate do espaço de trabalho em termos de lugar de sujeitos.
Podemos pensar no acolhimento em três dimensões: como postura, como técnica e como princí-
pio de reorientação de serviços. Como postura, o acolhimento pressupõe a atitude, por parte dos
profissionais e da equipe de saúde, de receber, escutar e tratar humanizadamente os usuários e suas
demandas. É estabelecida, assim, uma relação de mútuo interesse, confiança e apoio entre os profis-
sionais e os usuários. A postura receptiva solidariza-se com o sofrimento ou problema trazido pelo
usuário, abrindo perspectivas de diálogo e de escuta às suas demandas. A dimensão acolhimento,
como postura, abrange ainda as relações intra-equipe e equipe-usuário.
A discussão sobre o acolhimento nas unidades e, mais especificamente, sobre a qualidade do acesso e
Curso de
a recepção aos usuários nos serviços mostra, segundo Teixeira (2003, p. 92), uma migração do foco Desenvolvimento
Gerencial
de tensionamento para dentro do serviço ou, mais exatamente, para a relação com o outro que aí se do SUS
estabelece. A relação médico-paciente é o caso mais emblemático, de acordo com o autor, que sinali- COLETÂNEA
DE TEXTOS
za haver uma ampliação da questão devido à existência de outros profissionais e de outras interações
que também se dão no cotidiano dos serviços, o que vale falar em relação trabalhador-usuário. Daí a
Escutar tem relação imediata com a fala, e em sua origem latina articula o escutado ao ato de ouvir
e de montar guarda; situação na qual quem escuta cumpre o ofício de sentinela, vigia os sons pro-
venientes de um campo diferente do seu próprio. Para escutar, também é imprescindível conhecer
quem se escuta, quem está falando, como e sobre o que se fala. Por fim, exige-se do profissional de
saúde uma reflexão sobre o usuário-paciente, enquanto sujeito portador de individualidade, para
quem os serviços de saúde são oferecidos. Lembramos que usuário, segundo o dicionário Aurélio, “[é]
o sujeito portador de uma individualidade, que tem a posse, o gozo de alguma coisa pelo direito de
uso coletivo” (Ferreira, 1986, p. 1.774).
299
A postura de acolhimento e escuta também é pensada na relação dos profissionais de equipe de saúde
entre si e entre os níveis de hierarquia da gestão do serviço. Relações democráticas, que estimulam
participação, autonomia e decisão coletiva, produzem sujeitos de novas práticas sanitárias.
Aluisio Gomes da Silva Junior, Mônica Tereza Machado Mascarenhas
Os trabalhadores de saúde incorporam a escuta e a conversa com o usuário como importantes instru-
mentos de trabalho, e não como tempo e conversas desperdiçados. Segundo Peduzzi e Palma (1996,
p. 247), esses trabalhadores “se defrontam com a necessidade de manter essa dimensão educativa e
comunicacional como parte nobre da técnica, complementar à esfera clínica e de redobrar a qualida-
de do registro do paciente”. Merhy et al. distinguem “ato de escuta de ato de bondade; o ato de escuta
é um momento de construção de transferência” (2000, p. 25). Assim, o acolhimento requer que o
trabalhador utilize seu saber para a construção de respostas às necessidades dos usuários.
O acolhimento, como técnica, instrumentaliza a geração de procedimentos e ações organizadas. Tais
ações facilitam o atendimento na escuta, na análise, na discriminação do risco e na oferta acordada de
soluções ou alternativas aos problemas demandados. O acolhimento representa, para Merhy e outros
autores (2000, p. 22):
O resgate e a potenciação do conhecimento técnico das equipes, possibilitando o enriquecimento da
intervenção dos vários profissionais da saúde na assistência. Torna possível, ainda, a reflexão sobre a
humanização das relações em serviço e parte da lógica de poder contida no processo, contribuindo,
assim, para uma mudança na concepção da saúde como direito.
Quanto ao trabalho de equipe, as mudanças da composição desta não dizem respeito apenas aos no-
Curso de
vos agentes incorporados, nem aos dados quantitativos dessa incorporação. Peduzzi e Palma (1996,
Desenvolvimento p. 239) afirmam que:
Gerencial
do SUS
São alterações no processo de trabalho, decorrentes das mudanças do modo de organização dos
COLETÂNEA serviços. Assim, com estas mudanças se alteram os atributos técnicos requeridos dos trabalhadores,
DE TEXTOS
as suas relações com os demais elementos dos processos de trabalho (o objeto e os instrumentos e
as próprias atividades), e as relações entre os diferentes profissionais que passam a lidar com novas
da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos
Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica
A equipe que acolhe tem como objetivos ampliar o acesso dos usuários, humanizar o atendimento e
funcionar como dispositivo para a reorganização do processo de trabalho das equipes locais (Merhy,
Bueno e Franco, 1999). O acolhimento, como reformulador do processo de trabalho ou da diretriz
de serviço, pontua problemas e oferece soluções e respostas. Identificam-se as demandas dos usuários
e, com isso, rearticula-se o serviço (Malta e Merhy, 2002, p. 80-83).
300
Como a organização de serviços, o acolhimento detém uma proposta, um projeto institucional que deve
nortear todo o trabalho realizado pelo conjunto dos agentes e a política de gerenciamento dos traba-
lhadores e da equipe. A proposta de trabalho para o serviço orienta desde o padrão da composição de
Assim, podemos pensar no vínculo em três dimensões: como afetividade, como relação terapêutica e
como continuidade. Na primeira dimensão, Kloetzel (1999, p. 55) aponta que o médico deve gostar
da sua profissão e interessar-se pela pessoa do paciente, construindo, assim, um vínculo firme e es-
tável entre ambas as partes, o que se torna valioso instrumento de trabalho. A ideia de vínculo como
uma relação terapêutica:
[que] se prende tanto à busca de maior eficácia (aumento do percentual de curas), como à noção
que valoriza a constituição de espaços propícios à produção de sujeitos autônomos: profissionais
e pacientes. Ou seja, para que haja vínculo entre dois sujeitos, exige-se a assunção do paciente à
condição de sujeito que fala, deseja e julga, sem o que não se estabelecerão relações profissional-
paciente adequadas (Campos, 1994, p. 53).
A palavra “terapêutica” apresenta sentido específico, relacionado com o ato de dar atenção. Logo,
uma nova forma de cuidado, que, de acordo com Boff (1999, p. 33):
Se revele numa atitude de colocar atenção, mostrar interesse, compartilhar e estar com o outro com
prazer; não numa atitude de sujeito-objeto, mas de sujeito-sujeito, numa relação não de domínio
sobre, mas de com-vivência, não de intervenção, mas de interação.
301
O autor destaca também:
cuidar é mais que um ato, é uma atitude. Portanto abrange mais que um momento de atenção, zelo
e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvi-
Aluisio Gomes da Silva Junior, Mônica Tereza Machado Mascarenhas
Para que ocorra seu fortalecimento, essa relação deve, a princípio, constituir-se num processo de te-
rapêutica, ou seja, por si só, já ser considerado instrumento de terapia. Uma relação satisfatória deve
levar em consideração questões como a escuta, a divisão de responsabilidades, o autoconhecimento
(ou conhecimento do outro, por parte do profissional) e os elementos de transferência e contratrans-
ferência. A partir da proposta de se estabelecer uma relação efetiva e resolutiva quanto às demandas
do paciente, é importante considerar a singularidade e a subjetividade de cada relacionamento entre
profissional e paciente, o que pressupõe integração dinâmica de contextos diversificados, caracte-
rísticas pessoais e expectativas, conscientes ou não, de ambas as partes. Por meio da escuta atenta,
da aceitação incondicional em relação à pessoa do doente e da empatia – que é uma capacidade da
esfera afetiva de se colocar no lugar do outro –, o profissional de saúde preenche grande parte das
expectativas do doente.
Vários autores ligados à corrente da atenção centrada no paciente enfatizam a potência do vínculo
na compreensão dos sofrimentos contextualizados na vivência do paciente, suas crenças, valores e
expectativas (Stewart e Roter, 1989). Consideram fundamental a relação profissional-paciente para
maior efetividade das intervenções propostas, proporcionando maior adesão à terapêutica e às me-
didas promocionais e preventivas. Starfield (2002, p. 291-301) e Weston e Brown (1989, p. 77-85)
Curso de
Desenvolvimento também apontam a continuidade como fator de fortalecimento do vínculo e do mútuo conhecimen-
Gerencial
do SUS to/confiança entre profissional e paciente.
COLETÂNEA Vínculo também implica responsabilização, que é o profissional assumir a responsabilidade pela vida e
DE TEXTOS
morte do paciente, dentro de uma dada possibilidade de intervenção, nem burocratizada nem impes-
soal. O profissional assume a indicação e garantia dos caminhos a serem percorridos para a resolução
da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos
Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica
do problema, não cabendo a transferência burocrática para outra instância decisória ou nível de aten-
ção (Merhy, 1997, p. 138). É, assim, sem dúvida, uma mudança de paradigma, pois, ao implementar
mudanças que resultem em novo processo de trabalho, tendo como foco o sujeito, a tendência é o
resgate do espaço de trabalho como lugar de sujeitos.
Rollo (1997, p. 324) considera essas questões como centrais, que devem ser enfrentadas na recons-
trução das práticas assistenciais em saúde. Recorre a Campos (1991) para abordar a questão da alie-
nação dos profissionais de saúde em relação a seu trabalho, que contribui para o baixo grau de res-
ponsabilização e criação de vínculo entre profissionais e usuários, revelando desapego em relação às
condições de trabalho. Outro aspecto dessa alienação é a separação entre os membros da equipe de
trabalho, em que cada um se ocupa de suas tarefas, havendo pouca integração entre as atividades.
Impera, assim, a lógica da subordinação, ao invés da complementaridade na equipe multiprofissional.
No que concerne à qualidade da atenção, Donabedian, desde a década de 60, vem desenvolvendo estudos
e pesquisas sobre a avaliação da qualidade dos serviços de saúde, que servem de paradigma nessa área
(Vuori, 1991). Segundo Donabedian (1988), qualidade da atenção se define como o tratamento que é
capaz de alcançar melhor equilíbrio entre os benefícios de saúde e os riscos. Fatores como custos mone-
tários, assim como expectativas e valores do paciente, são considerados facilitadores ou obstáculos para
alcançar o padrão de qualidade. Por outro lado, quatro componentes ou atributos da atenção prestada
influenciam na qualidade: acesso, continuidade, coordenação e satisfação do paciente.
302
Para Donabedian, a qualidade da atenção médica se baseia na conduta do profissional na sua relação
com o paciente. A conduta do profissional refere-se, no processo saúde-doença, aos cuidados técni-
cos (adequação do diagnóstico e da terapêutica), socioambientais (atenção aos fatores de risco sociais
O termo qualidade também tem sido empregado em sentido amplo, envolvendo também a qualifica-
ção do pessoal, a segurança e a aparência agradável das unidades de saúde, bem como a adequação
dos equipamentos que contribuem para a prestação de serviços. Starfield observa que a qualidade da
atenção pode ser vista em duas perspectivas: clínica e populacional. Na perspectiva clínica, a preocu-
pação está centrada no impacto das ações dos profissionais de saúde, individualmente ou em grupo,
sobre a saúde do usuário. Do ponto de vista da população, avaliam-se o acesso aos serviços, a dispo-
nibilidade da atenção e a capacidade de resolver ou contribuir para a solução de um amplo espectro
de problemas, numa perspectiva integral da saúde.
Donabedian (1988) leva em conta que, para a avaliação da qualidade dos serviços de saúde, pode-se Curso de
Desenvolvimento
tomar todos ou alguns dos componentes que conformam um programa: a estrutura, o processo e Gerencial
os resultados. A estrutura corresponde ao que é relativamente estável no sistema, isto é, todos os do SUS
atributos – materiais e organizacionais – que permitem que uma unidade proporcione atenção: dis- COLETÂNEA
DE TEXTOS
ponibilidade de instalações, equipamentos, recursos humanos. Deste modo, são classificados como
estruturais todos os elementos relativos ao desenho institucional, à organização do sistema, ao elenco
303
Os conceitos de acolhimento, vínculo-responsabilização e qualidade da atenção se articulam, como
visualizado na Figura 1, na construção dos processos de trabalho e dos modelos tecnoassistenciais. Essa
concepção nos permite pensar formas de operacionalizar a avaliação dos programas e serviços de saúde.
Aluisio Gomes da Silva Junior, Mônica Tereza Machado Mascarenhas
Considerações metodológicas
As definições da avaliação são numerosas e sua taxonomia extensa. Optamos pela definição de Con-
tandriopoulos et al. (1997, p. 31):
Avaliar consiste fundamentalmente em fazer um julgamento de valor a respeito de uma intervenção
ou sobre qualquer um de seus componentes, com o objetivo de ajudar na tomada de decisões. Esse
julgamento pode ser resultado da aplicação de critérios e de normas (avaliação normativa) ou se
elaborar a partir de um procedimento científico (pesquisa avaliativa).
A avaliação normativa, segundo Clemenhagen e Champagne (1986), é atividade comum numa orga-
nização ou num programa e corresponde às funções de controle e acompanhamento, assim como aos
programas de garantia de qualidade. Já a avaliação normativa é:
atividade que consiste em fazer um julgamento sobre uma intervenção, comparando os recursos
empregados e sua organização (estrutura), os serviços ou os bens produzidos (processo) e, os resul-
tados obtidos, com critérios e normas (Contandriopoulos et al., 1997, p. 34).
A avaliação normativa se apoia na construção de critérios e normas, que podem derivar dos resulta-
dos da pesquisa avaliativa ou de outro tipo de pesquisa. Hartz (1997, p. 35) destaca que todas as ava-
Curso de liações normativas se apoiam no postulado de que existe forte relação entre o respeito aos critérios e
Desenvolvimento
Gerencial às normas escolhidas e os efeitos reais do programa ou da intervenção.
do SUS
COLETÂNEA
A construção e validação de critérios permitem a apreciação dos diversos componentes de um progra-
DE TEXTOS ma. Trata-se de saber em que medida os serviços são adequados para atingir os resultados esperados.
A apreciação do processo de uma intervenção, visando a oferecer serviços para determinada clientela,
da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos
Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica
pode ser decomposta em três dimensões: a técnica, a das relações interpessoais e a organizacional. A
dimensão técnica dos serviços focaliza sua adequação às necessidades dos clientes e a qualidade dos
serviços; a dimensão das relações interpessoais observa a interação psicológica e social entre os clientes
e os produtores de cuidados, no apoio aos pacientes e na satisfação destes; a dimensão organizacional
do processo diz respeito à acessibilidade aos serviços e à extensão de cobertura dos serviços oferecidos.
A pesquisa avaliativa, de acordo com Contandriopoulos et al. (1997, p. 37), é um procedimento
que consiste em fazer julgamento ex-post da intervenção, analisando a pertinência, os fundamentos
teóricos, a produção, os efeitos e o rendimento de uma intervenção, assim como as relações entre
a intervenção e o contexto, ajudando na tomada de decisões. Os autores afirmam que a pesquisa
avaliativa consiste em usar várias estratégias e considerar as perspectivas dos diferentes atores envol-
vidos na intervenção. A pesquisa avaliativa pode ser decomposta em seis tipos de análise: estratégica,
de intervenção, de produtividade, dos efeitos, de rendimento e da implantação. Pode-se, portanto,
realizar uma ou várias dessas análises.
Destacamos, como abordagem privilegiada desta pesquisa, entre os modelos avaliativos propostos
por Contandriopoulos et al. (1997), a análise de implantação das intervenções. Esta exige que se
estabeleça um julgamento de adequação e integridade do funcionamento do programa, obtido pelos
indicadores de cobertura, da qualidade das estruturas e dos processos envolvidos, coerentes com os
princípios de avaliação da qualidade.
304
O estudo dos processos envolve abordagens múltiplas e em ambiente ambulatorial, como da Atenção
Primária à Saúde. É dificultado pela relação mais esparsa entre usuários e profissionais e problemas
de duração indeterminada, diferentemente da atenção hospitalar, em que o contato da equipe com o
patologias, mas ações de caráter preventivo. Nesse sentido, ampliam-se as possibilidades da proposta, COLETÂNEA
DE TEXTOS
bem como de avaliação de um maior número de atividades em relação ao cumprimento de normas e
procedimentos.
apropriação, por parte das equipes locais, de ferramentas de avaliação de seu próprio trabalho, crian-
do parâmetros para o acompanhamento e desenvolvimento de estratégias de qualificação da atenção à
saúde. Exemplos disso são encontrados nas experiências do uso da ferramenta “fluxograma avaliador”
proposta por Merhy et al. (1997) e operacionalizada por Menezes (1998) e Silva Júnior et al (2003).
Considerações finais
A possibilidade de usar os conceitos de acolhimento, vínculo-responsabilização e qualidade de aten-
ção, articulados e operacionalizados através da indagação aos múltiplos atores envolvidos no processo
de atenção à saúde, permitiria inferir sobre a integralidade nessa atenção e verificar a direcionalidade
da construção do modelo tecnoassistencial em coerência com os princípios do SUS.
Mais do que uma intervenção pontual de caráter avaliativo, a pesquisa avaliativa acrescenta instru-
mentos para pensar o cotidiano dos serviços, das práticas de seus profissionais e da relação com a
população, numa visão autocrítica e estimulante de protagonismo desses atores.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos
Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica
306
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
Aluisio Gomes da Silva Junior, Mônica Tereza Machado Mascarenhas Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica
307
da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos
QUADRO 2 – Processo de trabalho: vínculo/responsabilização
QUADRO 1 – Processo de trabalho: acolhimento
QUADRO 3 – Processo de trabalho: percepção sobre a qualidade da atenção
Aluisio Gomes da Silva Junior, Mônica Tereza Machado Mascarenhas
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COLETÂNEA
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da integralidade: aspectos conceituais e metodológicos
Avaliação da atenção básica em saúde sob a ótica
309
Para saber mais
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7. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 648, de 28 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de
Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o
Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília: MS, 2006.
8. BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Pactos
pela Saúde 2006. Brasília: MS, 2009. (Coletânea, CD 01: v. 4)
311
Módulo 5: Trabalho em Equipe
CRISTIANA BONALDI
RAFAEL DA SILVEIRA GOMES
ANA PAULA FIGUEIREDO LOUZADA
ROSENI PINHEIRO
Os inúmeros debates e pesquisas acerca do tema da integralidade em saúde realizados nos últimos
anos mostram que não podemos propor um único sentido para o termo. O que se percebe nesses
estudos é que as práticas de integralidade são tão variáveis quanto as realidades dos locais onde se
realizam os serviços – mais que isso, que essas práticas se transformam incessantemente. A tentativa
de produzir definições a priori para um suposto conceito de integralidade sempre se dá sob o risco de
restringir sua potência de transformação das práticas de saúde.
A integralidade se constitui como práticas que emergem em meio a um campo de forças e lutas
formado por movimentos de usuários, trabalhadores e gestores, por propostas políticas, limitações
de financiamento, programação e planejamento das três esferas governamentais, inseridos numa
realidade sócio-histórica singular. As lutas por melhores condições de saúde e de trabalho emergem
a partir das realidades dos serviços oferecidos à população. Os programas de governo, planejados
mediante a imposição de “modelos ideais” (PINHEIRO; LUZ, 2006), sem levar em consideração o
contexto local, com o qual sempre se deparam no momento de sua implementação, nos cotidianos
dos sujeitos em suas práticas nos serviços de saúde. É no contato entre gestores, trabalhadores e
usuários, num dado lugar, que se produzem práticas diversificadas de saúde.
No espaço político cotidiano onde se constroem as demandas, fruto de um interrelacionamento
entre normas e práticas que orientam os diferentes atores envolvidos (indivíduos, profissionais e ins-
tituições), são formuladas e implementadas políticas de saúde, seja de uma localidade, de um estado
ou país (PINHEIRO, 2005). Com isso modifica-se a visão que localiza a oferta nas mãos dos gestores
e profissionais e vincula a demanda somente aos usuários, focando-se na relação construída pelos
atores de forma situada e contextualizada.
1
Publicado originalmente em: BONALDI, Cristiana; GOMES, Rafael da Silveira; LOUZADA, Ana Paula Figueiredo; PINHEIRO,
Roseni. O trabalho em equipe como dispositivo de integralidade: experiências cotidianas em quatro localidades brasileiras. In:
PINHEIRO, Roseni, MATTOS, Ruben Araújo de; BARROS, Maria Elizabeth Barros de (Orgs.). Trabalho em equipe sob o eixo da
integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: CEPESC-UERJ/ABRASCO, 2007. p. 53-72.
317
O que se entende por saúde, o que se deseja em relação a ela, as necessidades de saúde, o que se es-
pera dos serviços e a concepção de integralidade, tudo é construído nessas negociações constantes.
Para entender a demanda em saúde e a produção de práticas de integralidade, é fundamental entender
como as relações são travadas nos diversos serviços. Para tanto, surgem algumas perguntas iniciais:
como se organizam os serviços? Como se estabelecem as relações dos diferentes profissionais da equi-
pe? E destes com os usuários? Quais saberes e valores que direcionam suas práticas? Estes saberes e
valores propiciam práticas de integralidade?
Partindo do entendimento de que a integralidade só se expressa nas práticas e que estas são pro-
duzidas sempre a partir de relações entre os atores nos diferentes serviços, as pesquisas produzidas
sobre o tema devem partir dos locais onde as práticas se corporificam, nos espaços onde as relações
se estabelecem.
Nesse sentido, segunda fase do Projeto Integralidade foi realizada em quatro diferentes localidades:
Aracaju, Piraí, Porto Alegre e Belo Horizonte. Esses serviços foram escolhidos por apresentarem
práticas inovadoras e por serem espaços permanentes de formação de profissionais de saúde.2
Cristiana Bonaldi et al.
Por entendermos a integralidade como expressões singulares do agir em saúde, não tivemos como
objetivo comparar as diferentes experiências, ou ainda definir qual serviço é ou não integral; ao
contrário, buscamos neste texto potencializar pistas, detalhes, indícios de práticas de integralidade
que emergem nesses diferentes espaços, de formas e em momentos distintos. A partir da análise dos
dados empíricos coletados nas quatro localidades estudadas, tornou-se possível delinear o trabalho
Curso de em equipe como um dispositivo para efetivação da integralidade em saúde.
Desenvolvimento
Gerencial Para tanto, propomos duas rotas analíticas para apresentação a análise: a primeira, que concerne à
do SUS
busca de se superar as hierarquias existentes no trabalho em saúde, a partir das categorias de corpo
COLETÂNEA
DE TEXTOS da saúde e coletivo de trabalhadores; e a segunda, que se refere à necessidade de travar uma discus-
são sobre a importância dos valores éticos no estabelecimento de uma responsabilidade coletiva na
O Trabalho em equipe como dispositivo de integralidade:
experiências cotidianas em quatro localidades brasileiras
produção do cuidado em saúde, utilizando a metáfora da orquestra como signo de sua materialização.
Cabe perguntar aos coletivos de trabalhadores quem é mais importante durante os processos de aten-
ção/assistência à saúde? Ou mesmo antes, nos processos de trabalho, independentemente dos locais
ou áreas de execução, é possível perguntar a quem executa a importância de seu trabalho? Há traba-
lho que possa ser reduzido a um sujeito? Todo trabalho configura-se como um trabalho em equipe?
2
Sobre a pesquisa, ver a Introdução desta coletânea.
318
Segundo o trabalhador em saúde entrevistado em Aracaju, chefe da frota das ambulâncias do SAMU,
quem é mais importante no corpo: o braço, a perna, a cabeça, o tronco? Mas talvez haja um estra-
nhamento inicial, ainda anterior a este: um condutor de ambulância compõe uma equipe em saúde?
Quem são os atores que podem ser incluídos nessa categoria?
Esta pesquisa tem como eixo analisar práticas de integralidade em diferentes contextos, conforme já
apontado. Especificamente, gostaríamos de trazer questões pertinentes que atravessam o fazer desses
profissionais. Para isso, tomamos como referência:
todo trabalho atravessa um sujeito que nunca obedece apenas a prescrições;
esse trabalho nunca ocorre só, remete necessariamente a uma coletividade;
as equipes, conjunto de trabalhadores direta ou indiretamente envolvidos nos processos de atenção
a saúde, podem compor um coletivo de trabalho.
A Ergologia, conforme texto de Louzada, Bonaldi e Barros, nesta coletânea, aponta para uma ur-
gência de pensar o trabalho como campo dramático, como um processo de tomada de decisões
devidamente separadas e hierarquizadas, nas quais obviamente alguns tecidos e órgãos seriam mais im- COLETÂNEA
DE TEXTOS
portantes que outros. Neste artigo, para analisarmos as práticas de integralidade, partimos do princípio
de que ao usarmos a metáfora do trabalho em saúde como “corpo”, entendemos esse corpo como algo
319
de integralidade, que pressupõem a abertura a alteridade e a diferença, conforme apontado por
Gomes, Silva e Pinheiro nesta coletânea.
O trabalho em equipe na saúde, objeto de análise deste texto, acontece na presença de diferentes
atores, profissionais com distintas formações na área da saúde e delineia-se exatamente pela poten-
cialidade, pelo desafio que a articulação desses diferentes profissionais, com diferentes saberes e
práticas, têm de produzir saúde. As equipes de saúde possuem diferentes desenhos, com um número
variável de profissionais e de formações e funções, de acordo com as características locais. Quando/
como essas equipes começam a operar como coletivos?
Esses diferentes desenhos das equipes são elemento importante destacado pelos entrevistados, con-
forme apontado a seguir:
A equipe é uma equipe multidisciplinar, que consta um enfermeiro obstetra que são durante o dia
dois enfermeiros obstetras, tem dois médicos obstetras, um pediatra, um anestesista, um residente
em anestesia, um acadêmico de medicina – que faz mais a parte de pediatria - tem psicólogo, fisio-
terapeuta, tem a doula, tem a auxiliar, tem técnicos de enfermagem, tem secretária, tem o pessoal
Cristiana Bonaldi et al.
com eles dois. E todos juntos com os agentes de saúde (Técnico de Enfermagem, USF Aracaju)
Percebemos que muitas vezes a marca da corporação nega os outros profissionais como parceiros,
torna invisível sua atividade e reduz a equipe apenas aos diferentes especialistas de uma mesma cate-
goria profissional.
[...] nós trabalhamos com os médicos plantonistas da maternidade, existem os plantonistas da
anestesia, que são dois [...] Eles também fazem anestesia para cesarianas, e para revisões pós-
parto quando necessário, né? Nós temos também os plantonistas do berçário, que são os pedia-
tras, que tão presentes sempre na hora do parto também, e após o atendimento do nenê, que em
outras épocas quem fazíamos éramos nós, em termos de entubar, oxigenar, coisas assim, quando
havia necessidade. (Médico, Porto Alegre)
O entendimento ainda presente nos diferentes serviços, mas sobretudo nos ambientes hospitalares,
é resultado histórico do modelo assistencial hospitalocêntrico, que ainda se faz presente significati-
vamente nos serviços e nas diferentes formações profissionais do setor, não obstante a proposição do
SUS da mudança de modelo. Tal posição entende a equipe multiprofissional como a simples justapo-
sição de profissionais, não pressupõe a superação da fragmentação dos procedimentos e das relações
com os demais trabalhadores, tornando-se um empecilho às práticas de integralidade. A simples jus-
taposição dos diferentes profissionais, ao invés de garantir um atendimento integral, expõe e ressalta
a fragmentação do cuidado, uma vez que não garante a continuidade dos processos.
320
Essa hierarquia “dura” nega os diferentes saberes (“aqui trabalham médicos obstetras, pediatras,
anestesistas”, sendo os outros profissionais simplesmente invisíveis), ou aponta para uma legitimidade
menor (o importante na equipe é o médico), e a partir dessa negação ou ausência de legitimação,
fragmenta e impede a ação coletiva. Entretanto, não gostaríamos de afirmar a necessidade de uma
completa ruptura das hierarquias. O que estamos salientando é a necessidade de desfragmentar (inte-
grar, enfim), os processos em equipe, e não equiparar – como iguais – os diferentes saberes e fazeres:
Não importa qual a função que você faça, que você tenha, o respeito aparece. Você é respeitado por
aquilo que você faz. Você falou de hierarquia; aqui não hierarquia, mas isso está na legislação de en-
fermagem, é que o auxiliar e o técnico de enfermagem estão sob a responsabilidade, o trabalho todo
de enfermagem está sob responsabilidade do enfermeiro. A única hierarquia que tem é essa. Mas isso
não implica assim, numa hierarquia de mando! De mando autoritário. (Enfermeira, Belo Horizonte)
Como aponta Campos (2000), ainda que a equipe multiprofissional seja recomendada como solu-
ção milagrosa para superar os problemas da fragmentação e da desresponsabilização decorrente da
especialização excessiva dos profissionais, a simples implementação não garante que se alcance esse
objetivo. Dois modelos de trabalho em equipe devem ser superados: um que se fundamenta no sim-
Portanto, não se trata nem de uma responsabilização prescritiva, nem de uma horizontalização, pois esses
dois modos de constituir as equipes em saúde não bastam, ou não dão conta das práticas em integralidade.
A transformação das práticas proposta pelo SUS, por meio de “modelos mais porosos aos contex-
tos em que se inserem”, exige que o trabalho em equipe valorize a polifonia decorrente do efetivo
exercício efetivo da multiprofissionalidade, a diversidade de vozes e discursos. As diferenças entre
os saberes e práticas devem ser “harmonizadas3” e não negadas ou minimizadas, cada trabalhador
deve saber o que vai fazer, quando e como de acordo com cada nova situação, e com a atuação dos
demais membros da equipe. A atuação dos diferentes profissionais deve dar-se a partir da noção do
3
Compreendendo harmonia como “combinação de elementos diferentes e individualizados, mas ligados por uma relação de pertinência,
que produz uma sensação agradável e de prazer” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1.506).
321
agir em concerto, que se baseia no respeito às especificidades e responsabilidades de cada profissional,
e na afirmação o trabalho em saúde não restringe, nem se encerra, no fazer de nenhum trabalhador
especificamente (GOMES; GUIZARDI; PINHEIRO, 2005).
Então, na unidade básica a gente tem um condutor e um técnico de enfermagem, e eles dividem
em partes o que um faz, o que o outro faz. Os dois têm que saber fazer a mesma coisa. Só que, por
exemplo, pra você colocar um soro, ela é que coloca. É o papel dela. Da auxiliar ou do auxiliar. Do
técnico que tiver lá. Aí não cabe ao condutor. A gente faz, por exemplo, uma imobilização. “Ah,
tem que colocar o colar”. Um tem que segurar a cabeça, o outro tem que colocar o colar. “Ah, tem
um braço quebrado com fratura exposta”. Um segura a tala, o outro... Então tem que trabalhar em
conjunto. Já na USA, que é a Unidade de Saúde Avançada, a UTI móvel, aí a gente tem o condutor,
que faz o mesmo papel. Ali tem um médico, que aí ele é o responsável, que aí é um caso mais avan-
çado que vai para um tiro, uma facada. (Motorista SAMU, Aracaju)
aonde a adrenalina do cara vai. Porque, por exemplo, eu vou ter que andar numa alta velocidade,
com sirene ligada, porque essa [viatura] daqui só sai pra casos complexos. Quer dizer, aí eu vou bo-
tar um médico? Têm médicos que não sabem dirigir um carro desse. Mas eu também não sei operar.
Tá entendendo? Então, coisas que eles têm que entender que o condutor é importante, que a auxiliar
é importante, que a enfermeira é importante. (Chefe da Frota, SAMU Aracaju)
O sentimento de que os diferentes trabalhadores são fundamentais para a realização do serviço refor-
ça a noção de pertencimento a equipe de saúde, produzindo uma outra forma de comprometimento
que rompe as fronteiras de seu saber específico ou de um campo de atuação definido. O trabalhador
entende que o cuidado não se restringe a sua ação e que ele é um dos responsáveis pelo serviço, tal
qual o músico numa orquestra que, mesmo com o instrumento de sonoridade mais discreta, ou aque-
le cuja participação se limita a alguns movimentos, se sente como parte fundamental para execução
e obra executada.
Eu até estava brincando com um colega meu um dia desses e ele me viu com a camisa do resgate e
disse “Ué, você trabalha dentro da ambulância agora?” e eu disse bem assim: “não, eu trabalho no
setor de regulação” e ele falou “então porque você está com a camisa do resgate?” e eu disse: “olha,
se você ligar pra lá e eu não te atender ou desligar o telefone o pessoal não vai, né?” (risos) Então eu
faço parte do sistema, né? (Regulação - Aracaju)
Essa fala aponta para comprometimento, responsabilização das ações. Como a equipe de atendimen-
to emergencial pode chegar ao usuário que naquele momento necessita de uma intervenção rápida, se
322
o processo de escuta, de acolhimento e encaminhamento não for feito pelo atendente? Daí o trabalho
como necessariamente compartilhado.
O comprometimento com o outro, junto ao sentimento de pertencimento à equipe, supera a desres-
ponsabilização mencionada por Campos (2000); o sucesso ou fracasso passam a ser responsabilidade
da equipe e não dos profissionais individualmente. A emergência da responsabilidade coletiva faz com
que todos se sintam responsáveis pelo cuidado do usuário do serviço.
Eu acho que a minha responsabilidade na atuação com essa mãe é tão grande quanto a de um
procedimento cirúrgico dentro de uma unidade, sabe? Acho que às vezes uma fala minha, uma
intervenção minha inadequada, isso vai trazer tantas... Vai causar tanto mal para essa pessoa
quanto às vezes um erro. Então, assim, acho que é tão difícil você hierarquizar, porque dentro
da especificidade, dentro da atuação de cada um, o nível de responsabilidade é muito grande, de
todos nós. (Enfermeira, Belo Horizonte)
A responsabilidade coletiva não se baseia numa noção de que ninguém é culpado pelo erro, ou mes-
mo, que todos são culpados por todos os atos cometidos pelos diferentes profissionais. Como nos
323
Talvez um dos grandes entraves para a compreensão dessa responsabilidade como da ordem de um
coletivo seja que nossa ideia de responsabilidade aponta muito mais para uma responsabilização, muito
próxima a uma atribuição de uma culpabilização, sempre individual. Ao traçarmos, conforme Arendt
(2004), a noção de responsabilidade compartilhada nos/pelos coletivos, apresenta-se outra possibilida-
de de análise fundamental para entendermos a equipe como gestão coletiva: a cooperação e a confiança.
Por realizar procedimentos, uma série de coisas, eu acho que a enfermagem, ela tem uma res-
ponsabilidade muito grande, porque o médico prescreve, às vezes ele prescreve até errado, mas a
enfermagem tem que conferir a prescrição. (Belo Horizonte -05)
E se essa confiança entre enfermagem e medicina não ocorre? Como se torna possível trabalhar? A
ausência de confiança reduz o processo necessariamente em hierarquia e fragmentação, ou seja, não
aponta para um fazer comum. A troca, um entendimento/confiança entre a equipe e entre os pro-
cessos anteriores e posteriores ao seu trabalho, é fundamental:
Se estou atendendo uma gestante, eu tenho que saber que por trás dessa gestante tem uma agente
comunitária que vai na casa, tem a médica que pode trabalhar junto comigo, tem os auxiliares de
Cristiana Bonaldi et al.
enfermagem, então assim, a gente envolve todo mundo, né? (Enfermeira, Piraí)
Essa construção da confiança demanda não só a “qualidade” da relação, mas antes disso, a possibili-
dade que ela possa ser construída e compartilhada entre os atores. A rotatividade dos trabalhadores
é um elemento importante a ser considerado:
Então, o médico não é aquele assim que eu posso confiar nele, porque ele tá aqui hoje, mas amanhã
ele não está. Mas, ela não. Eu sei que ela continua. A enfermeira é muito difícil trocar. Então, eu
Curso de
Desenvolvimento conto mais com ela do quê com o médico [...]. Eu e a enfermeira a gente fica. Então, é ela que segura
Gerencial a peteca pra gente é ela. (Agente comunitária, Piraí)
do SUS
COLETÂNEA Segundo Dejours (1993, s/p), a cooperação “são os laços que constroem entre si agentes em vias de
DE TEXTOS
realizar, voluntariamente, uma obra comum”. Laços que acionam processos de construção, de par-
tilha de uma linguagem tornada coletiva. Esses laços não podem ser exteriores, isto é, não podem
O Trabalho em equipe como dispositivo de integralidade:
experiências cotidianas em quatro localidades brasileiras
ser prescritos por protocolos, por divisões da organização do trabalho anteriores ao trabalho em ato.
O autor ainda afirma que, se a organização do trabalho não pode garantir os laços fundamentais para a
cooperação, por outro lado, é exatamente por sua existência anterior, que os coletivos podem produzir
a cooperação: “fixando os status, os papéis, os domínios de competência e de autoridade, as responsabi-
lidades – de cada um – a organização do trabalho fornece um quadro de referência sem qual nenhuma
cooperação seria possível” (DEJOURS, 1993, s/p), pois os laços de cooperação solicitam as iniciativas
individuais para preencher as lacunas deixadas pelas prescrições anteriores ao trabalho.
Entretanto, para que as iniciativas individuais de preencher aquilo que ainda não está prescrito para
ser feito, não está normatizado se tornem-se concretas e possam ser reconhecidas pelos outros que
também recriam essas normas, é necessário que essas “subversões” – a favor do trabalho – possam ser
visíveis, e a “visibilidade, isto é, o esforço para mostrar e tornar inteligível ao outro sua ação, supõe
relações de confiança entre os agentes” (DEJOURS, 1993, s/p). Para que cada um deixe aparecer
suas “subversões”, reinvenções, é necessário a produção de um fazer tornado comum, coletivizado, a
partir da confiança. Assim, as condições para a construção de laços de cooperação se dão num debate
de valores, na produção de sentidos éticos, sociais e políticos.
Porque é uma angústia, foi uma angústia muito grande da equipe, ainda mais porque a gente fazia 24
horas e essas usuárias tinha esse acesso a todas que queriam, de repente chegou um período não tem
mais, isso nunca tinha acontecido... Até quando acabam os leitos aqui a gente cria leitos desse na casa
324
de parto, teve várias situações que teve seis partos em 24 horas e eu sempre peço para elas estarem
vindo, olha, os quartos estão lotados não tem mais jeito, a gente pode elas com consultório viram o
lugar... Elas falam: “Não, eu faço tudo para ter aqui”. Então, ou monta o quarto com dois pós-partos, o
que eu vejo muito grande é a solidariedade, elas concordam em dividir quartos. [...] eu lembro de um
caso que tinha acabado as vagas, tinha uma gestante que vinha do distrito, já tinha conhecido a casa,
era o terceiro filho, queria muito ganhar na casa de parto, ia filmar. Mas tinha acabado as vagas, não
tinha jeito, já tinha tido seis partos, eu falei: não tenho onde arrumar. Aí o filhinho dela saiu lá da ma-
ternidade, veio aqui e batia na porta, veio conversar comigo, “deixa minha mãe, pelo amor de Deus,
ganhar aqui, ela sonhou muito com parto na água”. Aí eu tive que redimensionar e ela teve a criança
aqui [...] Foi muito engraçado porque a casa inteira vivenciou o parto, até os outros usuários, porque
eles viram os movimentos da família. Essas são as diferenças que, às vezes, num hospital devido às prá-
ticas, as rotinas rígidas que a gente não consegue perceber muito isso. (Enfermeira, Belo Horizonte)
O trabalho efetivamente realizado não se reduz jamais ao trabalho fixado previamente por prescri-
325
Diante da necessidade de invenção dinâmica do trabalho vivo, os trabalhadores são convocados a
gerir as variabilidades constituintes do processo de trabalho. Dessa forma, gestão e atividade de
trabalho – apesar de o termo “gestão” ter sido mais comumente utilizado na contemporaneidade no
lugar de gerência ou gerenciamento de recursos – são categorias inseparáveis. Trabalhar é gerir. Cha-
mamos de gestão do trabalho a capacidade dos trabalhadores de gerir o processo que denominamos
atividade de trabalho. Trabalhar exige gestão.
Nesse sentido, o trabalho em equipe na saúde requer a gestão de um saber comum orientado por
valores éticos que norteiam escolhas coletivas e potências formativas (não isentas de conflitos) na
efetivação da integralidade da atenção e do cuidado em saúde.
Portanto, ao gerir o trabalho, os trabalhadores são convocados a fazer escolhas. Estas escolhas se
orientam em função de valores. O debate de normas e valores que se dá na atividade de trabalho é
o que permite que a atividade se realize. A atividade não se restringe apenas a execução de uma de-
terminada tarefa, ela sempre pressupõe um “uso”, a mobilização de cada trabalhador - com crenças,
valores e história singular – frente à permanente variabilidade do meio. “É preciso que ele escolha,
Cristiana Bonaldi et al.
visto que as imposições ou as instruções são insuficientes! Então, é necessário que ele faça escolhas.
É necessário que ele se atribua leis para preencher o que falta” (SCHWARTZ, 2000, s/p).
Trabalhar é escolher, negociar, inventar meios, arriscar-se. A esta dimensão do trabalho Schwartz
atribui o nome de dramáticas do uso de si. Alguns valores que pautam este debate de normas po-
dem ser chamados “valores sem dimensão” e envolvem valores não-mensuráveis, como “bem-estar”,
“atendimento digno”, “acolhimento”. RUFFEIL (2005) dá um exemplo que pode nos ajudar a com-
Curso de
Desenvolvimento preender as dramáticas do uso de si4 no trabalho na área da saúde, quando os auxiliares de enferma-
Gerencial gem têm que escolher entre fazer a higiene do paciente ou ajudá-lo a resgatar sua autonomia. Essas
do SUS
escolhas infinitesimais ocorrem em meio aos valores do trabalhador, as exigências do trabalho, as
COLETÂNEA
DE TEXTOS relações com os usuários, trabalhadores e gestores.
Um gestor de Belo Horizonte fala do trabalho em equipe na saúde e dos valores que pautam o aten-
O Trabalho em equipe como dispositivo de integralidade:
experiências cotidianas em quatro localidades brasileiras
dimento de um recém-nascido:
Para eu atender a essa família, que no caso, a gente também que é da neonatologia, a gente tem que
ter em mente que o seu paciente, o seu cliente não é só o recém-nascido, que ele não vem desvin-
culado da história da família e de todos, então para mim poder atendê-lo naquela hora eu tinha que
articular outras coisas.
É em meio a esses debates, a essa dinâmica complexa, que os trabalhadores produzem conhecimentos
na situação de trabalho. Os trabalhadores lançam mão destes saberes para dar conta, justamente, da
distância existente entre o trabalho realizado e as prescrições.
Nessa mesma instituição de Belo Horizonte, pudemos ver de perto o modo como os trabalhadores lan-
çam mão de saberes produzidos no cotidiano para lidar com situações inusitadas do trabalho. Estávamos
conhecendo suas instalações quando, ao avistar uma mulher em trabalho de parto, a psicóloga começou
a passear com ela pelo corredor e simultaneamente a fazer massagens em suas costas. Certamente as
massagens não são prescrições do trabalho de uma psicóloga numa maternidade, porém, ao encontrar a
usuária, a psicóloga, baseada no conhecimento produzido em anos de atividade na instituição, intervém
por meio de massagens. O que certamente ajuda a equipe na rotina de trabalho, pois tranquilizam a
usuária enquanto o restante da equipe prepara a sala de parto ou cuida de outras situações.
4
Conceito detalhado no texto de Louzada, Bonaldi e Barros (“Integralidade e trabalho em equipe no campo da saúde: entre normas
antecedentes e recentradas”).
326
Será que essa psicóloga se deu conta de que tocou na usuária? Ou esse toque é parte “incorporada”
em seu fazer? Há no trabalho uma inteligência astuciosa, da ordem do corpo, que não passa necessa-
riamente pela racionalidade.
De acordo com os profissionais entrevistados, assim também acontecia quando, ao perceber que as
palestras, realizadas numa unidade de saúde da família de Aracaju, não estavam surtindo o efeito
desejado, a equipe começou a organizar passeios, aumentando a adesão da população às atividades
educativas da unidade:
A gente chegou, fez palestras, mas aí, os meninos, como a maioria daqui são mulheres, que frequen-
tam mais o posto, porque os homens, a maioria, estão todos trabalhando; aí, quem frequenta mais
os postos são as mulheres com as crianças. Então, quando a gente só ficava falando, falando, falan-
do... uma criança estava agitada, a outra chorava... então, não tinha como eles prestarem atenção,
eles não tinham paciência”. (Técnico de Enfermagem - USF, Aracaju)
A manifestação dessa inteligência é marcada pela história construída pelos coletivos de trabalho, pelo
patrimônio de experiências produzido por estes coletivos. A expressão desses saberes é reforçada ou
A construção integralidade como processo, da ordem do vivido, nos espaços das equipes de saúde, não
se refere a algo tranquilo, mas ao contrário, de uma produção cotidiana que não se dá sem de tensões,
embates e conflitos. Esses conflitos se configuram em vários planos. Por um lado, esses conflitos se dão
327
num plano de gestão coletiva, da relação com trabalhadores, com usuários e com instituições formado-
res que ainda pensam os serviços de saúde e suas práticas a partir de outro referencial.
O que eu identifico é o seguinte: eu acho que existe uma cultura medicalizadora muito forte na
sociedade, nos profissionais de saúde, mas também na sociedade. E eu vejo esse conflito mais den-
tro do saúde da família, porque o profissional, ele tenta fazer, né, o trabalho dele, aquela fala da
prevenção mesmo, mas as pessoas não querem. Elas querem sair de lá, elas querem ter o exame, ela
quer que encaminhe ela pro especialista; então, isso acaba gerando um conflito na relação. E o que
desestimula muito o profissional também da área de saúde da família. (Gestor, Piraí)
Entretanto, esse processo reclama uma série de alterações posturais dos trabalhadores que podem pro-
duzir resistência ou mudanças nas relações e práticas. Um médico de Porto Alegre relata a transforma-
ção da relação com os usuários dos serviços, demonstrando o caráter processual da integralidade.
Na própria relação do médico com o paciente, vamos dizer assim, isso mudou muito desde que eu
comecei a trabalhar, já faz bastante tempo. Naquele tempo a gente era meio que ditador assim...
Ela precisa fazer esse remédio, esse exame, enfim, o sujeito não tinha muito espaço pra reclamar.
Mas hoje isso tá muito mudado, né. Eu mesmo escuto a pessoa e dou muito valor para aquilo ela tá
Cristiana Bonaldi et al.
Como aponta a fala, até ele já está escutando a pessoa. Ele se tornou um profissional melhor agora?
Estamos falando de profissionais melhores ou piores? O que o fez mudar sua postura? Como se deu
esse processo?
Acreditamos que esse seja um ponto relevante para pensarmos a formação para integralidade. Como
Curso de
Desenvolvimento
foi apontado em outro artigo desta coletânea,5 a forma como a relação com o outro se estabelece é
Gerencial um ingrediente fundamental para pensarmos as práticas de saúde. Na verdade, não podemos pensá-
do SUS
las separadas da rede de relações coemergente a prática em saúde. Desta maneira, analisar as relações
COLETÂNEA
DE TEXTOS estabelecidas pelos atores das instituições de saúde produz novas formas de trabalhar, produz novas
formas de ação ou reforça as antigas.
O Trabalho em equipe como dispositivo de integralidade:
experiências cotidianas em quatro localidades brasileiras
Por exemplo, aqui nessa sala, eu tava conversando com uma colega, né, e não sei porque nós está-
vamos falando do vínculo , que era importante o vínculo com o paciente e tal. Aí uma moça que
era residente disse assim: “É, mas com os pacientes do SUS não é possível fazer vínculo, né?”. Nós
dissemos – Pera lá... – Pra você ver... Ela aprendeu isso. Aprendeu aí na prática. Então não é assim...
Então o que eu acho que tá faltando na coisa da residência médica, um espaço pra discussão dos
problemas profissionais e da relação do médico/paciente e do médico/equipe, com a enfermagem e
enfim, né? (Médico, Porto Alegre)
Referências
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DEJOURS, C. Cooperação e construção da identidade em situação de trabalho. Futur antérieur, v.16, p. 41-52, 1993.
GIL, C. R. R. Atenção primária, atenção básica e saúde da família: sinergias e singularidades do contexto brasileiro.
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php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2006000600006&lng=pt&nrm=iso>. Acessado em: 31 maio 2007.
GOMES, R. S.; PINHEIRO, R.; GUIZARDI, F. L. A orquestração do trabalho em saúde: um debate sobre a fragmentação
5
Gomes, Silva e Pinheiro: “Noções fundantes. Integralidade como princípio ético e formativo: um ensaio sobre os valores éticos
para estudos sobre o trabalho em equipe na saúde”.
328
das equipes. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Construção social da demanda. Rio de Janeiro: Cepesc, 2005.
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SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse: Octarès, 2000.
COLETÂNEA
DE TEXTOS
329
Para saber mais
(Bibliografia complementar)
1. PEDUZZI, Marina. Trabalho em equipe de saúde no horizonte normativo da integralidade, do cuidado e da democratização das
relações de trabalho. In: PINHEIRO, Roseni; MATTOS, Ruben Araújo de; BARROS, Maria Elizabeth Barros de (Orgs.). Trabalho
em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas. Rio de Janeiro: CEPESC-UERJ/ABRASCO, 2007. p. 161-177.
331
Módulo 6: Gerência de Recursos na Unidade
ORÇAMENTÁRIO-FINANCEIRA1
1. Introdução
A intensidade e a velocidade com que vêm ocorrendo mudanças na ordem econômica e social e no
ambiente cultural e tecnológico das organizações têm determinado profundas alterações na forma e
na filosofia de gestão empresarial.
A flexibilidade administrativa é hoje uma exigência para o gestor comprometido com a melhoria da
qualidade dos bens e serviços oferecidos.
Consciência da missão institucional; liderança; racionalização de custos; aperfeiçoamento constan-
te dos sistemas de produção; capacitação permanente de pessoal no trabalho; eliminação de níveis
hierárquicos, de slogans com exortações de mitos, de quotas de produção, de gerenciamento por ob-
jetivos e de avaliação individual periódica são alguns dos enunciados básicos para a obtenção de uma
nova atitude em relação ao trabalho e ao ambiente onde ele se dá.
A melhoria de qualidade passa a assumir a prioridade. O enfoque é o cliente e a visão gerencial se des-
loca do produto para o processo; o horizonte de curto prazo é substituído pela visão de longo prazo;
a competição dá lugar à cooperação. A estratégia é o trabalho de equipes — times — que integram
pessoas para a realização de atividades, em torno de objetivos claramente definidos e de uma missão
institucional entendida por todos.
Com esse enfoque são eliminados os fossos existentes entre as atividades desenvolvidas pelas áreas
fim e as áreas meio ou de apoio. Ambas passam a trabalhar em função de um mesmo objetivo, apesar
de desenvolverem distintos processos de trabalho.
A falta de conhecimento mútuo sobre os processos de trabalho de cada uma das áreas e setores de
1
Texto elaborado para a Bibliografia Básica do Projeto GERUS. Publicado originalmente em: MANDELLI, Marcos José. A gerência
dos meios de produção na unidade da rede básica de saúde: um enfoque integrado da administração de materiais, serviços gerais e
orçamentário-financeira. In: SANTANA, José Paranaguá de (Org.). Desenvolvimento gerencial de unidades básicas do Sistema Único de
Saúde (SUS). Brasília: OPAS, 1997. p. 236-251.
2
Administrador, gerente de projetos da Fundação Oswaldo Cruz.
337
uma organização seguramente pode ser apontada como um dos maiores obstáculos à interação e
à consequente melhoria da qualidade dos serviços. Na área da saúde e mais especificamente em
unidades da rede básica de saúde, até pelos antecedentes históricos que apresentam, esse quadro
pode ser facilmente identificado.
Com estas notas pretende-se tornar mais transparentes as formas de estruturação, organização e
gerência dos meios de produção numa unidade de saúde, enquanto integrantes de um processo de
produção de serviços que se volta para a melhoria da qualidade assistencial à sua clientela.
Para efeitos desse trabalho serão tratados como meios de produção as atividades e serviços
tradicionalmente desenvolvidos pelas áreas de administração de materiais, serviços gerais e
orçamentário-financeira.
As atividades dessas áreas são caracterizadas como sendo tipicamente de apoio às áreas-fim, o que
implica em percebê-las como fornecedoras de serviços que têm como clientes prioritários os setores
diretamente envolvidos com a prestação de serviços aos clientes externos.
Marcos José Mandelli
A falta de clareza dos papéis por elas exercidos dentro da organização tem sido tradicionalmente
apontada como uma das mais importantes causas do mau desempenho que apresentam. Não tendo a
necessária compreensão sobre a missão e os objetivos da unidade, muitas vezes até porque não estão
claramente definidos e explicitados, os setores responsáveis pelas áreas-meio acabam se percebendo
como áreas-fim em si mesmas.
Se ocorre distanciamento da gerência dos meios de produção em relação às ações finalísticas, ob-
Curso de
Desenvolvimento jetivos e missão institucional, isso tem a ver, em parte, também com sua inserção em terceiros ou
Gerencial
do SUS quartos escalões hierárquicos, em relação ao nível de tomada de decisões, tornando o diálogo com
COLETÂNEA o usuário difícil ou inexistente e potencializando os déficits da área, já agravados pela falta de pessoal
DE TEXTOS
profissionalizado e pelos insuficientes esforços realizados para capacitar pessoal específico.
A desejável interação entre setores, para ser efetiva, requer de todos, o conhecimento e a compreen-
A gerência dos meios de produção na unidade da rede básica de saúde
são das relações entre seus pares, que tem a conformação de uma rede de clientes/usuários (internos
ou externos) e fornecedores (internos ou externos).
Exemplificando: Os pacientes num ambulatório são clientes e os médicos fornecedores (de serviços).
Esses médicos por sua vez são clientes da enfermagem, que é então seu fornecedor (de serviços). A
enfermagem pode ser cliente da farmácia, que é seu fornecedor (de medicamentos ou outros insumos)
ou do serviço de higienização, que por sua vez são clientes do almoxarifado, que é cliente do setor de
compras e assim por diante.
Na tentativa de tornar clara a abordagem das relações da gerência dos meios de produção e a
importância de sua interação no processo produtivo de uma unidade de saúde, este trabalho foi
concebido deliberadamente de maneira simples para oferecer informações práticas para as neces-
sidades rotineiras da unidade.
Trabalharemos com o conceito de sistemas que têm sob sua responsabilidade a coordenação de ati-
vidades específicas, geralmente desenvolvidas por serviços, divisões ou departamentos, que se im-
bricam e mantêm relações de interdependência com outros setores da organização e até mesmo fora
dela, para a produção dos bens e serviços a eles demandados.
338
2. A Gerência do Sistema de Material
A administração de materiais tem por objetivo suprir, em quantidade e qualidade, o mais próximo
possível do momento em que se dá o uso e com o menor custo possível, os itens que os setores vol-
tados para atender ao cliente externo requeiram para a produção de bens e serviços relacionados
com a missão e com os objetivos da organização. Não se trata de materiais permanentes tais como
equipamentos, móveis e veículos mas sim, itens estocáveis e de consumo imediato, tais como, numa
unidade de saúde, medicamentos, gêneros alimentícios, produtos de escritório, de limpeza, de con-
servação e reparos, material cirúrgico e radiológico, reagentes químicos, vidraria e outros.
Alguns autores têm citado que nos sistemas hospitalares, os materiais têm representado um gasto
entre 15% e 25% das despesas correntes (ou de custeio) e, em sistemas de atendimento ambula-
torial, entre 2 e 5%.
Os sistemas de materiais em organizações hospitalares movimentam entre 3 mil e 6 mil itens e nas
de caráter ambulatorial esse movimento cai para uma escala entre 200 e 500 itens.
339
do Estoque de Segurança, a Análise ABC e Valor (para estoques) de Estoque Mínimo e Estoque
Máximo, de Custo Médio Ponderado, e de valoração — PEPS (o primeiro a entrar é o primeiro
a sair) ou FIFO ( first in, first out) para entrada e UEPS (o último a entrar é o primeiro a sair) ou
LIFO (last in, first out) para saída.
c. Subsistema de aquisição: aquisição (compra) e alienação (venda de materiais não utilizados ou
inservíveis)
A função de compras busca atender às necessidades de materiais, dentro das qualificações e prazos
exigidos pelo processo produtivo, selecionando fornecedores capazes e que ofereçam melhores
preços e condições de pagamento, dentro dos prazos e especificações exigidos.
Todas essas condições devem ser vistas e cotejadas dentro do procedimento de compra, que ao
mesmo tempo, por envolver o uso direto de recursos financeiros, deve também trabalhar em sin-
tonia com os setores da administração responsáveis pela área orçamentária e financeira.
Na empresa privada várias são as formas mobilizadas para compras. No setor público existe uma
Marcos José Mandelli
340
Em geral a gerência de unidades da rede básica de saúde tem pouca relação com o mercado forne-
cedor. Normalmente a compra dos itens de maior importância é responsabilidade do nível central
(Secretaria Municipal ou Estadual de Saúde), o que faz da unidade um cliente do nível central.
Passam a ser válidas portanto, nessa relação, as mesmas premissas que norteiam as relações entre
cliente e fornecedores externos.
Os estudos de Reengenharia que redefinem processos de trabalho como forma de melhorar a per-
formance das organizações, têm apontado que a centralização excessiva causa mais males do que
ajuda na racionalização e na redução de custos nos processos de compras. Alguns estudos apontam
inclusive que substancial número de itens comprados de forma centralizada tem custos de pro-
cesso superiores aos da aquisição do bem, o que torna urgente redefinir a sistemática adotada. A
gerência de nível executivo, com a visão da complexidade do processo, tem a obrigação de propor
mudanças no processo de trabalho, sempre que se evidenciarem distorções dessa natureza, ou seja,
aos gerentes de unidades da rede básica de saúde cabe propor a aquisição direta, pela unidade, de
itens atualmente demandados ao nível central ou regional e cuja simplicidade para a realização da
sório — a decisão sobre a montagem de serviços próprios ou da contratação de terceiros poderá ser
dada resolvendo-se questão de custos. Se adequados à solução desejada, serão próprios. Caso contrário,
contratados. Mas, qualquer que seja a decisão, é preciso que haja capacidade de gerenciar recursos inter-
nos e externos, daí constatar-se ser imprescindível garantir a profissionalização no sistema.
A tendência atualmente predominante é a terceirização dessas atividades, o que não descarta a neces-
Curso de
sidade da organização ter uma certa capacidade de diálogo técnico com os usuários e com o mercado,
Desenvolvimento como forma de garantir a prestação de bens e serviços a partir de solicitações técnicas adequada-
Gerencial
do SUS mente formuladas e da construção de relações de parceria e confiança com o prestador/fornecedor.
COLETÂNEA
DE TEXTOS
b. Sistema de Vigilância
A gerência dos meios de produção na unidade da rede básica de saúde
O sistema de vigilância tem por objetivo zelar pela segurança patrimonial, seja evitando roubos e
depredação do patrimônio, seja adotando medidas voltadas para a prevenção de sinistros tais como
incêndios e inundações.
Estruturando-se para administrar problemas complexos como os roubos, tradicionalmente o faz adotan-
do medidas ‘formais’ que minimizem o problema para dimensões e magnitudes aceitáveis. São instituídas
rotinas pormenorizadas para movimentação de equipamentos, controle de entrada e saída de funcioná-
rios e não funcionários, adotadas restrições para movimentação de equipamentos e acesso a determinadas
áreas, realizada conferência periódica de bens estocados, conferências aleatórias de patrimônio etc.
A alocação de mão-de-obra para o sistema de vigilância pode se dar de três maneiras: 1) contratan-
do pessoal de empresas especializadas mas gerenciadas pela própria organização; 2) contratando o
sistema, inclusive seu gerenciamento; 3) utilizando exclusivamente mão-de-obra própria (pessoal e
gerenciamento próprios).
A tendência nesta área, devido ao elevado turn over de seu pessoal é a terceirização.
A operação eficaz do sistema de vigilância no entanto, não está dada somente pela adoção das me-
didas acima apontadas. Questões como roubo ou depredação têm a ver também com a cultura e a
forma como a organização é percebida pelos seus funcionários. Se o sentido do coletivo predomina,
o sistema não pode ser pensado separadamente das demais áreas e a função de zelar passa a ser de to-
342
dos, com resultados certamente mais efetivos. Quanto mais participativas e interativas forem as áreas
de uma organização, menores serão os problemas e as necessidades relacionadas com o sistema de
vigilância que, assim, passa a dirigir suas ações prioritariamente para ações preventivas de segurança
patrimonial, tais como incêndios, inundações e outros possíveis eventos indesejáveis.
c. Serviços de Limpeza
Responsável pela limpeza e assepsia das instalações da organização, na área de saúde a limpeza
passou a ser chamada de serviço de higiene ou higienização, devido à sua importância na questão
do controle de infecção.
Com a agregação de novas técnicas, produtos e controles desenvolvidos nos últimos anos e devido a
esse aumento da consciência sobre sua importância na redução de índices da infecção ambulatorial
e hospitalar, tem sido discutido o perfil profissional da gerência da área e sua subordinação adminis-
trativa. A tendência em unidades de maior porte tem sido a de entregar a gerência da área a profis-
sionais de enfermagem, com maior domínio sobre microbiologia e conhecimentos sobre a ação dos
d. Serviço de Transporte
Responsável pela operação da frota de veículos à disposição de uma organização, o serviço de trans-
porte tem o seu encargo desde o planejamento da aquisição de veículos até sua utilização específica.
Para uma unidade de saúde, o transporte é um serviço de apoio cujas definições dependerão das
exigências dos usuários e do modelo operacional proposto para atendê-los. Pode significar uma área
de fundamental importância para as unidades de saúde de menor porte, com limitada capacidade re-
solutiva, que utilizam o transporte como forma de propiciar ao paciente uma atenção mais complexa
em outra unidade que disponha de mais recursos.
A interação desse serviço com as áreas fim da organização inicia-se no próprio planejamento de ati-
vidades, pois essas vão determinar o tipo de veículo a ser adquirido e suas especificidades. No setor
saúde, além das necessidades ditadas por serviços de natureza geral, existem necessidades específi-
cas, como unidades volantes de atendimento médico e odontológico e de laboratórios para análise
e controle de alimentos; veículos utilizados para apreensão de animais; e, veículos utilizados para
atendimento de populações dispersas, podendo-se chegar até mesmo à necessidade de sua aquisição
343
para transporte marítimo ou aéreo. Há ainda muitas necessidades relacionadas, entre outros casos,
com o atendimento de urgências, emergências ou catástrofes em grandes centros urbanos.
O conhecimento e a consciência do papel exercido pelo serviço de transportes por parte de seus inte-
grantes e de sua gerência é fundamental para que as prioridades fixadas quanto à utilização de veículos
seja cumprida. Caso contrário será comum a ocorrência de desvios de utilização que poderão redun-
dar em comprometimento da qualidade dos serviços prestados pela unidade de saúde.
A mão-de-obra que integra uma equipe na área dos transportes também vem, como tendência, sendo
obtida através de terceiros, conseguindo-se dessa forma maior agilidade na sua reposição, que ocorre
por exigência do elevado turn over verificado no setor.
Mas, qualquer que seja a forma de se estruturar, a preocupação com a capacitação do pessoal dessa
área deverá ser permanente, seja aquele relacionado com questões específicas do transporte de pa-
cientes, quanto aquele relacionado com a compreensão da missão e objetivos institucionais.
Marcos José Mandelli
para uma correta decisão, e o desconhecimento sobre sua importância pode resultar num descom-
passo entre a chegada da informação e sua efetiva disponibilidade.
Nos últimos anos as comunicações têm passado por um rápido processo de substituição de meios,
em função dos avanços tecnológicos da área das telecomunicações, associados à informatização. A
utilização convencional dos correios, enquanto veículo de comunicação, foi sendo substituída pelo
telex, telefone e finalmente pelo fac-símile (fax), na busca de uma maior velocidade e de formas mais
confiáveis de transmissão de informações.
Muitas organizações incorporaram esses novos mecanismos e instrumentos de informação, mas não
alteraram as rotinas dos serviços de comunicações administrativas. É comum ainda hoje deparar-se
com situações em que informações enviadas por fax são tratadas da mesma forma como é tratada a
correspondência ordinária.
O risco de incompatibilidade entre equipamentos e processos operacionais dos serviços de comu-
nicações administrativas é imenso, e especial atenção tem que ser dada à área, tanto em termos de
capacitação de seu pessoal para operar novos equipamentos, quanto de redefinição dos processos de
trabalho que eles determinam.
A guarda de documentos, também função típica dos serviços de comunicações administrativas re-
quer estudos constantes sobre sua operação, devendo deles participar todos os setores da organi-
344
zação. Existe uma legislação própria que trata de procedimentos a serem adotados para a guarda
de documentos, segundo sua especificidade, que está normalmente relacionada com o período de
tempo requerido de guarda, até sua eliminação. Mas, o mais importante é associar os procedimentos
de guarda às necessidades da organização, como por exemplo, realizar a manutenção de arquivos
permanentes que sejam úteis no atendimento da demanda por informações.
345
gestores, é o grande momento da tomada de decisões estratégicas, pois, a partir daí as ações a serem
empreendidas estarão dependentes da inclusão e da disponibilidade orçamentária para se efetivarem.
Aprovado o orçamento, cabe à gerência ou a quem estiver delegada a função, além de analisar proces-
sos relacionados com a realização de gastos, acompanhar e controlar sua execução e manter um fluxo
constante de informações com a unidade orçamentária ou o setor de orçamento a qual se vincule
técnica ou administrativamente, com vistas a corrigir distorções verificadas na execução e, desta
forma, contribuir para o seu aprimoramento.
b. Execução financeira
A realização de despesas está atrelada à disponibilidade dos recursos já aprovados no Orçamento.
Normalmente a liberação dos recursos é realizada em parcelas duodecimais, mas podem levar em
conta cronogramas que estabelecem previamente outra programação de gasto.
Recebidos os créditos, uma unidade gestora (na saúde, normalmente a Secretaria Municipal ou Es-
Marcos José Mandelli
tadual de Saúde) estará apta a realizar os repasses às unidades gestoras (centros de saúde, hospitais,
etc.) e estas a realizar despesas.
A realização da despesa se inicia com o empenho, que nada mais é do que uma obrigação ou reserva
de crédito para pagamento futuro. O empenho é formalizado mediante a emissão de uma Nota de
Empenho da qual constam todas as informações necessárias ao controle da execução orçamentária e
ao acompanhamento da programação financeira (o que tem que ser pago? quando? a quem? Justifi-
Curso de
Desenvolvimento cado de que forma?).
Gerencial
do SUS No momento em que se apura o direito adquirido do credor (um fornecedor ou prestador de servi-
COLETÂNEA ços) e se comprova terem sido cumpridas as obrigações contratadas, inicia-se a liquidação da despesa.
DE TEXTOS
Na liquidação são apurados: a origem e o objeto do que deve ser pago; a importância exata a pagar;
e a quem se deve pagar.
A gerência dos meios de produção na unidade da rede básica de saúde
comissão ou de grupo de trabalho ou assemelhado, ou para servidor a quem se atribua o encargo do COLETÂNEA
DE TEXTOS
pagamento das despesas autorizadas pela autoridade ordenadora.
A fixação do valor do suprimento de fundos é determinada pelo Ordenador de Despesa.
No ato em que autoriza a concessão de suprimento, a autoridade ordenadora fixa o prazo de aplicação
dos recursos (normalmente não ultrapassa 90 dias) e o da prestação de contas (normalmente 30 dias).
Esses prazos devem ainda considerar o término do exercício financeiro, que não deve ser ultrapassado.
O servidor que recebe suprimento de fundos fica obrigado a prestar conta de sua aplicação, que deve
se dar mediante a apresentação dos seguintes documentos:
cópia do ato de concessão do suprimento;
347
primeira via da Nota de Empenho da Despesa;
extrato da conta bancária, se for o caso;
demonstração de receitas e despesas; e
comprovantes em originais das despesas realizadas, devidamente atestados por outros servidores
que tenham conhecimento da condição em que as despesas foram realizadas, emitidos em data
igual ou posterior à da entrega do numerário e compreendida dentro do período fixado para apli-
cação, em nome do órgão emissor do empenho (notas fiscais de venda de bens e materiais ou de
prestação de serviços por pessoa jurídica; recibo comum ou de pagamento de autônomo, quando
a prestação de serviços for feita por pessoa física);
comprovante de recolhimento de saldo, se for o caso.
c. Custos
As indagações quanto à produtividade, eficiência, eficácia e efetividade das ações e serviços de saúde,
agregadas à crescente escassez de recursos alocados ao Setor, têm levado as instituições a analisar os
custos dos serviços que prestam, até mesmo para estabelecer parâmetros comparativos.
Curso de Várias metodologias de apuração de custos são empregadas nas instituições de saúde. A mais utilizada
Desenvolvimento
Gerencial delas é a que utiliza centros de custo, geralmente subunidades (centro cirúrgico, ambulatório, centro
do SUS
radiológico, serviço de nutrição e dietética, lavanderia, etc.). Nestas subunidades são apurados os
COLETÂNEA gastos diretos e apropriados outros que lhes dizem respeito, obtendo-se como produto o custo de
DE TEXTOS
funcionamento de cada um desses centros. Outras formas de apurar custos são também empregadas,
estando definidas em função dos objetivos da mesma: custo de diagnósticos, custo por patologias,
A gerência dos meios de produção na unidade da rede básica de saúde
5. Considerações finais
Numa organização, o adequado funcionamento das atividades meio é requisito inquestionável para a
produção de bens e serviços com qualidade e eficiência.
É importante numa organização, que os diversos setores reconheçam e identifiquem tanto os seus clien-
tes externos (razão da existência da própria organização) quanto seus clientes ou fornecedores internos
ou setores dentro da organização, para os quais produzem ou recebem algum bem ou serviço.
348
Essa identificação, que tende a formar uma rede de clientes/fornecedores é extremamente útil para
que o controle sobre a qualidade do trabalho seja exercido em cada fase do processo (o cliente con-
trola a qualidade do bem ou serviço oferecido pelo fornecedor, podendo recusá-lo e oferecer soluções
para melhorá-lo), fazendo com que, em última instância, o maior beneficiário seja o cliente externo.
Para que esse relacionamento entre cliente e fornecedor se efetive é necessária a criação de espaços
integradores que possibilitem tornar explícita a determinação em realizar um trabalho de forma
integrada e solidária. Com o cliente externo, esses espaços podem ser traduzidos na forma de caixa
de sugestões, de criação de central de atendimento ao cliente/consumidor, e de criação de conselhos
comunitários com a participação de representantes da sociedade civil e da comunidade de usuários
entre outras. Com o cliente interno, esses espaços podem ser viabilizados na forma de reuniões periódi-
cas, comunicações verbais diretas entre gerências, congraçamentos, visitas ou qualquer outra forma
que melhore a compreensão sobre o trabalho das partes e permita que sugestões sejam propostas
visando a melhoria dos respectivos processos.
Os objetivos fixados para a organização devem refletir as necessidades dos usuários. Esse enunciado
349
Mesmo as restrições já referidas anteriormente, impostas pela Lei n.º 8.666, que rege as licitações,
podem ser minimizadas se interpretadas no sentido positivo que normalmente norteia a intenção do
legislador.
Uma nova postura da gerência frente às questões anteriormente colocadas, que conduza à adoção de
medidas consequentes e responsáveis e possibilite a coordenação dos distintos processos de trabalho
envolvidos na atividade de prestação de serviços, é um requerimento indispensável para que todos os
recursos sejam direcionados para os objetivos e a missão institucional.
Referências
AGUAYO, R. Dr. Deming, o americano que ensinou qualidade total aos japoneses. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1993.
HAMMER, M. & CHAMPY, J. Reengenharia: revolucionando a empresa em função dos clientes, da concorrência e das grandes
mudanças da gerência. 3ª edição. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1994.
ISHIKAWA, K. Controle de qualidade total à maneira japonesa. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1993.
MANDELLI, M.J. Elaboração e execução do orçamento público: roteiro de apoio.
Marcos José Mandelli
————— & FEKETE, M.C. Administração estratégica em unidade de saúde. In: Capacitação em Gerência de Unidades
Básicas de Saúde do Distrito Sanitário.
MÉDICI, A.C. & SILVA, P.L.B. A administração flexível: uma introdução às novas filosofias de gestão. São Paulo, 1992.
(Mimeo)
VECINA NETO, G. Os serviços gerais na gestão as unidades básicas do distrito sanitário.
—————. Administração de materiais para gerentes de silos.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS
COLETÂNEA
DE TEXTOS
A gerência dos meios de produção na unidade da rede básica de saúde
350
Para saber mais
(Bibliografia complementar)
1. CAMARGO JÚNIOR, Kenneth Rochel de. MATTOS, Ruben Araújo de. Administração de recursos materiais. In: BRASIL.
Ministério da Saúde. Gesthos. Módulo III. Gestão de Recursos nas Organizações de Saúde. Brasília: MS, 2002. p. 50-91.
351
Módulo 7: Educação Permanente para
Fortalecimento Gerencial
Assumo neste texto um caráter autoral, menos me importando com a revisão da literatura que com
o destaque ao desafio de reconhecer no setor da saúde a exigência ético-política de um processo
educativo incorporado ao cotidiano da produção setorial. Pretendo que o texto cumpra a função de
estabelecer um debate, cujas sugestões/induções de pensamento – ou o despertar de pensamento –
localizem mais o problema da necessidade da educação na saúde que os delineamentos pedagógicos
da vertente que se pode identificar como Educação Permanente.
A identificação Educação Permanente em Saúde3 está carregando, então, a definição pedagó-
gica para o processo educativo que coloca o cotidiano do trabalho – ou da formação – em saúde
em análise, que se permeabiliza pelas relações concretas que operam realidades e que possibilita
construir espaços coletivos para a reflexão e avaliação de sentido dos atos produzidos no cotidiano.
A Educação Permanente em Saúde, ao mesmo tempo em que disputa pela atualização cotidiana
das práticas segundo os mais recentes aportes teóricos, metodológicos, científicos e tecnológicos
disponíveis, insere-se em uma necessária construção de relações e processos que vão do interior
das equipes em atuação conjunta, – implicando seus agentes –, às práticas organizacionais, – im-
plicando a instituição e/ou o setor da saúde –, e às práticas interinstitucionias e/ou intersetoriais,
– implicando as políticas nas quais se inscrevem os atos de saúde.
1
Este artigo, adaptado para a presente coletânea, foi publicado originalmente em: CECCIM, Ricardo Burg. Educação permanente em
saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-168, set.2004-fev.2005.
2
Professor, Programa de Pós-Graduação em Educação, Grupo Temático de Educação em Saúde, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul; Departamento de Gestão da Educação na Saúde, Ministério da Saúde. <ceccim@edu.ufrgs.br>; <ceccim@saude.gov.br>
3
Faço a escolha pela designação Educação Permanente em Saúde e não apenas Educação Permanente porque, como vertente
pedagógica, esta formulação ganhou o estatuto de política pública apenas na área da saúde. Este estatuto se deveu à difusão, pela
Organização Pan-Americana da Saúde, da proposta de Educação Permanente do Pessoal de Saúde para alcançar o desenvolvimento
dos sistemas de saúde na região com reconhecimento de que os serviços de saúde são organizações complexas em que somente a
aprendizagem significativa será capaz da adesão dos trabalhadores aos processos de mudança no cotidiano. Ver, por exemplo, Maria
Alice Roschke, Maria Cristina Davini e Jorge Haddad (Roschke et al., 1994), Maria Alice Roschke e Pedro Brito (Roschke & Brito,
2002) ou Mário Rovere (Rovere, 1996).
357
A Educação Permanente em Saúde pode corresponder à Educação em Serviço, quando esta coloca a
pertinência dos conteúdos, instrumentos e recursos para a formação técnica submetidos a um projeto
de mudanças institucionais ou de mudança da orientação política das ações prestadas em dado tempo
e lugar. Pode corresponder à Educação Continuada, quando esta pertence à construção objetiva de
quadros institucionais e à investidura de carreiras por serviço em tempo e lugar específicos. Pode,
também, corresponder à Educação Formal de Profissionais, quando esta se apresenta amplamente
porosa às multiplicidades da realidade de vivências profissionais e coloca-se em aliança de projetos
integrados entre o setor/mundo do trabalho e o setor/mundo do ensino.
Para muitos educadores, a Educação Permanente em Saúde configura um desdobramento da Educa-
ção Popular ou da Educação de Jovens e Adultos, perfilando-se pelos princípios e/ou diretrizes de-
sencadeados por Paulo Freire desde Educação e Conscientização/Educação como Prática da Liberda-
de/Educação e Mudança, passando pela Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Esperança, Pedagogia
da Cidade, Pedagogia da Autonomia e Pedagogia da Indignação4. De Paulo Freire provém a noção de
aprendizagem significativa, por exemplo.
Para outros educadores, a Educação Permanente em Saúde configura um desdobramento do Movi-
Ricardo Burg Ceccim
4
A obra de Paulo Freire em Educação se estende de 1959 a 2000. Para identificar o período do primeiro bloco referido, pode-se
indicar Educação como prática da liberdade, obra original de 1967 (Freire, 1989) e, para o segundo bloco, Pedagoy of the city, de
1993 (Freire, 1995).
5
Pode-se citar Victor Valla, Eduardo Stotz (Valla & Stotz, 1993; 1994), Eymard Vasconcellos (Vasconcellos, 2001) e Sonia Acioli
(Acioli, 2000), por exemplo.
6
Pode-se citar Gastão Campos (Campos, 2003), Emerson Merhy (Merhy, 2002), Luiz Cecílio (Cecílio, 1994) e Solange L’Abbate
(L’Abbate, 1997), por exemplo.
7
Pode-se referir a rede de integração docente assistencial, os projetos UNI e a rede Unida, pode-se citar Roseni Sena (Sena-
Chompré, 1998), Laura Feuerwerker (Feuerwerker, 2002), Regina Marsiglia (Marsiglia, 1995; 1998) e Márcio Almeida (Almeida,
1999), por exemplo.
8
Pode-se referir a Comissão Nacional Interinstitucional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem), pode-se citar Regina Stella
(Stella, 2001), Rogério Carvalho dos Santos, Roberto Piccini e Luiz Augusto Facchini (Santos et al., 2000) ou, ainda, Emerson
Merhy (Merhy, 2002), por exemplo.
358
Para fins deste debate, destaco que aquilo que deve ser realmente central à Educação Permanente em
Saúde é sua porosidade à realidade mutável e mutante das ações e dos serviços de saúde; é sua ligação
política com a formação de perfis profissionais e de serviços, a introdução de mecanismos, espaços
e temas que geram autoanálise, autogestão, implicação, mudança institucional, enfim, pensamento
(disruptura com instituídos, fórmulas ou modelos) e experimentação (em contexto, em afetividade
– sendo afetado pela realidade/afecção).
359
sos Humanos”) chegou a configurar uma área específica de estudos nas políticas públicas de saúde.
Parece-nos impostergável assegurar à área da formação, então, não mais um lugar secundário ou de
retaguarda, mas um lugar central, finalístico, às políticas de saúde. A introdução desta abordagem
retiraria os trabalhadores da condição de “recursos” para o estatuto de atores sociais das reformas,
do trabalho, das lutas pelo direito à saúde e do ordenamento de práticas acolhedoras e resolutivas de
gestão e de atenção à saúde.
A introdução da Educação Permanente em Saúde seria estratégia fundamental para a recomposição
das práticas de formação, atenção, gestão, formulação de políticas e controle social no setor da saú-
de, estabelecendo ações intersetoriais oficiais e regulares com o setor da educação, submetendo os
processos de mudança na graduação, nas residências, na pós-graduação e na educação técnica à ampla
permeabilidade das necessidades/direitos de saúde da população e da universalização e equidade das
ações e dos serviços de saúde.
Uma ação organizada na direção de uma política da formação pode marcar estas concepções na gestão
do sistema de saúde, mas também demarca uma relação com a população, entendida como cidadãos de
Ricardo Burg Ceccim
direitos. Tal iniciativa pode fazer com que os cidadãos reconheçam tanto a preocupação com a macro-
política de proteção à saúde, como com o desenvolvimento de práticas para a organização do cotidiano
de cuidados às pessoas, registrando uma política da valorização do trabalho e do acolhimento oferecido
aos usuários das ações e dos serviços de saúde, tendo em vista a construção da acessibilidade e resoluti-
vidade da atenção e do sistema de saúde como um todo e o desenvolvimento da autonomia dos usuários
diante do cuidado e da capacidade de gestão social das políticas públicas de saúde.
Curso de
Desenvolvimento
Gerencial
do SUS Formação para a Educação Permanente em Saúde
COLETÂNEA
DE TEXTOS Tradicionalmente, o setor da saúde trabalha com a política de modo fragmentado: saúde coletiva
separada da clínica, qualidade da clínica independente da qualidade da gestão, gestão separada da
Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário
atenção, atenção separada da vigilância, vigilância separada da proteção aos agravos externos e cada
um desses fragmentos divididos em tantas áreas técnicas quantos sejam os campos de saber especiali-
zado. Essa fragmentação também tem gerado especialistas, intelectuais e consultores (expertises) com
uma noção de concentração de saberes que terminam por se impor sobre os profissionais, os serviços
e a sociedade e cujo resultado é a expropriação dos demais saberes e a anulação das realidades locais
em nome do conhecimento/da expertise.
Cada área técnica sempre parte do máximo de conhecimentos acumulados em seu núcleo de saberes
e de práticas e dos princípios políticos considerados mais avançados, segundo a erudição oriunda des-
te núcleo de informações, para examinar os problemas de saúde do país. A partir dessas referências
propõem “políticas específicas” ou, como tradicionalmente acontece, “programas de ação” ou “ações
programáticas”, quase sempre assentadas na assistência individual, em particular sobre o atendimen-
to médico, ou em macropolíticas de vigilância à saúde. Para a implementação de cada “programa
de ação”, propõe-se uma linha de capacitações, isto é, uma linha de prescrições de trabalho aos
profissionais. Essa linha de capacitações/prescrições substitui o papel das áreas técnicas e dos níveis
centrais em definir princípios e diretrizes para as políticas em cada um dos núcleos específicos de
acumulação em saúde e, a partir daí, em lugar de estabelecer apoio solidário às esferas gestoras ou
de serviços nas quais se desdobram em atos políticos, desfiam cursos, treinamentos e protocolos. As
áreas técnicas, tradicionalmente, sem nenhum pudor, se oferecem à prescrição do trabalho e negam
sua oportunidade de assessoramento.
360
Em geral, as áreas, os intelectuais especialistas e os consultores trabalham com dados gerais que
possibilitam identificar a existência dos problemas e sugerir sua explicação, mas não permitem com-
preender sua singularidade, sua vigência subjetiva, suas conexões de sentido local. O olhar, a es-
cuta e o assessoramento que permitem compreender a especificidade da gênese de cada problema
é necessariamente afetiva e local, portanto, é imprescindível que haja encontro entre intelectuais
e consultorias docentes com a gestão de sistemas e serviços locais para a elaboração de estratégias
adequadas ao enfrentamento efetivo dos problemas. Todos e cada um dos que trabalham nos serviços
de saúde, na atenção e na gestão dos sistemas e serviços têm ideias, noções e compreensão acerca da
saúde e de sua produção, do sistema de saúde e de sua operação e do papel que cada profissional ou
cada unidade setorial deve cumprir na prestação das ações de saúde. É a partir dessas ideias, noções
e compreensão que cada profissional se integra às equipes ou agrupamentos de profissionais em cada
ponto do sistema. É a partir dessas concepções, mediadas pela organização dos serviços e do sistema,
que cada profissional opera.
Ao analisarmos um problema institucional, regional ou nacional de maneira contextualizada, desco-
brimos a complexidade de sua explicação e a necessidade de intervenções articuladas. As capacitações
(incerteza) tem de ser intensamente admitido, vivido, percebido. Não se contata o desconforto me-
361
Novas abordagens, mais potentes para desfazer as dicotomias persistentes e sobre as quais foram cons-
truídas as iniciativas anteriores de mudança (individual x coletivo, clínica x saúde pública, especialidade
x generalidade, sofisticação tecnológica x abordagens simplificadas) tornam-se impostergáveis.
O papel das práticas educativas deve ser crítica e incisivamente revisto para que almeje a possibilidade
de pertencer aos serviços/profissionais/estudantes a que se dirigem, de forma que os conhecimentos
que veiculam alcancem significativo cruzamento entre os saberes formais previstos pelos estudiosos
ou especialistas e os saberes operadores das realidades – detidos pelos profissionais em atuação – para
que viabilizem autoanálise e principalmente autogestão. Os saberes formais devem estar implicados
com movimentos de autoanálise e autogestão dos coletivos da realidade, pois são os atores do cotidia-
no que devem ser protagonistas da mudança de realidade desejada pelas práticas educativas.
Uma questão à autoanálise e à autogestão dos coletivos é o trabalho com eixo na integralidade para
superar a modelagem de serviços centrados em procedimentos, de usuários interpretados como pe-
ças orgânicas ou como o simples território onde evoluem os quadros fisiopatológicos e de doenças
enfrentadas como eventos biológicos (como se esse conhecimento fosse de ciências naturais)10 .
Dessa maneira, além de processos que permitam incorporar tecnologias e referenciais necessários,
é preciso implementar espaços de discussão, análise e reflexão da prática no cotidiano do trabalho e
dos referenciais que orientam essas práticas, com apoiadores matriciais de outras áreas, ativadores de
processos de mudança institucional e facilitadores de coletivos organizados para a produção.
9
Pode-se sugerir a leitura da produção em colaboração de Ceccim & Feuerwerker, 2004a e b.
10
Para compreender a integralidade, pode-se citar outros brasileiros: Ruben Mattos, Roseni Pinheiro (Pinheiro & Mattos, 2001;
2003; 2004), Kenneth Camargo Jr. (Camargo Jr., 2003) e Madel Luz (Luz, 1988), por exemplo.
362
Tomar o cotidiano como lugar aberto à revisão permanente e gerar o desconforto com os lugares
“como estão/como são”, deixar o conforto com as cenas “como estavam/como eram” e abrir os ser-
viços como lugares de produção de subjetividade, tomar as relações como produção, como lugar de
problematização, como abertura para a produção e não como conformação permite praticar contun-
dentemente a Educação Permanente em Saúde.
Para ocupar o lugar ativo da Educação Permanente em Saúde precisamos abandonar (desaprender) o
sujeito que somos, por isso mais que sermos sujeitos (assujeitados pelos modelos hegemônicos e/ou
pelos papéis instituídos) precisamos ser produção de subjetividade: todo o tempo abrindo fronteiras,
desterritorializando grades (gradis) de comportamento ou de gestão do processo de trabalho. Pre-
cisamos, portanto, também trabalhar no deslocamento dos padrões de subjetividade hegemônicos:
deixar de ser os sujeitos que vimos sendo, por exemplo, que se encaixam em modelos prévios de
ser profissional, de ser estudante, de ser paciente (confortáveis nas cenas clássicas e duras da clínica
tradicional, mecanicista, biologicista, procedimento-centrada e medicalizadora).
Se somos atores ativos das cenas de formação e trabalho (produtos e produtores das cenas, em ato), os
eventos em cena nos produzem diferença, nos afetam, nos modificam, produzindo abalos em nosso
Referências
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LOURAU, R.; LAPASSADE, G. Chaves da Sociologia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
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Ricardo Burg Ceccim
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DE TEXTOS
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Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário
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Para saber mais
(Bibliografia complementar)
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4. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 1996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação
da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde e dá outras providências. Brasília: MS, 1996.
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Sobre o Livro
Formato: 210x280 mm.
Mancha Gráfica: 174x220 mm.
Tipologias utilizadas: Perpetua e Bauhaus
Papel: Sulfite 90g (miolo)
e Papel Triplex 250g (capa)