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direção de
Gastão Wagner de Sousa Campos
José Ruben de Alcântara Bonfim
Maria Cecília de Souza Minayo
Marco Akerman
Yara Maria de Carvalho
ex-diretores
David Capistrano Filho
Emerson Elias Merhy
Marcos Drumond Júnior
NAS ENTRANHAS
DA ATENÇÃO PRIMÁRIA
À SAÚDE
•
o cotidiano entre a formação e a prática
HUCITEC EDITORA
São Paulo, 2021
© Direitos autorais, 2021, da organização de,
Felipe Guedes, Gastão Wagner de Sousa Campos,
Lilian Soares Vidal Terra & Mônica Martins de Oliveira Viana
Direitos de publicação reservados por
Hucitec Editora Ltda.
Rua Dona Inácia Uchoa, 209
04110-020 São Paulo, SP.
Tel.: (55 11) 3892-7772 3892-7776
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www.lojahucitec.com.br
Direção editorial
Mariana Nada
Produção editorial
Kátia Reis
Assistência editorial
Mariana Bizzarro Terra
Circulação
Elvio Tezza
17 Apresentação, Os organizadores
PARTE I
Capítulo 1
23 Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada: a experiência pai-
deia, Gastão Wagner de Sousa Campos
Capítulo 2
49 Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde: reflexões a
partir da experiência, Mônica Martins de Oliveira Viana & Gizélia Ro-
sana Quadrado Carmazini
Capítulo 3
72 Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia: reflexão sobre
a prática, Lilian Soares Vidal Terra, Gustavo Tenório, Mônica Martins
de Oliveira, Jorge Mendes Ávila & Gizélia Rosana Quadrado Carmazini
Sumário • 7
Capítulo 4
92 Clínica ampliada na formação médica: o uso do Método Balint-Pai-
deia, Elisa Toffoli Rodrigues, Erica Maria Ferreira Oliveira, Fernanda
Nogueira Campos Rizzi, Henrique Cardoso Marcene, Gabriela Ferrei-
ra de Camargos Rosa, Vilson Limirio Junior & Gastão Wagner de Sou-
sa Campos
Capítulo 5
108 Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho: observa-
ções de um curso de formação, Robenia Mara Ribeiro, Adilson Rocha
Campos, Julia Amorim Santos & Gastão Wagner de Sousa Campos
PARTE II
Capítulo 6
135 O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise: desafios na am-
pliação da clínica, Felipe Guedes, André Pimenta de Melo & Lilian
Soares Vidal Terra
Capítulo 7
154 Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde: o método delibera-
tivo como dispositivo de educação permanente, Daniele Pompei Sa-
cardo
Capítulo 8
174 Exposição à violência: desafios e recomendações para a articulação
de redes junto da Atenção Primária à Saúde, Carolina Con Andrades
Luiz, Alice Andrade Silva, Vanessa Eda Paz Leite, Leidy Janeth Erazo
Chavez, Bruna Jandoso, Rafael Freitas Colaço, Juliana Américo Dai-
nezi, Giovana Pellatti, Bruna Maiara Melo de Paula, Newton Cesar
Caetano Monteiro, Renata Marques Rego Miranda & Rosana Teresa
Onocko-Campos
Capítulo 9
193 Desafios na atenção ao público infanto-juvenil na Atenção Primária
à Saúde (APS): violência, notificação e cuidado, Felipe Guedes, Pedro
Henrique Pirovani Rodrigues & Alice Andrade Silva
8 • Sumário
Capítulo 10
213 Experimentações para a construção de novas abordagens de saúde
da mulher na Atenção Primária à Saúde, Thais Machado Dias, Ca-
thana Freitas de Oliveira & Lilian Soares Vidal Terra
Capítulo 11
234 Atenção aos pacientes crônicos na APS: ir onde o povo está, conver-
sar, versar, fazer conversação, com versos e ações, Adail de Almeida
Rollo & Gastão Wagner de Sousa Campos
Capítulo 12
252 Elementos fundamentais para a abordagem do uso problemático de
SPA no contexto da APS, André Pimenta de Melo & Débora Gomes
de Melo dos Santos Medeiros
Capítulo 13
281 Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada e Compartilha-
da: contribuições dos Grupos Balint-Paideia, Elisa Toffoli Rodrigues,
Fernanda Nogueira Campos Rizzi, Henrique Cardoso Marcene & Gas-
tão Wagner de Sousa Campos
Capítulo 14
304 Grupo de autocuidado apoiado: estratégia de qualificação do cuida-
do aos usuários com hipertensão e diabetes na APS, Vanessa Cristina
dos Santos Pinto, Gustavo Tenório Cunha & Mônica Martins de Oli-
veira Viana
Capítulo 15
320 A bailarina e o mar: acompanhamento de um caso grave de saúde
mental na Atenção Primária à Saúde, Natálhia Ferrari Gabetta, Mér-
cia Flaibam Romanin, Felipe Guedes & Adail de Almeida Rollo
Capítulo 16
337 O cuidado a idosos em situação de vulnerabilidade: desafios para
uma equipe da APS, Vanessa Bueno da Silva, Adilson Rocha Campos,
Robenia Mara Ribeiro & Julia Amorim Santos
Sumário • 9
Capítulo 17
349 Enfrentando na Atenção Básica o desafio do cuidado a uma família
com mulher em situação de abuso de substâncias psicoativas e filhos
sob a violação de direitos, Paulo Vicente Bonilha Almeida, Carolina
Da Silva Krzesinski, Marcia Merisse & Rosangela Santos Oliveira
10 • Sumário
As autoras e os autores
As autoras e os autores • 11
Bruna Maiara Melo de Paula, terapeuta ocupacional (UFSCar), residen-
te no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental (UNI-
CAMP).
Carolina Con Andrades Luiz, terapeuta ocupacional, mestre e doutoran-
da em saúde coletiva (UNICAMP).
Carolina da Silva Krzesinski, enfermeira especialista em neonatologia,
cardiologia e saúde da família. Atuando como enfermeira na Atenção Pri-
mária à Saúde.
Cathana Freitas de Oliveira, psicóloga, mestre em Psicologia Social e dou-
toranda pelo Departamento Saúde Coletiva da UNICAMP. Doula, mãe do
João, de 1 ano, período integral.
Daniele Pompei Sacardo, professora doutora do Departamento de Saú-
de Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), área de Ética e Saúde. Professora do Programa de
Pós-Graduação Mestrado Profissional em Saúde Coletiva: Política e Gestão
em Saúde.
Débora Gomes de Melo dos Santos Medeiros, médica Psiquiatra (IP-
SEMG), em atuação na Atenção Primária à Saúde de São Paulo. Conselhei-
ra no Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas do estado de São Paulo
(CONED-SP) e membro do Laboratório de Estudos Interdisciplinares so-
bre Psicoativos (LEIPSI UNICAMP). Doutoranda em Saúde Coletiva (Polí-
tica, Planejamento e Gestão em Saúde) pela Faculdade de Ciências Médicas
da Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP).
Elisa Toffoli Rodrigues, médica de Família e Comunidade. Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UNICAMP. Do-
cente do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Erica Maria Ferreira Oliveira, médica de Família e Comunidade. Mes-
tre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Docente do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina
da UFU.
Felipe Guedes, psicólogo (UFBA), especialista em Saúde Mental (UNI-
CAMP), pesquisador do Coletivo de Estudos e Apoio Paideia (UNICAMP).
12 • As autoras e os autores
Fernanda Nogueira Campos Rizzi, psicóloga. Doutora em Saúde Mental
pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – USP. Tutora da residência
multiprofissional em saúde mental da UFU.
Gabriela Ferreira de Camargos Rosa, médica pela Universidade Federal
de Uberlândia. Médica residente em Emergência na Secretaria de Estado
de Saúde do Distrito Federal, Brasília DF.
Gastão Wagner de Sousa Campos, médico sanitarista e professor titular
do Departamento de Saúde Coletiva da UNICAMP.
Giovana Pellatti, terapeuta ocupacional, especialista em dependência quí-
mica, supervisora da residência multiprofissional em saúde mental (UNI-
CAMP) e mestranda em saúde coletiva (UNICAMP).
Gizélia Rosana Quadrado Carmazini, psicóloga (UNIP), especialista em
Infância: Violência Doméstica Contra Criança e Adolescente (Centro Uni-
versitário Salesiano de São Paulo – UNISAL), mestranda em Saúde Co-
letiva pela UNICAMP. Mãe da Maitê, que ainda não completou um ano,
período integral.
Gustavo Tenório Cunha, médico, doutor em Saúde Coletiva (UNICAMP),
professor do Departamento de Saúde Coletiva da FCM/UNICAMP.
Henrique Cardoso Marcene, médico de Família e Comunidade.
Jorge Mendes Ávila, enfermeiro (UFJF). Especialista em Saúde Pública
pela Faculdade de Saúde Pública da USP, especialista em Gestão e serviços
de saúde pela UNICAMP, mestrando em Saúde Coletiva pela U NICAMP.
Técnico da área de planejamento da Secretaria Municipal de Saúde de
Campinas/SP.
Julia Amorim Santos, psicóloga (UFSCar), especialista em Saúde da Fa-
mília e Comunidade (UFSCar) e em Especialização em Processos Educa-
cionais na Saúde (Sírio-Libanês). Mestra em Saúde Coletiva (UNICAMP),
doutoranda em Saúde Pública (USP).
Juliana Américo Dainezi, psicóloga, especialista em Clínica Psicossomáti-
ca, mestranda em Saúde Coletiva (UNICAMP).
Leidy Janeth Erazo Chavez, psicóloga, doutora em Saúde Coletiva (UNI-
CAMP).
As autoras e os autores • 13
Lilian Soares Vidal Terra, médica (UFMG), mestra em Saúde C oletiva
(UNICAMP). Pesquisadora do Departamento de Saúde Coletiva FCM/
UNICAMP (doutoranda). Mãe do Caetano, de um ano, período integral.
Marcela Borgonovi Lima, terapeuta ocupacional (PUC-Campinas). Espe-
cialista em Psiquiatria e Psicologia Clínica da Adolescência (UNICAMP)
e Especialista em Saúde da Família (UNICAMP). Centro de Convivência
Viver e Conviver (Prefeitura Municipal de Campinas).
Márcia Aparecida Silva Merisse, assistente social (Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho) especialista em violência (ENSP) e em
Apoio Matricial (UNICAMP).
Mércia Flaibam Romanin, psicóloga (PUC-Campinas), Aprimoramento
em Psicologia da Saúde/Clínica (PUC-Campinas), Especialista em Saúde
da Família.
Mônica Martins de Oliveira Viana, doutora em Política, planejamento e
gestão em Saúde Coletiva (UNICAMP). Pesquisadora do Instituto de Saú-
de – SES/SP; São Paulo. Mãe do Francisco, de dois anos, trabalhando em
home office.
Natálhia Ferrari Gabetta, terapeuta ocupacional (USP). Residên-
cia em Saúde Mental (UNICAMP) e Especialista em Saúde da Família
(UNICAMP).
Newton Cesar Caetano Monteiro, pedagogo pelo “Centro Universitário
Amparense” e coordenador em Serviço de acolhimento em Repúblicas
para Jovens (Campinas).
Paulo Vicente Bonilha Almeida, médico pediatra e de Saúde Pública.
Apoiador da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas. Assistente no
Departamento de Saúde Coletiva – FCM/UNICAMP.
Pedro Henrique Pirovani Rodrigues, psicólogo, especialista em Saúde
Mental (UNICAMP), trabalhador da Rede de Saúde de Limeira/SP.
Rafael Freitas Colaço, psiquiatra, preceptor da Residência de Psiquiatria
do serviço de saúde Dr. Cândido Ferreira, mestrado em Saúde Coletiva e
doutorando em Saúde Coletiva (UNICAMP).
Renata Marques Rego Miranda, psicóloga, especialista em Psicoterapia
Psicanalítica, mestre em Psicologia como Profissão e Ciência (PUC-Cam-
pinas).
14 • As autoras e os autores
Robenia Mara Ribeiro, médica de Família e Comunidade, especialista em
Medicina do Trabalho pelas Faculdades Unidas do Norte de Minas (2014),
mestranda em Saúde Coletiva pela UNICAMP.
Rosana Teresa Onocko-Campos, médica, psicanalista, professora da Fa-
culdade de Ciências Médicas da UNICAMP e coordenadora do Laborató-
rio de Saúde Mental e Coletiva Interfaces.
Rosângela Santos Oliveira, psicóloga (UFBA). Especialista em Saúde
Mental (UNICAMP). Coordenadora do CAPS AD (Prefeitura Municipal
de Itatiba).
Tatiana de Vasconcellos Anéas, psicóloga (PUC-São Paulo), mes-
tre em Medicina Preventiva (FMUSP), doutora pelo em Saúde Coletiva
(UNICAMP). Atualmente é preceptora de Educação Permanente pela
SPDM/PAIS no município de São Paulo.
Thais Machado Dias, médica de Família e Comunidade, mestre em Saúde
Coletiva (UNICAMP). Preceptora de Graduação e Residência médica da
UNICAMP.
Vanessa Bueno da Silva, enfermeira (UNIFENAS), especialista em Saúde
da Família (EXTECAMP/UNICAMP).
Vanessa Cristina dos Santos Pinto, enfermeira, especialista em Saúde da
Família (EXTECAMP/UNICAMP), coordenadora da Unidade Básica de
Saúde Paranapanema (Campinas/SP).
Vanessa Eda Paz Leite, psicóloga. Especialista em Saúde Mental (UNI-
CAMP) e mestranda em Saúde Coletiva (UNICAMP).
Vilson Limirio Junior, médico pela Universidade Federal de Uberlândia
(UFU). Médico residente em Clínica Médica na UFU, Uberlândia/MG.
As autoras e os autores • 15
Apresentação
Apresentação • 17
O título que escolhemos presta uma homenagem a Antonio Lancetti.
Ele foi uma figura importante na construção do SUS e de novas políticas
e práticas em Saúde Mental. Ativista, lutou pelo direito universal à saúde
e pela democracia. Teórico, publicou livros e artigos referentes à reforma
sanitária. Profissional dedicado, foi um excelente terapeuta.
Tinha uma personalidade exuberante e carismática. Indignava-se
com a hipocrisia, a injustiça e com o descaso à imensa desigualdade social,
econômica e de gênero existente na sociedade brasileira. Nos últimos anos
de vida, ele vinha utilizando a expressão “nas entranhas” como metáfora
para indicar aquela grande parcela da população vítima da desigualdade e
da exploração.
“Entranhas” é aquela parte do corpo humano essencial para sustenta-
ção da vida, mas que não é visível. Exatamente como acontece com aqueles
que trabalham em silêncio, sem fazer muito alarde, a não ser em situações
de crise, mas que são desconsiderados pelo discurso dominante na mídia
e na cultura da elite. “Entranhas” é onde também se localiza grande parte
das graves enfermidades de uma pessoa. Algo que precisa ser investigado,
buscado, para que se perceba a existência de tal ou qual mazela.
Exatamente como a desigualdade no Brasil. Está oculta no subúrbio,
nas periferias e entre trabalhadores e autônomos da base da pirâmide de
renda do país. São necessárias investigações sociológicas e econômicas que
evidenciem a profundidade deste abismo social. Historiadores têm de-
monstrado também o caráter crônico dessa injustiça social: passam-se as
décadas, os governos, e a injustiça permanece, algumas vezes com facetas
que agravam a iniquidade existente na sociedade brasileira.
Pois bem, o livro Nas entranhas da Atenção Primária à Saúde esfor-
çou-se para trazer à luz sérios desequilíbrios e desigualdades que fazem
parte do cotidiano daqueles que utilizam e trabalham na Atenção Primá-
ria à Saúde. Conseguiu-se, em grande medida, lograr essa façanha por vá-
rios motivos. Primeiro, porque é um livro escrito por dezenas de autores.
Segundo, que parte importante desses autores são trabalhadores de saúde
imersos no dia a dia na atenção a pessoas que vivem nas comunidades lo-
calizadas na periferia das cidades. Outros são professores e pesquisadores
da Universidade Estadual de Campinas.
Teve também importância nesse desvelamento da desigualdade, da
violência estrutural e da degradação social e urbana, o método pedagógico
empregado no tal curso. A formação se baseou na discussão de casos eleitos
pelos próprios trabalhadores das equipes e dos NASF. Operou-se com um
conceito ampliado de casos, poderiam se referir a fenômenos clínicos, fa-
miliares, comunitários, epidemiológicos e institucionais (a gestão do SUS).
18 • Apresentação
Convocar os trabalhadores à produção de conhecimento, sobretudo
a partir da reflexão despertada por casos atendidos, mostrou-se um cami-
nho fértil para trazer à tona a complexidade dos problemas abordados pela
APS, reforçando que este nível de atenção está longe de ser “básico”. Além
disso, pode-se dizer que funcionou de forma importante na percepção que
os próprios trabalhadores têm sobre as tarefas que desenvolvem, ajudando
a transformar uma prática que às vezes é tomada como conjunto de fatos
pobres de sentido em uma experiência encarnada.
Bem, desse amálgama se produziu muitas coisas. Entre elas, os capítu-
los que compõem este livro. Neles estão descritas e analisadas as Entranhas
da Atenção Primária. A glória e o sofrimento que é trabalhar na Atenção
Primária do SUS. A falta de recursos, a precariedade da gestão, desde ges-
tores perversos à decisão deliberada de desconstruir as políticas públicas. A
alegria de reconhecer que, em algumas vezes, a resistência funcionou e que
pessoas se reabilitaram ou que a comunidade logrou reagir coletivamente
ao abuso e à carência.
Aparece também a dificuldade de viver da parcela da população bra-
sileira que mora em territórios altamente vulneráveis. As narrativas ela-
boradas tratam das dificuldades que é envelhecer, que é ser mulher, avó,
mãe, jovem, criança no contexto brasileiro, em geral, e nas periferias, em
particular. Comenta também as estratégias de sobrevivência e mesmo de
resistência política dessa gente humilhada e ofendida.
Trata-se de um livro diferente. Discute-se política e poder com im-
portante distância do discurso oficial e do que vai pelos gabinetes do estado
brasileiro. O objeto de análise são a cultura e as práticas dos trabalhadores
de saúde. O centro é compreender como os habitantes das comunidades
se relacionam com o SUS, com os profissionais e com sua própria saúde.
Discute-se, também, muita clínica e saúde coletiva. Mais do que comentar
protocolos ou programas, parte-se da prática, de uma prática onde a di-
mensão orgânica não se separa do subjetivo e das marcas que o contexto
social impõe aos sujeitos. Tudo junto, de cambulhada, às vezes protegendo,
e, mais frequentemente, agravando as condições de saúde das pessoas, fa-
mílias e comunidade.
Como organização, optamos em dividir o livro em três partes: a pri-
meira delas, composta por cinco capítulos, foca as experiências de forma-
ção na APS pensadas a partir do Método Paideia; a segunda parte, da qual
fazem parte sete capítulos, se detém em explorar algumas problemáticas
que têm relevância pela sua magnitude epidemiológica ou por representar
um campo de vulnerabilidades específicas e que atravessam o cotidiano do
trabalho, demandando um diálogo com outras áreas e campos do saber que
Apresentação • 19
vão além do “setor saúde”; na terceira e última parte, com seis capítulos, são
apresentadas reflexões baseadas em casos atendidos por profissionais da
Atenção Primária à Saúde, a partir de relatos resumidos dessas experiên-
cias, em uma tentativa de articular teoricamente os problemas vivenciados
pelos profissionais, buscando mitigar a distância entre a teoria e prática, en-
tre a academia e os serviços de saúde. Além disso, acrescentamos um apên-
dice para refletir acerca do NASF como política pública ameaçada, tema
que atravessou a maior parte das discussões ao longo do curso, presente
também, invariavelmente, nos relatos de casos.
Este livro buscou conciliar as discussões políticas e técnicas que en-
volvem a Atenção Primária, sem perder de vista as experiências vividas
pelos profissionais, naquilo que elas têm de mais visceral, indo além das
recomendações ou dos protocolos. Vale a pena ler e estudar cada um dos
capítulos. Os profissionais atuaram imbuídos de praticar uma Clínica Am-
pliada e Compartilhada e de construir espaços coletivos de Cogestão tanto
intramuros quanto com a sociedade.
Há muita reflexão sobre a potência e sobre o fracasso destes esforços.
Procurou-se não se fazer concessões à hipocrisia.
Felipe Guedes
Gastão Wagner de Sousa Campos
Lilian Soares Vida Terra
Mônica Martins de Oliveira Viana
20 • Apresentação
Parte I
Capítulo 1
Em busca de uma práxis ampliada
e compartilhada: a experiência paideia
24 • Capítulo 1
c ompartilhado com usuários, são todas estratégias para aumentar a dimen-
são “obra” no trabalho de cuidar e de educar. Busca-se um híbrido: profis-
sionais de saúde, que sejam também pedagogos, terapeutas e artistas. Seres
da práxis.
Para tornar concreta esta possibilidade é fundamental também refor-
mular as instituições de maneira que ampliem as condições de possibilida-
de para a práxis.
Pois bem, neste sentido é importante não desistir das pessoas. Apos-
tar na possibilidade de formação permanente dos seres humanos.
No contemporâneo há um importante reconhecimento da importân-
cia da participação das pessoas na manutenção e cuidado tanto da própria
saúde quanto daquela da coletividade. Nessa perspectiva, o desafio de uma
formação ampliada, Paideia, não poderia se dirigir apenas aos profissio-
nais, mas, precisaria descobrir estratégias para envolver a sociedade como
um todo, incluindo, com ênfase especial, aqueles usuários dos sistemas de
saúde. Toda clínica, todo o trabalho em saúde, precisaria partir dessa visão
ampliada e combinar estratégias clínicas e preventivas com outras de cará-
ter terapêutico e pedagógico.
Os conhecimentos em saúde baseados em evidências, medicina,
odontologia, enfermagem, fisioterapia, entre outras áreas, buscam a obje-
tividade absoluta. Com essa finalidade foram obrigados a transformar um
fenômeno complexo e abstrato, a doença, em um fato, ou seja, em algo
concreto. Como se a doença fosse uma coisa encontrável fora dos livros
científicos. O questionamento das escolas centradas na recomendação de
se praticar a clínica ou a saúde pública a partir de uma objetividade absolu-
ta tem sido a pedra de toque de movimentos críticos e inovadores na área
da saúde.
Para a Clínica Ampliada e Compartilhada (Campos, 2006) não há
como separar a doença, o risco e as vulnerabilidade do sujeito e de seu con-
texto sociocultural. Note-se, no entanto, que sem algum conceito de doen-
ça não há clínica e tampouco saúde pública. A proposta da Clínica Amplia-
da e Compartilhada é tomar de modo reflexivo as definições de risco e de
doença, sugerindo que sejam sempre examinadas encarnadas em pessoas,
comunidades e populações, as quais, por sua vez, existem em contextos
socioculturais diversificados. Ora, essa simples operação, a consideração
dos sujeitos em sua sociabilidade, modifica, e quase que explode a noção
26 • Capítulo 1
de coordenação do cuidado. A viabilidade econômica e funcional do NHS
depende da abrangência e da resolutividade da APS.
Para assegurar este padrão de funcionamento a APS se organizou
centrada na figura do médico geral (General Practitioner, GP), um profis-
sional encarregado de lidar com doenças agudas e crônicas e ainda realizar
ações preventivas e de educação em saúde; ou seja, desempenhar funções
clínicas e de saúde pública.
Os GPs trabalham com uma população definida sob sua responsa-
bilidade, objetivando criar possibilidades de seguimento longitudinal dos
casos e de estabelecer vínculos adequados com usuários. Essa estratégia
organizacional da prática busca criar condições para que os GPs produzam
efeitos positivos sobre o modo de pensar e de agir das pessoas. No jargão
que utilizo, eu diria produzir efeito Paideia.
A inscrição de pessoas na APS tende a abranger toda a população,
funcionando os GPs como filtro para acesso a especialistas e hospitais. A
gestão da APS também assegura a possibilidade de escolha pelo usuário de
médicos por região. O modelo de gestão é desburocratizado com autono-
mia relativa dos GPs e das enfermeiras da APS. Há ainda uma rede de apoio
social (assistentes sociais, visitadoras e outros profissionais) para os GPs e
para as enfermeiras, o que lhes facilitaria ampliar a capacidade de brindar
necessitados com assistência psicológica e social (ver site NHS, esses servi-
ços são organizados por distrito sanitário).
De qualquer modo, grande parte da abordagem psicossocial depende
dos GPs e das enfermeiras.
Ainda nos anos cinquenta do século XX, Michel Balint (1975) iden-
tificou, mediante levantamento, que 40 % dos casos da APS na Inglaterra
apresentavam um componente psicológico importante. Ele observou tam-
bém que os GPs não tinham formação terapêutica necessária para lidar
com os problemas psíquicos presentes em importante parcela de seus casos.
Balint pode ser considerado um dos pioneiros na tentativa de esten-
der saberes e práticas, originários da saúde mental, para profissionais que
trabalhem na Atenção Primária. Ele foi um psicanalista rebelde diante do
padrão tradicional da psiquiatria e do movimento psicanalítico na Euro-
pa. Ele pertencera ao grupo liderado por Sándor Ferenczi, organizador
heterodoxo da escola húngara de psicanálise. Prosseguindo na linha crítica
da escola húngara, Balint realizou duas rupturas com a tradição freudiana.
Primeiro, deduziu que se poderiam criar condições de possibilidade para
que os médicos generalistas (GPs) e assistentes sociais tivessem capacidade
de manejos da dimensão psíquica fora do arranjo (setting) tradicional dos
especialistas em psicanálise. Em segundo, identificou que parte dessas
28 • Capítulo 1
Em resumo, o próprio Balint identificou dificuldades importantes
para que sua estratégia ampliasse a abordagem do conjunto dos GPs. E, de
fato, essa sua preocupação e sua metodologia de trabalho não conseguiram
se transformar em política oficial do NHS. Ao contrário, a partir dos anos
1980, a orientação oficial para a APS, no NHS, foi a da medicina basea-
da em evidência. Para a intervenção sobre o plano psicológico elegeu-se a
abordagem cognitivo-comportamental. Em relação à determinação social,
apostou-se na saúde pública tradicional (vacinas e vigilância), na educação
em saúde e no apoio social.
30 • Capítulo 1
A composição profissional dos NASF inclui a maior parte das profissões
consideradas da área de saúde. Em 2019, o MS emitiu novo Política de
Atenção Primária em que, entre outras providências, suspende o financia-
mento federal para os NASF e reduz a interprofissionalidade das equipes
(Bedrikow & Campos, 2015).
Apesar da existência de uma Política Nacional para a Atenção Básica,
vem ocorrendo diferenças entre as formas que as cidades organizam a rede
de APS. Esta heterogeneidade decorre, principalmente, da baixa capacida-
de de coordenação do Ministério da Saúde, fragmentação da rede SUS, e,
em menor grau, também de disputas teóricas entre pesquisadores da Saúde
Coletiva e da Medicina de Família e Comunidade. Diversas escolas e cor-
rentes coexistem e concorrem entre si, sugerindo diversas estratégias para
ordenação das práticas na APS.
A política e gestão de pessoal, em geral a cargo das secretarias munici-
pais, não logrou assegurar direitos e qualidade no desempenho profissional.
Na realidade, trata-se de uma tarefa que enfrenta obstáculos estruturados.
É interessante observar que, historicamente, verificamos uma resistência
velada entre os profissionais de saúde em admitir que sua prática é um tra-
balho. Em decorrência dessa cultura, nota-se resistência em se integrar aos
instrumentos de governança dos sistemas de saúde. Esse sentimento, com
certeza, é mais forte entre os médicos. Talvez por essas raízes históricas, a
cultura na saúde terminou por denominar o trabalho com nomes em teoria
mais “nobres”: antes se denominava o trabalho em saúde de “atenção” em
saúde. Atenção como atividade humana, em português, significa “aplicação
cuidadosa da mente a alguma coisa; cuidado; concentração; reflexão; aplica-
ção” (Aurélio, 2002). Observe-se que ao substituir o termo “trabalho” por
“atenção” ocorreria como que uma qualificação automática da atividade
médica e dos demais profissionais de saúde.
Há vários anos, a enfermagem passou a designar seu próprio trabalho
pelo termo “cuidado”. Em inglês, o trabalho em saúde em geral é denomi-
nado como “care”, em alguma medida equivalente ao termo “atenção em
saúde” frequentemente utilizado em português. Em espanhol, até algumas
décadas passadas, também se utilizava com frequência a palavra “atención”.
Recentemente, no Brasil, o conceito de “cuidado”, passou a designar o tra-
balho em saúde sempre que forem consideradas algumas condições antes
apontadas pela fenomenologia para designar qualquer relação humana em
que se considere a alteridade do outro (Aneás & Ayres, 2011). Essa escola
tem influenciado as políticas e programas da APS a fim de fortalecer estra-
tégias e dispositivos que incluam o sujeito, a subjetividade e o social nas
práticas em saúde.
32 • Capítulo 1
Um segundo obstáculo é a formação de profissionais de saúde, em
particular, de médicos e enfermeiros ao longo das últimas décadas, em ge-
ral, centrada no paradigma biomédico (Cardoso, 2019) como vem sendo
largamente investigado; no entanto, esse estilo reduzido de abordagem não
é suficiente para resolver grande parte dos problemas de saúde a cargo da
Atenção Primária e dos sistemas de saúde. Observa-se que a organização
tradicional da atenção à saúde tende a separar serviços e programas de saú-
de mental e de saúde pública (promoção à saúde) daqueles destinados à
assistência clínica geral, especializada e de urgência. O desafio para a am-
pliação da formação e das práticas seria integrar saberes voltados para a
dimensão biológica e corporal com outros conceitos e arranjos originários
do campo psicológico e da saúde coletiva.
Em terceiro lugar, há ainda o desafio de que todas estas estraté-
gias dependem de mudanças da compreensão e da prática entre gestores,
profissionais e usuários. No entanto, mudar cultura e modos de vida não é fe-
nômeno simples, e que não ocorre por algum passe de mágica ou por a lguma
conversão súbita de pessoas acomodadas a procedimentos burocráticos e
tradicionais. As pessoas conformam suas personalidades, seu caráter, seus
hábitos e seus valores a partir de múltiplas influências, de múltiplas formas
de repressão — história familiar e escolar, ambiente e processo sociocultural
— e tendem a cristalizar o modo de ser e de se relacionar em padrões que
se repetem com importante autonomia do contexto singular. Sabe-se que
grande parte dessa repetição se passa de maneira inconsciente, reduzindo
a possibilidade de reflexão das pessoas sobre suas experiências existenciais.
Para agravar este quadro deve-se reconhecer que determinações so-
ciais, culturais e institucionais são, igualmente, resistentes a mudanças e
dificultam a singularização das formas de atuar conforme o contexto. A
alienação e a burocratização são o sintoma desse processo de formatação
dos indivíduos, famílias, grupos e instituições.
As pessoas mudam?
34 • Capítulo 1
possível, a da sociedade pela assimilação da palavra sagrada. Lidam com
absolutos: certo ou errado, pecado ou virtude, irmãos ou demônios.
A escola e a cultura modernas também objetivam a formação. O pro-
blema é que o vem realizando em uma perspectiva pragmática. Produzir
seres funcionais ao sistema a partir de alguma capacitação técnica. Além, é
claro, de ordenar o comportamento da maioria segundo o aprendizado da
disciplina, isto é, acostumar pessoas a respeitar à hierarquia social, ao si-
lêncio, enfim, a obedecer. É importante ressaltar que toda cultura, mesmo a
de populações indígenas, inclui a socialização a partir de alguma forma de
hierarquia social e de atribuição de papéis distintos a serem desempenha-
dos pelos sujeitos. As dimensões ideológica e moral desse estilo de forma-
tação costumam permanecer ocultas, não convém à conservação do statu
quo que aconteçam de maneira explícita.
Evidente que apresento uma análise genérica e superficial e, portanto
parcial da escola e da cultura de cada época ou sociedade. Ao longo dos
séculos foram se criando escolas e escolas: desde as universidades às e scolas
técnicas, algumas públicas e outras privadas, adaptadas ora ao povo, ora às
elites. Algo semelhante se passa com a cultura, em geral, apresenta várias
facetas, refletindo preservação de valores das classes dominantes em detri-
mento de populações exploradas e excluídas do pacto social. A família é
um dos dispositivos para a aculturação das pessoas aos padrões dominan-
tes de sociabilidade.
A família, vários dispositivos culturais de propaganda, os meios de
comunicação, é importante ressaltar, compõem a superestrutura própria de
cada época e de cada sociedade gerando estratégias e arranjos voltados para
a formação de modos de ser e de viver. Foucault nos ensinou sobre a oni-
presença do que denominou de “biopolítica” (Foucault, 2008). Esse filósofo
considerava que essa constelação de arranjos de poder produz, centralmen-
te, repressão por meio do “biopoder”. Uma capacidade de moldar a vida, as
políticas e costumes e a própria compreensão sobre o corpo. O ser huma-
no reduzido à dimensão de trabalhador e, cada vez em maior extensão, a
de consumidor. Busca-se a padronização moral do sexo e do exercício da
sexualidade, dos rituais de celebração da vida e da morte, do racismo e do
valor da vida.
Interessa-nos aqui, apontar que a medicina, em particular, e a saúde,
em geral, também participam deste processo de constituição de mentali-
dades e de formas de sociabilidade. Bem, a questão que nos inquieta, é sa-
ber, em que medida seria possível, por meio da clínica, da saúde coletiva e
da educação em saúde, fortalecer aos sujeitos e às comunidades de forma
que lograssem atenuar, desviar, e se contraporem ao biopoder, inventando
36 • Capítulo 1
quer coletivo — família, equipe, movimentos. Governo compartilhado do
cuidado, da convivência intersubjetiva, da sociabilidade. Uma educação
para que cada um conheça e seja capaz de lidar consigo mesmo e com as
outras pessoas, considerando diferenças, ambiguidades e contradições en-
tre desejos, interesses, valores e projetos. Encontrar maneiras de amar e
trabalhar na cidade dos humanos, entre os humanos. Poder compartilhado,
todo o tempo.
:: Um segundo plano diz respeito à dimensão cognitiva: acesso a in-
formações, conhecimentos e ainda a outras experiências institucionais e
existenciais. Não basta conhecer, também se faz necessária a capacidade de
aplicação de saberes adquiridos à vida concreta; ou seja, valorizar a relação
entre teorias e práticas, em capacitar as pessoas para a práxis, isto é, para
a ação reflexiva e comunitária. Valorizar a dimensão situacional, a tarefa
específica de cada momento: cuidado em saúde, alfabetização, profissiona-
lização, implementação de projetos.
:: A terceira estratégia é uma decorrência das anteriores: esse processo
de formação, de conformação de sujeitos, deverá se realizar por meio da
atuação concreta e reflexiva sobre o mundo, sobre a existência; ou seja, o
processo de formação necessita incluir reflexão compartilhada sobre o que
se está fazendo, sobre a tarefa ou encargo de cada um ou dos coletivos.
Levar à prática o que se está conhecendo, atentar para aquilo que está se
repetindo, para as estruturas de poder, para os sentidos dominantes da lin-
guagem e das normas.
38 • Capítulo 1
Infelizmente, o pensamento estratégico predominante na gestão vem
dificultando muito a adoção do Apoio Institucional. O Humaniza-SUS or-
ganizou um pequeno exército de apoiadores que se metiam em hospitais,
na APS, na rede de Saúde Mental, como terceiros, figuras externas ao qua-
dro organizacional, que estimulavam os coletivos a lidarem com conflitos,
desequilíbrios de poder, construção de consenso, realização de mediações
e implementação das políticas do SUS (Pereira Jr., 2018).
Talvez havia que se investigar com mais cuidado, mas tenho a im-
pressão de que os investimentos mais radicais e que produziram maior al-
teração de poder foram aqueles voltados para as equipes interprofissionais
funcionando como base dos sistemas de Cogestão e ainda de defesa enfá-
tica em relações de vínculo entre equipes e usuários, entre usuários e cada
profissional.
Vale ressaltar que estes dois dispositivos, a equipe interprofissional e a
construção de vínculo formal e subjetivo entre profissionais e usuários vêm
se transformado em diretrizes organizacionais para as políticas do SUS vol-
tadas para a Atenção Primária e para a Saúde Mental. Não é por acaso,
portanto, que essas duas diretrizes têm encontrado grande resistência em
serviços hospitalares e especializados desse mesmo SUS.
A história de implementação da perspectiva Paideia confirma a
validade da recomendação do Humaniza-SUS sobre a indissociabilidade
entre gestão e clínica. O controle Social no SUS recomenda a participa-
ção dos usuários em Conselhos e Conferências. Entretanto, dizem respeito,
principalmente, à macro política, à fiscalização, a discussão e deliberação
sobre projetos e prioridades do SUS. A perspectiva Paideia reconhece que
os dispositivos de Clínica Ampliada e Compartilhada, bem como arranjos
como conselhos e assembleias locais abrem a possibilidade de ampliação
do poder de usuários no cotidiano dos serviços de saúde.
Dentro dessa linha, também apliquei conceitos Paideia para analisar
criticamente e para sugerir mudanças no trabalho em saúde, quer em cada
equipe, quer na dimensão de rede: a partir desse tipo de preocupação
surgiram as estratégias de Clínica Ampliada e Compartilhada e do Apoio
Matricial.
Um dos principais pilares da proposta de Paideia de Cogestão era,
portanto, o empoderamento das equipes interprofissionais.
Há alguns anos, organismos internacionais e pesquisadores têm reali-
zado a divulgação e a defesa do denominado trabalho colaborativo entre as
distintas profissões e especialidades. Diferente da Cogestão e da perspecti-
va Paideia, o discurso a favor do trabalho colaborativo faz um apelo moral
Apoio Paideia como estratégia para lidar com sujeitos, com sua
cultura e com seu contexto.
40 • Capítulo 1
como também na relação interprofissional, o denominado Apoio Matricial
e ainda na gestão de redes e serviços de saúde, o Apoio Institucional (Cas-
tro & Campos, 2015; Oliveira & Campos, 2016).
Na relação com usuários o método de Apoio poderá ser empregado
tanto na clínica quanto em grupos terapêuticos ou de educação em saúde.
Poderá também servir como estratégia de organização e fortalecimento de
movimentos sociais.
O Apoio dá primazia à demanda dos supostamente apoiados, valoriza
a capacidade de escuta, busca ampliar a compreensão, valoriza a intuição,
e ainda o discurso sobre carências e necessidades do usuário e das equipes.
Entretanto, o Apoio utiliza uma estratégia interativa. Os apoiadores têm
ofertas a apresentar. Assim, a capacidade de escuta ao usuário é fundamen-
tal, mas, cada escuta ou observação, somente se completam quando algum
diálogo se estabelece. Partindo-se da concepção de que toda compreensão
é parcial e explica pedaços do contexto e do mal-estar dos sujeitos, o Apoio
Paideia sugere que todos tenham voz e participem de interações para re-
flexão, análise e composição de novos entendimentos e novos projetos de
existência e de funcionamento institucional.
Desconstruir o silêncio imposto, desmontar o relacionamento buro-
crático e substituí-los por relações interativas. Uma condição essencial para
que essa comunicação entre os vários agentes ocorra é o estabelecimento
de vínculos, de confiança básica e de certo grau de contratualização. Uma
diretriz organizacional que cria condições de possibilidade de vínculos é
a denominada horizontalidade, concretizada pelo cadastramento de co-
ortes de usuários por equipes encarregadas de cuidá-las, ou seja, os mes-
mos profissionais responsáveis pelas mesmas pessoas ao longo do tempo,
os mesmos apoiadores interagindo em um longo espaço de tempo com as
mesmas equipes.
As relações vinculares sempre necessitam estar em análise, é impor-
tante refletir sobre os vários semblantes da sociabilidade. Em geral, em re-
lações vinculares ocorrem, ao mesmo tempo, produção de dependência,
subordinação de sujeitos ao polo com mais poder e efeitos positivos tera-
pêuticos e de aprendizado.
O Método de Apoio Paideia funciona como uma Roda Contínua, um
circuito imperfeito, em que sempre falta algum aspecto a ser compreendi-
do, alguma prática a ser implementada.
A abordagem diagnóstica e terapêutica, a compreensão sobre uma si-
tuação e o manejo dela ocorrem em ciclos, em vários encontros em espiral
(nem sempre ascendente). A construção da relação de apoio é processual,
longitudinal no tempo, isto é, costuma ser diacrônica.
42 • Capítulo 1
A oferta do apoiador ou do profissional se valendo desta metodologia,
facilita a criação de espaços para análise e compreensão sobre Contrato/
Projeto Terapêutico. A perspectiva do usuário e sua narrativa contêm sua
própria reflexão sobre as práticas terapêuticas e relacionais, sobre resulta-
dos, dificuldades e impossibilidades; o avanço dessa dinâmica depende de
o usuário superar seus próprios bloqueios e da existência de um sentimen-
to de que o processo terapêutico vale a pena e faz sentido.
Por intermédio da avaliação clínico/sanitária, exposta de maneira
franca e paciente, é possível promover e ampliar a compreensão dos usuá
rios sobre fatores envolvidos na coprodução do processo saúde/doença/
modo de vida/sistema saúde; da compreensão sobre si mesmo e sobre a
rede social no qual estão inseridos; e ainda a descoberta sobre modos de
intervenção sobre si mesmo e sobre o contexto.
Um conceito central no Apoio Paideia é o de poder, sendo fundamen-
tal compartilhar e estimular sujeitos a lidarem com redes de poder; a iden-
tificarem espaços coletivos estratégicos ao sujeito e ao Projeto Terapêutico/
Intervenção. Trazer à tona conversas e impressões sobre o funcionamento
de aspectos da rede singular dos sujeitos: trabalho, família, religião, lazer,
social. Para ampliar a capacidade de o sujeito lidar com relação de poder é
necessário discutir a dialética de dominante e dominado, formas para se li-
dar com conflitos — defesa, ataque, alianças, mediação e fuga. É importan-
te ampliar a capacidade de elaboração de alianças e contratos, com ênfase
sobre os modos com que decisões são tomadas na vida concreta e estimular
a capacidade de projetar, de imaginar novas possibilidades de existir, refor-
çar o pensamento estratégico das pessoas. Ainda que seja delicado, pode
acontecer de virem à baila nos encontros, valores, ideologias, filosofia de
vida e marcos culturais relevantes.
Um dos efeitos desejados no processo de Apoio é o de ampliar a capa-
cidade de comunicação, de narrativa, de argumentação e de debate — for-
talecer a potência dialógica do sujeito.
É importante enfatizar que a possibilidade do apoio ocorrer depen-
de centralmente de se partir da vida e das atividades concretas das pes-
soas, a entrada de cada tema na roda depende de ganchos com a prática.
O Apoio é uma filosofia da prática. Lembrar que os componentes de um
processo estão imbricados, isolá-los é um artifício analítico para facilitar a
compreensão.
Todas estas estratégias descritas anteriormente têm um forte compo-
nente racional. No entanto, as pessoas operam sempre misturando o ra-
cional com o inconsciente. O Apoio procura ajudar as pessoas a também
44 • Capítulo 1
Bem, são orientações de manejo das relações interpessoais em ser-
viços de saúde simples de serem anunciadas, mas complexas de serem
levadas à prática. A formação tradicional da maioria das profissões e das
especialidades de saúde não capacita os profissionais para delas se valerem
objetivando maior efetividade e humanização do cuidado.
No início dos anos noventa do século XX, escrevi um texto que se in-
titulava “Subjetividade e administração de pessoal”, nele eu apresentava um
desafio para a saúde, que seria: “mudar as coisas e as pessoas”. Considero
que foi o primeiro escrito que inaugurou a série de outras publicações que
trataram do Paideia, isto quando essa palavra sequer fazia parte de meu
vocabulário.
Observe-se que, naquele artigo longínquo quando me referia às “pes-
soas” a serem mudadas, eu pensava, principalmente, nos profissionais de
saúde. O bem-estar de usuários aparecia como um objetivo, como meta, que
justificaria todas as reformas estruturais nos serviços e sistemas de saúde.
Mais tarde, sobre a formação dos trabalhadores, em parceria com
Mariana Dorsa Figueiredo e Gustavo Tenório Cunha, imaginamos im
portantes transformações no paradigma tradicional da educação médica
e das demais profissões da saúde. Centralmente, recomendávamos a ado-
ção de estratégias pedagógicas que tomassem as práticas sanitárias como
centro do aprendizado, buscando sempre trazer a teoria integrada ao que
acontecia no trabalho e na prática em saúde (Campos, Cunha & Figueire-
do, 2013).
Em relação à formação Paideia, influenciados pela psicanálise e por
Freud, insistimos em que o processo pedagógico buscasse uma espécie de
efeito terapêutico sobre os estudantes e que os habilitasse a compreender
e a lidar consigo mesmo para estarem aptos a compreender e a lidar com
pacientes, famílias e comunidades (Viana & Campos, 2018).
A psicanálise inaugurou uma concepção de formação em saúde que
buscava integrar conhecimentos teóricos e técnicos mediante a reflexão
sobre as repercussões da prática concreta sobre si mesmo e sobre equipes
e serviços. Considero que essa concepção, apresentada inicialmente por
Freud, guarda relação próxima com o antigo movimento Paideia da Grécia
helênica, ainda que não tenha sido citada por Freud em seus textos sobre
formação do terapeuta.
Referências
46 • Capítulo 1
CAMPOS, G. W. S. Um método para análise e cogestão de coletivos. São Paulo:
Hucitec, 1.a ed., 2000.
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Hucitec; Fiocruz, 2006.
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48 • Capítulo 1
Capítulo 2
Processos formativos para a Atenção Primária
à Saúde: reflexões a partir da experiência
50 • Capítulo 2
siva, que inclua o conhecimento técnico e, também, o governo de si mes-
mos e das relações sociais e políticas. Ou seja, que se trabalhe, simulta-
neamente as dimensões do saber, do poder e dos afetos (Campos, 2011,
Campos et al., 2013).
Isto significa, fazendo analogia ao pensamento de Adorno (1995),
compreender a formação como uma educação que transcende a informa-
ção e o fetichismo pela teoria; ultrapassa as instituições de ensino e visa a
facilitar aos sujeitos escaparem de suas condições de subordinação e con-
formismos. Formação como práxis emancipatórias, favorecendo o posicio-
namento crítico e reflexivo em relação ao estado das coisas.
Além da graduação, outros dispositivos como as pós-graduações, a
educação continuada, a educação permanente e as supervisões clínico-ins-
titucionais operam no papel de processos de formação. Para os profissionais
que já estão na rede de serviços do SUS, essas estratégias possuem poten-
cial de dialogar de modo orgânico com os trabalhadores da saúde e trazer
benefícios mútuos para profissionais e comunidade (Camposet al., 2013).
As pós-graduações (especializações) e a educação continuada marca-
ram fortemente a área médica e se expandiram para os outros ramos pro-
fissionais, sendo constituídas basicamente por atividades de consolidação
da identidade profissional. Ainda que tenham também o propósito de con-
tribuir com a atualização de conhecimentos, seu foco principal reside na
atitude ou postura profissional no desempenho de atividades relacionadas
aos respectivos núcleos de saber (Osório, 2003).
Guardadas as discussões sobre os termos “Educação Permanente” e
“Educação Continuada”, é interessante contextualizá-los, ainda que breve-
mente, em razão de sua ampla utilização para designar a formação dos pro-
fissionais inseridos nos serviços de saúde.
Massaroli & Saupe (2008) explicam que a educação continuada surgiu
com o intuito de atualizar os profissionais da saúde, como um processo
contínuo que se inicia após a formação básica, ou seja, após a graduação,
e tem como objetivo atualizar e melhorar a capacidade de uma pessoa ou
grupo diante da evolução técnico-científica. Consiste, em geral, em cursos
esporádicos. Já a educação permanente está ligada à proposta de formação
em serviço e de aprendizagem significativa tem em vista transformar o pro-
cesso de trabalho, partindo da reflexão sobre a realidade para formular es-
tratégias que ajudem a solucionar problemas. Na tabela a seguir é possível
visualizar sinteticamente alguns dos pontos em que a educação continuada
e a educação permanente se diferenciam.
52 • Capítulo 2
dado, buscando romper aspectos cristalizados nas instituições de saúde e
contribuir para a formação ampliada dos trabalhadores.
Aproxima-se, portanto, da formação defendida por Oury (1991),
que prioriza processos e ferramentas conceituais que permitam extrair do
campo do cotidiano o material da aprendizagem, e, complementarmente, a
explicitação de conhecimentos tácitos, oriundos da prática, tal como indi-
cado por Raelin (1997).
Modelos como os da educação permanente (Brasil, 2009), da apren-
dizagem baseada no trabalho descrita por Raelin (1997) e Billett (1994) e
da aprendizagem baseada em problemas (problem-based learning), avaliada
por Vernon & Blake (1993), têm inspirado processos formativos pautados
na reflexão sobre a prática.
No entanto, para isso, é necessário que os profissionais em formação
superem a dificuldade de se apropriarem do saber produzido na experi-
mentação e na construção coletiva, sem necessitar de validações de autori-
dades externas, como apontado por Onocko-Campos (2012) e Capazzolo
(2013). Ou seja, é preciso que consigam aprender com a prática e que esse
novo conhecimento seja percebido por eles como legítimo.
Dessault (1992) adverte que não há um tipo único de formação, sendo
que as habilidades e as atitudes podem ser desenvolvidas por atividades
de formação autodidatas ou formais. Os formadores precisam pensar em
programas adaptáveis às necessidades dos alunos, construídos coletiva-
mente, voltados para a prática e envolvendo pessoas experientes na temá-
tica a ser abordada.
Essas prerrogativas guardam, assim, alguma semelhança com a super-
visão clínico-institucional que, conforme Onocko-Campos (2012) configu-
ra um dispositivo de formação e intervenção cujas principais estratégias de
trabalho são a análise permanente da organização do processo de trabalho
e do cotidiano; a discussão e construção coletiva de casos; e a construção
coletiva do conhecimento. Parte da constituição de grupalidade entre os
trabalhadores com o propósito de reflexão sobre as práticas e de incorpo-
ração de novos conceitos e teorizações. E, apesar de ter nascido da clínica
médica e psicológica, para a formação clínica e para o conhecimento de si,
configura um interessante dispositivo de formação pela experiência impli-
cada com a construção de uma rede de serviços eficaz.
O principal elemento comungado pela educação permanente, pela su-
pervisão clínico-institucional e pela formação pautada na reflexão sobre a
prática ou sobre problemas (PBL) é a aposta na produção de subjetividade.
Barros (2014) explica que pensar a formação nesse âmbito significa criar
estratégias que coloquem em cena os territórios existenciais, o cotidiano
Castro Cunha
(2011) (2009) Furlan Figuei- Oliveira Viana
Castro Cunha & Amaral redo & Campos
& Campos & Dantas (2010) (2012) (2018)
(2014) (2010)
Ano 2009-2010 2007 2007 2008-2009 2015-2016
Duração 18 meses 14 meses Não cita 18 meses 18 meses
Municípios Campinas Campinas Campinas, Campinas Campinas
participantes (SP) (SP) Guarulhos, (SP) (SP)
Hortolândia, Su- Uberlândia
maré, Amparo, (MG)
Artur Nogueira, Curitiba
Capivari, (PR)
Cordeirópolis,
Piracicaba e
São João da Boa
Vista (SP);
Rio de Janeiro,
Duque de
Caxias, Itaboraí
e Nova Iguaçu
(RJ); Fortaleza
(CE)
segue
54 • Capítulo 2
Total Alunos 40 18 200 84 85
Turmas 02 01 05 04 05
Público- Profissionais Apoiador Profissionais da Profis- Profissionais
-Alvo de Saúde Institucional, atenção e/ou sionais que realizam
da Família; médicos e gestão, relacio- médicos e Apoio Matri-
do Apoio enfermeiros nadas à APS. enfermei- cial.
Matricial e da APS. ros da
Institucional. APS.
Metodologia Apresentação Encontros Aulas teóricas, Traba- Encontros
pedagógi- de casos, quinzenais: seminários lho em quinzenais:
ca: Teoria baseados duas horas presenciais e pequenos discussão de
Paideia em projetos para discus- atividades de grupos; casos, ofertas
terapêuti- são de casos dispersão: en- discussão teóricas e
cos ou em e duas horas sino à distância de casos avaliação do
projetos de para ofertas e implantação reais e encontro.
intervenção teóricas, com de Projetos de ofertas Oferta teórica
e leitura de convidados. Intervenção no teóricas, de temas pré-
textos (oferta combi- -fixados, com
teórica). nando convidados.
demandas
e ofertas.
56 • Capítulo 2
grupos Balint Paideia. Derivam da metodologia dos Grupos Balint em
que profissionais debatiam aspectos relacionais e emocionais da interação
médico-paciente. No entanto, apresenta variações ao abordar também as
questões políticas e institucionais, bem como a organização do trabalho e
aspectos do modelo de atenção e de gestão.
Desta forma, os alunos são convidados a elegerem uma situação (um
caso) que podia ser de um usuário, de uma família, de um território ou
de uma equipe e trazê-la para que fosse colocado em análise pelo grupo e
contribuísse para a reflexão sobre o seu papel.
A cada rodada de discussão dos casos, o intuito é sempre buscar mais
informações, interpretá-las e utilizá-las para tomada de decisões, reforçan-
do o caráter construtivo da Formação Paideia — de construção de conhe-
cimento aliada à intervenção na realidade.
E, a partir dessas discussões, os profissionais em formação são esti-
mulados a se comprometerem com a realização de ações com as equipes
que trabalhavam. Ao conjunto de ações realizadas durante a Formação é
dado o nome de Projetos de Intervenção.
Sua maior contribuição, entretanto, tende a ser a construção da gru-
palidade e manejo de questões subjetivas, tais como a análise da transferên-
cia presente na relação médico-paciente e nas relações com outros profis-
sionais da equipe.
Ofertas Teóricas
Professores/apoiadores
60 • Capítulo 2
Como se observa na tabela abaixo, os temas englobaram tanto os
principais aspectos clínicos em cada ciclo de vida e gênero quanto as ques-
tões relativas à saúde coletiva e à organização da atenção no contexto da
rede SUS — saberes que, articulados, pretendiam favorecer o cumprimento
dos princípios e diretrizes previstos na Política Nacional de Atenção Básica
(Brasil, 2017).
Educação permanente
Integração ensino-serviço-comunidade
Caso Aberto *
Saúde Mental na Atenção Básica: Promoção e Clínica Ampliada – grupos terapêuticos, terapia breve
e sistêmica, apoio interpares e outros dispositivos
Saúde Mental na Atenção Básica: Promoção e Clínica Ampliada – manejo clínico e de medicamen-
tos, abuso de medicamentos psicotrópicos
Saúde mental do adolescente: automutilação, autoextermínio, uso de SPAs, distúrbios alimentares e
de autoimagem (Seminário com professor convidado)
A ESF e a escola: violência, uso de SPAs, problemas de escolarização e crianças com necessidades
especiais
Prevenção e reabilitação psicossocial do uso abusivo de SPAs: a estratégia de redução de danos (Se-
minário com professor convidado)
Cuidados paliativos e Internação domiciliar: SAD e ESF (Seminário com professor convidado)
Saúde do Trabalhador
62 • Capítulo 2
Além dos temas prefixados, havia encontros com temas abertos em
que os alunos eram estimulados a trazerem a discussão de sua escolha, in-
dicando bibliografia dentro de seu repertório de trabalho e de reflexão.
Outro aspecto relevante da organização das Ofertas Teóricas neste
Curso foram os seminários, dispositivo análogo ao empregado por Cunha
& Dantas (2010) e Oliveira Viana & Campos (2018). Momentos em que um
ou mais especialistas eram trazidos para debate, com o intuito de detalhar
os temas tratados nos grupos e nos espaços singulares dos serviços de s aúde
dos municípios ou por questões demandadas pelos alunos. Nos seminários,
todas as turmas do referido período (manhã ou tarde) se encontravam, fa-
vorecendo trocas. A metodologia usual era o de aula expositiva do(s) con-
vidado(s), seguida de perguntas da plateia.
A cada trio de professores/apoiadores era dada autonomia e liberdade
para que empregassem diferentes estratégias para a abordagem das ofertas
teóricas e dos respectivos textos.
64 • Capítulo 2
de que processos de formação são acessíveis somente a profissionais de en-
sino superior.
Dada a relevância desta experiência, buscamos destacar aqui algu-
mas observações a respeito das ressonâncias deste processo formativo
para os ACS. Cabe salientar que o material resgatado do diário de cam-
po dos professores/apoiadores integra um projeto de pesquisa de ava-
liação do Curso, aprovado pelo Comitê de Ética da UNICAMP (CAAE:
96478718.0.0000.5404). Todos os ACS assinaram o termo de consentimen-
to livre e esclarecido.
Efeitos Percebidos
66 • Capítulo 2
que em medidas diferentes entre as turmas, o resgate e a contextualização
da tríplice finalidade do trabalho associada aos usuários, à instituição e aos
trabalhadores (Campos, 2006), pois houve um grande investimento para
que as equipes pudessem incrementar sua capacidade de: 1) produzir saúde
e cuidar dos usuários, agregando valor de uso às suas ações; 2) garantir a
viabilidade técnica das instituições; 3) vincular os profissionais à dimensão
criativa de sua prática.
Entretanto, tal como Figueiredo (2012) adverte, os efeitos do proces-
so formativo no referencial da Teoria Paideia devem ser reafirmados no
cotidiano de trabalho, mediante o exercício contínuo de se empreender
análises críticas da realidade nos espaços coletivos, interrogando constan-
temente a práxis dos serviços de saúde.
Considerações finais
Referências
68 • Capítulo 2
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72 • Capítulo 3
sua vez, desenvolve a formação e busca ampliar a participação ativa de to-
dos os atores na construção do trabalho. Somando-se essas duas metodo-
logias conceituais operativas, Campos, Cunha & Figueiredo (2013) desen-
volveram os grupos Balint Paideia (GBP) cujo objetivo é ampliar, por meio
da reflexão sobre a prática, a capacidade de análise e de intervenção dos
sujeitos para agirem coletivamente sobre a realidade cotidiana da produção
de cuidado, possibilitando a construção de processos criativos e solidários.
Assim, partindo desta fusão de conceitos oriundos de Balint (1984)
e do Método Paideia (2013), foi ofertado, entre setembro de 2018 e março
de 2020, um Curso de Especialização e Extensão em Saúde da Família para
profissionais de três municípios: uma região metropolitana, um município
de médio e um de pequeno porte. O Curso transcorreu na forma de grupos
Balint Paideia mediados por duplas de pesquisadores e docentes vincula-
dos ao Coletivo de Estudos e Apoio Paideia, do Departamento de Saúde
Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, em trio com
um profissional indicado pelos municípios. Os alunos foram divididos em
turmas de aproximadamente 20 pessoas, com um total de 373 participan-
tes. Foram incluídos profissionais de Equipes de Saúde da Família (EqSF) e
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) do Sistema Único de Saúde
(SUS) dos três municípios e excepcionalmente profissionais vinculados à
gestão de um dos municípios. O Curso foi motivo de investigação em pes-
quisa, registrada e autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sobre o
número CAAE: 96478718.0.0000.5404.
A estratégia pedagógica utilizada incluiu apresentação e discussão de
casos trazidos pelos trabalhadores e buscou compreensão das numerosas
forças que atuam sobre as relações clínicas e institucionais. O objetivo des-
te capítulo é compartilhar o caminho percorrido por um destes grupos, a
partir da perspectiva dos apoiadores. Por um lado, relatar as percepções, as
dificuldades, o espanto, as alegrias de quem tem o objetivo de conduzir o
processo grupal de forma a aumentar a capacidade de análise e intervenção
dos participantes. Por outro lado, apresentar algumas das reflexões e apren-
dizados da jornada.
Um aspecto importante deste grupo é que ele foi coordenado por até
cinco professores/apoiadores. Três deles não estiveram presentes todo o
tempo e, certamente, foi significativo na história desse Grupo que elas se
afastassem para que três seres humanos pudessem nascer. Assim, muito em-
bora a rotatividade do apoio do grupo não seja desejável, no caso em ques-
tão ela foi bem recebida pelos alunos, pelo reconhecimento da importância
da licença maternidade das apoiadoras. Ademais, os três p rocessos de tran-
sição foram cuidadosos, já que houve tempo para esse planejamento.
74 • Capítulo 3
vetada pelos apoiadores. A partir desse momento, os alunos ficaram mais à
vontade para se expor e expressaram contentamento por frequentarem um
espaço de reflexão fora da rotina desgastante de trabalho, como se infere
da fala de um dos participantes: A prefeitura não dá nada de mão beijada,
então por que o curso? A prefeitura pode estar dando um tiro no pé, porque
está reunindo os trabalhadores e colocando para refletir junto.
Este momento de estabelecimento de compromissos e contratos entre
os membros do grupo, incluídos os apoiadores, é essencial para a constru-
ção de um GBP. Campos (2013) reflete que a elaboração e a gestão de con-
tratos possibilitam a criação de um espaço favorável à práxis, quando, nas
palavras do autor, “o Sujeito está obrigado a redefinir-se, e até a construir
novos projetos” (p. 67).
Para que essa práxis ocorra, é essencial que o sujeito participe ativa-
mente do estabelecimento dos compromissos, pois se atua em função de
normas impostas a ele ou compromissos previamente instituídos com ou-
trem, os estudantes não irão investir sua vontade naquele processo de for-
mação. Será uma prática alienada, que não irá contribuir para o processo
de aprendizagem e para o andamento do grupo (Campos, 2013). Pretende-
-se, ao contrário, que o sujeito possa agir em função do grupo sem renun-
ciar absolutamente ao interesse particular; agir tendo-o como referência,
para compor espaços que estabeleçam essas mediações (Campos, Cunha
& Figueiredo, 2013). Portanto, para a formação do GBP, é imprescindível
que o estabelecimento do contrato ocorra em diálogo entre os membros
do grupo, e que a eles seja possibilitada a oportunidade de falar sobre suas
expectativas e desejos.
Nessa mesma oportunidade, é importante que os apoiadores abordem
questões que podem escapar aos membros do grupo e que também são es-
senciais para se estabelecer a práxis Paideia. No caso em questão, a expres-
são inicial de desconfiança dos membros do grupo em relação à Secretaria
de Saúde foi uma oportunidade para falarem sobre relações de poder, lutas
internas e contradições das instituições. As instituições não são um corpo
único, naturalizado. São feitas por pessoas, como tais podem ser modifi-
cadas e um dos objetivos do Método Paideia é ampliar a capacidade dos
sujeitos de agir sobre o contexto, de modo que adquiram autonomia para
agir diante das leis, das regras e dos princípios aos quais estão submetidos
(Campos, Cunha & Figueiredo, 2013).
Nos primeiros encontros do grupo, a discussão girou em torno do
contexto vivido pelos trabalhadores. Eles se mostravam desanimados com
o trabalho, solitários, sobrecarregados e não se apresentavam mobilizados
para mudança. A discussão dos temas invariavelmente caminhava para
76 • Capítulo 3
o mbralgia (tendinopatia bilateral), dislipidemia, depressão. Também consta-
vam passado de sífilis e queixa de esquecimento.
Ao serem indagados do motivo da escolha deste caso específico para
discussão, a equipe relatou que desde 2002 a quantidade de consultas ao ano
da paciente havia aumentado de 3 para 15. Desde que o marido morrera, em
2008, passou a frequentar muito o serviço. Já fora oferecido atendimento em
Saúde Mental, com psicólogo ou psiquiatra, mas não aceitara se consultar e
já tivera alta de um psiquiatra em 2008. A equipe também se queixava que
Solange recebe muitos encaminhamentos dos profissionais da Unidade e te-
oricamente estaria sendo acompanhada por reumatologista e clínica de dor.
Estava na fila de espera para 50 consultas com diferentes especialistas. Se-
gundo a equipe, a paciente faltava ou dispensava muitos atendimentos, o que
incomodava os responsáveis pelo agendamento. Nos dizeres da enfermeira
que relatou o caso, Solange “responsabiliza completamente a gente pelo cui-
dado dela. Ela fica atrás da profissional perguntando seus encaminhamentos.
Quando a vaga sai, ela não vai.” A equipe percebe que seu cuidado é muito
fragmentado.
78 • Capítulo 3
Observaram que médicos e enfermeiros, em geral, têm uma pressa em re-
solver e prescrever algo para solucionar a situação problema dos pacientes,
enquanto a equipe de saúde mental conseguiria ouvir sem necessariamente
tentar resolver. Discutiram então o sentimento de impotência dos profis-
sionais diante de casos complexos e como a consulta compartilhada entre
profissional da equipe básica e da equipe de Apoio poderia dar mais segu-
rança na condução do caso.
Este episódio aponta para a resistência de alguns profissionais de saú-
de, em especial aqueles de formação biomédica, em realizar a abordagem
dos aspectos subjetivos de seus pacientes, o que usualmente justificam pela
falta de formação nuclear em Saúde Mental ou pela pressão da demanda.
Cunha & Campos (2011) e Campos & Domitti (2007) chamam a atenção
para o fato de que os profissionais buscam atuar preferencialmente com
problemas que pertençam ao seu núcleo de conhecimento, reafirmando
constantemente a definição de fronteiras rígidas de saber. Ademais, ao não
ampliar sua clínica para questões subjetivas e sociais, o profissional se pro-
tegeria de lidar com a própria dor, medo ou ansiedade que o trabalho em
saúde pode trazer (Brasil, 2009a). Porém, o insucesso do projeto terapêu-
tico também irá causar sofrimento e frustração no profissional. Faz-se ne-
cessário, portanto, proporcionar aos trabalhadores maneiras de lidar com
as próprias dificuldades e espaços em que possam discutir as contratrans-
ferências, positivas ou negativas, despertadas pelo caso.
Reuniões de equipe ou espaços formativos como o do Curso pode-
riam exercer esse papel, ou, como apontado pelo próprio Grupo, ele po
deria ser exercido pelo Apoio Matricial, ao mediar as discussões de caso ou
participar de consultas conjuntas. Como descrito nas diretrizes do NASF
(Brasil, 2009b), seria papel do apoiador matricial realizar atendimentos
compartilhados, visando à intervenção interdisciplinar, troca de saberes,
capacitação e responsabilidades mútuas, gerando experiência para ambos
os profissionais envolvidos. Portanto, mais do que uma ferramenta para
aumento da resolutividade, a consulta compartilhada entre profissional da
equipe e apoiador matricial deve ser compreendida como recurso peda-
gógico (Jesus, 2011). Em trabalho que envolveu entrevista em profundi-
dade de profissionais de EqSF do Rio de Janeiro, a autora observou que a
abordagem dos aspectos subjetivos e sociais do processo saúde-doença, a
escuta ativa e a responsabilidade compartilhada pelo cuidado estão entre os
aprendizados possibilitados por esse dispositivo (Jesus, 2011).
No entanto, é importante lembrar que os grupos Balint foram dese-
nhados pelo autor para criar justamente um espaço diferente do cotidiano
dos profissionais, em que uma série de pressões e dinâmicas do processo
80 • Capítulo 3
maior capacidade de autocuidado e melhor compreensão a respeito da dor.
Passara a frequentar o grupo de Entrevista Motivacional da UBS e chegara
a pedir para repor uma falta. Quando ia a alguma consulta com especialis-
ta, trazia contrarreferência para a UBS. A respeito das mudanças, a enfer-
meira comentou: A mudança saiu da gente, passou pra ela, e as coisas têm
caminhado melhor.
Relataram então a estratégia de abordagem da paciente, que passara
por compartilhar mais o caso entre todos os membros da equipe e aproxi-
mar a paciente da construção de seu projeto terapêutico, sistematizando
em conjunto com ela os encaminhamentos para especialidades. Isso dera
materialidade a suas questões, possibilitando que visse de forma mais con-
creta seu trajeto terapêutico, além de implicá-la mais claramente no uso
que fazia do sistema de saúde. Para que a paciente aderisse ao Projeto, uma
das estratégias usadas pela enfermeira fora dizer que levaria seu caso para
discussão no Curso. Na nossa visão, isso surtiu efeito, pois foi uma forma
da equipe demonstrar interesse por ela. A partir daí, haviam preenchido
juntas um questionário de autocuidado, o que a ajudara a olhar para si e
para seus hábitos de vida.
Sobre o impacto dessas mudanças na equipe, a enfermeira ressal-
tou que passou a perceber um pouco mais do resultado de seu trabalho.
Também comentou que ter iniciado a prática de consultas compartilhadas
com os profissionais de Saúde Mental vinha ajudando muito a ampliar sua
clínica e ver a forma de atuação de outros profissionais. O grupo então
discutiu a respeito das estratégias de enfrentamento utilizadas, sugerindo
que já estivessem presentes na equipe que, adoecida e automatizada, não
estava conseguindo acessá-las. Ficou evidente a contradição do discurso
da EqSF, quando afirmava que a UBS não tinha ofertas e, no entanto, fora
capaz de construir um projeto com várias ações, todas elas no próprio ter-
ritório. Além disso, a enfermeira reiterou que passara a ter paciência com
o tempo dos casos, o tempo de cada paciente para alcançar sua capacidade
de cuidado. E como reflexão final, um dos apoiadores comentou o quanto
essas pequenas vitórias nos fortalecem, e o quanto isso é importante para
sobrevivermos no trabalho.
A devolutiva do caso nos permitiu retomar temas que já haviam sido
abordados teoricamente nos cinco meses de curso: transferência e contra-
transferência, cuidado compartilhado, Apoio Matricial, alienação e sofri-
mento no trabalho. A respeito desses últimos, falamos sobre a burocrati-
zação e o quanto isso nos afasta do sentido real do trabalho, que seria o
cuidado (Terra, 2018). O grupo refletiu sobre como essa burocratização às
vezes é um mecanismo para lidar com o sofrimento da vida dos pacientes:
Encontros e Desencontros
82 • Capítulo 3
dessas questões, mas muito provavelmente somente entre os profissionais
que já estavam abertos a essa mudança.
Balint (1984) descreve em seu clássico O médico, seu paciente e a
doença o perfil dos médicos que abandonaram precocemente os grupos
que conduziu. Em primeiro lugar, havia os que buscavam no grupo trata-
mento para suas neuroses pessoais, e logo se decepcionavam ou mesmo
eram convidados a buscar tratamento individual. Havia também aqueles a
que ele denomina de hierarquia “superior” (aspas do autor), que gozavam
de boa reputação com os colegas e pacientes, com os quais se relacionavam
de maneira apostólica, e se mostravam incapazes de questionar a própria
prática ou reconhecer que poderiam aprender novas formas de clinicar.
Eles desistiam do grupo após alguns conflitos com o condutor. Em ter-
ceiro lugar, havia aqueles que se interessavam e eram participativos por
um tempo, mas sem motivo aparente deixavam de participar, dizendo ser
perda de tempo. Por fim, um quarto grupo de médicos se mostrava mui-
to comprometido com o processo, mas buscava metodologias rígidas de
aprendizagem, ferramentas mais técnicas de trabalho, sem foco nas mu-
danças mais sutis e subjetivas, pequenos desvios na personalidade que o
método objetivava.
Podemos dizer que encontramos perfis semelhantes entre os partici-
pantes do Curso. Ainda que não tenha havido desistências, talvez por ser
ofertado em horário de trabalho, talvez por uma coação dos superiores
para que participassem, houve resistência por alguns a se envolverem no
processo do Grupo, principalmente nas formas que Balint descreve como
de hierarquia superior ou naqueles que buscavam uma transmissão de
conhecimentos técnicos. Não se trata, porém, da maioria, como se pode
perceber neste relato.
De fato, mudanças no grupo foram percebidas mais claramente a par-
tir do segundo semestre de curso, quando pudemos perceber uma apro-
priação maior dos alunos do cuidado dos aspectos subjetivos. Também
notamos uma mobilização do grupo diante do mesmo cenário de pressão
de demanda e desinvestimento no SUS. Ainda assim, a burocratização do
funcionamento das equipes se manteve, sendo mais patente em equipes
com pior relação com a gestão, o que foi expresso de forma intensa por uma
aluna: Quando você quebra um fluxo, você mata a equipe.
O apego ao processo de trabalho como um fim em si mesmo é um
mecanismo de defesa comum, como indica Pitta (1989) a partir dos tra-
balhos de Libouban, e se evidencia como uma coesão interna entre a equi-
pe baseada na ajuda mútua. Por outro lado, o sofrimento e a sensação de
impotência podem aparecer sob a forma de uma necessidade de controle.
1 Onocko-Campos se remete a Saramago, conforme citação da autora: “Cria a natureza as suas di-
versas criaturas com admirável brutalidade. Entre mortos e aleijados, considera, não faltará quem es cape
para garantir os resultados da gerência, modo ambivalente e portanto equívoco de substantivar o gerir e o
gerar, com aquela confortável margem de imprecisão que produz as mutações do que se diz, do que se faz
e do que se é [...] ” (]osé Saramago, 1999, p. 45 apud Onocko-Campos, 2003).
84 • Capítulo 3
dança ao longo do curso, referindo, ao final, bons resultados na interação
entre trabalhadores e entre trabalhadores e gestão. Já no caso das equipes
que tinham dificuldades com a gestão, os trabalhadores puderam produzir
pequenos deslocamentos até o limite de sua autonomia.
Outro ponto recorrente de tensão foi a relação das Equipes de Saúde
da Família com o NASF, e dos próprios trabalhadores do NASF com o dis-
positivo. O tema já havia sido discutido como parte da grade do Curso
e os trabalhadores solicitaram que fosse retomado. Claramente, um dos
focos de tensão era justamente a falta de pactuação e construção conjun-
ta, de planejamento conjunto que colocasse em pauta as escolhas tomadas
pelas equipes e pelos profissionais matriciadores. Percebemos que pouco
tempo era gasto em pactuação entre as equipes e o NASF, também intrae-
quipes, com reuniões tomadas por passagem de casos, sem uma adequada
discussão.
Foi muito significativo dessa falta de sintonia um caso relatado em
uma das turmas de extensão vinculada a este Grupo. Tratava-se de uma
criança em situação de extrema vulnerabilidade e com uma história longa
de acompanhamento na UBS. Profissionais do NASF, agentes comunitá-
rios, enfermagem, todos apresentaram suas perspectivas a partir da angus-
tiante experiência de vários anos de investimento no cuidado da criança
e da família. O médico da equipe, porém, permaneceu o tempo todo em
silêncio. Até que um dos participantes se dirigiu diretamente a ele dizendo
que seria importante sua participação e contribuição para melhor enfren-
tamento do caso. O médico, embora também fosse membro da equipe da
UBS há muitos anos, disse simplesmente que sem o prontuário não po-
deria se manifestar. Ficou muito claro para nós que a visão de parte dos
trabalhadores e do NASF do papel da Atenção Primária era muito diferente
da perspectiva limitada e pouco comprometida do médico. Também ficou
evidente que esta necessária pactuação de projetos passa pelo gestor, que
tem a espinhosa função de definir limites para a ausência de compromisso,
assim como afirmar e valorizar o investimento das equipes na prática clí-
nica ampliada.
A falta de comunicação entre equipes já foi apontada como proble-
ma recorrente que dificulta a construção do cuidado. Há dificuldade para
institucionalizar os canais e os processos de comunicação entre as equipes,
prevalecendo relações pessoais informais ou encontros esporádicos, como
discussões de corredor (Viana, no prelo). Essas práticas fazem que os tra-
balhadores do NASF se sintam desvalorizados, enquanto os das equipes
queixam que não são ouvidos e que o NASF impõe barreiras para receber
os casos.
86 • Capítulo 3
poderia ser feita no processo grupal da equipe ou da equipe com o NASF.
Ao ser acolhido em sua angústia, o profissional teria potencializada a capa-
cidade de, por sua vez, escutar o paciente em suas angústias.
Avaliação e Encerramento
88 • Capítulo 3
lizar toda a equipe, a menos que passasse por aproximar mais da população
e dos usuários como caminho para fortalecer o SUS de forma mais efetiva.
Nos meses que decorreram até o final do curso a dinâmica não se
alterou muito. Ora havia mais implicação com o processo pedagógico, ora
mais desânimo. Ainda assim, era visível uma mudança no tom das discus-
sões de caso, mesmo aqueles em que não se conseguia avançar muito no
processo de cuidado. Em um movimento semelhante ao de um grupo ope-
rativo, as transformações se moviam em uma espiral ascendente em que,
ainda que aparentemente estivéssemos circulando sobre os mesmos temas,
casos e dificuldades, havia no grupo novos consensos e uma nova práxis de
produção de cuidado (Castanho, 2012).
Considerações finais
Referências
90 • Capítulo 3
et al. (orgs.). Manual de práticas de atenção básica: saúde ampliada e com-
partilhada. 2.a ed. São Paulo: Hucitec, 2010, pp. 34-60.
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92 • Capítulo 4
[O relato segue]
Dona Gilda procurou a UBSF por demanda espontânea por causa das
dores generalizadas de forte intensidade que comprometiam suas funções
diárias. Informou que sua aposentadoria fora suspensa e que, enquanto
aguarda a nova perícia, precisava se sustentar com o dinheiro proveniente
do seu trabalho informal como passadeira de roupas.
Como era uma consulta de demanda espontânea, os estudantes foca-
ram na queixa álgica e propuseram medidas farmacológicas e não farmaco-
lógicas para o manejo da dor crônica. Dentre elas, encaminharam D. Gilda
para avaliação da fisioterapeuta do Núcleo de Apoio à Saúde da Família
(NASF) que, em conjunto com um educador físico, realiza grupos de exer-
cícios físicos, sendo um deles destinado a pacientes portadores de dores
crônicas, incluindo fibromialgia.
Ao revisar o prontuário, os internos notaram que ela havia passado
por consulta há cerca de duas semanas e, dentre as múltiplas comorbida-
des, o médico deu ênfase a sua diabetes descompensada, visto que o resul-
tado de hemoglobina glicada fora 12,6%.1 Na ocasião, foi proposto início de
insulinoterapia, o que foi recusado pela paciente. Diante da negativa, foram
feitas orientações dos riscos do diabetes descompensado e suas complica-
ções e agendado retorno dali a três meses.
Os estudantes pensaram que esse caso poderia se beneficiar da pro-
posta do Projeto Terapêutico Singular (PTS) em razão de sua complexida-
de biopsicossocial e também ao evidente desencontro de expectativas entre
equipe e a própria paciente. Dona Gilda se preocupava centralmente com
suas dores e se recusara a seguir recomendação médica. Propuseram a D.
Gilda, ainda durante a consulta, uma pactuação de corresponsabilidade no
seu cuidado por meio da construção conjunta do PTS, expondo a preo
cupação em conciliar a agenda dela e a agenda médica (dos estudantes).
Após a consulta, a dupla de estudantes dialogou com a equipe sobre a
proposta de realizar um PTS com D. Gilda, perceberam assim que a relação
equipe-paciente já estava desgastada, ela era vista como uma paciente difí-
cil, com baixa adesão e resistente às propostas terapêuticas.
Posteriormente, fizeram uma revisão aprofundada do prontuário e
criaram uma lista de problemas:
1 Diabetes mal controlada, em uso de hipoglicemiantes orais, sem re-
gistro recente de renovação de receitas;
2 Hipertensão arterial sistêmica (HAS) supostamente resistente em
uso de quatro classes de anti-hipertensivos e com mau controle atual;
1 Exame que avalia o nível médio de açúcar no sangue nos últimos meses, para acompanhamento
do DM, cujo resultado deve ser próximo a 6,5g/dL.
94 • Capítulo 4
ções na próxima consulta e otimizá-las, caso necessário. Incentivaram uma
dieta mais adequada para uma pessoa diabética.
Com o objetivo de qualificar o cuidado da paciente, os internos reava-
liaram seu histórico médico identificando que, no último ecocardiograma,
realizado há menos de um ano, não havia sinais de insuficiência cardíaca,
de modo que algumas medicações da lista enorme de D. Gilda eram desne-
cessárias e assim propuseram a suspensão delas.
Dona Gilda comparece à Unidade relatando episódios de hipotensão,
adesão às orientações alimentares e participação ativa nos grupos de ati
vidade física.
A consulta de retorno foi feita pela médica da Unidade que relatou aos
estudantes sua própria surpresa ao ver tanto os exames laboratoriais (com
destaque da queda da hemoglobina glicada de 12,6% para 6,3%) quanto à
diferença de postura de D. Gilda em relação ao seu autocuidado. A paciente
parecia satisfeita com a melhoria da sua qualidade de vida.
Cerca de 15 dias depois, D. Gilda retorna com queixa de agudização de
suas dores, o que ela atribuía ao retorno às suas atividades laborais e ao con-
comitante abandono do grupo de exercícios físicos por incompatibilidade
de horários. Além de abordar a queixa da paciente, os estudantes aprovei-
taram a consulta para conversarem sobre o exercício de sua espiritualidade.
No final do estágio na UBSF, os estudantes realizaram uma visita do-
miciliar avaliativa e notaram melhorias da saúde de D. Gilda em relação
ao início, seu protagonismo no processo de cuidado e que já possuía uma
nova meta: cessar o tabagismo.
96 • Capítulo 4
é possível abordar diversos temas discutidos nos Grupos Balint-Paideia,
como adesão ao tratamento e conflito de expectativas entre profissionais
e usuários, polifarmácia e desmedicalização, vínculo, trabalho em equipe
multiprofissional, ferramentas da Atenção Primária à Saúde, coordenação
do cuidado, projeto terapêutico singular, saúde mental na APS e incompa-
tibilidade de perspectivas.
Percebe-se que a coordenação do cuidado, essencial na condução de
casos com multimorbidade, como o da paciente, ainda é pouco eficien-
te. Havia uma tendência de se “sobre diagnosticar” e “sobre medicalizar”.
Isso é algo paradoxal no contexto do SUS, que tem escassez de recursos,
mas no qual, ao mesmo tempo, reproduz-se a lógica de polidiagnósticos e
polifarmácia.
No caso, D. Gilda era atendida pela equipe de estratégia de Saúde da
Família e do NASF, pelos internos, por especialista (cardiologista) e por
profissionais da Unidade de Atendimento Integrado (UAI) em virtude das
idas constantes ao pronto atendimento. Balint (1998) observa que quando
há muitos especialistas envolvidos no caso, ninguém se responsabiliza ver-
dadeiramente pelas decisões tomadas. Era o que ele chamava de conluio do
anonimato. Esse aspecto foi frequentemente problematizado nos grupos
Balint-Paideia, principalmente pelo fato dos estudantes reproduzirem a
convicção das Equipes de Saúde da Família de que o especialista, em razão
de seus conhecimentos clínicos da área específica, tem uma autoridade má-
xima sobre o caso, pontuando a decisão final como inquestionável.
Qual era a expectativa da Equipe de Saúde da Família ao encaminhar
D. Gilda ao especialista, já que ela não aderia ao tratamento proposto? Se-
ria para dividir responsabilidades e cumprir um protocolo clínico (rígido,
inflexível e que não singulariza as pessoas)? Percebe-se que a relação do
médico generalista com o especialista muitas vezes é uma relação aluno-
-professor, cujas decisões e condutas fica refém.
A reflexão sobre o papel do especialista neste caso permitiu que os
estudantes descartassem o diagnóstico de insuficiência cardíaca feito pelo
cardiologista e, junto com a equipe, pudessem reduzir consideravelmente
as medicações em uso. Porém, elas foram reintroduzidas em uma consul-
ta com o cardiologista, o que evidencia a fragilidade da coordenação do
cuidado. Isso demonstra a falta de comunicação entre os diversos pontos
da rede e, mais do que isso, a falta de uma política institucional que valo-
rize a lógica do Apoio Matricial e não a de simples “encaminhamentos”.
Vale notar também a fragilidade do prontuário eletrônico na garantia da
coordenação do cuidado. Ainda que ajude muito, não é suficiente, mes-
mo porque o paciente pode acessar algum ponto de atenção à saúde (ou
98 • Capítulo 4
caso “mais livremente” nos GBP chamava a atenção dos estudantes. Nes-
se espaço não era necessário focar somente nas doenças (como estavam
acostumados nas discussões clínicas nos outros estágios do internato), mas
conseguiam ampliar o olhar para os aspectos sociais, psíquicos e institucio-
nais (compreendendo que a forma de organização do trabalho influencia
nas relações, incluindo a relação com equipe e usuários). Mais do que isso,
alguns internos sentiam-se confiantes em falar, nos GBP, sobre aspectos
que os incomodavam, alguns sentimentos e emoções que os casos atendi-
dos lhes causavam. No entanto, essa não era a percepção de todos os alu-
nos. Alguns não se sentiam à vontade para compartilhar seus sentimentos,
outros se incomodavam com a discussão de aspectos mais subjetivos, ale-
gando desfocar do objetivo deles de se preparar para a prova de residência
médica que se aproximava.
Mais do que apenas gerar uma frustração nos estudantes, as conse-
quências da escassez de trabalho interdisciplinar são percebidas também
quando se nota a hierarquização da lista de problemas relatados pela dupla.
Os itens iniciais apontam para diagnósticos biomédicos (diabetes, HAS,
doença arterial coronária, polifarmácia) sendo que os itens que se seguem
possuem características mais sociais e subjetivas (dor, sofrimento mental,
tabagismo e problemas financeiros). Nas discussões do GBP a dupla men-
ciona a preocupação em melhor avaliar o humor depressivo e a insônia da
paciente. Questionados sobre a associação dessa condição psíquica com as
dores, respondem que acreditam que estão associadas: “uma leva a outra e
outra leva a um”, diz outro estudante meio ao debate. A dupla relatou que a
paciente era chorosa e que tomava antidepressivo (fluoxetina) com pouco
resultado. Apesar de terem compreendido que a paciente se sentia sozinha
e muito incomodada com os adoecimentos físicos e as dores, pareciam de
mãos atadas diante da sutileza do sofrimento humano, que chegou a ser
naturalizado por outra aluna presente: “a vida não tem solução, melhor es-
perar pra morrer”.
A questão da subjetividade no processo saúde-adoecimento-cuidado
parece sempre um desafio na Atenção Primária, especialmente no que tan-
ge ao trabalho médico. É como se a cisão científica operada entre psiquis-
mo-corpo criasse um abismo entre especialidades e fragmentações quase
insuperáveis na complexidade humana.
Propondo montar um quebra-cabeça, os GBP permitem reflexões e
aprofundamentos, porém elas nem sempre se viabilizam no campo prá-
tico, já que a ideia, para ser executada, requer articulações diversas que
não são simples. Explicando melhor, D. Gilda apresentava humor depri-
mido e não dormia bem, preocupava-se com seu envelhecimento, dores e
100 • Capítulo 4
si só explica um determinado problema e há uma tensão importante entre
as definições de APS contidas na literatura e como ela acontece no dia a
dia. A Atenção Primária é tão complexa que necessita do apoio de diversas
disciplinas para a sua prática: ciências biomédicas, epidemiologia, psico-
logia, sociologia, antropologia, filosofia e ética, artes e literatura, pedago-
gia. As duas primeiras são priorizadas pelos profissionais, por abordarem
a anatomia, fisiologia, patologia, farmacologia, o estudo das doenças nas
populações e a medicina baseada em evidências, que dá suporte a decisões
clínicas individuais. No entanto, apenas essas duas disciplinas dão uma vi-
são incompleta e restrita do que é a APS. É necessário ampliar o olhar para
o estudo da subjetividade e das relações, da sociedade humana, dos modos
de vida das pessoas, dos grupos e da sociedade; da história, poesia e drama;
da filosofia e da ética; bem como o estudo das teorias de aprendizagem.
Desta forma, um aspecto que surgiu nos GBP, estimulado pelos
apoiadores, foi a abordagem da espiritualidade, ponto importante de apoio
na vida de D. Gilda (identificado no ecomapa, mas não aplicado na condu-
ção do caso).
A espiritualidade pode ser uma estratégia de resgate da relação mé-
dico-paciente, já que perguntar sobre espiritualidade e religiosidade tende
a gerar mais confiança e empatia. Para o médico, é importante avaliar a es-
piritualidade para “detectar sentimentos negativos que possam contribuir
com o adoecimento ou agravamento do mesmo tais como mágoa, ressen-
timento, falta de perdão, ingratidão, entre outros” (Précoma et al., 2019;
Puchalski & Romer, 2000). Além disso, a abordagem da espiritualidade de-
monstra um reconhecimento de que existem outros espaços terapêuticos
fora do espaço formal da saúde.
Na apresentação do caso foi sugerido, pelos apoiadores, que a dupla
apresentasse para D. Gilda o Centro de Referências de Práticas Integrativas
e Comunitárias em Saúde (CRPICS) da cidade. A paciente poderia se bene-
ficiar de ser cuidada dentro da mesma perspectiva em que cuida do outro.
O CRPICS possui grupos com várias práticas que seriam possibilidades
terapêuticas, talvez mais sedutoras para D. Gilda, ampliando suas relações
sociais e tornando-a uma paciente vinculada a práticas na qual ela também
é agente. Subjetivamente, esse movimento de cuidar-se em um espaço com
familiaridades com suas práticas poderia ser potente ao fomentar seu pró-
prio saber e abrir espaço para que ela deixasse ser cuidada.
Outro ponto que deve ser discutido é em relação à forma de comu-
nicação e o processo de aprendizagem inerente à prática em saúde. Nesta
relação dos internos com D. Gilda, torna-se necessário levar em conta a
cultura e saber da paciente, o que foi considerado na construção do PTS,
102 • Capítulo 4
no lugar do outro, âmbito da máxima autonomia do sujeito em relação
ao serviço de saúde. O reconhecimento de um ambiente domiciliar, bem
como da singularidade de uma situação familiar, subsidia intervenções
possíveis, voltadas às necessidades específicas da pessoa e da família. Por
meio da visita domiciliar, podemos reconhecer fragilidades, riscos, poten-
cialidades e possibilidades que dificilmente apareceriam em uma consulta
na UBSF (Mahmud, 2019).
Da mesma forma, as habilidades de comunicação e o “saber ouvir”
são fundamentais neste processo, despertando o sentimento de confiança
que irá proporcionar um diálogo mais aberto e profundo. Provavelmente,
por se sentir acolhida e respeitada em seu domicílio D. Gilda conseguiu
expor mais intimamente angústias e expectativas em relação às suas condi-
ções de saúde e doença e impressões sobre a vida.
Estar no domicílio demanda do profissional habilidades complemen-
tares pouco exploradas na maioria dos cursos de graduação. No domicílio
ou mesmo no consultório, entender como a família influencia a saúde pro-
picia ao médico de família e comunidade a oportunidade de antecipar e
reduzir efeitos adversos do estresse familiar e usar a família como recurso
para cuidar das pessoas.
Como observado no caso descrito, os problemas clínicos e emocio-
nais podem ser tratados com um cuidado individual centrado na pessoa,
ao abordar a experiência da doença para a paciente. Porém, a abordagem
familiar pode trazer um benefício muito superior, principalmente para
doenças crônicas em situações de não adesão ao tratamento ou situações
que envolvam problemas mentais e interpessoais, pois o envolvimento de
outros membros da família facilita a compreensão do sistema familiar e a
adesão ao tratamento.
Assim, uma das formas de entendermos o funcionamento da família é
o genograma, que se constitui como uma excelente ferramenta de compre-
ensão da história das pessoas e suas famílias. Ele é reconhecido como um
instrumento para mapear, ampliar o conhecimento sobre a família e rea
lizar intervenções pelos profissionais nos cuidados de saúde (Dias, 2019).
Além do genograma, a abordagem familiar pode ser complementada
pela realização do ecomapa, que auxilia a compreender as relações da famí-
lia com a comunidade (Pereira et al., 2009).
Por meio do ecomapa, percebe-se claramente o desamparo que D. Gilda
sente em relação aos filhos. Os alunos identificaram o Centro Espírita como
possível rede de apoio, apesar de que não havia a percepção por ela de uma
rede de apoio suficiente para lhe amparar; pelo contrário, ela se via como
apoio de várias pessoas e, por isso, a ideia do adoecimento lhe apavorava.
104 • Capítulo 4
de saúde é essencial, mas não basta por si só para a tarefa de cuidar de
uma pessoa. A atmosfera criada nos encontros dos internos com a paciente
permitiu nitidamente resultados agradáveis. Ao final do processo a dupla
aponta a repercussão do engajamento profissional da seguinte maneira: “se
fosse eu, ia querer dar retorno”, indicando a posição da paciente em relação
a um trabalho interessado dos profissionais.
Considerações finais
Referências
106 • Capítulo 4
em: <http://libdigi.unicamp.br/document/?code=000440902>. Acesso em:
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108 • Capítulo 5
cionamento da Atenção Primária como parte de sistemas de saúde. Entre
estas categorias ordenadoras da APS, destacamos as seguintes estratégias
e diretrizes: Rede de Atenção Primária integrada aos sistemas de saúde;
cobertura da Atenção Primária tendente à universalidade (80% a 100% da
população); integralidade, concepção ampliada sobre processo saúde/cui-
dado; gestão e planejamento com base em vulnerabilidade e necessidades
de saúde (diretriz da equidade); modelo de cuidados que integre saberes
e práticas de promoção e de clínica; formação integral dos profissionais;
vários cenários de práticas: território, instituições, família e cada pessoa;
equipes interdisciplinares; coordenação e regulação dos projetos terapêu-
ticos; longitudinalidade e continuidade do cuidado com constituição de
vínculo; responsabilidade sanitária; humanização e compartilhamento de
práticas de gestão e de cuidado com usuários (OMS, 2008).
A construção de uma Rede de Atenção Primária com amplo aces-
so, organizada segundo as concepções anteriormente descritas, representa
uma reforma institucional e cultural de grandes proporções. Em geral, essas
reformas têm provocado conflitos e resistências. Além disso, esta dimensão
da Reforma Sanitária implica transformações em cascata e que atingem
outras instituições. Depende de radicais mudanças na formação em saúde
focada, sobretudo, em uma concepção biologicista e hospitalocêntrica; há
a necessidade de se redefinir o papel dos hospitais e serviços especializados
com a construção de pontos de atenção à saúde organizados em redes de
cuidado; instituir-se uso mais racional de medicamentos e procedimentos;
além de induzir a população a utilizar o sistema de saúde segundo uma
lógica diferente da tradicional (Carvalho & Ceccim, 2012).
No Brasil, desde sua origem, o Programa de Saúde da Família, depois
renomeado como Estratégia de Saúde da Família, adotou uma perspectiva
ampliada do processo de saúde e cuidado, recomendou a abordagem base-
ada na integralidade, mediante ações possíveis e necessárias nos vários pla-
nos desse processo. Sempre se argumentou que a integralidade dependeria
da composição multiprofissional das Equipes de Saúde da Família e, mais
tarde, dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), bem como da uti-
lização combinada de conhecimentos e de práticas originárias da Promo-
ção em Saúde e da Clínica Ampliada e Compartilhada (Fausto et al., 2018).
É premente, portanto, ações de formação que tenham como foco
privilegiado a articulação dos saberes dos diferentes núcleos profissionais
que compõe a APS no Brasil e que seja construído com base na realida-
de concreta na qual estes trabalhadores exercem as suas práticas (Melo,
2016). Segundo Campos (2013), a análise da formação dos estudantes teria
de levar em consideração os três planos: o primeiro seria o do cognitivo
110 • Capítulo 5
saúde, convivendo com articulações transversais que tentam pactuar novas
práticas (Junges et al., 2009).
Nessa perspectiva, o Curso propôs a integração dos processos edu-
cativos de profissionais da saúde às experiências cotidianas dos serviços,
a fim de se tomar as práticas de trabalho como fonte de conhecimento,
compreendendo a concepção de trabalhadores da saúde como agentes crí-
ticos e reflexivos capazes de construir o conhecimento e desenvolver ações
alternativas para solucionar problemas, e o trabalho em equipe como mo-
dalidade de organização do trabalho (Souza & Roschke, 2003).
Para Campos (2014), os participantes do Curso devem se envolver
tanto na construção dos diagnósticos como na elaboração de novas formas
de agir; ou seja, formas democráticas para coordenar e planejar o trabalho.
Formas que aproveitem e considerem a experiência, o desejo e o interesse
de sujeitos que não exercem funções típicas de gestão. Os atravessamentos
que impedem a fluidez e o êxito do trabalho das equipes e as transversali-
dades que abrem caminho devem ser analisados segundo a percepção dos
trabalhadores. O Curso, portanto, com metodologia Paideia depende da
instalação de alguma forma de Cogestão.
Baremblitt (2002) afirma que a sociedade se polariza entre duas carac-
terísticas: as utopias sociais e as características históricas que as comprome-
tem — a exploração, a dominação e a mistificação. As utopias sociais são
construções que visam a satisfazer a vontade coletiva, o aperfeiçoamento da
vida social e a realização de um ideal social. Esses ideais, sempre históricos,
são desvirtuados ou comprometidos por uma deformação que se desdobra
em três ações: a exploração de uns sobre outros (expropriação de potên-
cias e do resultado produtivo de uns por parte dos outros), a dominação
(imposição da vontade de uns sobre os outros e o não respeito à vontade
coletiva) e a mistificação (administração arbitrária ou deformada do que se
considera saber e verdade histórica, que é substituída por diversas formas
de mentira, engano, ilusão, sonegação de informação etc.).
Durante o processo de formação, estes dois indicadores de organiza-
ção social — atravessamentos e transversalidades — emergiram e se fize-
ram presentes, não sendo possível não os considerarem na análise. Opta-
mos por chamar de atravessamentos por considerar as diversas dimensões
sociais voltadas para a reprodução da sociedade (instituído, organizado) e
para a resistência à transformação pressuposta pela utopia social e por seus
princípios, os quais se interpenetram para fundar conceitos, procedimentos
e valores novos e criativos. Assim, observamos e descrevemos neste item,
o que intitulamos de atravessamento na instituição saúde, atravessamento
112 • Capítulo 5
Consideramos como atravessamentos na instituição educação, as difi-
culdades dos participantes com o tipo de metodologia ofertada pelo Curso,
embasadas na identificação das necessidades de saúde, ou na observação
do ambiente de trabalho e processo de trabalho, visto que outros cursos
de capacitação que foram realizados utilizavam metodologias e atividades
educativas voltadas para o público-alvo de uma área profissional específica,
aspecto que caracteriza a fragmentação das ações de saúde e a prevalência
do trabalho individualizado por categorias no modo de organizar o proces-
so de trabalho em saúde, deixando de lado a interdisciplinaridade e multi-
profissionalidade (Lima, Albuquerque & Wenceslau, 2014).
Em alguns momentos, as dificuldades de adaptação com a metodolo-
gia ativa, e com os temas teóricos sugeridos pelo Curso, como observado
na fala de uma ACS, achei os textos muito grandes e complexos, com termos
que a gente não entende direito.
Foram identificados desafios já que na cidade predominam atividades
educativas voltadas para o público-alvo de uma área profissional específica,
o que não aconteceu, pois o Curso evitava o aspecto que caracteriza a frag-
mentação das ações de saúde e a prevalência do trabalho individualizado
por categorias e objetivava reforçar um modo de organizar o processo de
trabalho em saúde valorizando a interdisciplinaridade e multiprofissionali-
dade (Lima, Albuquerque & Wenceslau, 2014).
Os professores/apoiadores observaram que temas como transferên-
cia e contratransferência, Clínica Ampliada e Cogestão surgiram como co-
nhecimentos científicos desconhecidos e de difícil compreensão a partir
dos textos abordados, como se os saberes e experiências dos profissionais
fossem “desatualizados”. Assim como a abordagem das discussões serem
feitas em roda inibiu a participação de alguns profissionais nos primeiros
encontros. Os professores/apoiadores, então, adotaram uma postura aco-
lhedora e compreensiva, propondo textos de apoio com uma linguagem
simplificada e a utilização de instrumentos como a apresentação de vídeos
e algumas aulas expositivas e a leitura dos Cadernos de Atenção Básica do
Ministério da Saúde. Também, buscaram estimular com dinâmicas como: a
confecção de maquetes dos territórios, elaboração de tarjetas para estimu-
lar as falas, cartazes para elaboração em conjunto de Projeto Terapêutico
Singular (PTS), discussões em grupos menores antes que os temas fossem
abordados na roda, entre outros que possibilitasse estimular a experiên-
cia dos sujeitos e o exercício do reconhecimento dos saberes e das práticas
exercidas com protagonismo por alguns na realidade diária dos serviços.
Assim, a transversalidade do Curso como proposta pedagógica inspi-
ra-se na educação emancipatória, e, ainda que traga distinções, a proxima-se
114 • Capítulo 5
(Campos, 2010; Terra, 2018). Ao se aproximar da reorientação dos sistemas
de saúde, a visão do território e o processo de territorialização tornam-se
ferramentas necessárias para que ocorra a transição entre tais modelos de
aprendizagem e organização do processo de trabalho, especialmente no
contexto da APS.
Na ocasião do curso, foi trabalhado, com ênfase, o tema território. Já
nos primeiros encontros foram propostas dinâmicas, oficinas e instrumen-
tos a fim de estimular as reflexões dos participantes a fim de “enxergar” o
próprio território e o território das outras equipes, além de perceberem
suas dimensões complexas e dinâmicas, suas potências e obstáculos, seus
riscos e vulnerabilidades, e suas necessidades.
Como se evidencia em uma fala de uma ACS: [...] não imaginavam
que no nosso município tínhamos tantos problemas com uso de drogas. Achei
que isso só acontecia na minha área. Essa fala surgiu após o apontamento
dos obstáculos de uma Unidade que se encontra em um território de classe
média alta, causando certo espanto pela agente da fala, que pertencia a um
território de classe social baixa.
Observaram também, o ambiente em que está inserido o território,
os processos de produção, os conflitos socioambientais e a percepção da
equipe e da comunidade. Demonstrado na fala de uma enfermeira de uma
das Unidades de zona rural: [...] achei interessante observar como uma das
potências das Unidades das zonas rurais é um dos obstáculos das Unidades
da cidade, que é a questão da participação da comunidade nas atividades
realizadas pelas equipes. Lá (zona rural) eles (pessoas da comunidade) são
muito unidos e ajudam muito a gente. Nesse sentido, também é importan-
te ressaltar que a participação e o envolvimento da comunidade com as
atividades das Unidades foram apontados como “potências” pelas duas
Unidades da zona rural e como “obstáculos” pelas cinco Unidades da zona
urbana. Evidenciando assim, como “[...] múltiplas forças e fluxos que per-
passam os territórios e interagem de forma diferenciada sobre eles [...]”
(Santos & Rigotto, 2010).
Em um momento posterior do curso, uma observação foi feita por
uma ACS sobre essa dinâmica que demonstrou um grau de reconhecimen-
to com o outro: “[...] depois daquela atividade da maquete, vi que algumas
agentes pararam de reclamar do seu território, porque antes elas achavam
que só o delas é que tinham problemas, aí elas viram que não.
A reflexão sobre o território ocorreu para além da dimensão político-
-operativa do sistema de saúde, ela se dá na condição de cotidiano vivido
no qual a interação entre as pessoas e os serviços de saúde no nível local
do SUS, caracteriza-se por uma população específica, vivendo em tempo e
116 • Capítulo 5
nicípio, sendo predominantemente uma ação realizada, sobretudo, pelas
enfermeiras de cada Unidade e de maneira pontual e individualizada. E
que aquela era a primeira vez que essas análises eram realizadas a partir de
uma reflexão conjunta.
Um dos fundamentos da ESF é o foco na comunidade e no território,
construída sobre uma base territorial espacialmente delimitada e seguin-
do o modelo instrumentalizado de adscrição e cadastramento da clientela.
Cada território passou por um diagnóstico epidemiológico e sociocultural
a fim de identificar os fatores e condições pertinentes aos processos de saú-
de e doença de determinada região.
Enxergar o território e compreender que os problemas de saúde apre-
sentam uma diversidade de determinações, que os diagnósticos das con-
dições de vida e da situação de saúde-doença da população, por meio da
análise cuidadosa dos indicadores, são pontos de partida para a construção
de ações em saúde mais eficientes.
Segundo a literatura:
118 • Capítulo 5
Formas que aproveitem e considerem a experiência, o desejo e o interesse
de sujeitos que não exercem funções típicas de gestão.
120 • Capítulo 5
tamente com o prefeito. O segundo ocorreu pela demissão da psicóloga
do NASF, que segundo relatos dos colegas, teve como motivo a posição da
profissional com críticas às ações da gestão municipal. Houve ainda, um
terceiro momento, não propriamente de desconforto durante o curso, mas
que foi trazido, talvez já em função do locus de proteção do curso como
espaço democrático, quando foi denunciado pelos profissionais, que havia
um novo assessor da prefeitura, cuja função seria a de passar a acompanhar
os ACS em suas visitas domiciliares.
Para Cecilio (2012), os gestores são percebidos como elementos ex-
ternos às equipes, por vezes, vistos como superiores e inatingíveis, fato
refletido no distanciamento deles com os trabalhadores e suas necessida-
des. Essa percepção pode ser exemplificada em um momento do curso de
grande desconforto pela equipe de uma Unidade da zona rural em um epi-
sódio ocorrido na sua comunidade. Episódio este, que ocorreu em razão
da intervenção do Centro de Referência Especializado de Assistência So-
cial (CREAS), órgão que havia sido recentemente instituído no município,
mesmo sem a orientação e a explicitação das suas relações com as equipes
de ESF, e atuou de forma fiscalizadora e punitiva naquela comunidade.
O episódio ocorreu quando, após denúncias feitas pela população so-
bre uma idosa que, supostamente, estava sendo malcuidada por seus fa-
miliares, os integrantes desse órgão foram até a comunidade e solicitaram
que a técnica de enfermagem da Unidade os acompanhasse até a casa da
idosa, sem que essa profissional soubesse do que se tratava e de que abor-
dagem seria tomada. Assim, os integrantes do CREAS retiraram a senhora
de sua casa e a internaram, compulsoriamente, no asilo da cidade. A partir
desse episódio, a comunidade passou a ter uma postura de desconfiança
àquela equipe por acreditarem que a denúncia tinha sido feita pela técnica
de enfermagem que acompanhou os integrantes do CREAS até o domicí-
lio. Segundo a enfermeira da Unidade, houve grande constrangimento da
técnica quando teve consciência da intervenção que seria feita por aquele
órgão. Ela se encontrava bem abalada durante o encontro, chorou quando
a enfermeira contou o ocorrido e por temer que todo o trabalho de aceita-
ção que a equipe havia realizado fosse perdido a partir daquele ocorrido.
Essa discussão se seguiu por acolhimento e incentivo das outras equipes,
mas também de questionamentos sobre o que era o CREAS, pois muitos
não tinham nem o conhecimento desse órgão e que ele estava atuando no
município e o porquê de a gestão não ter comunicado as equipes sobre a
existência dele. Aos apoiadores coube ponderar e explicar a importância
desse órgão, qual deve ser sua função no município e que a ele não cabe um
trabalho de forma fiscalizadora e punitiva.
122 • Capítulo 5
menta que abordasse o tema “conflitos” (Apêndice III), então, as manifesta-
ções relacionadas ao POP surgiram de maneira evidenciada e com potência
nas falas e argumentações feitas pelos ACS: [...] não entendo porque nós
(ACS) não participamos da elaboração desse negócio que era pra avaliar o
nosso trabalho; [...] pra eu fazer esse monte de visita por dia, num dá tempo
nem de eu conversar direito com a pessoa, é só pegar a assinatura e sair cor-
rendo; [...] e se a gente precisa voltar na casa da mesma pessoa, não pode
pegar assinatura repetida; [...] como que a gente vai fazer com as pessoas
que não conseguem assinar? Elas até ficam sem-graça de falar que não sa-
bem e a gente fica com dó. Além de evidenciarem que o POP não abordava
outras ações de promoção de saúde ou ações coletivas e educativas como
parte das metas a serem cumpridas. Esse foi um momento do curso onde
ocorreu escuta dos enfermeiros e empoderamento dos ACS. Falar sobre
dificuldades da prática, em geral, tende a produzir uma abertura da resis-
tência dos sujeitos e a busca de outras disciplinas, valores e possibilidades
subjetivas (Campos, 2010).
Após o episódio de discussão sobre o POP, outros momentos de fala
dos ACS surgiram. Um deles ocorreu quando foi pautado, por solicitação
dessa classe profissional, que no espaço do curso, se retomasse o tema so-
bre “atribuições do ACS”. A sugestão feita aos professores/apoiadores foi
que, para além das atribuições que estão previstas na lei que regulamen-
ta o trabalho do ACS, Lei 11.350/06 (Anexo III) que já havia sido tratada
em outro momento do curso, se trouxesse a experiência desses profissio-
nais no município de Campinas/SP. Assim foi feito, um dos professores/
apoiadores foi até o Centro de Saúde Santos Dumond (Jardim Itatinga)
para ouvir dos ACS daquela Unidade relatos sobre o trabalho realizado
com a comunidade, e os grupos de convivência foram apresentados como
ponto forte daquela e quipe. No encontro seguinte, foi apresentado às equi-
pes como se estruturava o trabalho dos ACS nas Unidades de Saúde de
Campinas/SP. Os participantes se mostraram surpresos por não imaginar
tantas p
otencialidades em seus trabalhos. E a partir daí, surgiu um grande
desejo em se realizar esses grupos de convivência pelas equipes participan-
tes do curso.
Essa experiência se refletiu nos projetos de conclusão do curso, que
contou com a criação de grupos de convivência pelos ACS em várias Uni-
dades. Suas experiências exitosas foram evidenciadas pelos relatos e pela
dimensão que alguns desses grupos ganharam como, por exemplo, repor-
tagens no jornal da cidade, pessoas de outros municípios querendo par-
ticipar dos grupos e ACS relatando que encontraram sentido para o seu
trabalho.
124 • Capítulo 5
pela força do mercado e da economia, pela cultura ou pela tradição, ou pela
instituição da sociedade de controle ao poder do Estado ou de uma rede de
micropoderes.
O conceito de Cogestão aponta para o reconhecimento da possibili-
dade de instituir compromissos coletivos e para a necessidade de demo-
cratizar o poder em todas as dimensões da vida institucional e social: “a
base da Cogestão, ninguém governa sozinho” (Campos, 2000, p. 44). Esses
aspectos tornam a proposta de Cogestão apresentada por Campos um pro-
jeto político radicalmente antagônico à razão tecnocrática, e que se assenta
na prática da “liberdade de se pôr em pauta os desejos e interesses dos tra-
balhadores” (Campos , 2000, p. 128).
Assim, deve-se ressaltar que diferentes relações de poder-saber estão
estabelecidas na APS do município e no ambiente de trabalho das equipes
de ESF, devendo ser traçadas estratégias que visem o reconhecimento da
possibilidade de se instituir compromissos coletivos e para a necessidade
de se democratizar o poder em todas as dimensões da vida institucional e
social: “a base da Cogestão, ninguém governa sozinho” (Campos, 2000, p.
44). Estes aspectos tornam a proposta de Cogestão apresentada por Cam-
pos um projeto político radicalmente antagônico à razão tecnocrática, e
que se assenta na prática da “liberdade de se pôr em pauta os desejos e
interesses dos trabalhadores” (Campos, 2000, p. 128).
126 • Capítulo 5
zes informativos que explicassem o fluxo de atendimento e os protocolos
adotados, além da inclusão da recepcionista nos diálogos realizados duran-
te as reuniões de equipe, além do entendimento e da adoção de uma nova
postura pelos trabalhadores na percepção do acolhimento. Essa mudança
repercutiu como tema escolhido para o desenvolvimento do trabalho de
conclusão de curso dessa equipe.
A falta de organização e planejamento na instituição e no processo de
trabalho do NASF também foi observada no decorrer do curso. O proces-
so de trabalho das EqSF está diretamente relacionado à articulação dessas
equipes com o NASF, e na época não existia um arranjo institucional que
garantisse uma comunicação clara entre os vários profissionais. Não era
possível a realização de reuniões do NASF com as EqSF, por divergência
das agendas de cada Unidade, o que dificultava o alinhamento da demanda
das Unidades com os profissionais do NASF, além de sobrecarregar esses
trabalhadores, como demonstrado na fala da psicóloga [...] cada dia que
chego numa Unidade, vejo que as listas só aumentam, sinto que não vou dar
conta, e reforçado pela queixa da fisioterapeuta [...] tenho a sensação que
estamos “enxugando gelo”.
Essas limitações pareceram consequentes tanto do desconhecimento
do processo de trabalho do NASF e sua organização pelos profissionais e
pela gestão no momento de instituição dele no município, quanto pela falta
de diálogo entre esses atores.
Tais problemas incidem negativamente no processo de trabalho em
equipe, que é idealizado para o trabalho na ESF. As dificuldades encontra-
das na comunicação com a gestão central e hierarquizada sobre as dificul-
dades encontradas na organização do trabalho impedem a integração e a
cooperação entre trabalhadores e equipes e eles à gestão, seja no comparti-
lhamento de competências, seja na identificação de problemas e na elabo-
ração de soluções (Santos-Filho & Barros, 2009).
Na tentativa de organização do processo de trabalho do NASF e de
articulação dele com as equipes da ESF, foram estabelecidos espaços de dis-
cussão teórica sobre as funções atribuídas aos profissionais dessa equipe.
Discutiram-se conceitos como o Apoio Matricial, a necessidade de apoiar a
inserção da ESF na rede de serviços e ampliar a abrangência, a resolutivida-
de, a territorialização e a regionalização, além de priorizar o atendimento
compartilhado e interdisciplinar com troca de saberes, capacitação e res-
ponsabilidades mútuas (Brasil, 2009; 2012).
Como indicado pelas orientações do Ministério da Saúde (Bra-
sil, 2009a), a organização e o desenvolvimento do processo de trabalho
do NASF dependem de algumas ferramentas como é o caso do Apoio
128 • Capítulo 5
Percebeu-se que, subsidiados de elementos teóricos, debates e refle-
xões coletivas, se desenvolveu um movimento de empoderamento dos tra-
balhadores que passaram a questionar os processos e a hierarquização do
trabalho, levando muitos deles a se unirem e buscarem dialogar sobre esses
temas com a coordenação e com a gestão.
Considerações finais
Referências
130 • Capítulo 5
FIGUEIREDO, M. D. A construção de práticas ampliadas e compartilhadas em
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132 • Capítulo 5
Parte II
Capítulo 6
O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em
análise: desafios na ampliação da clínica
Felipe Guedes
André Pimenta de Melo
Lilian Soares Vidal Terra
136 • Capítulo 6
dades de ampliação da clínica e da atuação a partir das configurações do
processo de trabalho.
Isso posto, adentrar à complexa, e por vezes tortuosa, trama de sen-
tidos que compõe as redes de relações intersubjetivas exige uma mudança
de olhar e de posicionamento epistemológico. Demanda uma compreen-
são diferente daquela fornecida pelo arcabouço utilizado pelo paradigma
biomédico e pelas ciências naturais (Figueiredo & Furlan, 2008), seja em
função da dimensão temporal e histórica que compõe a existência humana
(Heidegger, 1995), seja pela ambiguidade e mutabilidade própria de nossos
desejos, vontades e projetos (Merleau Ponty, 1994). Isso é, a existência é
atravessada por elementos contraditórios que requerem pensar o humano
para além da figura do sujeito universal, autônomo e racional da moderni-
dade, reconhecendo que não somos nem tão universais, já que não com-
partilhamos de uma natureza essencial e possuímos diferenças de várias
ordens que são irredutíveis (de cultura, classe, raça, gênero e sexualidade);
nem somos tão autônomos, pois não estamos em pleno controle de nós
mesmo; nem racionais, uma vez que existem sentidos e motivos que nos
atravessam e nos escapam ao entendimento. Dessa forma, ao adentrar o
campo de sentidos e significados que compõem a vida humana, é preciso
uma atenta precaução, uma vez que estamos lidando com fenômenos que
não são plenamente claros e explícitos. Fenômenos, portanto, que reque-
rem outro modo de posicionamento, longe de qualquer fantasia de onipo-
tência e onisciência, e que produzem repercussões importantes quando o
cuidado à saúde é o que está em jogo.
A formação hegemônica dos profissionais de saúde dá pouca margem
para essas dimensões, muitas vezes relegando-as à condição de não cientí-
ficas. Para um paradigma voltado para a formulação de generalidade, que
busca o máximo de controle e previsão, a dimensão da singularidade pode
parecer não científica, uma vez que não é passível de reprodução. Como foi
analisado por Foucault (2011), segundo essa lógica ‘‘quem desejar conhe-
cer a doença deve subtrair o indivíduo com suas qualidades singulares; se
o curso da doença não é interrompido ou perturbado pelo doente, as leis
imutáveis que o determinam podem ser rapidamente descobertas’’ (Fou-
cault, 2011, p. 14).
Todavia, nos contextos reais de práticas, prescindir de lidar com as
dimensões não biológicas dos sujeitos, sejam eles os trabalhadores ou os
usuários, é virtualmente impossível. Menezes (2000), em pesquisa etno-
gráfica em um Centro de Tratamento Intensivo, aponta que mesmo nesse
ambiente, onde há uma predominância de “recursos tecnológicos de ponta”
138 • Capítulo 6
protocolizado de modo calculado. Diante da radicalidade de outra exis-
tência, somos convocados a outro tipo de pensar; um pensar ético que se
debruça sobre cada caso, a cada vez, junto a um outro. Um pensamento que
parte de outro paradigma que não aquele da fragmentação e do cálculo aos
quais estamos condicionados pela biomedicina e pelas ciências naturais.
Convocar os trabalhadores a este outro pensar torna-se ainda mais
desafiador quando consideramos o contexto de trabalho na APS brasileira.
Características como separação entre planejamento (a cargo dos gestores e,
algumas vezes, dos trabalhadores de nível superior) e execução (a cargo dos
demais trabalhadores), a constante pressão da demanda em serviços subdi-
mensionados, a gestão dos serviços por meio de metas não pactuadas com
os trabalhadores, entre outras, contribuem para a alienação desse trabalha-
dor, com consequente afastamento do sentido de seu trabalho. São muitos
os estudos que relacionam esse fenômeno com o sofrimento do trabalha-
dor, o apagamento da relação trabalhador-usuário e a piora na qualidade de
cuidado, quer por negação de assistência, fragmentação ou desumanização
(Arsego, 2013; Figueiredo, 2011; Gomes, 2010; Gomes & Schraiber, 2011;
Terra, 2015). Observa-se que o sofrimento infligido ao outro surge da ob-
jetificação do paciente e de si mesmo em um processo de produção de pro-
cedimentos, e não necessariamente de saúde. Permeado pela racionalidade
neoliberal, o trabalhador coisificado, tomado como “recurso humano”, tal
e qual os recursos materiais, tende a reduzir à dimensão técnica todas as
relações, tornando-se incapaz de lidar com a subjetividade do outro — seja
esse outro o colega de trabalho, o gestor ou o paciente.
Soma-se a isso a problemática da reificação na saúde. Terra (2015)
observa que,
140 • Capítulo 6
s aúde. Uma saúde é claro, que não se paute apenas no “silêncio dos órgãos”,
mas na produção de vida em sua alteridade, mutabilidade e, por que não,
emancipação. Uma saúde, portanto, que não se confunde com um ideal
padronizado e normativo de uma determinada forma e estilo de vida vin-
culada a uma classe, a um gênero, a uma raça ou a uma sexualidade, que se
resumiria à produção de corpos dóceis e úteis.
Como então convocar este trabalhador a abandonar “o preto e bran-
co” do paradigma biomédico e adentrar a zona cinzenta de um trabalho
com tamanha complexidade? Como convocar essa mudança de postura e
pensamento? Considerando as muitas variáveis que com grande força ope-
ram um movimento contrário a essa transformação — como dito, desde
o paradigma científico hegemônico em que estamos inseridos à invasão e
perpetuação da lógica de mercado para todas as dimensões da vida, até as
muitas vezes precárias, ou ao menos difíceis, condições de trabalho —, não
é raro que os trabalhadores sintam sua existência capturada pela rotina de
alienação e pressão.
É preciso reconhecer, no entanto, os movimentos que escapam a essa
captura, que permitem a construção de condições de emancipação e trans-
formação do funcionamento subjetivo e das relações sociais, seja na clínica,
na gestão ou na política como um todo. Sem negar o contexto, é preci-
so admitir certo espaço, mesmo que reduzido e constrangido, de agência
dos sujeitos (a partir de um mundo e de uma história), sejam coletivos
ou individuais. Em outras palavras, precisamos aprender a andar no fio de
uma navalha, não caindo de um lado em uma defesa de um sujeito onipo-
tente, desvinculado de condições históricas, econômicas, sociais, culturais
e simbólicas, que assumiria uma versão moderna do conto do Barão de
Munchausen, nem mesmo caindo em outro, que anunciaria a morte do
sujeito, mero espelho e consequência de suas condições. Nem um existen-
cialismo ingênuo e nem um estruturalismo fatalista. A condição singular
da transformação é uma dialética entre o peculiar e o universal em que
nenhum dos polos pode ser anulado ou reificado, necessitando ser com-
preendido em seu movimento contraditório. Uma análise, portanto, dos
sujeitos e dos coletivos em situação, considerando suas restrições e suas
possibilidades específicas.
Ademais, mesmo que o “canto das sereias” do paradigma biomédico
seja muito sedutor, prometendo um saber geral e protocolar, ele não dá
conta de tudo que bate às portas de um Centro de Saúde ou UBS. Caso os
profissionais ou gestores optem por ignorar seus limites, correm o risco
de fechar os olhos para a complexidade da realidade que lhes escapa, o
que não é sem consequências. Isto é, os profissionais de saúde, mesmo que
142 • Capítulo 6
Hiperimplicação, desimplicação e cronificação:
desafios do cuidado
144 • Capítulo 6
resolveu aceitá-los, os profissionais foram comunicar os pacientes. Porém,
os idosos não quiseram deixar sua casa, vendo pouco sentido na mudança
proposta e preferiram continuar morando juntos, mesmo com as dificul-
dades, em vez de se separarem e renunciarem à sua privacidade indo para
a casa de repouso. Isso deixou a equipe muito frustrada, até mesmo enrai-
vecida, e muito tempo foi gasto tentando convencer os irmãos a aceitar a
solução dada, até finalmente desistirem. Foi somente ao longo da discussão
do caso no Curso que a equipe percebeu que, em sua “fazeção”, em nenhum
momento da construção do Projeto Terapêutico haviam perguntado aos
idosos como eles gostariam de articular seu cuidado. No afã de solucionar
o problema, a equipe atuou como se saúde e a integridade física devessem
ser preservadas acima até mesmo da vontade dos sujeitos em questão, que
consideravam, por sua vez, outros valores como mais importantes: privaci-
dade, autonomia, afeto um pelo outro.
Esse exemplo demonstra como existiam muitos outros elementos em
jogo, não vistos em um primeiro olhar pela equipe que, com as melhores
intenções, pensava em uma solução prática para um problema de moradia.
Todavia, a perspectiva e vivência do casal em relação a esse problema era
muito distinta daquela dos profissionais. Sem analisar o projeto de vida e
a cultura em que o casal estava inserido, seus hábitos alimentares e dese-
jos poderiam ser vistos como inadequados, entraves ao cuidado, levando à
conclusão de que a única solução aceitável seria mudá-los, convencendo-os
a concordar com a proposta elaborada pela equipe, o que a levou a assumir
uma postura de convencimento dos usuários sobre sua visão e ideias. Con-
tudo, essa forma de atuar da equipe, ainda quando o casal tenha aceitado
visitar casas de repouso para idosos, não estimulou nem a equipe, nem o
casal a analisar os valores que orientavam suas ações, refletindo sobre o que
era buscado por cada um dos lados e o que fazia sentido, enfim, para os su-
jeitos envolvidos nesse cuidado. Nesse caso específico, a “hiper implicação”
os impediu de ver com maior clareza quem estava do outro lado.
O termo “hiper implicação”, aqui cunhado por nós, busca descrever
um movimento dos profissionais de se implicarem com a resolução de
uma situação a tal ponto de desconsiderarem o que acontece na situação
propriamente dita, em nome da tentativa de resolver os problemas sem
considerar os sujeitos. Esse movimento seria oposto ao da desimplicação,
da indiferença, mas corre o risco de produzir resultados parecidos ao des-
considerarem os sujeitos que aos quais buscam cuidar. Embora possa se
encontrar alguma familiaridade, a “hiperimplicação” não se confunde com
os conceitos de implicação ou sobreimplicação, tão caros à Análise Institu-
cional (Monceau, 2008).
146 • Capítulo 6
Todavia, não nos parece suficiente promover reuniões de equipe, que
somente reiteram o mesmo modo cronificado de funcionar, ou ofertar leitu-
ras de forma descontextualizada. De fato, no decorrer da nossa experiência
durante o Curso, uma queixa constante dos profissionais era de um suposto
distanciamento entre os artigos científicos e textos trabalhados (muitos de-
les diretrizes sobre o funcionamento da Atenção Primária, a exemplo dos
Cadernos de Atenção Básica do Ministério da Saúde) da prática cotidiana
exercida por eles. As visões sobre essa distância, porém, não eram unâni-
mes. Para parcela significativa dos profissionais, ela simbolizava um déficit
em sua forma de atuação, o que fazia que lamentassem que, na prática,
não acontecia como deveria acontecer. Ou seja, os profissionais tomavam
os textos como recomendações diante das quais estavam sempre em dé-
bito. Por esse motivo, grande parte do trabalho desenvolvido ao longo do
curso objetivou propiciar espaços de reflexão para que essa distância fosse
tomada não apenas como uma dificuldade individual, mas também como
uma lacuna nos conhecimentos produzidos pela academia, dentre os quais
ressaltamos a falta de espaços reflexivos ao longo da formação em saúde,
que resulta em um distanciamento entre o aprender, o fazer e o pensar. Tal
lacuna dificulta o desenvolvimento da práxis, essencial para um bom traba-
lho em saúde, e privilegia uma técnica irrefletida e generalizante.
A necessidade de invenção e o reconhecimento de que o trabalho em
saúde não está nunca pronto podem levar os profissionais a experimenta-
rem sensação de impotência, por considerar não possuírem o conhecimen-
to que solucionaria todas as demandas de seu trabalho. Afinal, isso envolve
confrontar constantemente os limites de nossos saberes, do que consegui-
mos fazer. É preciso reconhecer que, de fato, lidar com estas constantes
lacunas exige um esforço de múltiplas ordens, podendo ser desconfortável
e angustiante. Esse trabalho afetivo e intelectual de análise de si, dos outros
e das instituições não é simples e requer investimento. Um investimento
que por vezes pode ser oneroso e envolve um risco.
Um exemplo hipotético pode ajudar a dar concretude a essa discus-
são. Imaginemos que um agente comunitário esteja acompanhando uma
família que há muitas gerações reproduz um padrão de violência verbal
e física em seus relacionamentos interpessoais e afetivos. Essa família se
encontra em uma situação de vulnerabilidade, com condições de moradia
precárias e insalubres, dificuldades de trabalho e renda, sobrevivendo se-
gundo vínculos informais e frágeis. Há anos o agente tenta construir um
vínculo com a família, que inicialmente lhe tratava com desconfiança e
até hostilidade. Insistentemente, ele mantém as visitas, mesmo que muitas
148 • Capítulo 6
O território como marca da APS
150 • Capítulo 6
Falar de autonomia é relevante ao abordamos o tema do território
porque estamos falando de um universo em que convivem várias formas
de vida, de compreensões de mundo, de referenciais de família e de tra-
balho que não necessariamente serão idênticos aos da classe média à qual
pertencem muitos profissionais da equipe. Muitos, mas não todos, diga-se
de passagem. Dessa forma é preciso que as intervenções sanitárias não se
tornem instrumentos morais de pregação dos valores, visões e normas de
uma classe sobre a outra em uma espécie de catequese sanitária moderna.
Destacar isso é fundamental, uma vez que muito do trabalho da APS se
direciona para o acompanhamento de questões de saúde crônicas e não
transmissíveis associadas a hábitos e estilos de vida. Isso envolve um risco
muito específico de medicalizarmos hábitos, de patologizarmos formas de
vida, tornando doença ou desvio aquilo que se diferencia do imaginário
de saúde dos profissionais. Nesse sentido, é preciso que nossa noção so-
bre produção de autonomia na saúde também reconheça diferentes graus
de alteridade. Ou seja, que a autonomia não se resuma à autonomia do
usuário escolher aquilo que o profissional quer, sem que, ao mesmo tempo,
caiamos na complacência e na condescendência daquilo que não deve ser
tolerado.
Considerações finais
Referências
152 • Capítulo 6
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154 • Capítulo 7
(2005) são intentos, na linha hermenêutica, que reconciliam a clínica com
o subjetivo e o social na produção de saúde.
Desde os anos 1980, têm se ampliado as pesquisas dedicadas à arti-
culação entre Ética e Saúde, a partir de movimentos diversos que denun-
ciavam práticas de desrespeito à dignidade e aos direitos humanos nas
instituições de assistência à saúde, de condutas cotidianas de violência ins-
titucional e simbólica no âmbito dos serviços de saúde, manifestações da
cultura paternalista e autoritária prevalente entre os profissionais de saúde.
Essas pesquisas têm influenciado sobre o que é priorizado na definição de
políticas de saúde e na alocação de recursos escassos. Todos esses temas
têm suscitado discussões e vêm despertando o interesse da ética por ques-
tões sanitárias (Pessini & Barchifontaine, 1996; Fortes, 1998).
Historicamente foram criados dispositivos como a Ética, a Moral e
o Direito para a manutenção da coesão necessária ao convívio social. Na
sociedade contemporânea, entretanto, coexistem diferentes compreensões
e interpretações sobre princípios e valores éticos, sociais e morais, adver-
tindo para o fato de que a coexistência em um mundo pluralista implica
necessariamente conflitos quando afloram as disputas de cosmovisões e
interesses entre os diversos grupos. O esforço empreendido das sociedades
no caminho da tolerância para com as diferenças está ancorado, portanto,
em princípios e valores éticos cujo objetivo central é respeitar, proteger e
promover a dignidade de todos os seres humanos (Engelhardt Jr., 1998).
La Taille (2010) ressalta que, para compreendermos os comportamen-
tos morais dos indivíduos, precisamos conhecer a perspectiva ética que estes
adotam (p. 106). Tal afirmação pressupõe uma diferença de sentido entre
os conceitos de moral e de ética. Durand (2003) nos esclarece que a Moral é
normativa, enquanto a Ética é reflexiva. A ética leva o indivíduo à reflexão
fundamentada em valores e princípios que orientam suas condutas e to-
madas de decisão, ao passo que a moral se define pela necessidade de insti-
tuir regras de como convivermos uns com os outros. Por sua vez, o Direito
trabalha com uma unicidade, é genérico e, frequentemente, confundido
com lei, que é uma de suas expressões através de códigos — o denomina-
do Direito positivo. Enquanto a moral busca responder às questões o que
devo fazer?, ou como devo agir?, a reflexão ética corresponde ao exercício
de responder às indagações que vida quero viver?, ou quem quero ser?. Há,
portanto, na ética, uma dimensão da construção da identidade, que se rela-
ciona à busca individual do “sentido da vida”.
Ao longo da formação em saúde são apresentados valores, princí-
pios, regras, normas, virtudes e atributos próprios de cada profissão, os
quais vão pouco a pouco sendo internalizados no processo de socialização
156 • Capítulo 7
Com a Constituição de 1988 e a criação do SUS, houve no Brasil uma
reorganização da dinâmica da assistência à saúde, exigindo dos profis-
sionais uma nova prática e uma nova lógica de trabalho. Nesse contexto,
emergem novas questões de ordem ética relacionadas com a lógica de or-
ganização dos processos de trabalho. A assistência à saúde, até então cen-
trada nas práticas hospitalares de caráter curativo e direcionada apenas a
uma pequena parcela da população, torna-se direito de todos e dever do
estado, com ações de educação e promoção, visando à melhoria da qua-
lidade de vida da população. Questões éticas importantes emergem dessa
transformação. Porém, em razão das características do trabalho, na Aten-
ção Primária alguns problemas éticos podem não ser percebidos ou não
ser considerados como conflitos pelos profissionais, tendo em vista que tais
questões são mais associadas ao contexto e à realidade hospitalar. Muitas
das situações cotidianas vivenciadas na Atenção Primária podem ser consi-
deradas mais fáceis ou menos urgentes do que aquelas vivenciadas em uma
realidade hospitalar, mas nem por isso deixam de envolver uma grande
complexidade assistencial (Zoboli & Fortes, 2004).
No esforço de mapear as diferenças mais evidentes entre as lógicas da
clínica hospitalar e da clínica da Atenção Primária, Cunha (2005) e Cam-
pos (2005) identificaram que o hospital está baseado em relações hierárqui-
cas de poder, exigindo a submissão do paciente ao tratamento, ao passo que
na Atenção Primária, o usuário mantém a sua autonomia mais preservada
e o profissional precisa levar em consideração a sua subjetividade para pla-
nejar de modo compartilhado o projeto terapêutico. A dinâmica de fun-
cionamento do hospital se organiza com base no modelo biomédico, cujo
pressuposto é a separação psique-corpo, e a divisão do corpo em especiali-
dades, aplicando procedimentos padronizados, orientados por protocolos,
tendendo a ser iguais para todos.
Embora boa parte dessa lógica se faça presente também na Atenção
Primária, a existência de um sujeito complexo permeável às influências ex-
ternas e internas, apresentando suas demandas, dificuldades e desejos exi-
gem dos profissionais o desenvolvimento de habilidades de comunicação
e de negociação que resulte na promoção do vínculo, na singularização do
cuidado, na adesão ao tratamento, na integralidade da atenção. O imaginá-
rio social do hospital está relacionado à doença grave e à morte, enquanto
que na Atenção Primária impera a prevenção, a Promoção da Saúde, da au-
tonomia, a vontade de viver. O tempo das relações terapêuticas no hospital
é curto, intensivo e repleto de intervenções, ao passo que o tratamento da
Unidade Básica se caracteriza pela longitudinalidade, por encontros clíni-
cos frequentes e inseridos no cotidiano. Em virtude do ambiente artificial
158 • Capítulo 7
é necessário cuidar para não transformar problemas em dilemas, quando
se pretende refletir e deliberar sobre os conflitos éticos na Atenção Primá-
ria. A transformação de problemas em dilemas significa certa simplifica-
ção redutiva para facilitar a solução, já que a deliberação é mais demora-
da, exigindo um esforço de discussão e argumentação que nem sempre os
profissionais estão dispostos ou, às vezes, sequer encontram as condições
adequadas para tal.
A identificação dos principais problemas éticos na APS tem sido ob-
jeto de estudos há quase duas décadas e diversas pesquisas têm buscado
compreender esse fenômeno por meio da elaboração e validação de ins-
trumentos, como o IPE-APS (Inventário de Problemas Éticos na Atenção
Primária em Saúde) (Jungues et al., 2014; Zoboli & Santos, 2017). Trata-se
de um questionário estruturado e fechado, cuja aplicação permite produzir
uma “epidemiologia” dos problemas éticos na visão dos profissionais de
saúde que atuam na Atenção Primária, mas vai além da contabilização ao
possibilitar também disparar reflexões sobre questões éticas, considerando
os processos de reorganização dos serviços, a resolução de conflitos e as
melhorias na qualidade da atenção à saúde.
Os estudos indicam que os problemas éticos na APS estão presentes
nas relações entre usuários e profissionais; nas relações entre profissionais
de uma equipe; e, nas relações com a organização e o sistema de saúde, em
seis dimensões: gestão da APS; longitudinalidade; prática nas equipes; per-
fil profissional; privacidade na APS; e, sigilo profissional. O quadro a seguir
apresenta resumidamente os problemas validados pelo IPE-APS, agrupa-
dos nas dimensões e distribuídos no âmbito relacional.
160 • Capítulo 7
Relações com usuários e Relações da Equipe Relações com a
famílias organização e o sistema
de saúde
Prática das - Existe falta de respeito
equipes entre os membros da
equipe da ESF
- As ESF não colaboram
umas com as outras
- Os profissionais da
equipe não apresentam
perfil para trabalhar na
ESF
- Os profissionais das
equipes das ESF atuam
com falta de compromis-
so e envolvimento
segue
162 • Capítulo 7
rios encaminhamentos possíveis, demandando o exercício da deliberação.
Desafios éticos, por sua vez, abrangem tanto dimensões macroestruturais
quanto dimensões das relações intersubjetivas, cujas proposições requerem
permanente exercício reflexivo e discussão coletiva, envolvendo a todos —
gestores e trabalhadores, tendo em vista a corresponsabilidade ética, como
equipe, pelos resultados das práticas e pela resolutividade nas respostas às
necessidades dos usuários.
A APS tem duas características que conformam desafios éticos: os
processos de trabalho específicos das equipes; e a atenção a um território
com população adscrita sob-responsabilidade clínica e sanitária de deter-
minada equipe. A configuração organizativa dos processos de trabalho e da
atenção ao território precisam ser continuamente discutidas, pactuadas e
acompanhadas, tendo em vista um ambiente inclusivo que alicerce proces-
sos de Cogestão responsável, incluindo a efetiva participação das comuni-
dades. Nesse sentido, os desafios éticos se referem diretamente à responsa-
bilidade moral dos profissionais e gestores, demandando ações voltadas ao
planejamento, à identificação dos problemas éticos prevalentes nas Unida-
des de Saúde (diagnóstico), ao debate acerca dos cursos de ação possíveis, à
implementação, ao monitoramento e avaliação do que foi deliberado.
Faz-se necessário, portanto, incorporar nos processos de educação
permanente das Unidades de Saúde a abordagem dos problemas éticos na
APS, permitindo às equipes se debruçarem sobre o estudo sistematizado
das questões que envolvem conflito moral, buscando tomar decisões com-
partilhadas, corresponsáveis e prudentes.
Caberia indagar, então, como fazê-lo? Na tentativa de responder a
esse questionamento, apresentamos a seguir o Método Deliberativo do
bioeticista espanhol Diego Gracia (2003), que tem se mostrado um profí-
cuo instrumento de análise de problemas éticos ao ponderar as alternativas
possíveis de resolução do caso ou da situação concreta.
164 • Capítulo 7
deliberação, partimos de um caso clínico que se percebe ter várias saídas
éticas possíveis.
Caso hipotético: O senhor RS tem sífilis. Ele não quer contar sobre
sua doença para sua companheira, mas quer protegê-la do risco de contá-
gio. Enquanto está em tratamento, o usuário pede à equipe de saúde que
faça o exame para diagnóstico de sífilis em sua companheira sem lhe dizer
nada sobre a doença que ele tem.
De acordo com Zoboli & Santos (2017), um cuidado importante a ser
tomado é não cair na “falácia jurídica” e reduzir o caso a uma questão legal,
normativa ou técnica, visto que a situação apresentada envolve uma doença
que demanda notificação compulsória (sífilis), implicando o cumprimento
do dever legal e que coloca em risco a vida/saúde de terceiros identificáveis
(companheira do senhor RS), portanto, a quebra de sigilo por justo motivo,
de acordo com o Código de Ética Médica, Cap. IX art. 73 (CFM, 2018). Se
abordarmos o caso apresentado dessa maneira, ele sequer pode ser consi-
derado “um problema ético”, restringindo as possibilidades de argumenta-
ções acerca de como agir diante de um conflito de dois valores positivos, ou
seja, como respeitar a confidencialidade da informação relativa à condição
de saúde do senhor RS e, ao mesmo tempo, informar, esclarecer e possibi-
litar acesso aos cuidados de saúde de sua companheira?
Para responder à indagação, recorremos ao itinerário deliberativo, o
qual inclui, segundo Zoboli (2010; 2013) e Zoboli & Santos (2017), a de-
liberação sobre os fatos (apresentação do caso percebido como problema
ético; esclarecimento dos fatos); deliberação sobre valores (identificação
dos problemas morais do caso; indicação do problema moral fundamental;
identificação dos valores em conflito); deliberação sobre os deveres (iden-
tificação dos cursos de ação extremos; identificação dos cursos de ação
intermédios; identificação do curso de ação ótimo); deliberação sobre as
responsabilidades (submissão às provas de consistência, de tempo, publici-
dade e legalidade).
Cabe destacar que a proposição de Gracia (2001) considera a prudên-
cia o ponto final deste itinerário, o que significa dizer que as saídas para so-
lucionar os casos não são “certas” ou “erradas”, mas “prudentes” ou “impru-
dentes”. Atualmente, a prudência perdeu o sentido ético original proposto
por Aristóteles e significa cautela, precaução. Agir de modo prudente, en-
tão, passou a significar saber tomar precauções contra um ou vários perigos
ameaçadores. No entanto, o sentido atribuído pelo autor advém da filosofia
aristotélica, a partir da qual a prudência é uma sabedoria prática, um tipo
de saber e uma maneira de agir que articula conhecimento teórico com a
experiência da vida vivida. Aristóteles retratava o homem prudente como
166 • Capítulo 7
mente possível, abrangendo de maneira compreensiva as diversas perspec-
tivas implicadas na situação, com o propósito de reduzir as incertezas e
facilitar a exploração e a identificação dos recursos disponíveis para, cole-
tivamente, propor cursos de ação realizáveis, segundo a realidade do caso.
Aplicando ao nosso exemplo, algumas questões poderiam ser elencadas:
1. Em que estágio estava a doença quando o senhor RS fez o diag-
nóstico de sífilis?
2. A companheira do senhor RS faz algum tipo de acompanhamen-
to na Unidade de Saúde onde ele está tratando a sífilis?
3. Qual a idade de ambos? Qual a escolaridade de cada um? Há
quanto tempo estão juntos? Eles têm filhos? Onde residem? Com
que trabalham?
4. Qual a rotina ou o protocolo do serviço onde o senhor RS está em
acompanhamento para a vigilância das IST?
5. Como foi a conversa da equipe com o senhor RS quando soube
do seu diagnóstico e que teriam de investigar a situação de saúde
da companheira?
6. A equipe buscou entender as motivações que levaram o senhor
RS a querer esconder seu diagnóstico da companheira?
7. A equipe ofereceu ajuda para contar o diagnóstico dele para a
companheira?
8. A equipe conversou com o senhor RS acerca dos riscos que ela
está correndo?
168 • Capítulo 7
No caso em discussão, o problema ético fundamental poderia ser
enunciado da seguinte maneira: “Como a equipe pode cuidar da saúde da
companheira do senhor RS sem lhe faltar com a verdade e honestidade na
relação clínica e, ao mesmo tempo, respeitar o pedido de RS, que não quer
que ela saiba da sífilis, resguardando a confidencialidade?”
Valor Y Valor Z
Valor Y Valor Z
170 • Capítulo 7
nessa conversa na Unidade Básica de Saúde. Se ainda assim o senhor RS
não quiser contar sobre o seu diagnóstico para a companheira, a equipe
deverá fazê-lo, informando-o de que isso será feito.
Considerações finais
Referências
172 • Capítulo 7
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174 • Capítulo 8
A exposição à violência tem grandes repercussões psicossociais para os
indivíduos. Muitas pessoas se recusam a procurar ajuda no próprio
bairro por medo de represálias e ou de estigmatização. Ademais, existe
uma carência de dispositivos especializados para a realização desse cuida-
do, a ssim como faltam evidências sobre a eficácia de diferentes abordagens
terapêuticas.
Considerando esse gap, uma pesquisa de implementação se propôs
a criar, na cidade de Campinas, a Rede de Apoio e Acompanhamento às
Situações de Exposição à Violência (RASEV). Essa rede foi iniciada em
2019, a partir de uma pesquisa de implementação do Laboratório de Saúde
Coletiva e Saúde Mental Interfaces (FCM/UNICAMP) desenvolvida com
apoio do CNPq. Construída em parceria com o Hospital Universitário da
UNICAMP e as secretarias de Assistência Social e da Saúde de Campinas/
SP, a RASEV tem como objetivo complementar e fortalecer os fluxos de
atendimento já existentes, ofertando dispositivos de integração de rede e de
educação permanente dos profissionais. Além disso, visa a construir e im-
plementar, de forma participativa e articulada, o Núcleo de Assistência Psi-
canalítica para Expostos à Violência (NAPEV), com a oferta de grupos psi-
coterápicos psicanalíticos ao público infanto-juvenil e de mulheres adultas,
identificados como expostos à violência na região da qual será referência.
Uma aproximação entre pesquisadores, docentes da UNICAMP, tra-
balhadores e gestores das redes de serviços que abrangem a região norte do
município foi realizada a fim de compor de um Comitê Gestor da Pesqui-
sa (CGP). O CGP é uma ferramenta de Cogestão utilizada em pesquisas
participativas que privilegia o engajamento em profundidade dos diferen-
tes grupos de interesse no planejamento, execução e avaliação das ações
desenvolvidas, produzindo mudanças efetivas na organização do trabalho
(Treichel et al., 2019a). Constrói-se, assim, de forma democrática e partici-
pativa a tão necessária gestão compartilhada do cuidado, com a correspon-
sabilização e criação de uma rede ampliada de atenção às pessoas expostas
a violência.
Atualmente, o Sistema de Notificação de Violência (SISNOV/SINAN)
de Campinas/SP prevê fluxos de atendimento para vítimas de violência de
gênero, violência sexual e contra a pessoa idosa, além de um fluxo específi-
co para tentativas de suicídio. Entretanto, quais são os itinerários de cuida-
do previstos para as pessoas próximas daqueles que sofreram a violência?
Quais são os desafios enfrentados pela Atenção Primária à Saúde (APS)
nesse percurso de atendimento da exposição à violência? Quais são as re-
comendações para a oferta desse cuidado tão necessário às pessoas que não
são alvo dos serviços das redes especializadas atualmente disponíveis? A
176 • Capítulo 8
Violência e sofrimento psíquico
178 • Capítulo 8
Psicanálise, violência e transmissão geracional
180 • Capítulo 8
ca do traumatismo por meio da escuta recíproca. O dispositivo grupal pode
ser fundamental para retirar o véu de silenciamento e vergonha que, com
muita frequência, envolve essas situações. A palavra dirigida ao outro e a
escuta mútua também podem aumentar a capacidade de identificação dos
sujeitos entre si e a tolerância das diferenças (Benghozi, 2001).
Diante do exposto, quais são os desafios para a APS no acompanha-
mento oferecido às pessoas expostas à violência? Quais são as recomenda-
ções e boas práticas em construção na APS para identificar e encaminhar
as situações de exposição à violência?
182 • Capítulo 8
sintomas, e ofertar semanalmente grupos terapêuticos às mulheres com
profissionais treinados. Nesses grupos, as participantes resolveram ques-
tões diferentes daquelas que podiam ser tratadas em consultas individuais
(Goicolea et al., 2019).
O estudo indicou que o trabalho em equipe possibilitou o desenvol-
vimento de boas práticas porque, durante as reuniões de equipe, os profis-
sionais conversaram e discutiram sobre a VPI, consultando-se diante das
situações rastreadas, tendo o apoio da perspectiva socioassistencial trazida
pelo profissional da assistência social, construindo um clima colaborativo e
de corresponsabilização para instituir estratégias de atendimento centrado
nas mulheres vítimas de VPI (Goicolea et al., 2019).
No Brasil, alguns estudos apontam os Agentes Comunitários em
Saúde (ACS) como profissionais estratégicos no enfrentamento da expo-
sição à violência, pois possibilitam maior aproximação à realidade social
e às necessidades da população adstrita e, como conhecem as famílias e o
território, podem identificar situações de violência durante as visitas do-
miciliares (Da Silva Santos, Guimarães e Silva & Branco, 2017; Lima et al.,
2011; Ramos & Silva, 2011; Egry et al., 2017). A apreensão da real demanda
do usuário possibilita uma resposta mais eficiente e coerente com as neces-
sidades em saúde apresentadas pelo sujeito; maior implicação no Projeto
Terapêutico Singular (PTS) e efetiva corresponsabilidade na condução dos
casos pela equipe.
Nesse sentido, para garantir a Atenção Integral à Saúde e a Singulari-
zação no Cuidado é necessário propiciar o engajamento dos usuários, tra-
balhadores e gestores como importantes atores, responsáveis não só pelas
ações de cuidado em saúde, mas também pela construção das macropolíti-
cas de um sistema público de saúde como o SUS.
Educação Permanente
184 • Capítulo 8
dado. Estimula a construção de espaços coletivos, onde os trabalhadores
e não somente gestores realizam análises e tomam decisões sobre os pro-
cessos de trabalho. Para isso, propõe dispositivos de Cogestão do trabalho,
como o “Apoio Matricial”, “Apoio Institucional” e “equipes de referência
no cuidado” (Campos et al., 2014; Campos, 2015; Viana & Campos, 2018).
Com dispositivos de Cogestão do trabalho, a APS pode superar a
fragmentação dos processos empregados no enfrentamento à exposição à
violência, a divisão do trabalho por especialidade, o distanciamento da co-
munidade e ampliar a compreensão dos profissionais sobre esse fenômeno.
Estudos indicam que uma compreensão superficial sobre a violência pode
gerar medo da perda de vínculo e retaliações, fragilizando as equipes no re-
conhecimento desse fenômeno na APS (Da Silva Santos, Guimarães e Silva
& Branco, 2017; Machado et al., 2016; Moreira et al., 2014a).
Os desafios enfrentados pelos profissionais no contato com a vulnera-
bilidade socioeconômica, somados ao convívio com a violência, produzem
angústias e aumentam o volume de trabalho das ESF e do Núcleo de Apoio
à Saúde da Família (NASF), fatores relacionados ao burnout e à alta rotati-
vidade dos profissionais (Chazan et al., 2019). Nessas condições, o Apoio
Paideia e a Clínica Ampliada e Compartilhada são importantes aportes teó
ricos, pedagógicos e práticos para nortear as equipes das ESFs no enfrenta-
mento das situações de exposição à violência.
Um dos dispositivos essenciais no Apoio Paideia é o Apoio Matricial,
o qual oferta suporte técnico-pedagógico e ações conjuntas com a equipe
de referência da APS, favorecendo o compartilhamento de saberes, respon-
sabilidades e ações, por meio de discussões clínicas ou mesmo interven-
ções conjuntas em situações reais (Campos et al., 2014; Viana & Campos,
2018). Inspirados pela metodologia do Apoio Matricial, os NASF ofertam
suporte técnico-pedagógico e retaguarda especializada de equipe multipro-
fissional e complementar às ESFs, buscando garantir o trabalho horizontal,
integral e longitudinal na prestação de cuidados à população (Brasil, 2017).
Trata-se de um dispositivo de integração de redes de cuidado em saúde
(Treichel, Onocko-Campos & Campos, 2019b). Nesse sentido, os NASFs
possibilitam agilidade e resolutividade nas situações de exposição à vio-
lência, com ofertas complementares e especializadas, realizando avaliação
psicológica, participação em visitas domiciliares e em reuniões na rede in-
tersetorial, compartilhando saberes e fazeres, permitindo aos profissionais
da ESF mais segurança nas intervenções sobre determinantes do processo
saúde-doença em relação à exposição à violência (Lazarino, Silva & Dias,
2019; Moreira et al., 2014a; 2014b).
186 • Capítulo 8
A articulação de redes intersetoriais tem sido a aposta e o desafio cen-
tral da pesquisa de implementação descrita inicialmente. Utilizando, para
sua concretização, a estratégia da Cogestão, a pesquisa pode se transformar
em um espaço de encontro e compartilhamento de questões dos setores da
Saúde e da Assistência Social.
Inicialmente em reuniões semanais, e depois mensais, representantes
dos diversos serviços da região norte da cidade começaram a problematizar
os desafios para o melhor atendimento das pessoas expostas à violência:
gaps da rede, falta de recursos, necessidades de capacitação e de dispositi-
vos de integração da rede puderam ser levantados e consensuados, apesar
de alguns incômodos e tensões iniciais. A mediação realizada pelos pes-
quisadores viabilizou a escuta das questões e permitiu que as diferenças
pudessem ser suportadas e analisadas. A regularidade dos encontros foi
outorgando confiança ao espaço do CGP, permitindo manter aquecida a
rede não apenas de serviços, mas também de afetos entre os profissionais
envolvidos.
A intersetorialidade, tantas vezes declamada e muito menos frequen-
temente praticada, precisa de um “lugar e um tempo” (Onocko-Campos,
2003) para poder acontecer. Para esse espaço de trocas e deliberações se
instituir, a presença de um terceiro se mostrou, na nossa experiência, fun-
damental. Confiança e afeto são imprescindíveis para produzir movimen-
tações das posições fechadas e das visões muitas vezes estereotipadas pelos
locais de inserção laboral. A intersetorialidade possível não é um ponto de
chegada, senão um lugar e um tempo no qual a processualidade da vida
permita a articulação de conhecimentos técnicos, valores, afetos e diferen-
ças, com a finalidade de sustentar a proteção e o cuidado integral à popula-
ção exposta às situações de violência.
Considerações finais
Referências
188 • Capítulo 8
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192 • Capítulo 8
Capítulo 9
Desafios na atenção ao público infanto-juvenil
na Atenção Primária à Saúde (APS): violência,
notificação e cuidado
Felipe Guedes
Pedro Henrique Pirovani Rodrigues
Alice Andrade Silva
194 • Capítulo 9
e 2020. Nessa ocasião, as equipes participantes trouxeram casos considera-
dos “mais difíceis” ou “mais complexos” sendo eles, em boa parte das vezes,
histórias envolvendo situações de vulnerabilidade e violência contra crian-
ças e adolescentes. Nas discussões se esboçaram questões como: até onde
intervir; quais consequências esperar das intervenções; qual o momento
de acionar outros serviços da rede; como a atuação desses serviços poderia
ajudar no problema identificado pela equipe; até quando as intervenções
deixavam de ser sinônimo de cuidado etc. Nesse sentido, as dificuldades
na articulação intersetorial, o receio de envolvimento emocional ou de jul-
gamentos morais e os impactos pessoais gerados pela proximidade com as
situações trazidas, no geral, compunham o cenário desses casos e pareciam
dificultar a construção de estratégias para promover o cuidado-proteção
esperado. Somadas a essas questões, os trabalhadores lembravam com fre-
quência da falta de estrutura das Unidades e da defasagem entre o número
de equipes e a população adscrita de cada território.
Conforme apontado por Deslandes (2002), a violência ainda é um
tema novo no campo da saúde pública e muitas vezes desafia os saberes,
desestabilizando modelos de explicação e causalidade, colocando em ques-
tão a racionalidade médico-científica. Nos últimos anos, há um esforço
importante do SUS para subsidiar a atuação dos profissionais, trazendo
referências e normativas que reconheçam a violência como um problema
de saúde, ao mesmo tempo em que buscam ampliar o repertório dos tra-
balhadores para lidarem com esse tema complexo, principalmente, quando
envolvem crianças e adolescentes. Destacamos aqui a Política Nacional de
Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (Brasil, 2001); a
Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes
e suas família em situação de violências: orientações para gestores e pro-
fissionais de saúde (Brasil, 2010); o Plano Nacional de enfrentamento da
violência sexual contra crianças e adolescentes (Brasil, 2013); e as Metodo-
logias para cuidado de crianças, adolescentes e suas famílias em situações
de violências (Brasil, 2014).
Em meio a essas diretrizes e ferramentas, há uma mudança impor-
tante em 2011, quando a violência se tornou um agravo de notificação
compulsória para os profissionais de saúde, a partir da Portaria n.º 104,
de 25 de janeiro de 2011 (Brasil, 2011). Essa portaria foi substituída mais
tarde, pela Portaria n.º 1271, de 6 de junho de 2014 (Brasil, 2014). Nos
casos envolvendo crianças e adolescentes, a obrigatoriedade da notificação
é anterior e está prevista no ECA (Brasil, 1990), tornando compulsória a
notificação de casos confirmados e suspeitos e prevendo penas aos profis-
sionais que não comuniquem casos que são do seu conhecimento.
196 • Capítulo 9
A negligência tem forte vinculação com o contexto familiar e pode
dar espaço para a intervenção das equipes a partir de parâmetros nem sem-
pre tão objetivos, abrindo possibilidade para a presença de aspectos morais
e emocionais dos profissionais, não só sobre a infância, mas também sobre
as famílias. De acordo com Barbosa (2009), os serviços podem vivenciar
dificuldades em reconhecer outras configurações e dinâmicas distintas do
modelo nuclear de família. Essas discussões assinalam a importância de
abrirmos espaços para que as equipes de saúde e assistência social colo-
quem em análise as expectativas sobre as funções, formas e papéis das famí-
lias, muitas vezes fundadas na centralidade do modelo de família nuclear.
A ideia da família como célula fundamental da sociedade e como es-
paço primordial de cuidado e proteção é naturalizada por muitos profis-
sionais. As famílias são tomadas como ponto central na organização das
intervenções das equipes da APS no território, mas as discussões em torno
das concepções, modelos, funções e composições esperadas das famílias
não comparecem no cotidiano das equipes com uma magnitude propor-
cional à sua centralidade. No Brasil, são numerosos os exemplos ao lon-
go da história em que a “defesa da família” foi apropriada como bandeira
de um discurso conservador, que operava quase sempre para privilegiar
modelos de família específicos que sequer condizem com a maioria das
famílias brasileiras, já que, de acordo com o IBGE (2010; 2011), mais da
metade dos lares brasileiros não são habitados por famílias nucleares com
pais, mães e filhos.
O trabalho envolvendo famílias é particularmente sensível às formas
ideais de cuidado adotadas pelas equipes e as situações envolvendo crian-
ças e adolescentes em situação de violência tocam particularmente nestas
questões. As leituras e análises realizadas pelos profissionais a respeito
das situações de violência envolvendo crianças e adolescentes, sobretudo
maus-tratos e negligência, estão diretamente relacionadas com o que os
profissionais esperam do tipo de cuidado que cada família consegue ofertar
concretamente. Em nossa experiência, com o apoio ao curso de Especia-
lização em Saúde da Família já citado, tais situações de violência se apre-
sentavam para os profissionais como paradoxais e eles se viam diante de
verdadeiros dilemas, não sem motivos.
A atuação dos profissionais da Atenção Primária é destacada como
tendo um potencial importante para prevenção das situações de violência,
já que a inserção no território pode facilitar a identificação de fatores de
risco e permitiria intervenções adequadas diante de situações de vulnerabi-
lidade (Lima et al., 2011). No entanto, é importante levar em consideração
os riscos de que, em nome da prevenção, se faça a promoção de estilos de
198 • Capítulo 9
sendo prevista uma multa de três a vinte salários de referência nos casos
de omissão (Brasil, 1990). Aos conselhos tutelares, órgão indicado para
receber as notificações, o ECA define com o art. 131, que cabe defender e
garantir os direitos das crianças e adolescentes, detendo o poder de aplicar
medidas de atendimento, responsabilização e proteção, quando necessário
(Brasil, 1990).
Embora a notificação de situações de violência seja compulsória como
já apontamos, numerosos estudos demonstram que a adesão dos profissio-
nais ao ato de notificar está longe de ser total (Lima et al., 2011; Porto, Bispo
Junior & Lima, 2014). Os fatores apontados pela literatura científica como
responsáveis pelo baixo índice de notificação na saúde estão associados ao
desconhecimento sobre os procedimentos de rotina para denúncia, a falta
de informações sobre a família, assim como questões relacionadas à que-
bra do sigilo profissional, descrença na eficiência do sistema de garantias
de direitos, receio de represálias dos agressores, ausência de mecanismos
legais de proteção aos profissionais e escassez de regulamentos que firmam
procedimentos técnicos para esse instrumento (De Oliveira et al., 2013; Si-
queira, Alves & Leão, 2012).
Como qualificar as ações dos profissionais de saúde para torná-las
mais assertivas no processo de identificação e notificação dos casos de
violência em crianças e adolescentes? Essa é uma questão para diversos
autores, cujos estudos sugerem que as boas práticas na identificação e
na notificação ocorrem com maior frequência entre os profissionais com
participação prévia em capacitação a respeito da violência (Lima et al.,
2011; Assis et al., 2012; Lobato, Moraes & Nascimento, 2012). Nesse sen-
tido, saber sobre os tipos de violência, conhecer a rede assistencial e a
legislação sobre o assunto pode ser um preditor para o ato de notificar.
Esses dados se revelam importantes, contudo, necessitam uma ressalva
diante da possibilidade de levarem a acreditar que os profissionais não
notificam apenas por desconhecimento sobre os mecanismos e implica-
ções da notificação.
A aposta de que mais informações resultaria automaticamente em
mais notificações pode ser questionada, pois existem elementos pessoais
que interferem na escolha pela notificação (Pires et al., 2005). Uma pesqui-
sa realizada com médicos pediatras vítimas de maus-tratos na infância, por
exemplo, comprovou que apenas 50% deles notificaram os casos de maus-
-tratos identificados entre os pacientes atendidos (Pires et al., 2005). Nesse
sentido, entendemos que o “ato de notificar”, assim como outras ações em
saúde, não depende somente das dimensões técnico-cognitivas (Campos
et al., 2014).
200 • Capítulo 9
tetiva de acolhimento institucional é uma ação do Ministério Público. Pode
ocorrer ou não após solicitação emitida pelo Conselho Tutelar e implica a
suspensão temporária do poder familiar. Salvo raras exceções, o ECA prevê
com o art. 101 que, quando não houver tempo hábil para acionar a justiça, o
Conselho Tutelar pode acolher as crianças e os adolescentes sem determina-
ção judicial, realizando comunicação posterior (Brasil, 1990).
Do total de crianças e adolescentes abrigados no Brasil, 86,7% possuem
família e em 58,2% dos casos mantêm vínculos com ela (IPEA, 2004). Ocorre
que a convivência familiar e comunitária é um direito constitucional previsto
no art. 227 (Brasil, 1988), tão importante quanto os direitos à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito e à liberdade. Nesse sentido, a constituição presume com o §8.º
art. 226 e 229 que o Estado deve dar assistência aos membros da família e im-
pedir a violência dentro dela, possibilitando-a assistir, criar e educar os filhos
menores e exigindo que os filhos maiores ajudem e amparem os genitores
quando idosos ou enfermos (Brasil, 1988). E, nos casos em que a convivência
com a família de origem não é possível, o art. 28 do ECA prevê a colocação
em família substituta mediante guarda, tutela ou adoção (Brasil, 1990).
Em nosso entender, a ideia de uma notificação obrigatória não pode
servir para apagar os dilemas que muitos profissionais se deparam em sua
prática diante de situações de violência envolvendo violência crianças e
adolescentes. Portanto, a notificação obrigatória não deve significar um
ato irrefletido pelos profissionais; ao mesmo tempo em que a reflexão e a
complexificação dos fatores envolvidos em cada caso não necessariamente
devem resultar na não notificação. A notificação não deve ter apenas um
fim em si mesmo, mas servir como disparadora para outras ações de cui-
dado e proteção. Mais do que identificar os fatores associados com o ato de
notificar ou não notificar, importa para nós entender como os profissionais
da ESF se apropriam da complexidade que envolve esses casos e como ba-
seiam as suas decisões e relações com os demais atores da rede de proteção
às crianças e aos adolescentes.
202 • Capítulo 9
Ao falarmos sobre as dificuldades de atuação em rede e a função dos
serviços, convém ter em vista que discursos e práticas são estes. Diferentes
linhas de produção de sentidos provenientes das instituições sociais exer-
cem importante papel sobre a infância. Instituição, aqui, não é sinônimo de
estabelecimento. Trata-se de instâncias simbólicas e materiais engendradas
em processos históricos e sociais, que disputam interesses e subjetivação
dos sujeitos, do mundo e na gestão da vida (Lins & Cecilio, 2008).
Entre estas instituições estão a educação, a família, a medicina, o ju-
diciário, dentre outras que estão em inter-relação e, dessa forma, atuam
sobre a concepção de infância e adolescência em nossa sociedade. Elas ain-
da podem produzir práticas discursivas que capturam e reduzem o olhar
sobre as subjetividades, como o processo de judicialização da vida, que
“implanta a lógica do julgamento, da punição, do uso da lei como parâ-
metro de organização da vida e o judiciário se estabelece como instância
a qual não é possível se opor. Além disso, no mundo da judicialização foi
implantada a máxima «somos todos responsáveis», que delega às redes de
proteção e a toda e qualquer pessoa os funcionamentos antes restritos aos
operadores da justiça. Construindo, assim, uma subjetividade que afirma
uma determinada vida certa a ser garantida pelo judiciário” (Nascimento,
Jashar & Barbosa, 2018).
Essas concepções atravessam o cotidiano das políticas públicas e,
ainda que sem a intenção declarada, podem estar presentes na prática de
trabalho dos profissionais de saúde, educação e assistência. Por vezes, eles
atuam orientados por certa discriminação de corpos, gêneros, idades, raça,
cor e classe social exercendo controle na tentativa de normatização e nor-
malização das vidas.
Quando analisamos o processo de notificação e as medidas de prote-
ção de acolhimento institucional que o Conselho Tutelar pode fazer, em al-
guns momentos podemos identificar práticas discursivas de judicialização
da vida. O Conselho Tutelar, que é responsável pelo atendimento de crian-
ças e adolescentes em situação de risco e de violações de direitos (Araújo
& Henriques, 2019) enfrenta falhas no processo de comunicação dessas
problemáticas. Uma vez que há a denúncia, ela é vista muito mais pela via
da responsabilização do agressor e abertura de processo criminal do que
pela necessidade de suporte psicossocial para as pessoas expostas à violên-
cia (Conceição et al., 2020). Outro complicador à discussão se refere à ação
de retirada de crianças e adolescentes de seus núcleos familiares, em que
estiveram expostas a situações de violência. Ocorre que, no momento do
acolhimento institucional, por vezes, os conselheiros tutelares se utilizam
de escolta policial, as famílias resistem em entregar seus filhos e a cabam
204 • Capítulo 9
que trabalhadores da saúde fiquem receosos de que os desdobramentos da
identificação e posterior notificação da violência sejam pontos de parti-
da para o controle e judicialização. Essa articulação da rede por meio do
Apoio Matricial pode proporcionar que a notificação se torne um objeto
de investimento para qualificar os fluxos de cuidado-proteção da infância
e adolescência.
“A postura burocrática, o jogar-se tudo no futuro, o ressentimento ou
a culpa, a não apropriação de novos conhecimentos, a concentração de po-
der, todos são fatores ou sintomas que impedem a constituição de objetos
de investimento. [...] A construção desse objeto de investimento depende
de fatores políticos, cognitivos e afetivos. Há que se lidar com esta mescla.
Por outro lado, agir em função de outros, estabelecendo compromissos e
contratos; ou seja, sem renunciar absolutamente ao desejo ou ao interesse
particular. Agir tendo-os como referência, para compor espaços e modos
de agir que estabeleçam essas mediações” (Campos et al., 2014, p. 992).
Tornar a notificação um objeto de investimento implica em reconhe-
cer que a notificação não é um ato pontual que pode ser reduzido apenas a
seu caráter racional. Isto é, não há uma relação linear do tipo “sei” e por isso
“notifico”! Identificar e notificar uma situação de violência é um processo
complexo que não se restringe à dimensão cognitiva. É preciso reconhecer
as dimensões políticas (burocracias e relações de poder) e afetivas (cons-
cientes e inconscientes) nesse processo e discuti-las em rede, produzindo
espaços formativos para colocar em análise essa “escolha”. Além disso, tor-
nar a notificação um objetivo de investimento implica Cogestão, incluindo
usuários e profissionais dos setores da saúde, educação e assistência social
na discussão sobre vulnerabilidade, violência, cuidado e proteção à criança
e ao adolescente.
O aparente impasse instaurado na relação entre cuidado e proteção,
em que trabalhadores da saúde sentem que a potência do trabalho pode
ser ameaçada por uma lógica protetiva carregada de preconceitos e ações
reducionistas, precisa ser discutido entre os serviços, colocando em análise
os atravessamentos da articulação da rede intersetorial. Com os espaços
coletivos, em que a notificação se torna um objeto de investimento e de
análises, pode-se potencializar a corresponsabilização entre os serviços de
saúde, educação e assistência (Campos et al., 2014), fundamentais para a
construção de boas práticas em relação ao público infanto-juvenil que pas-
sou ou passa por algum tipo de violência.
Neste sentido, apesar de sermos críticos às atuações baseadas na gestão
de riscos pautadas na vigilância e no punitivismo que pode pairar sobre os
Conselhos Tutelares tratadas anteriormente, temos por intuito aqui colocar
206 • Capítulo 9
às famílias e, principalmente, às crianças e aos adolescentes, os quais, como
sujeito de direitos e, como o ECA aborda, protagonistas de suas vidas, são
também sujeitos com desejos e com vozes que precisam ser escutadas.
Considerações finais
208 • Capítulo 9
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Redução de Morbimortalidade
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210 • Capítulo 9
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212 • Capítulo 9
pode ser perdoado? Se a resposta à questão inversa — Se uma mulher trai
seu marido, ela pode ser perdoada? — for sim, teremos uma situação que
está marcada pela possível igualdade de gênero, sendo uma lição positiva
para a qual as meninas podem direcionar sua atenção e sua escolha.
Partindo dessa reflexão, façamos um exercício semelhante ao discutir
o tema “Saúde da Mulher”. Sobre que bases se assentam essa área da saú-
de? É possível dizer, sobre a forma como é ensinada e praticada, que par-
te da perspectiva feminista, de igualdade de gênero? Convidamos o leitor
a nos acompanhar na construção de um novo olhar, e consequentemente
uma nova ética que deva pautar a formação e a atuação dos profissionais
de saúde.
Partimos do pressuposto de que a formação dos profissionais de s aúde
deve assegurar o desenvolvimento de competências técnicas, éticas e rela-
cionais para a compreensão das múltiplas dimensões constitutivas dos su-
jeitos e coletivos, para o trabalho interdisciplinar e em equipe, e para uma
aproximação genuína à complexa realidade das pessoas (Campos, Cunha &
Figueiredo, 2013). Tal formação ampliada torna-se especialmente impor-
tante no contexto da Atenção Primária à Saúde (APS), cuja vasta gama de
demandas exige dos profissionais — para além do conhecimento técnico,
e não menos importante — um conjunto de referenciais teóricos e práticos
que auxiliem no manejo dos processos subjetivos e sociais, essenciais para
uma produção de cuidado centrada no sujeito e nas suas múltiplas condi-
ções de existência.
Com essa premissa, o Coletivo de Estudos e Apoio Paideia – UNI-
CAMP vem propondo diversas intervenções (cursos, seminários, pesqui-
sas, disciplinas) cujo objetivo é contribuir na produção de uma prática am-
pliada em saúde. Assim, na experiência que inspira este livro, um Curso de
Especialização em Saúde da Família para as equipes de APS de três municí-
pios brasileiros, ministrado nos anos de 2018 a 2020, optamos por discutir
as grandes áreas de atuação da Saúde da Família em uma abordagem que
potencializasse uma prática mais reflexiva, promovendo a autonomia dos
sujeitos (pacientes e profissionais de saúde) e a práxis de uma clínica am-
pliada (Campos, 2013), e fizesse frente às complexas necessidades da APS.
No contexto do curso, discutir Saúde da Mulher junto com os profis-
sionais se apresentou como um desafio muito particular. A profunda desi-
gualdade entre os sexos e sua consequente desigualdade de gênero foi, no
âmbito da saúde, muitas vezes fundamentada pelas discussões das ciências
biológicas acerca do que seria a mulher e o feminino. Historicamente, estu-
dos na área da saúde e das ciências sociais mostram o quanto as condições
214 • Capítulo 10
o papel da mulher a partir das distinções entre os gêneros, além de que
muitos comportamentos machistas e patriarcais são também reproduzidos
por mulheres (Oliveira & Marçon, 2019).
Neste ponto, torna-se importante — a partir de novas premissas para
educação de crianças e adultos, como nos propõe Chimamanda —, r essaltar
que as mulheres são as primeiras a serem reconhecidas quando falamos so-
bre o cuidado. Historicamente, ele tem sido atribuído ao gênero feminino
na maioria das sociedades. Cabe às mulheres gerir e alimentar os bebês,
educar as crianças, atender os idosos e assistir aos doentes. A designação
das mulheres como cuidadoras natas, desse modo, é um dos temas sociais
amplamente discutidos como pauta feminista, questionando-se a ideia de
que a responsabilidade no cuidado das crianças, doentes e/ou idosos seja
naturalmente das mulheres (Biroli, 2018). Dessa imposição social do papel
da mulher como cuidadora resulta uma secundarização do olhar às suas
necessidades e vulnerabilidades sociais. Torna-se necessário, portanto, in-
dagar: construímos um sistema de saúde que se propõe universal e equâni-
me, mas as mulheres possuem real acesso a ele, por meio de práticas e po-
líticas adequadas direcionadas a seus cuidados? (Oliveira & Marçon, 2019)
Será que estamos mesmo com uma prática de igualdade de gênero se
fizermos o exercício que nos propõe Chimamanda?
O Coletivo de Estudos e Apoio Paideia vem propondo sistematica-
mente cursos de formação para profissionais de saúde a partir do Método
Paideia (Campos, 2013) que se originam de reflexões, tais como a discussão
aqui proposta, sobre a prática e a formação profissional. Para a construção
desse tema específico, foi realizada uma parceria com o Grupo de pesquisa
Conexões: Políticas da Subjetividade e Saúde/UNICAMP. Nessa oportuni-
dade, desejamos refletir junto com os profissionais de saúde sobre sua for-
mação, fundamentalmente no que diz respeito aos cuidados e as políticas
públicas direcionadas às mulheres. Buscando desnaturalizar um caminho
social que afirma uma visão de gênero e divisão do trabalho na produção
dos conhecimentos, dos discursos e das práticas em saúde, apostamos na
reflexão e na experiência crítica das mulheres. Acreditamos, assim, que no-
vas propostas políticas possam ser sustentadas no cotidiano dos serviços e
das trabalhadoras e dos trabalhadores que são formadores de opinião na
vida de milhares de usuárias(os) das Unidades Básicas de Saúde.
216 • Capítulo 10
delas — as bruxas — foi necessário para a desarticulação da sua resistên-
cia, principalmente no que diz respeito a formas de organização coletivas,
reforçando modos de vida da lógica privada, essenciais para o advento do
capitalismo e da ciência moderna. Depreende-se que esse período histó-
rico marca uma nova divisão social do trabalho: enquanto as funções não
remuneradas de reprodução da mão de obra se mantêm a c argo do gênero
feminino, o que era passível de entrar na esfera da produção passa a ser
atribuído aos homens (Federici, 2017). Assim, como mencionado anterior-
mente, toda a ciência que se desenvolve a respeito da produção do cuidado
é feita tendo o homem branco como padrão de normalidade ou mesmo
como referencial de adoecimento, tratamento e cura. Mesmo a figura da
saúde da mulher é uma mulher vista pelo homem, ou seja, sua existência
como objeto de conhecimento deriva de uma construção política de saber
e poder feita pela sociedade patriarcal.
Vale ressaltar que até o século XVI o cuidado com as doenças femini-
nas pouco interessava aos médicos. Mulheres eram assistidas por mulhe-
res — as parteiras não apenas se encarregavam de questões relacionadas
à gestação e ao parto, como também de condições ginecológicas, que até
então compunham uma prática social circunscrita ao ambiente domiciliar.
É no século XVI que se iniciam as tentativas de regulação das atividades
das parteiras, menos por questões relacionadas às supostas “más práticas”
do que pela proteção de um determinado nicho de atuação que começava a
ser adentrado pelos profissionais médicos, naquela época todos homens. O
parteiro cirurgião, como era chamado o médico de partos na época, firma
presença ao longo dos séculos XVII e XVIII, com o advento do fórceps, da
cesariana, e de outras formas de instrumentalização do nascimento, cujo
exercício era proibido às parteiras. É nesse momento que surgem os pre-
cursores de uma ciência chamada Ginecologia (Rohden, 2001).
Entende-se que a construção desta ciência e do profissional que exer-
ce tal cuidado esteve vinculada às disputas profissionais e de mercado entre
parteiras e parteiros cirurgiões (futuros ginecologistas). Isso se perpetua
no presente, o que se exemplifica na falta de regulamentação e de cursos de
obstetrizes no Brasil, nas lutas em torno do parto domiciliar ou na disputa
entre a ginecologia e a medicina de família e comunidade pela assistência à
mulher na Atenção Primária.
Sabemos, do grego, que gyné (mulher) e lógos (estudo) formam o
conceito da Ginecologia. Desse termo deriva “a ideia de que a Ginecolo-
gia é uma «ciência da mulher» em sentido amplo” (Rohden, 2001 p. 49) e
isso não é trivial. Decorre que práticas médicas voltadas para problemas de
saúde uterinos resultaram em uma ciência própria, que ao longo dos anos
218 • Capítulo 10
garantia de uma população produtiva — o que se observa desde os séculos
XVII e XVIII, em especial na França, — e como isso impacta e dá origem às
produções em saúde materna e materno-infantil. Nota-se, então, como essa
concepção de saúde coloca a saúde da criança como central na produção
dos modos de vida e na produção de existência femininos.
220 • Capítulo 10
fim de que as práticas profissionais deixem de praticar a opressão patriar-
cal, e que os temas rapidamente discutidos neste capítulo façam parte do
currículo de toda a formação, envolvendo também as práticas de educação
permanente em saúde.
Porém, isso ainda seria insuficiente caso o modelo de formação não
seja, ele mesmo, revisto. Para que se promova uma prática mais reflexiva,
que considere a subjetividade e o contexto socio-histórico das mulheres,
faz-se necessária uma formação também reflexiva.
São diversos os autores que reconhecem a falência de um modelo de
ensino centrado em conteúdos e disciplinas fragmentadas (Almeida Filho,
2010; Nuto et al., 2006; Carvalho & Ceccim, 2012; Souza, 2001). Neste mo-
delo, perde-se muito da capacidade crítica dos alunos, dificultando o rom-
pimento com aspectos cristalizados nas instituições de saúde. Neste tema
em específico, permite que mesmo as mulheres sendo maioria numérica
em muitos cursos da área da saúde e sendo as principais afetadas pela vio-
lência operada pela determinação patriarcal nas ciências, elas ainda não
apresentam força de expressão suficiente para mudar esta situação. São ne-
cessárias práticas de problematização e escuta que permitam construção
crítica e espaço de produção social e educacional operados pelas mulheres,
em que a revisão dos livros didáticos e dos cenários de prática de formação
entrem em questão, refletindo também na prática dos serviços de saúde.
Nossa sugestão, para tanto, passa pela utilização de metodologias de
formação e educação permanente que explorem a experiência como base
dos processos reflexivos sobre o estudo teórico e a prática profissional. Es-
pecificamente na experiência de que trata este capítulo, utilizamo-nos do
Método Paideia (Campos, 2013).
Ao abranger relações de poder, afeto e saberes, e propor uma intera-
ção menos vertical entre professor e estudante (transversal, nas palavras do
autor), o Método estimula uma postura mais ativa por ambos, permitindo
que o não dito da prática dos serviços (no caso, violência obstétrica, vio-
lência ginecológica, silenciamento das mulheres etc) venha à tona e seja
problematizado. Assim, por meio de ofertas teóricas, discussão de casos
e projetos de intervenção, uma formação pelo Método Paideia incentiva,
além da incorporação de novos conceitos e paradigmas, a realização de
intervenções concretas, ligadas às relações de poder, à gestão e à política,
integradas à clínica (Oliveira Viana & Campos, 2018), a partir das quais
seria possível a construção de um novo paradigma em Saúde da Mulher.
Isso posto, o Coletivo de Estudos e Apoio Paideia se propôs a abor-
dar junto com profissionais das Equipes de Saúde da Família de todos os
níveis — fundamental, médio e superior — e todas as áreas que compõe as
222 • Capítulo 10
pontos em comum. Compreendem desde os saberes clínicos das ciências
biomédicas, que abordamos de maneira mais pormenorizada anteriormen-
te, quanto os saberes “psi”, como a psicologia ou a terapia ocupacional, in-
fluenciados pela teoria freudiana em que, por exemplo, o lugar da mãe e
da sexualidade constroem uma subjetividade feminina própria que ainda
marcam profundamente muitas formas de atendimento clínico.
Certamente, haveria conteúdos suficientemente abundantes para as
conversas, sendo impossível tratar o tema de forma abrangente no perío
do disponibilizado de 4 horas. Em virtude do grande número previsto de
participantes, cerca de 150 em cada turma, optamos por realizar uma ex-
posição dialogada, com auxílio de projeção de slides, sempre entrecortada
pela fala dos sujeitos presentes. A seguir, detalharemos a sequência de con-
teúdos proposta:
A aula começa com algumas provocações um pouco mais lúdicas so-
bre a atualidade histórica do Movimento Feminista. Optou-se por aborda-
gem mais leve e com certo humor visto que, atualmente, ainda há grande
resistência das pessoas em relação ao tema. Tratou-se de um aquecimento
para aula, uma provocação, mas também de marcar posição em relação à
pertinência do debate sobre as opressões de gênero e do patriarcado.
Segue-se então uma abordagem da Saúde Mental, propondo a dis-
cussão de um caso real atendido pela expositora. Tratava-se de uma adulta
jovem, de origem pobre, recém-formada em um concorrido curso de uma
universidade pública de renome. Uma mulher que seria, sob muitos as-
pectos, considerada bem-sucedida. Mesmo com muitos motivos a serem
comemorados, porém, ela se apresentava profundamente descontente em
relação à autoimagem corporal, por obesidade e estrias, culminando em
sentimentos tão negativos em relação à autoestima que chegavam a com-
prometer sua vida cotidiana.
Para debater este caso, a principal referência teórica foi a obra Saúde
Mental, Gênero e Dispositivos, de Valeska Zanello (2018) indicada também
como bibliografia de apoio para os profissionais que porventura desejassem
se aprofundar no tema. A autora aborda a forma como as mulheres se sub-
jetivam em uma sociedade patriarcal, submetendo-se a padrões (como, por
exemplo, de beleza) muito mais estreitos e rígidos que os masculinos. Tam-
bém trata da centralidade da relação amorosa na vida da mulher, que jun-
tamente com o padrão estético seriam marcadores de felicidade. A beleza
feminina é, para Zanello, um referencial masculino, do que é belo para um
determinado tipo de homem. Segundo a autora, a esfera da beleza, da se-
xualidade e do suposto “sucesso no amor”, bem como a importância social
dada à relação com um homem, como o casamento, estão profundamente
224 • Capítulo 10
provocativa (a anatomia da glândula mamária feminina) que explicita a
discussão estrutural desde os livro-textos anatômicos.
Neste momento, problematizamos o modo como a representação das
mulheres nas ciências biomédicas sempre teve como centralidade sua fun-
ção reprodutiva, remetendo-nos aos argumentos de Rodhen e Moscucci
expostos anteriormente. Tal prática gera e reforça o determinismo social
em relação à maternidade, e aparece de muitas maneiras estruturais, por
vezes sutis, na formação em saúde. Como exemplo, discutimos os livros
de anatomia e fisiologia, propondo o seguinte questionamento: que quan-
tidade de páginas, textos e ilustrações dos livros de anatomia em que cada
profissional estudou é dedicada ao sistema reprodutivo feminino, em ter-
mos concretos? E ao sistema de prazer sexual feminino? E nos livros de
fisiologia? O que estudamos sobre ereção ou ejaculação em mulheres? E
em comparação, quanto foi estudado sobre a fisiologia da resposta sexual
masculina, seus mecanismos de ereção e ejaculação, sistemas simpático e
parassimpático? Partimos dessa provocação para iniciar o debate sobre a
estrutura patriarcal dos cursos da área da saúde.
Com o objetivo de evidenciar as bases sobre as quais os conhecimentos
e as técnicas hoje utilizados na ginecologia foram concebidas, apresentamos
a história do médico estadunidense James Marion Sims, do início do século
XIX, conhecido como o “pai da ginecologia moderna” (Rohden, 2001) No
desenvolvimento dos seus estudos, Sims usou mulheres escravizadas afro-
-americanas como cobaias. Muitas cirurgias experimentais sem anestesia
foram realizadas compulsoriamente em mulheres escravizadas, com uma
série de sequelas. Especificamente, apresentamos a história de Anarcha,
uma de suas escravas, submetida a mais de 30 cirurgias experimentais.
Neste momento do curso, não passaram despercebidos da expositora
os afetos provocados por essa informação, visíveis na expressão dos rostos
dos alunos, especialmente das mulheres negras da turma. Especificamen-
te em um dos subgrupos, chegou a ter uma discussão entre uma mulher
negra, técnica de enfermagem, e um homem branco, dentista, em que ele
defendia que a crítica seria anacrônica, uma vez que muito da ciência mo-
derna foi construída por meio de experimentações que hoje não seriam
aceitas, enquanto ela defendia que tamanha violência contra seus antepas-
sados não se justifica em nenhum contexto ou momento histórico.
Em seguida, para apresentar contrapontos e práticas de resistência
feminista presentes nas ciências biomédicas, utilizamo-nos de duas im-
portantes e simbólicas publicações do movimento feminista global. A pri-
meira dessas publicações é o livro “Our Bodies, Ourselves” The Boston Wo-
men’s Health Collective (2011) (posteriormente traduzido para o espanhol
226 • Capítulo 10
formação a respeito desse órgão, o mesmo se valendo socialmente para as
mulheres como um todo.
Partimos então para uma discussão sobre ciclos femininos, e sobre
como não somos acolhidas em nossa fisiologia essencialmente cíclica em
uma sociedade que cobra comportamentos e produtividade constantes no
tempo. Em seus ciclos hormonais as mulheres são, em comparação aos ho-
mens, igualmente produtivas, porém de forma irregular ao longo de um
ciclo. Não há, todavia, qualquer espaço para oscilações, de forma que são
os discursos e vivências patriarcais que moldam profundamente as relações
das mulheres com os próprios corpos e ciclos. A essa discussão seguiu-se a
apresentação do coletor menstrual e o esclarecimento de dúvidas sobre sua
utilização, entendendo que a maior parte dos trabalhadores e usuárias dos
serviços ainda possuem pouco acesso a esse dispositivo.
Logo após, discutimos Violência Obstétrica, ainda que de forma
rápida e certamente aquém da importância do tema. O termo Violência
Obstétrica é utilizado para descrever formas de maus-tratos ocorridas na
assistência à gravidez, ao parto, ao pós-parto e ao abortamento. Um con-
junto de definições tem sido proposto nos últimos anos por diversos pa-
íses e instituições, sendo a Venezuela pioneira em tipificar essa forma de
violência no ano de 2007 (Diniz et al., 2015). Essa definição é um marco
mundial no movimento feminista, uma vez que na maior parte da literatu-
ra científica internacional, termos como “maus-tratos” (mistreatment) e/ou
“desrespeito” (disrespect) eram usados para nomear práticas hoje conside-
radas Violência Obstétrica. Em outras ocasiões, esses casos eram referidos
como problemas da ordem da relação médico-paciente ou violência ins-
titucional. A partir do momento em que se nomeiam essas práticas como
uma forma específica de violência contra a mulher, reforça-se o caráter de
gênero em torno dela, marcando um ponto de inflexão necessário ao real
enfrentamento do problema. A Violência Obstétrica pode ser expressa des-
de a negligência na assistência, discriminação social, violência verbal (tra-
tamento grosseiro, ameaças, reprimendas, gritos, humilhação intencional),
violência física (incluindo não utilização de medicação analgésica quan-
do tecnicamente indicada), uso inadequado de tecnologias, intervenções
e procedimentos desnecessários diante das evidências científicas (Diniz et
al., 2015). A pertinência desse tema no curso se deve às discussões sobre
o papel do pré-natal e a grande importância da Atenção Primária para o
enfrentamento específico dessa violência de gênero. Novamente, ao se dis-
cutir alguns casos específicos de Violência Obstétrica, a palestrante pôde
perceber reações nos alunos, visível nos olhares de mulheres e nas conver-
sas paralelas contando cenas e casos.
Considerações finais
228 • Capítulo 10
Como prática analítica conceitual, a revisão aqui proposta adota di-
ferentes características de análise na formação de um conceito nuclear da
relação biomédica com a saúde da mulher que tematiza, fundamentalmen-
te, a necessidade de transformação das práticas e cuidados neste campo.
Como análise socio-histórica, buscamos evidenciar o histórico de
lutas e as crescentes transformações produzidas pelos coletivos de mu-
lheres na escrita e conformação das políticas de saúde, bem como seu en-
trecruzamento com o campo teórico/prático que o movimento feminista
nos oferece. Como efeitos desta aula, buscamos sustentar que as d istintas
disciplinas envolvidas com a saúde tornem conscientes as amarras ao pa-
radigma médico biologicista, com pequenas revoluções e rupturas nos
saberes já instituídos.
Sobre o caráter coletivo do campo, compreende-se que as necessida-
des de um sujeito são irredutíveis diante das necessidades de intervenção
populacional. Ao tematizar sobre a própria forma de estruturação do pen-
samento e problematizar saberes já constituídos, a Saúde Coletiva se apre-
senta como um núcleo de produção de resistência às práticas que descon-
sideram a singularidade e as subjetividades presentes nos encontros com
cada sujeito.
Assim, sustentamos que o ensino no campo da Saúde Coletiva não se
dá pela formação de novas disciplinas que possam dar conta do sujeito da
saúde, mas sim pela construção de um plano transdisciplinar que avance
a partir da aceitação da complexidade dos saberes já instituídos e da flexi-
bilização das fronteiras deles para partilha de um objeto único, transdis-
ciplinar e complexo. Há uma irredutibilidade da Saúde Coletiva quanto à
adoção de um modelo único de discursos e práticas. Trata-se de abandonar
as formas de encontro com os sujeitos que visam à conformação de novas
teorias, para sucessivamente substituir a fragmentação das especialidades
pela construção de novos modelos de cuidado embasados em propostas de
valorização da vida (Oliveira & Guareschi , 2010).
Aqui, o entrecruzamento da Saúde Coletiva com a Saúde da Mulher
permitiria, a partir da singularidade — “o pessoal é político” —, construir
novas práticas de cuidado individual e coletivo pautadas na integralidade e
equidade e que partam da perspectiva feminista.
Desse modo, este capítulo teve como objetivo iniciar o necessário
debate acerca da construção patriarcal da saúde que se perpetua ao lon-
go dos anos a partir da formação. Buscamos demonstrar, ainda, por meio
da e xperiência narrada, que a discussão teórica aqui apresentada deve não
somente guiar o ensino da Saúde da Mulher nas formações da área da
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230 • Capítulo 10
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de), 2019.
232 • Capítulo 10
Capítulo 11
Atenção aos pacientes crônicos na APS: ir
onde o povo está, conversar, versar, fazer
conversação, com versos e ações
234 • Capítulo 11
Apontaram o entendimento reduzido da maioria das instituições de saúde,
que continuam a ver as condições crônicas apenas como inerentes ao en-
velhecimento, urbanização e estilo de vida das pessoas, como consagra-
do pela OMS no modelo cinco doenças x cinco fatores de risco (doenças
cardiovasculares, câncer, diabetes, doenças respiratórias crônicas e proble-
mas de saúde mental X uso de tabaco, dietas não saudáveis, inatividade
física, uso nocivo de álcool e poluição do ar). Essa visão desconsidera a
exclusão social e a qualidade dos sistemas nacionais de saúde como impor-
tante fator de risco.
Alves & Morais Neto (2015), estudando a tendência da morte precoce
por condição crônica no Brasil no período de 2000 a 2011, encontraram
que a doença arteriosclerótica coronariana, o câncer, a doença renal crôni-
ca e o diabetes representavam 63,7% do total das mortes prematuras. Esses
autores observaram tendência de melhora da mortalidade prematura por
DCNT nesse período, notadamente por doenças do aparelho circulatório,
mas a redução da mortalidade prematura por neoplasias e diabetes melli-
tus permanecia como importante desafio, juntamente com as iniquidades
regionais/sociais e a atuação nos fatores de risco modificáveis.
O Ministério da Saúde do Brasil, na última década, alinhado ao Pla-
no Global da OMS de Prevenção e controle das condições crônicas res-
ponsáveis por 70% das mortes no mundo, vem promovendo uma série de
iniciativas relativas à atenção às CCNT, notadamente, com a proposição
do Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das DCNT no Brasil
2011-2022 e da Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com DCNT de 2014
(OMS/OPAS, 2013; Brasil, 2011; Brasil, 2014).
Por recomendação do Plano de Ações Estratégicas para o
enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis, houve em pac-
tuação interfederativa dos gestores do SUS, a incorporação nos planos de
saúde nacional, estaduais e municipais, para o quadriênio 2018-2021, da
meta de redução em 2% ao ano das taxas de mortalidade prematura para
doenças do aparelho circulatório, cânceres, diabetes e doenças respirató-
rias, sendo assim, uma das metas nacionais do SUS (CIT, 2016). O balan-
ço das m etas do Plano de DCNT 2011-2021 realizado pela Secretaria de
Vigilância à Saúde do Ministério da Saúde em outubro de 2020 (Brasil,
2020), revelou:
:: A meta de redução da mortalidade prematura (30-69 anos) por
DCNT em 2% ao ano não está sendo e não será cumprida até 2021. Entre
2010 a 2018 a redução média foi de 1,70 pontos percentuais ao ano, com
maior queda acontecendo de 2010 a 2015 e diminuição da velocidade de
redução de 2015 a 2018;
236 • Capítulo 11
enfim d
eterminando altos custos sociais e sem nenhuma perspectiva de
uma qualidade de vida digna de qualquer cidadão (Lessa, 1998, p. 248).
238 • Capítulo 11
e acompanhamento das pessoas. O propósito é que as pessoas possam am-
pliar sua compreensão e atuação em riscos modificáveis e no manejo da
condição clínica responsável por seu adoecimento, entendendo a saúde
não como um estado absoluto e sim em coeficientes relativos ao estado
de cada pessoa ou de cada agrupamento populacional, na polaridade de
bem estar e morte e a miríade de situações, possíveis, entre o saudável e a
doença. O “fator desejo” próprio do subjetivo das pessoas se faz presente
e deve ser considerado para se alcançar coeficientes ou graus maiores de
autonomia, sendo entendida como:
240 • Capítulo 11
pressupõe a possibilidade do usuário a analisar de modo crítico na rela-
ção dialógica para tomar uma decisão compartilhada. A oferta modificada
pela análise compartilhada se transforma em tarefa tanto para a equipe da
APS quanto para o usuário. Ter horários reservados para os momentos de
avaliação reflexiva sobre a realização das tarefas e seus resultados favore-
ce a compreensão de usuários e profissionais sobre suas resistências, seus
bloqueios e as restrições estruturais do contexto (Campos, 2014). Nesse
sentido, o autor, referenciado em Freud, destaca
“Cada homem é aquilo que ele mesmo fez com aquilo quem fizeram dele.”
Isso para mim é uma das frases mais fundamentais de toda a história da
humanidade. Porque, com certeza, desde que nascemos fazem algo de nós;
nascemos e nos falam, nos dão uma língua, e nós a recebemos, como es-
ponjas, palavras, palavras, palavras. . . Quando começamos a falar, dizemos
o quê? Dizemos as palavras que nos disseram, ou seja, não temos então
uma linguagem autenticamente nossa; apenas acreditamos que domina-
mos uma língua e essa língua nos domina. Porém, algum dia teremos que
dizer uma palavra nova, algum dia teremos que dizer uma palavra que seja
nossa, e essa será a nossa liberdade. Assim, é verdade a linguagem que nos
condiciona, o ambiente político-social que nos condiciona, tudo isso é ver-
dade, que seja; mas, a partir de algum momento, temos que ser nós mesmos
responsáveis pela nossa vida, porque somos o que escolhemos ser. Por isso,
bem vinda a frase do mestre Jean-Paul, que diz que “cada homem é aquilo
que ele mesmo fez com aquilo quem fizeram dele” (Feinmann, 2008).
242 • Capítulo 11
seu trabalho e sua capacidade de estabelecer normas para si que ampliem
sua qualidade de vida (Campos, 1994).
No esforço de ampliar o conhecimento e a postura dos sujeitos no
processo saúde-doença das CCNT, as motivações e as emoções do e no
contexto do viver das pessoas tanto podem favorecer riscos e agravamento
como contribuírem para a proteção e controle da situação. Abaixo faremos,
sob o risco de simplificação, uma releitura das formulações que Paul Gil-
bert (2014) fez nesse âmbito, quando de sua proposição acerca das origens
e da natureza da terapia focada na compaixão, retomando aspectos evoluti-
vos que influenciam a construção do comportamento.
O sistema simpático está envolvido no alerta de ameaças e na ativação
de estratégia de defesa; no oferecimento de informação sobre recursos e
possíveis recompensas e na ativação de estratégias de ação e engajamento.
Diante das situações de perigo ou ameaça, ativa respostas mediadas pelos
hormônios do estresse (adrenalina e cortisol) com repercussões importan-
tes no funcionamento do sistema cardiovascular, no metabolismo glicê-
mico, das gorduras, nos fatores inflamatórios e na resposta imunológica,
com aumento da frequência cardíaca, da pressão arterial, do metabolismo
de glicose. E, ainda, pode desencadear quadros de ansiedade, raiva, medo
ou vergonha. Esses hormônios podem ser mantidos por um tempo após
a situação de estresse ter passado. Pessoas que vivem em contexto de vio-
lência, ameaça, carências, condições de trabalho inadequadas, de moradia,
do trânsito, poluição, desemprego, dívidas, perdas, frustações recorrentes
e pessoas com padrão de subjetividade egoístico, competitivo e de autoexi
gência, comumente têm aumento desses hormônios, mantendo o padrão
de resposta metabólica ao estresse por tempo indeterminado (Torres, 2020;
Gilbert, 2014).
Também faz parte do sistema simpático, a dopamina, neurotrans-
missor do prazer, do comportamento motivado, ativador dos circuitos de
recompensa do cérebro. É responsável por ações relacionadas aos afetos
positivos de criação/construção, de procura por coisas agradáveis, do pro-
cessamento de ações de resposta e de enfrentamento às ameaças. Também,
é tida como ativadora de alegria, divertimento, excitação, prazer e da busca
e aquisição de recursos que podem propiciar conforto. A sensação de sa-
tisfação e prazer promovida pela dopamina é de curta duração, sua vida
média é de dois minutos e seu efeito dura menos de dez minutos. A esti-
mulação cerebral excessiva por ela leva à dessensibilização de receptores
e à necessidade de doses maiores para se obter o mesmo efeito, podendo
levar à repetição de comportamento, que pode configurar adicção, como se
244 • Capítulo 11
intervenção nos encontros, o que também colabora para o desenvolvimen-
to da autorregulação do sistema simpático-parassimpático.
Boaventura de Sousa Santos (2006) ressalta a relevância da dilatação/
expansão de processos sociais em curso a fim de se conhecerem experiên-
cias vividas e delas obterem-se o aprendizado possível para novas orien-
tações. Propõe que se trabalhe com ecologia de saberes, com o princípio
da incompletude de conhecimentos que tem como condição sine qua non
o diálogo e o debate com diferentes campos de saberes e práticas. Instiga
para que se use o conhecimento como emancipação e não como regula-
ção, apontando para ação-por-clinâmen, por ele definida como processos
de ligeiros desvios, com efeitos cumulativos que possibilitam combinações
criativas entre sujeitos e grupos sociais, para novos devires.
Larrosa (2017) nos alerta para o risco de que o profissional escuta-
dor, pessoa transbordante de informações, agitada e com pretensão de
conformar o mundo, realize interpretações precipitadas e indevidas, anu-
lando a possibilidade do compartilhamento dialógico da experiência. Ele
apresenta uma recomendação para escuta e interpretação de experiências,
sintetizada abaixo:
... como algo que nos toque, que possibilite a reflexão sobre elas, reque-
rendo interrupção: para olhar, para escutar, para sentir, para pensar; pensar
mais devagar, escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a
opinião, suspender o juízo, suspender o automatismo da interpretação e da
ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir olhos e ouvidos, falar o que nos
acontece, aprender a lentidão, cultivar a arte do encontro, calar, ter paciên-
cia e dar-se tempo e espaço (Larrosa, 2017, p. 25).
246 • Capítulo 11
Ainda nesse sentido, é muito relevante que seja oferecido aos usuários
o número do telefone celular ou tablet da equipe de referência e que se
estabeleça “o contrato de como o utilizar” e atualizar o número do telefone
dos participantes para estabelecer a “rede singular de comunicação”, a fim
de realizar avaliação de demandas, teleorientação, telemonitoramento, te-
leconsultas e agendamentos. A pandemia Covid-19 propiciou profusão de
experiências criativas de utilização de “redes locais de telessaúde” por várias
equipes da APS na comunicação com os usuários e abriu um grande veio
para a rápida incorporação dessa tecnologia no SUS (Porto Alegre, 2020).
Enfim, a abordagem ampliada e compartilhada do processo saúde
doença e o aumento do coeficiente de autonomia dos sujeitos requer in-
vestimento sistemático na coconstrução dos problemas/necessidades, na
proposição e na gestão do projeto terapêutico, articulando a racionalidade
clínico-sanitária com o interesse/desejo do usuário, com construção e esta-
belecimento de vínculo e com coavaliações regulares, priorizando a refle-
xão e a capacidade de elaborar compromissos e contratos.
A ampliação dos objetivos relativos às condições crônicas passa, tam-
bém, por fomentar movimentos societários vigorosos capazes de enfrentar
a “força de grana” que produz doença e de lutar pela regulação estatal rela-
tiva à propaganda e produção de alimentos e bebidas sabidamente maléfi-
cos para a saúde (os superaçucarados, salgados, gordurosos, processados e
bebidas alcoólicas); o mesmo se aplica à legislação trabalhista e jornadas de
trabalho protetoras e à criação de espaços públicos de lazer e cultura aces-
síveis em todos os espaços urbanos, na lógica da cidade para todos.
O apontamento de meios para efetivação desses objetivos não é nada
simples. Uma estratégia seria a ampliação do domínio público acerca do
conhecimento científico produzido e sistematizado sobre os fatores de ris-
co e proteção e das experiências de outros países, além de ocupar espaço
nas mídias para tratar do tema e articular uma agenda societária e legisla
tiva de propostas de regulação protetiva com os partidos políticos do cam-
po democrático.
Entretanto, experiências focais de fomento a redes de produção de so-
lidariedade e de defesa da vida em territórios vivos têm sido efetivadas. Um
exemplo é a comunidade de Paraisópolis, na cidade de São Paulo, onde mo-
radores (ativistas e pequenos empresários), empenhados em garantir uma
proteção coletiva da comunidade durante a pandemia Covid-19, desen-
volveram uma tecnologia organizacional no bairro que contava com 420
voluntários, cada um cuidando de 50 casas. Mapearam as necessidades das
pessoas, realizaram capacitações relativas à prevenção e ao controle, arre-
cadaram e distribuíram álcool em gel, cestas básicas, marmitas e máscaras
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248 • Capítulo 11
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250 • Capítulo 11
Capítulo 12
Elementos fundamentais para a abordagem do
uso problemático de SPA no contexto da APS
252 • Capítulo 12
Transtornos por uso de substância:
história, conceitos e especificidades
254 • Capítulo 12
Quadro 1. Mitos presentes na construção das políticas sobre drogas
as drogas ilícitas são mais tóxicas e têm maior chance de levar à morte por overdose;
as substâncias ilícitas foram banidas por causar maior dano ao usuário ou à sociedade;
o Estado deve criminalizar e punir o uso e o comércio de drogas para solucionar a questão social das
drogas;
Fonte: Extraído de Medeiros & Tófoli. Mitos e evidências na construção das políticas sobre drogas, 2018.
diversas substâncias proscritas demonstraram potencial para uso terapêutico em estudos científicos;
Fonte: Extraído de Medeiros & Tófoli. Mitos e evidências na construção das políticas sobre drogas, 2018.
256 • Capítulo 12
dependência química, transtorno por uso de drogas, uso prejudicial de
drogas, uso nocivo de drogas e uso problemático de drogas. Alguns desses
nomes são mais antigos e caíram em desuso, como estupefacientes e dip-
somania, outros são utilizados por grupos específicos, como toxicomania
entre os psicanalistas, enquanto existem aqueles que são vinculados a jul-
gamentos morais e deveriam ser evitados por profissionais da saúde, como
vício e derivados (alcoólatra, maconheiro, cheirado, crackeiro). Na literatu-
ra anglo-saxônica existe um uso grande do termo addiction, aportuguesado
como adicção, referindo-se à compulsão de diversos hábitos, como drogas,
sexo, compras e internet.
A décima edição da Classificação Estatística Internacional de Doen-
ças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) utiliza as noções de uso
nocivo para a saúde e síndrome de dependência. A primeira se refere ao
uso prejudicial à saúde, com complicações físicas, como hepatite em decor-
rência do compartilhamento de agulhas com drogas injetáveis, ou psíqui-
cas, como episódios depressivos depois do uso intenso de uma substância.
Síndrome de dependência, por sua vez, envolve um conjunto de sintomas
e sinais comportamentais, cognitivos e fisiológicos que ocorrem após o uso
contínuo de uma substância psicoativa. Tecnicamente a presença de três ou
mais critérios a seguir, caso eles tenham sido exibidos em algum momen-
to nos últimos 12 meses: forte desejo ou senso de compulsão para usar;
dificuldade em controlar o consumo tanto no início quando no fim ou na
quantidade consumida; sintomas corporais de síndrome de abstinência ou
uso constante da substância para evitá-la; evidência de tolerância, quando
são necessárias doses cada vez mais altas para alcançar um efeito antes pro-
duzido com uma quantidade menor; perda gradual de interesse e prazer
em outras atividades em detrimento do uso de substância psicoativa; per-
sistência do uso, mesmo quando constatado seus prejuízos (OMS,1993).
Já a quinta e mais recente edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais (ou em inglês Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders, o DSM) elaborada pela Associação Americana de
Psiquiatria, propõe a classificação por Transtornos do Uso de Substâncias
(TUS), dividindo-os em três graus de severidade (leve, moderado ou grave)
a partir da quantidade de sintomas apresentados.
É fundamental ressaltar, contudo, que essas definições trabalham com
uma diferenciação em grande parte artificial, uma vez que muitos usuários
têm modos de uso variados que mudam com o tempo, indo e voltando en-
tre as categorias (Tófoli, 2015). Feita a ressalva de que a categorização diag-
nóstica serve como balizador da comunicação entre profissionais e não é o
único determinante na definição de um projeto terapêutico, analisaremos
258 • Capítulo 12
Quadro 3. Síntese dos dados III LNUD (2017)
Substância Uso ao longo Uso nos últimos Uso nos últimos Dependência*
da vida 12 meses 30 dias
♂
♂ ♂
38,8%
74,3% 51,6%
30,1% 24% B
Álcool 66,4% 43,1% 1,5%
16,5%B ♀
♀ ♀
21,9%
59% 35%
9,5% B
♂ ♂ ♂
38,9% 18,4% 16,2%
Tabaco 33,5% 15,4% 13,6% 3,2%
♀ ♀ ♀
28,4% 12,5% 12,5%
Benzodiazepínicos 3,9% 1,4% 0,4% 0,2%
Opiáceos 2,9% 1,4% 0,6% 0,14%
Anfetamínicos 1,4% 0,3% 0,0% 0,01%
Maconha 7,7% 2,5% 1,5% 0,29%
Cocaína 3,1% 0,9% 0,3% 0,18%
Crack 0,9% 0,3% 0,1% 0,09%
Solvente 2,8% 0,2% 0,1% 0,01%
Legenda: B=Binge.
* nos últimos 12 meses entre a população entre 12 a 65 anos.
Fonte: ICICT, Fiocruz. III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira.
Fonte: ANTHONY, WARNER & KESSLER (1994). Comparative Epidemiology of Dependence on Tobac-
co, Alcohol, Controlled Substances, and Inhalants: Basic Findings From the National Comorbidity Survey.
Experimental and Clinical Psychopharmacology. 2, pp 244-268. 10.1037/1064-1297.2.3.244.
260 • Capítulo 12
uso alguma vez de determinada substância é muito maior do que a quele
que possui uma dependência ou desenvolve um uso problemático, tal
como sintetizado no quadro 4 (Anthony, Warner & Kessler, 1994). Em ter-
mos globais, estima-se que das 271 milhões de pessoas que fazem uso de
substância psicoativa anualmente, 35 milhões possuam alguma espécie de
uso prejudicial e necessitem de cuidado, ou seja, 12,91% de todos os usuá-
rios (UNODOC, 2019).
Mari, Jorge & Kohn (2006) indicam que em dois estudos, um multi-
cêntrico e outro na cidade de São Paulo, foram observados 1,4% de preva-
lência de abuso/dependência de drogas ilícitas durante a vida na população
brasileira; em relação específica ao álcool, esse número é de 8,1% a 6%; e em
relação à nicotina, de 23,6%. Quando comparadas aos transtornos mentais
(DSM-III) mais prevalentes na população em geral, como os transtornos de
ansiedade (17,6%), estados fóbicos (16,7%) e transtornos somato-dissocia-
tivos (8,1%), percebemos que as dependências despontaram entre os trans-
tornos mais prevalentes com uma frequência bem superior a outros tipos
de adoecimento, como os transtornos psicóticos (2%), estados depressivos
(2,8%) ou mania e ciclotimia (0,4%).
262 • Capítulo 12
Quadro 5. Frequência de uso e de indicação para Intervenção Breve na APS
Frequência do uso de drogas na vida entre usuários da Estratégia de
Saúde da Família, Rio de Janeiro, Brasil 2013/2014 (N=1031)
Substância Uso da droga na vida Frequência de aplicação
de Intervenção Breve
Álcool 70,7% 7,9%
Tabaco 46,4% 16,4%
Maconha 8,4% 1,2%
Hipnóticos 4,6% 1,4%
Cocaína/Crack 4,2% 0,9%
Anfetaminas 2,2% 0,3%
Opioides 1,0% 0,2%
Inalantes 0,9% 0,3%
Alucinógenos 0,3% N/A
264 • Capítulo 12
predispõem ao uso. Da mesma forma, dadas as alterações fisiológicas do
processo de envelhecimento, os próprios efeitos do álcool e outras drogas
são distintos no idoso, podendo ocasionar problemas mesmo quando em
pequenas quantidades (idem, 2017). Além disso, fatores genéticos e am-
bientais impactam diferentemente o uso de drogas por homens e mulheres,
sendo os fatores genéticos para uso, abuso e dependência mais importantes
para os primeiros, enquanto os ambientais exercem maior influência sobre
o padrão de uso das últimas.
Por fim, enfatiza-se a relevância de fatores como aculturação, pobreza
e migrações forçadas como determinantes de risco para o desenvolvimento
de padrões problemáticos de uso de substâncias: os indígenas da América
Central e América do Sul, embora conhecessem o uso ritual de bebidas al-
coólicas em seu contexto cultural antes do encontro com o “homem bran-
co”, não eram afetados, até onde se sabe, por problemas de dependência
(ibdem, 2017). Assim, os transtornos por uso de álcool que hoje acometem
essas populações devem ser lidos à luz da desconstrução de um ambiente
cultural de controle social (ibdem, 2017; Zinberg, 1984).
Outra contribuição fundamental ao aprimoramento do manejo clíni-
co dos TUS veio de Prochaska et al., que se dedicaram à compreensão do
processo de mudança de comportamentos-problema e da implementação
de hábitos de vida saudável. Revisitando dezenas de modelos teóricos da
Psicologia — cognitivo-comportamental, existencial/humanista, psicanáli-
se, gestalt/experiencial, entre outras — foram identificadas e incorporadas
as explicações que cada teoria dava aos processos de mudança produzidos
pelos sujeitos. Assim foi concebido, ao final da década de 1970, o Modelo
Transteórico de Mudança do Comportamento (MTT), cuja aplicação no
tratamento dos transtornos por uso de substâncias psicoativas vem sendo
avaliada (Prochaska, Diclemente & Norcross, 1992; Szupszynski & Da Silva
Oliveira, 2008).
O MTT fundamenta-se na percepção de que a mudança comporta-
mental é um processo (e não um evento único) ao longo do qual os indiví-
duos transitam por diversos estágios de motivação para a mudança, sendo
a alteração do comportamento-problema mais provável em determinados
momentos desse processo. Sendo ainda um modelo focado na tomada de
decisão do indivíduo, preconiza a necessidade de adequação das estratégias
terapêuticas ao estágio de motivação para mudança em que o sujeito se en-
contra, tornando possível um uso mais eficaz das intervenções. Em síntese,
as automudanças bem-sucedidas dependeriam da aplicação de estratégias
certas (processos) na hora certa (estágios) (Prochaska, Diclemente & Nor-
cross, 1992; Szupszynski & Da Silva Oliveira, 2008).
266 • Capítulo 12
de solucionar a ambivalência, extraindo do paciente as vantagens que o
próprio sujeito percebe em modificar seu comportamento, atuando como
um facilitador da mudança em vez de impô-la (Miller & Rollnick, 2001).
Quando os sujeitos que apenas contemplavam a mudança de seu pa-
drão de uso de qualquer substância transitam para o estágio de determi-
nação ou preparação para a mudança, duas modificações são observadas
em sua apresentação clínica: o foco do paciente passa a ser a resolução de
problemas, e sua visão da questão se orienta para o futuro, não mais para
o passado. Assim, o estágio de preparação é marcado pelo “planejamento”,
havendo maior conscientização do problema e elaboração cuidadosa de
um plano de ações orientadas para a mudança (Prochaska, Diclemente &
Norcross, 1994 apud Zupszynski & Da Silva Oliveira, 2008). Aqui, o profis-
sional que se ocupou de conhecer os determinantes biológicos, psíquicos e
sociais do comportamento de uso de cada um de seus pacientes será capaz
de favorecer a construção de um plano de ação individualizado e efetivo
para aquele sujeito, em vez de adotar uma conduta prescritiva e generali-
zante, na qual o paciente não se reconhece e à qual ele não adere.
Já o estágio de ação é aquele em que ocorre a modificação explícita dos
comportamentos-problema, ou seja, onde as mudanças no padrão de uso
de substâncias serão mais visíveis que nos estágios anteriores. Nesse mo-
mento, é fundamental que profissional e paciente atentem para não igualar
o estágio de ação ao sucesso de tratamento, sustentando a importância do
estágio seguinte — de manutenção — para o sucesso terapêutico. Nesse
último estágio, já tendo sido modificadas as formas de ação do sujeito rela-
tivas ao uso, têm-se como objetivo a consolidação do novo comportamen-
to, de modo a evitar lapsos e recaídas (Prochaska, Diclemente & Norcross,
1994 apud Zupszynski & Da Silva Oliveira, 2008).
De todo modo, é importante ter em mente que lapsos (episódios de
uso sem reinstalação do padrão anterior) e recaídas fazem parte do pro-
cesso de mudança, não devendo a sua ocorrência impactar a relação entre
o paciente e o profissional de saúde. Dessa forma, é fundamental que os
profissionais não moralizem a volta a padrões anteriores de uso, compre-
endendo seu contexto e reconhecendo o dinamismo do processo de mu-
dança. Há também, nesse estágio, objetivos específicos a serem buscados
no tratamento, sendo importante auxiliar o usuário a transitar novamente
pelos estágios motivacionais anteriores, retornando à ação logo que possí-
vel (Miller & Rollnick, 2001).
Em síntese, o profissional da APS deve ter em mente que, ao investigar
um TUS e ao formular um projeto terapêutico, é fundamental refinar a sua
avaliação clínica, indo além da identificação de um padrão problemático de
268 • Capítulo 12
DETERMINAÇÃO 1. Período em que a balança se 1. A principal tarefa já não é
inclina no sentido da motiva- motivar, mas adequar
ção para a mudança 2. Ajudar o paciente a encontrar
2. “Eu preciso fazer algo em uma estratégia de mudança
relação a isso”; “como posso que seja aceitável, acessível,
mudar?” adequada e eficazDefinir uma
3. Janela de oportunidade que linha de ação a ser seguida na
se abre durante certo período busca pela mudança
de tempo. O paciente tanto
pode seguir para a ação como
retornar à contemplação
AÇÃO 1. Paciente se engaja em ações 1. Produzir a mudança de
específicas para promover a comportamento em uma
mudança área-problema
2. Pode ocorrer dentro ou fora
de um contexto de tratamento
formal
MANUTENÇÃO 1. Ações efetivas para a mudança 1. Ajudar o paciente a identificar
do comportamento já foram e utilizar estratégias de pre-
tomadas e devem ser susten- venção de recaída
tadas
2. Podem ser necessárias habili-
dades distintas daquelas utili-
zadas para iniciar a mudança
RECAÍDA 1. Reinstalação do comporta- 1. Evitar desmoralização e imo-
mento-problema após ter bilismo
efetivado mudanças 2. Ajudar o paciente a renovar
2. Evento esperado na mudança os processos de contemplação,
de qualquer padrão comporta- determinação e ação
mental de longa duração
A intervenção clínica
270 • Capítulo 12
que motivar usuários de substâncias com comportamentos de baixo e mo-
derado risco a mudarem sua conduta de consumo, criando um vínculo entre
seus hábitos atuais de uso e os riscos/danos a ele associados. Especialmente
delineada para pessoas que não são dependentes de álcool ou de outras dro-
gas, mas que consomem tais substâncias de maneira perigosa ou danosa —
tanto em relação à saúde quanto sociais, legais, laborais e econômicos — a
IB tem sido apontada como eficaz na identificação de usuários com risco
baixo e moderado de uso, sendo influente na modificação dos seus hábitos,
possuindo a vantagem de poder ser aplicada não só por especialistas, mas
por qualquer profissional de saúde capacitado e treinado (ibdem, 2012).
Ao analisar-se o exposto, fica também evidente que uma das atri-
buições primordiais dos profissionais da APS no manejo de pacientes em
uso problemático de quaisquer drogas é a identificação daqueles casos
que podem ser adequadamente assistidos nesse ambiente de cuidado e o
encaminhamento precoce para os serviços especializados daqueles que de-
mandam intervenções mais intensivas (Brasil, 2004). Aqui, relembramos
que conforme os TUS evoluem em gravidade, mais intenso tende a ser o
comprometimento da condição geral do paciente e mais significativos os
prejuízos interpessoais e ocupacional decorrentes da persistência de um
padrão problemático de uso, e é a presença desses elementos que deve cha-
mar atenção do profissional da APS para que considere o encaminhamento
a serviços especializados.
Uma vez que a Atenção Primária se capacita para atender a demanda
dos usuários cujo padrão de uso de drogas não implica risco elevado, os
recursos especializados da RAPS ficam disponíveis para a abordagem das
situações mais complexas, que demandam habilidade clínica para atuação
em contextos de vida e ambientes peculiares (p. ex., usuários em situação
de rua, situação carcerária ou em cenas abertas de uso de drogas).
Redução de Danos
272 • Capítulo 12
ciados a esses quadros clínicos. Aqui, daremos destaque às comorbidades
psiquiátricas, uma vez que são condições comumente negligenciadas na
abordagem dos TUS (com alguns dados sugerindo que sejam abordadas
em apenas 12% dos casos) e cujo manejo inadequado impacta negativa-
mente o prognóstico clínico (Scheffer, Pasa & Almeida, 2010).
Scheffer, Pasa & Almeida (2010), ao tratar das comorbidades
psiquiátricas associadas ao uso de substâncias, lembram que os dados do
Epidemiologic Catchment Área Study (ECA) demonstram que cerca de
metade dos indivíduos diagnosticados com problemas relacionados ao uso
de álcool e outras substâncias apresentavam um diagnóstico psiquiátrico
adicional: 26% apresentam transtornos do humor, 28% transtorno de an-
siedade, 18% transtornos da personalidade antissocial e 7% esquizofrenia.
Os autores retomam, ainda, a importância de outros dados que apontam
para uma prevalência de depressão maior entre dependentes químicos va-
riando de 30% a 50%, bem como resultados que sugerem que os transtorno
de humor e de ansiedade — de altíssima prevalência no contexto da Aten-
ção Primária — seriam os mais prevalentes nessa população, especialmente
em pacientes do sexo feminino.
Assim, sugere-se que, a busca por uma atenção integral à saúde em
casos de usos problemáticos de quaisquer substâncias, seja orientada por
uma compreensão biopsicossocial do fenômeno e considere: a combinação
específica da comorbidade clínica ou psiquiátrica com o estágio de moti-
vação ao escolher o melhor método de tratamento; a necessidade do uso
de farmacoterapia para o tratamento do transtorno psiquiátrico, desinto-
xicação e fase inicial de recuperação; o uso de técnicas psicossociais para
aumentar a motivação, auxiliar na resolução de problemas ambientais e no
manejo de situações difíceis; o fornecimento de apoio familiar e informa-
ção sobre tratamento adicional de apoio; o tratamento psiquiátrico para o
controle de sintomas psicóticos, depressivos e de mania, com ou sem risco
de suicídio (idem, 2010). A isso ainda adicionaríamos uma atenção espe-
cial às estratégias de Redução de Danos, ainda muitas vezes esquecidas.
Conclusão
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278 • Capítulo 12
Parte III
Capítulo 13
Formação de estudantes para uma Clínica
Ampliada e Compartilhada: contribuições dos
Grupos Balint-Paideia
Duas histórias
282 • Capítulo 13
O material utilizado para este capítulo faz parte de uma pesquisa-ação
que teve como objetivo analisar os efeitos dos GBP na formação de estu-
dantes de medicina para a Atenção Primária à Saúde. Os preceitos éticos da
pesquisa com seres humanos foram obedecidos. Todos os participantes dos
GBP assinaram o termo de Consentimento Livre e Esclarecido, aprovado
pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Uberlândia sob o número
CAAE 00849118.0.3001.5152.
Thomé: ver para crer
284 • Capítulo 13
Posteriormente, o genograma e ecomapa realizado com Thomé e seus fami-
liares foi apresentado: ele trabalha na construção, é casado com Lúcia, tem
três filhos com quem tem boa relação e vínculos com amigos e parentes que ele
sempre visita. Durante as visitas domiciliares, ao conhecer um pouco o mun-
do de Thomé, as alunas pensaram em dialogar com ele por meio da metáfora
da construção “só você vai saber colocar o piso”, porque esse era universo de
trabalho do senhor Thomé. Assim, tentaram aproximar a linguagem delas à
realidade dele.
286 • Capítulo 13
no caso de Thomé que acordava cedo e logo saía para trabalhar, retornando
para casa apenas no fim do dia.
Após compromissos firmados com Thomé, como o de que ele iria medir a gli-
cemia capilar antes de aplicar insulina, percebeu-se, em um retorno, que ele
não havia cumprido com o combinado. Em um ato de apelo das estudantes se
utilizaram da técnica do medo: “Você pode morrer, é uma coisa muito grave”.
Uma das internas que apresentava o caso acreditava que seria efetivo o terror
quando a pessoa está em risco, mas notou que não é simples assim: juntamen-
te com os participantes do GBP pensou que essa estratégia dependia do perfil
da pessoa e que funcionava mais encontrar a motivação de vida do sujeito. O
consenso era que deveriam alcançar o ponto que dá sentido à pessoa realizar
o autocuidado.
A discussão no grupo girou em torno de questões sobre até onde investir num
paciente resistente, surgindo falas dos estudantes como: “Não é fácil cuidar
de quem não quer ser cuidado”, “às vezes sentimos raiva”, “sensação de im-
potência”, e “temos que gerir até onde investir”. A reflexão abordou a insufi-
ciência da técnica e a potência de aprender manejos diferentes para pessoas
288 • Capítulo 13
mudança viram como avanço considerável. Mesmo assim ele continuou não
indo muito à Unidade de Saúde. No entanto, todos os presentes no GBP acre-
ditam que houve um aumento da credibilidade de Thomé, que precisa ver/
viver para crer nos serviços e nos conhecimentos da atenção básica de saúde.
290 • Capítulo 13
a interrelações com sua doença de base. A frase “Era mais fácil encontrá-lo
no boteco que na UBS se cuidando” atraiu as interações do GBP no senti-
do de um estereótipo que justificasse o senso do paciente-problema, o que
desencadeou intenções de práticas de Educação em Saúde e o desenvolvi-
mento do caso com propostas de ações benevolentes e magnânimas das
internas. No entanto, na reapresentação a dupla trouxe uma mudança: uma
diminuição importante no consumo diário de cerveja, associado a uma
compreensão de Thomé de que a melhora de seu quadro clínico solicitava
algum esforço pessoal. A dupla havia timidamente falado no GBP sobre
a postura redutora que adotaram ao ver a resistência de Thomé a tantas
orientações. O resultado foi transformador tanto para Thomé quanto para
as estudantes, pois a adesão a um manejo próprio da Redução de Danos
produziu autonomia e benefícios para o paciente, mantendo as premissas
de uma clínica compartilhada.
A discussão sobre Redução de Danos e o trabalho dos futuros médi-
cos no SUS surgiu também em outra experiência relatada, a do casal ligado
ao movimento “Malucos de Estrada”, Alísio e Mariele, sendo ela gestante e
ambos usuários de substâncias psicoativas.
292 • Capítulo 13
Uma aprendizagem significativa se apresenta nesse relato, em uma
perspectiva correlata à da Educação Popular: a dupla mantendo a postura
da clínica ampliada realizou uma escuta atenta a fim de conhecer o modo de
vida que gerava tanto “estranhamento”. A experiência com o novo estimu-
lou os estudantes a ultrapassarem barreiras, estereótipos e saberes prévios,
gerando uma tensão que possibilita a ampliação de seus conhecimentos
(Campos, Cunha & Figueiredo, 2013). Ao sair desse encontro, aprenderam
algo novo sobre as multiplicidades de organizações de vida.
294 • Capítulo 13
com a expressão de problemas sociais e subjetivos, com família e com co-
munidade” (Brasil, 2010, p. 17).
São necessários também arranjos institucionais que deem suporte
para os profissionais de saúde. Ao se reconhecer a subjetividade das relações
entre profissionais de saúde e usuários, é preciso que haja um espaço para
lidar com o sofrimento, a dor e o medo que o próprio trabalho pode trazer,
tirando o profissional da sensação de falsa proteção que a c línica reduzida
(protocolar) pode oferecer (Campos, Cunha & Figueiredo, 2013).
Pela vivência dos estudantes e dos docentes na rede de saúde do mu-
nicípio onde ocorreu o caso dos Malucos de Estrada, sabe-se que os profis-
sionais da Equipe de Saúde da Família não dispunham destes espaços insti-
tucionalizados. Já os estudantes podiam contar com ambientes protegidos
ondes era possível falar sobre suas dificuldades e aprender a lidar com elas
(os grupos Balint-Paideia).
Nos GBP os estudantes oscilaram entre o movimento de ampliar o
cuidado e reproduzir o preconceito, sendo que em diversos momentos re-
conheciam o preconceito mais nos outros do que neles próprios. Perce-
be-se que houve um exercício constante dos alunos confrontarem-se com
seus próprios saberes, abrindo espaços para trabalhar (mesmo que timida-
mente) com as dimensões do afeto, resultando na ampliação da visão sobre
o caso e na capacidade de singularização das pessoas.
296 • Capítulo 13
Uma das explicações para a manutenção das diferenças sociais é o
pensamento essencialista, que racionaliza essas diferenças e facilita a ex-
pressão de juízos negativos sobre os grupos, reforçando o racismo, a discri-
minação social e o preconceito (Pereira et al., 2011).
298 • Capítulo 13
Entretanto, no contexto prático, os processos e as interações culturais
são similares aos dilemas da saúde de populações migrantes e refugiados,
que hoje são profundamente discutidos na saúde coletiva em vários países
(Scheppers et al., 2006).
No Brasil, a situação haitiana, os imigrantes bolivianos em São Paulo,
a questão Venezuela em Roraima e os refugiados sírios são algumas das
expressões de grupos culturais atípicos e de recente contato que, como na
história dos Malucos, modificam o status quo da prática em saúde e da
capacidade dos profissionais em interagir e amalgamar a conhecimentos e
práticas.
Considerações finais
300 • Capítulo 13
diversos momentos, tentam romper com essa lógica. Tentaram se manter
abertos a novos saberes e em como lidar com o novo e inesperado para eles.
Entretanto, em diversos momentos apareceram falas que demons-
travam como que, inconscientemente, os estudantes incorporaram alguns
discursos semelhantes ao da equipe em relação aos seus sentimentos pelos
usuários, conseguindo identificá-los durante as reflexões nos GBP. Um mo-
mento que isso ficou bem claro foi quando um estudante, que fazia o es-
tágio na unidade de referência do Thomé (mas que não estava responsável
por esse PTS) relata sobre o caso incorporando na fala todos os estigmas
que a equipe havia dado para ao paciente índice (“difícil”, “tigrão”, “impos-
sível de fazer que ele siga qualquer orientação”). Como as equipes não con-
seguiam se organizar para ter espaços de roda, percebe-se que as reflexões
sobre prática ocorreram principalmente nos GBP ou nas intervenções dos
docentes durante supervisão in loco nas UBS.
Os GBP têm como estratégia central a discussão de caso, exatamente
para instigar a reflexão sobre a prática. Isso permite ir além da metodologia
clássica de discussão teórica, pois permite a valorização da potência dos
sujeitos e a possibilidade de fazer clínica centrada na pessoa, encarando-a
como ser social e como agente transformador da realidade (no caso, de si
mesmos e das instituições onde estão inseridos). A inserção da proposta
de Balint permitiu falas mais livres e atenção aos aspectos subjetivos das
relações institucionais e humanas que se desenhavam com o grupo. Dessa
forma os alunos se viam inteiros e complexos assim como aquelas famílias
para as quais dirigiam a atenção.
Diante da apresentação destas experiências ressaltamos a importân-
cia dos Grupos Balint-Paideia como estratégia pedagógica na formação de
futuros médicos. Em razão de suas características realísticas e reflexivas, o
método influi em aprendizado prático, crítico e autocrítico, sobretudo re-
lacionado a habilidades ampliadas dos campos e práticas em saúde. Desse
modo, o incremento da formação, com amplitude e potencialidade, agrega
percepções interdisciplinares, humanistas, sociais e integrais à prática dos
estudantes, no sentido das expectativas para as novas gerações de profissio-
nais da saúde.
Referências
302 • Capítulo 13
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304 • Capítulo 14
ga de doença que consiste em: 1) uma agenda não concluída de casos de
infecções, desnutrição e problemas de saúde reprodutiva; 2) o desafio das
doenças crônicas e de seus fatores de risco — tabagismo, obesidade, estres-
se, alimentação inadequada; e 3) o forte crescimento da violência e das cau-
sas externas. Agrava a situação a predominância de um modelo de atenção
à saúde ainda fragmentado, episódico, reativo e voltado prioritariamente
para condições e eventos agudos (Mendes, 2012). Os Determinantes Sociais
de Saúde, a desigualdade social e econômica afeta diretamente esse proces-
so de transformação e são um grande desafio para o sistema de saúde.
Dentro deste desafio para o Sistema de saúde, há que se considerar
também que as transformações socioeconômicas, culturais e políticas mo-
dificaram as formas como a população conduz sua vida, refletindo direta-
mente na alteração dos padrões de adoecimento com nítido aumento das
condições crônicas de saúde (Cunha & Souza, 2017). Esse cenário traz à
tona a necessidade de os serviços de saúde se organizarem para o cuidado
das pessoas portadoras de condições crônicas não transmissíveis (CCNT),
tais como hipertensão e diabetes.
Silveira & Ribeiro (2005) destacam que o tratamento do paciente por-
tador de doença crônica diferencia-se, e muito, daquele às condições agu-
das, pois precisa prever estratégias que propiciem a adaptação da pessoa
a uma nova condição permanente, de maneira que ela possa desenvolver
estratégias próprias de manejar a vida, prevenindo complicações e agravos.
Para as condições crônicas, segundo as autoras, trata-se de diferenciar entre
adesão ao tratamento (manejo da vida) e ao medicamento.
A adesão ao tratamento requer apoio aos pacientes para aprende-
rem a conviver com a doença, o que por sua vez, só é possível baseado
na produção de vínculos afetivos e efetivos entre usuário e profissional da
saúde e na construção de espaços dialógicos para a discussão (Silveira &
Ribeiro, 2005).
A literatura científica tem demonstrado que os países com serviços de
saúde que estruturam seus modelos de atenção com base em uma Atenção
Primária à Saúde forte e resolutiva têm maiores chances de efetuar o cui-
dado integral aos pacientes portadores CCNT e com resultados sanitários
melhores (Starfield, 2002). No entanto, para isso há necessidade de apri-
morar o modelo de atenção. É importante ampliar o cardápio de ofertas,
trabalhar com clínica ampliada, não se restringir ao combate ou controle da
doença, mas também aplicar-se em promover saúde e fortalecer os sujeitos
individuais e coletivos, respeitando as singularidades (Campos, 2013).
Na Atenção Primária brasileira, os grupos têm configurado uma ofer-
ta recorrente de cuidado para os portadores de CCNT. Assim, o presente
306 • Capítulo 14
e do envolvimento mútuo de seus integrantes, pode-se dizer que, em geral,
essas iniciativas das equipes nem sempre conseguem efetuar essa passa-
gem, pois a grupalidade produzida é muito limitada.
Misturam-se exposições dos profissionais no formato de aulas com
procedimentos seriados, realizados de forma pública (coleta e avaliação de
exames, partes de exame físico etc). A organização deste tipo de grupo,
muitas vezes, está centrada na busca e atualização de parâmetros bioló-
gicos, assim como no monitoramento de certa quantidade de consultas e
exames anuais, supostamente necessários para cada “grupo de risco”. Bus-
cam informar exaustivamente o ponto de vista biomédico a respeito das
doenças e reforçar cronicamente as recomendações quanto aos hábitos e
parâmetros a serem buscados e evitados pelos usuários.
Muito provavelmente, aqueles que têm mais disposição e disponibili-
dade para participação regular neste tipo de atividade grupal, conseguem
se tornar mais visíveis no serviço de saúde e, por vezes, passam a se motivar
ao autocuidado a partir desse tipo de oferta grupal. Também podem se be-
neficiar aqueles cuja relação com o adoecimento não é perturbada pela fo-
calização nos parâmetros biológicos e que não necessitam de apoio profis-
sional para compreender e lidar com o conjunto de variáveis que costumam
interferir no resultado final do enfrentamento de um problema de saúde.
No entanto, a maior parte das doenças crônicas requer um vínculo
terapêutico positivo com a equipe de saúde, possibilidades de compreensão
da complexidade do adoecimento e construção compartilhada de proje-
tos terapêuticos singulares adequados a cada pessoa, momento e situação
(Silveira & Ribeiro, 2005). Trata-se, para as condições crônicas, de retirar
o usuário da condição de passividade e estimular sua assunção ao papel de
Sujeito protagonista da própria história e cuidado de si (Freire, 2014).
Além disto, os projetos terapêuticos também ganham eficácia quando
são negociados com os pacientes, articulados na rede de saúde e com os
seus trabalhadores. Por outro lado, costumam ser menos eficazes as estra-
tégias que pouco consideram os pacientes como coprodutores de sua saú-
de, valorizam excessivamente fatores biológicos e determinantes orgânicos
desconsiderando a subjetividade como um fator particular que influencia a
coprodução da saúde (Campos, 2006).
308 • Capítulo 14
Analisando o plano gerencial que se estabeleceu, pudemos observar
que o trabalho em equipe mostra-se bem-sucedido quando há: (1) clareza
para a equipe de que o resultado do trabalho em cooperação é melhor do
que o trabalho individualizado e fragmentado; (2) percepção de que exis-
tem mecanismos (às vezes sutis) que promovem a competição entre traba-
lhadores e conduzem à menor eficácia e maior desgaste; (3) reconhecimen-
to que todos os diferentes trabalhadores e suas habilidades são necessários
e importantes (de diferentes modos e pesos a cada momento e em cada
situação singular); (4) compreensão que políticas, programas e protocolos
a respeito de determinados problemas de saúde são importantes e necessá-
rios, porém não suficientes para garantir um cuidado adequado.
Foi neste contexto de retomada do trabalho em equipe que se iniciou
o processo de planejamento da reestruturação dos grupos de hipertensos
e diabéticos.
Para a elaboração da proposta, a equipe levou em consideração as
recomendações contidas no Caderno de Atenção Básica “Caderno 35: es-
tratégias para o cuidado da pessoa com doença crônica” (Brasil, 2014) e
realizou oficinas com os trabalhadores envolvidos, na lógica da Educação
Permanente em Serviço (Brasil, 2004), tendo como pressuposto a aprendi-
zagem no trabalho, o aprender e o ensinar incorporados ao cotidiano das
organizações e do processo de trabalho.
O desafio consistia em construir uma proposta de grupo pensando
no paciente como um ser único, com uma singularidade que o diferen-
cia do diagnóstico (“hipertenso”, “diabético”). Assim, surge a proposta do
Grupo de Autocuidado Apoiado, buscando apostar nos “pacientes” como
sujeitos e protagonistas de seu cuidado para que construíssem ações que
fizessem sentido em sua vida. Em outras palavras, dentro da concepção da
pedagogia da autonomia, estruturar um grupo centrado em experiências
estimuladoras da decisão, da responsabilidade e da liberdade respeitosa
(Freire, 2014).
Além da pedagogia da autonomia, outra contribuição teórica foram
os Grupos Operativos, que, segundo Pichon-Rivière (1998), podem ser de-
finidos como um conjunto de pessoas reunidas por constantes de tempo
e espaço, articuladas por sua mútua representação interna, que se propõe,
implícita ou explicitamente, uma tarefa que constitui sua finalidade (Pi-
chon-Rivière, 1998). Nesse tipo de grupo, ocorre atividade centrada na
mobilização de estruturas estereotipadas, nas dificuldades de aprendiza-
gem e de comunicação, trabalhando no coletivo a ansiedade despertada
pelas mudanças necessárias.
310 • Capítulo 14
estruturados compartilhados entre a equipe multiprofissional que opera
no processo de trabalho em saúde; seriam os protocolos de Hipertensos e
Diabéticos traduzidos para as práticas de saúde pelo olhar de cada uma das
equipes. Como tecnologias duras, teríamos os materiais e equipamentos
utilizados para a realização do grupo e as estruturas organizacionais, tais
como balança para verificação de peso e altura para cálculo de Índice de
Massa Corpórea, fita métrica para verificação de circunferência abdomi-
nal, caixa com fichas organizadas por equipe para cadastrar os pacientes,
esfigmomanômetro para aferição de pressão arterial e glicosímetro para
verificação de glicemia capilar, utilizadas ao término do Grupo.
Assim, a partir de outubro de 2018 os pacientes classificados como
hipertensos ou diabéticos, provenientes de vários segmentos do serviço de
saúde (pacientes que buscavam agendamento tanto na rotina quanto na
urgência; pacientes que buscavam aferição da pressão arterial e glicemia;
pacientes provenientes de consultas médicas e de enfermagem; pacientes
oriundos de outros grupos educativos), passaram a ser convidados para
participar do Grupo de Autocuidado Apoiado (GAA). Aqui se destaca uma
importante diferença em relação aos grupos de HiperDia mais frequentes.
O encaminhamento ocorria predominantemente associado ao momento
em que havia uma procura do serviço de saúde (muitas vezes com uma
queixa). Existe, dessa forma, uma motivação muito maior de estar no gru-
po para esse usuário do que para aquele que é cronicamente convidado ou
convocado a participar, como parte do tratamento já instituído, e muitas
vezes insatisfatório.
312 • Capítulo 14
renovamos as receitas, apoiamos a compreensão da indicação de cada me-
dicação e a efetividade da tomada da medicação, pedimos um retorno da
discussão e pactuamos metas a serem alcançadas para o próximo encontro;
:: Segundo encontro: Avaliamos os exames coletados, checamos se o
usuário passou em consulta com oftalmologista; avaliamos o cumprimento
da meta proposta; reformulamos novas metas a serem alcançadas e avalia-
mos a necessidade de passar em consultas individuais. Quando identifica-
mos falha no processo, os casos são encaminhados para gestão de caso da
equipe, que como conduta poderá optar por atendimentos com técnico de
enfermagem, enfermeiro, médico ou psicólogo e realização de visita domi-
ciliar para avaliação da dinâmica familiar e social.
Os encontros subsequentes são livres para que os pacientes venham
quando sentirem necessidade de suporte na manutenção de seu cuidado.
O grupo trabalha com 15 pacientes agendados para primeiro atendimento
e retorno.
No retorno ao grupo, ajudamos na identificação dos benefícios e va-
lorização do que está funcionando, auxiliamos no reconhecimento das si-
tuações de risco e na construção conjunta de estratégias de enfrentamento
das “dificuldades”. Quando elas são identificadas por outros setores da UBS,
somos acionados e se realiza busca ativa dos pacientes com dificuldades.
Avaliamos em conjunto a melhor forma para prevenir e/ou lidar com fu-
turas situações.
Em “alguns casos”, a equipe compreende que necessita do envolvi-
mento da equipe de referência ampliada e eles são encaminhados para dis-
cussão em reunião de equipe para que seja realizada a gestão do caso. Nesse
momento ocorre um processo cooperativo entre os profissionais que estão
na gestão do caso, o paciente e sua família. Os objetivos são propiciar aten-
ção de qualidade, humanizada, diminuir a fragmentação da atenção à saú-
de, aumentar a capacidade funcional e preservar a autonomia individual e
familiar. O GAA busca construir uma atuação integrada com a UBS.
Resultados da experiência
314 • Capítulo 14
A diminuição das urgências pode ser explicada pela própria observa-
ção que se tem dos pacientes, pois eles já se mostram conscientes das razões
para a utilização de tecnologias duras, trazendo para os profissionais sua
pressão aferida e anotada, o mapa de glicemia quando solicitado, os exames
laboratoriais e o eletrocardiograma (ECG), bem como a contrarreferência
do exame de fundo de olho para que seja arquivado em seu prontuário.
Com o grupo, os pacientes passaram a se envolver mais nas decisões
individuais e grupais, aprenderam a compartilhar suas dúvidas, seus medos
e adquiriram mais conhecimento sobre o processo de adoecimento, o que
levou a reflexões sobre o que cada um pode fazer para evitar as complica-
ções advindas da hipertensão e do diabetes. Também verificamos um nú-
mero maior de participantes que mudaram de hábitos pelo conhecimento
e a experiência vivida no grupo, diferente das mudanças que costumam
ocorrer pelo medo.
Um aspecto que se destacou na atividade grupal foi entender que uma
chave para o autocuidado é a compreensão do paciente e sua família de
que existe uma correlação entre o seu bem-estar e a manutenção dos níveis
pressóricos e glicêmicos. E que esses parâmetros são sensíveis às ações e
escolhas dos participantes, como a prática regular de atividade física e os
cuidados com a alimentação.
Não apenas os usuários, mas também os trabalhadores envolvidos no
grupo, ao longo da realização das atividades educativas, relataram mudan-
ças em seu autocuidado, buscando hábitos de vida mais saudáveis, redu-
zindo consumo de alimentos processados e procurando vincularem-se aos
demais grupos de educação em saúde da Unidade para apropriação maior
dos temas a serem abordados nos grupos de autocuidado.
Apresentamos a seguir alguns exemplos de casos emblemáticos que
ilustram o cuidado integral proporcionado pelo grupo e os resultados iden-
tificados.
“Um casal participante do grupo, o homem com 72 anos, diabético,
insulinodependente há 15 anos em uso de hipoglicemiantes e a mulher, 70
anos, hipertensa, obesa e com dislipidemia e diagnóstico recente de hiper-
tensão arterial. Estiveram juntos no GAA desde a primeira vez. Fizeram
anotações e participaram de forma ativa da discussão. No encontro sub-
sequente, após um mês, o homem retornou com um “dossiê de sua saúde”,
intitulado assim, por ele, no qual em folhas encadernadas anotou informa-
ções que julgava importante passar para outros pacientes e também iniciou
um mapeamento da sua glicemia para apresentar para o médico, uma vez
que iniciou com episódios de hipoglicemia decorrentes das mudanças nos
seus hábitos alimentares. A mulher por sua vez, conseguiu emagrecer o
Considerações finais
316 • Capítulo 14
atuação profissional e o grau de corresponsabilização do cuidado da saúde
do indivíduo. Embora pareça um fato óbvio, é necessário reafirmá-lo: com
o grupo, ficou evidente que a compreensão dos problemas de saúde e mu-
danças no autocuidado não se acontecem por imposição de tratamentos,
ameaças e restrições. Sobre esse aspecto, foram contribuições valiosas os
estudos realizados durante o processo de Educação Permanente sobre as
práticas assistenciais aos portadores de CCNT pautados em modelos de
atenção com base em experiências próprias dos pacientes.
Para o sucesso do grupo, também se mostrou fundamental que o tra-
balho da equipe seja multidisciplinar, pois assim se garante a valorização de
outros conhecimentos e de um espectro mais amplo de recursos envolvido
no cuidado integral aos usuários. O cuidado aos portadores de CCNT que
antes estava pautada na relação hierárquica de trabalho convencional, com
forte domínio médico, foi substituído, com a formulação do grupo, por
relações mais horizontais, já que cada membro da equipe foi valorizado na
sua capacidade de prestar cuidados significativos e imprescindíveis para a
melhoria da saúde dos portadores de condições crônicas.
Destacamos a seguir alguns aspectos da dinâmica do GAA que con-
tribuíram de forma mais decisiva para o resultado final, para que possam
ser empregados na construção do GAA em outras Unidades e em outros
contextos da saúde:
a) Critério de acesso ao grupo pautado no diagnóstico de dificulda-
des com o autocuidado, feito por qualquer profissional da Unida-
de. A atividade grupal deve ter um sentido concreto e imediato
para os usuários;
b) Constituição de espaços coletivos mais democráticos para a dis-
cussão da equipe sobre o grupo, a fim de compreender melhor
os problemas, aprender com novas experiências e lidar com a di-
mensão afetiva do trabalho em saúde;
c) Estimular e permitir que os profissionais tenham acesso a novos
conteúdos teóricos e que possam conhecer e experimentar criti-
camente mudanças no processo de trabalho e na gestão;
d) O GAA não deve estar isolado de outras atividades na UBS. Ao
contrário, deve estar integrado tão intimamente à rotina da Uni-
dade de modo que o grupo se torne um recurso de todos os pro-
fissionais. Dessa forma, os objetivos do grupo e o seu modo de
lidar com os usuários podem influenciar também outras práticas
clínicas na UBS;
e) O trabalho multidisciplinar constitui pré-requisito para a orga-
nização do GAA. Na experiência aqui relatada, o GAA iniciou
Referências
318 • Capítulo 14
MILLER, W. R. & ROLLNICK, S. Entrevista Motivacional: Preparando as pessoas
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ZIMERMAN, D. E. & OSÓRIO, L. C. Como trabalhamos com grupos. Porto Ale-
gre: Artes Médicas, 1997.
Este era um dos sonhos de uma menina do interior que desejava cha-
mar-se Rosa: “Bailarina é ter a alma de uma flor”. Viver na ponta do pé é
o movimento de erguer e descer, equilíbrio e desequilíbrio, em um treino
exaustivo. Analogicamente, a vida de Rosa é uma exaustão entre erguer-se/
descer; equilibrar-se/desequilibrar. Aos 15 anos, alguns de seus comporta-
mentos começaram a desafinar, afetando o arranjo dos seus sentimentos;
das suas características intrínsecas como a liberdade, a intensidade, a viva-
cidade, o contato consigo, com o seu coração, foram se transformando em
um desarranjo sem maestro para orquestrar o emaranhado de sensações.
320 • Capítulo 15
Cisão entre mente e corpo; pensamento e ação. Rosa foi diagnosticada com
esquizofrenia. A menina de bom convívio social, elogiada e reconhecida na
escola, havia mudado, causando estranheza em casa, passara a apresentar
um isolamento notável. A perda dos avós maternos, referência de afeto e
de cuidados, e o distanciamento dos familiares nucleares (mãe, padrasto
e irmã) podem ter exaltado os sintomas, mas Rosa era resistente à ajuda
médica procurada por sua mãe, Luana.
Com o desejo de sentir novamente a liberdade, vivacidade, encontrar-
-se, fugiu de casa várias vezes. Na primeira “viagem” aos 16 anos, ao estado
do Rio de Janeiro, ficou por três anos com uma nova família, família essa
que não tinha nenhuma relação anterior com Rosa ou Luana, dificultando
o contato. Suas idas sempre foram para lugares sem conexão com sua vida
anterior ou família. Em seus retornos, permanecia por pouco tempo com
a família e novamente se ia, sem dar informações à mãe, ao mesmo tem-
po em que ela não realizava nenhum movimento em busca da filha, cogi-
tando em alguns momentos a morte dela por não ter informações. Nesses
momentos em que esteve fora, Rosa, vivendo pelas ruas, percorreu muitas
cidades e estados, sobretudo as praias das quais mantém memória e desejos
vívidos de retornar, mas sempre sem acessar qualquer serviço de saúde.
O distanciamento afetivo de Luana da filha parecia evidente. Aos 25
anos, Rosa retorna à casa da mãe, permanecendo por seis meses até a pró-
xima fuga em busca de si mesma. A última fuga durou cinco anos. Foi
encontrada em um hospital após um atropelamento em Minas Gerais, a
notícia chegou à mãe por meio de uma publicação nas redes sociais. Dias
após o atropelamento, foi achada à beira de um canavial e ficou internada
por quatro meses, sendo cuidada apenas da parte orgânica e novamente
privada do acesso aos cuidados em saúde mental. Até hoje carrega a ferida
aberta na perna como “cicatriz” do atropelamento.
Miscelânea da menina alma de bailarina com a menina radical. Ra-
dical não apenas por usar o skate várias vezes como seu meio de locomo-
ção nas fugas, mas radical nos sentimentos manifestos pelas pessoas ao seu
redor, de exaltar-se, ressaltar-se, evidenciar-se, desmedir-se, exagerar-se,
exceder-se. Assim transcendia a confusão e o emaranhado dentro de si.
Passos embalados por um fundo musical com várias vozes, nem sempre
afinadas, agradáveis e harmônicas; arranjos imaginários, misturados e in-
compatíveis com a realidade das demais pessoas. Assim, a piora do quadro
psiquiátrico se tornou evidente: pensamentos delirantes, negativos e sui-
cidas; alucinações visuais, auditivas; paranoias; isolamento social e fami-
liar, sendo perceptível à mãe como a figura com quem tinha uma relação
conturbada.
322 • Capítulo 15
Rosa concordou. Inicialmente ficou desconfiada, perguntou sobre o crachá
usado pela profissional; a terapeuta ocupacional afirmou ser profissional da
saúde, do “posto de saúde” do seu território e a motivação em conhecê-la
decorrera de indicação da equipe do posto de saúde, estavam preocupa-
dos com ela, justificando, assim, o motivo de sua visita. Rosa ficou mais
tranquila, contou sobre alguns delírios de sequestro pela mãe, que a man-
teria em cárcere privado e tentaria envenená-la. Mostrou para Manoela al-
gumas poesias e recortes que fazia e pediu algumas coisas que gostaria de
ter. Falou que não tinha mais nome, que tudo lhe fora roubado e pediu para
que fosse chamada por um novo nome, Rosa, e concordou com o retorno
da profissional, ficando combinado um próximo encontro.
Dessa maneira, iniciou-se um acompanhamento mais frequente para
estabelecimento e fortalecimento de vínculo e relação de confiança com
Rosa e sua família. Durante esses encontros, foram levados materiais pela
terapeuta, a partir dos pedidos de Rosa e algumas produções foram cons-
truídas com a usuária. Também, foi conversado sobre a oferta de Acompa-
nhamento Terapêutico (AT) como dispositivo de atendimento, ampliando
a possibilidade de ocupar outros espaços da casa e realizar saídas para com-
pras de alimentos, visto que Rosa recusava-se a receber a alimentação ofer-
tada por sua mãe, mas vinha aceitando receber os produtos procedentes da
terapeuta ocupacional.
Nessa visita, Manoela também conheceu Luana, a mãe, que tentou
diversas vezes participar do atendimento que ocorria à sua filha, mesmo
após orientação dos profissionais sobre a necessidade de separar a escu-
ta de ambas. A mãe era muito invasiva e a equipe se questionou se esse
comportamento contribuía para o quadro persecutório da filha. Após esse
encontro, acordou-se que as visitas seriam semanais. Foi pactuado que a
psicóloga, Júlia, iniciaria os atendimentos à mãe, enquanto Manoela ficaria
como profissional de referência para Rosa.
A postura profissional adotada pelas profissionais foi de observar as
recomendações sugeridas por Miranda (2009), procurando dar suporte às
ilogicidades de Rosa e a acolher de maneira que ela conseguisse se apresen-
tar, respeitando o modo como ela vivia suas agonias. Ou seja, uma postura
que buscava se adaptar ao ritmo psicossomático de Rosa e às suas necessi-
dades emocionais primitivas.
O analista Winnicott (1994) indica a importância do trabalho “não
interpretativo” e aponta que a psicanálise é, antes de tudo, o fornecimen-
to de um contexto profissional para o desenvolvimento da confiança, que
requer a capacidade do profissional para a vivência de “identificações cru-
zadas”, ou seja, a capacidade para se colocar no lugar do outro e permitir o
324 • Capítulo 15
Investimento no cuidado da família
e construção de redes de apoio
326 • Capítulo 15
Buscaram-se novos movimentos institucionais com a secretaria e
houve uma nova mobilização dos serviços e reaproximação para articula-
ção com a RAPS, assim, o caso foi discutido com profissionais de todos os
serviços envolvidos — UBS, CAPS, Hospital e Secretaria de Saúde — no
final, Rosa foi internada no hospital geral do município de sua residência.
Segundo Delfini et al. (2009), as equipes devem possibilitar ações in-
tegradas, formando uma atuação mais completa, na qual cada equipe possa
ora ser responsável direta pelo cuidado ou ação produzida, ora correspon-
sável, na tentativa de construir o caso clínico a partir das vivências, in-
tervenções, experiências e diferentes olhares dos vários serviços e equipes.
Esses autores apontam para a importância da responsabilidade comparti-
lhada no cuidado dos casos de saúde mental, cujo objetivo é proporcionar
um atendimento singularizado e personalizado, possibilitando que as equi-
pes acompanhem melhor, no tempo, o processo saúde-enfermidade-inter-
venção de cada usuário.
A corresponsabilização dos casos entre as equipes pretende aumentar
a capacidade resolutiva de problemas de saúde pela equipe que recebe o
caso, sem necessitar recorrer frequentemente a outros serviços. Sendo as-
sim, estabelecem-se intervenções, encontros, articulações, transferências,
circulação de saberes e acontecimentos na atenção ao sujeito atendido. Os
conceitos discutidos nortearam o trabalho cotidiano, não apenas como
uma referência para os técnicos de saúde mental, mas como ferramentas
para todos os sujeitos envolvidos na construção de um saber coletivo e de
uma prática mais rica de possibilidades (idem, 2009). Esses novos arranjos
devem ser transversais, a fim de produzir e estimular padrões de relação
que perpassem todos os trabalhadores e usuários, favorecendo a troca de
informações e a ampliação do compromisso dos profissionais com a pro-
dução de saúde.
No primeiro atendimento feito por Manoela a Rosa no hospital geral,
ela estava sonolenta, com dificuldades em sentar-se e para conversar. Na
noite anterior, a equipe fez uma contenção química após Rosa ficar agitada
depois de realizar avaliação ortopédica.
Foi discutido, novamente com todos os envolvidos, manejos para que
as intervenções não fossem recebidas como violência; ponderou-se a neces-
sidade de estender o tempo de internação, dado que a complexidade reque-
ria articulações e tempo para sustentar e viabilizar o cuidado em casa, visto
que o hospital daria alta com menos de uma semana por não ter indicação
clínica de permanência maior, pois durante a internação estava aceitan-
do alimentação e medicação. A falta de uma enfermaria de saúde mental
nesse hospital, único do SUS no município, funcionava como argumento
328 • Capítulo 15
O Resgate da subjetividade: adaptação ou autonomia?
330 • Capítulo 15
da eSF realizou VD e após averificação da infecção decorrente do acidente
sofrido anos atrás, Rosa concordou e aderiu ao tratamento medicamentoso
via oral, conforme observado pelo médico na VD seguinte. No entanto, ao
contrário da percepção do médico, Rosa não havia percebido melhora do
ferimento.
Na última visita de Manoela a Rosa, ela voltou a escutar música e
estava saindo do quarto para tomar sol diariamente, dizendo que se comu-
nicava com o sol e ele a chamava para o “descanso final”. Disse não querer
realizar nenhuma produção, que sua existência estava insuportável e con-
tinuava desejando seu “descanso final”. Manoela a lembrou de como antes
pensava e desejava estar em outros lugares e rever outras pessoas, mas Rosa
dizia preferir encontrá-los em outro plano. Novamente a profissional inves-
tiu na construção de atividades prazerosas enquanto Rosa não conseguia
seu objetivo. A usuária concordou que Manoela conversasse com Luana
para combinar saídas ao parque onde teria mais contato com o sol e a natu-
reza, assim como ir à praia. Em conversa com Luana, ela disse ter realizado
saídas ao mercado com Rosa, onde tem cadeiras adaptadas e acha que seu
humor está melhor. A mãe ainda disse da programação da viagem ao litoral
no mês seguinte. Saindo dessa VD, Manoela e ACS articularam o emprés-
timo de uma cadeira de rodas com o Centro de Referência em Assistência
Social (CRAS) para viabilizar os passeios.
Aproveitar os mais diferentes espaços, relações e situações para que o
sujeito possa vivenciar sua existência e enriquecer suas formas de estar no
mundo, remete à perspectiva da Reforma Psiquiátrica (Ribeiro, 2009), em
que a reinserção social visa, antes de tudo, permitir uma ocupação cidadã
do seu lugar na sociedade pelos loucos.
Algumas reflexões
332 • Capítulo 15
dos casos tidos como mais graves. No entanto, a nossa experiência buscou
demonstrar as potencialidades da atuação da APS na condução de casos
graves como o de Rosa e de como alguns pressupostos de um cuidado lon-
gitudinal e no território — duas diretrizes primordiais do trabalho na APS
— podem produzir efeitos significativos na condução dos casos. A atuação
com Rosa leva a pensar que os casos mais difíceis devem convocar não a
atuação isolada dos serviços especializados, mas sim um cuidado em rede,
em que o papel da APS é fundamental, tendo em vista a sua função como
ordenadora do cuidado. Mais do que isso, a experiência que aqui destaca-
mos mostra o papel fundamental que a APS pode desempenhar em reativar
as redes, seja aquela composta pelos serviços ou pela comunidade e pelos
familiares.
Este esforço de ampliar a atuação com os usuários de saúde mental
considerados mais graves é vivido diariamente dentro da própria APS. No
caso em questão, ele ficou evidenciado na empreitada feita pelas profissio-
nais do NASF (tida como “especialista”) para aproximar e implicar outros
profissionais da equipe no cuidado, seja a partir das visitas compartilhadas
ou da própria discussão constante do caso. O presente trabalho buscou evi-
denciar parte dos esforços e dificuldades enfrentados pelos profissionais na
construção e na ativação cotidiana da rede de cuidados, acreditando que as
elaborações em torno dos impasses e dos desafios trazidos por essas tare-
fas podem iluminar experiências semelhantes, levando em conta que esse
tipo de trabalho envolve tanto esforço quanto aquele que é empreendido no
contato presencial com o usuário.
A visão de clínica ampliada e cuidado do processo saúde-doença ar-
ticulando com outros profissionais e equipamentos por meio da corres-
ponsabilização contribuíram para as intervenções no quadro apresentado
pela usuária, mesmo compreendendo que possíveis ajustes ainda se façam
necessários para sua reabilitação e a fim de continuar garantindo, como
citado por Devera & Costa-Rosa (2007), “os cuidados e tratamentos pres-
tados salvaguardados a dignidade pessoal e os direitos humanos e civis; e
se deve propiciar a permanência da pessoa com transtorno mental em seu
meio comunitário” (Declaração de Caracas, 1991 apud Devera & Costa-
-Rosa, 2007, p. 70).
Os serviços e profissionais que atuam no cuidado à saúde mental
devem ser orientados pelos princípios da Reforma Psiquiátrica, baseando
suas práticas no respeito às singularidades e em defesa da vida. Deve-se ter
como pressuposto ético e norteador das práticas a Reabilitação Psicosso-
cial, no sentido em que apresenta Saraceno (1999), como não sendo um
conjunto de técnicas instrumentalizadas para ocupar o tempo dos usuários
334 • Capítulo 15
a fim de não se satisfazer ou acomodar-se com a introdução de medicação
e a retomada de algum autocuidado, mas abrir para toda potencialidade e
ampliação para outros aspectos do sujeito. Não basta pensar na reabilitação
como controle de alguns sintomas, é necessário engajar os usuários com a
cidade, produzir espaços existenciais. As críticas, dessa maneira, não têm
qualquer finalidade paralisadora, mas sim para abrir possibilidades de no-
vas formas de vida e de experiência.
Estas discussões se fazem necessárias e produções como o presente
trabalho devem ser estimulados para que a potência do cuidado em saúde
mental na Atenção Primária à Saúde seja difundida e reconhecida. Isso é
especialmente importante considerando o momento político em que ve-
mos a diminuição dos recursos direcionados para esse nível de atenção
e o desinvestimento em ricos dispositivos como os NASF, que carregam
grande potencial para aumentar a resolutividade das Equipes de Saúde da
Família e ampliar os manejos possíveis com os usuários e a comunidade.
Referências
336 • Capítulo 15
Capítulo 16
O cuidado a idosos em situação de
vulnerabilidade: desafios para uma equipe da
APS
338 • Capítulo 16
aspecto esse que, em condições normais, não seria considerado problema
de saúde. Entretanto, observa-se que em situações de sobrecarga, patolo-
gias não cuidadas de maneira regular, acidentes e estresse emocional, a se-
nescência pode levar a agravos à saúde e gerar demandas mais específicas
de assistência. Ademais, destaca-se que um dos desafios no cuidado da po-
pulação dessa faixa etária é a possível perda da capacidade funcional, com
restrições das habilidades físicas e mentais necessárias para a realização de
suas atividades básicas.
No processo de cuidado ao idoso com grande grau de dependência fa-
miliar, podem-se observar conflitos de gerações, algumas vezes com casos
de violência e abandono. A Organização Mundial da Saúde (OMS) adota o
conceito de maus-tratos ou violência contra idosos como sendo qualquer
ato ou falta de ato, único ou repetido, proposital ou impensado, causan-
do danos e sofrimento desnecessário e redução de qualidade de vida da
pessoa idosa. Essa atitude pode ser praticada dentro ou fora do ambien-
te doméstico, por algum membro da família ou por pessoas que exerçam
uma relação de poder sobre a pessoa idosa, como, por exemplo, cuidadores
(OMS, 2002). Esforços têm sido feitos a fim de despertar a atenção de auto-
ridades e profissionais de saúde para o aumento das ocorrências de agravos
a idosos, como acidentes, violência, abandono e maus-tratos. No caso que
iremos tratar, a demanda foi trazida pela própria comunidade e posta a
problemática aos trabalhadores da saúde.
Já no início, a equipe considerou que se tratava de caso com uma
abordagem não convencional, pois, em geral, casos de suspeita de violência
podem ser denunciados a outras instituições, como a polícia militar, guar-
da municipal, Ministério Público etc. No entanto, avaliou-se que o nível de
confiabilidade da população local no SUS fez que a denúncia fosse feita à
equipe de saúde.
A literatura indica que os principais casos de violência contra idosos
envolvem episódios de abusos físicos, psicológicos e sexuais, abandono fa-
miliar, negligência e abusos financeiros. Trata-se de um problema mundial
que independe de cultura, nível socioeconômico, etnia e religião. Geral-
mente, os idosos se mostram vulneráveis a vários tipos de maus-tratos ao
mesmo tempo, devendo merecer atenção não apenas das autoridades res-
ponsáveis, como de familiares (Moreira et al., 2016).
No Brasil, discriminação e negligência são as duas formas mais co-
muns de violência aos idosos. Porém, a violência contra esta faixa etária,
cada vez mais crescente na população, manifesta-se de forma estrutural,
envolvendo vários fatores advindos da desigualdade social e é naturaliza-
da nas manifestações de pobreza, de miséria e de discriminação; pode ser
340 • Capítulo 16
APS é a constituição de vínculo com os moradores da área, para a qual a
EqSF desenvolve diferentes estratégias. Ao mesmo tempo, deve-se proceder
a um diagnóstico psicossocial que detecte situações de vulnerabilidade fami-
liar. Dessa forma, um cuidado ampliado, para além de um sujeito índice, é
necessário.
Estavam na casa a senhora e seu irmão. O contato inicial foi de muita
resistência diante das intervenções das profissionais, mas aos poucos foram
se aproximando da residência para que pudessem ser feitas as abordagens
da equipe. Imediatamente puderam observar um contato ríspido entre os fa-
miliares. Estava claro, também, que, para além da simplicidade do local, os
familiares que ali residiam estavam com dificuldade de organização do coti-
diano, móveis não eram adaptados para as necessidades da idosa e não havia
a manutenção de condições de higiene.
Além disso, durante essa primeira avaliação, verificou-se uma situação
precária de higiene e de cuidado básico da senhora, como limpeza corporal,
dos cabelos e das unhas. Na avaliação clínica de enfermagem, a profissional
observou olhos hiperemiados, pele desidratada, abdômen distendido, hema-
tomas nos membros inferiores, face, região cervical posterior, além de ede-
ma importante em antebraço direito, com dor à palpação. Outro aspecto que
causou muita preocupação da equipe foi a ausência de movimentação ativa
na mão direita, cianose de extremidades, além de sinais sugestivos de fratu-
ra incruenta no punho direito. Nessa oportunidade, a senhora relatou sofrer
violência física e simbólica regularmente. Além disso, as profissionais obser-
varam, nessa primeira avaliação da situação familiar, que a idosa não estava
tendo acesso ao seu benefício, que seria gerido por outra irmã.
Além do contato com a família, a equipe de saúde fez uma abordagem
com os vizinhos, que as procuraram após o momento da visita, indicando
haver diversas situações de violência contra a senhora. Relataram que ela
permanecia dentro da casa ao longo de todo o dia, podendo sair apenas no
início da manhã quando a família ordenhava o leite das vacas, e se queixa-
ram da existência de muitos animais que também eram mantidos no interior
da casa, aspectos indicados como potenciais causadores de danos à saúde da
senhora. Os vizinhos ainda falaram sobre a preocupação com a integridade
física da idosa a partir daquele momento, pois, segundo eles, o irmão certa-
mente teria atitudes de represália contra ela.
Após a visita domiciliar, a equipe se viu obrigada a realizar novas dis-
cussões coletivamente. Ainda que uma das funções das EqSF seja de auxi-
liar os familiares a renegociarem seus papéis de maneira a constituírem um
Sistema Familiar mais harmônico e funcional, a fim de garantir o cuidado
à pessoa idosa (Brasil, 2006), nesse caso específico a equipe entendeu que
342 • Capítulo 16
A política de saúde brasileira preconiza que o cuidado em saúde
mental na APS não é exclusividade de uma categoria profissional, mas que
todos os profissionais da equipe multidisciplinar podem se apropriar do
cuidado das demandas subjetivas e sofrimento psíquico (Brasil, 2013). No
caso relatado, essa questão estava posta e exigiu debate coletivo ao longo
das reuniões da EqSF. Um ponto importante para a mediação, nesse senti-
do, foi o processo de articulação com o Núcleo de Apoio à Saúde da Família
(NASF) por meio do Apoio Matricial.
Segundo Campos & Domitti (2007) o Apoio Matricial e equipe de
referência “são, ao mesmo tempo, arranjos organizacionais e uma metodo-
logia para a gestão do trabalho em saúde, objetivando ampliar as possibili-
dades de realizar-se clínica ampliada e integração dialógica entre distintas
especialidades e profissões” (idem, 2007, p. 400). Dessa forma, constitui-se
em uma proposta de ofertas de apoio técnico especializado aos profissio-
nais das equipes de referência, visando à qualificação das intervenções.
É preconizado que esse apoio será realizado por um conjunto de pro-
fissionais que não têm, necessariamente, relação direta e cotidiana com o
usuário, mas cujas tarefas serão de prestar suporte às equipes, personali-
zando o sistema de referência e contrarreferência e desconstruindo a lógica
de encaminhamentos consecutivos. Assim, esse arranjo institucional prevê
encontros periódicos, com discussão de casos selecionados e elaboração de
Projetos Terapêuticos Singulares. Parte de uma perspectiva de intervenção
a partir de duas dimensões: suporte assistencial e suporte técnico-pedagó-
gico. A dimensão assistencial é aquela que vai produzir ação clínica direta
com os usuários, e a ação técnico-pedagógica vai produzir ação de apoio
educativo com e para a equipe (idem, 2007; Brasil, 2009).
Durante o processo de Educação Permanente instituído pelo curso,
a equipe do NASF passou a acompanhar a reunião das EqSF de maneira
regular, estando presente uma vez ao mês em cada equipe do município.
Além disso, os profissionais se encontravam quinzenalmente nos encon-
tros do curso, aspecto esse que foi considerado como mais uma forma de
ampliação do diálogo e articulação entre as equipes. Durante a avaliação do
caso em questão, foi relatada a importância de se abordar discussões sobre
o envolvimento profissional, pessoal e emocional de todas as pessoas envol-
vidas, além da contribuição da equipe do NASF sobre os encaminhamentos
do caso propriamente dito. Explicita-se, nessas afirmações, como se consti-
tuiu o suporte técnico-pedagógico preconizado na proposta de trabalho do
Apoio Matricial ao longo do processo.
A EqSF se manteve como coordenadora do cuidado, garantindo a ar-
ticulação das ações de maneira longitudinal, mas diante da complexidade
344 • Capítulo 16
Entretanto, o vínculo entre a idosa e as profissionais da equipe res-
ponsável pelos cuidados iniciais permaneceu forte, de maneira que se man-
tiveram as visitas dos profissionais dessa equipe a partir de solicitações da
usuária, que lhes enviava recados solicitando a presença.
O desenlace do caso também não foi convencional, afinal, a idosa pas-
sou a viver em uma instituição de longa permanência. Embora se priorize
sempre um cuidado junto dos familiares e no território, nesse caso se ava-
liou que não seria possível tal intermediação. Ainda assim, diante da com-
plexa relação familiar, a EqSF avalia que é ali que ela vem conseguindo res-
gatar sua autoestima e dignidade, tendo a garantia de um envelhecimento
saudável e a possibilidade de reparação dos danos sofridos pelas agressões.
As equipes relatam que a usuária manifesta sensações de felicidade,
estando muitas vezes sorridente e afetiva no contato com os profissionais
de saúde. Com o passar do tempo, foi se mostrando vaidosa, ampliando seu
autocuidado de maneira autônoma, além de haver relato de que ela passou
a estabelecer uma relação afetuosa com os demais moradores da instituição.
Segundo informações da coordenação do asilo e da EqSF responsável por
aquele território, a idosa tem se alimentado bem, refere melhora no sono,
caminha e toma banho de sol pelas manhãs, além de ter desenvolvido uma
vida social ativa dentro da instituição, participando da celebração da missa
aos domingos e dos grupos de atividades regularmente. Um aspecto que as
equipes destaca é que ela passou a colecionar bonecas e, como parte da sua
rotina, “cuida” delas. A usuária recebe visita de uma irmã esporadicamente.
Além da construção do cuidado em rede, a EqSF preencheu os do-
cumentos de notificação de agravos de violência doméstica contra idoso
e os encaminhou à Secretaria Municipal de Saúde para notificação no Sis-
tema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Também, como
um dos encaminhamentos, o Ministério Público deferiu medida protetiva
para a idosa, impedindo que o irmão denunciado como seu agressor fosse
visitá-la ou mesmo que permanecesse a uma distância menor que um qui-
lômetro do asilo.
A denúncia feita pelos vizinhos à Agente Comunitária de Saúde trou-
xe à luz uma realidade muitas vezes tornada invisível, que é a da violência
contra os idosos e, particularmente, contra as mulheres idosas no ambiente
rural. A denúncia levou a EqSF a buscar alternativas para abordá-la, por
entenderem ser um caso grave e extremamente complexo, com necessidade
de uma intervenção rápida para proteção da usuária.
Ao mesmo tempo, explicitou o quanto é papel da atenção básica rea-
lizar o acolhimento à pessoa idosa e aos seus familiares, com investimento
346 • Capítulo 16
Problematiza-se, a partir desta experiência e discussões de caso, que
para garantir o cuidado ao idoso na perspectiva integral, as equipes pre-
cisam ampliar o processo de cadastramento e identificação das demandas
no território. Isso ajudaria a, além de promover ações visando ao envelhe-
cimento ativo e saudável de maneira geral e suporte às famílias, identificar
casos de violação de direitos e negligência de maneira precoce. Assim, caso
as EqSF consigam abordar a questão do cuidado à pessoa idosa no seu co-
tidiano como forma de promoção à saúde, a possibilidade de mediação
de situações conflitivas e a constituição de novo equilíbrio familiar para
cuidado ao idoso torna-se mais possível.
Referências
348 • Capítulo 16
Capítulo 17
Enfrentando na Atenção Básica o desafio do
cuidado a uma família com mulher em situação
de abuso de substâncias psicoativas e filhos sob
a violação de direitos
350 • Capítulo 17
Neste contexto de abordagem intersetorial do problema, Equipes de
Saúde da Família se defrontam com o dilema entre até quando investir na
busca de adesão da mulher a este amplo projeto terapêutico singular, ne-
cessário para apoiá-la a fim de ressignificar sua vida e sua relação com as
drogas, de forma a permitir cuidados adequados com sua prole e a partir
de quando devem reconhecer sua inviabilidade e passarem a apoiar ações
com o Conselho Tutelar no sentido da medida protetiva de retirada destas
crianças da família de origem.
Durante o “Curso de Especialização em Saúde da Família: atenção e
gestão do cuidado na Atenção Básica” e o “Curso de Extensão em Saúde da
Família”, pude acompanhar a apresentação de Projeto Terapêutico Singular
(PTS) de casos com essa temática, por vários profissionais.
O Projeto Terapêutico Singular é um instrumento que visa, em tra-
balho de equipe, de forma integrada, analisar o caso em tela com um olhar
ampliado, em seu diagnóstico e tratamento, indo além dos aspectos biomé-
dicos e da terapia medicamentosa, da tradicional discussão de caso clínico
(Cunha, 2009).
O médico e psicanalista húngaro Michael Balint, radicado na Ingla-
terra em 1939, interessado no estudo da relação médico-paciente, desen-
volveu, na década de 1950, importante trabalho com médicos de família de
Londres, que atenderam a seu convite para participarem de grupo de dis-
cussão de casos clínicos por eles trazidos, que tivessem por característica
os instigarem do ponto de vista emocional ou de relacionamento com seus
pacientes (Lakasing, 2005).
E foi um caso com esta temática aqui discutida, que a enfermeira Lu-
cia, de uma Equipe de Saúde da Família, trouxe para a roda de discus-
são, com metodologia Balint-Paideia, de nosso curso de extensão, em duas
oportunidades, com um intervalo de cinco meses entre elas.
Visando a manutenção do sigilo, os nomes dos profissionais e mem-
bros da família do caso aqui estudado são fictícios.
A enfermeira iniciou sua apresentação referindo que a seleção deste
caso se deu, especialmente pelos desafios que sua equipe encontrou para
lidar com a família, com a dificuldade de adesão dela às propostas de acom-
panhamento e, principalmente, pela expectativa de que a discussão em
grupo no curso pudesse contribuir para os rumos do seguimento do caso
pela equipe.
Relatou que o caso chegou ao conhecimento da equipe em 2018 (cer-
ca de um ano antes desta apresentação) por meio de solicitação do Conse-
lho Tutelar de “averiguação das condições de saúde e moradia da família da
352 • Capítulo 17
Nayara sempre costuma deixar seus filhos sozinhos em casa e sair
para usar substâncias psicoativas. Nessas situações, suas primas, Jussara e
Silviane, que moram próximas, tentam cuidar das crianças, quando podem
e a Nayara permite. Outro fator preocupante é que as crianças não são le-
vadas à escola regularmente, nem comparecem em consultas agendadas na
Unidade Básica de Saúde e muitas vezes encontram-se com um nível de
higiene muito ruim, sem receber alimentação adequada ou tratamentos de
saúde recomendados.
Durante este período em que o David está na prisão, Nayara faz vi-
sitas regulares para ele e leva as crianças para verem o pai. Contudo, até o
momento também se relacionava com um morador de rua, que fazia uso de
álcool e outras drogas (maconha, cocaína e crack).
Finalmente a enfermeira Lucia apresentou as ações que a sua equipe já
havia desenvolvido com a família: visitas domiciliares regulares pelo agente
de saúde da área para criação de vínculo com a usuária e seus familiares,
atendimento flexível com ou sem agendamento prévio com realização de
testes rápidos para sífilis, HIV e hepatite B aproveitando sua presença em
algumas consultas na última gestação e, após essa última gestação, tenta-
tiva de inclusão de Nayara em planejamento familiar, porém sem adesão
dela aos exames e aos atendimentos necessários. Finalmente reuniões com
as escolas das crianças, o Centro de Referência Especializado da Assistên-
cia Social (CREAS) e Conselho Tutelar. Após essa reunião com o Conse-
lho, a equipe passou a encaminhar informações sobre ocorrências com as
crianças imediatamente após acontecerem, tais como não comparecimento
a consultas agendadas, situação em que, por orientação do Conselho, são
feitas convocações.
Após a apresentação do caso, foi aberta a palavra para a roda de pro-
fissionais da turma, quando ficou evidente, pelo discurso da maioria dos
profissionais, a revolta com a situação das crianças, com falas iniciais já
conclusivas, apontando a necessidade de “encaminhamento para o Conse-
lho Tutelar abrigar urgente essas crianças!” Outra já sugeria o investimento
na possibilidade de as primas assumirem a guarda das crianças.
As falas citadas, de uma médica e uma agente de saúde, ilustram um
fenômeno comum no início destas rodas de discussão, do tipo Balint-Pai-
deia, de profissionais apresentarem soluções prontas, simplistas e superfi-
ciais, em geral tomadas de emoção, para a resolução do caso em tela. Por
mais que, ao final da evolução do caso, essas falas aparentemente estivessem
cobertas de razão, naquele início de discussão estavam evidentemente pre-
cipitadas, o que foi ficando evidenciado com o correr das falas subsequentes,
354 • Capítulo 17
No desenrolar da discussão, um dos agentes de saúde manifestou re-
volta contra o fato de Nayara ter parido seu último filho dias antes na ma-
ternidade “e a assistente social não ter segurado o bebê lá!”.
Esta fala sobre a forma das maternidades lidarem com parturientes
com este perfil aqui discutido, aponta para um problema percebido nos
profissionais da equipe, bem como nos demais profissionais do curso, que
é a falta de informações sobre as políticas públicas de assistência social e
saúde voltadas para a proteção do direito à convivência familiar e comu-
nitária, bem como de habilidades para lidar com um olhar ampliado para
a temática, que lhes permitisse elaborar Projetos Terapêuticos Singulares
com mais potência para apoiar tais famílias.
Em relação às políticas públicas voltadas para o enfrentamento des-
ta problemática, o município de Campinas elaborou, em 2011, seu Plano
Municipal de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Ado-
lescentes à Convivência Familiar e Comunitária e, a partir daí, o município
vem sendo destacado como uma experiência exitosa nesse campo, conside-
rado como verdadeiro contraponto a várias realidades negativas em âmbito
nacional, em especial a já citada retirada compulsória de bebês das mães
em vulnerabilidade social (Valente, 2019).
Assim, foram criadas políticas públicas intersetoriais, articulando
Consultório na Rua e abrigos, próprios e conveniados, voltados para rece-
ber mães em situação de vulnerabilidade social juntamente com seus bebês,
inclusive com tratamento para mulheres grávidas em uso de substâncias
psicoativas, tudo visando a evitar a separação das crianças de suas famílias
de origem ou para promover a reunificação familiar ou, se for no melhor
interesse das crianças, identificar e assegurar as formas mais adequadas de
cuidados alternativos, em condições que promovam o seu desenvolvimen-
to pleno e harmonioso, como parte de uma política nacional integrada de
proteção à criança
Em especial, com este acolhimento das crianças juntamente com suas
mães, foi conquistada uma diminuição do número de recém-nascidos aco-
lhidos em abrigo, caindo de dezoito bebês em 2014, para cinco em 2016,
oito em 2017 e quatro em 2018 (Valente, 2019). E mesmo os oito separados
das mães, por medida protetiva, foram acolhidos em família acolhedora,
evitando a institucionalização, cumprindo as Diretrizes de Cuidados Alter-
nativos à Criança (ONU, 2009).
O caso de Nayara, que havia parido sua última filha há cerca de seis
meses, ilustra a situação oposta a este processo anteriormente enaltecido,
pois na maternidade de fato foi desperdiçada uma oportunidade de um
acolhimento de Nayara juntamente com seu recém-nascido, visando a
356 • Capítulo 17
uma internação por provável coqueluche, sendo que estava com a vacina-
ção atrasada; Nayara não compareceu para consulta pós-parto e não adere
ao planejamento familiar, mas, ao contrário, tem procurado a Unidade Bá-
sica para realizar testes de gravidez.
As primas já se ofereceram para ficarem com as duas crianças maio-
res, mas a mãe não aceita.
Até o presente momento, o Conselho Tutelar não considera o abriga-
mento das crianças como uma medida necessária e imediata. O objetivo é
tentar apoiar a reorganização de Nayara em sua rotina e manter as crianças
sob os seus cuidados.
Imediatamente após receberem a notificação, via agente de saúde,
sobre a área para a qual havia se mudado, comunicaram a nova Unidade
Básica e encaminharam os relatórios que fizemos na Unidade, informa-
ram o Conselho Tutelar e agendaram reunião conjunta para transferência
do caso. Porém, não obtiveram resposta da nova Unidade Básica sobre a
disponibilidade da equipe para essa reunião e em virtude da eleição dos
novos conselheiros tutelares, ocorreu a saída da conselheira que realizou o
acompanhamento do caso, dessa forma se observa uma lentidão maior nas
decisões necessárias.
Mesmo não morando mais na área, ela voltou à Unidade Básica da
equipe, o que deixou os profissionais satisfeitos, entendendo que isso foi
decorrência de um bom vínculo estabelecido. Assim sendo, preocupados
com as condições de saúde dos três filhos, da paciente, todos mantendo
baixo nível de higiene e condições respiratórias crônicas, autorizaram que
continuem frequentando o serviço sempre que precisarem. Dificuldade
nesse processo era que Nayara continuava sempre acompanhada por Jaíl-
son e mantendo o comportamento de faltas nas consultas agendadas para
si e seus filhos.
Como balanço do acompanhamento do caso, a equipe relata que ele
gerou um aprendizado muito grande, principalmente na interlocução com
outros serviços e abordagem de usuários com graves quadros familiares.
Porém, referem frustração diante dos resultados negativos, pois as
crianças continuavam em situação desfavorável e de risco, com seus direi-
tos não sendo garantidos.
A equipe reconhece no Conselho Tutelar e demais órgãos competen-
tes uma incansável tentativa de apoiar esta mãe para prestar os cuidados
aos seus filhos, porém a equipe julga que isso é impossível, em razão do
quadro de desorganização emocional da dela, pois ela contínua fazendo
o uso de múltiplas drogas, como maconha, cocaína e crack, não conse-
guindo manter um emprego regular, sendo que, em sua única tentativa,
358 • Capítulo 17
fissional e sobre ele saber interdisciplinar, esta práxis da saúde, bem como
sobre seus sentimentos em relação a seus pacientes e demais envolvidos no
processo de cuidado, possibilitando de fato uma clínica ampliada (Campos
et al., 2014; Cunha, 2005).
Mais potente ainda pode se tornar esta discussão com profissionais de
saúde, quando além da já discutida abordagem da dimensão psicológica,
proposta por Balint, se acrescenta na metodologia do grupo o componente
Paideia, estimulando a abordagem também das questões políticas e insti-
tucionais, bem como a organização do trabalho e aspectos do modelo de
atenção e de gestão. Para a discussão de casos com forte dependência de
trabalho em rede intersetorial, como o descrito, com a interação de múlti-
plos profissionais, serviços e políticas públicas diferentes (SUS, SUAS, Sis-
tema de Garantia de Direitos etc.) passa a ser fundamental, sob pena da
discussão se tornar ingênua e alienada da realidade política e institucional.
A perceptível ampliação de capacidade reflexiva e analítica dos pro-
fissionais ao longo do curso, provavelmente se deve a este reconhecimento,
facilitado pela metodologia, da dimensão política da clínica, compreen-
dendo o continuum das práticas assistenciais com a forma como se orga-
nizam os serviços envolvidos, ou seja, a própria UBS, a escola, o CREAS,
o Conselho Tutelar, bem como sobre o papel social deles próprios, como
profissionais de saúde.
Finalmente, mas não menos importante, falar sobre a perceptível in-
corporação pelos profissionais, com o desenrolar da discussão deste caso,
de conhecimentos sobre o complexo tema da atuação diante da situação de
criança vítima de violação de direitos, que, há muito, não se resume mais
em separação precipitada dos pais e abrigamento (acolhimento institucio-
nal). Puderam compreender que, nesta situação, se faz obrigatório priori-
zar o uso de outras estratégias de proteção da criança, sem sua instituciona-
lização e garantindo o seu direito à convivência familiar e comunitária, por
exemplo, por meio do cuidado por família extensa. No caso em questão,
poderia ter sido implementada pelo Conselho Tutelar a proposta maturada
pela equipe, do envolvimento das primas de Nayara no cuidado das crian-
ças, estratégia essa que infelizmente não chegou a ser sequer iniciada.
Interessante pontuar como reflexão final, como o modelo de trabalho
da Saúde da Família, centrado em um trabalho de equipe, com articulação
intersetorial e um olhar ampliado para o biopsicossocial, tem permitido
aos profissionais da atenção básica começarem a ir além da postura tradi-
cional da saúde perante casos deste tipo, predominante reativa, centrada
na responsabilização apenas clínica, no máximo desenvolvendo estratégias
para facilitar à mulher e às crianças o acesso aos tratamentos necessários,
Referências
360 • Capítulo 17
lência do uso de drogas de abuso por gestantes. Acta Paul Enferm., 2013,
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guide to taking action and generating evidence. Geneva: WHO, 2006.
362 • Apêndice
Atenção Primária em Saúde (APS). Trata-se de uma construção teórica de
caráter explicativo do papel do Apoio Matricial na interação com as equi-
pes, cuja ausência ao longo do livro se tornou notória, sobretudo pela re-
corrência que se impunha a discussão sobre a atuação das equipes de NASF,
recém-implantadas nos municípios. Do total de alunos (79 pessoas) que
concordaram em responder um questionário de caracterização aplicado no
início da Formação, 20 profissionais (25%) referiram atuar no NASF ou em
alguma modalidade de apoio à APS.
A proposta do Apoio Matricial, que deu origem ao NASF, configura
uma metodologia teórico-operacional que propõe diretrizes para a intera-
ção entre especialistas e as equipes da APS.
Avança em relação ao cuidado compartilhado/colaborativo (Vingilis
et al., 2007; Garcia-Tavalera Espín et al., 2012, Foy et al., 2010; Kelly et al.,
2011), por sua maior vinculação e compromisso ético com a democracia
institucional e com a produção de autonomia entre os envolvidos, apre-
sentando maior afinidade com os princípios do SUS e com as diretrizes do
cuidado humanizado e da Clínica Ampliada e Compartilhada (Oliveira &
Campos, 2015).
Por se tratar de uma metodologia de trabalho, o Apoio Matricial pode
assumir diversos formatos (Castro, Oliveira & Campos, 2016), com espe-
cialistas oriundos de diversos pontos da rede de atenção assumindo agen-
das de encontros regulares na Atenção Primária, combinadas com a dispo-
nibilidade para contatos emergenciais. Em qualquer contexto em que esteja
operando, o Apoio deve manter como característica seu compromisso com
a corresponsabilidade pelo cuidado, pela construção compartilhada de
diretrizes clínicas e sanitárias e de critérios para o encaminhamento dos
casos, além da troca de saberes para ampliação do repertório e da resoluti-
vidade das equipes da APS.
Guiada pelas diretrizes da gestão colegiada e da interdisciplinarida-
de, a proposta do Apoio Matricial pretende levar a lógica da Cogestão, da
democracia institucional e da colaboração para as relações interprofissio-
nais, implementando concomitantemente as dimensões de suporte técni-
co-pedagógico e assistencial (Campos, Cunha & Figueiredo, 2013; Bonfim
et al., 2013).
O Apoio Matricial ganhou notoriedade em âmbito nacional ao se efe-
tivar como política ministerial, mediante os Núcleos de Apoio à Saúde da
Família (NASF), propostos pela portaria ministerial 154, de 24 de janeiro
de 2008 (Brasil, 2008), que previa auxílio financeiro para o provimento de
equipes multiprofissionais especializadas, compostas segundo as necessi-
dades identificadas pelas Equipes de Saúde da Família na Atenção Primária.
Apêndice • 363
O NASF surge da busca por modificar os sistemas de referência e con-
trarreferência, que tradicionalmente são impessoais, burocratizados e com
baixo acompanhamento do itinerário terapêutico dos usuários. E traz con-
sigo ainda os demais pressupostos e diretrizes do Apoio Matricial.
Em 2012, com a regulamentação das Portarias n.o 2.488, de 21 de ou-
tubro de 2011 e n.o 3.124, de 28 de dezembro de 2012 (Brasil, 2012; Brasil,
2014), ampliou-se a atuação das equipes de NASF, abrindo-se a possibi-
lidade de que qualquer município do Brasil fizesse sua instituição, desde
que tivesse ao menos uma equipe de Saúde da Família. Também se criou as
equipes NASF para apoiar as equipes na Atenção Primária que cuidam de
populações específicas (consultórios na rua, equipes ribeirinhas e fluviais).
Visando à institucionalização do NASF como arranjo prioritário do
Ministério da Saúde para a inserção dos especialistas na Atenção Primá-
ria, foram produzidos documentos de marco regulatório. Dentre eles, po-
demos citar a própria Portaria n.o 154 (Brasil, 2008), a Portaria n.o 2.488,
que normatiza a PNAB (Brasil, 2012), a Portaria de n.o 3124, que redefine
os parâmetros do NASF, material da oficina de qualificação do NASF com
foco na redução da mortalidade infantil, documento de autoavaliação para
melhoria da qualidade da Atenção Básica para os NASF (AMAQ/NASF),
além dos Cadernos de Atenção Básica voltados aos Núcleos de Apoio à
Saúde da Família (Brasil, 2009; Brasil, 2014), que se destacam pela ampla
divulgação e por apresentarem de modo mais detalhado as diretrizes para
o trabalho das equipes.
Segundo essas diretrizes, as equipes NASF devem oferecer apoio edu-
cativo para as equipes de referência e desenvolver ações conjuntas. Podem
também realizar ações clínicas diretamente com os usuários, desde que
previamente pactuadas com as equipes de referência e como parte de um
projeto terapêutico, sem perder de vista o compromisso com a correspon-
sabilização do cuidado de usuários e território (Campos, Cunha & Figuei-
redo, 2013).
Em 2017, os NASF foram renomeados pela nova Política de Aten-
ção Básica (Brasil, 2017) como Núcleos Ampliados de Saúde da Família e
Atenção Básica (NASF-AB), podendo dar apoio a qualquer modalidade de
Unidade Básica de Saúde, independente da adoção da Estratégia de Saúde
da Família.
A Portaria de n.o 2979, de 12 de novembro de 2019, que aprova o
Programa Previne Brasil (Brasil,2019), altera o modelo de financiamento
de custeio da Atenção Primária, e passa a priorizar apenas alguns progra-
mas no repasse de incentivos para ações estratégicas. Nessa resolução, os
364 • Apêndice
NASF não estão previstos, cabendo aos municípios a decisão de manter
essas equipes.
Giovanella, Franco & Almeida (2020) e Morosini, Fonseca & Baptista
(2020) compreendem que as mudanças recentes coadunadas pela PNAB
2017, pelo Programa Previne Brasil, pela criação da Agência de Desenvol-
vimento da APS (ADAPS) e pela Carteira de Serviços da Atenção Primária
(CaSAP) representam um incomensurável retrocesso ao trabalho inter-
disciplinar, ao cuidado centrado na família e comunidade e, portanto, à
integralidade da Atenção Primária. Nesse cenário, entende-se o acesso à
saúde de modo restrito aos seus atributos biomédicos e se fortalece o mo-
delo h egemônico, de práticas fragmentadas e a passividade dos usuários.
Abre-se o caminho para a privatização da APS e para a mercantilização do
cuidado à saúde.
Este contexto tende a anular por completo o componente de Apoio do
NASF e sua existência passa a ser fortemente inviabilizada pelas restrições
orçamentárias e pelas dificuldades para o cadastramento de novas equi-
pes. Sua manutenção fica a critério dos municípios, devendo ser por eles
financiados, medida que tende a prejudicar principalmente as cidades de
pequeno porte.
É sabido que a existência e o sucesso do NASF, bem como do Apoio
Matricial de modo geral, dependem de modificações amplas e contra-he-
gemônicas, que incluem desde a adequação da estrutura organizacional até
transformações de atitudes e práticas dos profissionais e gestores (Cam-
pos, 2012). Está ligada à efetivação de uma APS abrangente e da democra-
cia institucional entre profissionais e usuários. Justamente por isso, vai na
contramão de tudo o que está posto em pauta nas mudanças recentes em
nível federal. Em outras palavras, a ameaça ao NASF extrapola a questão
do financiamento, e reside no desmantelamento da proposta civilizatória e
de cidadania contidas na Constituição de 1988 e, por conseguinte, no SUS.
Assim, nosso interesse em incluir o debate acerca do NASF no presen-
te livro se justifica pela necessidade de defesa desse arranjo que, criado em
2008, por meio de uma Política do Ministério da Saúde para todo o Brasil,
com incentivos e repasses para os municípios, está sob ameaça apesar de
seus 12 anos de experiências e discussões.
Neste apêndice, acrescentamos para o debate do NASF uma bre-
ve reflexão a partir da análise dos casos apresentados na parte III deste
livro. Eles são ilustrativos da complexidade das situações acompanhadas
na Atenção Primária, que vão desde a adesão e autocuidado nas doen-
ças crônicas, questões de saúde mental relatadas em situações de uso de
Apêndice • 365
s ubstâncias psicoativas e no sofrimento psíquico grave, até as diversas situ-
ações de violências. Todos os relatos nos mostram que a dimensão psicos-
social ainda é um grande desafio para este nível de atenção no SUS (Cam-
pos, Cunha & Figueiredo, 2013; Gonçalves et al., 2013; Bonfim et al., 2013).
Tendo esse grande desafio, a proposta do NASF, como equipe de apoio,
composta por especialistas, configura um dispositivo promissor para dis-
parar mudanças em direção a uma ampliação da clínica e rompimento da
fragmentação do cuidado.
De modo geral, pode-se afirmar que a maioria dos capítulos privile-
giam casos clínicos, seja de condução de grupos ou cuidado de pacientes
ou famílias. Assim, embora casos institucionais tenham sido apresentados
como uma opção na Formação e na proposta do livro, os relatos carecem
de discussões específicas e diretas envolvendo os percalços e os avanços
da interação entre as equipes de referência e NASF. Talvez isso se deva à
familiaridade dos profissionais em relação à clínica ou à percepção de mu-
danças e aos melhores resultados nessa modalidade de atuação, que os per-
mitiria mais autonomia. De todo o modo, a análise do papel do NASF com
base em relatos de casos aqui empreendidos, ocorreu a partir da leitura nas
entrelinhas e na inferência de sentidos ainda não totalmente explicitados.
Dito isto, merece destaque nos casos a forma como as equipes de
Apoio e as equipes apoiadas, de modo geral, protagonizam de forma sepa-
rada todo o processo de intervenção nas situações elencadas. Nota-se, em
alguns relatos, que a equipe de Apoio não é citada e não participa do pro-
cesso de reflexão e intervenção e, tampouco é vista como fazendo parte da
equipe multiprofissional. Em outras situações, ela aparece, mas com pouco
protagonismo, sem muita clareza do seu papel. Há também situações em
que o NASF centraliza as intervenções, e a Equipe de Saúde da Família pou-
co aparece como corresponsável na construção dos caminhos do cuidado.
O apagamento de uma equipe em relação à outra é mútuo. E o que isso nos
mostra? Indicam quão desafiadoras são a integração e a articulação de uma
equipe de Apoio como o NASF com as Equipes de Saúde da Família; a cor-
responsabilidade pelos casos e grupos na APS se torna, como evidenciado,
uma grande questão.
As dificuldades dessa articulação decorrem, eminentemente, dos
impasses ainda existentes para que estas equipes se constituam como um
coletivo para a produção de saúde (Campos, 2000). O Apoio Matricial pro-
põe, em seu fundamento, que a clínica, para que possa ser interdisciplinar,
esteja alicerçada na democracia e Cogestão. O que significa dizer que todos
os participantes, incluindo os usuários, devem ser ativos e participativos
no processo, coletivamente deliberando, construindo pactuações e enca-
366 • Apêndice
minhamentos. Isso pode parecer uma tarefa fácil, mas o cotidiano, como
evidenciado pelos casos, nos mostra que não é.
Construir e efetivar propostas de cunho democrático são um desafio
não apenas para o trabalho do NASF, mas para o SUS de modo geral, bem
como para a vida e a relação em sociedade. A democracia é algo a se ter
no horizonte, algo a ser perseguido. Envolve uma série de fatores que vão
desde o momento histórico e cultural, até singularidades dos sujeitos en-
volvidos com a sua história de vida, seus valores, enfim, sua subjetividade.
Desse modo, para se produzir um coletivo que tenha como horizonte
operar democraticamente, há que se considerar uma série de fatores. Nessa
perspectiva, modelos de gestão verticais e autoritários são obstáculos para
a constituição das equipes. Tais modelos operam a partir da disciplina e do
controle dos trabalhadores. Organizam em sua estrutura uma separação
entre quem planeja (gestão) e quem opera a política, produzindo aliena-
ção e redução de autonomia, espontaneidade e criatividade do trabalhador
(Campos, 2000; Terra, 2018). Democracia e Cogestão em todos os níveis,
da gestão do sistema até a gestão dos serviços de saúde, caminham em sin-
cronicidade com o Apoio Matricial, fortalecendo a proposta. No entanto,
sabemos que não é usual encontrar propostas de gestão nessa perspectiva.
De modo que, de maneira contra-hegemônica e mesmo diante das dificul-
dades citadas, o Método Paideia aposta na dialética e compreende que o su-
jeito não é determinado pelo seu contexto e tem autonomia para construir
espaços de resistência em busca de democracia. Para isso, precisa refletir e
analisar sobre si mesmo, sobre as relações e sobre esse contexto.
E como trazer a democracia e a Cogestão para fortalecer o trabalho
do NASF e poder superar a desarticulação entre as equipes?
Os profissionais do NASF, de forma geral, junto com as Equipes de
Saúde da Família, têm construído o seu processo de trabalho tendo como
base seu conhecimento técnico. Se temos como princípio que a inserção
desses especialistas na Atenção Primária ocorre pelo saber que possuem,
essa dimensão é de fato fundamental, mas, isolada, não garante a efetivi-
dade na articulação entre as equipes. É preciso que os profissionais possam
articular, além da técnica, a subjetividade e a dimensão da política para
construção conjunta do processo de trabalho.
Existe um esvaziamento da subjetividade e da política no trabalho
cotidiano das equipes. A subjetividade tem sido considerada, em nossa so-
ciedade neoliberal, como algo pessoal, do âmbito do privado, e não algo
que deva circular no coletivo. Porém, a subjetividade atravessa o trabalho
cotidiano dos profissionais da APS, desde as relações que estabelecemos,
seja com os nossos colegas de trabalho, seja com os nossos pacientes, e
Apêndice • 367
interfere na produção de cuidado. Da mesma forma, pouco manejamos a
dimensão política, enfraquecendo o processo de contratualidade entre as
equipes. As relações de poder percorrem o cotidiano sob várias formas,
que precisam ser desveladas e discutidas a fim de se construir negociações
e pactuações, que muitas vezes não significa chegar a um consenso (Anéas,
2018; Gutiérrez, 2014).
No Brasil, a instiuição da equipe NASF foi de ordem burocrática e
teve como base recursos e financiamento do governo federal para os muni-
cípios que fizeram a adesão. Contratar os profissionais e alocá-los nas Uni-
dades como equipe NASF não faz que, magicamente, consigam construir
o trabalho na perspectiva do Apoio Matricial. É necessário investimento
constante para a construção dessa lógica de trabalho, como forma de forta-
lecer as dimensões já mencionadas.
Para além das questões estruturais, de condição de trabalho e finan-
ciamento adequados, algumas estratégias podem ser utilizadas com essa
finalidade. Destacam-se o Apoio Institucional, a Educação Permanente e
a Supervisão Clínica Institucional. Esses dispositivos confluem no objeti-
vo de garantir e estimular que as equipes, de Apoio e de Referência, pos-
sam refletir sobre a prática, nomear os conflitos e tensionamentos e buscar
formas de manejá-los no cotidiano. Seria uma estratégia para trabalhar o
saber dos profissionais em conjunto com a subjetividade e com a política.
É importante que sejam disponibilizados recursos para que as equi-
pes NASF se reinventem periodicamente, tendo em vista as necessidades
das equipes e do território que apoiam. O fortalecimento do NASF e das
demais possibilidades de realização do Apoio Matricial, que inclui a orga-
nização do Apoio a partir de serviços da Atenção Secundária e Terciária,
torna-se premente no atual contexto político do país, como forma de asse-
gurar e reforçar a proposta da Cogestão e da participação social. Propostas
que têm passado por constantes desmontes.
Não se devem negar os desafios para a efetivação do trabalho do
NASF no Brasil. Desafios esses que não se destacam de todo o conjunto de
desafios existentes na Atenção Primária e outros pontos do sistema.
Fortalecer o NASF é resistir! É resistir por uma Atenção Primária
abrangente, com a participação de profissionais e da população em defesa
do SUS, com a coconstrução de coletivos potentes, organizados para o tra-
balho, para o cuidado e para o exercício da cidadania.
368 • Apêndice
Referências
Apêndice • 369
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370 • Apêndice
TÍTULOS PUBLICADOS NA COLEÇÃO “SAÚDE EM DEBATE”ATÉ DEZEMBRO DE 2017
Saúde e Assistência Médica no Brasil, Carlos Gentile de Mello
Ensaios Médico-Sociais, Samuel Pessoa
Medicina e Política, Giovanni Berlinguer
O Sistema de Saúde em Crise, Carlos Gentile de Mello
Saúde e Previdência: Estudos de Política Social, José Carlos de Souza Braga & Sérgio Góes de Paula
Saúde nas Fábricas, Giovanni Berlinguer
Ecologia: Capital, Trabalho e Ambiente, Laura Conti
Ambiente de Trabalho: a Luta dos Trabalhadores Pela Saúde, Ivar Oddone et al
Saúde Para Todos: um Desafio ao Município — a Resposta de Bauru, David Capistrano Filho (org.)
Os Médicos e a Política de Saúde, Gastão Wagner de Sousa Campos
Epidemiologia da Desigualdade, César G. Victora, Fernando C. de Barros & Patrick Vaughan
Saúde e Nutrição das Crianças de São Paulo, Carlos Augusto Monteiro
Saúde do Trabalhador, Aparecida Linhares Pimenta & David Capistrano Filho
A Doença, Giovanni Berlinguer
Reforma Sanitária: Itália e Brasil, Giovanni Berlinguer, Sônia M. Fleury Teixeira & Gastão Wagner de Sousa Campos
Educação Popular nos Serviços de Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos
Processo de Produção e Saúde, Asa Cristina Laurell & Mariano Noriega
Trabalho em Turnos e Noturno, Joseph Rutenfranz, Peter Knauth & Frida Marina Fischer
Programa de Saúde dos Trabalhadores (a Experiência da Zona Norte: Uma Alternativa em Saúde Pública), Danilo Fernandes Costa,
José Carlos do Carmo, Maria Maeno Settimi & Ubiratan de Paula Santos
A Saúde das Cidades, Rita Esmanhoto & Nizan Pereira Almeida
Saúde e Trabalho. A Crise da Previdência Social, Cristina Possas
Saúde Não se Dá, Conquista-se, Demócrito Moura
Planejamento sem Normas, Gastão Wagner de Souza Campos, Emerson Elias Merhy & Everardo Duarte Nunes
Epidemiologia e Sociedade. Heterogeneidade Estrutural e Saúde no Brasil, Cristina Possas
Tópicos de Saúde do Trabalhador, Frida Marina Fischer, Jorge da Rocha Gomes & Sérgio Colacioppo
Epidemiologia do Medicamento. Princípios Gerais, Joan-Ramon Laporte et al.
Educação Médica e Capitalismo, Lilia Blima Schraiber
SaúdeLoucura 1, Antonio Lancetti et al.
Desinstitucionalização, Franco Rotelli et al.
Programação em Saúde Hoje, Lilia Blima Schraiber (org.)
SaúdeLoucura 2, Félix Guatarri, Gilles Deleuze et al.
Epidemiologia: Teoria e Objeto, Dina Czeresnia Costa (org.)
Sobre a Maneira de Transmissão do Cólera, John Snow
Hospital, Dor e Morte Como Ofício, Ana Pitta
A Multiplicação Dramática, Hernán Kesselman & Eduardo Pavlovsky
Cinco Lições Sobre a Transferência, Gregorio Baremblitt
A Saúde Pública e a Defesa da Vida, Gastão Wagner de Sousa Campos
Epidemiologia da Saúde Infantil, Fernando C. Barros & Cesar G. Victora
Juqueri, o Espinho Adormecido, Evelin Naked de Castro Sá & Cid Roberto Bertozzo Pimentel
O Marketing da Fertilidade, Yvan Wolffers et al.
Lacantroças, Gregorio Baremblitt
Terapia Ocupacional: Lógica do Trabalho ou do Capital? Lea Beatriz Teixeira Soares
Minhas Pulgas, Giovanni Berlinguer
Mulheres: Sanitaristas de Pés Descalços, Nelsina Mello de Oliveira Dias
Epidemiologia — Economia, Política e Saúde, Jaime Breilh
O Desafio do Conhecimento, Maria Cecília de Souza Minayo
SaúdeLoucura 3, Herbert Daniel et al.
Saúde, Ambiente e Desenvolvimento, Maria do Carmo Leal et al.
Promovendo a Eqüidade: um Novo Enfoque com Base no Setor da Saúde, Emanuel de Kadt & Renato Tasca
A Saúde Pública Como Política, Emerson Elias Merhy
Sistema Único de Saúde, Guido Ivan de Carvalho & Lenir Santos
Reforma da Reforma, Gastão Wagner S. Campos
O Município e a Saúde, Luiza S. Heimann et al.
Epidemiologia Para Municípios, J. P. Vaughan
Distrito Sanitário, Eugênio Vilaça Mendes
Psicologia e Saúde, Florianita Braga Campos (org.)
Questões de Vida: Ética, Ciência, Saúde, Giovanni Berlinguer
Saúde Mental e Cidadania no Contexto dos Sistemas Locais de Saúde, Maria E. X. Kalil (org.)
Mario Tommasini: Vida e Feitos de um Democrata Radical, Franca Ongaro Basaglia
Saúde Mental no Hospital Geral: Espaço Para o Psíquico, Neury J. Botega & Paulo Dalgalarrondo
O Médico e seu Trabalho: Limites da Liberdade, Lilia Blima Schraiber
O Limite da Exclusão Social. Meninos e Meninas de Rua no Brasil, Maria Cecília de Souza Minayo
Saúde e Trabalho no Sistema Único do Sus, Neiry Primo Alessi et al.
Ruído: Riscos e Prevenção, Ubiratan de Paula Santos (org.)
Informações em Saúde: da Prática Fragmentada ao Exercício da Cidadania, Ilara Hammerty Sozzi de Moraes
Saúde Loucura 4, Gregorio Baremblitt et al
Odontologia e Saúde Bucal Coletiva, Paulo Capel Narvai
Manual de Saúde Mental, Benedetto Saraceno et al.
Assistência Pré-Natal: Prática de Saúde a Serviço da Vida, Maria Inês Nogueira
Saber Preparar Uma Pesquisa, André-Pierre Contandriopoulos et al.
Pensamento Estratégico e Lógica da Programação, Mario Testa
Os Estados Brasileiros e o Direito à Saúde, Sueli G. Dallari
Inventando a Mudança na Saúde, Luiz Carlos de Oliveira Cecílio et al.
Uma História da Saúde Pública, George Rosen
Drogas e Aids, Fábio Mesquita & Francisco Inácio Bastos
Tecnologia e Organização Social das Práticas de Saúde, Ricardo Bruno Mendes Gonçalves
Epidemiologia e Emancipação, José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres
Razão e Planejamento, Edmundo Gallo, Ricardo Bruno Mendes Gonçalves & Emerson Elias Merhy
Os Muitos Brasis: Saúde e População na Década de 80, Maria Cecília de Souza Minayo (org.)
Da Saúde e das Cidades, David Capistrano Filho
Sistemas de Saúde: Continuidades e Mudanças, Paulo Marchiori Buss & María Eliana Labra
Aids: Ética, Medicina e Tecnologia, Dina Czeresnia et al.
Aids: Pesquisa Social e Educação, Dina Czeresnia et al.
Maternidade: Dilema entre Nascimento e Morte, Ana Cristina d’Andretta Tanaka
Construindo Distritos Sanitários. A Experiência da Cooperação Italiana no Município de São Paulo, Carmen Fontes Teixeira &
Cristina Melo (orgs.)
Memórias da Saúde Pública: a Fotografia como Testemunha, Maria da Penha C. Vasconcellos (coord.)
Medicamentos, Drogas e Saúde, E. A. Carlini
Indústria Farmacêutica, Estado e Sociedade, Jorge Antonio Zepeda Bermudez
Propaganda de Medicamentos: Atentado à Saúde? José Augusto Cabral de Barros
Relação Ensino/Serviços: Dez Anos de Integração Docente Assistencial (IDA) no Brasil, Regina Giffoni Marsiglia
Velhos e Novos Males da Saúde no Brasil, Carlos Augusto Monteiro (org.)
Dilemas e Desafios das Ciências Sociais na Saúde Coletiva, Ana Maria Canesqui
O “Mito” da Atividade Física e Saúde, Yara Maria de Carvalho
Saúde & Comunicação: Visibilidades e Silêncios, Aurea M. da Rocha Pitta
Profissionalização e Conhecimento: a Nutrição em Questão, Maria Lúcia Magalhães Bosi
Saúde do Adulto: Programas e Ações na Unidade Básica, Lilia Blima Schraiber, Maria Ines Baptistela Nemes & Ricardo Bruno
Mendes-Gonçalves (orgs.)
Nutrição, Trabalho e Sociedade, Solange Veloso Viana
Uma Agenda para a Saúde, Eugênio Vilaça Mendes
A Construção da Política Nacional de Medicamentos, José Ruben de Alcântara Bonfim & Vera Lúcia Mercucci (orgs.)
Ética da Saúde, Giovanni Berlinguer
A Construção do SUS a Partir do Município: Etapas para a Municipalização Plena da Saúde, Silvio Fernandes da Silva
Reabilitação Psicossocial no Brasil, Ana Pitta (org.)
SaúdeLoucura 5, Gregorio Baremblitt (org.)
SaúdeLoucura 6, Eduardo Passos Guimarães (org.)
Assistência Social e Cidadania, Antonio Lancetti (org.)
Sobre o Risco: Para Compreender a Epidemiologia, José Ricardo de Mesquita Aires
Ciências Sociais e Saúde, Ana Maria Canesqui (org.)
Agir em Saúde, Emerson Elias Merhy & Rosana Onocko (orgs.)
Contra a Maré à Beira-Mar, Florianita Braga Campos & Cláudio Maierovitch
Princípios Para Uma Clínica Antimanicomial, Ana Marta Lobosque
Modelos Tecnoassistenciais em Saúde: o Debate no Campo da Saúde Coletiva, Aluísio G. da Silva Junior
Políticas Públicas, Justiça Distributiva e Inovação: Saúde e Saneamento na Agenda Social, Nilson do Rosário Costa
A Era do Saneamento: as Bases da Política de Saúde Pública no Brasil, Gilberto Hochman
O Adulto Brasileiro e as Doenças da Modernidade: Epidemiologia das Doenças Crônicas Não-Transmissíveis, Ines Lessa (org.)
Malária e Seu Controle, Rita Barradas Barata
O Dengue no Espaço Habitado, Maria Rita de Camargo Donalisio
A Organização da Saúde no Nível Local, Eugênio Vilaça Mendes (org.)
Trabalho e Saúde na Aviação: a Experiência entre o Invisível e o Risco, Alice Itani
Mudanças na Educação Médica e Residência Médica no Brasil, Laura Feuerwerker
A Evolução da Doença de Chagas no Estado de São Paulo, Luis Jacintho da Silva
Malária em São Paulo: Epidemiologia e História, Marina Ruiz de Matos
Civilização e Doença, Henry Sigerist
Medicamentos e a Reforma do Setor Saúde, Jorge Antonio Zepeda Bermudez & José Ruben de Alcântara Bonfim (orgs.)
A Mulher, a Sexualidade e o Trabalho, Eleonora Menicucci de Oliveira
Saúde Sexual e Reprodutiva no Brasil, Loren Galvão & Juan Díaz (orgs.)
A Educação dos Profissionais de Saúde da América Latina (Teoria e Prática de um Movimento de Mudança) — Tomo 1 “Um Olhar
Analítico” — Tomo 2 “As Vozes dos Protagonistas”, Marcio Almeida, Laura Feuerwerker & Manuel Llanos C. (orgs.)
Vigilância Sanitária: Proteção e Defesa da Saúde, Ediná Alves Costa
Sobre a Sociologia da Saúde. Origens e Desenvolvimento, Everardo Duarte Nunes
Ciências Sociais e Saúde para o Ensino Médico, Ana Maria Canesqui (org.)
Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família, Eymard Mourão Vasconcelos
Um Método Para Análise e Co-Gestão de Coletivos, Gastão Wagner de Sousa Campos
A Ciência da Saúde, Naomar de Almeida Filho
A Voz do Dono e o Dono da Voz: Saúde e Cidadania no Cotidiano Fabril, José Carlos “Cacau” Lopes
Da Arte Dentária, Carlos Botazzo
Saúde e Humanização: a Experiência de Chapecó, Aparecida Linhares Pimenta (org.)
Consumo de Drogas: Desafios e Perspectivas, Fábio Mesquita & Sérgio Seibel
SaúdeLoucura 7, Antonio Lancetti (org.)
Ampliar o Possível: a Política de Saúde do Brasil, José Serra
SUS Passo a Passo: Normas, Gestão e Financiamento, Luiz Odorico Monteiro de Andrade
A Saúde nas Palavras e nos Gestos: Reflexões da Rede Educação Popular e Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos (org.)
Municipalização da Saúde e Poder Local: Sujeitos, Atores e Políticas, Silvio Fernandes da Silva
A Cor-Agem do PSF, Maria Fátima de Souza
Agentes Comunitários de Saúde: Choque de Povo, Maria Fátima de Souza
A Reforma Psiquiátrica no Cotidiano, Angelina Harari & Willians Valentini (orgs.)
Saúde: Cartografia do Trabalho Vivo, Emerson Elias Merhy
Além do Discurso de Mudança na Educação Médica: Processos e Resultados, Laura Feuerwerker
Tendências de Mudanças na Formação Médica no Brasil: Tipologia das Escolas, Jadete Barbosa Lampert
Os Sinais Vermelhos do PSF, Maria Fátima de Sousa (org.)
O Planejamento no Labirinto: Uma Viagem Hermenêutica, Rosana Onocko Campos
Saúde Paideia, Gastão Wagner de Sousa Campos
Biomedicina, Saber & Ciência: Uma Abordagem Crítica, Kenneth R. de Camargo Jr.
Epidemiologia nos Municípios: Muito Além das Normas, Marcos Drumond Júnior
A Psicoterapia Institucional e o Clube dos Saberes, Arthur Hyppólito de Moura
Epidemiologia Social: Compreensão e Crítica, Djalma Agripino de Melo Filho
O Trabalho em Saúde: Olhando e Experienciando o SUS no Cotidiano, Emerson Elias Merhy et al.
Natural, Racional Social: Razão Médica e Racionalidade Científica, Madel T. Luz
Acolher Chapecó: Uma Experiência de Mudança do Modelo Assistencial, com Base no Processo de Trabalho, Túlio Batista Franco et al.
Educação Médica em Transformação: Instrumentos para a Construção de Novas Realidades, João José Neves Marins
Proteção Social. Dilemas e Desafios, Ana Luiza d’Ávila Viana, Paulo Eduardo M. Elias & Nelson Ibañez (orgs.)
O Público e o Privado na Saúde, Luiza Sterman Heimann, Lauro Cesar Ibanhes & Renato Barbosa (orgs.)
O Currículo Integrado do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina: do Sonho à Realidade, Maria Solange Gomes
Dellaroza & Marli Terezinha Oliveira Vanucchi (orgs.)
A Construção da Clínica Ampliada na Atenção Básica, Gustavo Tenório Cunha
Saúde Coletiva e Promoção da Saúde: Sujeito e Mudança, Sérgio Resende Carvalho
Saúde e Desenvolvimento Local, Marco Akerman
Saúde do Trabalhador no SUS: Aprender com o Passado, Trabalhar o Presente e Construir o Futuro, Maria Maeno & José Carlos do
Carmo
A Espiritualidade do Trabalho em Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos (org.)
Saúde Todo Dia: Uma Construção Coletiva, Rogério Carvalho Santos
As Duas Faces da Montanha: Estudos sobre Medicina Chinesa e Acupuntura, Marilene Cabral do Nascimento
Perplexidade na Universidade: Vivências nos Cursos de Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos, Lia Haikal Frota & Eduardo Simon
Tratado de Saúde Coletiva, Gastão Wagner de Sousa Campos, Maria Cecília de Souza Minayo, Marco Akerman, Marcos Drumond
Jr. & Yara Maria de Carvalho (orgs.)
Entre Arte e Ciência: Fundamentos Hermenêuticos da Medicina Homeopática, Paulo Rosenbaum
A Saúde e o Dilema da Intersetorialidade, Luiz Odorico Monteiro de Andrade
Olhares Socioantropológicos Sobre os Adoecidos Crônicos, Ana Maria Canesqui (org.)
Na Boca do Rádio: o Radialista e as Políticas Públicas, Ana Luísa Zaniboni Gomes
SUS: Ressignificando a Promoção da Saúde, Adriana Castro & Miguel Malo (orgs.)
SUS: Pacto Federativo e Gestão Pública, Vânia Barbosa do Nascimento
Memórias de um Médico Sanitarista que Virou Professor Enquanto Escrevia Sobre..., Gastão Wagner de Sousa Campos
Saúde da Família, Saúde da Criança: a Resposta de Sobral, Anamaria Cavalcante Silva
A Construção da Medicina Integrativa: um Desafio para o Campo da Saúde, Nelson Filice de Barros
O Projeto Terapêutico e a Mudança nos Modos de Produzir Saúde, Gustavo Nunes de Oliveira
As Dimensões da Saúde: Inquérito Populacional em Campinas, SP, Marilisa Berti de Azevedo Barros, Chester Luiz Galvão César,
Luana Carandina & Moisés Goldbaum (orgs.)
Avaliar para Compreender: Uma Experiência na Gestão de Programa Social com Jovens em Osasco, SP, Juan Carlos Aneiros Fernan-
dez, Marisa Campos & Dulce Helena Cazzuni (orgs.)
O Médico e Suas Interações: Confiança em Crise, Lília Blima Schraiber
Ética nas Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais na Saúde, Iara Coelho Zito Guerriero, Maria Luisa Sandoval Schmidt & Fabio
Zicker (orgs.)
Homeopatia, Universidade e SUS: Resistências e Aproximações, Sandra Abrahão Chaim Salles
Manual de Práticas de Atenção Básica: Saúde Ampliada e Compartilhada, Gastão Wagner de Sousa Campos & André Vinicius Pires
Guerrero (orgs.)
Saúde Comunitária: Pensar e Fazer, Cezar Wagner de Lima Góis
Pesquisa Avaliativa em Saúde Mental: Desenho Participativo e Efeitos da Narratividade, Rosana Onocko Campos, Juarez Pereira
Furtado, Eduardo Passos & Regina Benevides
Saúde, Desenvolvimento e Território, Ana Luiza d’Ávila Viana, Nelson Ibañez & Paulo Eduardo Mangeon Elias (orgs.)
Educação e Saúde, Ana Luiza d’Ávila Viana & Célia Regina Pierantoni (orgs.)
Direito à Saúde: Discursos e Práticas na Construção do SUS, Solange L’Abbate
Infância e Saúde: Perspectivas Históricas, André Mota e Lilia Blima Schraiber (orgs.)
Conexões: Saúde Coletiva e Políticas de Subjetividade, Sérgio Resende Carvalho, Sabrina Ferigato, Maria Elisabeth Barros (orgs.)
Medicina e Sociedade, Cecília Donnangelo
Sujeitos, Saberes e Estruturas: uma Introdução ao Enfoque Relacional no Estudo da Saúde Coletiva, Eduardo L. Menéndez
Saúde e Sociedade: o Médico e seu Mercado de Trabalho, Cecília Donnangelo & Luiz Pereira
A Produção Subjetiva do Cuidado: Cartografias da Estratégia Saúde da Família, Tulio Batista Franco, Cristina Setenta Andrade &
Vitória Solange Coelho Ferreira (orgs.)
Medicalização Social e Atenção à Saúde no SUS, Charles D. Tesser (org.)
Saúde e História, Luiz Antonio de Castro Santos & Lina Faria
Violência e Juventude, Marcia Faria Westphal & Cynthia Rachid Bydlowski
Walter Sidney Pereira Leser: das Análises Clínicas à Medicina Preventiva e à Saúde Pública, José Ruben de Alcântara Bonfim &
Silvia Bastos (orgs.)
Atenção em Saúde Mental para Crianças e Adolescentes no SUS, Edith Lauridsen-Ribeiro & Oswaldo Yoshimi Tanaka (orgs.)
Dilemas e Desafios da Gestão Municipal do SUS: Avaliação da Implantação do Sistema Municipal de Saúde em Vitória da Conquista
(Bahia) 1997-2008, Jorge José Santos Pereira Solla
Semiótica, Afecção e o Trabalho em Saúde, Túlio Batista Franco & Valéria do Carmo Ramos
Adoecimento Crônico Infantil: um estudo das narrativas familiares, Marcelo Castellanos
Poder, Autonomia e Responsabilização: Promoção da Saúde em Espaços Sociais da Vida Cotidiana, Kênia Lara Silva & Roseli Ro-
sângela de Sena
Política e Gestão Pública em Saúde, Nelson Ibañez, Paulo Eduardo Mangeon Elias & Paulo Henrique D’Angelo Seixas (orgs.)
Educação Popular na Formação Universitária: Reflexões com Base em uma Experiência, Eymard Mourão Vasconcelos & Pedro José
Santos Carneiro Cruz (orgs.)
O Ensino das Práticas Integrativas e Complementares: Experiências e Percepções, Nelson Filice de Barros, Pamela Siegel & Márcia
Aparecida Padovan Otani (orgs.)
Saúde Suplementar, Biopolítica e Promoção da Saúde, Carlos Dimas Martins Ribeiro, Túlio Batista Franco, Aluisio Gomes da Silva
Júnior, Rita de Cássia Duarte Lima, Cristina Setenta Andrade (orgs.)
Promoção da Saúde: Práticas Grupais na Estratégia Saúde da Família, João Leite Ferreira Neto & Luciana Kind
Capitalismo e Saúde no Brasil nos anos 90: as Propostas do Banco Mundial e o Desmonte do SUS, Maria Lucia Frizon Rizzotto
Masculino e Feminino: a Primeira Vez. A Análise de Gênero sobre a Sexualidade na Adolescência, Silmara Conchão
Educação Médica: Gestão, Cuidado, Avaliação, João José Neves Marins & Sergio Rego (orgs.)
Retratos da Formação Médica nos Novos Cenários de Prática, Maria Inês Nogueira
Saúde da Mulher na Diversidade do Cuidado na Atenção Básica, Raimunda Magalhães da Silva, Luiza Jane Eyre de Souza Vieira,
Patrícia Moreira Costa Collares (orgs.)
Cuidados da Doença Crônica na Atenção Primária de Saúde, Nelson Filice de Barros (org.)
Tempos Turbulentos na Saúde Pública Brasileira: Impasses do Financiamento no Capitalismo Financeirizado, Áquilas Mendes
A Melhoria Rápida da Qualidade nas Organizações de Saúde, Georges Maguerez
Saúde, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação, Ana Luiza d’Ávila Viana, Aylene Bousquat & Nelson Ibañez
Tecendo Redes: os Planos de Educação, Cuidado e Gestão na Construção do SUS. A Experiência de Volta Redonda (RJ), Suely Pinto,
Túlio Batista Franco, Marta Gama de Magalhães, Paulo Eduardo Xavier Mendonça, Angela Guidoreni, Kathleen Tereza da
Cruz & Emerson Elias Merhy (orgs.)
Coquetel. A Incrível História dos Antirretrovirais e do Tratamento da Aids no Brasil, Mário Scheffer
Psicanálise e Saúde Coletiva: Interfaces, Rosana Onocko Campos
A Medicina da Alma: Artes do Viver e Discursos Terapêuticos, Paulo Henrique Fernandes Silveira
Clínica Comum: Itinerários de uma Formação em Saúde (orgs.), Angela Aparecida Capozzolo, Sidnei José Casetto & Alexandre de
Oliveira Henz
Práxis e e Formação Paideia: apoio e cogestão em saúde, Gastão Wagner de Sousa Campos, Gustavo Tenório Cunha & Mariana
Dorsa Figueiredo (orgs.)
Intercâmbio Solidário de Saberes e Práticas de Saúde: Racionalidades Médicas e Práticas Integrativas e Complementares, Marilene
Cabral do Nascimento & Maria Inês Nogueira (orgs.)
Depois da Reforma: Contribuição para a Crítica da Saúde Coletiva, Giovanni Gurgel Aciole
Diálogos sobre a Boca, Carlos Botazzo
Violência e Saúde na diversidade dos escritos acadêmicos, Luiza Jane Eyre de Souza Vieira, Raimunda Magalhães da Silva & Samira
Valentim Gama Lira
Trabalho, Produção do Cuidado e Subjetividade em Saúde: Textos Reunidos, Túlio Batista Franco & Emerson Elias Merhy
Adoecimentos e Sofrimentos de Longa Duração, Ana Maria Canesqui (org.)
Os Hospitais no Brasil, Ivan Coelho
As Bases do Raciocínio Médico, Fernando Queiroz Monte
A Saúde entre os Negócios e a Questão Social: Privatização, Modernização e Segregação na Ditadura Civil—Militar (1964-1985),
Felipe Monte Cardoso
Descentralização e Política de Saúde: Origens, Contexto e Alcance da Descentralização, Ana Luiza d’Ávila Viana Análise Institucional e
Saúde Coletiva no Brasil, Solange L’Abbate, Lucia Cardoso Mourão & Luciane Maria Pezzato (orgs.)
Por uma Crítica da Promoção da Saúde: Contradições e Potencialidades no Contexto do SUS, Kathleen Elane Leal Vasconcelos &
Maria Dalva Horácio da Costa (orgs.)
Fisioterapia e Saúde Coletiva: Reflexões, Fundamentos e Desafios, José Patrício Bispo Júnior (org.)
Educação Popular na Universidade: Reflexões e Vivências da Articulação Nacional de Extensão Popular (Anepop), Pedro José Santos
Carneiro Cruz, Marcos Oliveira Dias Vasconcelos, Fernanda Isabela Gondim Sarmento, Murilo Leandro Marcos & Eymard
Mourão Vasconcelos (orgs.)
Regiões de Saúde: Diversidade e Processo de Regionalização em Mato Grosso, João Henrique Scatena, Ruth Terezinha Kehrig &
Maria Angélica dos Santos Spinelli (orgs.)
Avaliação de Projetos na Lógica da Promoção da Saúde na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Juan Carlos Aneiros Fernan-
dez & Marco Antonio de Moraes (orgs.)
As Ciências Sociais na Educação Médica, Nelson Filice de Barros
Os Mapas do Cuidado: o Agir Leigo na Saúde, Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Graça Carapinheiros & Rosemarie Andreazza (orgs.)
Saúde que Funciona: a Estratégia Saúde da Família no Extremo Sul do Município de São Paulo, Davi Rumel & Adélia Aparecida
Marçal dos Santos (eds.)
A reformulação da clínica e a gestão na saúde: subjetividade, política e invenção de práticas, Bernadete Perêz Coelho
Saberes e práticas na Atenção Primária à Saúde: Cuidado à População em Situação de Rua e Usuários de Álcool, Crack e Outras
Drogas, Mirna Teixeira & Zilma Fonseca (orgs.)
Velhos e Novos Males da Saúde no Brasil: de Geisel a Dilma, Carlos Augusto Monteiro & Renata Bertazzi Levy (orgs.)
Saúde e Utopia: o Cebes e a Reforma Sanitária Brasileira (1976-1986), Daniela Carvalho Sophia
Lutas Sociais e Construção do SUS: o Movimento de Saúde da Zona Leste e a Conquista da Participação Popular, João Palma
Uma ou Várias? IdentidadeS para o Sanitarista!, Allan Gomes de Lorena & Marco Akerman
O CAPSI e o desafio da Gestão em Rede, Edith Lauridsen-Ribeiro & Cristiana Beatrice Lykouropoulos (orgs.)
Rede de pesquisa em Manguinhos: sociedade, gestores e pesquisadores em conexão com o SUS, Isabela Soares Santos & Roberta
Argento Goldstein (orgs.)
Saúde e Atenção Psicossocial nas Prisões: um olhar sobre os Sistema Prisional Brasileiro com base em um estudo em Santa Catarina,
Walter Ferreira de Oliveira & Fernando Balvedi Damas
Reconhecer o Patrimônio da Reforma Rsiquiátrica: o que queremos reformar hoje? I Mostra de Práticas em Saúde Mental, Gastão
Wagner de Sousa Campos & Juliana Azevedo Fernandes (orgs.)
Envelhecimento: um Olhar Interdisciplinar, Lina Faria, Luciana Karen Calábria & Waneska Alexandra Alves (orgs.)
Caminhos da Vigilância Sanitária Brasileira: Proteger, Viagiar, Regular, Ana Figueiredo
Formação e Educação Permanente em Saúde: Processos e Produtos no Âmbito do Mestrado Profissional, Mônica Villela Gouvêa,
Ândrea Carsoso de Souza, Gisella de Carvalho Queluci, Cláudia Mara de Melo Tavares (orgs.)
Políticas, Tecnologias e Práticas em Promoção da Saúde, Glória Lúcia Alves Figueiredo & Carlos Henrique Gomes Martins (orgs.)
Políticas e Riscos Sociais no Brasil e na Europa: Convergências e Divergências, Isabela Soares Santos & Paulo Henrique de Almeida
Rodrigues (orgs.)
Investigação sobre Cogestão, Apoio Institucional e Apoio Matricial no SUS, Gastão Wagner de Sousa Campos, Juliana Azevedo
Fernandes, Cristiane Pereira de Castro & Tatiana de Vasconcellos Anéas (orgs.)
O Apoio Paideia e Suas Rodas: Reflexões sobre Práticas em Saúde, Gastão Wagner de Sousa Campos, Mariana Dorsa Figueiredo &
Mônica Martins de Oliveira (orgs.)
Trabalhar no SUS: gestão do trabalho, repercussões psicossociais e política de proteção à saúde, Francisco Antonio de Castro Lacaz,
Patrícia Martins Goulart, Virginia Junqueira
Práticas e saberes no hospital contemporâneo: o novo normal, Daniel Gomes Monteiro Beltrammi & Viviane Moreira de Camargo
(orgs.)
Corpo e pensamento: espaços e tempos de afirmação da vida na sua potência criadora, Valéria do Carmos Ramos, Maximus Taveira
Santiago & Paula Cristina Pereira (orgs.)
História da saúde no Brasil, Luiz Antonio Teixeira, Tânia Salgado Pimenta & Gilberto Hochman (orgs.)
Exploração sexual de crianças e adolescentes: interpretações plurais e modos de enfrentamento, Suely Ferreira Deslandes & Patrícia
Constantino (orgs.)
Educação popular em saúde: desafios atuais, Pedro José Santos Carneiro Cruz (org.)
Educação popular no Sistema Único de Saúde, Bruno Oliveira de Botelho, Eymard Mourão Vasconcelos, Daniela Gomes de Brito
Carneiro, Ernande Valentin do Prado & Pedro José Santos Carneiro Cruz (orgs.)
Formação e educação permanente em saúde: processos e produtos no âmbito do Mestrado Profissional, volume 2, Lucia Cardoso
Mourão, Ana Clementina Vieira de Almeida, Marcos Paulo Fonseca Corvino, Elaine Antunes Cortez & Rose Mary Costa Rosa
Andrade Silva (orgs.)
História, saúde coletiva e medicina: questões teórico-metodológicas, André Mota e Maria Cristina da Costa Marques (orgs.)
O médico alienado: reflexões sobre a alienação do trabalho na atenção primária à saúde, Lilian Terra
Estudos sobre teoria social e saúde pública no Brasil, Aurea Maria Zöllner Ianni
O Apoio Institucional no SUS: os dilemas da integração interfederativa e da cogestão, Nilton Pereira Júnior
Estado e sujeito: a saúde entre a micro e a macropolítica.. . de drogas, Tadeu de Paula Souza
Organizações sociais: agenda política e os custos para o setor público da saúde, Francis Sodré, Elda Coelho de Azevedo Bussinger
& Ligia Bahia (orgs.)
Privados de la salud: las políticas de privatización de los sistemas de salud en Argentina, Brasil, Chile y Colombia, María José Luzuriaga
Dicionário de empresas, grupos econômicos e financeirização na saúde, Júlio César França Lima (org.)
Vulnerabilidades e saúde: grupos em cena por visibilidade no espaço urbano, Glória Lúcia Alves Figueiredo, Carlos Henrique Gomes
Martins & Marco Akerman (orgs.)
Escola para todos e as pessoas com deficiência: contribuições da terapia ocupacional, Eucenir Fredini Rocha, Maria Inês Britto Bru-
nello & Camila Cristina Bortolozzo Ximenes de Souza (orgs.)