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Saúde em Debate 327

direção de
Gastão Wagner de Sousa Campos
José Ruben de Alcântara Bonfim
Maria Cecília de Souza Minayo
Marco Akerman
Yara Maria de Carvalho

ex-diretores
David Capistrano Filho
Emerson Elias Merhy
Marcos Drumond Júnior

É por certo a saúde coisa mui preciosa, a única mere-


cedora de todas as nossas atenções e cuidados e de que
a ela se ­sacrifiquem não somente todos os bens mas
a própria ­vida, por­ quanto na sua ausência a existên-
cia se nos torna pesada e porque sem ela o p ­ razer, a sa-
bedoria, a ciência, e até a virtude se turvam e se esvaem.
— Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592).
Ensaios. “Da semelhança dos pais com os filhos”.
Trad. Sérgio Milliet
SAÚDE EM DEBATE
títulos publicados após dezembro de 2018

A Ampliação do processo de privatização da saúde pública no Brasil, Jilia Amorim Santos


Escola para todos e as pessoas com deficiência: contribuições da terapia ocupacional, Eucenir Fredini Rocha, Maria Inês Brito
Brunello, Camila Cristina Bortolozzo Ximenes de Souza
Bases teóricas dos processos de medicalização: um olhar sobre as forças motrizes, Paulo Frazão e Marcia Michie Minakawa
Corpo com deficiência em busca de reabilitação? A ótica das pessoas com deficiência física, Eucenir Fredini Rocha
Crianças e adolescentes com doenças raras: narrativas e trajetórias de cuidado, Martha Cristina Nunes Moreira, Marcos An-
tonio Ferreira do Nascimento, Daniel de Souza Campos & Lidiane Vianna Albernaz (orgs.)
Bases da toxicologia ambiental e clínica para atenção à saúde: exposição e intoxcação por agrotóxicos, Herling GregorioAguilar
Alonzo & Aline de Oliveira Costa
Pesquisar com os pés: deslocamentos no cuidado e na saúde, Rosilda Mendes, Adriana Barin de Azevedo & Maria Fernanda
Petroli Frutuoso (orgs.)
Percepções amorosas sobre o cuidado em saúde: estórias da rua Balsa das 10, Julio Alberto Wong Un, Maria Amélia Medeiros
Mano, Eymard Mourão Vasconcelos, Ernande Valentin do Prado & Mayara Floss
Atividades humanas e Terapia Ocupacional: saber-fazer, cultura, política e outras resistências, Carla Regina Silva (org.)
A experiência do PET-UFF: composições de formação na cidade, Ana Lúcia Abrahão & Ândrea Cardoso Souza (orgs.)
Olhares para a saúde de mulheres e crianças: reflexões na perspectiva das boas práticas de cuidado e de gestão, Maria Auxilia-
dora Mendes Gomes, Cynthia Magluta & Andreza Rodrigues Nakano (orgs.)
Técnicas que fazem olhar e da empatia pesquisa qualitativa em ação, Maria Cecília de Souza Minayo & António Pedro Costa
Tempos cruzados: a saúde coletiva no estado de São Paulo 1920-1980, André Mota
Unidade Básica: a saúde pública brasileira na TV, Helena Lemos Petta
Decisões políticas e mudanças limitadas na saúde, Carmem E. Leitão Araújo
Ambulatório de especialidades: subsídios conceituais e organização de serviços a partir das experiências da enfermagem, Carla
Aparecida Spagnol & Isabela Silva Câncio Velloso (orgs.)
Clínica comum: fragmentos de formação e cuidado, Angela Aparecida Capozzolo, Sidnei José Casetto, Viviane Maximino
& Virgínia Junqueira (orgs.)
Contribuições do Mestrado Profissional para o ensino da enfermagem: experiências inovadoras no âmbito do SUS, Cláudia
Mara de Melo Tavares, Lucia Cardoso Mourão, Ana Clementina Vieira de Almeida & Elaine Antunes Cortez (orgs.)
O método apoio como ferramenta de prevenção e enfrentamento da judicialização da saúde no SUS, Tarsila Costa do Amaral
Violências e suas configurações.Vulnerabilidades, injustiças e desigualdades sociais, Lina Faria (org.)
Quando a história encontra a saúde, Ricardo dos Santos Batista, Christiane Maria Cruz de Souza & Maria Elisa Lemos
Nunes da Silva (orgs.)
Atenção Básica é o caminho! Desmontes, resistencias e compromissos: contribuições das universidades brasileiras para ava-
liação e pesquisa na APS. A resposta do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)
para a avaliação da Atenção Primária à Saúde, Marco Akerman, Patricia Rodrigues Sanine, Maria do Carmo Guima-
rães Caccia-Bava, Felipe Alvarenga Marim, Marilia Louvison, Lucila Brandão Hirooka, Cecília Kayano Morais & Maria
Cristina da Costa Marques (orgs.)
Atenção Básica é o caminho! Desmontes, resistencias e compromissos: contribuições das universidades brasileiras para ava-
liação e pesquisa na APS. Perspectivas: Avaliação, Pesquisa e Cuidado em Atenção Primária à Saúde, Marco Akerman,
Patricia Rodrigues Sanine, Maria do Carmo Guimarães Caccia-Bava, Felipe Alvarenga Marim, Marilia Louvison, Luci-
la Brandão Hirooka, Cecília Kayano Morais & Maria Cristina da Costa Marques (orgs.)
Entre o Público e o Privado: Hospital São Paulo e Escola Paulista de Medicina (1933 a 1988), Ana Nemi
Sobre a pandemia: experiências, tempos e reflexões, André Mota (org.)
Formação e Educação Permanente em Saúde: Processos e Produtos no Âmbito do Mestrado Profissional, volume 3, Benedi-
to Carlos Cordeiro, Helen Campos Ferreira & Miriam Marinho Chrizoztimo (orgs.)
Atenção primária e atenção especializada no SUS: análise das redes de cuidado em grandes cidades brasileiras, Cristiane
Pereira de Castro, Gastão Wagner de Sousa Campos & Juliana Azevedo Fernandes (orgs.)
Itinerários de Asclépios: para a compreensão da gestão da clínica, Giovanni Gurgel Aciole
Medicalização do parto: saberes e práticas, Luiz Antonio Teixeira, Andreza Pereira Rodrigues, Marina Fisher Nucci &
Fernanda Loureiro Silva
Nas Entranhas da Atenção Primária à Saúde: o cotidiano entre a formação e a prática, Felipe Guedes, Gastão Wagner de
Sousa Campos, Lilian Soares Vidal Terra & Mônica Martins de Oliveira Viana

as demais obras da coleção “saúde em debate” acham-se no final do livro.


NAS ENTRANHAS
DA ATENÇÃO PRIMÁRIA
À SAÚDE

o cotidiano entre a formação e a prática
Felipe Guedes
Gastão Wagner de Sousa Campos
Lilian Soares Vidal Terra
Mônica Martins de Oliveira Viana
organizadores

NAS ENTRANHAS
DA ATENÇÃO PRIMÁRIA
À SAÚDE

o cotidiano entre a formação e a prática

HUCITEC EDITORA
São Paulo, 2021
© Direitos autorais, 2021, da organização de,
Felipe Guedes, Gastão Wagner de Sousa Campos,
Lilian Soares Vidal Terra & Mônica Martins de Oliveira Viana
Direitos de publicação reservados por
Hucitec Editora Ltda.
Rua Dona Inácia Uchoa, 209
04110-020 São Paulo, SP.
Tel.: (55 11) 3892-7772 3892-7776
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Depósito Legal efetuado.

Direção editorial
Mariana Nada
Produção editorial
Kátia Reis
Assistência editorial
Mariana Bizzarro Terra
Circulação
Elvio Tezza

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Sumário

11   As autoras e os autores

17   Apresentação, Os organizadores

    PARTE I

Capítulo 1
23 Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada: a experiência pai-
deia, Gastão Wagner de Sousa Campos
Capítulo 2
49 Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde: reflexões a
partir da experiência, Mônica Martins de Oliveira Viana & Gizélia Ro-
sana Quadrado Carmazini
Capítulo 3
72 Contribuições pedagógicas dos Grupos ­Balint-Paideia: reflexão sobre
a prática, Lilian Soares Vidal Terra, Gustavo Tenório, Mônica Martins
de Oliveira, Jorge Mendes Ávila & Gizélia Rosana Quadrado Carmazini

Sumário • 7
Capítulo 4
92 Clínica ampliada na formação médica: o uso do Método Balint-Pai-
deia, Elisa Toffoli Rodrigues, Erica Maria Ferreira Oliveira, Fernanda
Nogueira Campos Rizzi, Henrique Cardoso Marcene, Gabriela Ferrei-
ra de Camargos Rosa, Vilson Limirio Junior & Gastão Wagner de Sou-
sa Campos

    Capítulo 5
108 Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho: observa-
ções de um curso de formação, Robenia Mara Ribeiro, Adilson Rocha
Campos, Julia Amorim Santos & Gastão Wagner de Sousa Campos

    PARTE II

    Capítulo 6
135 O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise: desafios na am-
pliação da clínica, Felipe Guedes, André Pimenta de Melo & Lilian
Soares Vidal Terra

   Capítulo 7
154 Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde: o método delibera-
tivo como dispositivo de educação permanente, Daniele Pompei Sa-
cardo

Capítulo 8
174 Exposição à violência: desafios e recomendações para a articulação
de redes junto da Atenção Primária à Saúde, Carolina Con Andrades
Luiz, Alice Andrade Silva, Vanessa Eda Paz Leite, Leidy Janeth Erazo
Chavez, Bruna Jandoso, Rafael Freitas Colaço, Juliana Américo Dai-
nezi, Giovana Pellatti, Bruna Maiara Melo de Paula, Newton Cesar
Caetano Monteiro, Renata Marques Rego Miranda & Rosana Teresa
Onocko-Campos

Capítulo 9
193 Desafios na atenção ao público infanto-juvenil na Atenção Primária
à Saúde (APS): violência, notificação e cuidado, Felipe Guedes, Pedro
Henrique Pirovani Rodrigues & Alice Andrade Silva

8 • Sumário
Capítulo 10
213 Experimentações para a construção de novas abordagens de ­saúde
da mulher na Atenção Primária à Saúde, Thais Machado Dias, Ca-
thana Freitas de Oliveira & Lilian Soares Vidal Terra

Capítulo 11
234 Atenção aos pacientes crônicos na APS: ir onde o povo está, conver-
sar, versar, fazer conversação, com versos e ações, Adail de Almeida
Rollo & Gastão Wagner de Sousa Campos

Capítulo 12
252 Elementos fundamentais para a abordagem do uso problemático de
SPA no contexto da APS, André Pimenta de Melo & Débora Gomes
de Melo dos Santos Medeiros

    PARTE III

Capítulo 13
281 Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada e Compartilha-
da: contribuições dos Grupos Balint-Paideia, Elisa Toffoli Rodrigues,
Fernanda Nogueira Campos Rizzi, Henrique Cardoso Marcene & Gas-
tão Wagner de Sousa Campos

Capítulo 14
304 Grupo de autocuidado apoiado: estratégia de qualificação do cuida-
do aos usuários com hipertensão e diabetes na APS, Vanessa Cristina
dos Santos Pinto, Gustavo Tenório Cunha & Mônica Martins de Oli-
veira Viana

Capítulo 15
320 A bailarina e o mar: acompanhamento de um caso grave de saúde
mental na Atenção Primária à Saúde, Natálhia Ferrari Gabetta, Mér-
cia Flaibam Romanin, Felipe Guedes & Adail de Almeida Rollo

Capítulo 16
337 O cuidado a idosos em situação de vulnerabilidade: desafios para
uma equipe da APS, Vanessa Bueno da Silva, Adilson Rocha Campos,
Robenia Mara Ribeiro & Julia Amorim Santos

Sumário • 9

Capítulo 17
349 Enfrentando na Atenção Básica o desafio do cuidado a uma família
com mulher em situação de abuso de substâncias psicoativas e filhos
sob a violação de direitos, Paulo Vicente Bonilha Almeida, Carolina
Da Silva Krzesinski, Marcia Merisse & Rosangela Santos Oliveira

362   Apêndice, Mônica Martins de Oliveira Viana & Tatiana de Vascon-


cellos Anéas

10 • Sumário
As autoras e os autores

Adail de Almeida Rollo, médico, especialista em medicina interna e saúde


pública, profissional de apoio ao ensino, pesquisa e extensão do DSC/FCM/
UNICAMP.
Adilson Rocha Campos, médico sanitarista (UNICAMP), especialista em
Saúde do Trabalhador (ENSP) e em Gestão (Sírio Libanês). Professor do
curso de graduação em Medicina da PUC-Campinas e médico da Atenção
Primária à Saúde de Campinas.
Alice Andrade Silva, psicóloga, mestre em Psicologia Institucional (UFES)
e doutoranda em Saúde Coletiva (UNICAMP).
André Pimenta de Melo, psicólogo (PUC-SP), especialista em Saúde Men-
tal (FCM/UNICAMP), mestrando em Saúde Coletiva pela UNICAMP.
Pesquisador do LEIPSI/UNICAMP (Laboratório de Estudos Interdiscipli-
nares sobre Psicoativos) desde 2016. Coordenador do núcleo de Fenome-
nologia da Associação Brasileira de Estudos Multidisciplinares de Drogas
(ABRAMD) desde 2018.
Bruna Jandoso, psicóloga (UFSCar), residente no Programa de Residência
Multiprofissional em Saúde Mental (UNICAMP).

As autoras e os autores • 11
Bruna Maiara Melo de Paula, terapeuta ocupacional (UFSCar), residen-
te no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental (UNI-
CAMP).
Carolina Con Andrades Luiz, terapeuta ocupacional, mestre e doutoran-
da em saúde coletiva (UNICAMP).
Carolina da Silva Krzesinski, enfermeira especialista em neonatologia,
cardiologia e saúde da família. Atuando como enfermeira na Atenção Pri-
mária à Saúde.
Cathana Freitas de Oliveira, psicóloga, mestre em Psicologia Social e dou-
toranda pelo Departamento Saúde Coletiva da UNICAMP. Doula, mãe do
João, de 1 ano, período integral.
Daniele Pompei Sacardo, professora doutora do Departamento de Saú-
de Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), área de Ética e Saúde. Professora do Programa de
Pós-Graduação Mestrado Profissional em Saúde Coletiva: Política e Gestão
em Saúde.
Débora Gomes de Melo dos Santos Medeiros, médica Psiquiatra (IP-
SEMG), em atuação na Atenção Primária à Saúde de São Paulo. Conselhei-
ra no Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas do estado de São Paulo
(CONED-SP) e membro do Laboratório de Estudos Interdisciplinares so-
bre Psicoativos (LEIPSI UNICAMP). Doutoranda em Saúde Coletiva (Polí-
tica, Planejamento e Gestão em Saúde) pela Faculdade de Ciências Médicas
da Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP).
Elisa Toffoli Rodrigues, médica de Família e Comunidade. Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UNICAMP. Do-
cente do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Erica Maria Ferreira Oliveira, médica de Família e Comunidade. Mes-
tre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Docente do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina
da UFU.
Felipe Guedes, psicólogo (UFBA), especialista em Saúde Mental (UNI-
CAMP), pesquisador do Coletivo de Estudos e Apoio Paideia (­UNICAMP).

12 • As autoras e os autores
Fernanda Nogueira Campos Rizzi, psicóloga. Doutora em Saúde Mental
pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto – USP. Tutora da residência
multiprofissional em saúde mental da UFU.
Gabriela Ferreira de Camargos Rosa, médica pela Universidade Federal
de Uberlândia. Médica residente em Emergência na Secretaria de Estado
de Saúde do Distrito Federal, Brasília DF.
Gastão Wagner de Sousa Campos, médico sanitarista e professor titular
do Departamento de Saúde Coletiva da UNICAMP.
Giovana Pellatti, terapeuta ocupacional, especialista em dependência quí-
mica, supervisora da residência multiprofissional em saúde mental (UNI-
CAMP) e mestranda em saúde coletiva (UNICAMP).
Gizélia Rosana Quadrado Carmazini, psicóloga (UNIP), especialista em
Infância: Violência Doméstica Contra Criança e Adolescente (Centro Uni-
versitário Salesiano de São Paulo – UNISAL), mestranda em Saúde Co-
letiva pela UNICAMP. Mãe da Maitê, que ainda não completou um ano,
período integral.
Gustavo Tenório Cunha, médico, doutor em Saúde Coletiva (­UNICAMP),
professor do Departamento de Saúde Coletiva da FCM/UNICAMP.
Henrique Cardoso Marcene, médico de Família e Comunidade.
Jorge Mendes Ávila, enfermeiro (UFJF). Especialista em Saúde Pública
pela Faculdade de Saúde Pública da USP, especialista em Gestão e serviços
de saúde pela UNICAMP, mestrando em Saúde Coletiva pela U ­ NICAMP.
Técnico da área de planejamento da Secretaria Municipal de Saúde de
Campinas/SP.
Julia Amorim Santos, psicóloga (UFSCar), especialista em Saúde da Fa-
mília e Comunidade (UFSCar) e em Especialização em Processos Educa-
cionais na Saúde (Sírio-Libanês). Mestra em Saúde Coletiva (UNICAMP),
doutoranda em Saúde Pública (USP).
Juliana Américo Dainezi, psicóloga, especialista em Clínica Psicossomáti-
ca, mestranda em Saúde Coletiva (UNICAMP).
Leidy Janeth Erazo Chavez, psicóloga, doutora em Saúde Coletiva (UNI-
CAMP).

As autoras e os autores • 13
Lilian Soares Vidal Terra, médica (UFMG), mestra em Saúde C ­ oletiva
(UNICAMP). Pesquisadora do Departamento de Saúde Coletiva FCM/
UNICAMP (doutoranda). Mãe do Caetano, de um ano, período ­integral.
Marcela Borgonovi Lima, terapeuta ocupacional (PUC-Campinas). Espe-
cialista em Psiquiatria e Psicologia Clínica da Adolescência (UNICAMP)
e Especialista em Saúde da Família (UNICAMP). Centro de Convivência
Viver e Conviver (Prefeitura Municipal de Campinas).
Márcia Aparecida Silva Merisse, assistente social (Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho) especialista em violência (ENSP) e em
Apoio Matricial (UNICAMP).
Mércia Flaibam Romanin, psicóloga (PUC-Campinas), Aprimoramento
em Psicologia da Saúde/Clínica (PUC-Campinas), Especialista em Saúde
da Família.
Mônica Martins de Oliveira Viana, doutora em Política, planejamento e
gestão em Saúde Coletiva (UNICAMP). Pesquisadora do Instituto de Saú-
de – SES/SP; São Paulo. Mãe do Francisco, de dois anos, trabalhando em
home office.
Natálhia Ferrari Gabetta, terapeuta ocupacional (USP). Residên-
cia em Saúde Mental (UNICAMP) e Especialista em Saúde da Família
(­UNICAMP).
Newton Cesar Caetano Monteiro, pedagogo pelo “Centro Universitário
Amparense” e coordenador em Serviço de acolhimento em Repúblicas
para Jovens (Campinas).
Paulo Vicente Bonilha Almeida, médico pediatra e de Saúde Pública.
Apoiador da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas. Assistente no
Departamento de Saúde Coletiva – FCM/UNICAMP.
Pedro Henrique Pirovani Rodrigues, psicólogo, especialista em Saúde
Mental (UNICAMP), trabalhador da Rede de Saúde de Limeira/SP.
Rafael Freitas Colaço, psiquiatra, preceptor da Residência de Psiquiatria
do serviço de saúde Dr. Cândido Ferreira, mestrado em Saúde Coletiva e
doutorando em Saúde Coletiva (UNICAMP).
Renata Marques Rego Miranda, psicóloga, especialista em Psicoterapia
Psicanalítica, mestre em Psicologia como Profissão e Ciência (PUC-Cam-
pinas).

14 • As autoras e os autores
Robenia Mara Ribeiro, médica de Família e Comunidade, especialista em
Medicina do Trabalho pelas Faculdades Unidas do Norte de Minas (2014),
mestranda em Saúde Coletiva pela UNICAMP.
Rosana Teresa Onocko-Campos, médica, psicanalista, professora da Fa-
culdade de Ciências Médicas da UNICAMP e coordenadora do Laborató-
rio de Saúde Mental e Coletiva Interfaces.
Rosângela Santos Oliveira, psicóloga (UFBA). Especialista em Saúde
Mental (UNICAMP). Coordenadora do CAPS AD (Prefeitura Municipal
de Itatiba).
Tatiana de Vasconcellos Anéas, psicóloga (PUC-São Paulo), mes-
tre em Medicina Preventiva (FMUSP), doutora pelo em Saúde Coletiva
(­UNICAMP). Atualmente é preceptora de Educação Permanente pela
SPDM/PAIS no município de São Paulo.
Thais Machado Dias, médica de Família e Comunidade, mestre em Saúde
Coletiva (UNICAMP). Preceptora de Graduação e Residência médica da
UNICAMP.
Vanessa Bueno da Silva, enfermeira (UNIFENAS), especialista em Saúde
da Família (EXTECAMP/UNICAMP).
Vanessa Cristina dos Santos Pinto, enfermeira, especialista em ­Saúde da
Família (EXTECAMP/UNICAMP), coordenadora da Unidade Básica de
Saúde Paranapanema (Campinas/SP).
Vanessa Eda Paz Leite, psicóloga. Especialista em Saúde Mental (UNI-
CAMP) e mestranda em Saúde Coletiva (UNICAMP).
Vilson Limirio Junior, médico pela Universidade Federal de Uberlândia
(UFU). Médico residente em Clínica Médica na UFU, Uberlândia/MG.

As autoras e os autores • 15
Apresentação

P assados mais de 25 anos da adoção do Programa de Saúde da Família


como estratégia organizadora da Atenção Primária à Saúde (APS) no
Brasil é evidente o protagonismo desse nível de atenção na estruturação do
Sistema Único de Saúde (SUS). De lá pra cá, os desafios enfrentados para a
consolidação da APS em nosso país são incontáveis e atravessam os cam-
pos político, econômico, geográfico e formativo. Parcela importante desses
desafios, no entanto, advém justamente do avanço da sua implementação
(ainda que parcial) e da penetração que as equipes foram conquistando nos
mais diversos territórios espalhados por todo o país. É sobre parte desses
(novos) desafios que este livro busca se debruçar.
Podemos considerar esta obra como uma relativa continuação das re-
flexões reunidas por nós no “Manual de Práticas de Atenção Básica” (Huci-
tec). Semelhante àquele, este livro teve como ponto de partida um curso de
especialização ofertado a trabalhadoras e trabalhadores da Atenção Primá-
ria à Saúde, embora as elaborações apresentadas nos capítulos que seguem
ultrapassem o curso. Mirando a complexidade das demandas e os proble-
mas que os profissionais da APS encaram em seu cotidiano, esse livro bus-
ca pensar a necessária ampliação da clínica requerida por essas questões,
tendo a formação e a prática como seus horizontes.

Apresentação • 17
O título que escolhemos presta uma homenagem a Antonio Lancetti.
Ele foi uma figura importante na construção do SUS e de novas políticas
e práticas em Saúde Mental. Ativista, lutou pelo direito universal à saúde
e pela democracia. Teórico, publicou livros e artigos referentes à reforma
sanitária. Profissional dedicado, foi um excelente terapeuta.
Tinha uma personalidade exuberante e carismática. Indignava-se
com a hipocrisia, a injustiça e com o descaso à imensa desigualdade social,
econômica e de gênero existente na sociedade brasileira. Nos últimos anos
de vida, ele vinha utilizando a expressão “nas entranhas” como metáfora
para indicar aquela grande parcela da população vítima da desigualdade e
da exploração.
“Entranhas” é aquela parte do corpo humano essencial para sustenta-
ção da vida, mas que não é visível. Exatamente como acontece com aqueles
que trabalham em silêncio, sem fazer muito alarde, a não ser em situações
de crise, mas que são desconsiderados pelo discurso dominante na mídia
e na cultura da elite. “Entranhas” é onde também se localiza grande parte
das graves enfermidades de uma pessoa. Algo que precisa ser investigado,
buscado, para que se perceba a existência de tal ou qual mazela.
Exatamente como a desigualdade no Brasil. Está oculta no subúrbio,
nas periferias e entre trabalhadores e autônomos da base da pirâmide de
renda do país. São necessárias investigações sociológicas e econômicas que
evidenciem a profundidade deste abismo social. Historiadores têm de-
monstrado também o caráter crônico dessa injustiça social: passam-se as
décadas, os governos, e a injustiça permanece, algumas vezes com facetas
que agravam a iniquidade existente na sociedade brasileira.
Pois bem, o livro Nas entranhas da Atenção Primária à Saúde esfor-
çou-se para trazer à luz sérios desequilíbrios e desigualdades que fazem
parte do cotidiano daqueles que utilizam e trabalham na Atenção Primá-
ria à Saúde. Conseguiu-se, em grande medida, lograr essa façanha por vá-
rios motivos. Primeiro, porque é um livro escrito por dezenas de autores.
Segundo, que parte importante desses autores são trabalhadores de saúde
imersos no dia a dia na atenção a pessoas que vivem nas comunidades lo-
calizadas na periferia das cidades. Outros são professores e pesquisadores
da Universidade Estadual de Campinas.
Teve também importância nesse desvelamento da desigualdade, da
violência estrutural e da degradação social e urbana, o método pedagógico
empregado no tal curso. A formação se baseou na discussão de casos eleitos
pelos próprios trabalhadores das equipes e dos NASF. Operou-se com um
conceito ampliado de casos, poderiam se referir a fenômenos clínicos, fa-
miliares, comunitários, epidemiológicos e institucionais (a gestão do SUS).

18 • Apresentação
Convocar os trabalhadores à produção de conhecimento, sobretudo
a partir da reflexão despertada por casos atendidos, mostrou-se um cami-
nho fértil para trazer à tona a complexidade dos problemas abordados pela
APS, reforçando que este nível de atenção está longe de ser “básico”. Além
disso, pode-se dizer que funcionou de forma importante na percepção que
os próprios trabalhadores têm sobre as tarefas que desenvolvem, ajudando
a transformar uma prática que às vezes é tomada como conjunto de fatos
pobres de sentido em uma experiência encarnada.
Bem, desse amálgama se produziu muitas coisas. Entre elas, os capítu-
los que compõem este livro. Neles estão descritas e analisadas as Entranhas
da Atenção Primária. A glória e o sofrimento que é trabalhar na Atenção
Primária do SUS. A falta de recursos, a precariedade da gestão, desde ges-
tores perversos à decisão deliberada de desconstruir as políticas públicas. A
alegria de reconhecer que, em algumas vezes, a resistência funcionou e que
pessoas se reabilitaram ou que a comunidade logrou reagir coletivamente
ao abuso e à carência.
Aparece também a dificuldade de viver da parcela da população bra-
sileira que mora em territórios altamente vulneráveis. As narrativas ela-
boradas tratam das dificuldades que é envelhecer, que é ser mulher, avó,
mãe, jovem, criança no contexto brasileiro, em geral, e nas periferias, em
particular. Comenta também as estratégias de sobrevivência e mesmo de
resistência política dessa gente humilhada e ofendida.
Trata-se de um livro diferente. Discute-se política e poder com im-
portante distância do discurso oficial e do que vai pelos gabinetes do estado
brasileiro. O objeto de análise são a cultura e as práticas dos trabalhadores
de saúde. O centro é compreender como os habitantes das comunidades
se relacionam com o SUS, com os profissionais e com sua própria saúde.
Discute-se, também, muita clínica e saúde coletiva. Mais do que comentar
protocolos ou programas, parte-se da prática, de uma prática onde a di-
mensão orgânica não se separa do subjetivo e das marcas que o contexto
social impõe aos sujeitos. Tudo junto, de cambulhada, às vezes protegendo,
e, mais frequentemente, agravando as condições de saúde das pessoas, fa-
mílias e comunidade.
Como organização, optamos em dividir o livro em três partes: a pri-
meira delas, composta por cinco capítulos, foca as experiências de forma-
ção na APS pensadas a partir do Método Paideia; a segunda parte, da qual
fazem parte sete capítulos, se detém em explorar algumas problemáticas
que têm relevância pela sua magnitude epidemiológica ou por representar
um campo de vulnerabilidades específicas e que atravessam o cotidiano do
trabalho, demandando um diálogo com outras áreas e campos do saber que

Apresentação • 19
vão além do “setor saúde”; na terceira e última parte, com seis capítulos, são
apresentadas reflexões baseadas em casos atendidos por profissionais da
Atenção Primária à Saúde, a partir de relatos resumidos dessas experiên-
cias, em uma tentativa de articular teoricamente os problemas vivenciados
pelos profissionais, buscando mitigar a distância entre a teoria e prática, en-
tre a academia e os serviços de saúde. Além disso, acrescentamos um apên-
dice para refletir acerca do NASF como política pública ameaçada, tema
que atravessou a maior parte das discussões ao longo do curso, presente
também, invariavelmente, nos relatos de casos.
Este livro buscou conciliar as discussões políticas e técnicas que en-
volvem a Atenção Primária, sem perder de vista as experiências vividas
pelos profissionais, naquilo que elas têm de mais visceral, indo além das
recomendações ou dos protocolos. Vale a pena ler e estudar cada um dos
capítulos. Os profissionais atuaram imbuídos de praticar uma Clínica Am-
pliada e Compartilhada e de construir espaços coletivos de Cogestão tanto
intramuros quanto com a sociedade.
Há muita reflexão sobre a potência e sobre o fracasso destes esforços.
Procurou-se não se fazer concessões à hipocrisia.

Felipe Guedes
Gastão Wagner de Sousa Campos
Lilian Soares Vida Terra
Mônica Martins de Oliveira Viana

20 • Apresentação
Parte I
Capítulo 1
Em busca de uma práxis ampliada
e compartilhada: a experiência paideia

Gastão Wagner de Sousa Campos


2020 (ano I da Pandemia)

Limites e possibilidades de defesa da vida pelos profissionais


e instituições de saúde

Quando escrevi sobre o Método Paideia (Hucitec, 2000), apontei a


dificuldade de trabalhadores da saúde pensarem sentido em seu fazer co-
tidiano para além de assegurar a própria sobrevivência. Um fenômeno
denominado de alienação e analisado por cientistas sociais, em geral, de
inspiração marxista. Lembrei, naquele livro, que artistas e filantropos, ao
contrário da maioria dos trabalhadores, tendem a denominar de “obra” o
produto de seu labor. Obra como sendo algo significativo tanto para outros,
quanto para o próprio produtor.
Pensar sobre as dificuldades e possibilidades de o trabalho em saúde
se centrar na defesa da vida é o objetivo deste artigo. Buscar, na ­experiência

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 23


concreta de quem trabalha e na filosofia crítica, estratégias para reduzir o
coeficiente de alienação dos trabalhadores. Resumindo: apostar na cons-
trução de sentido e de significado para o trabalho. Naquela ocasião, eu
chamava atenção para o fato de que apenas o apelo moral ou ético, como
“sejamos colaborativos”, uma versão contemporânea e apequenada do ve-
lho mandamento de “amar o próximo como a si mesmo”, é uma empresa
tendente ao fracasso. A possibilidade de identificar-se com o próprio tra-
balho depende tanto de condições de possibilidades socialmente existen-
tes, quanto da capacidade pessoal de combinar, em distintas proporções,
desejos, interesses e valores próprios com aqueles de outras pessoas. Daí,
naquele livro, eu argumentava sobre a relevância de se instituir processos
de trabalho e relações entre profissionais e usuários baseados na Cogestão,
a partir da interatividade e da sociabilidade democrática e reflexiva.
Em síntese, o exercício de sociabilidade democrática depende tanto
de condições socio-históricas quanto da capacidade subjetiva e prática das
pessoas e das coletividades.
Encontrei um parágrafo escrito por Renato Mezan em Freud, pensa-
dor da cultura (2005) que nos diz, de uma maneira radicalmente criativa,
sobre a complexidade da formação do ser humano:
“O artista tem êxito onde o neurótico fracassa; e a origem desse processo
está não apenas na constituição particular de cada um deles, mas num fenô-
meno que os transcende e os envolve em uma trama: a própria organização
social, fonte de um excesso de repressão que se manifesta sob formas institu-
cionais e ideológicas diversas, porém cujo resultado é sempre o mesmo — a
produção, em grande escala, de um sofrimento inútil” (p. 264).
Nesse mesmo livro, Mezan reitera que, durante uma conferência em
1904, Freud “compara a psicoterapia a uma segunda educação, cuja, finali-
dade é vencer o excesso de repressão”.
Bem, se trata de uma concepção ativa: os sujeitos, as pessoas podendo
aprender a lutar contra o excesso de repressão, tanto daquela originária no
contexto social e cultural, quanto daquela internalizada.
A partir dessas reflexões caberia perguntar: em que medida, proces-
sos de formação e o próprio exercício cotidiano do trabalho em saúde não
poderiam buscar estes mesmos objetivos, não apenas vencer o excesso de
repressão imposto pela estrutura social, mas também reduzir aquela parce-
la de repressão e de inibição internalizada? Como mudar as coisas e as pes-
soas? Dizendo de outra forma, como reformular o contexto sociocultural,
as instituições e os sujeitos?
A concepção Paideia se funda sobre este desafio. Metodologias
de Apoio Institucional, de Cogestão, de trabalho interprofissional e

24 • Capítulo 1
c­ ompartilhado com usuários, são todas estratégias para aumentar a dimen-
são “obra” no trabalho de cuidar e de educar. Busca-se um híbrido: profis-
sionais de saúde, que sejam também pedagogos, terapeutas e artistas. Seres
da práxis.
Para tornar concreta esta possibilidade é fundamental também refor-
mular as instituições de maneira que ampliem as condições de possibilida-
de para a práxis.

O papel dos sujeitos

Pois bem, neste sentido é importante não desistir das pessoas. Apos-
tar na possibilidade de formação permanente dos seres humanos.
No contemporâneo há um importante reconhecimento da importân-
cia da participação das pessoas na manutenção e cuidado tanto da própria
saúde quanto daquela da coletividade. Nessa perspectiva, o desafio de uma
formação ampliada, Paideia, não poderia se dirigir apenas aos profissio-
nais, mas, precisaria descobrir estratégias para envolver a sociedade como
um todo, incluindo, com ênfase especial, aqueles usuários dos sistemas de
saúde. Toda clínica, todo o trabalho em saúde, precisaria partir dessa visão
ampliada e combinar estratégias clínicas e preventivas com outras de cará-
ter terapêutico e pedagógico.
Os conhecimentos em saúde baseados em evidências, medicina,
odontologia, enfermagem, fisioterapia, entre outras áreas, buscam a obje-
tividade absoluta. Com essa finalidade foram obrigados a transformar um
fenômeno complexo e abstrato, a doença, em um fato, ou seja, em algo
concreto. Como se a doença fosse uma coisa encontrável fora dos livros
científicos. O questionamento das escolas centradas na recomendação de
se praticar a clínica ou a saúde pública a partir de uma objetividade absolu-
ta tem sido a pedra de toque de movimentos críticos e inovadores na área
da saúde.
Para a Clínica Ampliada e Compartilhada (Campos, 2006) não há
como separar a doença, o risco e as vulnerabilidade do sujeito e de seu con-
texto sociocultural. Note-se, no entanto, que sem algum conceito de doen-
ça não há clínica e tampouco saúde pública. A proposta da Clínica Amplia-
da e Compartilhada é tomar de modo reflexivo as definições de risco e de
doença, sugerindo que sejam sempre examinadas encarnadas em pessoas,
comunidades e populações, as quais, por sua vez, existem em contextos
socioculturais diversificados. Ora, essa simples operação, a consideração
dos sujeitos em sua sociabilidade, modifica, e quase que explode a noção

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 25


de doença, já que estar-se-á obrigado a considerá-la em sua variedade de
semblantes, de apresentações, causado pela singularidade intrínseca aos fe-
nômenos subjetivos e sociais.
Daí a centralidade do sujeito para a Clínica Ampliada e Comparti-
lhada. Não somente como um elemento que complexifica o diagnóstico e a
terapêutica para os profissionais, mas, principalmente, por reconhecer que
os sujeitos são necessários para compreender, controlar ou resolver os seus
próprios problemas de saúde.
Em alguma medida, todo mundo é terapeuta e algoz de si mesmo e
dos outros também. Todo mundo protege e destrói o ambiente, as cidades
e a sociabilidade. O que varia é o grau em que esses efeitos ocorrem. E estas
variações não são banais já que diferenciam o assassino, o tirano, daqueles
cuidadores solidários.
De certo modo, diversas abordagens ampliadas do processo saúde,
doença e cuidado vêm sendo utilizada no Brasil e em vários outros países,
objetivando, frequentemente, reformas nas práticas em saúde. A promoção
à saúde, de origem canadense, advoga “mudança no estilo de vida” e valo-
riza a interferência nos determinantes sociais do processo saúde e doen-
ça (Westphal, 2006). Diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS)
incluem o “autocuidado” como elemento fundamental para qualificar o
acompanhamento em agravos crônicos, em saúde materno-infantil, em
saúde mental e de idosos. Também a partir do Canadá vem se estenden-
do um novo paradigma para o trabalho em saúde denominado “medicina
centrada no paciente” (Moira et al., 2017), em geral, tendo como referencial
uma ampliação das práticas médicas a partir de abordagem psicológica em
uma perspectiva sistêmica e cognitiva. Essa escola tomou da antropologia a
importante noção sobre a “experiência de viver com uma doença”. Admite-
-se que há, portanto, pelo menos duas percepções e dois discursos diferen-
tes sobre a doença: a perspectiva biomédica e a dos sujeitos portadores de
agravos à saúde. Sendo assim, o manejo clínico estaria obrigado a operar,
sempre, com esses diferentes modos de compreender o processo (Steward,
Brown, Weston et al. 2010).

O tema da incorporação do psíquico na Atenção Primária à Saúde


(APS): o pioneirismo do Reino Unido

Uma característica essencial do National Health Service (NHS) é a


relevância dada à APS desde sua fundação em 1948. A APS não somente
está integrada em rede com outros serviços do sistema, como tem um papel

26 • Capítulo 1
de coordenação do cuidado. A viabilidade econômica e funcional do NHS
depende da abrangência e da resolutividade da APS.
Para assegurar este padrão de funcionamento a APS se organizou
centrada na figura do médico geral (General Practitioner, GP), um profis-
sional encarregado de lidar com doenças agudas e crônicas e ainda realizar
ações preventivas e de educação em saúde; ou seja, desempenhar funções
clínicas e de saúde pública.
Os GPs trabalham com uma população definida sob sua responsa-
bilidade, objetivando criar possibilidades de seguimento longitudinal dos
casos e de estabelecer vínculos adequados com usuários. Essa estratégia
organizacional da prática busca criar condições para que os GPs produzam
efeitos positivos sobre o modo de pensar e de agir das pessoas. No jargão
que utilizo, eu diria produzir efeito Paideia.
A inscrição de pessoas na APS tende a abranger toda a população,
funcionando os GPs como filtro para acesso a especialistas e hospitais. A
gestão da APS também assegura a possibilidade de escolha pelo usuário de
médicos por região. O modelo de gestão é desburocratizado com autono-
mia relativa dos GPs e das enfermeiras da APS. Há ainda uma rede de apoio
social (assistentes sociais, visitadoras e outros profissionais) para os GPs e
para as enfermeiras, o que lhes facilitaria ampliar a capacidade de brindar
necessitados com assistência psicológica e social (ver site NHS, esses servi-
ços são organizados por distrito sanitário).
De qualquer modo, grande parte da abordagem psicossocial depende
dos GPs e das enfermeiras.
Ainda nos anos cinquenta do século XX, Michel Balint (1975) iden-
tificou, mediante levantamento, que 40 % dos casos da APS na Inglaterra
apresentavam um componente psicológico importante. Ele observou tam-
bém que os GPs não tinham formação terapêutica necessária para lidar
com os problemas psíquicos presentes em importante parcela de seus casos.
Balint pode ser considerado um dos pioneiros na tentativa de esten-
der saberes e práticas, originários da saúde mental, para profissionais que
trabalhem na Atenção Primária. Ele foi um psicanalista rebelde diante do
padrão tradicional da psiquiatria e do movimento psicanalítico na Euro-
pa. Ele pertencera ao grupo liderado por Sándor Ferenczi, organizador
­heterodoxo da escola húngara de psicanálise. Prosseguindo na linha crítica
da escola húngara, Balint realizou duas rupturas com a tradição freudiana.
Primeiro, deduziu que se poderiam criar condições de possibilidade para
que os médicos generalistas (GPs) e assistentes sociais tivessem ­capacidade
de manejos da dimensão psíquica fora do arranjo (setting) tradicional dos
especialistas em psicanálise. Em segundo, identificou que parte dessas

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 27


c­ ondições necessárias para abordar a dimensão psíquica das pessoas sob
cuidado, logrando algum efeito terapêutico concreto, dependeria de um
longo processo de formação daqueles profissionais. Com essa finalidade,
ele criou uma estratégia de formação inovadora baseada na constituição de
grupos para discussão de casos clínicos sob responsabilidade dos médicos
e das assistentes sociais. Cada grupo contaria com um supervisor/coorde-
nador com especialização em psicologia e psiquiatria.
Para viabilizar efeitos terapêuticos psíquicos a partir do trabalho na
APS, Balint elaborou uma síntese teórica operativa valendo-se de várias
vertentes da psicanálise e da psicoterapia. Utiliza o conceito de “padrões
automáticos de pensamento e de comportamento” para incorporar o in-
consciente à clínica dos GPs. Considera que esses “padrões inconscientes”
são produzidos ao longo da vida de cada pessoa, no entanto, não se preo-
cupa em especificar os modos e as fases da vida em que seriam organiza-
dos como estrutura da personalidade. Caberia aos profissionais identificar
e manejar esses “padrões”, realizando essa operação sempre de maneira
compartilhada com seus pacientes. Para lograr essa possibilidade de análi-
se, Balint recorre a técnicas clássicas da psicanálise: sugere ampliação dos
espaços de escuta das queixas e da história de vida de maneira a que fosse
possível analisar as relações familiares e sociais dos usuários da APS. Ele
utiliza os termos transferência e contratransferência para compreensão das
relações entre profissional e usuário: transferência, entre usuários e médi-
co; contratransferência, entre médico e usuário; e ainda estimula a análise
das relações entre usuário e sua doença e, bem como, entre médicos em
formação e seu supervisor e entre médicos e o grupo no qual estão inseri-
dos (Balint, 1975).
Balint investigou com zelo e meticulosidade os grupos em formação,
que utilizaram essa metodologia durante duas décadas e encontrou que de
20% a 40% dos médicos GPs resistiram a exercer a função terapêutica para
além da clínica tradicional. Em geral, parte dos profissionais abandonavam
o processo de formação. Verificou ainda que a maioria desses insucessos
ocorria em três tipologias em que os médicos puderam ser enquadrados:
aqueles que praticavam o “conluio do anonimato”, denominação para aque-
les que, em seu exercício profissional, chamaríamos de burocratizados, alie-
nados de parte de sua função básica, a abordagem de aspectos psíquicos,
e que praticavam uma espécie de pacto de mediocridade recorrendo, sem
critérios adequados, ao encaminhamento para especialistas; outra possibi-
lidade ocorria com aqueles que demonstravam um encantamento exces-
sivo com o saber técnico da medicina (biomedicina); e ainda com aqueles
portadores de neuroses graves.

28 • Capítulo 1
Em resumo, o próprio Balint identificou dificuldades importantes
para que sua estratégia ampliasse a abordagem do conjunto dos GPs. E, de
fato, essa sua preocupação e sua metodologia de trabalho não conseguiram
se transformar em política oficial do NHS. Ao contrário, a partir dos anos
1980, a orientação oficial para a APS, no NHS, foi a da medicina basea-
da em evidência. Para a intervenção sobre o plano psicológico elegeu-se a
abordagem cognitivo-comportamental. Em relação à determinação social,
apostou-se na saúde pública tradicional (vacinas e vigilância), na educação
em saúde e no apoio social.

Breve história das práticas profissionais na Atenção Primária


(APS) no Sistema Único de Saúde (SUS)

Realizaremos uma síntese sobre as principais estratégias teóricas e or-


ganizacionais utilizadas para ampliar as possibilidades de cuidado na Aten-
ção Primária em Saúde (APS) no Brasil.
A Atenção Primária, no Brasil, antecede ao SUS. Desde os anos trinta
do século XX, a Saúde Pública brasileira adotou o modelo originário dos
EUA, particularmente o da Johan Hopkins University, em que se recomen-
dava a organização de Centros de Saúde para dar continuidade às práticas
sanitárias de prevenção e controle de endemias. Segundo essa concepção,
os Centros de Saúde deveriam cuidar da prevenção e da promoção à saúde
apenas, não estabelecendo integração em rede com o setor assistencial. No
Brasil essas unidades funcionavam com base em programas de saúde vol-
tados para controle das grandes epidemias e endemias e para atividades de
prevenção voltadas para crianças e gestantes (Mascarenhas, 2006).
Além desta vertente, a partir dos anos sessenta do século XX, impor-
tamos, também dos EUA, por meio da Aliança para o Progresso, a Medici-
na Comunitária, uma Atenção Primária voltada para populações pobres e
com recursos reduzidos (Donnangelo, 1979).
A partir dos anos oitenta do século passado foi se constituindo uma
nova modalidade de primeiro atendimento fora dos hospitais, posterior-
mente denominada de pronto-atendimento. Na realidade, uma adaptação
do modelo simplificado dos prontos-socorros para lidar com a demanda da
população pobre. Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves denominou de abor-
dagem “queixa conduta” a esse estilo empobrecido de assistência (Mendes-
-Gonçalvez, 1986).
Com o SUS surgiu um novo projeto para a Atenção Primária, o Pro-
grama de Saúde da Família (PSF - 1994), em alguma medida tributária da

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 29


confusa tradição brasileira, mas que buscava centralmente aproximar-se da
experiência inglesa e cubana de APS. A implementação dessa nova política,
apesar de se constituir em diretriz oficial do Ministério da Saúde (MS), foi
muito acidentada. Embora tenha sido considerada uma política prioritária
pelos vários governantes que se sucederam ao longo da existência do SUS,
o financiamento sempre foi insuficiente. As diretrizes elaboradas pelo MS
compunham um modelo de atenção inovador, mesmo assim não houve
planejamento sistemático de recursos e estratégias no âmbito nacional e
que envolvesse as três esferas de governo. O Ministério da Saúde utilizou
estímulos financeiros para induzir os municípios a aderirem ao PSF. En-
tretanto, toda a responsabilidade de implementação e gestão dessa nova
política ficou a cargo dos municípios (municipalização) e o método de
implementação foi pouco efetivo. A estratégia de indução financeira para
ampliar cobertura da APS serviu para favorecer o crescimento da rede de
Atenção Primária, mas não logrou se transformar em estratégia universal
de atenção como aconteceu na maioria dos países com sistemas públicos.
Em decorrência, depois de três décadas, prossegue a existência de várias
modalidades de modelos de atenção para a APS e a cobertura vem oscilan-
do entre 40% a 50% da população do país.
Apesar dessa heterogeneidade, persiste dificuldade de singularização
do modelo da ESF conforme contexto: grandes cidades, periferia, pequenas
cidades, zona rural, Amazônia.
No Brasil houve forte influência, inicial, da Saúde Coletiva e da Pro-
moção à Saúde na ESF, retardando a ênfase na clínica. O discurso oficial
tendia a priorizar a atuação sobre o território e sobre os coletivos com certo
grau de descuido do cuidado às pessoas. No SUS, o acesso e a inscrição
na APS ocorrem com base em território de moradia dos usuários e não
por escolha das pessoas. As Unidades Básicas funcionam com horários
tradicionais das repartições públicas havendo burocratização na relação
com usuários. Somente nos últimos anos algumas cidades criaram sistema
de ­telessaúde com abertura de possibilidade para que usuários com vín-
culo com equipes possam agendar atendimento e ter avaliação de risco e
­orientação.
De qualquer modo, a APS no Brasil terminou por produzir uma polí-
tica e um modelo que vem viabilizando e qualificando o SUS:
:: As equipes têm composição interprofissional ampliada permitindo
a combinação da clínica e de saúde coletiva: generalistas médicos, enfer-
meiras, dentistas, técnicos de enfermagem e agentes comunitários de saú-
de. Recentemente, criou-se possibilidades de ampliação da abordagem me-
diante a implementação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF).

30 • Capítulo 1
A composição profissional dos NASF inclui a maior parte das profissões
consideradas da área de saúde. Em 2019, o MS emitiu novo Política de
Atenção Primária em que, entre outras providências, suspende o financia-
mento federal para os NASF e reduz a interprofissionalidade das equipes
(Bedrikow & Campos, 2015).
Apesar da existência de uma Política Nacional para a Atenção Básica,
vem ocorrendo diferenças entre as formas que as cidades organizam a rede
de APS. Esta heterogeneidade decorre, principalmente, da baixa capacida-
de de coordenação do Ministério da Saúde, fragmentação da rede SUS, e,
em menor grau, também de disputas teóricas entre pesquisadores da Saúde
Coletiva e da Medicina de Família e Comunidade. Diversas escolas e cor-
rentes coexistem e concorrem entre si, sugerindo diversas estratégias para
ordenação das práticas na APS.
A política e gestão de pessoal, em geral a cargo das secretarias munici-
pais, não logrou assegurar direitos e qualidade no desempenho profissional.
Na realidade, trata-se de uma tarefa que enfrenta obstáculos estruturados.
É interessante observar que, historicamente, verificamos uma resistência
velada entre os profissionais de saúde em admitir que sua prática é um tra-
balho. Em decorrência dessa cultura, nota-se resistência em se integrar aos
instrumentos de governança dos sistemas de saúde. Esse sentimento, com
certeza, é mais forte entre os médicos. Talvez por essas raízes históricas, a
cultura na saúde terminou por denominar o trabalho com nomes em teoria
mais “nobres”: antes se denominava o trabalho em saúde de “atenção” em
saúde. Atenção como atividade humana, em português, significa “aplicação
cuidadosa da mente a alguma coisa; cuidado; concentração; reflexão; aplica-
ção” (Aurélio, 2002). Observe-se que ao substituir o termo “trabalho” por
“atenção” ocorreria como que uma qualificação automática da atividade
médica e dos demais profissionais de saúde.
Há vários anos, a enfermagem passou a designar seu próprio trabalho
pelo termo “cuidado”. Em inglês, o trabalho em saúde em geral é denomi-
nado como “care”, em alguma medida equivalente ao termo “atenção em
saúde” frequentemente utilizado em português. Em espanhol, até algumas
décadas passadas, também se utilizava com frequência a palavra “atención”.
Recentemente, no Brasil, o conceito de “cuidado”, passou a designar o tra-
balho em saúde sempre que forem consideradas algumas condições antes
apontadas pela fenomenologia para designar qualquer relação humana em
que se considere a alteridade do outro (Aneás & Ayres, 2011). Essa escola
tem influenciado as políticas e programas da APS a fim de fortalecer estra-
tégias e dispositivos que incluam o sujeito, a subjetividade e o social nas
práticas em saúde.

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 31


A partir dos anos noventa do século passado, ganhou espaço no
discurso sobre o trabalho em saúde na APS o conceito de “integral e de
integralidade”. Por um lado, umas das diretrizes ético-políticas do SUS e,
por outro, aplicada também para repensar as relações entre profissionais,
equipes e usuários sobre o signo de um conceito referente à totalidade dos
elementos involucrados nas práticas sociais.
Acredito — trata-se de uma suposição descabelada e selvagem de mi-
nha parte, fruto da minha imaginação — que, como a Saúde Coletiva no
Brasil teve uma grande influência do marxismo, valorizando, portando, a
determinação social do processo saúde, doença e cuidado, observei, em
minha experiência, que há resistência destas pessoas, formadas nessa cul-
tura, utilizarem o conceito de clínica ou de assistência individual. Como
é inevitável, no concreto, pensar, estudar e operar no cotidiano também
com essa dimensão, foi sugerido que a clínica fosse autorizada quando se
apoiasse em uma abordagem integral.
De qualquer modo, essa moda da utilizar o conceito de ­“integralidade”
como analisador e orientador do trabalho em saúde vem contribuindo de
maneira significativa para a qualificação das políticas e da cultura sanitária,
e, portanto, do próprio trabalho em saúde.
Como parte desta tendência histórica, a Clínica Ampliada e Com-
partilhada também tem apostado no crescente protagonismo das pessoas
nos processos terapêuticos e de promoção à saúde. Essa corrente enfatiza
a relevância em se ampliar o grau de autonomia das pessoas diante das
instituições de saúde. Ressalta, tendo a complexidade de elementos envol-
vidos na produção do processo saúde/doença/atenção, que a prática em
saúde sempre acontece em condições singulares, variáveis,o que obriga um
manejo clínico e sanitário de caráter compartilhado — Cogestão —, entre
profissionais e usuários. Essa recomendação vale para todas as práticas te-
rapêuticas ou de educação em saúde. A Clínica Ampliada e Compartilhada
(Práxis Paideia) utiliza Apoio e Cogestão como estratégias de intervenção e
de prática e busca considerar as relações de poder existentes na instituição
e no contexto. Para abordar a dimensão subjetiva combina estratégias pe-
dagógicas com psicanálise e política.
No entanto, o alcance dos objetivos de todas estas correntes, voltados
para a valorização da dimensão social, subjetiva e singular dos usuários,
depara-se com obstáculos de variada natureza.
Um primeiro, diz respeito à forma predominante de organização do
processo de trabalho em saúde, em geral, voltada para a produtividade e
valorização de procedimentos técnicos em detrimento da trajetória tera-
pêutica de cada pessoa, família ou comunidade.

32 • Capítulo 1
Um segundo obstáculo é a formação de profissionais de saúde, em
particular, de médicos e enfermeiros ao longo das últimas décadas, em ge-
ral, centrada no paradigma biomédico (Cardoso, 2019) como vem sendo
largamente investigado; no entanto, esse estilo reduzido de abordagem não
é suficiente para resolver grande parte dos problemas de saúde a cargo da
Atenção Primária e dos sistemas de saúde. Observa-se que a organização
tradicional da atenção à saúde tende a separar serviços e programas de saú-
de mental e de saúde pública (promoção à saúde) daqueles destinados à
assistência clínica geral, especializada e de urgência. O desafio para a am-
pliação da formação e das práticas seria integrar saberes voltados para a
dimensão biológica e corporal com outros conceitos e arranjos originários
do campo psicológico e da saúde coletiva.
Em terceiro lugar, há ainda o desafio de que todas estas estraté-
gias dependem de mudanças da compreensão e da prática entre gestores,
­profissionais e usuários. No entanto, mudar cultura e modos de vida não é fe-
nômeno simples, e que não ocorre por algum passe de mágica ou por a­ lguma
conversão súbita de pessoas acomodadas a procedimentos burocráticos e
tradicionais. As pessoas conformam suas personalidades, seu caráter, seus
hábitos e seus valores a partir de múltiplas influências, de ­múltiplas formas
de repressão — história familiar e escolar, ambiente e processo sociocultural
— e tendem a cristalizar o modo de ser e de se relacionar em padrões que
se repetem com importante autonomia do contexto singular. Sabe-se que
grande parte dessa repetição se passa de maneira inconsciente, reduzindo
a possibilidade de reflexão das pessoas sobre suas experiências existenciais.
Para agravar este quadro deve-se reconhecer que determinações so-
ciais, culturais e institucionais são, igualmente, resistentes a mudanças e
dificultam a singularização das formas de atuar conforme o contexto. A
alienação e a burocratização são o sintoma desse processo de formatação
dos indivíduos, famílias, grupos e instituições.

As pessoas mudam?

Caberia, pois, nos perguntarmos: valeria a pena apostar na possibi­


lidade de que as pessoas mudem?
Mudar significa, centralmente, alterar a maneira que se lida com a
rede de dependências, tanto daquelas de ordem subjetiva, quanto institu-
cionais e culturais.
Todas as estratégias que apostam em uma perspectiva emancipa-
dora do trabalho em saúde esbarram, portanto, em obstáculos de difícil

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 33


s­ uperação. Alterar a maneira que se lida com relações de poder, favorecen­
do o empoderamento de todos aqueles subordinados — mulheres, afro­
descendentes, moradores de rua, trabalhadores, idosos, crianças, portado­
res de agravos — depende de mudança de hábitos, valores, posturas e ainda
de reformular condições familiares, econômicas e sociais. As mudanças
sociais, culturais e institucionais enfrentam resistências de várias ordens.
Como não desistir, então, de se apostar na possibilidade de que as pessoas e
as relações mudem no sentido da justiça social e da democracia?
Durante uma discussão de caso, utilizando a metodologia Balint-Pai­
deia diante de uma mulher adaptada a um contexto de violência à convi­
vência com o narcotráfico, com um modo de vida baseado na transgressão
e com dificuldade em cuidar de si mesmo e de seus filhos, a enfermeira da
equipe de Saúde da Família, exclamou com franqueza:
— Pera aí, gente! Será possível reformatar a Fulana para que ela con­
siga escapar dessa trajetória marcada pela agressividade a si mesmo, à sua
família e à quase tudo que logra construir?
Segundo a perspectiva da APS seria necessário prover práticas de
aconselhamento, educativas, terapêuticas e de cuidado capazes de “refor­
matar” — essa, com certeza, não é a melhor palavra para designar algum
possível processo de recomposição de si mesmo, alteremos então o verbo...
— para “apoiar” à Fulana a enfrentar suas circunstâncias, o que depende
de modificar também o seu modo de existência para que ela alcance um
padrão de comportamento voltado para defesa da vida e para enfrentar a
aspereza de sua vida cotidiana.
Tal projeto seria factível?
Algumas vezes, sim; outras, não.

Estratégias para formação e apoio às pessoas

A sociedade contemporânea desenvolveu várias instituições com a fi­


nalidade de preparar as pessoas para a vida — para educar as pessoas. Em
geral, voltadas na prática, para a formatação dos sujeitos segundo padrões
tradicionais.
As religiões e suas igrejas por meio da pregação moral do exemplo de
seus ícones, sacerdotes e pastores vêm interferindo na cultura para forma­
tar seus fiéis segundo valores, estimulando, proibindo ou liberando com­
portamentos. O sucesso dessa empreitada depende da produção de crentes
na doutrina da palavra de Deus, em geral, contida em livros sagrados. Fiéis:
pessoas imersas na Fé. Acreditar sem dúvidas, guiar a própria vida e, se

34 • Capítulo 1
possível, a da sociedade pela assimilação da palavra sagrada. Lidam com
absolutos: certo ou errado, pecado ou virtude, irmãos ou demônios.
A escola e a cultura modernas também objetivam a formação. O pro-
blema é que o vem realizando em uma perspectiva pragmática. Produzir
seres funcionais ao sistema a partir de alguma capacitação técnica. Além, é
claro, de ordenar o comportamento da maioria segundo o aprendizado da
disciplina, isto é, acostumar pessoas a respeitar à hierarquia social, ao si-
lêncio, enfim, a obedecer. É importante ressaltar que toda cultura, mesmo a
de populações indígenas, inclui a socialização a partir de alguma forma de
hierarquia social e de atribuição de papéis distintos a serem desempenha-
dos pelos sujeitos. As dimensões ideológica e moral desse estilo de forma-
tação costumam permanecer ocultas, não convém à conservação do statu
quo que aconteçam de maneira explícita.
Evidente que apresento uma análise genérica e superficial e, portanto
parcial da escola e da cultura de cada época ou sociedade. Ao longo dos
séculos foram se criando escolas e escolas: desde as universidades às e­ scolas
técnicas, algumas públicas e outras privadas, adaptadas ora ao povo, ora às
elites. Algo semelhante se passa com a cultura, em geral, apresenta várias
facetas, refletindo preservação de valores das classes dominantes em detri-
mento de populações exploradas e excluídas do pacto social. A família é
um dos dispositivos para a aculturação das pessoas aos padrões dominan-
tes de sociabilidade.
A família, vários dispositivos culturais de propaganda, os meios de
comunicação, é importante ressaltar, compõem a superestrutura própria de
cada época e de cada sociedade gerando estratégias e arranjos voltados para
a formação de modos de ser e de viver. Foucault nos ensinou sobre a oni-
presença do que denominou de “biopolítica” (Foucault, 2008). Esse filósofo
considerava que essa constelação de arranjos de poder produz, centralmen-
te, repressão por meio do “biopoder”. Uma capacidade de moldar a vida, as
políticas e costumes e a própria compreensão sobre o corpo. O ser huma-
no reduzido à dimensão de trabalhador e, cada vez em maior extensão, a
de consumidor. Busca-se a padronização moral do sexo e do exercício da
­sexualidade, dos rituais de celebração da vida e da morte, do racismo e do
valor da vida.
Interessa-nos aqui, apontar que a medicina, em particular, e a saúde,
em geral, também participam deste processo de constituição de mentali-
dades e de formas de sociabilidade. Bem, a questão que nos inquieta, é sa-
ber, em que medida seria possível, por meio da clínica, da saúde coletiva e
da educação em saúde, fortalecer aos sujeitos e às comunidades de forma
que lograssem atenuar, desviar, e se contraporem ao biopoder, inventando

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 35


formas de existência em que desfrutassem de algum grau de autonomia,
criando sociabilidades capazes de alterar a si mesmo e ao contexto. Como
ajudar e apoiar as pessoas para que realizem alguma forma de Cogestão de
sua rede de dependências, de condicionantes, sejam eles de ordem biológi-
ca, subjetiva ou social?
Dizendo de maneira menos analítica, menos fragmentada: como via-
bilizar a Cogestão da existência e de fenômenos sempre impregnados por
três ordens, a biologia, a subjetividade e a cultura que andam sempre mis-
turadas no existir humano?
Indo adiante, no sentido pragmático: seria possível apoiar pessoas
para reconhecer a nomear e a compreender sua existência, e ainda a lidar
com suas próprias mazelas corporais e subjetivas? Seria possível aprender
a escapar das dominações estruturais? Aprender a descontruir a estrutura
histórico-social do racismo, da desigualdade, da violência?
Freud escreveu que o objetivo da psicanálise seria o de ajudar as pes-
soas a amar e a trabalhar. Uma aposta na ampliação de possibilidades de
liberdade e de bem-estar mediante um trabalho intenso de reconstrução
permanente do ser humano.
Se essa pretensão da psicanálise contém em si evidentes traços de pen-
samento utópico, ainda que regulados pelo otimismo prudente de Freud —
quase um pessimismo inconformado —, como estender essa pretensão de
constituição de sujeitos e de coletividades com capacidade de amar e de
trabalhar para, ainda mais, construírem e viverem dentro de uma sociabili-
dade democrática? Idealismo romântico?
Bem, na realidade, essa é a pretensão da perspectiva Paideia, que
aposta na democracia institucional e em uma estratégia para o trabalho em
saúde denominada de Clínica Ampliada e Compartilhada.
Tenho apostado, ao longo de minha trajetória profissional, em uma
utopia distinta daquelas que imaginam sistemas sociais e políticos perfei-
tos. Minha utopia é a de ampliar a capacidade de convivência democrática
das pessoas, e de que, por meio, desse fortalecimento dos sujeitos sejamos
aptos a produzir instituições voltadas para o bem-estar. Me inspirei com
importante grau de licença poética, no velho conceito da Grécia clássica
de Paideia: uma aposta na perfectibilidade do ambíguo e contraditório ser
humano mediante estratégias ampliadas e permanentes de formação hu-
manística, holística e integral das pessoas.
Lidando, portanto, de forma livre com essa tradição, elaborei que esta
conformação ampliada de sociabilidade dependeria de três movimentos:
:: Um primeiro referente ao plano da política entendido como ma-
nejo do poder, ou seja, governo democrático da cidade e de todo e qual-

36 • Capítulo 1
quer coletivo — família, equipe, movimentos. Governo compartilhado do
­cuidado, da convivência intersubjetiva, da sociabilidade. Uma educação
para que cada um conheça e seja capaz de lidar consigo mesmo e com as
outras pessoas, considerando diferenças, ambiguidades e contradições en-
tre desejos, interesses, valores e projetos. Encontrar maneiras de amar e
trabalhar na cidade dos humanos, entre os humanos. Poder compartilhado,
todo o tempo.
:: Um segundo plano diz respeito à dimensão cognitiva: acesso a in-
formações, conhecimentos e ainda a outras experiências institucionais e
existenciais. Não basta conhecer, também se faz necessária a capacidade de
aplicação de saberes adquiridos à vida concreta; ou seja, valorizar a relação
entre teorias e práticas, em capacitar as pessoas para a práxis, isto é, para
a ação reflexiva e comunitária. Valorizar a dimensão situacional, a tarefa
específica de cada momento: cuidado em saúde, alfabetização, profissiona-
lização, implementação de projetos.
:: A terceira estratégia é uma decorrência das anteriores: esse processo
de formação, de conformação de sujeitos, deverá se realizar por meio da
atuação concreta e reflexiva sobre o mundo, sobre a existência; ou seja, o
processo de formação necessita incluir reflexão compartilhada sobre o que
se está fazendo, sobre a tarefa ou encargo de cada um ou dos coletivos.
Levar à prática o que se está conhecendo, atentar para aquilo que está se
repetindo, para as estruturas de poder, para os sentidos dominantes da lin-
guagem e das normas.

Refletindo sobre a experiência Paideia

Iniciei minhas investigações sobre a dominação, a repressão e o go-


verno da vida com base no referencial Paideia, estudando a gestão em sis-
temas públicos de saúde. Analisando os últimos trinta anos em que venho
teorizando e trabalhando para democratizar as organizações de saúde, per-
cebo que utilizei, principalmente, o plano da política e o das relações de
poder. Minha obsessão era construir caminhos para a democratização das
organizações sanitárias. Apostei mais em mudanças estruturais do que na
refundação da cultura institucional. Para dar concretude a esse valor, à de-
mocracia, eu recomendava, principalmente, a luta pela reorganização das
instituições, redes e organizações, pelejava pela construção de espaços co-
letivos com funcionamento dialógico, e que essa prática democrática con-
siderasse as diferenças de paradigmas, de interesses, de desejos e de valores
dos trabalhadores entre si e destes com usuários.

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 37


Em grande medida considero também que o plano pessoal dos tra-
balhadores de saúde permaneceu subsumido à política e à tarefa de cuidar
dos outros. No fundo, eu imaginava como se a participação em processos
de democratização e de reorganização dos processos de trabalho, sempre
tendo como referência políticas ou modelos de cuidado considerados efeti-
vos, por si só, tivessem potência transformadora e terapêutica para modifi-
car as dimensões subjetivas e culturais dos envolvidos.
Interessante observar que esta suposição de que a participação em
lutas políticas, supostamente libertárias, teria a capacidade de construir um
“novo homem”, como acreditava Ernesto Che Guevara, faz parte da tradi-
ção de vários ramos do pensamento de esquerda, socialista ou comunista.
A ação política revolucionária produziria sujeitos emancipados e novas
subjetividades coletivas. O que não ocorreu nas experiências comunistas
do século XX. Em alguma medida, essa esperança ainda se mantém no mo-
vimento denominado de Educação Popular em Saúde (Vasconcelos, 2004),
uma espécie de conscientização pela política.
No esforço de democratizar as instituições e sistemas de saúde, eu
enfatizava que a possibilidade de mudança para além da estrutura, isto é,
também das pessoas e da cultura, dependeria da experiência concreta da
Cogestão. A suposição de que o poder compartilhado entre gestores, tra-
balhadores de saúde e usuários seria como um setting terapêutico capaz de
reduzir a competividade e a agressividade nas relações ampliando a solida-
riedade, o respeito ao outro e às leis e normas de cidadania.
Esse compartilhamento concreto do poder ocorreria por meio de ar-
ranjos organizacionais do tipo Conselhos (tripartites), Assembleias, Cole-
giados (bipartites) e Equipes (interprofissionais). Escrevi o tempo verbal no
condicional, ocorreria..., porque subestimei as possibilidades de manipu-
lação, de esvaziamento e de burocratização desses dispositivos.
Percebendo esta debilidade de mudanças centradas no plano estrutu-
ral, sugeri ainda naquela época, a utilização do Apoio Institucional como
uma espécie de formação permanente do pessoal da saúde. Inspirado no
movimento denominado de Análise Institucional (Rodrigues & Altoé,
2004), imaginei o Apoio Institucional como uma nova ferramenta a ser
utilizada de maneira regular e sistemática na gestão em saúde e em políticas
públicas em geral. Além de planejar, avaliar, coordenar, se realizaria a ges-
tão, sempre se valendo de metodologias do Apoio Institucional. A proposta
era utilizar os espaços coletivos institucionalizados não apenas para delibe-
ração e elaboração de planos, mas também para a educação permanente e
para análise das interfaces entre trabalho e a sociabilidade organizacional.

38 • Capítulo 1
Infelizmente, o pensamento estratégico predominante na gestão vem
dificultando muito a adoção do Apoio Institucional. O Humaniza-SUS or-
ganizou um pequeno exército de apoiadores que se metiam em hospitais,
na APS, na rede de Saúde Mental, como terceiros, figuras externas ao qua-
dro organizacional, que estimulavam os coletivos a lidarem com conflitos,
desequilíbrios de poder, construção de consenso, realização de mediações
e implementação das políticas do SUS (Pereira Jr., 2018).
Talvez havia que se investigar com mais cuidado, mas tenho a im-
pressão de que os investimentos mais radicais e que produziram maior al-
teração de poder foram aqueles voltados para as equipes interprofissionais
funcionando como base dos sistemas de Cogestão e ainda de defesa enfá-
tica em relações de vínculo entre equipes e usuários, entre usuários e cada
profissional.
Vale ressaltar que estes dois dispositivos, a equipe interprofissional e a
construção de vínculo formal e subjetivo entre profissionais e usuários vêm
se transformado em diretrizes organizacionais para as políticas do SUS vol-
tadas para a Atenção Primária e para a Saúde Mental. Não é por acaso,
portanto, que essas duas diretrizes têm encontrado grande resistência em
serviços hospitalares e especializados desse mesmo SUS.
A história de implementação da perspectiva Paideia confirma a
­validade da recomendação do Humaniza-SUS sobre a indissociabilidade
entre gestão e clínica. O controle Social no SUS recomenda a participa-
ção dos usuários em Conselhos e Conferências. Entretanto, dizem respeito,
principalmente, à macro política, à fiscalização, a discussão e deliberação
sobre projetos e prioridades do SUS. A perspectiva Paideia reconhece que
os dispositivos de Clínica Ampliada e Compartilhada, bem como arranjos
como conselhos e assembleias locais abrem a possibilidade de ampliação
do poder de usuários no cotidiano dos serviços de saúde.
Dentro dessa linha, também apliquei conceitos Paideia para ­analisar
criticamente e para sugerir mudanças no trabalho em saúde, quer em cada
equipe, quer na dimensão de rede: a partir desse tipo de preocupação
­surgiram as estratégias de Clínica Ampliada e Compartilhada e do Apoio
Matricial.
Um dos principais pilares da proposta de Paideia de Cogestão era,
portanto, o empoderamento das equipes interprofissionais.
Há alguns anos, organismos internacionais e pesquisadores têm reali-
zado a divulgação e a defesa do denominado trabalho colaborativo entre as
distintas profissões e especialidades. Diferente da Cogestão e da perspecti-
va Paideia, o discurso a favor do trabalho colaborativo faz um apelo moral

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 39


ao entendimento dentro das organizações, ocultando que nas relações in-
terpessoais há conflito, diferenças e disputa de poder. A postura colabora-
tiva dependeria, centralmente, da boa disposição dos trabalhadores com
a empresa, com seus dirigentes e da predisposição de todos em assumir
uma atitude empreendedora segundo as diretrizes e normas vigentes. Nos
últimos anos, adotou-se o costume de nomear os trabalhadores com a nova
denominação de “colaboradores”, um esforço simbólico e discursivo para
apagar a aspereza e conflitos entre as classes institucionais e a opressão de
gênero e da afrodescendência. Na Saúde Pública a colaboração fluiria bem
se todos abandonassem suas especificidades, suas especialidades, interes-
ses, valores e desejos, adotando um vago paradigma politicamente correto
(Pinto & Leite, 2014).
Em contraposição a este moralismo, forjado com um tanto de idealis-
mo romântico e outro de estratégias para dominação da maioria que traba-
lha, enfatizei que em espaços coletivos, rodas, conselhos, nunca existe uma
suposta horizontalidade entre os participantes — gestores, trabalhadores
e usuários, e, que ao contrário, sempre há diferença de poder, de acesso à
informação, de experiência, de gênero, etnia, e que, exatamente pela exis-
tência dessas diferenças estruturais é que se necessita de estratégias para a
democratização institucional.
Dentro dessa mesma temática, desenvolvi as noções de campo e nú-
cleo de saberes e de práticas que seriam necessariamente diferentes para
as várias profissões, especialidades, equipes e tipos de serviços que com-
põem as redes em saúde. Eu reconhecia, portanto, a necessária existência
de profissionais que operassem orientados por distintos paradigmas, ca-
racterística que os induziria a compreender e a atuar segundo prioridades
e estratégias terapêuticas diferentes quando cuidando de pessoas ou de co-
letivos familiares ou comunitários. Segundo essa perspectiva, estaria claro
que nenhuma dessas várias abordagens daria conta do problema como um
todo, nenhum desses distintos paradigmas teria uma compreensão total ou
integral do fenômeno em questão.
A interação interprofissional e a capacidade dialógica seriam os ele-
mentos capazes de operar com uma abordagem ampliada.

Apoio Paideia como estratégia para lidar com sujeitos, com sua
cultura e com seu contexto.

A metodologia de Apoio Paideia é um recurso a ser utilizado na Clí-


nica Ampliada e Compartilhada, ou seja, na relação equipes e usuários,

40 • Capítulo 1
como também na relação interprofissional, o denominado Apoio Matricial
e ­ainda na gestão de redes e serviços de saúde, o Apoio Institucional (Cas-
tro & Campos, 2015; Oliveira & Campos, 2016). 
Na relação com usuários o método de Apoio poderá ser empregado
tanto na clínica quanto em grupos terapêuticos ou de educação em saúde.
Poderá também servir como estratégia de organização e fortalecimento de
movimentos sociais.
O Apoio dá primazia à demanda dos supostamente apoiados, valoriza
a capacidade de escuta, busca ampliar a compreensão, valoriza a intuição,
e ainda o discurso sobre carências e necessidades do usuário e das equipes.
Entretanto, o Apoio utiliza uma estratégia interativa. Os apoiadores têm
ofertas a apresentar. Assim, a capacidade de escuta ao usuário é fundamen-
tal, mas, cada escuta ou observação, somente se completam quando algum
diálogo se estabelece. Partindo-se da concepção de que toda compreensão
é parcial e explica pedaços do contexto e do mal-estar dos sujeitos, o Apoio
Paideia sugere que todos tenham voz e participem de interações para re-
flexão, análise e composição de novos entendimentos e novos projetos de
existência e de funcionamento institucional.
Desconstruir o silêncio imposto, desmontar o relacionamento buro-
crático e substituí-los por relações interativas. Uma condição essencial para
que essa comunicação entre os vários agentes ocorra é o estabelecimento
de vínculos, de confiança básica e de certo grau de contratualização. Uma
diretriz organizacional que cria condições de possibilidade de vínculos é
a denominada horizontalidade, concretizada pelo cadastramento de co-
ortes de usuários por equipes encarregadas de cuidá-las, ou seja, os mes-
mos profissionais responsáveis pelas mesmas pessoas ao longo do tempo,
os ­mesmos apoiadores interagindo em um longo espaço de tempo com as
mesmas equipes.
As relações vinculares sempre necessitam estar em análise, é impor-
tante refletir sobre os vários semblantes da sociabilidade. Em geral, em re-
lações vinculares ocorrem, ao mesmo tempo, produção de dependência,
subordinação de sujeitos ao polo com mais poder e efeitos positivos tera-
pêuticos e de aprendizado.
O Método de Apoio Paideia funciona como uma Roda Contínua, um
circuito imperfeito, em que sempre falta algum aspecto a ser compreendi-
do, alguma prática a ser implementada.
A abordagem diagnóstica e terapêutica, a compreensão sobre uma si-
tuação e o manejo dela ocorrem em ciclos, em vários encontros em espiral
(nem sempre ascendente). A construção da relação de apoio é processual,
longitudinal no tempo, isto é, costuma ser diacrônica.

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 41


O vínculo entre sujeito profissional e sujeito usuário depende da emer-
gência de responsabilidade sanitária, de responsabilidade pelo c­ uidado de
si mesmo e do outro.
A relação vincular em saúde se constrói a partir de um foco temático:
para tanto se torna importante estimular a fala, a narrativa dos apoiados,
sejam usuários ou trabalhadores, sobre:
a) Objeto (focos temáticos): queixas, sofrimento, problemas de saúde
e institucionais (momento relativo à doença, ao sofrimento, ao que provoca
impotência e justifica busca de apoio);
b) Objetivo: aponta para o futuro, devir, busca de caminhos, como
saúde, desejo de recuperar certo modo de andar a vida (autonomia, potên-
cia), bem-estar e democracia.
O foco temático bem construído facilita a construção de vínculo
produtivo e estimula a adesão; o foco (objeto e objetivo) indica desejo/in-
teresse do usuário/profissional e deve ser considerado como Núcleo para
orientar a intervenção e o cuidado. O apoiador poderá sugerir ampliação
do foco temático relativo ao Objetivo, como, por exemplo, a coconstrução
de autonomia ao relacionar problema de saúde e papel daquele apoiado em
seu enfrentamento.
O apoiador precisa expor sua avaliação sobre a situação, sobre o caso,
sobre o problema a ser enfrentado, buscando incidir sobre a compreensão
dos usuários e da equipe a partir de outra perspectiva existencial e de ou-
tros lugares de fala. O intuito desse processo dialógico é o de trazer a possi-
bilidade de construção de uma compreensão ampliada. O mesmo processo
deverá ser empregado para decidir sobre procedimentos terapêuticos ou
organizacionais a serem adotados; essa é a dinâmica que propicia o avanço
analítico/pedagógica sobre processo saúde/doença singular e sobre o su-
jeito e seu contexto. É de suma importância estimular a reflexão e comen-
tários do usuário e do grupo apoiado sobre elementos diagnósticos, tera-
pêuticos e dinâmica analítica, isto é, propiciar reflexão sobre a existência e
sobre sentidos para a vida.
Essa síntese possível, e sempre provisória, mas necessária, entre ofer-
ta do apoiador, do profissional, do professor e a reflexão dos usuários é o
primeiro Projeto Terapêutico ou de intervenção; um esboço de contrato
sobre problema de saúde encarnado no Sujeito, na família ou na comuni-
dade. Esse plano terapêutico ou de apoio, em geral, inclui procedimentos
diagnósticos, terapêuticos a analíticos sobre o sujeito e seu modo de andar
a vida; e ainda sobre a forma que se realiza o Apoio Paideia (efeitos, encon-
tros, agenda de atividades, atividades práticas).

42 • Capítulo 1
A oferta do apoiador ou do profissional se valendo desta metodologia,
facilita a criação de espaços para análise e compreensão sobre Contrato/
Projeto Terapêutico. A perspectiva do usuário e sua narrativa contêm sua
própria reflexão sobre as práticas terapêuticas e relacionais, sobre resulta-
dos, dificuldades e impossibilidades; o avanço dessa dinâmica depende de
o usuário superar seus próprios bloqueios e da existência de um sentimen-
to de que o processo terapêutico vale a pena e faz sentido.
Por intermédio da avaliação clínico/sanitária, exposta de maneira
franca e paciente, é possível promover e ampliar a compreensão dos usuá­
rios sobre fatores envolvidos na coprodução do processo saúde/doença/
modo de vida/sistema saúde; da compreensão sobre si mesmo e sobre a
rede social no qual estão inseridos; e ainda a descoberta sobre modos de
intervenção sobre si mesmo e sobre o contexto.
Um conceito central no Apoio Paideia é o de poder, sendo fundamen-
tal compartilhar e estimular sujeitos a lidarem com redes de poder; a iden-
tificarem espaços coletivos estratégicos ao sujeito e ao Projeto Terapêutico/
Intervenção. Trazer à tona conversas e impressões sobre o funcionamento
de aspectos da rede singular dos sujeitos: trabalho, família, religião, lazer,
social. Para ampliar a capacidade de o sujeito lidar com relação de poder é
necessário discutir a dialética de dominante e dominado, formas para se li-
dar com conflitos — defesa, ataque, alianças, mediação e fuga. É importan-
te ampliar a capacidade de elaboração de alianças e contratos, com ênfase
sobre os modos com que decisões são tomadas na vida concreta e estimular
a capacidade de projetar, de imaginar novas possibilidades de existir, refor-
çar o pensamento estratégico das pessoas. Ainda que seja delicado, pode
acontecer de virem à baila nos encontros, valores, ideologias, filosofia de
vida e marcos culturais relevantes.
Um dos efeitos desejados no processo de Apoio é o de ampliar a capa-
cidade de comunicação, de narrativa, de argumentação e de debate — for-
talecer a potência dialógica do sujeito.
É importante enfatizar que a possibilidade do apoio ocorrer depen-
de centralmente de se partir da vida e das atividades concretas das pes-
soas, a entrada de cada tema na roda depende de ganchos com a prática.
O Apoio é uma filosofia da prática. Lembrar que os componentes de um
processo estão imbricados, isolá-los é um artifício analítico para facilitar a
­compreensão.
Todas estas estratégias descritas anteriormente têm um forte compo-
nente racional. No entanto, as pessoas operam sempre misturando o ra-
cional com o inconsciente. O Apoio procura ajudar as pessoas a também

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 43


reconhecerem seus objetos de investimento e seus modos de internalização
de mecanismos de repressão e de defesa. Autorizar as pessoas a identifica-
rem situações, coisas ou fatos carregados de afetos, seja de amor ou ódio.
Em geral, esse tipo de exploração é facilitado pela reflexão sobre as inter-
-relações, sobre problemas de saúde e sobre a vida do sujeito e das famílias
e comunidades.
Influenciado por Balint, o Apoio utiliza para a análise da relação usuá-
rio/profissional/equipe/serviço os conceitos de transferência e contratrans-
ferência, bem como a discussão sobre a dinâmica familiar, sobre redes de
afetos e modos de relação. Estimular os usuários a comentarem sobre seus
modos de lidar com interesse e desejo próprio e de outros, sobre hábitos
estruturados de vida. Sobre a relação com alimentos e rituais; sobre a rela-
ção com trabalho, atividade física, arte, esporte, natureza e território; sobre
a sexualidade: aprofundamentos necessários, mas nem sempre possíveis.
Vale lembrar que trabalhadores e usuários desenvolvem mecanismo
de defesa e resistência, elementos que tornam esses movimentos parciais,
incompletos e muitas vezes impossíveis. Nesse caso, as equipes terão suas
estratégias restritas àquelas de racionalidade e lógica evidentes.
A abordagem dos fatores orgânicos depende do problema de cada su-
jeito ou comunidade, a ciência produziu uma bibliografia mais vasta sobre
essa dimensão, e a semiologia sobre o adoecer, em várias profissões e espe-
cialidades de saúde, descreve como proceder em numerosos textos didáti-
cos, programas e protocolos.
O desafio é combinar a abordagem desta dimensão biológica com a
reflexão sobre fatores sociais e subjetivos, apoiando o sujeito para que a
reflexão tenha repercussões operacionais.
A cada ciclo, a cada encontro, a cada rodada do espaço coletivo há que
se escolher temas para oferta conforme venha ocorrendo a análise coletiva
da situação, incluindo necessidades sanitárias, possibilidades materiais e
subjetivas dos sujeitos, objetivos contratados. O modo mais adequado para
diminuir a resistências dos sujeitos e grupos com temas da ordem da subje-
tividade e do social são perguntas endereçadas ao coletivo. Fazer apelo para
que os usuários realizem suas próprias apreciações e diagnósticos.
Estimular o sujeito usuário a eleger temas que considere relevantes
ou aflitivos.
Ao final de cada ciclo dialógico há um “esboço” de Projeto Terapêuti-
co e de Apoio com análises compartilhadas do problema de saúde encarna-
do no sujeito/contexto; temas novos, que estiveram em suspenso — sobre si
mesmo, modo de vida e sobre outros atores sociais e ainda em relação aos
serviços de saúde, familiares, chefes, autoridades etc.

44 • Capítulo 1
Bem, são orientações de manejo das relações interpessoais em ser-
viços de saúde simples de serem anunciadas, mas complexas de serem
levadas à prática. A formação tradicional da maioria das profissões e das
especialidades de saúde não capacita os profissionais para delas se valerem
objetivando maior efetividade e humanização do cuidado.

Formação de trabalhadores da saúde: componente essencial


para exercício da Clínica Ampliada e Compartilhada

No início dos anos noventa do século XX, escrevi um texto que se in-
titulava “Subjetividade e administração de pessoal”, nele eu apresentava um
desafio para a saúde, que seria: “mudar as coisas e as pessoas”. Considero
que foi o primeiro escrito que inaugurou a série de outras publicações que
trataram do Paideia, isto quando essa palavra sequer fazia parte de meu
vocabulário.
Observe-se que, naquele artigo longínquo quando me referia às “pes-
soas” a serem mudadas, eu pensava, principalmente, nos profissionais de
saúde. O bem-estar de usuários aparecia como um objetivo, como meta, que
justificaria todas as reformas estruturais nos serviços e sistemas de saúde.
Mais tarde, sobre a formação dos trabalhadores, em parceria com
Mariana Dorsa Figueiredo e Gustavo Tenório Cunha, imaginamos im­
portantes transformações no paradigma tradicional da educação médica
e das demais profissões da saúde. Centralmente, recomendávamos a ado-
ção de estratégias pedagógicas que tomassem as práticas sanitárias como
centro do aprendizado, buscando sempre trazer a teoria integrada ao que
acontecia no trabalho e na prática em saúde (Campos, Cunha & Figueire-
do, 2013).
Em relação à formação Paideia, influenciados pela psicanálise e por
Freud, insistimos em que o processo pedagógico buscasse uma espécie de
efeito terapêutico sobre os estudantes e que os habilitasse a compreender
e a lidar consigo mesmo para estarem aptos a compreender e a lidar com
pacientes, famílias e comunidades (Viana & Campos, 2018).
A psicanálise inaugurou uma concepção de formação em saúde que
buscava integrar conhecimentos teóricos e técnicos mediante a reflexão
sobre as repercussões da prática concreta sobre si mesmo e sobre equipes
e serviços. Considero que essa concepção, apresentada inicialmente por
Freud, guarda relação próxima com o antigo movimento Paideia da Grécia
helênica, ainda que não tenha sido citada por Freud em seus textos sobre
formação do terapeuta.

Em busca de uma práxis ampliada e compartilhada... • 45


A partir dessa dupla influência, Paideia e Freud, denominamos nossa
estratégia de “formação centrada na práxis” (e que não significa o mesmo
que “na prática”). Revendo a história da medicina se observa que a for-
mação com base na prática se trata de antiga tradição, já que grande parte
da formação em saúde se realiza mediante a realização de estágios, princi-
palmente em hospitais: formandos sob a supervisão de professores ou de
profissionais com maior experiência.
Dentre as várias escolas pedagógicas que estudam a graduação nas
profissões de saúde, é quase consenso a proposta de ampliação do período
de ensino como prática e dos cenários de práticas (variação das modali-
dades e tipos de espaços onde se realiza a formação em saúde) (Morris &
Blaney, 2010).
A concepção Paideia sugere explicitamente que a formação de pes-
soal esteja integrada a valores políticos: democracia, ética e direitos de ci-
dadania. Em grande medida esses valores já apareciam na concepção da
Grécia clássica sobre a Paideia. Dessa forma, consideramos que outro pla-
no fundamental para a formação é o da política e da ética. Não somente
compreender e manejar situações de conflito de interesses e valores com
disputas pelo poder, mas também estudar sobre governo, gestão, trabalho,
estado, mercado e sociedade. Acompanhar o desenvolvimento dos sistemas
públicos e universais de saúde e das políticas de bem-estar. Estudar saúde
coletiva (pública), Atenção Primária e redes, ciência e tecnologia e cultura.
Verificar a potência e efeitos adversos de todas essas instâncias; a medicali-
zação e o controle sobre os sujeitos, entre outros.
Na concepção Paideia se valoriza também o conhecimento sobre a
biologia humana, a ciência da práxis clínica, da reabilitação, de cuidados
paliativos e da promoção e da saúde pública.
O método Balint-Paideia para educação em saúde é uma destas es-
tratégias que nosso grupo vem empregando para fortalecimento do SUS.

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Capítulo 2
Processos formativos para a Atenção Primária
à Saúde: reflexões a partir da experiência

Mônica Martins de Oliveira Viana


Gizélia Rosana Quadrado Carmazini

A s premissas do trabalho para a Atenção Primária à Saúde dentro do


escopo da Política Nacional da Atenção Básica (Brasil, 2012; Brasil,
2017), estão apresentadas a partir de princípios que incluem: universali-
dade, acessibilidade, vínculo, continuidade do cuidado, integralidade da
atenção, responsabilização, humanização, equidade e participação social.
E, para fundamentar a organização do trabalho, apresentam como diretri-
zes: adscrição de usuários em um dado território; estabelecimento de vín-
culo, garantindo integralidade, longitudinalidade e coordenação do cuida-
do, integração de ações programáticas e demanda espontânea, articulação
de ações de promoção à saúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde,
tratamento; cuidado centrado no usuário e ordenação do cuidado em rede.
Existe, na proposta da Atenção Primária à Saúde (APS), um impor-
tante (e necessário) clamor para mudança do modelo de atenção tendo em

Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 49


vista a ruptura do modelo biomédico hegemônico, que tende a fragmentar
o cuidado e se restringir às demandas biológicas, reproduzindo a medica-
lização da vida e o consumo de procedimentos médicos que podem vir a
ser iatrogênicos. 
Assim, merecem destaque as contribuições da Clínica Ampliada e
Compartilhada para este cenário de mudança de modelo na Atenção Pri-
mária. Também conhecida como clínica do sujeito, não se omite da res-
ponsabilidade de tratar da doença em sua dimensão orgânica, mas ressalta
a relevância de buscar compreender o enfermo como um sujeito social e
subjetivamente constituído, cujo cuidado deve incluir essa sua condição
(Campos, 2013).
Dentro desta perspectiva de assentar as bases do trabalho da APS na
integralidade — dos sujeitos e dos serviços — e na clínica ampliada, é es-
perado que os profissionais estejam aptos para agregar conhecimento de
natureza humanística, relacional e social aos saberes técnicos e ao pensa-
mento crítico (Oury, 1991; Figueiredo, 2012; Carvalho & Ceccim, 2012).
Da mesma forma seria importante que os profissionais da APS co-
nheçam os aspectos específicos ao seu núcleo de saber e que desenvolvam
ações como o trabalho com grupos, atividades no território a partir da aná-
lise das necessidades e discussão de casos na perspectiva interdisciplinar,
considerando a abordagem familiar. 
Dessault (1992), ao discorrer sobre a formação de gestores para os
serviços de saúde, ressalta habilidades que podem ser igualmente úteis para
os profissionais da Atenção Primária. Dentre elas, a capacidade de lidar
com um ambiente complexo, variável e cheio de limitações; poder de ajus-
tar suas decisões e ações a cada contexto e aprender com os erros; trabalhar
em equipe de modo colaborativo e conseguir analisar as necessidades de
saúde da população e demais fatores relacionados aos serviços.
Silva Júnior & Alvez (2007), por sua vez, destacam a capacidade de
reconhecer o contexto; de escuta e de empatia em relação a diferentes va-
lores e culturas; de mobilizar soluções criativas para situações complexas e,
principalmente, capacidade de compor equipes multiprofissionais e de se
articular com outros setores. 
Seria importante que no processo de aprendizagem os profissionais
tivessem contato com o conhecimento prévio e estruturado, mas, sobre-
tudo, que fossem estimulados a refletir sobre a técnica e ter em mente que
precisarão imprimir nela a singularidade do contexto, ou seja, empreender
a práxis (Campos, 2011).
Para isso, é preciso uma formação ampla e contextualizada. Trata-se
de pensar em uma formação que estimule o exercício da práxis compreen-

50 • Capítulo 2
siva, que inclua o conhecimento técnico e, também, o governo de si mes-
mos e das relações sociais e políticas. Ou seja, que se trabalhe, simulta-
neamente as dimensões do saber, do poder e dos afetos (Campos, 2011,
Campos et al., 2013).
Isto significa, fazendo analogia ao pensamento de Adorno (1995),
compreender a formação como uma educação que transcende a informa-
ção e o fetichismo pela teoria; ultrapassa as instituições de ensino e visa a
facilitar aos sujeitos escaparem de suas condições de subordinação e con-
formismos. Formação como práxis emancipatórias, favorecendo o posicio-
namento crítico e reflexivo em relação ao estado das coisas. 
Além da graduação, outros dispositivos como as pós-graduações, a
educação continuada, a educação permanente e as supervisões clínico-ins-
titucionais operam no papel de processos de formação. Para os ­profissionais
que já estão na rede de serviços do SUS, essas estratégias possuem poten-
cial de dialogar de modo orgânico com os trabalhadores da saúde e trazer
benefícios mútuos para profissionais e comunidade (Camposet al., 2013).
As pós-graduações (especializações) e a educação continuada marca-
ram fortemente a área médica e se expandiram para os outros ramos pro-
fissionais, sendo constituídas basicamente por atividades de consolidação
da identidade profissional. Ainda que tenham também o propósito de con-
tribuir com a atualização de conhecimentos, seu foco principal reside na
atitude ou postura profissional no desempenho de atividades relacionadas
aos respectivos núcleos de saber (Osório, 2003). 
Guardadas as discussões sobre os termos “Educação Permanente” e
“Educação Continuada”, é interessante contextualizá-los, ainda que breve-
mente, em razão de sua ampla utilização para designar a formação dos pro-
fissionais inseridos nos serviços de saúde.
Massaroli & Saupe (2008) explicam que a educação continuada surgiu
com o intuito de atualizar os profissionais da saúde, como um processo
contínuo que se inicia após a formação básica, ou seja, após a graduação,
e tem como objetivo atualizar e melhorar a capacidade de uma pessoa ou
grupo diante da evolução técnico-científica. Consiste, em geral, em cursos
esporádicos. Já a educação permanente está ligada à proposta de formação
em serviço e de aprendizagem significativa tem em vista transformar o pro-
cesso de trabalho, partindo da reflexão sobre a realidade para formular es-
tratégias que ajudem a solucionar problemas. Na tabela a seguir é possível
visualizar sinteticamente alguns dos pontos em que a educação continuada
e a educação permanente se diferenciam.

Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 51


Tabela1. Diferenças entre educação continuada e educação permanente
Aspectos Educação Continuada (EC) Educação Permanente (EP)
Público-Alvo Uniprofissional Multiprofissional
Inserção no trabalho Especialidade isolada Prática em equipe
Enfoque Temas de especialidades Problemas de Saúde
Objetivo principal Atualização técnico-científica Transformação das práticas
Periodicidade Esporádica e pontual Contínua
Metodologia Pedagogia de transmissão Centrada na resolução de problemas
Resultados esperados Apropriação Mudança
Fonte: Principais diferenças entre Educação Continuada e Permanente segundo aspectos chave, adaptado
de Mancia et al. (2004).

Para Feuerwerker (2014), Oliveira (2010) e Melo (2016), a principal


estratégia a ser utilizada para aprimorar o trabalho das equipes de Atenção
Primária, dado o caráter relacional e reflexivo do conteúdo a ser adquirido,
seria a implementação de dispositivos de formação e de educação perma-
nente que priorizassem a reflexão sobre a prática concreta dos profissionais. 
Nesta estratégia, de acordo com Franco (2007), o trabalho passa a
ocupar posição nuclear na ação pedagógica e as equipes tornam-se pro-
tagonistas dos saberes e práticas em virtude dos processos de cognição e
subjetivação disparados pelo dispositivo educacional.
Ceccim (2005) considera que as práticas de educação permanente
devem configurar dispositivos para análise das experiências locais, depen-
dendo para isso de que sejam construídos espaços coletivos para a refle-
xão e avaliação sobre os sentidos dos atos produzidos no cotidiano. Ainda
segundo o autor, elas podem ser potencializadas a partir da consideração
do quadrilátero da formação, que prevê análise de quatro aspectos funda-
mentais: da educação dos profissionais da saúde, das práticas da atenção à
saúde, da gestão setorial e da organização social. 
De todo modo, para os profissionais da saúde e especialmente os da
APS, destaca-se a relevância de processos formativos em que a construção
do conhecimento esteja ligada ao contexto das práticas, conectada com a
realidade, ocorrendo com base em movimentos de continuidade-ruptu-
ras, uma vez que se ancoram em estruturas cognitivas já existentes, mas se
abrem para tensões perante o novo. Assim, pretendem desencadear ressig-
nificações e permitir o estabelecimento de diferentes tipos de relações entre
os fatos e os objetos (Mitre et al., 2008).
A aposta consiste na revisão do processo de trabalho e na possibi­
lidade de promover novos processos de subjetivação e de gestão do cui-

52 • Capítulo 2
dado, buscando romper aspectos cristalizados nas instituições de saúde e
contribuir para a formação ampliada dos trabalhadores. 
Aproxima-se, portanto, da formação defendida por Oury (1991),
que prioriza processos e ferramentas conceituais que permitam extrair do
campo do cotidiano o material da aprendizagem, e, complementarmente, a
explicitação de conhecimentos tácitos, oriundos da prática, tal como indi-
cado por Raelin (1997).
Modelos como os da educação permanente (Brasil, 2009), da apren-
dizagem baseada no trabalho descrita por Raelin (1997) e Billett (1994) e
da aprendizagem baseada em problemas (problem-based learning), avaliada
por Vernon & Blake (1993), têm inspirado processos formativos pautados
na reflexão sobre a prática.
No entanto, para isso, é necessário que os profissionais em formação
superem a dificuldade de se apropriarem do saber produzido na experi-
mentação e na construção coletiva, sem necessitar de validações de autori-
dades externas, como apontado por Onocko-Campos (2012) e Capazzolo
(2013). Ou seja, é preciso que consigam aprender com a prática e que esse
novo conhecimento seja percebido por eles como legítimo.
Dessault (1992) adverte que não há um tipo único de formação, sendo
que as habilidades e as atitudes podem ser desenvolvidas por atividades
de formação autodidatas ou formais. Os formadores precisam pensar em
­programas adaptáveis às necessidades dos alunos, construídos coletiva-
mente, voltados para a prática e envolvendo pessoas experientes na temá-
tica a ser abordada. 
Essas prerrogativas guardam, assim, alguma semelhança com a super-
visão clínico-institucional que, conforme Onocko-Campos (2012) configu-
ra um dispositivo de formação e intervenção cujas principais estratégias de
trabalho são a análise permanente da organização do processo de trabalho
e do cotidiano; a discussão e construção coletiva de casos; e a construção
coletiva do conhecimento. Parte da constituição de grupalidade entre os
trabalhadores com o propósito de reflexão sobre as práticas e de incorpo-
ração de novos conceitos e teorizações. E, apesar de ter nascido da clínica
médica e psicológica, para a formação clínica e para o conhecimento de si,
configura um interessante dispositivo de formação pela experiência impli-
cada com a construção de uma rede de serviços eficaz. 
O principal elemento comungado pela educação permanente, pela su-
pervisão clínico-institucional e pela formação pautada na reflexão sobre a
prática ou sobre problemas (PBL) é a aposta na produção de subjetividade.
Barros (2014) explica que pensar a formação nesse âmbito significa criar
estratégias que coloquem em cena os territórios existenciais, o cotidiano

Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 53


de trabalho e as diferentes relações que se estabelecem nesses encontros.
Nela, já não se trata de dar informações sobre um tema, mas de possibilitar
a apreensão de diferentes modos de conhecimento e pensamento, provo-
cando mudanças que se desdobrem em novas práticas, novos objetos e em
novos sujeitos. 

Teoria Paideia para a formação de profissionais da saúde 

Dentro do campo de formação com base na prática, a teoria Paideia


tem sido utilizada como uma proposta pedagógica nas temáticas da clínica
ampliada e de gestão compartilhada, conforme fica explicitado por Castro
(2011); Castro & Campos (2014); Cunha (2009); Cunha & Dantas (2010);
Figueiredo (2012); Furlan & Amaral (2010), Campos et al. (2013) e Oliveira
Viana e Campos (2018), apresentado na tabela abaixo:

Tabela 2. Síntese das experiências utilizando a Formação Paideia no período


entre 2006 e 2018

Castro Cunha
(2011) (2009) Furlan Figuei- Oliveira Viana
Castro Cunha & Amaral redo & Campos
& Campos & Dantas  (2010) (2012) (2018)
(2014) (2010)
Ano 2009-2010 2007 2007 2008-2009 2015-2016
Duração 18 meses 14 meses Não cita 18 meses 18 meses
Municípios Campinas Campinas Campinas, Campinas Campinas
participantes (SP) (SP) Guarulhos, (SP) (SP)
Hortolândia, Su- Uberlândia
maré, Amparo, (MG)
Artur Nogueira, Curitiba
Capivari, (PR)
Cordeirópolis,
Piracicaba e
São João da Boa
Vista (SP);
Rio de Janeiro,
Duque de
Caxias, Itaboraí
e  Nova Iguaçu
(RJ); Fortaleza
(CE)
segue

54 • Capítulo 2
Total Alunos 40 18 200 84 85
Turmas 02 01 05 04 05
Público- Profissionais Apoiador Profissionais da Profis- Profissionais
-Alvo de Saúde Institucional, atenção e/ou sionais que realizam
da Família; médicos e gestão, relacio- médicos e Apoio Matri-
do Apoio enfermeiros nadas à APS. enfermei- cial.
Matricial e da APS. ros da
Institucional. APS.
Metodologia Apresentação Encontros Aulas teóricas, Traba- Encontros
pedagógi- de casos, quinzenais: seminários lho em quinzenais:
ca: Teoria baseados duas horas presenciais e pequenos discussão de
Paideia em projetos para discus- atividades de grupos; casos, ofertas
terapêuti- são de casos dispersão: en- discussão teóricas e
cos ou em e duas horas sino à distância de casos avaliação do
projetos de para ofertas e implantação reais e encontro.
intervenção teóricas, com de Projetos de ofertas Oferta teórica
e leitura de convidados. Intervenção no  teóricas, de temas pré-
textos (oferta combi- -fixados, com
teórica). nando convidados.
demandas
e ofertas.

Todas as experiências pedagógicas apresentadas na tabela 2 foram


avaliadas verificando-se sua potencialidade para promover reflexão sobre
o processo de trabalho e para favorecer mudanças entre os profissionais no
que se refere aos planos teórico, prático e, principalmente, subjetivo.
Nessa proposta, observa-se o empenho em empregar o próprio Mé-
todo Paideia, em sua dimensão pedagógica, para a formação de trabalha-
dores. Reunindo elementos do construtivismo, do materialismo dialético
socio-histórico, da pedagogia do oprimido, da psicanálise, e outros, busca
articular teoria e prática (Campos et al., 2013). 
Trabalha buscando produzir efeitos em eixos, concomitantemente, o
que constitui sua intervenção tríplice, nas dimensões do saber, do afeto e do
poder. Promove um método interativo entre professor e estudante, estimu-
lando posturas ativas bilaterais, por meio de ofertas teóricas, discussão de
casos e projetos de intervenção. Estimulando também, além da incorpora-
ção de novos conceitos e paradigmas, a realização de intervenções concre-
tas abordadas nas dimensões das relações de poder, da gestão e da política,
integrados à clínica (Campos et al., 2013).
Nele, parte-se da hipótese de uma eterna reconstrução dos saberes
e práticas, suscitada em virtude da interação dos sujeitos entre si e com o
mundo, desde que pautada no exercício de elaboração reflexiva das expe-
riências, buscando escapar à mera reprodução dos processos de trabalho

Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 55


cristalizados. Portanto, uma estratégia pedagógica de caráter construtivista
e problematizador (Campos, 2015). 
Seu objetivo consiste em promover um olhar crítico para as políticas,
projetos, programas, modelos, práticas e seus produtos, considerando-os
meios para atender as necessidades sociais, em vez de tomá-los como en-
tidades absolutas, como um fim, em si mesmas. Pretende estimular que os
coletivos se autorizem a reconstruir as organizações e os processos de tra-
balho mediante a análise oriunda dos seguintes questionamentos: a que(m)
se destina o trabalho? A quais necessidades atende? 
Busca contribuir para a ampliação da capacidade de análise e de
­intervenção dos coletivos, atendo em vista a produção de práxis voltada
para o trabalho interdisciplinar e em Cogestão; para o cuidado integral e
para a efetivação de uma Clínica Ampliada e Compartilhada (Melo, 2016;
Campos et al., 2013).
A Formação Paideia utiliza turmas constituídas com pequenos
­grupos, sugerindo a realização de contratos que assegurem espaços prote-
gidos, objetivando o funcionamento desses grupos como espaços transicio-
nais, inspirados no dispositivo terapêutico descrito por Winnicott (Cam-
pos et al., 2013). 
Sobre as principais estratégias pedagógicas empregadas da Formação
Paideia, cabe listar: Grupos Balint Paideia para a discussão de Casos, com
elaboração de projetos de intervenção e Ofertas Teóricas (Tabela 3). 

Tabela 3. Caracterização dos encontros presenciais realizados na Formação


­Paideia
Formato padrão do encontro presencial  Total de horas
Grupos Balint para discussão de casos
2 horas
(Feitos coletivamente, em Roda, de modo participativo)
Oferta teórica 
(Com recursos audiovisuais, discussão de texto e dinâmicas de grupo. Eram
2 horas
alternados com apresentação de professores externos, reunindo todas as
turmas)
Duração do encontro padrão  4 horas

Fonte: elaboração própria.

Grupos Balint Paideia

A discussão de casos é sistematizada em consonância com as dire-


trizes apresentadas por Cunha & Dantas (2010) e Cunha (2009) sobre os

56 • Capítulo 2
grupos Balint Paideia. Derivam da metodologia dos Grupos Balint em
que profissionais debatiam aspectos relacionais e emocionais da interação
médico-paciente. No entanto, apresenta variações ao abordar também as
questões políticas e institucionais, bem como a organização do trabalho e
aspectos do modelo de atenção e de gestão. 
Desta forma, os alunos são convidados a elegerem uma situação (um
caso) que podia ser de um usuário, de uma família, de um território ou
de uma equipe e trazê-la para que fosse colocado em análise pelo grupo e
contribuísse para a reflexão sobre o seu papel.
A cada rodada de discussão dos casos, o intuito é sempre buscar mais
informações, interpretá-las e utilizá-las para tomada de decisões, reforçan-
do o caráter construtivo da Formação Paideia — de construção de conhe-
cimento aliada à intervenção na realidade. 
E, a partir dessas discussões, os profissionais em formação são esti-
mulados a se comprometerem com a realização de ações com as equipes
que trabalhavam. Ao conjunto de ações realizadas durante a Formação é
dado o nome de Projetos de Intervenção.
Sua maior contribuição, entretanto, tende a ser a construção da gru-
palidade e manejo de questões subjetivas, tais como a análise da transferên-
cia presente na relação médico-paciente e nas relações com outros profis-
sionais da equipe.

Ofertas Teóricas

Sobre as ofertas teóricas, Campos (2013) sugere que devem atender


a três âmbitos: I) aquele referente à produção de valores de uso e aos mo-
dos de se comprometer com os outros; II) aquele interno às próprias ins-
tituições, referente ao contexto de trabalho, tal como modelos de atenção
e de gestão, organização do processo de trabalho e movimentos institu-
cionais, e; III) aquele ligado ao próprio grupo e aos indivíduos, referente
à ­possibilidade de vinculação com o trabalho em sua dimensão de Obra,
relacionado à ampliação de autonomia, de capacidade reflexiva e de rela-
cionamento. 
Em outras palavras, as ofertas podem ser formuladas a partir do inte-
resse/desejo dos alunos participantes, referentes a temáticas pertinentes ao
seu objeto de trabalho, a fim de contribuir para a reflexão sobre a prática;
mas também podem ser de caráter externo, quando se tratar de materiais
didáticos, cartilhas, protocolos e outros documentos institucionais, sejam
do Ministério da Saúde ou das secretarias estaduais e municipais e/ou for-
mulados a partir da análise dos professores-apoiadores sobre o discurso

Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 57


emergente nos grupos, de modo a ajudar a problematizar ou complementar
algum ponto considerado importante. 

Relato de experiência da utilização da Teoria Paideia para


formação de profissionais da Atenção Primária à Saúde

Muitas das reflexões apresentadas neste livro foram inspiradas ou


derivaram de casos discutidos durante o processo formativo aqui sucinta-
mente apresentado. Trata-se de um Curso oferecido entre 2018 e 2020 na
modalidade de especialização, com duração de 18 meses, abrangendo três
municípios, sendo um de grande porte e um de médio porte, no interior
paulista, e um de pequeno porte, no estado de Minas Gerais. Ao todo, par-
ticiparam 140 profissionais da Atenção Primária desses municípios, agru-
pados em turmas de 20 alunos. 
Todos os participantes pertenciam a equipes de Atenção Primária,
contemplando duplas de médicos e enfermeiras de cada unidade, e profis-
sionais dos Núcleos de Apoio/Ampliado à Saúde da Família (NASF).
Concomitantemente ao Curso, ocorriam encontros na modalidade
extensão, nos quais os alunos da especialização quinzenalmente se integra-
vam aos demais profissionais de sua equipe, incluindo outros integrantes
da equipe NASF e profissionais de nível médio, como auxiliares de enfer-
magem, agentes comunitários e agentes de saúde bucal. 
Deste modo, o Curso esteve integrado aos Cursos de Extensão: FCM-
0316 – Cogestão da Clínica Ampliada e Compartilhada, carga horária: 45
horas, com um total de 224 participantes e FCM-0415 – Capacitação para
Equipe de Saúde em Apoio Paideia, carga horária: 40 horas; que reuniu um
total de 245 alunos.
Cada grupo (turma) conformava um Grupo Balint Paideia e contava
com a participação de trios de professores/apoiadores que desempenham
o papel de mediar e facilitar a construção do conhecimento, referenciados
em conceitos de Vygotsky (Oliveira, 1997) e de Paulo Freire (2014). 

Professores/apoiadores

Os professores/apoiadores possuem a função de facilitação e de tuto-


ria do processo ensino-aprendizagem, trabalham considerando a ­demanda
do grupo e elaborando ofertas oriundas da problematização de temas
emergentes durante as discussões (Campos et al., 2013; Figueiredo, 2012).
58 • Capítulo 2
Nos Grupos Balint Paideia, o trio de professores/apoiadores era res-
ponsável por garantir a regularidade dos encontros, a construção e explici-
tação de um contrato grupal, o manejo de situações que interfiram no fun-
cionamento do grupo, a possibilidade de circulação da palavra, o manejo
dos conflitos, a escuta ativa das demandas grupais, o compromisso com a
autenticidade e com o sigilo sobre os conteúdos manifestados no grupo.
Esse trio era composto por uma dupla de pesquisadores do Coletivo de
­Estudos e Apoio Paideia e um apoiador indicado pelas secretarias munici-
pais de Saúde. 
O termo professor/apoiador pretende enfatizar o papel do Apoio Ins-
titucional como suporte, amparo, auxílio, mas também a noção de impul-
so para o movimento. Segundo Onocko-Campos (2003), existe um duplo
papel do apoiador: oferecer suporte à constituição do grupo e do espaço
coletivo, valorizando os recursos e a potência dos sujeitos, ao mesmo tem-
po em que deve empurrar o grupo para atingir seus objetivos, trazendo as
demandas externas e ofertando outros recursos. 
Essa dupla tarefa do apoiador inclui facilitar a interação do grupo e
apoiar suas análises, permitindo que as pessoas possam se expressar e re-
fletir sobre os temas e as tarefas em questão, sobre o que o tema/a tarefa
desperta no grupo, sobre como lidam com o problema no cotidiano. Mas,
ao mesmo tempo, introduzir novos conceitos, categorias e recursos que
subsidiem o grupo na formulação de ações para intervir com o problema
analisado e produzir mudanças práticas na direção da implementação de
ações que estão compartilhando.
O professor/apoiador refere-se a agentes implicados com a consoli-
dação dos princípios do SUS e da Estratégia de Saúde da Família, assim
deve se corresponsabilizar com a produção do grupo, considerando as
­diretrizes institucionais, os resultados da atividade prática e dos processos
de ­trabalho. 
Traz olhares distintos que provoquem contrastes, que permitam criar
certos desconfortos nos alunos e contribuir para produzir mudanças na
forma de operar a clínica. Essas questões devem ser colocadas em debate
para que o grupo possa exercer sua capacidade de coanálise e codecisão. 
Em razão das especificidades que envolvem a função de professor/
apoiador desse Curso, mostrou-se pertinente a realização de reuniões de
planejamento pedagógico e também supervisão dos apoiadores. Consis-
tiram em encontros quinzenais de 4 horas para supervisão das atividades
desenvolvidas, com a mediação da equipe de coordenação pedagógica do
Curso.

Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 59


Grupos Balint Paideia e Discussão de Casos

Sempre com encontros presenciais, os Grupos Balint Paideia (GBP)


seguiam as recomendações feitas por Cunha (2010) e Figueiredo (2012).
Ocorriam semanalmente, seja na presença do restante da equipe ou somen-
te entre os especializandos, a fim de fomentar a construção de grupalidade
e de instituir um ritmo regular de trabalho que permitisse o acompanha-
mento das intervenções. 
A dinâmica dos encontros partia da discussão de casos clínicos e si-
tuações cotidianas enfrentadas pelos alunos. A partir disso, eram identi-
ficados núcleos temáticos que atribuíssem significado e simbologia a ele-
mentos da realidade, instigando reflexões e desencadeando ações práticas
(operacionais) nos serviços. 
Era esperado que em todos os encontros uma dupla de alunos apre-
sentasse um caso e que a discussão nos GBP inspirasse ações práticas. Os
desdobramentos do caso poderiam ser desde a busca de novos dados ou
mais informações para contribuir na análise da situação, até organização
de ações mais estruturadas que envolvessem a equipe de Saúde da Família
ou outros atores da rede, com planejamento de projetos terapêuticos e/ou a
modificação de uma dada situação.
Essa atividade figurava pedra angular do Curso, visto que consistia
em um lugar privilegiado para planejar e avaliar as atividades práticas das
equipes. Trata-se de um grande momento de compartilhamento e de se
aprender uns com os outros. Ademais, ao estimular a discussão do caso na
equipe de ESF, pretendia-se favorecer a articulação do saber com a prática
e, ao mesmo tempo, multiplicá-lo em sua equipe de trabalho. 
Aposta-se, assim, na construção de maiores graus de protagonismo
dos alunos, esperando que eles sejam capazes de disparar mudanças efeti-
vas nos serviços e no modo de produzir saúde. 

Ofertas Teóricas e Seminários

Inspiradas em Campos et al. (2013) e Oliveira Viana & Campos


(2018), as ofertas teóricas compunham o espaço de estudo teórico, em que
eram abordados, por meio de pedagogia ativa, temas relativos à prática clí-
nica na Estratégia de Saúde da Família e aqueles referentes à Clínica Am-
pliada e Compartilhada (Figueiredo, 2012). 

60 • Capítulo 2
Como se observa na tabela abaixo, os temas englobaram tanto os
principais aspectos clínicos em cada ciclo de vida e gênero quanto as ques-
tões relativas à saúde coletiva e à organização da atenção no contexto da
rede SUS — saberes que, articulados, pretendiam favorecer o cumprimento
dos princípios e diretrizes previstos na Política Nacional de Atenção Básica
(Brasil, 2017). 

Tabela 4. Lista de temas das Ofertas Teóricas

Temas das Ofertas Teóricas

Determinação social do processo saúde doença, a sociabilidade contemporânea e as necessidades de


saúde

Território e Territorialização, vigilância epidemiológica e indicadores de saúde

Medicalização, a relação com a indústria farmacêutica e o complexo médico-hospitalar

Trabalho com a família e visita domiciliar como estratégia de cuidado

Informação e Avaliação participativa: indicadores e sua relação com a gestão

Trabalho dos ACS e atribuições no cuidado à saúde

Processos de Avaliação em Saúde: autoavaliação; avaliação de resultados; avaliação participativa

Gestão e Planejamento em Saúde (Seminário com professor convidado)

Educação permanente

Cogestão e a equipe interdisciplinar: o desafio da gestão participativa

Integração ensino-serviço-comunidade

Formação de espaço coletivo: resistência, conflito, mediação de conflito e contrato e a estratégia da


Comunicação Não Violenta
Programação em Saúde: acolhimento, organização da agenda, coordenação do cuidado e marcadores
de vulnerabilidade

Caso Aberto *

Epidemias e endemias: Promoção e Clínica Ampliada

Promoção à saúde e prevenção de agravos, Projetos de Intervenção, Núcleo de Saúde Coletiva,


Intersetorialidade

Tuberculose e Hanseníase: Promoção e Clínica Ampliada


segue

Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 61


Produção de Saúde em rede

Apoio Matricial e NASF

Rede de Atenção Psicossocial

Saúde Mental na Atenção Básica: Promoção e Clínica Ampliada – grupos terapêuticos, terapia breve
e sistêmica, apoio interpares e outros dispositivos
Saúde Mental na Atenção Básica: Promoção e Clínica Ampliada – manejo clínico e de medicamen-
tos, abuso de medicamentos psicotrópicos
Saúde mental do adolescente: automutilação, autoextermínio, uso de SPAs, distúrbios alimentares e
de autoimagem (Seminário com professor convidado)
A ESF e a escola: violência, uso de SPAs, problemas de escolarização e crianças com necessidades
especiais

Saúde da Criança: Promoção e Clínica Ampliada (Seminário com professor convidado)

Saúde do Adolescente: Promoção e Clínica Ampliada

Prevenção e reabilitação psicossocial do uso abusivo de SPAs: a estratégia de redução de danos (Se-
minário com professor convidado)

Saúde da população LGBTQIA+: Promoção e Clínica Ampliada

AIDS e IST: Promoção e Clínica Ampliada

Sexualidade e direitos sexuais e reprodutivos do homem e da mulher (Seminário com professor


convidado)
Nutrição na APS e segurança alimentar: Promoção e Clínica Ampliada (Seminário com professor
convidado)

Saúde da mulher: Promoção e Clínica Ampliada

Atenção à Saúde do Idoso: Promoção e Clínica Ampliada

Atenção à Saúde Materna e Infantil: Promoção e Clínica Ampliada

Condições Crônicas do Adulto/Idoso: Promoção e Clínica Ampliada 2 – apoio a mudanças de estilo


de vida e ações de educação em saúde 

Condições Crônicas do Adulto/Idoso: Promoção e Clínica Ampliada: linha de cuidado

Práticas Integrativas e Complementares (Seminário com professor convidado)

 Educação Popular. A participação e Controle Social: Conselhos locais e municipal; assembleias de


usuários; projetos da comunidade (Seminário com professor convidado)

Cuidados paliativos e Internação domiciliar: SAD e ESF (Seminário com professor convidado)

Saúde do Trabalhador

62 • Capítulo 2
Além dos temas prefixados, havia encontros com temas abertos em
que os alunos eram estimulados a trazerem a discussão de sua escolha, in-
dicando bibliografia dentro de seu repertório de trabalho e de reflexão. 
Outro aspecto relevante da organização das Ofertas Teóricas neste
Curso foram os seminários, dispositivo análogo ao empregado por Cunha
& Dantas (2010) e Oliveira Viana & Campos (2018). Momentos em que um
ou mais especialistas eram trazidos para debate, com o intuito de ­detalhar
os temas tratados nos grupos e nos espaços singulares dos serviços de s­ aúde
dos municípios ou por questões demandadas pelos alunos. Nos seminários,
todas as turmas do referido período (manhã ou tarde) se encontravam, fa-
vorecendo trocas. A metodologia usual era o de aula expositiva do(s) con-
vidado(s), seguida de perguntas da plateia.
A cada trio de professores/apoiadores era dada autonomia e liberdade
para que empregassem diferentes estratégias para a abordagem das ofertas
teóricas e dos respectivos textos. 

Participação dos Agentes Comunitários de Saúde

Nos processos de gestão da promoção e prevenção da saúde, espera-se


que os profissionais envolvidos no modelo proposto pela Atenção Primária
pensem em estratégias de maneira conjunta, com participação e envolvi-
mento de todos os seus membros (Brasil, 2017). 
O trabalho em equipe, nesse contexto, pressupõe colaboração entre
seus membros, troca entre os diferentes saberes e complementaridade nas
atividades. Pressupõe, ainda, relações que promovam a colaboração e a co-
municação, a fim de contribuir para o desenvolvimento do trabalho pauta-
do em relações dialógicas e horizontalizadas (Silva & Moreira, 2015). 
Ao discutir Atenção Primária, indubitavelmente precisamos men-
cionar e reconhecer o valioso papel dos Agentes Comunitários de Saúde
(ACS), que antecede a Estratégia Saúde da Família (ESF) e agrega o diferen-
cial dessas equipes, obtendo bons resultados (Melo et al., 2018, Giovanella
& Mendonça, 2012). 
Se consideradas as recomendações da Política Nacional de Atenção
Primária (Brasil 2012; Brasil, 2017), os ACS constituem a maior parcela
de profissionais que integram as equipes da ESF e desenvolvem atividades
importantes para a concretização de seu plano de ação. São os membros
que desempenham papel mediador entre equipe de saúde e a comunidade,
pois ao mesmo tempo em que residem na área de atuação, também fazem
parte da equipe de saúde. 

Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 63


De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2006), a lei de criação
da profissão de ACS trouxe a necessidade de um processo formal de pro-
fissionalização desses trabalhadores. Para definir essa formação, durante
o ano de 2003, o Ministério da Saúde reuniu representantes da categoria,
gestores estaduais e municipais do SUS, além de trabalhadores do setor da
saúde, e elaborou uma proposta para o perfil de competências profissionais
dos ACS, levando em consideração os seguintes aspectos: a estrutura legal
de formação estabelecida no país, a política de formação e desenvolvimen-
to dos trabalhadores do SUS, a especificidade do trabalho dos ACS e a di-
versidade de escolarização desses profissionais. 
As propostas para elaboração destes cursos técnicos, os chamados
introdutórios para ACS, utilizam o Referencial Curricular para Curso
­Técnico de Agente Comunitário de Saúde, elaborado em 2004 pelo Minis-
tério da Saúde (Brasil, 2006).
O Ministério da Saúde propôs que a formação do ACS acontecesse
por itinerários formativos, ou seja, uma formação oferecida em etapas sub-
sequentes e com presença nos serviços. Dessa forma, o reconhecimento de
que cada etapa asseguraria que os ACS tivessem possibilitada a progressão
dos estudos, conforme suas escolaridades. Assim, além de começar a for-
mação inicial, o ACS poderia complementar sua escolaridade, sendo facul-
tada a continuidade aos estudos de formação profissional, podendo chegar
à profissionalização (Brasil, 2006).
Contudo, apesar de já existirem propostas para elaboração de cursos
específicos para sua profissionalização, muitos ainda não recebem uma for-
mação destinada ao desempenho de suas atividades. E, sobretudo, não há
em documentos oficiais o indicativo de propostas de formação em conjun-
to com o restante da equipe. Restringem-se ainda em formatos de c­ ursos
uniprofissionais, com temas específicos, seguindo as características que
Mancia et al. (2004) apresentam para definir Educação Continuada. 
Assim como ocorre com os demais profissionais que compõem as
equipes de Atenção Primária, é fundamental, também para os ACS, pro-
cessos formativos que discutam a prática e promovam reflexão sobre o
­processo de trabalho. Esses temas constituem pauta das reuniões de equi-
pe, porém podem ser complementados e enriquecidos mediante processos
formativos, tal como ocorre nos grupos Balint Paideia.
O Curso aqui relatado destaca-se justamente por levar a toda a equi-
pe, incluindo ACS, o formato de grupos Balint Paideia. Nessa experiência,
foi possível observar que os ACS sentiram-se valorizados ao poder com-
partilhar com o restante da equipe a formação, ajudando a desfazer o mito

64 • Capítulo 2
de que processos de formação são acessíveis somente a profissionais de en-
sino superior.
Dada a relevância desta experiência, buscamos destacar aqui algu-
mas observações a respeito das ressonâncias deste processo formativo
para os ACS. Cabe salientar que o material resgatado do diário de cam-
po dos professores/apoiadores integra um projeto de pesquisa de ava-
liação do Curso, aprovado pelo Comitê de Ética da UNICAMP (CAAE:
96478718.0.0000.5404). Todos os ACS assinaram o termo de consentimen-
to livre e esclarecido.

A maior parte deles afirmou não ter recebido treinamento, e ressaltou


a importância de receber saberes e informações que pudessem ser aplicados
no dia a dia. Todavia, teceram queixas sobre a oferta de cursos por vezes ser
irregular e contemplar apenas parte dos ACS das equipes. 

O trabalho em equipe é de difícil execução, devido a conflitos nos rela-


cionamentos interpessoais. Havia discursos que abordavam certa harmonia
entre a equipe da ESF, porém eram recorrentes as afirmações que explici-
tavam conflitos relacionados à assimetria de poder entre as categorias pro-
fissionais, distanciamento e resistência à inclusão de novos saberes e novas
práticas. De modo geral, havia queixas sobre excesso de trabalho, escassez de
recursos, desvalorização e desmotivação dos profissionais. 

As reuniões de equipe não ocorrem de modo homogêneo e tampouco


com a mesma regularidade em todas as equipes. Ainda assim, são citadas
como a principal estratégia para a integração do trabalho em equipe. Contri-
buem para o estreitamento das relações entre os membros das equipes da ESF
e para o melhor desempenho e planejamento das mesmas, complementam a
formação. 

O tempo de trabalho no serviço contribui para facilitar a criação de um


elo entre os ACS e as famílias. É notória a apropriação diferenciada dos ACS
acerca do conhecimento sobre as famílias e sobre o território. Nas discussões
teóricas sobre visita domiciliar, ficou evidente sua expertise. Nas discussões
de caso, complementavam as informações trazidas pelos demais integrantes
com vivacidade e riqueza de detalhes. Foi possível inferir que os ACS, mesmo
alegando estar sobrecarregados com as atribuições burocráticas, permanecem
no papel de vinculação entre as famílias e a equipe. 

Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 65


Reconhecem que trabalhar e morar na comunidade é uma condição
contraditória geradora de desconforto para as atividades do ACS, ao mesmo
tempo em que possibilita a construção de vínculo. 

Efeitos Percebidos

Assim como no Curso aqui relatado, Figueiredo (2012) utilizou a Teo­


ria Paideia como referencial pedagógico para um processo voltado para
enfermeiros e médicos das Equipes de Referência da Atenção Primária de
Campinas, no intuito de colaborar para a construção de práticas ampliadas
e compartilhadas em saúde. 
A avaliação feita pela autora sobre a iniciativa mostrou que foram de-
senvolvidas competências técnicas, éticas e relacionais envolvidas nas múl-
tiplas dimensões ligadas à Clínica Ampliada e Compartilhada. Além disso,
possibilitou a efetivação de mudanças significativas nas práticas clínicas e
de Cogestão, bem como na “gestão de si mesmos”, em que os profissionais
puderam desenvolver sua capacidade reflexiva, analítica e interventiva para
lidar com a complexidade e singularidade dos casos e também para com-
por as equipes a partir da interdisciplinaridade (Figueiredo, 2012).
No Curso aqui apresentado, os principais efeitos encontrados refe-
riram-se ao conhecimento de si, ao incremento da capacidade reflexiva e
de análise crítica sobre sua prática, ainda que nem sempre pudessem ser
observados. A postura e o discurso, sim, foram modificados, indicando que
se abriram as possibilidades para efetuar a mudança das práticas. Esses mo-
vimentos ficaram mais evidentes durante as discussões de caso nos Grupos
Balint Paideia.
Esses dados corroboram com os achados de Cunha & Dantas (2010)
sobre o potencial dos Grupos Balint Paideia em operar como constante
dialética entre reflexão e ação, abarcando aspectos subjetivos e os afetos
produzidos no ambiente de trabalho.
Também foram identificadas contribuições oriundas dos momentos
de Oferta Teórica, diferentemente do encontrado nos cursos avaliados por
Oliveira Viana & Campos (2018). Aqui, os alunos se remetiam com frequ-
ência a textos que os auxiliaram a fundamentar suas discussões, especial-
mente aqueles relacionados à coconstrução da autonomia do cuidado, ao
autocuidado assistido e à educação em saúde.
Em um quadro mais amplo, acreditamos que as discussões nos Gru-
pos Balint Paideia, associadas às discussões de caso, possibilitaram, ainda

66 • Capítulo 2
que em medidas diferentes entre as turmas, o resgate e a contextualização
da tríplice finalidade do trabalho associada aos usuários, à instituição e aos
trabalhadores (Campos, 2006), pois houve um grande investimento para
que as equipes pudessem incrementar sua capacidade de: 1) produzir saúde
e cuidar dos usuários, agregando valor de uso às suas ações; 2) garantir a
viabilidade técnica das instituições; 3) vincular os profissionais à dimensão
criativa de sua prática. 
Entretanto, tal como Figueiredo (2012) adverte, os efeitos do proces-
so formativo no referencial da Teoria Paideia devem ser reafirmados no
cotidiano de trabalho, mediante o exercício contínuo de se empreender
análises críticas da realidade nos espaços coletivos, interrogando constan-
temente a práxis dos serviços de saúde.

Considerações finais

Os cursos que ocorrem neste referencial devem se preocupar em,


a­ inda que pese a dificuldade inerente ao manejo desta indicação, trazer
para a cena as questões de coprodução, conflitos, lutas e acomodações. Em
nossa experiência, é mediante essa empreitada que se torna possível facul-
tar aos alunos lidar com as diferenças e construir contratos, articulando,
na medida do possível, o campo da produção de valor de uso ao campo da
produção de sujeitos, individuais e coletivos. 
Outro aprendizado relevante a respeito dos processos formativos nes-
se contexto refere-se à premência de serem construídos de forma compar-
tilhada, em Cogestão entre professores, alunos e demais atores que com-
põem os grupos de interesse relacionados.
A despeito da limitação dos processos formativos, isoladamente, lo-
grarem o deslocamento da lógica biologicista e fragmentada para a clíni-
ca ampliada, ou reverterem a fragmentação do cuidado, ainda constituem
dispositivos potentes para fomentar a democratização das instituições por
meio do convite à ressignificação dos papéis.
Assim, o investimento em formação permanece cada vez mais neces-
sário, em nome da produção de subjetividade que, acumulada, poderá le-
var à transformação das relações e das instituições.
Nesse sentido, pode-se dizer que seria preciso que os cursos basea­
dos na teoria Paideia ultrapassassem a condição de eventos esporádi-
cos e que fossem incorporados como estratégia de formação em serviço.
Sempre mantendo os profissionais, como principais interessados, como

Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 67


­ rotagonistas do itinerário de formação. Isso porque é a partir da compre-
p
ensão ­deles sobre seu trabalho e suas indagações que poderemos construir
de forma compartilhada o saber e a práxis. 

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Processos formativos para a Atenção Primária à Saúde... • 71


Capítulo 3
Contribuições pedagógicas dos Grupos
Balint-Paideia: reflexão sobre a prática

Lilian Soares Vidal Terra


Gustavo Tenório Cunha
Mônica Martins de Oliveira
Jorge Mendes Ávila
Gizélia Rosana Quadrado Carmazini

O Coletivo Paideia tem acumulado experiência em cursos Balint-Pai-


deia (Castro, 2011; Castro & Campos, 2014; Cunha, 2009; Cunha &
Dantas, 2010; Figueiredo, 2012 e Campos et al., 2013.). O que significa di-
zer aproveitar o referencial de Michael Balint (1984) e o Método Paideia
(2013) na formação em serviço.
Conforme analisava Balint (1984), grande parte das motivações que
condicionam comportamentos e ações dos profissionais permanecem in-
conscientes, e a utilização de encontros semanais para reflexão sobre a prá-
tica profissional e sobre a vida institucional objetiva trazer progressivamen-
te à consciência elementos dessa trama psicossocial. O Método Paideia, por

72 • Capítulo 3
sua vez, desenvolve a formação e busca ampliar a participação ativa de to-
dos os atores na construção do trabalho. Somando-se essas duas metodo-
logias conceituais operativas, Campos, Cunha & Figueiredo (2013) desen-
volveram os grupos Balint Paideia (GBP) cujo objetivo é ampliar, por meio
da reflexão sobre a prática, a capacidade de análise e de intervenção dos
sujeitos para agirem coletivamente sobre a realidade cotidiana da produção
de cuidado, possibilitando a construção de processos criativos e solidários. 
Assim, partindo desta fusão de conceitos oriundos de Balint (1984)
e do Método Paideia (2013), foi ofertado, entre setembro de 2018 e março
de 2020, um Curso de Especialização e Extensão em Saúde da Família para
profissionais de três municípios: uma região metropolitana, um município
de médio e um de pequeno porte. O Curso transcorreu na forma de grupos
Balint Paideia mediados por duplas de pesquisadores e docentes vincula-
dos ao Coletivo de Estudos e Apoio Paideia, do Departamento de Saúde
Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, em trio com
um profissional indicado pelos municípios. Os alunos foram divididos em
turmas de aproximadamente 20 pessoas, com um total de 373 participan-
tes. Foram incluídos profissionais de Equipes de Saúde da Família (EqSF) e
Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) do Sistema Único de Saúde
(SUS) dos três municípios e excepcionalmente profissionais vinculados à
gestão de um dos municípios. O Curso foi motivo de investigação em pes-
quisa, registrada e autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sobre o
número CAAE: 96478718.0.0000.5404.
A estratégia pedagógica utilizada incluiu apresentação e discussão de
casos trazidos pelos trabalhadores e buscou compreensão das numerosas
forças que atuam sobre as relações clínicas e institucionais. O objetivo des-
te capítulo é compartilhar o caminho percorrido por um destes grupos, a
partir da perspectiva dos apoiadores. Por um lado, relatar as percepções, as
dificuldades, o espanto, as alegrias de quem tem o objetivo de conduzir o
processo grupal de forma a aumentar a capacidade de análise e intervenção
dos participantes. Por outro lado, apresentar algumas das reflexões e apren-
dizados da jornada.
Um aspecto importante deste grupo é que ele foi coordenado por até
cinco professores/apoiadores. Três deles não estiveram presentes todo o
tempo e, certamente, foi significativo na história desse Grupo que elas se
afastassem para que três seres humanos pudessem nascer. Assim, muito em-
bora a rotatividade do apoio do grupo não seja desejável, no caso em ques-
tão ela foi bem recebida pelos alunos, pelo reconhecimento da ­importância
da licença maternidade das apoiadoras. Ademais, os três p ­ rocessos de tran-
sição foram cuidadosos, já que houve tempo para esse planejamento.

Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia... • 73


Também é significativo que, na preparação do curso, em diálogo com
a gestão de um dos municípios participantes, definiu-se que, a partir do
sexto mês do curso regular de especialização, começaria, concomitante-
mente, outro curso quinzenal de extensão, que incluiria as equipes em que
trabalhavam os alunos regulares dos cursos de especialização. Os respec-
tivos coordenadores de Unidades Básicas foram também convidados para
o curso de extensão. As atividades dos cursos de extensão não seguiram
exatamente a metodologia Balint Paideia, mas permitiram ao grupo e aos
apoiadores do GBP conhecer e lidar com as equipes e coordenadores de
Unidades em um espaço protegido. Para maior clareza acerca da organiza-
ção do curso, consultar o capítulo 2.
Neste artigo, iremos analisar somente o grupo de profissionais que
realizaram o Curso de Especialização.

Os contratos e a potência do trabalho nos GBPs

As apresentações pessoais seguidas da proposta de ensino, com seus


objetivos, metodologias, temas, são importantes no início de qualquer cur-
so. No caso de um Grupo Balint-Paideia, essa pactuação inicial é ainda
mais importante, porque o centro do trabalho é a apresentação de casos
vividos no cotidiano de cada profissional, em que o sigilo e o respeito à
conduta de cada um são imprescindíveis aos preceitos éticos e à criação de
um ambiente de respeito e de confiança, essencial para possibilitar a parti-
cipação ativa de todos.
Os profissionais haviam sido convidados a participar do curso por
seus gestores, mas com pouca informação acerca de como se daria ou de
quais seriam os objetivos do Curso de Especialização oferecido pela Uni-
versidade de Campinas. Para nós, apoiadores, havia a informação de que
os alunos tinham sido escolhidos de acordo com o perfil de suas Equipes
de Saúde da Família e condição da gestão à qual estavam vinculados. Eles
mesmos, porém, não tinham essa informação.
Assim, o primeiro contato da turma foi atravessado por desconfiança,
uma vez que os trabalhadores vinham enfrentando um cenário de crise
institucional e sobrecarga de trabalho com pouco diálogo com a gestão.
Fizemos uma longa discussão da proposta de formação e reflexão, estabe-
lecendo contratos e pactuando o funcionamento do grupo nos 18 meses
que se seguiriam. Também pudemos explicar a metodologia escolhida e
a importância de um espaço protegido, em que a discussão seria sempre
mantida em sigilo e feita de maneira respeitosa, e nenhuma opinião seria

74 • Capítulo 3
vetada pelos apoiadores. A partir desse momento, os alunos ficaram mais à
vontade para se expor e expressaram contentamento por frequentarem um
espaço de reflexão fora da rotina desgastante de trabalho, como se infere
da fala de um dos participantes: A prefeitura não dá nada de mão beijada,
então por que o curso? A prefeitura pode estar dando um tiro no pé, porque
está reunindo os trabalhadores e colocando para refletir junto.
Este momento de estabelecimento de compromissos e contratos entre
os membros do grupo, incluídos os apoiadores, é essencial para a constru-
ção de um GBP. Campos (2013) reflete que a elaboração e a gestão de con-
tratos possibilitam a criação de um espaço favorável à práxis, quando, nas
palavras do autor, “o Sujeito está obrigado a redefinir-se, e até a construir
novos projetos” (p. 67).
Para que essa práxis ocorra, é essencial que o sujeito participe ativa-
mente do estabelecimento dos compromissos, pois se atua em função de
normas impostas a ele ou compromissos previamente instituídos com ou-
trem, os estudantes não irão investir sua vontade naquele processo de for-
mação. Será uma prática alienada, que não irá contribuir para o processo
de aprendizagem e para o andamento do grupo (Campos, 2013). Pretende-
-se, ao contrário, que o sujeito possa agir em função do grupo sem renun-
ciar absolutamente ao interesse particular; agir tendo-o como referência,
para compor espaços que estabeleçam essas mediações (Campos, Cunha
& Figueiredo, 2013). Portanto, para a formação do GBP, é imprescindível
que o estabelecimento do contrato ocorra em diálogo entre os membros
do grupo, e que a eles seja possibilitada a oportunidade de falar sobre suas
expectativas e desejos.
Nessa mesma oportunidade, é importante que os apoiadores abordem
questões que podem escapar aos membros do grupo e que também são es-
senciais para se estabelecer a práxis Paideia. No caso em questão, a expres-
são inicial de desconfiança dos membros do grupo em relação à Secretaria
de Saúde foi uma oportunidade para falarem sobre relações de poder, lutas
internas e contradições das instituições. As instituições não são um corpo
único, naturalizado. São feitas por pessoas, como tais podem ser modifi-
cadas e um dos objetivos do Método Paideia é ampliar a capacidade dos
sujeitos de agir sobre o contexto, de modo que adquiram autonomia para
agir diante das leis, das regras e dos princípios aos quais estão submetidos
(Campos, Cunha & Figueiredo, 2013).
Nos primeiros encontros do grupo, a discussão girou em torno do
contexto vivido pelos trabalhadores. Eles se mostravam desanimados com
o trabalho, solitários, sobrecarregados e não se apresentavam mobilizados
para mudança. A discussão dos temas invariavelmente caminhava para

Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia... • 75


­ esabafos individuais. Eram então acolhidos pelos apoiadores e se mos-
d
travam contemplados nas falas uns dos outros, o que permitia perceber
que o contexto vivenciado por todos era semelhante, ainda que lidassem
com ele de formas distintas. Aos poucos, as reclamações se esgotaram e os
­alunos foram se apropriando dos temas pautados e se interessando mais
pelas discussões.
É comum que em um primeiro momento o grupo se limite a discutir
problemas cotidianos e utilize o espaço do grupo para desabafos. Cabe ao
apoiador, nesse cenário, exercer a escuta, mas não uma escuta benevolente,
tampouco moralizante ou julgadora, mas que seja capaz de se abrir à alteri-
dade e permita uma seleção de ofertas que possam auxiliar o grupo a lidar
com o contexto. Trata-se de uma das prerrogativas do apoiador (Campos,
2013) que, ao mesmo tempo em que recebe e é continente às necessidades
e demandas do grupo, apresenta novas ofertas, empurrando os sujeitos a
moverem-se na direção de seus objetivos.

Reflexão sobre a prática: o caso de Solange

O primeiro caso a ser discutido no curso foi apresentado por mem-


bros de uma Equipe de Saúde da Família (médico e enfermeira) juntamente
com profissionais do NASF (dois psicólogos e uma terapeuta ocupacional).

Tratava-se de Solange, 57anos, gênero feminino, proveniente de estado


da Região Nordeste, onde ainda moravam seus irmãos mais velhos e mãe.
Fora criada pelos avós, pois segundo ela, sua mãe era muito namoradeira
e a deixava com a avó, o que fora percebido como abandono, já que não se
repetia com seus irmãos.
A paciente relata que, até conhecer o último marido, vivia, nos seus di-
zeres, “vida de mulher de rua”. Quando o conhece, passa a frequentar a igreja
e a ter vida de “mãe de família”. Iniciara sua vida sexual aos 14 anos, aos 18
anos saíra de casa e aos 22 anos tivera o primeiro filho, seguido de dois outros,
cada qual com um parceiro diferente. Atualmente todos moram próximos,
mas seu maior apoio é uma neta, filha da filha do meio. Já a filha mais nova
ajuda com os cuidados da casa. Solange mora em casa própria há 18 anos e
como renda recebe o Benefício de Prestação Continuada. Diz não ter lazer,
pois não consegue fazer nada, as dores a incapacitam.
Como diagnósticos, no prontuário, constavam obesidade grau 1, hi-
pertensão arterial sistêmica não controlada, com uso incorreto das medica-
ções, diabetes melitus 2 complicada por neuropatia diabética, fibromialgia,

76 • Capítulo 3
o­ mbralgia (tendinopatia bilateral), dislipidemia, depressão. Também consta-
vam passado de sífilis e queixa de esquecimento.
Ao serem indagados do motivo da escolha deste caso específico para
discussão, a equipe relatou que desde 2002 a quantidade de consultas ao ano
da paciente havia aumentado de 3 para 15. Desde que o marido morrera, em
2008, passou a frequentar muito o serviço. Já fora oferecido atendimento em
Saúde Mental, com psicólogo ou psiquiatra, mas não aceitara se consultar e
já tivera alta de um psiquiatra em 2008. A equipe também se queixava que
Solange recebe muitos encaminhamentos dos profissionais da Unidade e te-
oricamente estaria sendo acompanhada por reumatologista e clínica de dor.
Estava na fila de espera para 50 consultas com diferentes especialistas. Se-
gundo a equipe, a paciente faltava ou dispensava muitos atendimentos, o que
incomodava os responsáveis pelo agendamento. Nos dizeres da enfermeira
que relatou o caso, Solange “responsabiliza completamente a gente pelo cui-
dado dela. Ela fica atrás da profissional perguntando seus encaminhamentos.
Quando a vaga sai, ela não vai.” A equipe percebe que seu cuidado é muito
fragmentado.

Ao longo da apresentação do caso, os apoiadores perceberam que a


equipe parecia estar bem descontente e incomodada com a paciente, e en-
tão questionaram o porquê da escolha do caso. Os profissionais respon-
deram que não era uma paciente bem quista e que somente a enfermeira
tentava prover um cuidado longitudinal. Não tinha relação próxima com
a agente comunitária de saúde da sua área, pois, segundo a equipe, ela era
responsável por 2.500 pacientes, além de fazer muito trabalho interno. Ou-
tro ponto sensível para a EqSF parecia ser o fato de que a paciente não
seguia as orientações dos profissionais da APS, mas seguia a dos especia-
listas. Reiteraram que ela cuidava muito de sua aparência, mas não mos-
trava o mesmo autocuidado em relação à saúde física. Além disso, Solange
reclamava muito da Unidade Básica de Saúde (UBS). Ressaltava para os
profissionais que seu problema não era mental, mas físico e que o que ela
queria da UBS eram os encaminhamentos. Mas o fato de a paciente faltar
nas consultas com especialistas agendadas pela Unidade fazia que a equipe
tivesse desistido de seus cuidados, por achar que ela não queria se tratar.
O objetivo dos apoiadores ao questionar a escolha do caso foi esti-
mular a equipe a acessar os sentimentos relacionados a ele. Nem sempre os
profissionais de saúde estão atentos ou se dão conta dos afetos que os pa-
cientes lhes provocam, de modo que ficam sujeitos a agir a partir de ques-
tões do inconsciente. Essas identificações sejam elas positivas ou negativas,
quando trazidas para o consciente, podem ser elaboradas e fazer parte da

Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia... • 77


construção do cuidado. Trata-se das relações de transferência (do paciente
para o profissional) e contratransferência (do profissional para o paciente)
descritas por Freud para o setting de análise (Baremblitt, 1996), mas que se
aplicam aos demais encontros de trabalhadores da saúde e usuários.
A discussão que se seguiu no Grupo foi centrada no cuidado da dor
da paciente e monopolizada pelos médicos, cada qual com sua opinião so-
bre como deveria ser conduzido o cuidado em dor crônica, como expresso
na fala de uma médica: O paciente com dor crônica é chato, né?! Se ela tivesse
um médico só que conseguisse organizar o tratamento, convencê-la a ir ao
psicólogo, pagar um pilates… Cunha (2009), em experiência anterior com
grupos Balint Paideia, observou semelhante comportamento pelos profis-
sionais, a que eles mesmos, na discussão em Gurpo, denominaram “Sín-
drome de professor pardal”. Em suas palavras:

Era como se um contágio de ansiedade provocasse uma busca por ideias


geniais, potencialmente mágicas, que se traduziam em uma série de inter-
venções dos participantes que sempre começavam com — e se fizesse, ou,
— você já tentou. . . , o que acabava funcionando como uma forma de evitar
que se entrasse em algum processo de análise e compreensão, tanto do caso
quanto dos afetos da equipe ou do grupo (Cunha, 2009, p. 86).

Os médicos também se queixavam do excesso de demanda, que faria


que eles não conseguissem dar a devida atenção a cada caso, produzindo
uma clínica empobrecida. Até que uma psicóloga questionou se a paciente
já havia contado sua história familiar para alguém e a enfermeira disse que
havia muita rotatividade na equipe e que a história da Unidade prejudicava
a paciente. Ainda assim, disse que a paciente havia dito, em uma ocasião:
Fui abandonada na vida. Não tenho nada, só tenho a minha dor.
Mesmo diante dessa fala, o Grupo retomou a discussão da pressão
da demanda e da estruturação burocrática do cuidado, até que novamente
uma terapeuta ocupacional tentou retomar o foco em Solange, refletindo
sobre como é comum que o paciente receba uma prescrição que inclui a
consulta em saúde mental: você tem que tomar isso e aquilo, controlar a
pressão, ir no psicólogo etc. Observou que, nesse caso , a escuta da dor ficara
prejudicada e que ter uma escuta para a dor seria mais trabalhoso, mas
também poderia ser mais efetivo. Nos seus dizeres: A gente quer ter resposta
e enquadrar coisas, mas é a partir do que ela está dizendo que a gente vai con-
seguir alguma coisa. Se ela diz que só tem a dor, o que sobra se tratar a dor?
O grupo então fez uma interessante reflexão sobre as diferentes formas de
escuta dos profissionais, geralmente relacionadas à sua formação de base.

78 • Capítulo 3
Observaram que médicos e enfermeiros, em geral, têm uma pressa em re-
solver e prescrever algo para solucionar a situação problema dos pacientes,
enquanto a equipe de saúde mental conseguiria ouvir sem necessariamente
tentar resolver. Discutiram então o sentimento de impotência dos profis-
sionais diante de casos complexos e como a consulta compartilhada entre
profissional da equipe básica e da equipe de Apoio poderia dar mais segu-
rança na condução do caso.
Este episódio aponta para a resistência de alguns profissionais de saú-
de, em especial aqueles de formação biomédica, em realizar a abordagem
dos aspectos subjetivos de seus pacientes, o que usualmente justificam pela
falta de formação nuclear em Saúde Mental ou pela pressão da demanda.
Cunha & Campos (2011) e Campos & Domitti (2007) chamam a atenção
para o fato de que os profissionais buscam atuar preferencialmente com
problemas que pertençam ao seu núcleo de conhecimento, reafirmando
constantemente a definição de fronteiras rígidas de saber. Ademais, ao não
ampliar sua clínica para questões subjetivas e sociais, o profissional se pro-
tegeria de lidar com a própria dor, medo ou ansiedade que o trabalho em
saúde pode trazer (Brasil, 2009a). Porém, o insucesso do projeto terapêu-
tico também irá causar sofrimento e frustração no profissional. Faz-se ne-
cessário, portanto, proporcionar aos trabalhadores maneiras de lidar com
as próprias dificuldades e espaços em que possam discutir as contratrans-
ferências, positivas ou negativas, despertadas pelo caso.
Reuniões de equipe ou espaços formativos como o do Curso pode-
riam exercer esse papel, ou, como apontado pelo próprio Grupo, ele po­
deria ser exercido pelo Apoio Matricial, ao mediar as discussões de caso ou
participar de consultas conjuntas. Como descrito nas diretrizes do NASF
(Brasil, 2009b), seria papel do apoiador matricial realizar atendimentos
compartilhados, visando à intervenção interdisciplinar, troca de saberes,
capacitação e responsabilidades mútuas, gerando experiência para ambos
os profissionais envolvidos. Portanto, mais do que uma ferramenta para
aumento da resolutividade, a consulta compartilhada entre profissional da
equipe e apoiador matricial deve ser compreendida como recurso peda-
gógico (Jesus, 2011). Em trabalho que envolveu entrevista em profundi-
dade de profissionais de EqSF do Rio de Janeiro, a autora observou que a
abordagem dos aspectos subjetivos e sociais do processo saúde-doença, a
escuta ativa e a responsabilidade compartilhada pelo cuidado estão entre os
aprendizados possibilitados por esse dispositivo (Jesus, 2011).
No entanto, é importante lembrar que os grupos Balint foram dese-
nhados pelo autor para criar justamente um espaço diferente do cotidiano
dos profissionais, em que uma série de pressões e dinâmicas do processo

Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia... • 79


de trabalho costumam convidar a certa urgência decisória e dificultar a
autoanálise. Nos grupos Balint, a delicada somatória de perspectivas di-
ferentes de colegas que estão em situação semelhante, mas desconhecem
completamente cada caso apresentado, convida cada um a compreender
progressivamente mais sobre as transferências e contratransferências.
Feita essa discussão, o Grupo concordou que a melhor conduta seria
um seguimento em saúde mental na própria UBS, ainda que alguns pro-
fissionais tenham tentado problematizar que esse não parecia ser o desejo
da paciente. Um dos psicólogos que também apresentava o caso lembrou
que havia telefonado para oferecer à paciente uma consulta com ele, sem
sucesso. E, como mencionado por uma das psicólogas: a psicoterapia sem
desejo não acontece. A proposta de construir conjuntamente com a pacien-
te seu projeto terapêutico não entrou em pauta nesse momento, ainda que a
terapeuta ocupacional responsável tenha questionado: qual é a expectativa
nossa e qual é a expectativa dela? Ainda assim, concordaram que o cuidado
deveria ser mantido na UBS e que para tanto deveriam fazer uma escuta da
dor da paciente e uma pactuação intraequipe para que a enfermeira não se
encarregasse sozinha do caso.
Passados cinco meses e havendo todas as equipes discutido seus res-
pectivos casos, conforme pactuado no início do curso, o caso de Solange
foi reapresentado no Grupo. A primeira discussão do caso imprimira nos
apoiadores uma expectativa de que o processo de mudança seria muito de-
morado e que a apresentação provavelmente traria progressos pequenos.
Porém, já de início a enfermeira apontou ganhos bem concretos para a
equipe e para a paciente.
O psicólogo, por ser acupunturista, havia convencido Solange a expe-
rimentar uma consulta direcionada para suas “dores crônicas”, sem insistir,
inicialmente, na abordagem da saúde mental. Segundo seu relato, logo no
primeiro momento, a paciente perguntara: qual dor a auriculoterapia pode
tratar? O psicólogo, muito atento, respondera: qual dor é mais importan-
te para a senhora? E Solange, imediatamente: a maior dor que eu tive na
minha vida foi a morte do meu marido. A auriculoterapia seguiu assim,
cuidadosamente mesclada com psicoterapia, até que ela concordasse em
participar de um grupo de saúde mental.
Importa ressaltar que não coube somente ao psicólogo fazer esta
escuta. A enfermeira logrou uma aproximação importante com Solange,
fortalecendo o vínculo com a Unidade e desfazendo as percepções negati-
vas que ela tinha a respeito do funcionamento da UBS. Em suas consultas,
propostas a partir de uma sugestão de organização dos encaminhamentos
e sistematização do cuidado, a paciente vinha desenvolvendo, aos poucos,

80 • Capítulo 3
maior capacidade de autocuidado e melhor compreensão a respeito da dor.
Passara a frequentar o grupo de Entrevista Motivacional da UBS e chegara
a pedir para repor uma falta. Quando ia a alguma consulta com especialis-
ta, trazia contrarreferência para a UBS. A respeito das mudanças, a enfer-
meira comentou: A mudança saiu da gente, passou pra ela, e as coisas têm
caminhado melhor.
Relataram então a estratégia de abordagem da paciente, que passara
por compartilhar mais o caso entre todos os membros da equipe e aproxi-
mar a paciente da construção de seu projeto terapêutico, sistematizando
em conjunto com ela os encaminhamentos para especialidades. Isso dera
materialidade a suas questões, possibilitando que visse de forma mais con-
creta seu trajeto terapêutico, além de implicá-la mais claramente no uso
que fazia do sistema de saúde. Para que a paciente aderisse ao Projeto, uma
das estratégias usadas pela enfermeira fora dizer que levaria seu caso para
discussão no Curso. Na nossa visão, isso surtiu efeito, pois foi uma forma
da equipe demonstrar interesse por ela. A partir daí, haviam preenchido
juntas um questionário de autocuidado, o que a ajudara a olhar para si e
para seus hábitos de vida.
Sobre o impacto dessas mudanças na equipe, a enfermeira ressal-
tou que passou a perceber um pouco mais do resultado de seu trabalho.
Também comentou que ter iniciado a prática de consultas compartilhadas
com os profissionais de Saúde Mental vinha ajudando muito a ampliar sua
clínica e ver a forma de atuação de outros profissionais. O grupo então
discutiu a respeito das estratégias de enfrentamento utilizadas, sugerindo
que já estivessem presentes na equipe que, adoecida e automatizada, não
estava conseguindo acessá-las. Ficou evidente a contradição do discurso
da EqSF, quando afirmava que a UBS não tinha ofertas e, no entanto, fora
capaz de construir um projeto com várias ações, todas elas no próprio ter-
ritório. Além disso, a enfermeira reiterou que passara a ter paciência com
o tempo dos casos, o tempo de cada paciente para alcançar sua capacidade
de cuidado. E como reflexão final, um dos apoiadores comentou o quanto
essas pequenas vitórias nos fortalecem, e o quanto isso é importante para
sobrevivermos no trabalho.
A devolutiva do caso nos permitiu retomar temas que já haviam sido
abordados teoricamente nos cinco meses de curso: transferência e contra-
transferência, cuidado compartilhado, Apoio Matricial, alienação e sofri-
mento no trabalho. A respeito desses últimos, falamos sobre a burocrati-
zação e o quanto isso nos afasta do sentido real do trabalho, que seria o
cuidado (Terra, 2018). O grupo refletiu sobre como essa burocratização às
vezes é um mecanismo para lidar com o sofrimento da vida dos pacientes:

Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia... • 81


preencher encaminhamentos, pedir exames, agendar especialistas, pode
ser uma fuga da escuta do outro pelo que ela vai mobilizar em nós.
Assim, a reapresentação do caso foi importante para exemplificar o
que vínhamos discutindo acerca do sofrimento no trabalho e como os tra-
balhadores podem e devem cuidar de si apesar das condições estruturais.
A equipe encontrara um jeito de lidar com a solidão, fazendo um projeto
compartilhado tanto entre a equipe quanto com a paciente, compartilhan-
do as responsabilidades. E acharam um jeito de lidar com a burocratização
do cuidado, dando sentido e valor para ferramentas: lista de especialidade,
questionário de autocuidado. Ademais, a equipe que resistia tanto a gas-
tar mais tempo com um único pacienteem razão da pressão da demanda,
passou a perceber que tal prática, além de produzir cuidado, reflete em
aprendizado.
O progresso relatado com Solange surpreendeu os apoiadores e pro-
duziu um sentimento ambíguo nos participantes do grupo. Um efeito mui-
to descrito por Balint: por mais que um conjunto de temas tivessem sido
abordados teoricamente, o exemplo concreto veio de colegas com os quais
se desenvolvera uma identificação lateral, uma demonstração das possibi­
lidades de novas práticas clínicas.

Encontros e Desencontros

Relatamos mais detalhadamente a discussão deste caso para demons-


trar como se dá a dinâmica do Grupo Balint Paideia e como ela afeta os
profissionais. É comum que surjam questões de transferência, resistências,
automatismos. Ao se escutar, os profissionais ficam mais conscientes de
seus próprios processos e, a partir daí, mais propensos à mudança. Porém,
como em todo processo analítico, há que se estar inclinado a ela.
Desta maneira, como transparece no caso discutido, uma questão re-
corrente no Grupo era a resistência ou dificuldade dos profissionais das
EqSF em abordar os aspectos subjetivos do cuidado. Questões de ordem
subjetiva eram sempre delegadas aos profissionais do núcleo psi, ainda que
não estivessem relacionadas a algum transtorno mental, e sim a dificul-
dades de manejo de vida. Ao longo do processo pedagógico tais questões
sempre emergiam, e havia certa polaridade no grupo entre os profissionais
de núcleo predominantemente biomédico e os do núcleo psi, com alguns
poucos transitando bem entre os dois. No decorrer do tempo e da discus-
são dos casos, com as equipes aderindo às consultas compartilhadas e dis-
cussões no Curso e em reunião de equipe, houve maior compartilhamento

82 • Capítulo 3
dessas questões, mas muito provavelmente somente entre os profissionais
que já estavam abertos a essa mudança.
Balint (1984) descreve em seu clássico O médico, seu paciente e a
­doença o perfil dos médicos que abandonaram precocemente os grupos
que conduziu. Em primeiro lugar, havia os que buscavam no grupo trata-
mento para suas neuroses pessoais, e logo se decepcionavam ou mesmo
eram convidados a buscar tratamento individual. Havia também aqueles a
que ele denomina de hierarquia “superior” (aspas do autor), que gozavam
de boa reputação com os colegas e pacientes, com os quais se relacionavam
de maneira apostólica, e se mostravam incapazes de questionar a própria
prática ou reconhecer que poderiam aprender novas formas de clinicar.
Eles desistiam do grupo após alguns conflitos com o condutor. Em ter-
ceiro lugar, havia aqueles que se interessavam e eram participativos por
um tempo, mas sem motivo aparente deixavam de participar, dizendo ser
perda de tempo. Por fim, um quarto grupo de médicos se mostrava mui-
to comprometido com o processo, mas buscava metodologias rígidas de
­aprendizagem, ferramentas mais técnicas de trabalho, sem foco nas mu-
danças mais sutis e subjetivas, pequenos desvios na personalidade que o
método objetivava.
Podemos dizer que encontramos perfis semelhantes entre os partici-
pantes do Curso. Ainda que não tenha havido desistências, talvez por ser
ofertado em horário de trabalho, talvez por uma coação dos superiores
para que participassem, houve resistência por alguns a se envolverem no
processo do Grupo, principalmente nas formas que Balint descreve como
de hierarquia superior ou naqueles que buscavam uma transmissão de
­conhecimentos técnicos. Não se trata, porém, da maioria, como se pode
perceber neste relato.
De fato, mudanças no grupo foram percebidas mais claramente a par-
tir do segundo semestre de curso, quando pudemos perceber uma apro-
priação maior dos alunos do cuidado dos aspectos subjetivos. Também
notamos uma mobilização do grupo diante do mesmo cenário de pressão
de demanda e desinvestimento no SUS. Ainda assim, a burocratização do
funcionamento das equipes se manteve, sendo mais patente em equipes
com pior relação com a gestão, o que foi expresso de forma intensa por uma
aluna: Quando você quebra um fluxo, você mata a equipe.
O apego ao processo de trabalho como um fim em si mesmo é um
mecanismo de defesa comum, como indica Pitta (1989) a partir dos tra-
balhos de Libouban, e se evidencia como uma coesão interna entre a equi-
pe baseada na ajuda mútua. Por outro lado, o sofrimento e a sensação de
impotência podem aparecer sob a forma de uma necessidade de ­controle.

Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia... • 83


Nesse sentido, algumas equipes pareciam replicar entre si uma relação
com a gestão da qual se queixavam, de uma indução ao trabalho por meio
de ferramentas de controle e punição. No início do curso, queixavam-se
constantemente da desmotivação de alguns trabalhadores, e diziam sentir
­falta de mecanismos mais claros de punição, como poder demitir. Segundo
Onocko-Campos (2003) nos agrupamentos de trabalhadores, quando as
relações intersubjetivas não são colocadas em pauta e refletidas, a experiên-
cia da diferença é vivida como mortal. Nessa situação, o outro se apresenta
como ameaça, como o que impede que o trabalho flua e tenha sucesso. Para
a autora, trata-se de uma situação que se repete em todos os níveis organi-
zativos — entre os gerentes, entre gerentes e trabalhadores, entre trabalha-
dores, entre trabalhadores e usuários. Como contraponto, seria necessário
propiciar arranjos em que se possa experimentar a grupalidade. Em vez
de querer demitir ou punir os colegas de equipe, tentar construir projetos,
trabalhando a partir das relações intersubjetivas e dos objetivos comuns.
Ao acompanhar as EqSF dos participantes do grupo, pudemos per-
ceber uma inclinação a esta construção de grupalidade, produzindo mu-
danças concretas nos serviços no decorrer do ano. Mas isso nem sempre é
possível e a falta de eco na gestão para os processos de mudança atraves-
sou o curso o tempo todo. Duas equipes apresentavam sérios problemas
de relação com a gestão, com impossibilidade de diálogo entre as partes.
Infelizmente, a participação no curso não foi capaz de modificar esse ce-
nário, mesmo porque os gestores de ambas faltavam constantemente aos
encontros do Curso de Extensão.
Onocko-Campos (2003) observa como a gestão clássica sempre fun-
cionou no sentido de gerir,1 de agir sobre as ações dos outros, exercendo
poder e controle. Em contraposição, a autora sugere que se invista na di-
mensão do gerar da gestão, criando espaços nos quais se possa experimen-
tar tomada de decisões coletivas, formular projetos; em que os trabalha-
dores (incluindo aqui o gestor) tenham um grau de análise da implicação
maior com aquilo que produzem. De alguma forma, podemos dizer que o
curso permitiu aos participantes vislumbrar a gestão como gerar. Com o
tempo, passaram a perceber seu próprio potencial de produzir mudanças
nos serviços, como expresso na fala de uma médica: Culpamos o usuário
passivo e o gestor conivente, mas não falamos de nossa própria passividade.
A equipe da qual essa médica fazia parte fez diversos movimentos de mu-

1 Onocko-Campos se remete a Saramago, conforme citação da autora: “Cria a natureza as suas di-
versas criaturas com admirável brutalidade. Entre mortos e aleijados, considera, não faltará quem es cape
para garantir os resultados da gerência, modo ambivalente e portanto equívoco de substantivar o gerir e o
gerar, com aquela confortável margem de imprecisão que produz as mutações do que se diz, do que se faz
e do que se é [...] ” (]osé Saramago, 1999, p. 45 apud Onocko-Campos, 2003).

84 • Capítulo 3
dança ao longo do curso, referindo, ao final, bons resultados na interação
entre trabalhadores e entre trabalhadores e gestão. Já no caso das equipes
que tinham dificuldades com a gestão, os trabalhadores puderam produzir
pequenos deslocamentos até o limite de sua autonomia.
Outro ponto recorrente de tensão foi a relação das Equipes de ­Saúde
da Família com o NASF, e dos próprios trabalhadores do NASF com o dis-
positivo. O tema já havia sido discutido como parte da grade do Curso
e os trabalhadores solicitaram que fosse retomado. Claramente, um dos
focos de tensão era justamente a falta de pactuação e construção conjun-
ta, de planejamento conjunto que colocasse em pauta as escolhas tomadas
pelas equipes e pelos profissionais matriciadores. Percebemos que pouco
tempo era gasto em pactuação entre as equipes e o NASF, também intrae-
quipes, com reuniões tomadas por passagem de casos, sem uma adequada
­discussão.
Foi muito significativo dessa falta de sintonia um caso relatado em
uma das turmas de extensão vinculada a este Grupo. Tratava-se de uma
criança em situação de extrema vulnerabilidade e com uma história longa
de acompanhamento na UBS. Profissionais do NASF, agentes comunitá-
rios, enfermagem, todos apresentaram suas perspectivas a partir da angus-
tiante experiência de vários anos de investimento no cuidado da criança
e da f­amília. O médico da equipe, porém, permaneceu o tempo todo em
silêncio. Até que um dos participantes se dirigiu diretamente a ele dizendo
que seria importante sua participação e contribuição para melhor enfren-
tamento do caso. O médico, embora também fosse membro da equipe da
UBS há muitos anos, disse simplesmente que sem o prontuário não po-
deria se manifestar. Ficou muito claro para nós que a visão de parte dos
trabalhadores e do NASF do papel da Atenção Primária era muito diferente
da perspectiva limitada e pouco comprometida do médico. Também ficou
evidente que esta necessária pactuação de projetos passa pelo gestor, que
tem a espinhosa função de definir limites para a ausência de compromisso,
assim como afirmar e valorizar o investimento das equipes na prática clí-
nica ampliada.
A falta de comunicação entre equipes já foi apontada como proble-
ma recorrente que dificulta a construção do cuidado. Há dificuldade para
institucionalizar os canais e os processos de comunicação entre as equipes,
prevalecendo relações pessoais informais ou encontros esporádicos, como
discussões de corredor (Viana, no prelo). Essas práticas fazem que os tra-
balhadores do NASF se sintam desvalorizados, enquanto os das equipes
queixam que não são ouvidos e que o NASF impõe barreiras para receber
os casos.

Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia... • 85


A simples existência de um espaço coletivo não garantiria o sucesso
do trabalho interdisciplinar e efetivação do Apoio Matricial. É preciso que
sejam espaços protegidos que permitam a interação das diferenças, cul-
minando no acordo do projeto terapêutico com a devida distribuição de
tarefas entre os vários sujeitos envolvidos no processo (Campos & Domitti,
2007). Para tanto, os encontros devem ser periódicos e regulares, pautados
não só pela discussão de casos ou problemas de saúde selecionados pela
equipe de referência, mas também por problemas institucionais e projetos
coletivos da equipe e do NASF.
A retomada deste tema também possibilitou, mais uma vez, discutir
sobre a abordagem dos aspectos subjetivos dos pacientes pelos profissio-
nais da EqSF. Havia entre os alunos de núcleo biomédico uma expectativa
de resolutividade de questões subjetivas semelhante ao que seria resoluti-
vidade em casos de doenças infecciosas: bastaria um tratamento rápido e o
paciente estaria prontamente recuperado, o que não acontece nem mesmo
nos casos de doenças crônicas não transmissíveis, que ocupam a maior par-
te do tempo das equipes. Como se sentem incapazes de prover esse tipo de
resposta rápida para questões subjetivas, não conseguem assumir o cuida-
do dos pacientes e encaminham para os profissionais do núcleo psi, mesmo
que não haja transtorno mental que necessite de cuidado especializado. En-
tre os profissionais do núcleo psi existe, por sua vez, uma expectativa, por
vezes velada, de que possam executar ações psicoterapêuticas individuais
de longa duração na APS, demarcando um desejo de retorno ao núcleo
profissional. A seu modo, há também entre o núcleo psi resistências para o
compartilhamento do saber, para a adaptação, para o campo da saúde cole-
tiva e da APS, de técnicas que são consagradas para o âmbito privado. As-
sim, demonstram sofrimento quando instigados à ampliação de suas ações
ou a intervenções compartilhadas de Apoio Matricial. Nas palavras de um
participante proveniente de equipe NASF, há sofrimento no sentimento de
impotência perante aqueles casos que precisam de escuta qualificada, eles
precisam de uma psicoterapia nos moldes tradicionais, mas eu não posso
ofertar isso no NASF. Por quê?... para onde devo encaminhar um paciente
como esse?... Esses casos estão no limbo.
A partir desse problema pudemos discutir sobre as expectativas dos
profissionais em relação aos casos e à sua solução, além de tocar novamente
no tema das transferências. Como apontado por um dos apoiadores, na
APS há que se dar conta de um conjunto de sofrimentos que toca os profis-
sionais profundamente, seja pela distância (isso está tão longe da minha rea-
lidade que não compreendo), seja pela proximidade (isso está muito presente
na minha vida que eu não dou conta). A continência desses sofrimentos

86 • Capítulo 3
poderia ser feita no processo grupal da equipe ou da equipe com o NASF.
Ao ser acolhido em sua angústia, o profissional teria potencializada a capa-
cidade de, por sua vez, escutar o paciente em suas angústias.

Avaliação e Encerramento

Quando atingimos a metade do curso, começou a surgir um desâ-


nimo entre os alunos, que referiam a sensação do Curso não estar sendo
produtivo, e sentimos a necessidade de discutir o percurso pedagógico e
­refazer os contratos. Propusemos então uma avaliação e levamos os resul-
tados para serem discutidos no grupo. Cunha (2009) reitera a importância
que os contratos iniciais estejam sempre abertos à discussão pelo grupo,
bem como os momentos de reavaliação. Ademais, é preciso se investir para
que atividades de Avaliação façam parte do cotidiano dos trabalhadores.
Para Furtado et al. (2018), a articulação entre Planejamento e Avaliação
tem o potencial de propiciar novos aprendizados e rever projetos em anda-
mento; melhorar a comunicação intraequipes, das equipes com gestores e
mesmo com usuários; aumentar a capacidade de produção de saúde pelos
coletivos envolvidos; qualificar a oferta aos usuários, dentre outras. No en-
tanto, os autores ressaltam que é importante se estar atento para que não se
torne uma prática gerencialista, burocratizada e focada na produtividade a
todo custo.
Durante a discussão da avaliação, uma parte da turma manifestou o
desejo de aulas mais diretivas, tradicionais. Parecia haver uma nostalgia da
“velha escola”, plena de confiança em diagnósticos e soluções. A proposta
nos surpreendeu porque percebíamos que a avaliação que eles tinham da
própria evolução durante o curso era diferente daquela que nós apoiadores
tínhamos. Percebíamos o quanto eles tinham avançado na compreensão
dos problemas do cotidiano, das próprias perspectivas pessoais e profis-
sionais e das relações com a rede assistencial. Deparavam-se com o desco-
nhecido e percebiam as dificuldades. Não haveria mesmo alguma fórmula
mágica? Não poderíamos aplacar a angústia?
Embora nos tenha surpreendido, pudemos conduzir a avaliação de
forma que nos pareceu construtiva. Os alunos refletiram sobre suas ex-
pectativas em relação ao Curso e à instituição, que oscilavam entre dois
polos: um no qual tudo é possível, e outro no qual nada nunca iria mu-
dar. Aproveitamos o ensejo para refletir sobre uma estrutura social que
nos imobiliza, fruto da reificação; uma percepção de que as coisas criadas
pelo homem tomam vida própria e o dominam ou voltam-se contra ele.

Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia... • 87


No caso, as i­nstituições — secretaria de Saúde, SUS, mercado de trabalho
— pareciam capazes dominar os trabalhadores, sem haver espaço de luta
e mudança. No percurso de aprendizagem e reflexão, havíamos percebido
que os alunos se voltavam para seu microcosmo, onde conseguiam ensaiar
os deslocamentos que desejavam. Pareceu-nos uma forma interessante de
escapar do imobilismo, sem, no entanto, carregar para si toda a responsa-
bilidade da mudança.
Quando os problemas estruturais foram trazidos à tona, os próprios
alunos se questionaram sobre como seria sua atuação em um contexto em
que o sistema de saúde funcionasse conforme pretendido pelos seus ideali-
zadores e então refletiram que o Curso os estava ajudando a mediar o que
se consegue produzir de mudança mesmo em um contexto desfavorável.
Porém, esse processo foi ambivalente entre os profissionais, que às vezes
se entusiasmavam com as discussões do curso e tentavam levar os apren-
dizados para a equipe, frustrando-se quando não encontravam eco, ou se
fechavam em sua própria prática, aproveitando somente para si mesmos
as mudanças propiciadas pelos encontros. Como dissemos, um dos obje-
tivos dos grupos Balint Paideia é aumentar a capacidade de compreensão
e de intervenção das pessoas sobre o contexto, sobre os outros e sobre si
mesmas (Campos, Cunha & Figueiredo 2013). Assim, ainda que por ve-
zes tenhamos a expectativa de mudar as instituições no sentido crescente
de democracia e de bem-estar social, as mudanças individuais podem ser
consideradas como um êxito. Mesmo porque, trata-se de relação dialética.
Do mesmo modo que o homem está sujeito à estrutura, ele deve ser capaz
de, a partir de sua autoconsciência, modificá-la.
No processo de avaliação, também se queixaram de uma grande di-
ficuldade de alinhar teoria e prática, a partir de contradições que ficavam
progressivamente mais evidentes à proporção que avançávamos no estudo
dos processos de trabalho em saúde. Nesse ponto especificamente, recor-
daram a teoria e discussão sobre gestão, que os fizera perceber mais clara-
mente como dominava em seu município processos de gestão mais autori-
tários e diretivos, diante dos quais seria necessária muita resiliência. Como
consequência da dificuldade de diálogo com a gestão, percebiam os traba-
lhadores atravessados por ressentimento, resistência ou imobilidade. Nes-
se cenário, alguns alunos se mobilizavam, mas se indagavam sobre como
afetar ou convencer aqueles que não queriam contribuir. Nessa ocasião, a
discussão não passou por um desejo de punir ou demitir alguns trabalha-
dores, como acontecera no início do curso, demonstrando já uma mudança
de postura. Ainda assim, o grupo não conseguiu articular formas de mobi-

88 • Capítulo 3
lizar toda a equipe, a menos que passasse por aproximar mais da população
e dos usuários como caminho para fortalecer o SUS de forma mais efetiva.
Nos meses que decorreram até o final do curso a dinâmica não se
alterou muito. Ora havia mais implicação com o processo pedagógico, ora
mais desânimo. Ainda assim, era visível uma mudança no tom das discus-
sões de caso, mesmo aqueles em que não se conseguia avançar muito no
processo de cuidado. Em um movimento semelhante ao de um grupo ope-
rativo, as transformações se moviam em uma espiral ascendente em que,
ainda que aparentemente estivéssemos circulando sobre os mesmos temas,
casos e dificuldades, havia no grupo novos consensos e uma nova práxis de
produção de cuidado (Castanho, 2012).

Considerações finais

Buscamos, neste capítulo, compartilhar a experiência no Apoio de um


Grupo Balint Paideia como forma de estimular o leitor a se aproximar desta
prática. A nosso ver, trata-se de uma experiência transformadora de trocas
e aprendizados.
Não podemos, no entanto, desconsiderar algumas limitações da expe-
riência aqui narrada. Diferentemente da proposta inicial de Balint, os GBP
incluem como um de seus objetivos a disseminação e incorporação de con-
ceitos teóricos, que muitas vezes figuram como Ofertas. A impossibilidade
relatada pelo grupo em perceber, durante a avaliação feita, a aplicação dos
conceitos na prática indica a necessidade de se pensar, nos GPB, em estra-
tégias de explicitação de sínteses conceituais e de reflexão coletiva sobre os
principais aprendizados produzidos.
Cabe ainda lembrar que os apoiadores também têm seus interesses
e também estão sujeitos às determinações produzidas pela estrutura, de
modo que é importante que estejam atentos a seus próprios automatismos
e implicações e à circulação de poder dentro do Grupo. Para isso, torna-
-se imprescindível um espaço de supervisão, em que possam colocar em
questão a própria atuação como apoiadores e suas transferências, além de
compartilhar o andamento dos grupos. No caso em questão, não houve
completa adesão dos apoiadores de todas as turmas à supervisão, reduzin-
do o potencial desse espaço de trocas.
Enfim, considerando o contexto em que estamos inseridos, de capi­
talismo neoliberal com busca incessante por produtividade e estímulo
ao autoempreendedorismo, um espaço coletivo de reflexão, que combina

Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia... • 89


­ fertas dos apoiadores, pensadas com cuidado e combinadas às próprias
o
demandas do Grupo, tem o potencial de promover um deslocamento no
grau de alienação. A partir da reflexão sobre a própria prática, sobre seu
lugar no mundo e sobre alteridade, possibilita aos sujeitos desenvolver pe-
quenos germes de autoconsciência. A trajetória do grupo resumida neste
capítulo procurou demonstrar esse potencial.

Referências

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Atheneu, 1988.
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90 • Capítulo 3
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Contribuições pedagógicas dos Grupos Balint-Paideia... • 91


Capítulo 4
Clínica ampliada na formação médica: o uso do
Método Balint-Paideia

Elisa Toffoli Rodrigues


Erica Maria Ferreira Oliveira
Fernanda Nogueira Campos Rizzi
Henrique Cardoso Marcene
Gabriela Ferreira de Camargos Rosa
Vilson Limirio Junior
Gastão Wagner de Sousa Campos

O caso de Dona Gilda

Era tarde de sexta-feira, dia de Grupo Balint-Paideia com os alunos


do internato de Saúde Coletiva (estudantes do 12.o período do curso de
Medicina). O relato do dia ficou sob-responsabilidade de uma dupla de in-
ternos que escolheram um caso acompanhado na Unidade Básica de Saúde
da Família (UBSF) onde estagiavam.

92 • Capítulo 4
[O relato segue]
Dona Gilda procurou a UBSF por demanda espontânea por causa das
dores generalizadas de forte intensidade que comprometiam suas funções
diárias. Informou que sua aposentadoria fora suspensa e que, enquanto
aguarda a nova perícia, precisava se sustentar com o dinheiro proveniente
do seu trabalho informal como passadeira de roupas.
Como era uma consulta de demanda espontânea, os estudantes foca-
ram na queixa álgica e propuseram medidas farmacológicas e não farmaco-
lógicas para o manejo da dor crônica. Dentre elas, encaminharam D. Gilda
para avaliação da fisioterapeuta do Núcleo de Apoio à Saúde da Família
(NASF) que, em conjunto com um educador físico, realiza grupos de exer-
cícios físicos, sendo um deles destinado a pacientes portadores de dores
crônicas, incluindo fibromialgia.
Ao revisar o prontuário, os internos notaram que ela havia passado
por consulta há cerca de duas semanas e, dentre as múltiplas comorbida-
des, o médico deu ênfase a sua diabetes descompensada, visto que o resul-
tado de hemoglobina glicada fora 12,6%.1 Na ocasião, foi proposto início de
insulinoterapia, o que foi recusado pela paciente. Diante da negativa, foram
feitas orientações dos riscos do diabetes descompensado e suas complica-
ções e agendado retorno dali a três meses.
Os estudantes pensaram que esse caso poderia se beneficiar da pro-
posta do Projeto Terapêutico Singular (PTS) em razão de sua complexida-
de biopsicossocial e também ao evidente desencontro de expectativas entre
equipe e a própria paciente. Dona Gilda se preocupava centralmente com
suas dores e se recusara a seguir recomendação médica. Propuseram a D.
Gilda, ainda durante a consulta, uma pactuação de corresponsabilidade no
seu cuidado por meio da construção conjunta do PTS, expondo a preo­
cupação em conciliar a agenda dela e a agenda médica (dos estudantes).
Após a consulta, a dupla de estudantes dialogou com a equipe sobre a
proposta de realizar um PTS com D. Gilda, perceberam assim que a relação
equipe-paciente já estava desgastada, ela era vista como uma paciente difí-
cil, com baixa adesão e resistente às propostas terapêuticas.
Posteriormente, fizeram uma revisão aprofundada do prontuário e
criaram uma lista de problemas:
1 Diabetes mal controlada, em uso de hipoglicemiantes orais, sem re-
gistro recente de renovação de receitas;
2 Hipertensão arterial sistêmica (HAS) supostamente resistente em
uso de quatro classes de anti-hipertensivos e com mau controle atual;

1 Exame que avalia o nível médio de açúcar no sangue nos últimos meses, para acompanhamento
do DM, cujo resultado deve ser próximo a 6,5g/dL.

Clínica ampliada na formação médica... • 93


3 Doença arterial coronariana com inserção de stent há dez anos, po-
dendo-se supor, por meio das medicações prescritas na última receita, pro-
vável Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Reduzida;
4 Polifarmácia (uso de várias medicações);
5 Consultas frequentes no pronto-atendimento por causa das queixas
álgicas que, no momento, impactavam sua funcionalidade laboral;
6 Sofrimento mental associado com quadro de insônia;
7 Tabagismo;
8 Dificuldade financeira que trazia sofrimento e impossibilitava a
aquisição de alguns medicamentos.
Com o objetivo de compreender melhor a experiência de doença de
D. Gilda, sua relação com o processo de saúde-adoecimento-cuidado, seu
contexto social e familiar, assim como fortalecer o vínculo iniciado na con-
sulta anterior, os estudantes acompanhados pela Agente Comunitária de
Saúde fizeram uma visita domiciliar. A paciente morava sozinha em um
apartamento e recebia ajuda de um de seus filhos para pagar a prestação.
Buscaram compreender a estrutura familiar e as relações sociais de D.
Gilda por meio da construção do genograma e ecomapa. Ao perguntarem
sobre suas relações familiares ela disse se sentir sozinha e desamparada.
Quando questionada sobre relações sociais extra-familiares e sua rotina,
contou-lhes que se restringia a frequentar o centro espírita semanalmente,
onde há cerca de dez anos aplicava reiki.
Partiram então para compreender a experiência de sua doença. Ela
demonstrava entender os prejuízos do diabetes descompensado e do mau
controle de suas outras morbidades, porém se sentia entristecida pela ne-
cessidade de tomar remédios.
Nesse momento da conversa, a ACS realizou uma intervenção com
postura muito impositiva à paciente, destacando as complicações do diabe-
tes e a necessidade do uso da insulina. Os estudantes temeram a fragiliza-
ção do vínculo que estavam construindo com D. Gilda, pois se reproduzia
o que já acontecia em suas diversas idas ao pronto-atendimento e à UBSF:
uma posição que prescrevia numerosas medicações e não respondia à sua
principal demanda, a dor crônica, corroborando para sua desesperança no
cuidado em saúde.
Ficou evidente que apenas atingir o alvo de hemoglobina glicada de
D. Gilda não significaria cuidar dela e de sua saúde. O grande desafio era
conciliar as diversas demandas do cuidado.
Pactuaram com ela que as medicações em uso seriam mantidas e re-
forçaram a importância do uso correto, programaram reavaliar as medica-

94 • Capítulo 4
ções na próxima consulta e otimizá-las, caso necessário. Incentivaram uma
dieta mais adequada para uma pessoa diabética.
Com o objetivo de qualificar o cuidado da paciente, os internos reava-
liaram seu histórico médico identificando que, no último ecocardiograma,
realizado há menos de um ano, não havia sinais de insuficiência cardíaca,
de modo que algumas medicações da lista enorme de D. Gilda eram desne-
cessárias e assim propuseram a suspensão delas.
Dona Gilda comparece à Unidade relatando episódios de hipotensão,
adesão às orientações alimentares e participação ativa nos grupos de ati­
vidade física.
A consulta de retorno foi feita pela médica da Unidade que relatou aos
estudantes sua própria surpresa ao ver tanto os exames laboratoriais (com
destaque da queda da hemoglobina glicada de 12,6% para 6,3%) quanto à
diferença de postura de D. Gilda em relação ao seu autocuidado. A paciente
parecia satisfeita com a melhoria da sua qualidade de vida.
Cerca de 15 dias depois, D. Gilda retorna com queixa de agudização de
suas dores, o que ela atribuía ao retorno às suas atividades laborais e ao con-
comitante abandono do grupo de exercícios físicos por i­ncompatibilidade
de horários. Além de abordar a queixa da paciente, os estudantes aprovei-
taram a consulta para conversarem sobre o exercício de sua espiritualidade.
No final do estágio na UBSF, os estudantes realizaram uma visita do-
miciliar avaliativa e notaram melhorias da saúde de D. Gilda em relação
ao início, seu protagonismo no processo de cuidado e que já possuía uma
nova meta: cessar o tabagismo.

Metodologia Balint-Paideia como inovação metodológica


para a discussão de casos

O caso narrado foi construído a partir de relatório do PTS dos estu-


dantes e anotações do diário de campo dos apoiadores durante os grupos
Balint-Paideia (GBP) com estudantes do 12.o período do curso de ­Medicina.
Os grupos Balint-Paideia fizeram parte de uma pesquisa-intervenção
desenvolvida com os estudantes do internato de saúde coletiva do Curso de
Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), cujo objetivo era
avaliar o método Balint-Paideia como estratégia de formação para estudan-
tes que atuam na Atenção Primária do Sistema Único de Saúde. A proposta
desse estágio do internato é de imersão e vivência de duplas de estudantes
em Equipes de Saúde de Família durante seis meses, tanto nas atividades

Clínica ampliada na formação médica... • 95


de cuidados em saúde individual e coletiva, quanto nas atividades com a
equipe multiprofissional, incluindo a realização de um Projeto Terapêutico
Singular.
Os encontros do GBP foram quinzenais, durante seis meses. Cada
encontro do grupo teve duração de 4 horas, sendo 2 horas para discussão
dos casos e 2 horas para a oferta teórica. Os apoiadores foram os docentes
do Departamento de Saúde Coletiva do curso de Medicina da UFU, cuja
formação para a metodologia Balint-Paideia foi realizada por supervisões
quinzenais com o prof. Gastão Wagner de Sousa Campos (UNICAMP),
com discussão e reflexão sobre os casos apresentados.
Trata-se de uma metodologia já bem consagrada na Educação Per-
manente em Saúde de profissionais de diferentes níveis de atenção (Cas-
tro, 2011; Castro & Campos, 2014; Cunha, 2009; Cunha & Dantas, 2010;
Figueiredo, 2012; Campos, 2013), mas ainda pouco utilizada e estudada
na formação de estudantes de graduação. Previamente à implementação
dos grupos Balint-Paideia no Internato de Saúde Coletiva, os casos eram
discutidos de forma individual nas Unidades de Saúde ou com uma apre-
sentação pelos estudantes, em forma de seminário, dos resultados do Proje-
to Terapêutico Singular desenvolvido na Unidade onde estagiavam. Nessa
época, a discussão era superficial e, dado o formato tradicional da apresen-
tação dos casos, não havia espaço para os envolvidos lidarem com os afetos
provocados pelo caso, nem para fazer reflexões que permitissem aumentar
a capacidade de ação dos sujeitos envolvidos. Dessa forma, como aposta
de inovação metodológica no processo formativo, foi proposto o Grupo
Balint-Paideia.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa
da UFU, como o número CAAE 00849118.0.3001.5152. Os participantes
dos Grupos Balint-Paideia assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido permitindo o uso do material produzido durante a pesquisa,
resguardado o sigilo.

Comentários sobre o caso:


a necessidade de ampliação da clínica na APS

O caso de D. Gilda1 (nome fictício) foi escolhido este relato de expe-


riência por exemplificar uma situação problema comum da APS, em que

1 Gilda: aquela que tem valor; capaz. Fonte: <https://biblia.com.br/dicionario-biblico/g/gilda/>.


Acesso em: 30-9-2020.

96 • Capítulo 4
é possível abordar diversos temas discutidos nos Grupos Balint-Paideia,
como adesão ao tratamento e conflito de expectativas entre profissionais
e usuários, polifarmácia e desmedicalização, vínculo, trabalho em equipe
multiprofissional, ferramentas da Atenção Primária à Saúde, coordenação
do cuidado, projeto terapêutico singular, saúde mental na APS e incompa-
tibilidade de perspectivas.
Percebe-se que a coordenação do cuidado, essencial na condução de
casos com multimorbidade, como o da paciente, ainda é pouco eficien-
te. Havia uma tendência de se “sobre diagnosticar” e “sobre medicalizar”.
Isso é algo paradoxal no contexto do SUS, que tem escassez de recursos,
mas no qual, ao mesmo tempo, reproduz-se a lógica de polidiagnósticos e
­polifarmácia.
No caso, D. Gilda era atendida pela equipe de estratégia de Saúde da
Família e do NASF, pelos internos, por especialista (cardiologista) e por
profissionais da Unidade de Atendimento Integrado (UAI) em virtude das
idas constantes ao pronto atendimento. Balint (1998) observa que quando
há muitos especialistas envolvidos no caso, ninguém se responsabiliza ver-
dadeiramente pelas decisões tomadas. Era o que ele chamava de conluio do
anonimato. Esse aspecto foi frequentemente problematizado nos grupos
Balint-Paideia, principalmente pelo fato dos estudantes reproduzirem a
convicção das Equipes de Saúde da Família de que o especialista, em razão
de seus conhecimentos clínicos da área específica, tem uma autoridade má-
xima sobre o caso, pontuando a decisão final como inquestionável.
Qual era a expectativa da Equipe de Saúde da Família ao encaminhar
D. Gilda ao especialista, já que ela não aderia ao tratamento proposto? Se-
ria para dividir responsabilidades e cumprir um protocolo clínico (rígido,
inflexível e que não singulariza as pessoas)? Percebe-se que a relação do
médico generalista com o especialista muitas vezes é uma relação aluno-
-professor, cujas decisões e condutas fica refém.
A reflexão sobre o papel do especialista neste caso permitiu que os
estudantes descartassem o diagnóstico de insuficiência cardíaca feito pelo
cardiologista e, junto com a equipe, pudessem reduzir consideravelmente
as medicações em uso. Porém, elas foram reintroduzidas em uma consul-
ta com o cardiologista, o que evidencia a fragilidade da coordenação do
cuidado. Isso demonstra a falta de comunicação entre os diversos pontos
da rede e, mais do que isso, a falta de uma política institucional que valo-
rize a lógica do Apoio Matricial e não a de simples “encaminhamentos”.
Vale notar também a fragilidade do prontuário eletrônico na garantia da
coordenação do cuidado. Ainda que ajude muito, não é suficiente, mes-
mo porque o paciente pode acessar algum ponto de atenção à saúde (ou

Clínica ampliada na formação médica... • 97


­ édico e­ specialista) de sistema distinto, como o suplementar (seja por se-
m
guro, convênio ou particular) ou mesmo a rede SUS que ainda não está
informatizada.
Como alternativa a essa lógica, o Apoio Matricial visa a dar retaguar-
da especializada às equipes de referência, aumentando sua capacidade re-
solutiva. Trabalha com dois pilares: assistencial e técnico-pedagógico. É
uma forma de gestão do trabalho que possibilita maior integração entre
as ­especialidades, colaborando para a ampliação da clínica e para a supe-
ração da lógica de encaminhamento que fragmenta o cuidado, dificulta a
Cogestão e diminui a responsabilização dos profissionais sobre o cuidado
(Campos & Domitti, 2007; Campos et al. 2014; Oliveira & Campos, 2015).
O contato com a referência pode ocorrer tanto em espaços destinados para
esse fim, como as reuniões de equipe, quanto quando não é possível aguar-
dar os encontros periódicos, por “meios diretos de comunicação persona-
lizados, como contato pessoal, eletrônico ou telefone” (Campos & Domitti,
2007 p. 401).
Para que o Apoio Matricial ocorra, é necessário ampliar os espaços
onde o Método Paideia possa ser aplicado, estimulando a reflexão, o fazer
junto. Realizar por exemplo, rodas de discussão, permitindo incluir-se no
processo e sofrer o efeito Paideia, compreendendo a diferença e criando a
cultura de exercer críticas e desejar mudanças. O apoiador deve trabalhar
tanto com demandas da equipe de referência como com ofertas decorrentes
de suas análises micro e macro pautadas na experiência e conhecimentos,
assim pactua com a equipe uma relação de engajamento que visa a contri-
buir de forma geral e ainda ampliar a autonomia da equipe de referência,
para que tenha mais ferramentas para lidar com suas dúvidas e problemas,
diminuindo a dependência do apoiador (Campos et al., 2014). A dificul-
dade da Equipe de Saúde da Família em realizar o compartilhamento do
Projeto Terapêutico Singular nas reuniões de equipe ou outros espaços de
roda demonstra, ainda, a dificuldade de criação do Apoio Matricial e da
efetivação da clínica ampliada.
Vale ressaltar que a Equipe de Saúde da Família do caso citado tinha
um horário semanal específico para fazer reunião. Estimulados pelas dis-
cussões realizadas nos GBP, os estudantes levaram o caso para ser discutido
em reunião, mas se depararam com certa resistência da equipe, principal-
mente pelo hábito da equipe de utilizar esses espaços para resolver predo-
minantemente demandas administrativas da Unidade.
A frustração dos estudantes com a dificuldade de diálogo com a equi-
pe multiprofissional apareceu diversas vezes nos GBP, já que sentiam falta
de espaço de rodas e de discussão de casos. A experiência de discutir um

98 • Capítulo 4
caso “mais livremente” nos GBP chamava a atenção dos estudantes. Nes-
se espaço não era necessário focar somente nas doenças (como estavam
acostumados nas discussões clínicas nos outros estágios do internato), mas
conseguiam ampliar o olhar para os aspectos sociais, psíquicos e institucio-
nais (compreendendo que a forma de organização do trabalho influencia
nas relações, incluindo a relação com equipe e usuários). Mais do que isso,
alguns internos sentiam-se confiantes em falar, nos GBP, sobre aspectos
que os incomodavam, alguns sentimentos e emoções que os casos atendi-
dos lhes causavam. No entanto, essa não era a percepção de todos os alu-
nos. Alguns não se sentiam à vontade para compartilhar seus sentimentos,
outros se incomodavam com a discussão de aspectos mais subjetivos, ale-
gando desfocar do objetivo deles de se preparar para a prova de residência
médica que se aproximava.
Mais do que apenas gerar uma frustração nos estudantes, as conse-
quências da escassez de trabalho interdisciplinar são percebidas também
quando se nota a hierarquização da lista de problemas relatados pela dupla.
Os itens iniciais apontam para diagnósticos biomédicos (diabetes, HAS,
doença arterial coronária, polifarmácia) sendo que os itens que se seguem
possuem características mais sociais e subjetivas (dor, sofrimento mental,
tabagismo e problemas financeiros). Nas discussões do GBP a dupla men-
ciona a preocupação em melhor avaliar o humor depressivo e a insônia da
paciente. Questionados sobre a associação dessa condição psíquica com as
dores, respondem que acreditam que estão associadas: “uma leva a outra e
outra leva a um”, diz outro estudante meio ao debate. A dupla relatou que a
paciente era chorosa e que tomava antidepressivo (fluoxetina) com pouco
resultado. Apesar de terem compreendido que a paciente se sentia sozinha
e muito incomodada com os adoecimentos físicos e as dores, pareciam de
mãos atadas diante da sutileza do sofrimento humano, que chegou a ser
naturalizado por outra aluna presente: “a vida não tem solução, melhor es-
perar pra morrer”.
A questão da subjetividade no processo saúde-adoecimento-cuidado
parece sempre um desafio na Atenção Primária, especialmente no que tan-
ge ao trabalho médico. É como se a cisão científica operada entre psiquis-
mo-corpo criasse um abismo entre especialidades e fragmentações quase
insuperáveis na complexidade humana.
Propondo montar um quebra-cabeça, os GBP permitem reflexões e
aprofundamentos, porém elas nem sempre se viabilizam no campo prá-
tico, já que a ideia, para ser executada, requer articulações diversas que
não são simples. Explicando melhor, D. Gilda apresentava humor depri-
mido e não dormia bem, preocupava-se com seu envelhecimento, dores e

Clínica ampliada na formação médica... • 99


com habilidades que perdeu, por exemplo, antes de se tornar passadeira era
cozinheira e, afastada por questões de saúde da primeira função, buscou
uma segunda opção para complementar a renda. A paciente já havia então
sofrido consequências de seus sofrimentos em nível laboral, social (agora
realizava o trabalho solitariamente em seu domicílio), físico e financeiro. O
afastamento da atividade de cozinheira se deu em decorrência das dores e
o cenário geral posterior a elas é de tristeza, solidão e incapacidade. Dona
Gilda não se relacionava nem com os vizinhos e pouco com os filhos. O
espaço religioso em que cuidava de pessoas aplicando reiki era ainda o am-
biente de maior pertencimento.
O enfrentamento da angústia dos estudantes em relação a este dese-
nho complexo de existência se dá coordenando expectativas, buscam su-
cesso naquilo que acreditam saber mais (adoecimentos orgânicos) e dei-
xam em segundo plano os fatores talvez mais associados à queixa principal
da paciente (os problemas de cunho psicossocial).
Interessante notar que os aspectos psicossociais eram os primeiros
que apareciam nas discussões dos casos. A percepção dos autores é que a
presença dos apoiadores do Grupo Balint-Paideia, que também eram do-
centes, estimulava a demonstração dos estudantes sobre seus conhecimen-
tos teóricos e a valorização que davam para as questões mais subjetivas do
caso. Alguns temas que pareciam consenso na discussão no grupo se tor-
navam contraditórios quando citados nos exemplos de práticas dos alunos.
Em vários momentos, os docentes tinham a sensação de que os alunos fala-
vam “o que os professores gostariam de ouvir”, apesar de tentar se construir
um ambiente de roda e de se problematizar essa questão.
Portanto, estimulados em se aprofundar nos problemas psicossociais,
os estudantes procuraram se articular com a assistente social e, em razão de
sua ausência, buscaram o profissional de psicologia da UBSF, cujo encontro
não resultou em mais discussões nem aprofundamentos.
Como já relatado, a parceria possível se deu com um grupo pree-
xistente do NASF voltado à fibromialgia, ou seja, em um movimento de
encaminhamento em vez de Apoio e discussão para o PTS de D. Gilda.
Os esforços da dupla pareciam se esbarrar em questões institucionais, nos
funcionamentos prévios da própria equipe, os quais apontavam para cami-
nhos repetitivos de ação. Mesmo assim, apostam na autonomia da paciente
e na honestidade profissional permitindo que se estabelecessem vínculos
positivos.
As propostas de ampliação da clínica dos GBP vão ao encontro do que
Greenhalgh (2007) descreve, já que essa autora considera que os diferentes
problemas na APS requerem diferentes perspectivas. Nenhuma teoria por

100 • Capítulo 4
si só explica um determinado problema e há uma tensão importante entre
as definições de APS contidas na literatura e como ela acontece no dia a
dia. A Atenção Primária é tão complexa que necessita do apoio de diversas
disciplinas para a sua prática: ciências biomédicas, epidemiologia, psico-
logia, sociologia, antropologia, filosofia e ética, artes e literatura, pedago-
gia. As duas primeiras são priorizadas pelos profissionais, por abordarem
a anatomia, fisiologia, patologia, farmacologia, o estudo das doenças nas
populações e a medicina baseada em evidências, que dá suporte a decisões
clínicas individuais. No entanto, apenas essas duas disciplinas dão uma vi-
são incompleta e restrita do que é a APS. É necessário ampliar o olhar para
o estudo da subjetividade e das relações, da sociedade humana, dos modos
de vida das pessoas, dos grupos e da sociedade; da história, poesia e drama;
da filosofia e da ética; bem como o estudo das teorias de aprendizagem.
Desta forma, um aspecto que surgiu nos GBP, estimulado pelos
­apoiadores, foi a abordagem da espiritualidade, ponto importante de apoio
na vida de D. Gilda (identificado no ecomapa, mas não aplicado na condu-
ção do caso).
A espiritualidade pode ser uma estratégia de resgate da relação mé-
dico-paciente, já que perguntar sobre espiritualidade e religiosidade tende
a gerar mais confiança e empatia. Para o médico, é importante avaliar a es-
piritualidade para “detectar sentimentos negativos que possam contribuir
com o adoecimento ou agravamento do mesmo tais como mágoa, ressen-
timento, falta de perdão, ingratidão, entre outros” (Précoma et al., 2019;
Puchalski & Romer, 2000). Além disso, a abordagem da espiritualidade de-
monstra um reconhecimento de que existem outros espaços terapêuticos
fora do espaço formal da saúde.
Na apresentação do caso foi sugerido, pelos apoiadores, que a dupla
apresentasse para D. Gilda o Centro de Referências de Práticas Integrativas
e Comunitárias em Saúde (CRPICS) da cidade. A paciente poderia se bene-
ficiar de ser cuidada dentro da mesma perspectiva em que cuida do outro.
O CRPICS possui grupos com várias práticas que seriam possibilidades
terapêuticas, talvez mais sedutoras para D. Gilda, ampliando suas relações
sociais e tornando-a uma paciente vinculada a práticas na qual ela também
é agente. Subjetivamente, esse movimento de cuidar-se em um espaço com
familiaridades com suas práticas poderia ser potente ao fomentar seu pró-
prio saber e abrir espaço para que ela deixasse ser cuidada.
Outro ponto que deve ser discutido é em relação à forma de comu-
nicação e o processo de aprendizagem inerente à prática em saúde. Nesta
relação dos internos com D. Gilda, torna-se necessário levar em conta a
cultura e saber da paciente, o que foi considerado na construção do PTS,

Clínica ampliada na formação médica... • 101


porém ainda insuficiente para promover um diálogo horizontalizado. A
sensação dos estudantes de que priorizavam algo que não era a primeira
preocupação de D. Gilda está relacionada ao erro de interpretação nos diá-
logos em saúde, decorrente de anos de história de valorização do discurso
científico biomédico sobrepondo-se ao discurso do paciente, considerado
inferior ou irracional.
Para Valla (1996), os problemas de interpretação entre comunidade
e profissionais estão ligados à falta de compartilhamento de critérios de
interpretação da realidade. A limitação de compreensão de contextos, que
transcendem consultórios e muros de Unidades de Saúde, impede até o
mais dedicado e longevo profissional em conceber empaticamente o mun-
do em que seu paciente está imerso, seus problemas, suas prioridades que
não são trazidas para o evento da consulta. “O que frequentemente para o
profissional é conformismo, falta de iniciativa e/ou apatia é para a popu-
lação uma avaliação (conjuntural e material) rigorosa dos limites da sua
melhoria” (Valla, 1996, p. 181).
Dona Gilda fala de dor, de tristeza, de solidão e desamparo familiar, da
necessidade de trabalhar e das dificuldades financeiras e legais. Apesar de
escutarem atentamente esses sofrimentos, os estudantes tornam emergen-
tes o diabetes e a insulina, medicação para as próprias expectativas médicas
e para as limitações em relação ao que fazer com essas outras dores, “temos
ferramentas?”. É exatamente diante dessa pergunta que o saber do paciente
e das especialidades não médicas possibilitam, por meio do matriciamento
e da educação popular em saúde, um processo de ensino-aprendizagem
para todos os envolvidos no PTS — equipe, paciente, família e instituição.
O caso apresentado nos traz claramente as potencialidades de algu-
mas das ferramentas utilizadas na prática da Medicina de Família e Comu-
nidade, como a consulta centrada na pessoa, abordagem familiar e comu-
nitária e o trabalho em equipe.
A primeira estratégia pensada pelos alunos para ampliar os seus olha-
res sobre o caso pelo qual despertaram interesse foi a Visita Domiciliar
(VD), um dos mecanismos de abordagem comunitária. A VD se constitui
como uma potente ferramenta não apenas na descoberta, como também
na abordagem de problemas, na busca ativa, na prevenção de agravos e na
Promoção da Saúde, priorizando o diagnóstico da realidade do indivíduo.
O domicílio traz informações valiosas quanto à forma de viver, de
dividir espaços e respeitar os limites de privacidade, permitindo reflexões
e a construção de novos saberes. Por outro lado, adentrar um espaço des-
conhecido também pode ser um fato gerador de angústias e inseguranças,
conforme relatado pelos estudantes nos GBP. Adentrar ao domicílio é estar

102 • Capítulo 4
no lugar do outro, âmbito da máxima autonomia do sujeito em relação
ao serviço de saúde. O reconhecimento de um ambiente domiciliar, bem
como da singularidade de uma situação familiar, subsidia intervenções
possíveis, voltadas às necessidades específicas da pessoa e da família. Por
meio da visita domiciliar, podemos reconhecer fragilidades, riscos, poten-
cialidades e possibilidades que dificilmente apareceriam em uma consulta
na UBSF (Mahmud, 2019).
Da mesma forma, as habilidades de comunicação e o “saber ouvir”
são fundamentais neste processo, despertando o sentimento de confiança
que irá proporcionar um diálogo mais aberto e profundo. Provavelmente,
por se sentir acolhida e respeitada em seu domicílio D. Gilda conseguiu
expor mais intimamente angústias e expectativas em relação às suas condi-
ções de saúde e doença e impressões sobre a vida.
Estar no domicílio demanda do profissional habilidades complemen-
tares pouco exploradas na maioria dos cursos de graduação. No domicílio
ou mesmo no consultório, entender como a família influencia a saúde pro-
picia ao médico de família e comunidade a oportunidade de antecipar e
reduzir efeitos adversos do estresse familiar e usar a família como recurso
para cuidar das pessoas.
Como observado no caso descrito, os problemas clínicos e emocio-
nais podem ser tratados com um cuidado individual centrado na pessoa,
ao abordar a experiência da doença para a paciente. Porém, a abordagem
familiar pode trazer um benefício muito superior, principalmente para
doenças crônicas em situações de não adesão ao tratamento ou situações
que envolvam problemas mentais e interpessoais, pois o envolvimento de
outros membros da família facilita a compreensão do sistema familiar e a
adesão ao tratamento.
Assim, uma das formas de entendermos o funcionamento da família é
o genograma, que se constitui como uma excelente ferramenta de compre-
ensão da história das pessoas e suas famílias. Ele é reconhecido como um
instrumento para mapear, ampliar o conhecimento sobre a família e rea­
lizar intervenções pelos profissionais nos cuidados de saúde (Dias, 2019).
Além do genograma, a abordagem familiar pode ser complementada
pela realização do ecomapa, que auxilia a compreender as relações da famí-
lia com a comunidade (Pereira et al., 2009).
Por meio do ecomapa, percebe-se claramente o desamparo que D. Gilda
sente em relação aos filhos. Os alunos identificaram o Centro Espírita como
possível rede de apoio, apesar de que não havia a percepção por ela de uma
rede de apoio suficiente para lhe amparar; pelo contrário, ela se via como
apoio de várias pessoas e, por isso, a ideia do adoecimento lhe apavorava.

Clínica ampliada na formação médica... • 103


Após terem um pouco mais de clareza dos sentimentos de D. Gilda,
os alunos conseguiram se aprofundar em seus sentimentos ao indagarem
sobre a experiência de doença, pois os profissionais de saúde a enxerga-
vam até então como uma pessoa que apresentava doenças orgânicas, des-
compensadas, potencialmente graves e com riscos de complicações, porém
nunca tinham perguntado como ela via e sentia a sua doença, pois não era
para ela desconhecido o risco de surgimento dessas complicações, até mes-
mo ela já as tinha vivenciado. Então, por que ela não se cuidava?
Bernard Lown (1996) afirma, sabiamente, que “o processo de cura
exige mais do que ciência”, é o encontro entre dois experts. Quando essas
duas pessoas se encontram, têm-se dois especialistas: o médico ou o profis-
sional que irá atender, especialista em diagnósticos, exames e medicamen-
tos; e a pessoa, especialista em si própria. Entender o que acontece em uma
consulta é a chave para desenvolver uma melhor comunicação.
Dessa forma, a consulta deve estar direcionada para concentrar esfor-
ços sobre as ideias, preocupações e expectativas das pessoas. É olhar além
da doença e tentar alcançar as percepções dela, criando uma interação
sinérgica entre o profissional de saúde e a pessoa.
Por meio desta abordagem e das reflexões realizadas nos GBP, os in-
ternos conseguiram entender que comprimidos e injeções representavam,
para D. Gilda, doença e incapacidade, com consequente má adesão ao tra-
tamento. E, assim, juntamente com ela, conseguiram elaborar um plano
de cuidados, que englobava o uso racional de medicamentos e mudan-
ças de estilo de vida, a partir da compreensão que tiveram do seu adoe-
cimento e das metas a serem alcançadas. Um plano de cuidados, para ser
­bem-sucedido, deveria ser compartilhado e elaborado em comum acordo,
sendo papel do profissional de saúde incentivar a participação de forma
que a pessoa se sinta valorizada e inicie o processo de responsabilização
sobre o manejo da doença (Stewart, 2017).
Quando a comunicação com um paciente é respeitosa, a aliança tera-
pêutica é bem-sucedida. A compaixão, a capacidade de acompanhar alguém
em seu sofrimento, a empatia e o respeito que implica o reconhecimento
global do outro são verdadeiros instrumentos que trazem consequências
positivas às pessoas e aos seus recursos internos.
Neste sentido, o profissional de saúde consegue preparar emocional-
mente as pessoas e a relação se torna terapêutica. A discussão nos Gru-
pos Balint-Paideia permitiu a reflexão sobre a importância da “substância
médico” na relação médico-paciente (Balint, 1998), ampliando-a para os
outros profissionais de saúde. Ao preparar emocionalmente o ambiente e
as pessoas, a relação pode ser terapêutica. O conhecimento do profissional

104 • Capítulo 4
de saúde é essencial, mas não basta por si só para a tarefa de cuidar de
uma pessoa. A atmosfera criada nos encontros dos internos com a paciente
permitiu nitidamente resultados agradáveis. Ao final do processo a dupla
aponta a repercussão do engajamento profissional da seguinte maneira: “se
fosse eu, ia querer dar retorno”, indicando a posição da paciente em relação
a um trabalho interessado dos profissionais.

Considerações finais

Voltando ao caso de D. Gilda, os estudantes finalizaram a avaliação


do Grupo Balint-Paideia com duas falas que ficaram bem marcadas para os
apoiadores. Na primeira, relataram que foi a primeira oportunidade que tive-
ram de reconhecer que “o vínculo é terapêutico”. Isso reforça os princípios da
APS como a integralidade, a longitudinalidade e a coordenação do cuidado.
Ao conseguirem ver a pessoa como um todo e integrada em uma rede de aten-
ção à saúde, em que podiam acompanhar os resultados de suas ações por seis
meses e se responsabilizar pelo seu cuidado, organizando suas demandas e
conectando-as com os demais serviços da rede, os estudantes puderam expe-
rimentar laços e afetos diferentes do que já haviam vivenciado anteriormente.
Além disso, os estudantes reconhecem a importância da autonomia
do sujeito no processo ao afirmarem: “A gente não fez quase nada. Ela (D.
Gilda) que fez praticamente tudo, pois estava disposta”. Sentiram-se grati-
ficados por participarem do processo e realizarem um PTS. Ao ampliar-se
a capacidade de autonomia e liberdade do sujeito, levando em considera-
ção valores, interesses e desejos da paciente e deles próprios, conseguiram
construir contratos com a D. Gilda.
O que antes parecia baixa adesão, apresentado como desinteresse,
transformou-se em reconhecimento da posição de sujeito da paciente, que
realiza escolhas e que é capaz de pensar sobre seu corpo, necessidades e
possibilidades. Puderam observar, portanto, que o paciente é o maior res-
ponsável pelo próprio cuidado, cabendo ao médico e demais profissionais
de saúde auxiliá-lo nesse processo.
Raramente na prática clínica é possível consenso, sendo necessá-
rios acordos que atendam parte dos interesses em jogo (Campos, Cunha
& Figueiredo, 2013). Colocar em prática fundamentos da práxis Paideia
­permitiu a ampliação da clínica, aumentando a satisfação no cuidado tanto
dos estudantes como da pessoa envolvida no caso.
Dessa forma, pode-se afirmar que o Grupo Balint-Paideia se mos-
trou uma potente ferramenta para se trabalhar clínica ampliada com os

Clínica ampliada na formação médica... • 105


e­ studantes de medicina, apesar de algumas dificuldades vivenciadas como:
(1) o fato de o apoiador do grupo ser professor(a) dos estudantes e remon-
tar a assimetria dessa relação (mesmo com a tentativa de horizontalização
das relações); (2) a falta de envolvimento de alguns estudantes por dificul-
dade de realizar uma escuta empática ou por não se sentirem responsáveis
em colaborar com os demais casos; (3) o horário destinado aos grupos, que
ocorriam na sexta-feira à tarde, período em que estudantes se diziam can-
sados pelo acúmulo de atividades desenvolvidas durante a semana; e, (4) a
incompreensão da função e valor da metodologia dos GBP por alguns es-
tudantes, pelo fato de ser apresentada aos alunos apenas no último período
do curso, momento em que estão com suas atenções voltadas aos exames
de ingresso nas residências.
Por último, falar de mudança de paradigma seria muito pretensioso
para ser relatado como um dos resultados dos grupos Balint-Paideia, mas
com certeza foi possível criar ao menos uma tensão paradigmática, tirando
os estudantes do conforto de suas percepções iniciais e trazendo reflexões
que, quem sabe, possam resultar em mudanças de prática dos futuros pro-
fissionais de saúde.

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Clínica ampliada na formação médica... • 107


Capítulo 5

Mudanças nas relações de poder e processo de


trabalho: observações de um curso de formação

Robenia Mara Ribeiro


Adilson Rocha Campos
Julia Amorim Santos
Gastão Wagner de Sousa Campos

A discussão da APS e a formação Paideia

A Organização Mundial de Saúde (OMS) tem utilizado a expressão


“sistemas nacionais de saúde com base na Atenção Primária” para desig-
nar certo ordenamento de políticas de saúde capazes de assegurar o direito
universal à saúde. Em grande medida, observa-se que estas recomendações
da OMS consolidam um conjunto de estratégias metodológicas para o fun-

108 • Capítulo 5
cionamento da Atenção Primária como parte de sistemas de saúde. Entre
estas categorias ordenadoras da APS, destacamos as seguintes estratégias
e diretrizes: Rede de Atenção Primária integrada aos sistemas de saúde;
cobertura da Atenção Primária tendente à universalidade (80% a 100% da
população); integralidade, concepção ampliada sobre processo saúde/cui-
dado; gestão e planejamento com base em vulnerabilidade e necessidades
de saúde (diretriz da equidade); modelo de cuidados que integre saberes
e práticas de promoção e de clínica; formação integral dos profissionais;
vários cenários de práticas: território, instituições, família e cada pessoa;
equipes interdisciplinares; coordenação e regulação dos projetos terapêu-
ticos; longitudinalidade e continuidade do cuidado com constituição de
vínculo; responsabilidade sanitária; humanização e compartilhamento de
práticas de gestão e de cuidado com usuários (OMS, 2008).
A construção de uma Rede de Atenção Primária com amplo aces-
so, organizada segundo as concepções anteriormente descritas, representa
uma reforma institucional e cultural de grandes proporções. Em geral, essas
reformas têm provocado conflitos e resistências. Além disso, esta dimensão
da Reforma Sanitária implica transformações em cascata e que atingem
outras instituições. Depende de radicais mudanças na formação em saúde
focada, sobretudo, em uma concepção biologicista e hospitalocêntrica; há
a necessidade de se redefinir o papel dos hospitais e serviços especializados
com a construção de pontos de atenção à saúde organizados em redes de
cuidado; instituir-se uso mais racional de medicamentos e procedimentos;
além de induzir a população a utilizar o sistema de saúde segundo uma
lógica diferente da tradicional (Carvalho & Ceccim, 2012).
No Brasil, desde sua origem, o Programa de Saúde da Família, depois
renomeado como Estratégia de Saúde da Família, adotou uma perspectiva
ampliada do processo de saúde e cuidado, recomendou a abordagem base-
ada na integralidade, mediante ações possíveis e necessárias nos vários pla-
nos desse processo. Sempre se argumentou que a integralidade dependeria
da composição multiprofissional das Equipes de Saúde da Família e, mais
tarde, dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), bem como da uti-
lização combinada de conhecimentos e de práticas originárias da Promo-
ção em Saúde e da Clínica Ampliada e Compartilhada (Fausto et al., 2018).
É premente, portanto, ações de formação que tenham como foco
privilegiado a articulação dos saberes dos diferentes núcleos profissionais
que compõe a APS no Brasil e que seja construído com base na realida-
de concreta na qual estes trabalhadores exercem as suas práticas (Melo,
2016). Segundo Campos (2013), a análise da formação dos estudantes teria
de ­levar em consideração os três planos: o primeiro seria o do cognitivo

Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho... • 109


e das habilidades práticas, voltados para o cuidado (Clínica Ampliada e
Compartilhada); o segundo o da capacidade de lidar consigo mesmo (pos-
turas, defesas, resistências, capacidade reflexiva etc.); e o terceiro, o da polí-
tica, da circulação de poder, capacidade de lidar com a instituição e com o
­sociocultural, aquilo que é hegemônico.
Neste sentido, foi realizado um Curso de formação para os profissio-
nais da APS de uma pequena cidade do sul de Minas Gerais, que destaca
os níveis da capacidade de desenvolver conhecimentos e habilidades tanto
para lidar com o universo emocional, simbólico e sociocultural dos sujei-
tos, como para compreender o trabalho em saúde como prática interrela-
cional e operar com os fluxos de afeto e poder (Campos, 2000; Campos,
2008), aspectos estes que foram transversais ao longo dos encontros, dis-
cussões e apresentação dos conceitos abordados.

Os atravessamentos durante o processo de formação

A possibilidade da formação em uma perspectiva metodológica ativa,


crítica e humanística, que propõe aproximar o ensino-aprendizagem à rea-
lidade social e ao atendimento às demandas dos serviços e da comunidade,
é atravessada por diferentes instituições, interesses que se constituem em
dilemas e desafios para tornar essa prática efetiva (Baremblitt, 2002).
Para compreender as análises feitas a partir desta pesquisa, faz impor-
tante considerar como referencial teórico os conceitos de atravessamento
e de transversalidade propostos pela Análise Institucional apontadas por
Baremblitt (1984). Atravessamento significa que qualquer instituição é
sempre atravessada por outras instituições, introduzindo suas dinâmicas e
práticas. Transversalidade significa que a instituição é, também, o lugar da
criação de agrupamentos que se integram no sistema tanto influenciando
como demandando lutar contra esses atravessamentos.
Os atravessamentos e transversalidades acontecem por obra dos
vários atores que interferem nos processos de trabalho da ESF: usuários,
agentes comunitários, profissionais, gestores e Sistema. Eles atuam de
acordo com suas representações culturais da saúde que servem de filtros
para aceitar ou rejeitar práticas e estruturas organizacionais novas. A ESF
apresenta grande potencialidade de tornar-se um sistema eficaz para en-
frentar as vulne­rabilidades em saúde, mas encontra estrangulamentos que
acontecem porque modelos antigos, de processo de trabalho e de gestão,
continuam presentes e atravessados nas novas propostas e estratégias de

110 • Capítulo 5
saúde, convivendo com articulações transversais que tentam pactuar novas
práticas (Junges et al., 2009).
Nessa perspectiva, o Curso propôs a integração dos processos edu-
cativos de profissionais da saúde às experiências cotidianas dos serviços,
a fim de se tomar as práticas de trabalho como fonte de conhecimento,
compreendendo a concepção de trabalhadores da saúde como agentes crí-
ticos e reflexivos capazes de construir o conhecimento e desenvolver ações
alternativas para solucionar problemas, e o trabalho em equipe como mo-
dalidade de organização do trabalho (Souza & Roschke, 2003).
Para Campos (2014), os participantes do Curso devem se envolver
tanto na construção dos diagnósticos como na elaboração de novas formas
de agir; ou seja, formas democráticas para coordenar e planejar o trabalho.
Formas que aproveitem e considerem a experiência, o desejo e o interesse
de sujeitos que não exercem funções típicas de gestão. Os atravessamentos
que impedem a fluidez e o êxito do trabalho das equipes e as transversali-
dades que abrem caminho devem ser analisados segundo a percepção dos
trabalhadores. O Curso, portanto, com metodologia Paideia depende da
instalação de alguma forma de Cogestão.
Baremblitt (2002) afirma que a sociedade se polariza entre duas carac-
terísticas: as utopias sociais e as características históricas que as comprome-
tem — a exploração, a dominação e a mistificação. As utopias sociais são
construções que visam a satisfazer a vontade coletiva, o aperfeiçoamento da
vida social e a realização de um ideal social. Esses ideais, sempre históricos,
são desvirtuados ou comprometidos por uma deformação que se desdobra
em três ações: a exploração de uns sobre outros (expropriação de potên-
cias e do resultado produtivo de uns por parte dos outros), a dominação
(imposição da vontade de uns sobre os outros e o não respeito à vontade
coletiva) e a mistificação (administração arbitrária ou deformada do que se
considera saber e verdade histórica, que é substituída por diversas formas
de mentira, engano, ilusão, sonegação de informação etc.).
Durante o processo de formação, estes dois indicadores de organiza-
ção social — atravessamentos e transversalidades — emergiram e se fize-
ram presentes, não sendo possível não os considerarem na análise. Opta-
mos por chamar de atravessamentos por considerar as diversas dimensões
sociais voltadas para a reprodução da sociedade (instituído, organizado) e
para a resistência à transformação pressuposta pela utopia social e por seus
princípios, os quais se interpenetram para fundar conceitos, procedimentos
e valores novos e criativos. Assim, observamos e descrevemos neste item,
o que intitulamos de atravessamento na instituição saúde, atravessamento

Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho... • 111


na instituição gestão e atravessamento na instituição educação. Além disso,
compreendemos que o Curso, ou o local do Curso foi tido como trans-
versalidade durante o processo, por considerar as dimensões (instituintes,
organizantes) se manifestarem na sociedade, voltadas para a transformação
social e para a ruptura com a dominação, a exploração e a mistificação.
Como atravessamentos na instituição saúde, podemos citar entraves
referentes ao modelo de valorização do conhecimento biomédico e de os
serviços se organizavam hierarquizando os saberes biotecnológicos, não
valorizando outros saberes, desejos e interesses que continuavam presentes
e transversais às novas propostas e estratégias de saúde, convivendo com
articulações que tentavam pactuar novas práticas. Desde o início do Curso,
pôde-se observar a dificuldade dos ACSs em encontrar seu lugar de fala
por estarem em um processo de formação que os colocava no mesmo con-
texto de ação que os outros profissionais “especialistas”, essa era a primeira
vez que acontecia um Curso nesse modelo de não separação desses pro-
fissionais. Além disso, por muitas vezes, as falas dos agentes comunitários
vinham atreladas a insatisfação dessa valorização de saberes, que ocorriam
não apenas nos locais de formação, mas também nos locais de trabalho e
na comunidade. Exemplificavam com situações frequentes de não conse-
guirem compartilhar sua visão sobre os casos dentro dos serviços, que as
reuniões de equipe que ocorriam eram apenas no contexto administrativo,
que tinham dificuldade de falar com alguns médicos. E também, que os
muitos usuários preferiam as visitas dos médicos e dos enfermeiros, e que
sentiam que seu trabalho era mais valorizado pela população quando “nós
podíamos, pelo menos, levar receitas ou encaminhamentos”. Assim, o Curso
se movimentou a fim de intensificar o poder de fala e a valorização dos
conhecimentos desses agentes.
Como exemplos de atravessamentos na instituição gestão, observa-
mos as situações de intervenção direta da administração municipal e das
enfermeiras como gerentes de suas Unidades. Atribuições como a exigên-
cia da produção em massa, observada nos relatos dos médicos e dos pro-
fissionais do NASF sobre um número mínimo de atendimentos exigido, e
nas falas dos ACSs quando trouxeram por diversas vezes o incômodo com
a exigência da cobrança de assinaturas dos usuários nas visitas realizadas
no mês; o pouco tempo para a reflexão nos espaços de atuação — diversas
vezes foi evidenciado que encontros como estes do Curso nunca haviam
ocorrido; a escassez de encontro entre diferentes profissionais nos servi-
ços — os profissionais do NASF não tinham agenda que possibilitasse a
discussão com outros profissionais; e o conhecimento descontextualizado
embasando condutas a serem seguidas, com exclusividade, por protocolos.

112 • Capítulo 5
Consideramos como atravessamentos na instituição educação, as difi-
culdades dos participantes com o tipo de metodologia ofertada pelo Curso,
embasadas na identificação das necessidades de saúde, ou na observação
do ambiente de trabalho e processo de trabalho, visto que outros cursos
de capacitação que foram realizados utilizavam metodologias e atividades
educativas voltadas para o público-alvo de uma área profissional específica,
aspecto que caracteriza a fragmentação das ações de saúde e a prevalência
do trabalho individualizado por categorias no modo de organizar o proces-
so de trabalho em saúde, deixando de lado a interdisciplinaridade e multi-
profissionalidade (Lima, Albuquerque & Wenceslau, 2014).
Em alguns momentos, as dificuldades de adaptação com a metodolo-
gia ativa, e com os temas teóricos sugeridos pelo Curso, como observado
na fala de uma ACS, achei os textos muito grandes e complexos, com termos
que a gente não entende direito.
Foram identificados desafios já que na cidade predominam atividades
educativas voltadas para o público-alvo de uma área profissional específica,
o que não aconteceu, pois o Curso evitava o aspecto que caracteriza a frag-
mentação das ações de saúde e a prevalência do trabalho individualizado
por categorias e objetivava reforçar um modo de organizar o processo de
trabalho em saúde valorizando a interdisciplinaridade e multiprofissionali-
dade (Lima, Albuquerque & Wenceslau, 2014).
Os professores/apoiadores observaram que temas como transferên-
cia e contratransferência, Clínica Ampliada e Cogestão surgiram como co-
nhecimentos científicos desconhecidos e de difícil compreensão a partir
dos textos abordados, como se os saberes e experiências dos profissionais
fossem “desatualizados”. Assim como a abordagem das discussões serem
feitas em roda inibiu a participação de alguns profissionais nos primeiros
encontros. Os professores/apoiadores, então, adotaram uma postura aco-
lhedora e compreensiva, propondo textos de apoio com uma linguagem
simplificada e a utilização de instrumentos como a apresentação de vídeos
e algumas aulas expositivas e a leitura dos Cadernos de Atenção Básica do
Ministério da Saúde. Também, buscaram estimular com dinâmicas como: a
confecção de maquetes dos territórios, elaboração de tarjetas para estimu-
lar as falas, cartazes para elaboração em conjunto de Projeto Terapêutico
Singular (PTS), discussões em grupos menores antes que os temas fossem
abordados na roda, entre outros que possibilitasse estimular a experiên-
cia dos sujeitos e o exercício do reconhecimento dos saberes e das práticas
exercidas com protagonismo por alguns na realidade diária dos serviços.
Assim, a transversalidade do Curso como proposta pedagógica inspi-
ra-se na educação emancipatória, e, ainda que traga distinções, a­ proxima-se

Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho... • 113


da lógica da Educação Permanente para poder estimular a crítica ao mo-
delo taylorizado de gestão que vige em geral nas instituições de saúde, ca-
racterizado pela verticalidade das decisões e pela desconsideração da sub-
jetividade dos trabalhadores, apostando apenas no controle e no estímulo à
concorrência (Campos, 2005).
Esta noção de transversalidade como a criação de agrupamentos e re-
sistências também surgiram durante o processo de formação, evidenciados
pela valorização dos espaços do Curso. No olhar dos participantes, foi rela-
tado diversas vezes que estes momentos eram os únicos em que se reuniam
todos os profissionais possibilitando uma interlocução da rede para troca
de experiências significativas que envolvessem os campos de conhecimento
interdisciplinares, situação que nunca havia acontecido no município até o
momento. Como pode ser observado nas falas de duas enfermeiras naquele
momento de avaliação final do Curso, [...] foi edificante poder trocar ex-
periências com outros colegas e conhecer as experiências de outras Unidades.
Consegui ampliar meu olhar sobre o trabalho. [...] só de estar juntos, ajudou
a unir as equipes de todas as Unidades.
A combinação desses olhares sinaliza para uma perspectiva de forma-
ção crítica, uma abertura para o diálogo, possibilitando o estímulo a pen-
sar, discutir, analisar e agir sobre as temáticas e os conteúdos apresentados.
À proporção que os profissionais entenderam seu papel e sua posição
no processo pedagógico, passou-se a valorizar o contexto do SUS local e de
seus problemas. Com isso se intensificou a participação nas discussões do
curso e a busca por adequações em suas práticas.
Procurou-se estimular a reflexão e a discussão a partir da presença
destes atravessamentos que emergiram durante o processo de formação,
e os momentos de encontro funcionaram como exercício de autoanálise,
buscando identificar as forças de manutenção e de conservação da situação
dominante.

O reconhecimento do território pelas Equipes de Saúde da Família

O entendimento de território e a reflexão acerca da importância da


territorialização se sobressaiu em nosso Curso de formação e capacitação
de profissionais da APS. Observa-se ainda que a organização dos serviços,
fortemente influenciada pela administração científica, pelos moldes fordis-
tas e tayloristas, acaba por afastar o trabalhador do planejamento de suas
atividades e o alienam em uma parte da cadeia de produção, em parti­cular
da responsabilidade com a comunidade e com o contexto sociocultural

114 • Capítulo 5
(Campos, 2010; Terra, 2018). Ao se aproximar da reorientação dos sistemas
de saúde, a visão do território e o processo de territorialização tornam-se
ferramentas necessárias para que ocorra a transição entre tais modelos de
aprendizagem e organização do processo de trabalho, especialmente no
contexto da APS.
Na ocasião do curso, foi trabalhado, com ênfase, o tema território. Já
nos primeiros encontros foram propostas dinâmicas, oficinas e instrumen-
tos a fim de estimular as reflexões dos participantes a fim de “enxergar” o
próprio território e o território das outras equipes, além de perceberem
suas dimensões complexas e dinâmicas, suas potências e obstáculos, seus
riscos e vulnerabilidades, e suas necessidades.
Como se evidencia em uma fala de uma ACS: [...] não imaginavam
que no nosso município tínhamos tantos problemas com uso de drogas. Achei
que isso só acontecia na minha área. Essa fala surgiu após o apontamento
dos obstáculos de uma Unidade que se encontra em um território de classe
média alta, causando certo espanto pela agente da fala, que pertencia a um
território de classe social baixa.
Observaram também, o ambiente em que está inserido o território,
os processos de produção, os conflitos socioambientais e a percepção da
equipe e da comunidade. Demonstrado na fala de uma enfermeira de uma
das Unidades de zona rural: [...] achei interessante observar como uma das
potências das Unidades das zonas rurais é um dos obstáculos das Unidades
da cidade, que é a questão da participação da comunidade nas atividades
realizadas pelas equipes. Lá (zona rural) eles (pessoas da comunidade) são
muito unidos e ajudam muito a gente. Nesse sentido, também é importan-
te ressaltar que a participação e o envolvimento da comunidade com as
atividades das Unidades foram apontados como “potências” pelas duas
Unidades da zona rural e como “obstáculos” pelas cinco Unidades da zona
urbana. Evidenciando assim, como “[...] múltiplas forças e fluxos que per-
passam os territórios e interagem de forma diferenciada sobre eles [...]”
(Santos & Rigotto, 2010).
Em um momento posterior do curso, uma observação foi feita por
uma ACS sobre essa dinâmica que demonstrou um grau de reconhecimen-
to com o outro: “[...] depois daquela atividade da maquete, vi que algumas
agentes pararam de reclamar do seu território, porque antes elas achavam
que só o delas é que tinham problemas, aí elas viram que não.
A reflexão sobre o território ocorreu para além da dimensão político-
-operativa do sistema de saúde, ela se dá na condição de cotidiano vivido
no qual a interação entre as pessoas e os serviços de saúde no nível local
do SUS, caracteriza-se por uma população específica, vivendo em tempo e

Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho... • 115


espaço determinados, com problemas de saúde definidos, mas quase sem-
pre com condicionantes e determinantes que emergem de um plano mais
geral. Esse espaço apresenta, portanto, além de uma delimitação espacial,
um perfil histórico, demográfico, epidemiológico, administrativo, tecno-
lógico, político, social e cultural, que o caracteriza como um território em
permanente construção (Miranda et al., 2008).
A compreensão do território, em que pese toda a sua riqueza e com-
plexidade, sinaliza uma etapa primordial para a caracterização descritiva
e analítica das populações humanas e de seus problemas de saúde. Além
disso, também permite a avaliação dos reais impactos dos serviços sobre os
níveis de saúde dessa população, possibilitando, ou efetivamente abrindo,
espaços para o desenvolvimento de práticas de saúde voltadas para o chão
concreto, para o lugar da vida cotidiana das pessoas (Santos, 2008).
No intuito de compreender o território para além do seu aspecto es-
pacial, mas também buscando realizar um diagnóstico da situação de saú-
de, foi sugerido que cada equipe trouxesse seus dados territoriais e foram
abordados como casos epidemiológicos para discussão e reflexão de todos
nos encontros que se sucederam, o que permitiu que todas as equipes co-
nhecessem as demandas das outras e compartilhassem estratégias de abor-
dagem e planejamentos de ações.
Muitas vezes, nos diagnósticos das condições de vida e da situação
de saúde, os elementos constitutivos da reprodução da vida social nos di-
versos lugares são listados e tratados como conteúdos desarticulados do
território analisado. Tradicionalmente, essas análises de situação são rea-
lizadas mediante a delimitação do espaço em determinada escala, buscan-
do-se descrever apenas o seu conteúdo e tratando-se o espaço como mero
depositário de determinadas características e aspectos. Uma proposta de
saúde baseada no território deve também considerar os sistemas de objetos
naturais e construídos e identificar seus diversos tipos de ações e como eles
são percebidos pelas populações. Nesse sentido, é importante que o reco-
nhecimento dos contextos de uso se faça por intermédio de métodos que
identifiquem suas singularidades e seus problemas (de saúde e ambientais),
com base numa abordagem territorial (Monken, 2003).
Na ocasião, os participantes notaram a importância de, primeiramen-
te, conhecer e analisar os indicadores de saúde vinculados às percepções do
território e a territorialização, para só então planejar e estabelecer proces-
sos de trabalho pautados em ações de prevenção, promoção, tratamento e
reabilitação, como preconizado. Ao longo das discussões foi colocado por
alguns participantes que esta análise territorial e dos dados epidemioló-
gicos ocorria de forma indireta e não era discutida coletivamente no mu-

116 • Capítulo 5
nicípio, sendo predominantemente uma ação realizada, sobretudo, pelas
enfermeiras de cada Unidade e de maneira pontual e individualizada. E
que aquela era a primeira vez que essas análises eram realizadas a partir de
uma reflexão conjunta.
Um dos fundamentos da ESF é o foco na comunidade e no território,
construída sobre uma base territorial espacialmente delimitada e seguin-
do o modelo instrumentalizado de adscrição e cadastramento da clientela.
Cada território passou por um diagnóstico epidemiológico e sociocultural
a fim de identificar os fatores e condições pertinentes aos processos de saú-
de e doença de determinada região.
Enxergar o território e compreender que os problemas de saúde apre-
sentam uma diversidade de determinações, que os diagnósticos das con-
dições de vida e da situação de saúde-doença da população, por meio da
análise cuidadosa dos indicadores, são pontos de partida para a construção
de ações em saúde mais eficientes.
Segundo a literatura:

A territorialização representa importante instrumento de organização dos


processos de trabalho e das práticas de saúde, posto que as ações de saúde
são implementadas sobre uma base territorial detentora de uma delimita-
ção espacial previamente determinada. [...] No entanto, [...] a opera-
cionalização da categoria “território” por parte dos profissionais do SUS
vem sendo tratada de forma parcial, de modo que o conceito de espaço,
consagrado a fins administrativos que se voltam para a dimensão gerencial
dos serviços de saúde, têm limitados seu potencial e suas possibilidades
na identificação de questões de saúde e das correspondentes iniciativas de
intervenção concreta na realidade cotidiana das coletividades humanas
(Santos, 2008, pp. 388-9).

Um dos principais eixos norteadores da implementação da ESF é a


territorialização, que orienta as formas de intervenção na área de cobertura
de cada uma das equipes, fazendo que haja uma autonomia das Unidades
com relação às suas estratégias.
A própria condição de proximidade da Unidade com a população
que a territorialização traz faz que seja possível de fato a prática da APS.
Além disso, entre as muitas críticas já realizadas em torno da utilização do
conceito de territorialização da saúde, o próprio ACS acaba sendo o profis-
sional que mais se funde com a comunidade e traz sentido à conceituação
das territorialidades que são construídas no espaço (Nascimento & Correa,
2008).

Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho... • 117


O ACS é um profissional essencial no contexto do território e no en-
tendimento do processo de territorialização. A participação desses profis-
sionais na discussão das atividades de conhecimento e de caracterização
do território permitiu, em alguns momentos, observar a dimensão afetiva
e de reconhecimento da categoria profissional, evidenciado na fala de duas
ACSs um grau de empoderamento dessa categoria perante o trabalho: [...]
no território nós somos reis, [...] nós somos o elo de ligação entre a comuni-
dade e a equipe.
Nessas falas, a questão do duplo pertencimento é claramente demons-
trada. Ser um sujeito da Promoção da Saúde e ao mesmo tempo pertencer
ao território de atuação torna-se uma estratégia essencial para as premissas
da APS. Ela, detalhada por Starfield (2002), seria a porta de entrada aos
serviços de saúde, tendo como característica central a longitudinalidade do
atendimento, propondo uma atenção generalizada, acessível, integrada e
continuada; além de ser centrada no indivíduo e não na doença, ofertando
um serviço voltado para a família e a comunidade, sem restrições de gru-
pos de idade, gênero ou etnia.
Dessa forma, a dinâmica territorial deve ser compreendida tendo os
ACSs com peças-chaves para tal, já que eles compartilham não somente o
espaço do atendimento em saúde, mas também o espaço de vivência co-
tidiana, em um contexto no qual novas territorialidades são construídas
a partir da presença de pessoas advindas de contextos sociais e culturais
distintos. Esse é um dos principais diferenciais da prática dos ACSs. Eles
são também agentes do território, ou seja, participam das territorialidades
que se constituem na área de atuação da Unidade, seus espaços de vida são
os mesmos que os dos usuários.
Os professores/apoiadores buscaram aprofundar o tema “território e
territorialização”, além de se fazer incluir nas discussões a figura do ACS,
com base na percepção de como essas questões eram trabalhadas de for-
ma deficiente ou, até mesmo, não eram trabalhadas pelas eqESF daquele
­município. Nesse sentido, o apoio reúne uma série de recursos metodo-
lógicos voltados para lidar com essas relações entre sujeitos de um modo
que reconheça a diferença de papéis, de poder e de conhecimento, mas
também que procure estabelecer relações construtivas entre os distintos
atores sociais.
Para esse tipo de suporte, Campos (2007) nomeia como Apoio Pai-
deia e aponta que esse apoio depende da instalação de alguma forma de
Cogestão. Assim, tanto a construção dos diagnósticos como a elaboração
de novas formas de agir, deveriam envolver os próprios sujeitos (trabalha-
dores); ou seja, formas democráticas para coordenar e planejar o trabalho.

118 • Capítulo 5
Formas que aproveitem e considerem a experiência, o desejo e o interesse
de sujeitos que não exercem funções típicas de gestão.

A percepção das relações de poder e a Cogestão

O campo da saúde se constitui a partir de uma relação de poder-sa-


ber presente no processo de trabalho. Segundo Foucault (1986), o poder é
exercido em uma cadeia de submissões da qual ninguém é algo único, mas
perpassa os diferentes indivíduos.
Foi possível verificar durante o curso, as relações de poder existen-
tes entre os diferentes atores da APS — gestão, profissionais e usuários. E
ainda entre as diferentes categorias profissionais das equipes de ESF, que
ocorriam de forma naturalizada no cotidiano dos serviços. Entretanto, o
fato de ter um espaço de encontro regular entre os vários profissionais da
equipe com discussões coletivas possibilitou o estreitamento das relações,
como pode ser observado nas falas dos participantes na avaliação final do
curso: a possibilidade de trocar experiências e dificuldades com os colegas,
de conhecer a visão dos técnicos e dos agentes (ACS), ampliou meu olhar
como profissional e como ser humano (enfermeira); me ajudou a trabalhar
em roda e ouvir mais as experiências das pessoas mais antigas (profissional
do NASF); o curso ajudou a ampliar minha visão na participação das equi-
pes na gestão, eu não tinha noção dessa importância, [...] também achei
que uniu as equipes (coordenadora da APS); o curso ajudou muito quem tá
começando na comunicação da equipe com a gestão (ACS)
Para Campos (2000, p. 73) os espaços coletivos são uma estratégia
de democratização das relações de poder, de superação das capacidades
assimétricas de decisão, que visa a garantir aos trabalhadores o acesso à
informação e o tempo necessário aos processos de discussão, deliberação
e planejamento. Nesses espaços, os sujeitos devem ocupar-se do estabele-
cimento de compromissos quanto à tensão entre a produção de valores de
uso e o interesse e desejo dos trabalhadores, uma vez que “a organização
resulta da adesão mais ou menos voluntária a valores instituídos e transfor-
mados em estrutura, arranjos e normas”.
Em vários momentos houve discussão sobre temas como poder, afe-
tos e Cogestão, e foi possível notar o espanto de uma enfermeira ao perce-
ber a naturalização das relações de poder na sua equipe, quando colocou
que a discussão sobre o tema a fez refletir como ela exercia uma relação
hierarquizada e com concentração de poder hierárquico em aspectos
de ­organização do processo de trabalho. No final desse dia, durante o

Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho... • 119


­ omento de ­avaliação do encontro, foi chamada a atenção dos apoiadores
m
que uma das enfermeiras que era muito participativa permaneceu em si-
lêncio d­ urante toda a discussão, fato que foi indagado a ela, que respondeu:
esse tema ­mexeu muito comigo, pois percebi o quanto exerço poder sobre mi-
nha equipe, e que não faço uma gestão compartilhada, mas pretendo mudar
isso a partir de hoje.
Além disso, se reconheceu que o modelo biomédico de atenção à saú-
de, que prevalece na sociedade, também prevalecia no SUS local, em que
as pessoas também buscavam práticas curativas e medicalizantes, predo-
minando aspectos de uma relação entre profissionais de saúde e paciente
pautado na queixa-conduta (Santos et al., 2012). Os novos arranjos ins-
titucionais e a incorporação do profissional ACS estimulavam formas de
atuação direta nos territórios e maneiras de potencializar a articulação do
cuidado e ações de prevenção e Promoção da Saúde. No entanto, se obser-
va que o ACS, profissionais com formação de ensino médio completo que
deve conhecer o território e fazer uma articulação entre as famílias e as
equipes de saúde, não ocupa o lugar do saber do especialista, privilegiado
socialmente. Nesse sentido, um ACS destacou que, às vezes, a gente sente
que nosso trabalho não vale muito, porque antes a gente ainda podia levar
receita pras pessoas, hoje a gente vai nas casas, mas elas querem os médicos
ou as enferemeiras.
Vale ressaltar que esta relação poder-saber presente nos serviços de
saúde resulta de uma complexa e engenhosa construção social, que, ao lon-
go do tempo, foi se cristalizando no imaginário social, como o poder do
médico sobre a vida e a morte do indivíduo, e, por isso, a suposta diferença
deste profissional com relação aos demais, como nota-se na fala de uma en-
fermeira: pela primeira vez, em anos, conseguimos realizar uma reunião de
equipe com a presença de todos para discussão de um caso, e tanto eu quanto
o doutor ficamos impressionados com a capacidade de contribuição dos ACS.
Por outro lado, com o decorrer do curso as relações de poder legal-ad-
ministrativas presentes nas instituições de saúde foram surgindo. A hege-
monia da gestão, ainda presente na ESF, contribui para manter inalterados a
hierarquização e o autoritarismo nas relações entre gestores, trabalhadores
e usuários, sem produzir a eficácia e eficiência desejadas (Villa et al., 2015).
Episódios de exercício de poder legal-administrativo foram obser-
vados durante o curso e geraram algum desconforto nos participantes. O
primeiro foi quando, no horário de aula do curso, o médico e a enfermeira
de uma Unidade foram chamados para comparecerem à prefeitura para
atendimento de uma usuária que estava na Unidade e não conseguiu aten-
dimento no dia, pois os trabalhadores estavam no curso, e reclamou dire-

120 • Capítulo 5
tamente com o prefeito. O segundo ocorreu pela demissão da psicóloga
do NASF, que segundo relatos dos colegas, teve como motivo a posição da
profissional com críticas às ações da gestão municipal. Houve ainda, um
terceiro momento, não propriamente de desconforto durante o curso, mas
que foi trazido, talvez já em função do locus de proteção do curso como
espaço democrático, quando foi denunciado pelos profissionais, que havia
um novo assessor da prefeitura, cuja função seria a de passar a acompanhar
os ACS em suas visitas domiciliares.
Para Cecilio (2012), os gestores são percebidos como elementos ex-
ternos às equipes, por vezes, vistos como superiores e inatingíveis, fato
­refletido no distanciamento deles com os trabalhadores e suas necessida-
des. Essa percepção pode ser exemplificada em um momento do curso de
grande desconforto pela equipe de uma Unidade da zona rural em um epi-
sódio ocorrido na sua comunidade. Episódio este, que ocorreu em razão
da intervenção do Centro de Referência Especializado de Assistência So-
cial (CREAS), órgão que havia sido recentemente instituído no município,
mesmo sem a orientação e a explicitação das suas relações com as equipes
de ESF, e atuou de forma fiscalizadora e punitiva naquela comunidade.
O episódio ocorreu quando, após denúncias feitas pela população so-
bre uma idosa que, supostamente, estava sendo malcuidada por seus fa-
miliares, os integrantes desse órgão foram até a comunidade e solicitaram
que a técnica de enfermagem da Unidade os acompanhasse até a casa da
idosa, sem que essa profissional soubesse do que se tratava e de que abor-
dagem seria tomada. Assim, os integrantes do CREAS retiraram a senhora
de sua casa e a internaram, compulsoriamente, no asilo da cidade. A partir
desse episódio, a comunidade passou a ter uma postura de desconfiança
àquela equipe por acreditarem que a denúncia tinha sido feita pela técnica
de enfermagem que acompanhou os integrantes do CREAS até o domicí-
lio. Segundo a enfermeira da Unidade, houve grande constrangimento da
técnica quando teve consciência da intervenção que seria feita por aquele
órgão. Ela se encontrava bem abalada durante o encontro, chorou quando
a enfermeira contou o ocorrido e por temer que todo o trabalho de aceita-
ção que a equipe havia realizado fosse perdido a partir daquele ocorrido.
Essa discussão se seguiu por acolhimento e incentivo das outras equipes,
mas também de questionamentos sobre o que era o CREAS, pois muitos
não tinham nem o conhecimento desse órgão e que ele estava atuando no
município e o porquê de a gestão não ter comunicado as equipes sobre a
existência dele. Aos apoiadores coube ponderar e explicar a importância
desse órgão, qual deve ser sua função no município e que a ele não cabe um
trabalho de forma fiscalizadora e punitiva.

Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho... • 121


Para Garcia et al. (2014), na coordenação no processo de trabalho
da ESF, o planejamento é um meio para exercer o poder. Pode ser um ins-
trumento decisório, bem como uma ferramenta de dominação, cerceando
a possibilidade de o trabalhador inserir-se, manifestar-se e participar das
ações planejadas. Nesse sentido, Cunha & Campos (2010) apontam que
uma organização segundo a racionalidade hegemônica é muito pouco efi-
caz em muitos casos, em que quaisquer dos três atores (gestão, trabalhado-
res e usuários) quando detêm poder demais comprometem a sobrevivência
da organização.
Em Foucault (2007, p. 154), as sanções normalizadoras se referem à
imposição de ordem, escala hierárquica, dispositivos de comando e à previ-
são de comportamentos aceitáveis e eficientes. “É um controle normalizan-
te, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir”.
As enfermeiras das Unidades que atuam como coordenadoras das
equipes assumiram uma postura de “mando”, principalmente em relação
aos ACS, determinando as ações que deveriam ser cumpridas. Esse posi-
cionamento ficou evidente e surgiu como gerador de conflito, quando foi
instituída a criação de um “regimento” interno, um Procedimento Opera-
cional Padrão (POP), pelas enfermeiras, para definir o número mínimo de
visitas domiciliares comprovadas por assinaturas dos usuários, como meta
mensal de visitas a serem cumpridas pelos ACS, a fim de se normalizar e
avaliar a produtividade e efetividade do trabalho dos agentes.
Estas diferenças dentro das relações de poder e de mando que se esta-
belecem no cenário institucional impactam diretamente na legitimação do
ACS no serviço no território, nas permissões que são dadas ou negadas a
este profissional, para que possa transitar em alguns espaços. E nesse jogo
de poderes e saberes pode-se perceber muitos profissionais da categoria de
ACS entristecidos, com o lugar de fala e autonomia reduzidas, tendo sua
potência de ação diminuída, assim como os bons encontros sendo cada vez
mais raros, estes acontecimentos descritos em outros locais do SUS, tam-
bém ocorriam em nossa rede (Santos, 2011).
Porém, observou-se durante o decorrer do curso como “entristecer”
transformou-se em “incômodo” e insatisfação dos ACS. Em vários encon-
tros que se sucederam após a elaboração do POP, esse “incômodo” surgiu
em falas soltas nos corredores e a cada dia se tornava mais perceptível nos
encontros do Curso. Foucault (2007) destaca que em qualquer circunstân-
cia dialógica pode haver disputa pelo poder, ainda que nem tudo seja dito
de maneira direta, o que não é dito pode permanecer subentendido.
A fim de estimular o afloramento desse “incômodo” e que esse possi-
bilitasse a discussão durante um encontro do Curso, utilizamos uma ferra-

122 • Capítulo 5
menta que abordasse o tema “conflitos” (Apêndice III), então, as manifesta-
ções relacionadas ao POP surgiram de maneira evidenciada e com potência
nas falas e argumentações feitas pelos ACS: [...] não entendo porque nós
(ACS) não participamos da elaboração desse negócio que era pra avaliar o
nosso trabalho; [...] pra eu fazer esse monte de visita por dia, num dá tempo
nem de eu conversar direito com a pessoa, é só pegar a assinatura e sair cor-
rendo; [...] e se a gente precisa voltar na casa da mesma pessoa, não pode
pegar assinatura repetida; [...] como que a gente vai fazer com as pessoas
que não conseguem assinar? Elas até ficam sem-graça de falar que não sa-
bem e a gente fica com dó. Além de evidenciarem que o POP não abordava
outras ações de promoção de saúde ou ações coletivas e educativas como
parte das metas a serem cumpridas. Esse foi um momento do curso onde
ocorreu escuta dos enfermeiros e empoderamento dos ACS. Falar sobre
dificuldades da prática, em geral, tende a produzir uma abertura da resis-
tência dos sujeitos e a busca de outras disciplinas, valores e possibilidades
subjetivas (Campos, 2010).
Após o episódio de discussão sobre o POP, outros momentos de fala
dos ACS surgiram. Um deles ocorreu quando foi pautado, por solicitação
dessa classe profissional, que no espaço do curso, se retomasse o tema so-
bre “atribuições do ACS”. A sugestão feita aos professores/apoiadores foi
que, para além das atribuições que estão previstas na lei que regulamen-
ta o trabalho do ACS, Lei 11.350/06 (Anexo III) que já havia sido tratada
em outro momento do curso, se trouxesse a experiência desses profissio-
nais no município de Campinas/SP. Assim foi feito, um dos professores/
apoiadores foi até o Centro de Saúde Santos Dumond (Jardim Itatinga)
para ouvir dos ACS daquela Unidade relatos sobre o trabalho realizado
com a ­comunidade, e os grupos de convivência foram apresentados como
ponto forte daquela e­ quipe. No encontro seguinte, foi apresentado às equi-
pes como se ­estruturava o trabalho dos ACS nas Unidades de Saúde de
­Campinas/SP. Os participantes se mostraram surpresos por não imaginar
tantas p
­ otencialidades em seus trabalhos. E a partir daí, surgiu um grande
desejo em se realizar esses grupos de convivência pelas equipes participan-
tes do curso.
Essa experiência se refletiu nos projetos de conclusão do curso, que
contou com a criação de grupos de convivência pelos ACS em várias Uni-
dades. Suas experiências exitosas foram evidenciadas pelos relatos e pela
dimensão que alguns desses grupos ganharam como, por exemplo, repor-
tagens no jornal da cidade, pessoas de outros municípios querendo par-
ticipar dos grupos e ACS relatando que encontraram sentido para o seu
trabalho.

Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho... • 123


O poder presente nas relações também propicia a produção do saber,
e uma das formas de fazê-lo é pela resistência dos trabalhadores. Foucault
(1986, p. 8) assinala ainda que se o poder fosse somente repressivo não te-
ria a força que tem: “Ele produz coisa, induz o prazer, forma saber, produz
discurso”.
Esse discurso surge em dois momentos de reflexão dos participantes,
ao solicitarem à gestão uma reunião de alinhamento sobre as ações e limi-
tes de atuação do CREAS; e quando os ACS reivindicaram a contabilização
das visitas realizadas a usuários que não sabem ou não conseguem assinar.
Nesse sentido, nota-se o exercício de poder ao surgir nos discursos dos
trabalhadores a intenção do diálogo e da ação. Para Arendt (2008, p. 212):
“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quan-
do as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras
não são empregadas para violar e destruir, mais para criar relações e novas
realidades”. Nessa medida, pode-se afirmar que a Cogestão é um recurso
de publicização das instituições, que tem como principal horizonte a cons-
trução de valores democráticos, de uma postura ética que atue como força
de negação das estratégias de dominação e dos dispositivos de controle tão
presentes nas práticas administrativas (Campos, 2000).
Outra situação de grande relevância para a análise das estratégias de
dominação e dispositivos de controle, que emergiu no decorrer do Curso,
foi a preocupação dos trabalhadores contratados com o término de seus
contratos no final de dois anos. Esse assunto, embora não tenha sido dis­
cutido de maneira formal durante o curso, esteve presente em várias con-
versas, sendo evidente como fator angustiante e desmotivador. Reivindica-
vam todo o trabalho realizado na comunidade, todo vínculo que já se havia
estabelecido entre a equipe e a população, toda a capacitação que tiveram
com o Curso e o quanto a população perderia com a troca desses profissio-
nais. Estimulados pelas discussões durante os encontros e então, movidos
desse desejo, os trabalhadores conversaram com a população, conseguiram
listas de assinaturas solicitando a permanência deles e foram até a adminis-
tração central a fim de reivindicar a importância de se ter um trabalho de
cuidado continuado. Porém, a resposta foi que “nada se podia fazer”.
Embora o curso não tenha nenhum poder de mudança nessa relação
e pequena governabilidade referente à gestão municipal, que é prerrogati-
va da gestão local e de sua tradição político administrativa, o surgimento
do assunto no espaço do curso trouxe à tona questionamentos e disparou
ações dos participantes. Trata-se, segundo Campos (2000), de um modo
de conceber a dinâmica social com desaparecimento do sujeito e o apaga-
mento do ser humano diante da força do instituído, do estruturado, seja

124 • Capítulo 5
pela força do mercado e da economia, pela cultura ou pela tradição, ou pela
instituição da sociedade de controle ao poder do Estado ou de uma rede de
micropoderes.
O conceito de Cogestão aponta para o reconhecimento da possibili-
dade de instituir compromissos coletivos e para a necessidade de demo-
cratizar o poder em todas as dimensões da vida institucional e social: “a
base da Cogestão, ninguém governa sozinho” (Campos, 2000, p. 44). Esses
aspectos tornam a proposta de Cogestão apresentada por Campos um pro-
jeto político radicalmente antagônico à razão tecnocrática, e que se assenta
na prática da “liberdade de se pôr em pauta os desejos e interesses dos tra-
balhadores” (Campos , 2000, p. 128).
Assim, deve-se ressaltar que diferentes relações de poder-saber estão
estabelecidas na APS do município e no ambiente de trabalho das equipes
de ESF, devendo ser traçadas estratégias que visem o reconhecimento da
possibilidade de se instituir compromissos coletivos e para a necessidade
de se democratizar o poder em todas as dimensões da vida institucional e
social: “a base da Cogestão, ninguém governa sozinho” (Campos, 2000, p.
44). Estes aspectos tornam a proposta de Cogestão apresentada por Cam-
pos um projeto político radicalmente antagônico à razão tecnocrática, e
que se assenta na prática da “liberdade de se pôr em pauta os desejos e
interesses dos trabalhadores” (Campos, 2000, p. 128).

A reorganização dos processos de trabalho

O processo de trabalho em saúde é entendido como um conjunto de


ações coordenadas, desenvolvidas pelos trabalhadores em que indivíduos,
famílias e grupos sociais compõem o objeto de trabalho, e os saberes e mé-
todos representam os instrumentos que organizam a atenção em saúde. Os
modelos de atenção que orientam o trabalho em saúde refletem as combi-
nações tecnológicas para o alcance dos objetivos, pois são “[...] uma espé-
cie de lógica que orienta a ação e organiza os meios de trabalho (saberes e
instrumentos) utilizados nas práticas de saúde” (Paim, 2008, p. 554).
No âmbito do município, até o momento do Curso, a gestão dos ser-
viços de saúde da ESF era feita pelas enfermeiras de cada Unidade, bus-
cando assumir significado estratégico para a consolidação do processo de
trabalho das suas equipes. Há ainda, uma coordenadora da APS no suporte
administrativo das equipes e na adequação da estrutura e organização das
ações. A organização dos processos de trabalho nas Unidades fica a car-
go desses atores. Porém, ainda predomina um modelo taylorista baseado

Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho... • 125


na divisão entre executores e planejadores, na normatização de processos
e procedimentos, e na não cooperação entre indivíduos e especialidades
(Starfield, 2002).
Durante o curso, identificaram-se problemas e insatisfação quanto à
organização do processo de trabalho das recepcionistas da Unidade, que se
responsabilizavam pelo acolhimento da demanda espontânea sem critérios
adequados para o preenchimento das vagas de atendimento. Situação que
gerava conflito entre a equipe e as recepcionistas, que eram colocadas como
“profissionais difíceis”, que atuavam de forma dura, ríspida, gerando insa-
tisfação nos usuários. Nesse sentido, Dejours (2004) aponta que a forma
concreta de organização do trabalho influencia o estado de saúde dos tra-
balhadores ao propiciar ou dificultar os mecanismos de reelaboração das
normas, consequentemente do sofrimento vivenciado por eles.
Após um encontro em que o tema foi “acolhimento”, algumas enfer-
meiras de Unidades que vivenciavam situação de conflito relacionada ao
trabalho das recepcionistas, procuraram os professores/apoiadores e suge-
riram que o tema fosse novamente trabalhado, mas agora com a participa-
ção das recepcionistas das Unidades. A sugestão foi compartilhada com os
participantes e assim, trabalhada em outro encontro, que se discutiu, teo-
ricamente, o conceito para que todos os profissionais da equipe refletissem
sobre o que é e de como a responsabilidade pelo acolhimento cabe a todos
trabalhadores da Unidade. Além disso, por meio de um instrumento criado
pelos professores/apoiadores, foi proposto uma oficina na qual cada equipe
pensasse na realidade e no fluxo do trabalho da sua Unidade e quais as di-
ficuldades encontradas para se realizar o acolhimento. Assim, cada equipe
discutiu entre seus membros e, coletivamente, decidiram os aspectos da
organização do processo de trabalho de suas Unidades.
Comumente as organizações hierarquicamente rígidas tendem a po-
tencializar o sofrimento de seus membros, pois não reconhecem as inicia-
tivas de adaptação de seus membros hierarquicamente inferiores (Dejours,
2004). O que se observou com a discussão na presença das recepcionistas
é que em todos os níveis da organização havia sofrimento e conflito em
virtude da situação citada anteriormente.
Após algumas semanas, em uma avaliação do curso, uma enfermeira
se manifestou sobre as mudanças ocorridas na Unidade, na mudança da
organização do fluxo de acolhimento e da classificação de risco, além da
satisfação no relacionamento com a profissional da recepção e dela com
os usuários e com os trabalhadores da Unidade. Relata que toda a equipe
se dispôs a trabalhar essa questão. Lá, segundo ela, foram implementadas
estratégias de diálogo com a população, com criação e exposição de carta-

126 • Capítulo 5
zes informativos que explicassem o fluxo de atendimento e os protocolos
adotados, além da inclusão da recepcionista nos diálogos realizados duran-
te as reuniões de equipe, além do entendimento e da adoção de uma nova
postura pelos trabalhadores na percepção do acolhimento. Essa mudança
repercutiu como tema escolhido para o desenvolvimento do trabalho de
conclusão de curso dessa equipe.
A falta de organização e planejamento na instituição e no processo de
trabalho do NASF também foi observada no decorrer do curso. O proces-
so de trabalho das EqSF está diretamente relacionado à articulação dessas
equipes com o NASF, e na época não existia um arranjo institucional que
garantisse uma comunicação clara entre os vários profissionais. Não era
possível a realização de reuniões do NASF com as EqSF, por divergência
das agendas de cada Unidade, o que dificultava o alinhamento da demanda
das Unidades com os profissionais do NASF, além de sobrecarregar esses
trabalhadores, como demonstrado na fala da psicóloga [...] cada dia que
chego numa Unidade, vejo que as listas só aumentam, sinto que não vou dar
conta, e reforçado pela queixa da fisioterapeuta [...] tenho a sensação que
estamos “enxugando gelo”.
Essas limitações pareceram consequentes tanto do desconhecimento
do processo de trabalho do NASF e sua organização pelos profissionais e
pela gestão no momento de instituição dele no município, quanto pela falta
de diálogo entre esses atores.
Tais problemas incidem negativamente no processo de trabalho em
equipe, que é idealizado para o trabalho na ESF. As dificuldades encontra-
das na comunicação com a gestão central e hierarquizada sobre as dificul-
dades encontradas na organização do trabalho impedem a integração e a
cooperação entre trabalhadores e equipes e eles à gestão, seja no comparti-
lhamento de competências, seja na identificação de problemas e na elabo-
ração de soluções (Santos-Filho & Barros, 2009).
Na tentativa de organização do processo de trabalho do NASF e de
articulação dele com as equipes da ESF, foram estabelecidos espaços de dis-
cussão teórica sobre as funções atribuídas aos profissionais dessa equipe.
Discutiram-se conceitos como o Apoio Matricial, a necessidade de apoiar a
inserção da ESF na rede de serviços e ampliar a abrangência, a resolutivida-
de, a territorialização e a regionalização, além de priorizar o atendimento
compartilhado e interdisciplinar com troca de saberes, capacitação e res-
ponsabilidades mútuas (Brasil, 2009; 2012).
Como indicado pelas orientações do Ministério da Saúde (Bra-
sil, 2009a), a organização e o desenvolvimento do processo de trabalho
do NASF dependem de algumas ferramentas como é o caso do Apoio

Mudanças nas relações de poder e processo de trabalho... • 127


­ atricial, da Clínica Ampliada, do Projeto Terapêutico Singular (PTS), do
M
Projeto de Saúde no Território (PST) e a Pactuação do Apoio. Para além de
apresentar e discutir sobre esses recursos para organização do processo de
trabalho, como parte das atividades do curso foi proposta a organização
das agendas das equipes, a fim de que fosse possível a realização e estabe-
lecimento periódico de uma reunião das equipes de ESF com a equipe do
NASF para o gerenciamento e a adequação das necessidades específicas de
cada Unidade. Assim, foi instituído o matriciamento como atividade prin-
cipal do NASF, atividade que, até então, não acontecia no município.
A dificuldade de integração e o trabalho fragmentado das equipes de
ESF e do NASF são reconhecidos como fatores limitantes. Superar esses li-
mites e alcançar uma boa articulação entre as equipes é um grande desafio.
Para Andrade (2006), existe uma carência da articulação do trabalho dos
profissionais do NASF e ESF na APS que segue paralela à falta de conheci-
mento acerca das atribuições do NASF. Tanto pelo relato dos participantes
do curso, observado na fala da fisioterapeuta e da nutricionista do NASF,
sucessivamente — [...] pela primeira vez trabalhei com prevenção. O Curso
ensinou o NASF a trabalhar em grupo e eu vi que é possível; [...] como curso
aprendi a trabalhar em roda e isso me ajudou nas atividades coletivas com
os pacientes —, quanto pela observação dos professores/apoiadores no de-
correr do Curso, a possibilidade de constituição dessas oficinas de trabalho
entre os profissionais de saúde e a gestão foram importantes para a reorga-
nização do processo de trabalho.
Como já indicado anteriormente, o debate sobre a organização do
processo de trabalho e a disponibilidade dos envolvidos possibilitaram o
estabelecimento de reunião quinzenal de todos os profissionais das EqSF,
evento inédito na cultura local e na gestão municipal. Percebeu-se, por
meio dos relatos, que a discussão de casos trazidos pelos profissionais pas-
sou a fazer parte do cotidiano das equipes. Discussões sobre a forma de
apresentação dos casos, ética profissional e necessidade de constituição de
um espaço protegido permeou diversos momentos do curso de formação.
Assim como observado nas relações de trabalho durante o curso,
Cunha & Campos (2010, p. 36) enfatizam que:

O conceito de coprodução ao propor um sujeito, sobtensão de diversas for-


ças, aposta no movimento e na possibilidade de transformação. É por isto
que o Método Paideia, também conhecido como método da roda, sintoni-
za-se com muitas tradições libertárias da educação e da política ao apontar
que: ninguém sai da roda (de Cogestão) da mesma forma que entrou.

128 • Capítulo 5
Percebeu-se que, subsidiados de elementos teóricos, debates e refle-
xões coletivas, se desenvolveu um movimento de empoderamento dos tra-
balhadores que passaram a questionar os processos e a hierarquização do
trabalho, levando muitos deles a se unirem e buscarem dialogar sobre esses
temas com a coordenação e com a gestão.

Considerações finais

As situações observadas durante o Curso e evidenciadas no cenário


de APS de uma pequena cidade do sul de Minas Gerais, que foram trazidas
como exemplos para embasamento das discussões de relações de poder
e da reorganização do processo de trabalho desta pesquisa, poderiam se
fundir para as duas análises, ou seja, tanto os exemplos selecionados para
uma poderiam ser também utilizados para a outra, assim demonstrando
como as relações de poder estão diretamente relacionadas com a discussão
dos processos de trabalho. Além disso, foi possível observar que nos lo-
cais ou nas situações em que se foram permitidas a circulação da fala e da
­escuta, assim como da circulação de poder, a reorganização democrática
dos processos de trabalho também ocorreu. Porém, locais onde o poder era
cristalizado e instituído, onde não se foi permitida a fala, a escuta ou o diá­
logo — na relação das equipes com a administração central — não houve
a possibilidade de reorganização dos processos de trabalho e, também, a
percepção do sofrimento, de desejos e afetos dos trabalhadores.

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132 • Capítulo 5
Parte II
Capítulo 6
O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em
análise: desafios na ampliação da clínica

Felipe Guedes
André Pimenta de Melo
Lilian Soares Vidal Terra

S ão muitos os estudos que apontam a importância de uma Atenção Pri-


mária à Saúde (APS) forte na resolução de uma ampla gama de proble-
mas de saúde. Alguns deles mencionam que a APS poderia encarregar-se
de cerca de 80% dos problemas de saúde de uma população em determi-
nado território (WHO, 1978). O alcance de tal cobertura demanda, sem
dúvidas, uma visão ampliada sobre os diversos determinantes do processo
saúde-doença-cuidado (Almeida Filho, 2011), além de um amplo repertó-
rio dos profissionais que atuam nesse contexto. Os problemas encontrados,
na maior parte das vezes, são de naturezas diferentes e muitas vezes deman-
dam respostas a partir de paradigmas distintos daqueles em que os profis-
sionais foram formados ou com os quais possuem alguma familiaridade. 

O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise... • 135


Violência sexual, dores de garganta, uso abusivo de substâncias, arbo-
viroses, negligência a idosos, hipertensão e diabetes — essa poderia ser uma
pequena lista dos problemas escutados na sala de acolhimento de uma Uni-
dade Básica de Saúde (UBS) em apenas uma única manhã. A diver­sidade
de questões é uma marca cotidiana do trabalho na APS (Brasil, 2013), em-
bora a disponibilidade e a preparação dos profissionais para responder a
elas sejam muito variáveis. Algumas demandas, por exemplo, respondem
bem a protocolos preestabelecidos e exigem a aplicação de condutas quase
completamente técnicas. Contudo, problemas como esses correspondem
a apenas uma parte daqueles atendidos por profissionais da APS, seja no
acolhimento, nas consultas agendadas ou nas visitas domiciliares; uma par-
cela significativa dos usuários demanda atendimentos que exigem respos-
tas complexas e a operação com elementos que não permitem condutas
antecipadas, exigindo sempre arranjos singulares (Santos & Penna, 2013). 
Desta forma, contrariamente ao que ainda por vezes habita o imagi-
nário social, a APS não se caracteriza por um lugar dirigido para a resolu-
ção de problemas simples, supostamente menos complexos do que aque-
les atendidos nos pontos especializados da rede de saúde (Campos et al.,
2013). A complexidade do trabalho da APS é de outra ordem, diferente
daquela vista em instrumentos tecnológicos requintados e hiperespeciali-
zações hospitalares. Uma complexidade derivada de uma miríade de ele-
mentos diferentes, como: seu local na rede como principal porta de entrada
e ordenadora do cuidado; sua proximidade e inserção no território, bem
como nas redes familiares e sociais dos usuários; e a heterogeneidade das
problemáticas de saúde e tipos de intervenção que compõem o cotidiano
de trabalho nessas Unidades. Soma-se a isso a necessidade de um trabalho
longitudinal, que busca construir vínculos duradouros entre a equipe e a
população acompanhada, buscando o tratamento, a prevenção, reabilitação
e promoção à saúde (Andrade, Barreto & Bezerra, 2006). 
Entre os muitos recortes possíveis dessa diversidade, buscamos re-
fletir acerca de como os modos de ser e as configurações socioculturais,
políticas e subjetivas compõem o trabalho em saúde na APS, dimensões
que escapam ao campo biológico e biomédico, no qual os trabalhadores,
na maioria das vezes, foram formados. Assim, neste capítulo discutimos
elementos que demonstram a pertinência de uma abordagem complexa
cotidianamente, tanto no manejo dos casos quanto dos problemas no terri-
tório, tentando problematizá-los a partir dos limites e das implicações dos
profissionais. Propomo-nos também a pensar algumas das especificidades
do trabalho nesse nível de atenção, bem como problematizar as possibili-

136 • Capítulo 6
dades de ampliação da clínica e da atuação a partir das configurações do
processo de trabalho. 
Isso posto, adentrar à complexa, e por vezes tortuosa, trama de sen-
tidos que compõe as redes de relações intersubjetivas exige uma mudança
de olhar e de posicionamento epistemológico. Demanda uma compreen-
são diferente daquela fornecida pelo arcabouço utilizado pelo paradigma
biomédico e pelas ciências naturais (Figueiredo & Furlan, 2008), seja em
função da dimensão temporal e histórica que compõe a existência humana
(Heidegger, 1995), seja pela ambiguidade e mutabilidade própria de nossos
desejos, vontades e projetos (Merleau Ponty, 1994). Isso é, a existência é
atravessada por elementos contraditórios que requerem pensar o humano
para além da figura do sujeito universal, autônomo e racional da moderni-
dade, reconhecendo que não somos nem tão universais, já que não com-
partilhamos de uma natureza essencial e possuímos diferenças de várias
ordens que são irredutíveis (de cultura, classe, raça, gênero e sexualidade);
nem somos tão autônomos, pois não estamos em pleno controle de nós
mesmo; nem racionais, uma vez que existem sentidos e motivos que nos
atravessam e nos escapam ao entendimento. Dessa forma, ao adentrar o
campo de sentidos e significados que compõem a vida humana, é preciso
uma atenta precaução, uma vez que estamos lidando com fenômenos que
não são plenamente claros e explícitos. Fenômenos, portanto, que reque-
rem outro modo de posicionamento, longe de qualquer fantasia de onipo-
tência e onisciência, e que produzem repercussões importantes quando o
cuidado à saúde é o que está em jogo.
A formação hegemônica dos profissionais de saúde dá pouca margem
para essas dimensões, muitas vezes relegando-as à condição de não cientí-
ficas. Para um paradigma voltado para a formulação de generalidade, que
busca o máximo de controle e previsão, a dimensão da singularidade pode
parecer não científica, uma vez que não é passível de reprodução. Como foi
analisado por Foucault (2011), segundo essa lógica ‘‘quem desejar conhe-
cer a doença deve subtrair o indivíduo com suas qualidades singulares; se
o curso da doença não é interrompido ou perturbado pelo doente, as leis
imutáveis que o determinam podem ser rapidamente descobertas’’ (Fou-
cault, 2011, p. 14).
Todavia, nos contextos reais de práticas, prescindir de lidar com as
dimensões não biológicas dos sujeitos, sejam eles os trabalhadores ou os
usuários, é virtualmente impossível. Menezes (2000), em pesquisa etno-
gráfica em um Centro de Tratamento Intensivo, aponta que mesmo nesse
­ambiente, onde há uma predominância de “recursos tecnológicos de ponta”

O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise... • 137


e não é incomum o atendimento a pacientes incomunicáveis (pacientes en-
tubados, por exemplo), a subjetividade dos profissionais comparece à cena,
dando provas de que, mesmo em contextos altamente especializados, não
há como negá-la. Nessa pesquisa, isso se exemplifica a partir da classifica-
ção dos pacientes pelos profissionais, permeada por referências sociais, etá-
rias e morais. Embora se trate de um contexto de trabalho diametralmente
oposto ao da APS, os achados da autora são importantes para desconstruir
as pretensões de objetividade do trabalho em saúde, mesmo em contextos
de quase isolamento dos profissionais no interior do hospital e de pouca
interação com os pacientes.
E se mesmo no ambiente hospitalar essa objetividade é questionável,
na proximidade radical da APS estamos lidando com uma enorme comple-
xidade, sempre com o que é singular e se configura de modo peculiar. Por
exemplo, é de fundamental importância a compreensão geral da doença
“X”, sua etiologia, tratamento, prognóstico, seus fatores de risco e proteção.
Porém, a doença “X” sempre se manifestará em um corpo específico, por
exemplo, de Joana, que possui uma determinada biografia, um conjunto
de relações interpessoais e condições sociais e de vida, bem como desejos,
receios e projetos, comportando-se de um modo e não de outro. A abstra-
ção teórica e geral, portanto, sempre chega às portas da Unidade Básica
de Saúde (UBS) segundo uma materialidade de configurações singulares
muito concretas e também originais. E essa originalidade pode ser facil-
mente perdida caso nós nos atentemos exclusivamente àquilo que é geral,
que se repete, que pode ser reproduzido em outros contextos. A clínica na
APS (não só nela, mas em especial) nos exige sairmos de um paradigma
focado na doença e sua generalidade para focarmos no sujeito e em sua
singularidade, sem que com isso também nos esqueçamos da doença e de
seus necessários cuidados. Uma proposição, portanto, de outra dialética,
que não se esqueça do sujeito e que considere a doença como parte de sua
existência (Campos, 2002). 
Um trabalho que se pretenda não ter os aspectos biológicos como foco
central também afeta os profissionais de saúde de outros modos. Uma im-
plicação que muitas vezes defronta o profissional com seus valores, crenças,
visão de mundo, noções morais e políticas, convocando-o afetivamente,
por vezes de modo desconfortável, e retirando-o de uma posição pretensa-
mente neutra, objetiva, segura e familiar. Lidar com os aspectos subjetivos,
socioculturais e políticos necessariamente nos desloca e nos põe em jogo
de modo mais visceral como sujeitos, seja por trazer o novo, o contraditó-
rio ou a alteridade. Diferentemente do trabalho com o corpo anatômico e
fisiológico, o trabalho com a subjetividade não consegue ser plenamente

138 • Capítulo 6
protocolizado de modo calculado. Diante da radicalidade de outra exis-
tência, somos convocados a outro tipo de pensar; um pensar ético que se
debruça sobre cada caso, a cada vez, junto a um outro. Um pensamento que
parte de outro paradigma que não aquele da fragmentação e do cálculo aos
quais estamos condicionados pela biomedicina e pelas ciências naturais.
Convocar os trabalhadores a este outro pensar torna-se ainda mais
desafiador quando consideramos o contexto de trabalho na APS brasileira.
Características como separação entre planejamento (a cargo dos gestores e,
algumas vezes, dos trabalhadores de nível superior) e execução (a cargo dos
demais trabalhadores), a constante pressão da demanda em serviços subdi-
mensionados, a gestão dos serviços por meio de metas não pactuadas com
os trabalhadores, entre outras, contribuem para a alienação desse trabalha-
dor, com consequente afastamento do sentido de seu trabalho. São muitos
os estudos que relacionam esse fenômeno com o sofrimento do trabalha-
dor, o apagamento da relação trabalhador-usuário e a piora na qualidade de
cuidado, quer por negação de assistência, fragmentação ou desumanização
(Arsego, 2013; Figueiredo, 2011; Gomes, 2010; Gomes & Schraiber, 2011;
Terra, 2015). Observa-se que o sofrimento infligido ao outro surge da ob-
jetificação do paciente e de si mesmo em um processo de produção de pro-
cedimentos, e não necessariamente de saúde. Permeado pela racionalidade
neoliberal, o trabalhador coisificado, tomado como “recurso humano”, tal
e qual os recursos materiais, tende a reduzir à dimensão técnica todas as
relações, tornando-se incapaz de lidar com a subjetividade do outro — seja
esse outro o colega de trabalho, o gestor ou o paciente. 
Soma-se a isso a problemática da reificação na saúde. Terra (2015)
observa que, 

em uma sociedade cujos valores hegemônicos são consumismo e indi-


vidualismo, saúde também passa a ser vista como um bem de consumo,
significando ausência de dor e sofrimento, busca inesgotável do prazer e
construção de um padrão estético de beleza via procedimentos médicos.
E na medida em que se busca nos serviços de saúde ajuda para suportar a
vida, os recursos médicos se apresentam como reprodutores importantes
de dinâmicas reificantes e alienantes (Terra, 2015, p. 74).

Decorre dessa dinâmica a prática do bem comum dos usuários de


procurarem a Unidade de Saúde como quem procura por uma “merca-
doria”: a receita, o exame, o procedimento, sem compreender a constru-
ção que existe, ou deve existir, por detrás dessa mercadoria: uma escuta
­qualificada, o aprofundamento do conhecimento acerca da vida do usuário,

O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise... • 139


o raciocínio clínico, o diagnóstico. Absorvido por essa demanda, porém, o
próprio profissional de saúde passa a compreender o trabalho em saúde
como relação de trocas, e acaba dedicando mais tempo da consulta a preen­
cher papéis que respondam a esse anseio do usuário do que traduzindo a
demanda recebida. O resultado disso é uma reificação e um empobreci-
mento na relação entre usuários e trabalhadores que passam a se guiar por
um restrito horizonte de procedimentos mensuráveis, de mercadorias de
saúde, aproximando os usuários de um papel de consumidores de produtos
e os trabalhadores de seus fornecedores. Por conseguinte, o imaginário e a
lógica do mercado, que há muito já se alastram por todas as dimensões da
vida nas sociedades industriais modernas, também invade o cotidiano das
Unidades Básicas, reproduzindo suas formas de relação. 
Esta formatação do trabalho em saúde como uma troca de mercado-
rias tem sido observada, como mencionado anteriormente, desde a for-
mação dos profissionais, em que se favorece o saber técnico prejudicando
o aprendizado crítico. Discute-se que os aspectos biológicos e o desenvol-
vimento técnico-científico são privilegiados nos currículos em detrimento
das questões de ordem social, política e ética (Albuquerque & Giffin, 2008;
Sousa, 1994; Zerbetto & Pereira, 2009). Resulta uma excessiva especializa-
ção técnica de trabalhadores com baixa capacidade de reflexão sobre a prá-
tica profissional e pouca capacidade de defesa diante do processo de aliena-
ção e de transformação do próprio trabalho. No caso dos profissionais da
equipe mínima — médico, enfermeiro, técnico de enfermagem — o prin-
cipal cenário de formação ainda é o hospital, cuja lógica de funcionamento
privilegia o tratamento medicamentoso; há grande influência do complexo
médico-industrial; e os casos estudados apresentam uma complexidade or-
gânica que raramente será vista no dia a dia da profissão, deixando outros
elementos igualmente importantes de lado. Nesse cenário de prática, falta
formação social, sobrevalorizando-se a técnica, e há baixa carga horária de
estudo e falta de treinamento quer seja para lidar com a subjetividade dos
pacientes, quer seja para vê-los de forma holística (Gomes, 2010). 
Resulta que o paradigma biomédico, ao estimular uma formação
tecnicista, baseada na fragmentação do processo de trabalho, na lógica
das ­especializações e em uma concepção de saúde focada na doença e na
­realização de procedimentos, tanto cirúrgicos quanto medicamentosos,
favorece uma lógica de mercantilização da saúde, arrefecendo sua dimen-
são social e política. Esse estreitamento do horizonte do trabalho em saú-
de dificulta a construção de espaços, seja na formação, na clínica ou na
gestãode ambientes reflexivos e críticos, pautados na construção democrá­
tica ­coletiva, que reconheçam a complexidade que constitui a produção de

140 • Capítulo 6
s­ aúde. Uma saúde é claro, que não se paute apenas no “silêncio dos órgãos”,
mas na produção de vida em sua alteridade, mutabilidade e, por que não,
emancipação. Uma saúde, portanto, que não se confunde com um ideal
padronizado e normativo de uma determinada forma e estilo de vida vin-
culada a uma classe, a um gênero, a uma raça ou a uma sexualidade, que se
resumiria à produção de corpos dóceis e úteis.
Como então convocar este trabalhador a abandonar “o preto e bran-
co” do paradigma biomédico e adentrar a zona cinzenta de um trabalho
com tamanha complexidade? Como convocar essa mudança de postura e
pensamento? Considerando as muitas variáveis que com grande força ope-
ram um movimento contrário a essa transformação — como dito, desde
o paradigma científico hegemônico em que estamos inseridos à invasão e
perpetuação da lógica de mercado para todas as dimensões da vida, até as
muitas vezes precárias, ou ao menos difíceis, condições de trabalho —, não
é raro que os trabalhadores sintam sua existência capturada pela rotina de
alienação e pressão. 
É preciso reconhecer, no entanto, os movimentos que escapam a essa
captura, que permitem a construção de condições de emancipação e trans-
formação do funcionamento subjetivo e das relações sociais, seja na clínica,
na gestão ou na política como um todo. Sem negar o contexto, é preci-
so admitir certo espaço, mesmo que reduzido e constrangido, de agência
dos sujeitos (a partir de um mundo e de uma história), sejam coletivos
ou individuais. Em outras palavras, precisamos aprender a andar no fio de
uma navalha, não caindo de um lado em uma defesa de um sujeito onipo-
tente, desvinculado de condições históricas, econômicas, sociais, culturais
e simbólicas, que assumiria uma versão moderna do conto do Barão de
­Munchausen, nem mesmo caindo em outro, que anunciaria a morte do
sujeito, mero espelho e consequência de suas condições. Nem um existen-
cialismo ingênuo e nem um estruturalismo fatalista. A condição singular
da transformação é uma dialética entre o peculiar e o universal em que
nenhum dos polos pode ser anulado ou reificado, necessitando ser com-
preendido em seu movimento contraditório. Uma análise, portanto, dos
sujeitos e dos coletivos em situação, considerando suas restrições e suas
possibilidades específicas.
Ademais, mesmo que o “canto das sereias” do paradigma biomédico
seja muito sedutor, prometendo um saber geral e protocolar, ele não dá
conta de tudo que bate às portas de um Centro de Saúde ou UBS. Caso os
profissionais ou gestores optem por ignorar seus limites, correm o risco
de fechar os olhos para a complexidade da realidade que lhes escapa, o
que não é sem consequências. Isto é, os profissionais de saúde, mesmo que

O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise... • 141


queiram, não podem se dar ao luxo de ignorar a realidade, de não querer
saber disso, sob o risco de, ao tomarem tal atitude, estarem sujeitos a um
retorno dos elementos ignorados sob outras formas. É preciso reconhecer
que a sedutora promessa de uma solução simples e reconfortante da técnica
moderna, em sua certeza e segurança onipotentes, é insuficiente para lidar
com as emaranhadas e, por vezes, confusas relações humanas cotidianas.
Em suma, podemos afirmar que para que o cuidado realmente se
produza, faz-se necessária uma singularização de cada caso, dada a ori-
ginalidade da existência de cada ser humano, de como ele experiencia a
vida. Exige, ainda, despirmo-nos de nossos valores para aceitar a demanda
do outro como ela nos é apresentada. Ou, se não é possível nos despir, to-
mar consciência de nossos julgamentos, valores e crenças, aceitando que
o ­outro terá outros valores, e que é a partir deles, e não daqueles, que o
cuidado se constrói. Isso exige, portanto, um trabalho sobre si de exame e
reflexão constante, colocando-se em questão. Porém, como visto ao longo
da experiência que inspira este livro e discutido anteriormente, a estrutura-
ção rígida do caráter e do modo de ser, bem como a alienação do trabalho
e a reificação da saúde, além da lacuna na formação, dificultam o emergir
desse outro pensar, dessa outra ética de trabalho. 
No decorrer do curso percebemos que muitos dos entraves trazidos
nos casos discutidos estavam, não raramente, ligados a um horizonte de
compreensão e intervenção em saúde muito atrelado aos paradigmas na-
turalistas tratados até aqui. Isto é, as dificuldades que os profissionais en-
contravam em seu dia a dia muito pouco estava relacionada à busca de um
protocolo mais moderno de medicação ou a um procedimento técnico ou
a qualquer outro saber que poderia ser rapidamente descoberto em uma
pesquisa na literatura. Suas dificuldades, em muitos casos, estavam mais
vinculadas às relações intersubjetivas com os usuários, com a gestão, com o
território e com a transformação de situações complexas em saúde que re-
querem a composição de saberes diversos. Portanto, partindo das reflexões
feitas até aqui e a fim de pensarmos alternativas para qualificar o cuidado
longitudinal na APS a partir do que presenciamos ao longo do curso, ana-
lisemos alguns dos dilemas cotidianos que transcendem a clínica tradicio-
nal, mais especificamente, o que chamaremos de cronificação do cuidado e
os desafios da territorialidade. 

142 • Capítulo 6
Hiperimplicação, desimplicação e cronificação:
desafios do cuidado

Como observado, a formação biomédica, associada ao cotidiano alie-


nado de trabalho, conduzem a pensar que mais intervenção é sinônimo
sempre de mais saúde, o que na Atenção Primária raramente é verdade,
sobretudo diante de problemas multifatoriais. Construir com os profissio-
nais a possibilidade de esperar para intervir ou mesmo lembrá-los de que
não intervir também pode produzir efeitos é uma tarefa importante na am-
pliação do olhar e da clínica. A “fazeção” e o intervencionismo funcionam,
muitas vezes, como um obstáculo a ações resolutivas e promotoras de auto-
nomia, além de potencialmente provocar danos de forma direta.
Isso frequentemente está atrelado a uma visão do profissional de saú-
de como aquele que resolve um problema, que soluciona uma situação de
sofrimento por meio de um acúmulo de conhecimentos técnicos, proce-
dimentos e protocolos. Em uma analogia, poderíamos compreender essa
situação como se o profissional já possuísse, de antemão, um mapa cogni-
tivo ou manual de instruções que orientasse como proceder em situação x
ou y. Seu trabalho envolveria, então, transmitir essas informações valiosas
para o paciente, que racionalmente deveria obedecê-las. Esse tipo comum
de atuação não raro produz uma situação de verticalização na relação com
o paciente, enfraquecendo sua participação no processo de produção de
saúde, não o implicando em seu cuidado. O profissional, em sua ‘‘fazeção’’,
pode se furtar a uma boa chance de problematizar com o usuário a situação
de saúde em que ele se encontra, utilizando os próprios conhecimentos ou
discutindo sua responsabilização quanto ao seu modo de vida. Isso envolve
sair de uma posição de saber para uma de problematização conjunta, por
meio de outro modo de escuta e análise, convocando o outro e a si mesmo
a uma reflexão. Além disso, essa lógica da ‘‘fazeção’’ precisa ser compre-
endida diante do lugar que a APS ocupa na rede e de seu outro tempo de
produção de saúde.
A ideia de ser uma “porta-aberta” do Sistema de Saúde é uma das
características mais valorizadas em uma APS forte. No entanto, ela pode,
mesmo sem perceber, conduzir os profissionais a reproduzir a lógica dos
serviços de urgência. Muitas vezes os trabalhadores colocam-se no lugar
de “socorristas” e consideram que precisam responder rápido às demandas
que chegam a fim de salvar a vida das pessoas que acompanham. Ainda que
para algumas situações a rapidez na resposta seja determinante, isso não é
verdade para o conjunto dos casos mais prevalentes na APS. No e­ ntanto,

O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise... • 143


diante de situações graves e complexas, a não resposta imediata acaba cau-
sando angústia nos profissionais, que formados no ambiente hospitalar
para intervir sempre e precocemente costuma ser encarada como negligên-
cia e falta de cuidado…, mas será que isso serve para todos os casos?
As respostas rápidas dadas pelos profissionais de saúde normalmente
são respostas prontas e que boa parte dos pacientes, principalmente aqueles
acompanhados pela Unidade há algum tempo, já conhecem. Diante de exa-
mes alterados de pacientes com doenças crônicas, por exemplo, não é inco-
mum que a primeira resposta dos profissionais seja explicar sobre os riscos
da doença, os impactos que tais alterações podem acarretar e o que deve
ser feito para evitá-los; resta pouco espaço para a compreensão do lugar da
doença na vida de cada paciente e para a invenção de novos olhares e novos
acordos sobre o cuidado de si. Assim, cronicidade vai virando sinônimo de
repetição e apatia; um problema a se arrastar no tempo, sem espaço para
novos posicionamentos nem pelos usuários, nem pelos profissionais. 
O tratamento das doenças crônicas, sobretudo hipertensão e diabetes,
é uma das prioridades das Unidades Básicas de Saúde. Juntamente com a
atenção às crianças e gestantes, a atenção aos doentes crônicos é uma das
marcas no trabalho cotidiano dos profissionais da APS e ocupa boa parte
das agendas e das intervenções operadas pelas Unidades. Essa centralidade
da atenção aos crônicos nos remete a Bleger (1989), que ao propor uma
análise das instituições, afirma que “as instituições tendem a adotar a mes-
ma estrutura dos problemas que têm que tratar” (p. 62) e, embora seja uma
observação genérica, leva-nos a pensar de imediato na cronificação dos
modos de atenção produzida na APS, nos modos de funcionar dos serviços
e na atuação dos próprios profissionais.
Para maior compreensão, cabe-nos remeter, como exemplo, a um
dos casos discutidos no curso. Trata-se de um casal de irmãos, idosos, de
ascendência asiática, que moravam juntos. Não tinham nenhum familiar
ou amigo que os ajudasse em seu cuidado, e na medida que iam envelhe-
cendo, passaram a preocupar a equipe, que temia que sua capacidade de
autocuidado e de cuidado um do outro fossem insuficientes e inadequadas.
Ademais, seus ‘‘exóticos’’ hábitos alimentares muito chocavam a equipe.
Assim, em diversas reuniões, ao longo de um tempo, a equipe discutiu um
Projeto Terapêutico para os irmãos, e concluiu que o melhor a ser feito se-
ria interná-los em uma instituição de cuidado de idosos. Como há falta de
leitos com essa finalidade no município em questão, a equipe ficou muito
satisfeita quando, depois de muito esforço, se conseguiu vaga em um abrigo
para os dois idosos. A equipe, com apoio de profissionais do serviço social,
conseguiu visitar o local indicado. Logo em seguida, quando a instituição

144 • Capítulo 6
resolveu aceitá-los, os profissionais foram comunicar os pacientes. Porém,
os idosos não quiseram deixar sua casa, vendo pouco sentido na mudança
proposta e preferiram continuar morando juntos, mesmo com as dificul-
dades, em vez de se separarem e renunciarem à sua privacidade indo para
a casa de repouso. Isso deixou a equipe muito frustrada, até mesmo enrai-
vecida, e muito tempo foi gasto tentando convencer os irmãos a aceitar a
solução dada, até finalmente desistirem. Foi somente ao longo da discussão
do caso no Curso que a equipe percebeu que, em sua “fazeção”, em nenhum
momento da construção do Projeto Terapêutico haviam perguntado aos
idosos como eles gostariam de articular seu cuidado. No afã de solucionar
o problema, a equipe atuou como se saúde e a integridade física devessem
ser preservadas acima até mesmo da vontade dos sujeitos em questão, que
consideravam, por sua vez, outros valores como mais importantes: privaci-
dade, autonomia, afeto um pelo outro. 
Esse exemplo demonstra como existiam muitos outros elementos em
jogo, não vistos em um primeiro olhar pela equipe que, com as melhores
intenções, pensava em uma solução prática para um problema de moradia.
Todavia, a perspectiva e vivência do casal em relação a esse problema era
muito distinta daquela dos profissionais. Sem analisar o projeto de vida e
a cultura em que o casal estava inserido, seus hábitos alimentares e dese-
jos poderiam ser vistos como inadequados, entraves ao cuidado, levando à
conclusão de que a única solução aceitável seria mudá-los, convencendo-os
a concordar com a proposta elaborada pela equipe, o que a levou a assumir
uma postura de convencimento dos usuários sobre sua visão e ideias. Con-
tudo, essa forma de atuar da equipe, ainda quando o casal tenha aceitado
visitar casas de repouso para idosos, não estimulou nem a equipe, nem o
casal a analisar os valores que orientavam suas ações, refletindo sobre o que
era buscado por cada um dos lados e o que fazia sentido, enfim, para os su-
jeitos envolvidos nesse cuidado. Nesse caso específico, a “hiper implicação”
os impediu de ver com maior clareza quem estava do outro lado. 
O termo “hiper implicação”, aqui cunhado por nós, busca descrever
um movimento dos profissionais de se implicarem com a resolução de
uma situação a tal ponto de desconsiderarem o que acontece na situação
propriamente dita, em nome da tentativa de resolver os problemas sem
considerar os sujeitos. Esse movimento seria oposto ao da desimplicação,
da indiferença, mas corre o risco de produzir resultados parecidos ao des-
considerarem os sujeitos que aos quais buscam cuidar. Embora possa se
encontrar alguma familiaridade, a “hiperimplicação” não se confunde com
os conceitos de implicação ou sobreimplicação, tão caros à Análise Institu-
cional (Monceau, 2008).

O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise... • 145


A abertura de um espaço de reflexão e de revisão do PTS durante o
curso permitiu que a equipe se examinasse e repensasse sua postura, re-
acordando o projeto, agora de outro modo, com os irmãos. Ora, isso en-
volveu tanto uma abertura subjetiva da equipe, que se dispôs a escutar e
avaliar suas atitudes, quanto à construção de arranjos institucionais que
permitiram o acolhimento, a escuta e reflexão coletiva, como foi construí-
do no curso. Ou seja, a solução nesse caso foi um deslocamento na postura
da equipe, que passou a não mais se perceber como detentora da solução
para o problema dos irmãos.
O reconhecimento dos desejos dos usuários não deve levar os profis-
sionais a assumirem uma postura ingênua de aceitação completa e de não
problematização. Entretanto, muitas vezes as equipes partem das posturas
autoritárias apoiadas em uma “hiperimplicação”, sempre com as melhores
intenções, seguindo em um movimento pendular para um polo oposto, se
desimplicando ou deixando muitos casos de lado quando os pacientes pa-
recem não querer seguir à risca as recomendações. Uma alternativa sempre
possível é criar um espaço de negociação em que os usuários possam ser
ouvidos e, mesmo que não queiram seguir todas as recomendações, não
sejam abandonados à própria sorte. Reconhecer que os usuários possuem
desejos que muitas vezes não tem uma lógica racional aparente não deve
significar uma submissão dos profissionais a eles, mas pode ser um ponto
de partida para se negociar alternativas intermediárias de cuidado. 
Como antídoto a este tipo de postura autoritária pelas equipes, que
pode produzir uma cronificação da atenção e dos serviços, podemos pro-
por uma postura investigativa pelos profissionais. A noção de investigação
aqui remete a pelo menos dois campos: o primeiro, ligado à abertura para
a singularidade de cada caso e atendimento; e o segundo, ligado à possi-
bilidade de os profissionais transformarem o seu cotidiano em objeto de
produção de conhecimento. Essas duas noções nem sempre aparecem jun-
tas nas propostas de formação e educação permanente dos trabalhadores.
No entanto, entendemos que elas podem se nutrir mutuamente. Alimentar
a curiosidade dos profissionais, estimular novos olhares sobre problemas
antigos, enriquecer as ferramentas e abordagens utilizadas não são acon-
tecimentos simples, mas podem ser objetivos de uma formação que tra-
ga repercussões diretas sobre a clínica cotidiana. Parte-se da premissa de
que estimular espaços em que os profissionais se coloquem como autores,
ouvindo o saber que constroem cotidianamente nos serviços, podem pro-
duzir efeitos na capacidade de escutar e acolher melhor a singularidade de
cada usuário. 

146 • Capítulo 6
Todavia, não nos parece suficiente promover reuniões de equipe, que
somente reiteram o mesmo modo cronificado de funcionar, ou ofertar leitu-
ras de forma descontextualizada. De fato, no decorrer da nossa experiên­cia
durante o Curso, uma queixa constante dos profissionais era de um suposto
distanciamento entre os artigos científicos e textos trabalhados (muitos de-
les diretrizes sobre o funcionamento da Atenção Primária, a exemplo dos
Cadernos de Atenção Básica do Ministério da Saúde) da prática cotidiana
exercida por eles. As visões sobre essa distância, porém, não eram unâni-
mes. Para parcela significativa dos profissionais, ela simbolizava um déficit
em sua forma de atuação, o que fazia que lamentassem que, na prática,
não acontecia como deveria acontecer. Ou seja, os profissionais tomavam
os textos como recomendações diante das quais estavam sempre em dé-
bito. Por esse motivo, grande parte do trabalho desenvolvido ao longo do
curso objetivou propiciar espaços de reflexão para que essa distância fosse
tomada não apenas como uma dificuldade individual, mas também como
uma lacuna nos conhecimentos produzidos pela academia, dentre os quais
ressaltamos a falta de espaços reflexivos ao longo da formação em saúde,
que resulta em um distanciamento entre o aprender, o fazer e o pensar. Tal
lacuna dificulta o desenvolvimento da práxis, essencial para um bom traba-
lho em saúde, e privilegia uma técnica irrefletida e generalizante.
A necessidade de invenção e o reconhecimento de que o trabalho em
saúde não está nunca pronto podem levar os profissionais a experimenta-
rem sensação de impotência, por considerar não possuírem o conhecimen-
to que solucionaria todas as demandas de seu trabalho. Afinal, isso envolve
confrontar constantemente os limites de nossos saberes, do que consegui-
mos fazer. É preciso reconhecer que, de fato, lidar com estas constantes
lacunas exige um esforço de múltiplas ordens, podendo ser desconfortável
e angustiante. Esse trabalho afetivo e intelectual de análise de si, dos outros
e das instituições não é simples e requer investimento. Um investimento
que por vezes pode ser oneroso e envolve um risco. 
Um exemplo hipotético pode ajudar a dar concretude a essa discus-
são. Imaginemos que um agente comunitário esteja acompanhando uma
família que há muitas gerações reproduz um padrão de violência verbal
e física em seus relacionamentos interpessoais e afetivos. Essa família se
encontra em uma situação de vulnerabilidade, com condições de moradia
precárias e insalubres, dificuldades de trabalho e renda, sobrevivendo se-
gundo vínculos informais e frágeis. Há anos o agente tenta construir um
vínculo com a família, que inicialmente lhe tratava com desconfiança e
até hostilidade. Insistentemente, ele mantém as visitas, mesmo que muitas

O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise... • 147


v­ ezes elas não se desdobram em outras ações de saúde. Não é estranho de
se imaginar que em algum momento o agente se canse ou desacredite que
algo ali possa mudar. Não é incomum que ele sucumba a um fatalismo e
gradualmente desinvista afetivamente daquela família. Dessa forma, dife-
rentemente da equipe “hiperimplicada” do exemplo anterior, não seja raro
encontrarmos mais equipes cansadas, deprimidas e desinvestidas em seu
trabalho, que, sem esperança, se limitam a tocar burocraticamente seu dia
a dia. Perante os últimos acontecimentos políticos, que buscam desman-
char violentamente as conquistas de direitos garantidos nas últimas déca-
das, essa postura melancólica tem se proliferado, nostálgica de uma época
talvez mais esperançosa quando era possível fazer e sonhar mais. 
Não podemos incorrer no erro de julgar moralmente as equipes,
como se tal desinvestimento fosse meramente desinteresse e apatia dian-
te do sofrimento de seus usuários, embora isso até possa ser verdade em
alguns momentos. Ao contrário, é preciso compreender essa atitude como
sinal de “adoecimento” e defesa. Uma defesa que visa a proteger a equipe
de se decepcionar com os casos que se desenvolvem de forma diversa do
que gostariam, de “quebrar a cara novamente”, de ter que se deparar outra
vez com a inesgotável necessidade de inventar seu trabalho. De todo modo,
por mais que seja compreensível tal atitude defensiva, ela não deve ser só
acolhida de forma condescendente, de modo que desimplique os traba-
lhadores. Se a culpabilização é uma saída indesejada, a “melancolização”
é igualmente improdutiva e não constitui um caminho de transformação.
Dessa forma, a desimplicação e o fatalismo precisam ser acolhidos, permi-
tindo a elaboração desse sofrimento, mas encontrando vias de responsabi-
lização individual e coletiva para a mudança das dificuldades encontradas.
Este trabalho com os profissionais envolve, enfim, conquistar uma
nova abertura para a singularidade, em ver novas cores no cotidiano, que
pode ser potencializado, como dissemos, por uma postura investigativa,
que nutra a curiosidade pela peculiaridade de cada caso em cada momento,
atentos não só àquilo que se repete, mas ao que em cada vez se diferencia,
visando a diminuir a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real.
Na APS, isso se dá em outra lógica de tempo e espaço, mais alongado e pró-
ximo, respectivamente, inversos da urgência hospitalar, em sua necessida-
de de respostas rápidas e precisas, longe do território de vida e existência da
população. Essa outra lógica possui outros desafios e riscos, dentre eles de
uma cronificação do cuidado, seja pela via da “hiperimplicação” irrefletida
ou pela via da desimplicação fatalista.

148 • Capítulo 6
O território como marca da APS

Comparada a outros contextos de atuação, a APS é seguidamente re-


conhecida pela sua proximidade com o território onde os usuários habitam
e/ou trabalham. A atenção a um território com uma população adscrita é
um dos princípios que organizam o cuidado prestado pelos serviços e suas
vantagens são amplamente reconhecidas: organização de ofertas direciona-
das às doenças e aos agravos mais prevalentes no local; a atuação conjunta
com outros equipamentos e serviços (sejam ou não de saúde) presentes
no território; uma prática que busca ampliar a participação da comunida-
de nas instâncias de controle social e no enfrentamento dos problemas de
saúde etc. 
Em grande medida, é a proximidade com o território, tomado não só
como campo, mas também como objeto de intervenção, que amplia a gama
de problemas e ações sobre as quais a APS pode intervir. No entanto, pouco
se discute acerca dos efeitos dessa forte inserção no território sobre os pro-
fissionais, tanto naquilo que se lhes impõe do ponto de vista pessoal quanto
na maneira como impacta na organização dos seus processos de trabalho.
Avaliamos, portanto, que falta um reconhecimento maior de certos desa-
fios específicos da APS, em especial quando pensamos as dimensões subje-
tivas e socioculturais implicadas. 
A importância do trabalho no território é ressaltada pela proximidade
que guarda com a vida dos usuários, o que inclui a possibilidade de inter-
vir sobre suas mais variadas dimensões. Ela possibilita que os profissionais
acessem diversos aspectos da vida dos usuários que não seriam possíveis
acessar em outros contextos, agregando uma complexidade importante ao
seu trabalho. Embora em alguns momentos tal complexidade possa ser vi-
venciada como desafiadora e fonte de novas invenções, em outros, é motivo
de angústia para os profissionais, assustados diante da responsabilidade por
lidar com os mais diversos aspectos da vida de seus pacientes. Isso apareceu
em alguns momentos do Curso como, por exemplo, quando se discutiu o
trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde, e como eles eram afetados
pelo convívio constante com vivências e valores muito diferentes, por vezes
até conflitantes, dos seus. Também quando se discutiu a visita domiciliar, e
alguns profissionais disseram que não gostavam de fazer visitas, pois eram
confrontados com a pobreza e a vulnerabilidade de alguns usuários e se
sentiam impotentes.
Em mais de uma ocasião os profissionais reportavam uma diferença
entre o trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde dos demais membros

O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise... • 149


da equipe, sobretudo os de formação universitária. Essa diferença passava
por uma desigualdade de classe social muitas vezes significativa. Assim, o
que para determinados profissionais era uma experiência angustiante de se
defrontar com as mazelas que constituem boa parte das condições de vida
da população brasileira, para outra parte da equipe isso constituía sua vida
diária, não raramente envolvendo pessoas que conheciam pessoalmente e
com as quais nutriam relações de afeto ou desafeto. Em outras palavras, os
profissionais se relacionam com os usuários e com o território de locais so-
ciais e afetivos muito distintos, diferenças que muitas vezes se transforma-
vam em tensão e conflito. Durante as discussões do Curso ocorreram mui-
to episódios em que profissionais de nível superior (e como é curioso os
destinos que esse significante — “superior” — ganha no cotidiano) assumi-
ram uma postura messiânica ou caridosa diante dos casos trazidos, como
daqueles que lecionariam às incultas massas os modos corretos de viver e
os valores dignos de uma comunidade. Como nos alerta Onocko-Campos
(2006), a partir desse tipo de postura, existe o risco de intervenções orto-
pédicas que visam a enxertar valores e estilos de vida, ignorando como as
classes populares inventam estratégias de sobrevivência que deveriam ser
na verdade aprendidas. 
Isso ocorre porque grande parte dos trabalhadores considera que o
usuário é um sujeito passivo na relação paciente-profissional de saúde,
cenário no qual caberia aos profissionais organizar todos os aspectos do
território e da vida das pessoas que possam interferir em suas condições
de saúde. Todavia, além de autoritária e castradora, tal forma de atuação é
virtualmente impraticável, pois os sujeitos possuem autonomia de ação so-
bre suas próprias vidas, cuja complexidade ultrapassa em muito as questões
de saúde. Tal autonomia, longe de ser um problema, deve ser considerada
como uma aliada dos trabalhadores de saúde. 
A esse respeito, Bedrikow & Campos (2015) sugerem que haja um
deslocamento na clínica ampliada da responsabilização do profissional em
relação à doença para uma construção de responsabilização conjunta com
o sujeito e com sua autonomia. Uma responsabilização de outra ordem,
pois não se trata de se ocupar apenas com o objeto doença e com todas as
suas propriedades, mas de se reconhecer que se lida com um sujeito sin-
gular e autônomo, capaz de reflexão e ação. Uma autonomia que se torna
centro da produção de saúde e um de seus principais objetivos, compreen-
dida como “[...] um processo de coconstituição de uma maior capacidade
dos sujeitos compreenderem e agirem sobre si mesmos e sobre o contexto
conforme objetivos democraticamente estabelecidos” (Onocko-Campos &
Campos, 2006).

150 • Capítulo 6
Falar de autonomia é relevante ao abordamos o tema do território
porque estamos falando de um universo em que convivem várias formas
de vida, de compreensões de mundo, de referenciais de família e de tra-
balho que não necessariamente serão idênticos aos da classe média à qual
pertencem muitos profissionais da equipe. Muitos, mas não todos, diga-se
de passagem. Dessa forma é preciso que as intervenções sanitárias não se
tornem instrumentos morais de pregação dos valores, visões e normas de
uma classe sobre a outra em uma espécie de catequese sanitária moderna.
Destacar isso é fundamental, uma vez que muito do trabalho da APS se
direciona para o acompanhamento de questões de saúde crônicas e não
transmissíveis associadas a hábitos e estilos de vida. Isso envolve um risco
muito específico de medicalizarmos hábitos, de patologizarmos formas de
vida, tornando doença ou desvio aquilo que se diferencia do imaginário
de saúde dos profissionais. Nesse sentido, é preciso que nossa noção so-
bre produção de autonomia na saúde também reconheça diferentes graus
de alteridade. Ou seja, que a autonomia não se resuma à autonomia do
­usuário escolher aquilo que o profissional quer, sem que, ao mesmo tempo,
caiamos na complacência e na condescendência daquilo que não deve ser
tolerado.

Considerações finais 

As reflexões apresentadas aqui buscam detalhar algumas forças em


jogo na consolidação de uma clínica ampliada na APS, embora reconhe-
çamos que os desafios e limitações apontados não estão restritos a esse ce-
nário de atuação, já que afetam o processo de trabalho dos profissionais de
saúde que atuam em outros níveis de atenção, nos mais diversos serviços.
Conciliar as abordagens que levem em consideração os aspectos subjetivos
e sociais, sem deixar de lado os aspectos biológicos, é um desafio que está
posto no cotidiano dos profissionais de saúde que buscam ampliar a sua
clínica cada vez mais. Essas propostas de ampliação devem se nutrir do
trabalho multiprofissional e intersetorial como meios importantes para a
sua efetivação.
Embora o trabalho na APS brasileira possa ser reconhecido também
como altamente burocratizado, em que “os protocolos padronizados, a ló-
gica de produção por procedimentos/atendimentos e a agenda orientada
para programas nacionais” (Santos et al., 2018, p. 83) limitam a capacida-
de criativa dos trabalhadores, aqui se buscou analisar os principais desa-
fios para a superação dessa lógica, sublinhando a relevância dos aspectos

O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise... • 151


“­não-técnicos” do trabalho e as consequências da incorporação de uma
abordagem ampliada do processo saúde-doença-cuidado. 
As considerações aos aspectos subjetivos e sociais são uma oportuni-
dade para os profissionais reconsiderarem os limites das abordagens cen-
tradas na técnica e em um fazer protocolar, já que esses aspectos tendem
sempre a apontar para a singularidade envolvida em cada caso. A atenção
aos aspectos subjetivos, por si só, não garante uma ampliação da clínica
ou uma abordagem que leve em consideração a autonomia dos usuários;
as abordagens instrumentais dos aspectos subjetivos ainda são frequen-
tes na APS e muitos profissionais só os consideram para que tais aspectos
não “atrapalhem” no tratamento. Dessa forma é preciso reconhecer, como
aponta Ayres (2004), que existe uma dimensão do trabalho em saúde que
não será solucionada pela técnica, mas por uma sabedoria prática (phróne-
sis). Isto é, por um conhecimento que reconheça a dimensão existencial das
práticas de saúde e os sentidos que elas ganham na vida de cada usuário e
trabalhador, acolhendo-os como centrais para produção de saúde. 
A diversidade de demandas atendidas pelos profissionais e a proxi-
midade com o território abrem possibilidades para uma atuação que não
se detenha apenas nos aspectos biológicos, mas que levem em conta outros
elementos, tais como os subjetivos e sociais. Contudo, apenas isso não ga-
rante uma abordagem ampliada e, na mesma medida que adiciona novas
possibilidades, também apresenta outros desafios, que envolvem as formas
de organização do processo de trabalho e a formação e postura dos pro-
fissionais diante dos diversos problemas; a “fazeção”, a “hiperimplicação”
e a desimplicação aqui abordadas podem atuar como defesas diante das
angústias suscitadas pelas frequentes questões para as quais os profissionais
não possuem uma resposta a priori. 

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O cotdiano da Atenção Primária à Saúde em análise... • 153


Capítulo 7
Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde:
o método deliberativo como dispositivo de
educação permanente

Daniele Pompei Sacardo

A discussão acerca da Ética tem sido objeto de vários debates e traba-


lhos, visto que a realidade complexa na qual vivemos se estrutura na
interação e disputa entre diversos valores — culturais, científicos, religiosos
— que demandam discussões interdisciplinares de questões e problemas
concretos no campo da saúde.
O reducionismo da compreensão do processo saúde/doença decorre
dos pressupostos do método científico adotado na clínica e na epidemiolo-
gia em consequência da primeira ruptura epistemológica. A saúde coletiva
se propõe como superação desse reducionismo e reintroduz a perspectiva
complexa da subjetividade e do contexto sociocultural na interpretação dos
fenômenos da saúde, da doença e do cuidado. A epidemiologia complexa
de Almeida Filho (2006) e a clínica ampliada de Campos (2000) e Cunha

154 • Capítulo 7
(2005) são intentos, na linha hermenêutica, que reconciliam a clínica com
o subjetivo e o social na produção de saúde.
Desde os anos 1980, têm se ampliado as pesquisas dedicadas à arti-
culação entre Ética e Saúde, a partir de movimentos diversos que denun-
ciavam práticas de desrespeito à dignidade e aos direitos humanos nas
instituições de assistência à saúde, de condutas cotidianas de violência ins-
titucional e simbólica no âmbito dos serviços de saúde, manifestações da
cultura paternalista e autoritária prevalente entre os profissionais de saúde.
Essas pesquisas têm influenciado sobre o que é priorizado na definição de
políticas de saúde e na alocação de recursos escassos. Todos esses temas
têm suscitado discussões e vêm despertando o interesse da ética por ques-
tões sanitárias (Pessini & Barchifontaine, 1996; Fortes, 1998).
Historicamente foram criados dispositivos como a Ética, a Moral e
o Direito para a manutenção da coesão necessária ao convívio social. Na
sociedade contemporânea, entretanto, coexistem diferentes compreensões
e interpretações sobre princípios e valores éticos, sociais e morais, adver-
tindo para o fato de que a coexistência em um mundo pluralista implica
necessariamente conflitos quando afloram as disputas de cosmovisões e
interesses entre os diversos grupos. O esforço empreendido das sociedades
no caminho da tolerância para com as diferenças está ancorado, portanto,
em princípios e valores éticos cujo objetivo central é respeitar, proteger e
promover a dignidade de todos os seres humanos (Engelhardt Jr., 1998).
La Taille (2010) ressalta que, para compreendermos os comportamen-
tos morais dos indivíduos, precisamos conhecer a perspectiva ética que estes
adotam (p. 106). Tal afirmação pressupõe uma diferença de sentido entre
os conceitos de moral e de ética. Durand (2003) nos esclarece que a Moral é
normativa, enquanto a Ética é reflexiva. A ética leva o indivíduo à reflexão
fundamentada em valores e princípios que orientam suas condutas e to-
madas de decisão, ao passo que a moral se define pela necessidade de insti-
tuir regras de como convivermos uns com os outros. Por sua vez, o Direito
trabalha com uma unicidade, é genérico e, frequentemente, confundido
com lei, que é uma de suas expressões através de códigos — o denomina-
do Direito positivo. Enquanto a moral busca responder às questões o que
devo fazer?, ou como devo agir?, a reflexão ética corresponde ao exercício
de responder às indagações que vida quero viver?, ou quem quero ser?. Há,
portanto, na ética, uma dimensão da construção da identidade, que se rela-
ciona à busca individual do “sentido da vida”.
Ao longo da formação em saúde são apresentados valores, princí-
pios, regras, normas, virtudes e atributos próprios de cada profissão, os
quais vão pouco a pouco sendo internalizados no processo de socialização

Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde... • 155


­ rofissional, compondo e amalgamando o que se denomina de “identidade
p
profissional” (Sandars, 2009). Tanto no currículo formal quanto no currí-
culo oculto, os profissionais aprendem e apreendem valores da cultura de
cada profissão por meio da observação, da imitação, do mimetismo, da si-
mulação, da experimentação prática. Um dos pilares de todas as profissões
de saúde é o valor positivo atribuído ao “senso de responsabilidade ética”,
considerando que lidam cotidianamente com limiares de vida e morte das
pessoas e com sua saúde, que pode ser compreendida ao mesmo tempo
como um “bem”, um “direito” e um “valor”. Entretanto, diante dos proble-
mas éticos atuais, que decorrem dos avanços biotecnológicos, das mudan-
ças e crises nos sistemas de saúde e do reconhecimento da pluralidade mo-
ral dos usuários, trabalhadores e gestores, tem sido insuficiente recorrer
apenas aos códigos de ética profissional ou às resoluções e normativas para
orientar condutas e escolhas morais na práxis da atenção à saúde.
A implementação do SUS tem demandado transformações atitudi-
nais e culturais perante os problemas e necessidades concretos dos serviços
de saúde, uma “reviravolta ética”. Assim, para fazer frente ao desafio da
sua concretização, faz-se necessário lidar com as questões de ordem éti-
ca vivenciadas nos serviços de saúde, especialmente na Atenção Primária,
a qual tem sido preterida pelas reflexões bioéticas. A intencionalidade do
presente capítulo é estimular a reflexão acerca dos problemas éticos que
permeiam esse nível de atenção e apresentar um dispositivo metodológi-
co que promova o exercício de deliberação moral, conceito proposto pelo
bioeticista espanhol Diego Gracia (2001), visando a motivar as equipes a
produzir, por si mesmas e de modo compartilhado, respostas diante de si-
tuações de conflito ético na atenção à saúde.

Problemas éticos na Atenção Primária

O foco prioritário da bioética tem sido desenvolver instrumentos de


análise dos conflitos éticos que surgem no ambiente hospitalar, caracteri-
zado por crescentes intervenções biotecnológicas, ampliando ferramentas
teórico-metodológicas apropriadas para equacioná-los, identificados, em
geral, com os tradicionais princípios da bioética: autonomia, beneficência,
não maleficência e justiça (Beauchamp & Childress, 2002). Essa mesma
destreza não acontece quando se trata de conflitos éticos da Atenção Pri-
mária, pois não se pode simplesmente aplicar o mesmo tipo de análise,
já que a configuração dos problemas é bem diversa e porque o serviço se
organiza a partir de outra lógica.

156 • Capítulo 7
Com a Constituição de 1988 e a criação do SUS, houve no Brasil uma
reorganização da dinâmica da assistência à saúde, exigindo dos profis-
sionais uma nova prática e uma nova lógica de trabalho. Nesse contexto,
emergem novas questões de ordem ética relacionadas com a lógica de or-
ganização dos processos de trabalho. A assistência à saúde, até então cen-
trada nas práticas hospitalares de caráter curativo e direcionada apenas a
uma pequena parcela da população, torna-se direito de todos e dever do
estado, com ações de educação e promoção, visando à melhoria da qua-
lidade de vida da população. Questões éticas importantes emergem dessa
transformação. Porém, em razão das características do trabalho, na Aten-
ção Primária alguns problemas éticos podem não ser percebidos ou não
ser considerados como conflitos pelos profissionais, tendo em vista que tais
questões são mais associadas ao contexto e à realidade hospitalar. Muitas
das situações cotidianas vivenciadas na Atenção Primária podem ser consi-
deradas mais fáceis ou menos urgentes do que aquelas vivenciadas em uma
realidade hospitalar, mas nem por isso deixam de envolver uma grande
complexidade assistencial (Zoboli & Fortes, 2004).
No esforço de mapear as diferenças mais evidentes entre as lógicas da
clínica hospitalar e da clínica da Atenção Primária, Cunha (2005) e Cam-
pos (2005) identificaram que o hospital está baseado em relações hierárqui-
cas de poder, exigindo a submissão do paciente ao tratamento, ao passo que
na Atenção Primária, o usuário mantém a sua autonomia mais preservada
e o profissional precisa levar em consideração a sua subjetividade para pla-
nejar de modo compartilhado o projeto terapêutico. A dinâmica de fun-
cionamento do hospital se organiza com base no modelo biomédico, cujo
pressuposto é a separação psique-corpo, e a divisão do corpo em especiali-
dades, aplicando procedimentos padronizados, orientados por protocolos,
tendendo a ser iguais para todos.
Embora boa parte dessa lógica se faça presente também na Atenção
Primária, a existência de um sujeito complexo permeável às influências ex-
ternas e internas, apresentando suas demandas, dificuldades e desejos exi-
gem dos profissionais o desenvolvimento de habilidades de comunicação
e de negociação que resulte na promoção do vínculo, na singularização do
cuidado, na adesão ao tratamento, na integralidade da atenção. O imaginá-
rio social do hospital está relacionado à doença grave e à morte, enquanto
que na Atenção Primária impera a prevenção, a Promoção da Saúde, da au-
tonomia, a vontade de viver. O tempo das relações terapêuticas no hospital
é curto, intensivo e repleto de intervenções, ao passo que o tratamento da
Unidade Básica se caracteriza pela longitudinalidade, por encontros clíni-
cos frequentes e inseridos no cotidiano. Em virtude do ambiente artificial

Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde... • 157


em que se move, as relações que se estabelecem no hospital dificilmente
consideram os danos, malefícios e sofrimentos decorrentes das interven-
ções e tratamentos propostos, frequentemente de forma paternalista e as-
simétrica. Na Atenção Primária, por sua vez, há maior sensibilidade para
se lidar com as singularidades dos sujeitos, pois os profissionais estão mais
próximos da materialidade da vida.
Os problemas éticos são peculiares ao âmbito da vida social em que
são identificados e percebidos e, por conseguinte, são diferentes na APS
e no hospital. Se no hospital é comum vivenciar “situações-limite”, muito
dramáticas e dilemáticas, na APS é possível dizer, concordando com Zobo-
li & Santos (2017), que as questões éticas são mais sutis e estão presentes
em circunstâncias comuns da prática diária da atenção à saúde, sendo por
vezes, difícil de identificá-las. Por essa razão, é relevante partir da distinção
proposta por Gracia (2003) entre dilemas e problemas éticos. Os dilemas
exigem a escolha entre duas opções, podendo ser mais frequentes na reali-
dade hospitalar, configurada sempre mais pela complexidade tecnológica,
apontando para a necessária expertise técnica e a consulta ao código deon-
tológico dos direitos e deveres na solução dos conflitos éticos. Os proble-
mas éticos, ao contrário, abrem a possibilidade de vários cursos de solução,
exigindo atitude reflexiva e interpretativa do contexto social, considerando
as nuances específicas do caso concreto e demandam o exercício da delibe-
ração sobre as circunstâncias e consequências das ações.
Problemas éticos são situações vividas pelos profissionais da APS
como fontes de conflitos de valores e deveres para os quais vislumbram vá-
rios cursos de ação possíveis, mas nenhum parece totalmente satisfatório,
pois um valor obscurece o outro, um dever encobre o outro e o profissional
fica sem saber como agir, sente-se em meio a um eclipse do sentimento de
obrigatoriedade, ficando perplexo (La Taille, 2006). Trata-se de uma situa-
ção que contém uma contradição, necessitando o exercício da ponderação
para chegar ao melhor caminho, a via que permitirá contemplar a concre-
tização de todos os valores em conflito, conciliando-os (Gracia, 2009). As-
sim, é preciso abrir o leque de possibilidades de solução, de cursos de ação
para a resolução do problema, para que as escolhas não sejam dilemáticas,
do tipo “ou um ou outro”, mas combinadas e articuladas.
Consideramos a perspectiva “problemática” mais adequada para pen-
sar os conflitos éticos da Atenção Primária, caracterizada por sua comple-
xidade sociocultural e intersubjetiva. Dessa distinção pode-se inferir que

158 • Capítulo 7
é necessário cuidar para não transformar problemas em dilemas, quando
se pretende refletir e deliberar sobre os conflitos éticos na Atenção Primá-
ria. A transformação de problemas em dilemas significa certa simplifica-
ção redutiva para facilitar a solução, já que a deliberação é mais demora-
da, exigindo um esforço de discussão e argumentação que nem sempre os
profissionais estão dispostos ou, às vezes, sequer encontram as condições
adequadas para tal.
A identificação dos principais problemas éticos na APS tem sido ob-
jeto de estudos há quase duas décadas e diversas pesquisas têm buscado
compreender esse fenômeno por meio da elaboração e validação de ins-
trumentos, como o IPE-APS (Inventário de Problemas Éticos na Atenção
Primária em Saúde) (Jungues et al., 2014; Zoboli & Santos, 2017). Trata-se
de um questionário estruturado e fechado, cuja aplicação permite produzir
uma “epidemiologia” dos problemas éticos na visão dos profissionais de
saúde que atuam na Atenção Primária, mas vai além da contabilização ao
possibilitar também disparar reflexões sobre questões éticas, considerando
os processos de reorganização dos serviços, a resolução de conflitos e as
melhorias na qualidade da atenção à saúde.
Os estudos indicam que os problemas éticos na APS estão presentes
nas relações entre usuários e profissionais; nas relações entre profissionais
de uma equipe; e, nas relações com a organização e o sistema de saúde, em
seis dimensões: gestão da APS; longitudinalidade; prática nas equipes; per-
fil profissional; privacidade na APS; e, sigilo profissional. O quadro a seguir
apresenta resumidamente os problemas validados pelo IPE-APS, agrupa-
dos nas dimensões e distribuídos no âmbito relacional.

Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde... • 159


Quadro 1. Problemas éticos na APS, segundo âmbito das relações e dimensões
Relações com usuários e Relações da Equipe Relações com a
famílias organização e o sistema
de saúde
Gestão da APS - A UBS não tem condi-
ções para realizar atendi-
mentos de urgência
- A UBS não oferece às
ESF as condições para
apoiar a realização de
visitas domiciliares
- Não há retaguarda de
serviço de remoção na
UBS
- Há dificuldades no
sistema de referência e
contrarreferência para
realização de exames
complementares
- Há dificuldades quanto
ao retorno e à confia-
bilidade dos exames
laboratoriais
- Há um excesso de
famílias inscritas para
cada equipe da ESF
Longitudinalidade - Os profissionais - É difícil definir, na
sentem-se impotentes prática, o papel e as res-
para convencer o usuário ponsabilidades de cada
a dar continuidade ao profissional da ESF
tratamento
- Usuários se recusam a
seguir indicações médi-
cas ou a fazer exames
- Os profissionais pres-
crevem medicamentos
que o usuários não terão
dinheiro para comprar
segue

160 • Capítulo 7
Relações com usuários e Relações da Equipe Relações com a
famílias organização e o sistema
de saúde
Prática das - Existe falta de respeito
equipes entre os membros da
equipe da ESF
- As ESF não colaboram
umas com as outras
- Os profissionais da
equipe não apresentam
perfil para trabalhar na
ESF
- Os profissionais das
equipes das ESF atuam
com falta de compromis-
so e envolvimento

Perfil - Os profissionais fazem


profissional prescrições inadequadas
ou erradas
- A equipe da ESF
prejulga os usuários e
familiares com base em
preconceitos e estigmas
- O profissional trata
o usuário com falta de
respeito

Privacidade - O Agente Comunitário - O ACS comenta


de Saúde (ACS) conta a informações sobre a
seus vizinhos infor- intimidade da família e
mações obtidas no seu do casal com a equipe
trabalho a respeito do de saúde
usuário e famílias
- O profissional conta in-
formações sobre a saúde
de um dos membros da
família que ele atende
para os demais membros
dessa família

segue

Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde... • 161


Relações com usuários e Relações da Equipe Relações com a
famílias organização e o sistema
de saúde
Sigilo - Usuários pedem a um - Usuários pedem a um
dos membros da Equipe dos membros da equipe
de Saúde da Família da ESF que os outros
que os outros membros membros não tenham
não tenham acesso a acesso a determinada
determinada informação informação relacionada
relacionada à sua saúde, à sua saúde
mesmo em situação em
que seja necessária a
participação da família
no cuidado
- O profissional conta in-
formações sobre a saúde
de um dos membros da
família que ele atende
para os demais membros
dessa família, quando
este não consegue geren-
ciar o autocuidado e se
expõe a riscos
- Menores de idade
procuram a UBS e
pedem à equipe exames,
medicamentos ou outros
procedimentos sem
autorização e/ou conhe-
cimento dos pais

Fonte: IPE-APS (Zoboli & Santos, 2017).

Como é possível identificar a partir da relação dos problemas éticos


que emergem na APS, trata-se de questões habituais da prática cotidiana
dos serviços, situações com dramaticidade menor se comparadas às ques-
tões comuns no âmbito hospitalar, o que pode dificultar a percepção do que
se configura como um problema ético. Entretanto, vale ressaltar que tais
problemáticas são questões concretas que envolvem as práticas de atenção
e gestão à saúde, percebidas como conflitivas no âmbito dos valores e de-
veres éticos que englobam esse nível de atenção à saúde. Trata-se de situa-
ções que inquietam, perturbam a consciência dos profissionais e gestores,
pois exigem respostas muitas vezes imediatas e, para isso, apresentam vá-

162 • Capítulo 7
rios encaminhamentos possíveis, demandando o exercício da deliberação.
Desafios éticos, por sua vez, abrangem tanto dimensões macroestruturais
quanto dimensões das relações intersubjetivas, cujas proposições requerem
permanente exercício reflexivo e discussão coletiva, envolvendo a todos —
gestores e trabalhadores, tendo em vista a corresponsabilidade ética, como
equipe, pelos resultados das práticas e pela resolutividade nas respostas às
necessidades dos usuários.
A APS tem duas características que conformam desafios éticos: os
processos de trabalho específicos das equipes; e a atenção a um território
com população adscrita sob-responsabilidade clínica e sanitária de deter-
minada equipe. A configuração organizativa dos processos de trabalho e da
atenção ao território precisam ser continuamente discutidas, pactuadas e
acompanhadas, tendo em vista um ambiente inclusivo que alicerce proces-
sos de Cogestão responsável, incluindo a efetiva participação das comuni-
dades. Nesse sentido, os desafios éticos se referem diretamente à responsa-
bilidade moral dos profissionais e gestores, demandando ações voltadas ao
planejamento, à identificação dos problemas éticos prevalentes nas Unida-
des de Saúde (diagnóstico), ao debate acerca dos cursos de ação possíveis, à
implementação, ao monitoramento e avaliação do que foi deliberado.
Faz-se necessário, portanto, incorporar nos processos de educação
permanente das Unidades de Saúde a abordagem dos problemas éticos na
APS, permitindo às equipes se debruçarem sobre o estudo sistematizado
das questões que envolvem conflito moral, buscando tomar decisões com-
partilhadas, corresponsáveis e prudentes.
Caberia indagar, então, como fazê-lo? Na tentativa de responder a
esse questionamento, apresentamos a seguir o Método Deliberativo do
bioeticista espanhol Diego Gracia (2003), que tem se mostrado um profí-
cuo instrumento de análise de problemas éticos ao ponderar as alternativas
possíveis de resolução do caso ou da situação concreta.

O Método Deliberativo para a tomada de decisão


de problemas éticos

Uma primeira consideração a fazer diz respeito ao pressuposto de que


toda relação clínica em si já é um processo deliberativo, pois o profissional
de saúde delibera consigo mesmo toda vez que toma decisões diante de
uma situação de saúde (Gracia, 2001). Inicialmente utilizado pelas comis-
sões de ética e bioética, o método deliberativo tem feito parte do cotidiano
das equipes multiprofissionais de saúde que demandam tomadas de d ­ ecisão

Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde... • 163


conjunta para resolução de questões éticas na saúde (Marques Filho, 2008).
Trata-se de um procedimento que se ancora na abordagem problemática
das questões sanitárias, cujo foco é a “aproximação deliberativa” dos con-
flitos com a finalidade de produzir coletivamente decisões prudentes, entre
as várias alternativas possíveis.
A deliberação moral é a consideração dos valores e deveres impli-
cados em um fato concreto, a fim de conduzir a situação conflituosa por
um caminho razoável, prudente e realizável. De acordo com Zoboli (2010),
uma alternativa razoável se refere ao conhecimento prático que maneja as
possibilidades e probabilidades diante da complexidade da realidade de ca-
sos concretos. A deliberação não visa a chegar à decisão ideal, “certa”, ma-
ximizadora de resultados, não tem pretensão de universalidade e nem de
certeza. Nas situações de incerteza, como os conflitos morais no âmbito da
saúde, quando não se sabe o que fazer, as decisões precisam ser prudentes,
incluindo distintas aproximações e perspectivas do caso para enriquecer o
diálogo e a compreensão do conflito.
Ao deliberar, os envolvidos na discussão interpretam os dados, os fa-
tos e as conexões de sentido, atribuindo e hierarquizando valores, definindo
graus de importância das questões envolvidas, perfazendo uma empreitada
hermenêutica em busca de produzir coletivamente as soluções possíveis.
O resultado do processo, que inclui as decisões, será satisfatório se hou-
ver: respeito e participação de todas as pessoas que possuem interesses no
caso (profissionais de saúde, gestores, usuários, familiares, responsáveis ou
responsáveis legais), dando oportunidade para cada um apresentar e defen-
der os próprios argumentos; atitude mutuamente compreensiva e tolerante
com as diversas escalas de valores e com os posicionamentos divergentes
(Loch, 2003).
Antes do procedimento deliberativo, é necessário delimitar um con-
flito de valores no caso. Para isso, o problema ético percebido pelo pro-
fissional precisa apresentar ao menos duas características básicas: ser um
conflito de valores e os valores em conflito serem ambos positivos e, suces-
sivamente, contrários (Zoboli & Santos, 2017). Por exemplo: como fazer o
bem do ponto de vista da assistência (beneficência) e, ao mesmo tempo,
respeitar a decisão do usuário que se recusa a seguir o tratamento proposto
(autonomia)? Ou, então: como conciliar a terapêutica mais indicada para
determinada situação clínica de um grupo de usuários e, concomitante-
mente, promover a equidade na alocação dos recursos escassos?
A análise dos problemas éticos busca elaborar propostas de cursos
de ação na tentativa de resolvê-los, geralmente se apoiando na estratégia de
discussão de casos (Gracia, 2009). Para ilustrar o itinerário do processo de

164 • Capítulo 7
deliberação, partimos de um caso clínico que se percebe ter várias saídas
éticas possíveis.
Caso hipotético: O senhor RS tem sífilis. Ele não quer contar sobre
sua doença para sua companheira, mas quer protegê-la do risco de contá-
gio. Enquanto está em tratamento, o usuário pede à equipe de saúde que
faça o exame para diagnóstico de sífilis em sua companheira sem lhe dizer
nada sobre a doença que ele tem.
De acordo com Zoboli & Santos (2017), um cuidado importante a ser
tomado é não cair na “falácia jurídica” e reduzir o caso a uma questão legal,
normativa ou técnica, visto que a situação apresentada envolve uma doença
que demanda notificação compulsória (sífilis), implicando o cumprimento
do dever legal e que coloca em risco a vida/saúde de terceiros identificáveis
(companheira do senhor RS), portanto, a quebra de sigilo por justo motivo,
de acordo com o Código de Ética Médica, Cap. IX art. 73 (CFM, 2018). Se
abordarmos o caso apresentado dessa maneira, ele sequer pode ser consi-
derado “um problema ético”, restringindo as possibilidades de argumenta-
ções acerca de como agir diante de um conflito de dois valores positivos, ou
seja, como respeitar a confidencialidade da informação relativa à condição
de saúde do senhor RS e, ao mesmo tempo, informar, esclarecer e possibi-
litar acesso aos cuidados de saúde de sua companheira?
Para responder à indagação, recorremos ao itinerário deliberativo, o
qual inclui, segundo Zoboli (2010; 2013) e Zoboli & Santos (2017), a de-
liberação sobre os fatos (apresentação do caso percebido como problema
ético; esclarecimento dos fatos); deliberação sobre valores (identificação
dos problemas morais do caso; indicação do problema moral fundamental;
identificação dos valores em conflito); deliberação sobre os deveres (iden-
tificação dos cursos de ação extremos; identificação dos cursos de ação
intermédios; identificação do curso de ação ótimo); deliberação sobre as
responsabilidades (submissão às provas de consistência, de tempo, publici-
dade e legalidade).
Cabe destacar que a proposição de Gracia (2001) considera a prudên-
cia o ponto final deste itinerário, o que significa dizer que as saídas para so-
lucionar os casos não são “certas” ou “erradas”, mas “prudentes” ou “impru-
dentes”. Atualmente, a prudência perdeu o sentido ético original proposto
por Aristóteles e significa cautela, precaução. Agir de modo prudente, en-
tão, passou a significar saber tomar precauções contra um ou vários perigos
ameaçadores. No entanto, o sentido atribuído pelo autor advém da filosofia
aristotélica, a partir da qual a prudência é uma sabedoria prática, um tipo
de saber e uma maneira de agir que articula conhecimento teórico com a
experiência da vida vivida. Aristóteles retratava o homem prudente como

Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde... • 165


o que sabe avaliar os obstáculos, tirar partido das características singulares
de uma dada situação, escolher o momento oportuno para uma interven-
ção, a fim de atingir o objetivo final — a felicidade humana.
A sistematização da tomada de decisão em ética inclui etapas do itine-
rário da deliberação, que pode ser representado no quadro a seguir.

Quadro 2. Etapas do itinerário de deliberação


Problema Ético
A Deliberação sobre os Fatos 1. Apresentação do caso
2. Esclarecimento sobre os quadros clínicos do caso
O que se passa? (diagnóstico)
Qual é a evolução? (prognóstico)
O que se pode fazer? (tratamento/intervenção
B Deliberação sobre valores 3. Identificação dos problemas éticos do caso
4. Escolha do problema ético que será discutido
5. Explicação dos valores em conflito no problema
C Deliberação sobre deveres 6. Identificação de cursos extremos de ação
7. Busca de cursos ótimos
8. Eleição do curso ótimo
D Deliberação sobre responsabilidades Provas de consistência da decisão:
9. Prova de legalidade
10. Prova de tempo
11. Prova de publicidade
Decisão Final

Apresentamos, a seguir, cada uma das etapas que compõe o método


deliberativo, exemplificando com o caso do senhor RS buscando elucidar
suas especificidades e a articulação entre elas.

A – Deliberação sobre os fatos

Apresentação do caso – é momento em que o profissional que per-


cebeu o caso clínico como um problema ético apresenta a história clínica
do usuário à equipe, com ênfase nas condições sociais, familiares, culturais,
educacionais, religiosas e outras informações que ajudem no entendimento
do caso e o que motivou a discussão ética.

Esclarecimento dos fatos do caso – momento em que os participan-


tes da reunião deliberativa da equipe fazem perguntas para elucidar dúvidas
técnicas, clínicas ou contextuais. O objetivo é entender o caso mais clara-

166 • Capítulo 7
mente possível, abrangendo de maneira compreensiva as diversas perspec-
tivas implicadas na situação, com o propósito de reduzir as ­incertezas e
facilitar a exploração e a identificação dos recursos disponíveis para, cole-
tivamente, propor cursos de ação realizáveis, segundo a realidade do caso.
Aplicando ao nosso exemplo, algumas questões poderiam ser elencadas:
1. Em que estágio estava a doença quando o senhor RS fez o diag-
nóstico de sífilis?
2. A companheira do senhor RS faz algum tipo de acompanhamen-
to na Unidade de Saúde onde ele está tratando a sífilis?
3. Qual a idade de ambos? Qual a escolaridade de cada um? Há
quanto tempo estão juntos? Eles têm filhos? Onde residem? Com
que trabalham?
4. Qual a rotina ou o protocolo do serviço onde o senhor RS está em
acompanhamento para a vigilância das IST?
5. Como foi a conversa da equipe com o senhor RS quando soube
do seu diagnóstico e que teriam de investigar a situação de saúde
da companheira?
6. A equipe buscou entender as motivações que levaram o senhor
RS a querer esconder seu diagnóstico da companheira?
7. A equipe ofereceu ajuda para contar o diagnóstico dele para a
companheira?
8. A equipe conversou com o senhor RS acerca dos riscos que ela
está correndo?

B – Deliberação sobre os valores

Identificação dos problemas éticos – nesse momento, os participan-


tes listam os problemas percebidos no caso. Em princípio, ainda que de
maneira intuitiva e exploratória, qualquer questão poderá ser considerada
um problema, já que se trata de uma dificuldade ou uma dúvida do profis-
sional. A forma mais indicada para enunciá-los é elaborar perguntas aber-
tas. Um exemplo de como formular uma “pergunta-problema” seria: “Até
onde chega a responsabilidade de um profissional diante de um usuário
que recusa a oferta de tratamento proposto?” Recomenda-se evitar ques-
tões binárias que levem a respostas do tipo “sim” ou “não”, como: “É ético
respeitar a decisão de um paciente que não quer seguir a recomendação do
profissional de saúde?” Pergunta desse tipo, ainda que tenha uma roupa-
gem da ética, não deixa de ser binária. Para transformá-la em uma ques-
tão aberta, poderíamos reformulá-la da seguinte maneira: “até que ponto o
profissional pode desrespeitar a recusa de tratamento feita pelo paciente?”;

Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde... • 167


“até que ponto é melhor para o paciente respeitar sua vontade?”. Nem todas
as perguntas listadas corresponderão ao um problema ético, mas isso não
tem importância nessa etapa do itinerário deliberativo, porque a junção
de duas ou mais das perguntas feitas pode expressar o conflito de valores
central do caso.
No caso exemplificado do senhor RS, a identificação dos problemas
éticos poderia ser formulada da seguinte forma:
1. Até que ponto a equipe pode fazer o que o senhor RS está pedin-
do, já que ele tem uma doença transmissível?
2. Como seria possível solicitar exames para a companheira do se-
nhor RS sem informá-la adequadamente para que possa consen-
tir o procedimento?
3. Até que ponto a equipe pode faltar com a verdade e a honestidade
na relação clínica com a companheira do senhor RS?
4. Como proteger a companheira do senhor RS que está em risco
de ser contaminada por uma IST, sem violar a confidencialidade
devida ao usuário?
5. Como diagnosticar e tratar um comunicante de uma IST sem ex-
por o doente?
6. Até que ponto a responsabilidade da equipe para com a saúde de
um usuário estende-se para sua companheira ou familiares?
7. Até que ponto a responsabilidade da equipe quanto à saúde dos
familiares de um usuário se modifica segundo o tipo de serviços
onde o profissional está trabalhando (Unidade Básica de Saúde,
centro de especialidade, hospital público, CAPS, hospital-escola,
consultório privado)?
8. Até que ponto vai o dever da equipe em resguardar a confidencia-
lidade devida aos usuários?
9. Até que ponto as IST justificam a quebra de confidencialidade que
as equipes de saúde devem respeitar?
10. Até que ponto o medo e a vergonha do senhor RS podem justifi-
car não dizer a verdade para sua companheira, ainda que a pro-
tegendo?

Indicação do problema moral fundamental – nesse momento, os


participantes elegem o problema fundamental, que pode ser uma das per-
guntas da lista ou a combinação de duas ou mais delas. Importante escutar
o profissional que apresentou o caso, pois o incômodo ou a dúvida dele
motivou a discussão. A eleição do problema ético fundamental permite fo-
car a deliberação e, assim, busca chegar a uma decisão prática e realizável.

168 • Capítulo 7
No caso em discussão, o problema ético fundamental poderia ser
enunciado da seguinte maneira: “Como a equipe pode cuidar da saúde da
companheira do senhor RS sem lhe faltar com a verdade e honestidade na
relação clínica e, ao mesmo tempo, respeitar o pedido de RS, que não quer
que ela saiba da sífilis, resguardando a confidencialidade?”

Identificação dos valores em conflito – é a etapa na qual se confirma


se a pergunta eleita na fase anterior como o problema ético fundamental
representa, de fato, um conflito de valores. Ao definir os valores em conflito
é importante o uso de uma linguagem clara e precisa, porque os valores são
abstratos e o exercício de traduzi-los de um modo compreensível para to-
dos os participantes minimiza o risco de imprecisões que podem compro-
meter as etapas posteriores do processo deliberativo. A intencionalidade do
processo deliberativo é realizar ambos os valores que estão conflitando e,
para isso, a equipe se dedica à descrição de cada um dos valores separada-
mente e os coloca em polos opostos, como na figura:

Valor Y Problema X Valor Z

No exemplo do caso, os valores em conflito poderiam ser dispostos da


seguinte maneira:

Valor Y Valor Z

C – Deliberação sobre os deveres

Identificação dos cursos de ação extremos – o “curso de ação” é cada


uma das alternativas de solução possíveis para o caso. Os valores em con-
flito são dispostos em dois polos contrários com seu respectivo “curso de
ação extremo”. Ou seja, as propostas para solucionar o caso incluem ações
que realizam apenas um dos valores e aniquila o oposto. Os cursos de ação
extremos, em geral, são os primeiros a serem elencados, o que ajuda na
identificação de saídas que deveremos evitar. Aplicado ao caso-exemplo,
os cursos de ação extremos poderiam ser enunciados da seguinte maneira:

Valor Y Valor Z

Identificação dos cursos de ação intermediários – são aquelas sa-


ídas para o problema que se encontram entre os polos extremos, ou seja,
formam o meio do leque de soluções possíveis para o caso. O propósito

Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde... • 169


dessa fase do itinerário é encontrar cursos de ação que realizem os dois
valores em conflito, fugindo das saídas extremas que anulam um ou outro
valor. A ideia de buscar soluções conciliadoras e que articulem os valores
em conflito vai ao encontro do exercício da prudência, uma vez que abre
espaço para a emergência de soluções que combinem diversas possibilida-
des de solução para o caso. No nosso exemplo, poderiam ser considerados
cursos de ação intermediários as seguintes medidas:
1. Solicitar exame diagnóstico de sífilis para a companheira do se-
nhor RS sem lhe contar a verdade e, no caso de resultado positivo,
estimular para que ele compartilhe o diagnóstico com ela. Se ain-
da assim ele não quiser contar sobre a sífilis, a equipe deve revelar
o diagnóstico, deixando claro para ele que fará isso.
2. Solicitar exame diagnóstico de sífilis para a companheira do se-
nhor RS somente depois de ele lhe contar a verdade acerca do
diagnóstico.
3. Estabelecer um bom vínculo com o casal e, com o senhor RS re-
velar o diagnóstico para a companheira e, depois disso, solicitar o
exame para ela.
4. Ajudar o senhor RS a encontrar um modo de encaminhar a con-
versa com a companheira, orientando que, se ele quer protege-la,
precisará usar preservativo nas relações sexuais e que a equipe
não pode solicitar o exame para ela sem esclarecê-la sobre o que
está se passando.
5. Pedir o exame diagnóstico de sífilis para a companheira do se-
nhor RS e esclarecer sobre o procedimento, mas sem dizer o mo-
tivo da solicitação.

Identificação do curso de ação ótimo dentre os cursos de ação in-


termediários, elege-se aquele que menos lesiona os valores em conflito,
considerando as consequências previsíveis de cada curso proposto. Essa
etapa requer a comparação de todas as opções, com vistas a escolher uma
combinação que abarque mais de uma alternativa e resulte numa toma-
da de decisão prudente. No nosso exemplo, o curso de ação ótimo seria a
combinação de diversas ações, a começar pelo estabelecimento de um bom
vínculo com o casal. Em seguida, esclarecer o senhor RS que, se ele quer
proteger sua companheira, terá de usar preservativo nas relações sexuais
e deixar claro que a equipe não poderá solicitar o exame dela sem que ela
saiba o que está se passando. Além disso, ajudar o senhor RS a encontrar
um modo de conversar com sua companheira acerca do diagnóstico de
sífilis e oferecer apoio para que algum membro da equipe esteja presente

170 • Capítulo 7
nessa conversa na Unidade Básica de Saúde. Se ainda assim o senhor RS
não quiser contar sobre o seu diagnóstico para a companheira, a equipe
deverá fazê-lo, informando-o de que isso será feito.

D – Deliberação sobre as responsabilidades

Trata-se de uma etapa de verificação se o curso ótimo escolhido cor-


responde a uma ação prudente e responsável, averiguando em que medida
as ações atendem aos critérios da temporalidade, da publicidade e da legali-
dade. Na prática, essa última etapa do método corresponde ao processo de
submissão da decisão ótima a provas e, para isso, a equipe que está delibe-
rando (ou o profissional individualmente durante seu processo decisório)
deverá responder a três questionamentos:
1. Tomaria a mesma decisão se tivesse mais tempo para decidir?
2. Estaria disposto a defender publicamente a decisão tomada?
3. Essa decisão é legal?

A prova do tempo tem a finalidade de verificar se a decisão não é


precipitada, movida por emoções e sentimentos decorrentes da angústia
gerada pela incerteza das questões éticas que envolvem o caso. A prova
de publicidade, por sua vez, visa a verificar se a decisão é passível de ser
argumentada e defendida no âmbito público. Por fim, a prova de legalidade
busca confirmar se o curso ótimo está em conformidade com a legislação
vigente no país, embora seja necessário ponderar que nem tudo que é éti-
co é legal e nem tudo que é legal é também ético. A decisão considerada
prudente e responsável é aquela que passar em todas as provas. No nosso
exemplo, as respostas seriam “sim” para as três indagações, atendendo, por-
tanto, aos critérios de consistência (Zoboli & Santos, 2017).

Considerações finais

Os problemas éticos na APS emergem em situações habituais da prá-


tica cotidiana dos serviços, geralmente com baixo grau de dramaticidade,
dificultando sua identificação e percepção enquanto questões que podem
funcionar como dispositivos para desencadear discussões em equipe, por-
tanto, processos de educação permanente.
O método aqui apresentado tem o potencial de disparar conversas e
trocas de opiniões, argumentos e pontos de vista de modo sistematizado,
com um duplo objetivo: lidar com os conflitos morais presentes na vida real

Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde... • 171


dos serviços de saúde e tomar decisões compartilhadas e corresponsáveis.
Para isso, é essencial o apoio de gestores comprometidos com a efetiva par-
ticipação de todos, assumindo seu papel de abrir e ampliar os espaços de
reflexão acerca dos problemas éticos de maneira constante, considerando
que ações pontuais e de curta duração terão alcance e eficácia limitados.
As atitudes individuais de prudência e de responsabilidade dos pro-
fissionais que atuam na Atenção Primária são importantes, porém insu-
ficientes para fazer frente aos desafios éticos presentes na APS. Assim, é
importante que os trabalhadores se empenhem na ativação e manutenção
de redes de produção coletiva, com valorização das subjetividades, das ex-
periências, dos saberes, das cosmovisões e das especificidades de cada um
que compõe a equipe. Tais processos influenciam diretamente a disposição
para deliberar e, quem delibera precisa admitir a existência de mais so-
luções do que as vislumbradas à primeira vista, com abertura para novos
descobrimentos, novas perspectivas interpretativas.
O método deliberativo promove a emergência de uma variabilidade
de soluções igualmente prudentes e não somente uma única, a correta, pois
as interpretações da situação pelos trabalhadores envolvidos e afetados di-
ferem, podem ser conflitantes ou complementares. Por meio da articulação
das várias interpretações do problema ético vivido, com a inclusão das dife-
rentes vozes e visões do que significa “fazer o bem” ou “cuidar”, das diversas
preocupações e interesses, o que se busca é construir coletivamente uma
solução factível, combinando várias ações e negociações, e que resulte na
máxima realização dos valores em conflito ou os lese o menos possível.
Como nos lembra o professor Diego Gracia (2009), “deliberar só se aprende
deliberando”. Fica o convite ao leitor.

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gem e a saúde. São Paulo: Manole, 2017, pp. 209-26.

Problemas éticos na Atenção Primária à Saúde... • 173


Capítulo 8
Exposição à violência: desafios e recomendações
para a articulação de redes junto da Atenção
Primária à Saúde

Carolina Con Andrades Luiz


Alice Andrade Silva
Vanessa Eda Paz Leite
Leidy Janeth Erazo Chavez
Bruna Jandoso
Rafael Freitas Colaço
Juliana Américo Dainezi
Giovana Pellatti
Bruna Maiara Melo de Paula
Newton Cesar Caetano Monteiro
Renata Marques Rego Miranda
Rosana Teresa Onocko-Campos

174 • Capítulo 8
A exposição à violência tem grandes repercussões psicossociais para os
indivíduos. Muitas pessoas se recusam a procurar ajuda no próprio
bairro por medo de represálias e ou de estigmatização. Ademais, existe
uma carência de dispositivos especializados para a realização desse cuida-
do, a­ ssim como faltam evidências sobre a eficácia de diferentes abordagens
terapêuticas. 
Considerando esse gap,  uma pesquisa de implementação se propôs
a criar, na cidade de Campinas, a Rede de Apoio e Acompanhamento às
Situações de Exposição à Violência (RASEV). Essa rede foi iniciada em
2019, a partir de uma pesquisa de implementação do Laboratório de Saúde
Coletiva e Saúde Mental Interfaces (FCM/UNICAMP) desenvolvida com
apoio do CNPq. Construída em parceria com o Hospital Universitário da
UNICAMP e as secretarias de Assistência Social e da Saúde de Campinas/
SP, a RASEV tem como objetivo complementar e fortalecer os fluxos de
atendimento já existentes, ofertando dispositivos de integração de rede e de
educação permanente dos profissionais. Além disso, visa a construir e im-
plementar, de forma participativa e articulada, o Núcleo de Assistência Psi-
canalítica para Expostos à Violência (NAPEV), com a oferta de grupos psi-
coterápicos psicanalíticos ao público infanto-juvenil e de mulheres adultas,
identificados como expostos à violência na região da qual será referência.
Uma aproximação entre pesquisadores, docentes da UNICAMP, tra-
balhadores e gestores das redes de serviços que abrangem a região norte do
município foi realizada a fim de compor de um Comitê Gestor da Pesqui-
sa (CGP). O CGP é uma ferramenta de Cogestão utilizada em pesquisas
participativas que privilegia o engajamento em profundidade dos diferen-
tes grupos de interesse no planejamento, execução e avaliação das ações
desenvolvidas, produzindo mudanças efetivas na organização do trabalho
(Treichel et al., 2019a). Constrói-se, assim, de forma democrática e partici-
pativa a tão necessária gestão compartilhada do cuidado, com a correspon-
sabilização e criação de uma rede ampliada de atenção às pessoas expostas
a violência.
Atualmente, o Sistema de Notificação de Violência (SISNOV/SINAN)
de Campinas/SP prevê fluxos de atendimento para vítimas de violência de
gênero, violência sexual e contra a pessoa idosa, além de um fluxo específi-
co para tentativas de suicídio. Entretanto, quais são os itinerários de cuida-
do previstos para as pessoas próximas daqueles que sofreram a violência?
Quais são os desafios enfrentados pela Atenção Primária à Saúde (APS)
nesse percurso de atendimento da exposição à violência? Quais são as re-
comendações para a oferta desse cuidado tão necessário às pessoas que não
são alvo dos serviços das redes especializadas atualmente disponíveis? A

Exposição à violência: desafios e recomendações... • 175


partir desses questionamentos, norteamos as nossas discussões neste ca-
pítulo, fruto também das reflexões, discussões e experiências da referida
Pesquisa de Implementação.

A polissemia do conceito de exposição à violência


em documentos oficiais

A violência é um fenômeno complexo e multideterminado socio-his-


tórico-culturalmente, que interfere nos gastos públicos e nas condições de
saúde e qualidade de vida da população (Mendonça et al., 2020). Concor-
damos que, por isso, ela representa um grande problema social para o Bra-
sil e para o mundo (Mendonça et al., 2020), demandando a construção de
estratégias coletivas para o enfrentamento da violação de direitos e para a
Promoção da Saúde integral à população.
O Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (OMS, 2002) declarou
que a violência é um dos principais problemas globais de saúde pública,
passível de ser prevenida. Estudos nos EUA, no Canadá e na América La-
tina indicam que ela impõe altos custos aos países no âmbito jurídico, as-
sistencial, de saúde, além do sofrimento humano, que impactarão direta-
mente na capacidade produtiva de todo o sistema sob o qual a sociedade se
constitui (Krug et al., 2002). 
O Relatório Global sobre Violência contra Crianças conceitua a vio-
lência como exposição ao uso de força física ou poder, ameaça ou práticas
de atos contra si próprio, outra pessoa, grupo ou comunidade que resulte
ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimen-
to prejudicado ou privação (OMS, 2020). Há evidências de que a violência
provoca danos à saúde e ao desenvolvimento de crianças e adolescentes
expostos a maus-tratos emocionais e físicos, abuso sexual, negligência, ex-
ploração do trabalho infantil, dentre outras situações que ameaçam a in-
tegridade, a possibilidade de sobrevivência e dignidade (Egry et al., 2017).
A Política Nacional de Redução de Morbimortalidade por Acidentes
e Violências compreende que o conceito de violência possui caráter polis-
sêmico, complexo e controverso. Trata-se de ações individuais, de grupo,
classe ou nações que geram danos físicos, emocionais, morais ou espirituais
a si mesmo ou a outros, como agressão física, abuso sexual, violência psico-
lógica e violência institucional (Ministério da Saúde, 2000).

176 • Capítulo 8
Violência e sofrimento psíquico

Os sofrimentos psíquicos vivenciados na atualidade são multideter-


minados e se apresentam, em grande parte, pelo modo de vida que nos
constitui como “filhos de nossa época”, um pouco como construtores, um pou-
co como alienados dessas determinações (Souza, 2005, p. 99). A sustenta-
ção de um estado de coisas percebido por nós como normal produz certa
invisibilidade, caracterizando a violência sistêmica, diferente da violência
subjetiva, e facilmente legitimada como tal pelo enquadramento ideológico
de uma determinada sociedade e em um determinado momento histórico
(Žižek, 2014). Como demonstram alguns estudos, nos lugares onde a vio-
lência é frequente, contínua e naturalizada pode-se omitir seus danos, e as
consequências não são, então, percebidas ou associadas ao contexto que as
produz (Da Silva Santos, Guimarães e Silva & Branco, 2017; Machado et al.,
2016; Rodrigues et al., 2018).
Em sociedades desenvolvidas globalizadas, a violência sistêmica se
caracteriza como difusa, difícil de ser localizada e perpetrada pelo próprio
Eu, que se encontra isolado, responsável pela gestão do próprio desempe-
nho e pela autoexploração (Han, 2017). O adoecimento psíquico dessas so-
ciedades se apresenta como estafa e cansaço, como nos casos de depressão,
ansiedade e burnout, que são, portanto, manifestações da violência que se
voltam contra o próprio Eu.
No Brasil, não usufruímos plenamente da globalização. Nesse caso,
a globalização não gera apenas indivíduos operando na lógica da autoe-
xploração e gestão do próprio desempenho (Han, 2017). Ela gera a mar-
ginalização de grande parcela da população, inserida de forma precária
no processo produtivo e nas atividades econômicas (Coimbra, 2001). Esse
mesmo processo que derruba fronteiras levanta novos muros por toda par-
te (Žižek, 2014).
A sociedade brasileira é estruturalmente violenta desde a sua cons-
tituição, marcada pela invasão, colonialismo, genocídio indígena, escravi-
dão, insurgências fortemente reprimidas, coronelismo e Ditadura Militar.
Nela, as desigualdades sociais são justificadas como fracassos individuais,
ainda que o modelo escravagista tenha deixado uma profunda desigualda-
de social que continua insistindo em dividir os brasileiros em cidadãos e
subcidadãos, mantendo relações de mando e obediência e hierarquização
de uma estrutura machista (Chauí, 2018; Souza, 2009).
O exercício da violência acontece, desta maneira, no cumprimento de
funções muito diferentes daquelas que as instituições divulgam ter como

Exposição à violência: desafios e recomendações... • 177


objetivo. Para a maior parte da nossa população, o contato com o Esta-
do se reduz ao contato com escolas impedidas de educar, com serviços de
saúde sem condições para tratar, com prisões impossibilitadas de reabilitar
(Souza, 2009). São instituições onde predominam a má-fé institucional e a
humilhação social, reproduzindo as desigualdades e localizando no indiví-
duo a culpa pelo seu próprio fracasso. Assim, o insucesso da maior parte
dos brasileiros está determinado de partida pelo ordenamento social, que
se ocupa em reproduzir uma sociedade sempre desigual.
As formas de violência de Estado no laço social vêm se desenvolvendo
em curva crescente nos últimos anos, promovendo a desagregação do laço
intersubjetivo, e pervertendo as finalidades institucionais de acesso dos ci-
dadãos às políticas públicas. Seus efeitos promovem a vulnerabilidade na
infância e na adolescência e um crescente índice de homicídios da juven-
tude brasileira, em especial dos jovens negros e pobres, reverberando dire-
tamente na saúde do trabalhador, nas relações de trabalho e na articulação
das redes de atendimento em saúde pública, assistência social e educação
(Ocariz, 2018).
A violência, na atual fase neoliberal de desenvolvimento do capita-
lismo, se expressa globalmente produzindo adoecimento psíquico nas di-
versas classes sociais, processo exemplificado por Dunker (2015) por meio
da metáfora do condomínio. No condomínio, as pequenas diferenças se
tornam cada vez mais incômodas, há certa agressividade que se dirige ao
diferente de fora do muro e também àquela que se volta ao vizinho. O es-
tranho que há em cada um de nós mesmos aparece projetado no campo do
outro como excesso que perturba a fantasia da comunidade de iguais. Nes-
sa lógica, os gestores da sociedade atuam mais como síndicos, mediando os
conflitos entre vizinhos e garantindo o isolamento dessa comunidade em
relação aos de fora.
Para a gestão dos diferentes que estão fora dos muros, a sociedade
brasileira tem intensificado o monitoramento e a vigilância dos subcida-
dãos marginais, o que Mbembe (2018) conceituou de “necropolítica”. Na
necropolítica, objetiva-se eliminar ativamente ou deixar morrer os subci-
dadãos, os jovens em conflito com a lei, as crianças negligenciadas, os lou-
cos desassistidos, os aposentados desamparados e muitos outros, em vez de
integrá-los ou garantir sua saúde. A política neoliberal deixa a maior parte
das pessoas à própria sorte. É esse tipo de violência, caracterizada como
um estado de desamparo permanente, o pano de fundo do adoecimento
psíquico atual da população brasileira.

178 • Capítulo 8
Psicanálise, violência e transmissão geracional

Nas análises estruturalistas e pós-estruturalistas da constituição da


subjetividade, dá-se grande importância à relação que o sujeito estabelece
com a linguagem. Birman (2019), no entanto, nos aponta que a instauração
da ordem simbólica não depende apenas da linguagem, embora sua im-
portância seja incontestável. Para o autor, é preciso considerar também os
campos social e político em que esse mesmo sujeito é constituído, uma vez
que, assim como a linguagem, esses outros componentes também são deci-
sivos no processo de internalização da lei, já que a “circulação da economia
pulsional e libidinal do sujeito depende estritamente da circulação de bens
e valores no espaço social” (Birman, 2019, p. 301).
Podemos dizer que, no Brasil, existe um abismo entre aquilo que diz
respeito ao registro da lei simbólica e o funcionamento da justiça, de ma-
neira que, apesar de termos uma Constituição bastante avançada, os direi-
tos garantidos nela não são sustentados por práticas sociais equivalentes.
Assim, o próprio Estado atua priorizando interesses de grupos particulares,
em vez de realizar a mediação de conflitos sociais que priorizem o coletivo.
Uma das consequências possíveis desse cenário é a generalização de uma
descrença coletiva no poder da lei e da justiça, de modo que a ideia de
impunidade se infiltra nas subjetividades individuais (Souza, 2005). Nes-
se contexto, as classes populares reagem diante da violência sistêmica por
meio da violência subjetiva, como forma de responder às práticas de pre-
dação da elite brasileira. Segundo Birman (2019), tal manifestação deve ser
interpretada positivamente, como forma de sobrevivência, e não psicologi-
zada ou tratada moralmente.
Compreendemos que a pobreza, a violência urbana, a violência do
Estado etc. produzem trauma e contribuem para a transmissão de ódio
e violência na sociedade e pelas gerações futuras. São necessários inves-
timentos macropolíticos, como em políticas públicas afirmativas para o
enfrentamento das desigualdades sociais, para efetiva distribuição de ren-
da, melhoria das condições de vida, de educação e saúde da população; e
micropolíticos, com intervenções no cotidiano das pessoas (Souza, 2005). 
Além disso, vivenciamos um modo de sociabilidade que pressupõe
estilos de vida individualistas, onde o outro perde seu valor simbólico,
tornando-se cada vez mais uma ameaça. A superação dessa condição se-
ria essencial para romper com a violência cíclica vivida nos tempos atuais
(Souza, 2005). Nesse sentido, dispositivos como atendimento em psicote-
rapia de orientação psicanalítica, atendimento familiar e em grupo podem

Exposição à violência: desafios e recomendações... • 179


ser intervenções micropolíticas com grande impacto nos determinantes da
violência.
Há experiências consolidadas no uso de dispositivos terapêuticos
psicanalíticos em países como França e Israel, onde ocorre o crescimento
da utilização em Saúde Pública para os cuidados com pessoas expostas à
violência de guerra (Moro, 2005), e a crianças e adolescentes expostas à
violência sexual (Durban, 2017). No Brasil, existe a indicação sobre a per-
tinência da clínica psicanalítica para qualificar a intervenção das políticas
públicas (Broide, 2010; Onocko-Campos, 2018; 2012), mas não há evidên-
cias científicas sobre a efetividade do trabalho com psicanálise e grupos no
enfrentamento da exposição à violência.
O uso da psicanálise no contexto da abordagem e da prevenção à vio-
lência, porém, se justifica, uma vez que espaços seguros de escuta podem
oferecer um lugar de fala à pessoa exposta à violência, legitimando a expe-
riência e possibilitando a elaboração do traumático. Do contrário, se não
for narrado, compartilhado e ressignificado, corre-se o risco de invalidar,
negar, calar e, por conseguinte, perpetuar a violência vivida e transmitida
entre e através de gerações. Portanto, consideramos que a psicanálise se
torna um marco teórico adequado para a reflexão sobre a violência e for-
mas de transmissão geracional (Kaës, 1998; Corrêa, 2000) e para a constru-
ção de dispositivos terapêuticos capazes de romper o ciclo de agressões nas
interações entre os níveis coletivo, intersubjetivo e intrapsíquico.
A transmissão de elementos psíquicos de uma geração para outra é
inevitável e ocorre sempre de forma não linear. Porém, a passagem de tais
elementos pode se dar por meio da intergeracionalidade ou da transgera-
cionalidade (Benghozi, 2001). No primeiro caso, o conteúdo transmitido já
está elaborado e simbolizado pela geração anterior. Já no segundo, a trans-
missão se dá sem que tenha havido metabolização pela geração precedente,
de maneira que o impensável, o inominável, e o inconfessável, que carac-
terizam o traumático, são transmitidos sem elaborações e simbolizações,
gerando um circuito de repetição entre as gerações. Assim, a elaboração
de eventos violentos, que podem gerar trauma, pode ser encarada como
um trabalho de prevenção do adoecimento psíquico de crianças ainda não
nascidas, sendo essa uma relevante contribuição da psicanálise às políticas
públicas (Benghozi, 2001).
Nesse sentido, destaca-se a importância da escuta psicanalítica preco-
ce, ampliando a possibilidade de verbalização sobre acontecimentos trau-
máticos, de modo a promover a prevenção de agravos à saúde. Chamamos
atenção especialmente para a relevância do atendimento psicanalítico em
grupo, no qual a fala pode privilegiar o acolhimento e a elaboração simbóli-

180 • Capítulo 8
ca do traumatismo por meio da escuta recíproca. O dispositivo grupal pode
ser fundamental para retirar o véu de silenciamento e vergonha que, com
muita frequência, envolve essas situações. A palavra dirigida ao outro e a
escuta mútua também podem aumentar a capacidade de identificação dos
sujeitos entre si e a tolerância das diferenças (Benghozi, 2001).
Diante do exposto, quais são os desafios para a APS no acompanha-
mento oferecido às pessoas expostas à violência? Quais são as recomenda-
ções e boas práticas em construção na APS para identificar e encaminhar
as situações de exposição à violência?

Desafios e recomendações para o enfrentamento da violência


na Atenção Primária à Saúde

A APS é porta preferencial de acesso à saúde, atuando em diferentes


setores para um cuidado integral, como a vigilância em saúde, a visita do-
miciliar, a notificação compulsória de doenças e agravos de importância
local, as ações de educação em saúde, ações programáticas, cuidados em
saúde agendados dentro e fora da Unidade, entre outros (Brasil, 2006).
A complexidade da atuação direta no território inclui o convívio com
diferentes problemas sociais, como desemprego, violência policial, crimi-
nalidade, falta de moradia, feminicídio, racismo, fome, exclusão, pobreza
extrema, bullying, crianças e adolescentes em processo de vulnerabilidade
social, influência do tráfico de drogas na organização e disputa de poder no
território, crescimento urbano desordenado, enfim, a ausência do Estado e
de políticas públicas voltadas para o adequado enfrentamento a essas situa­
ções no cotidiano das comunidades.
Esses desafios demandam a reorganização do processo de trabalho
em saúde, considerando os arranjos, dispositivos e boas práticas emprega-
dos para se ofertar cuidado integral nas situações de exposição à violência.

Atenção Integral à Saúde e Singularização no Cuidado 

As situações de exposição à violência exigem articulações interseto-


riais que respondam adequadamente à sua complexidade (Wetzel et al.,
2011). A corresponsabilização entre os setores e a inserção de atividades
comunitárias podem aumentar as chances de sucesso das intervenções
da APS, respeitando-se a singularidade, a complexidade, a integralidade
e a inserção sociocultural tão importantes no desenvolvimento de ações
Exposição à violência: desafios e recomendações... • 181
i­ndividuais e coletivas para a Promoção da Saúde, prevenção, tratamento
de doenças e redução dos sofrimentos das pessoas (Brasil, 2006).
Entretanto, persistem as dificuldades dos serviços em dialogar com a
história dos sujeitos aos quais atendem, bem como em promover a partici-
pação desses usuários em sua construção. Construir serviços ­participativos
implica considerar os vínculos grupais, institucionais e sociais dos s­ ujeitos,
pois eles se reconhecem e são reconhecidos em sua singularidade a ­partir
do estabelecimento das redes de relações (Onocko-Campos & Gama, 2017).
O uso de abordagens tecnicistas, médico-centradas, biologizantes,
com foco em lesões físicas e na medicalização tem restringido o potencial
da APS no enfrentamento da exposição à violência (Porto, Bispo Júnior &
Lima, 2014; Signorelli, Auad & Pereira, 2013). O despreparo para acolher o
sujeito em sofrimento psíquico com uma escuta qualificada acarreta certa
sensação de impotência (Belotti & Lavrador, 2016). Como consequência,
os profissionais da APS podem restringir sua intervenção, vislumbrando
apenas o encaminhamento dos usuários aos serviços especializados. O
compromisso expresso por meio de uma postura empática pode descons-
truir essa sensação de impotência, fortalecer os vínculos entre a equipe de
saúde e o usuário e permitir uma abordagem singular diante da complexi-
dade e dos múltiplos danos causados pela violência.
Estudos mostram que os atendimentos na APS estão centrados prin-
cipalmente na atenção médica, com grande prevalência de subnotificação
de casos de violência (Kind et al., 2013; Signorelli, Auad & Pereira, 2013).
Entretanto, como prevê a PNAB (2006), a organização em equipes multi-
profissionais é o eixo do cuidado integral porque amplia a capacidade de
análise dos diferentes problemas que possam afetar a saúde dos sujeitos.
Nesse sentido, a abordagem multidisciplinar se torna um instrumento fun-
damental de intervenção nas situações de exposição à violência, “pois as
ações e práticas se estruturam a partir da equipe, ao mesmo tempo em que
ocorre, neste tipo de trabalho em saúde, a ampliação do objeto de interven-
ção para além do âmbito individual e clínico” (Pereira, Rivera & Artmann,
2013, p. 328).
Um estudo transversal buscou analisar a capacidade de resposta dos
profissionais espanhóis na Atenção Primária à Violência Cometida Por
Parceiro Íntimo (VPI) (Goicolea et al., 2019). O trabalho em equipe e in-
tersetorial foi identificado como determinante na construção de boas prá-
ticas no enfrentamento à VPI. Identificou-se, como abordagem efetiva às
vítimas de VPI: considerar o ponto de vista da vítima, considerar as discus-
sões sobre gênero, conectar queixas inespecíficas às circunstâncias sociais,
não restringir a ação profissional à prescrição de medicamento para tratar

182 • Capítulo 8
sintomas, e ofertar semanalmente grupos terapêuticos às mulheres com
profissionais treinados. Nesses grupos, as participantes resolveram ques-
tões diferentes daquelas que podiam ser tratadas em consultas individuais
(Goicolea et al., 2019).
O estudo indicou que o trabalho em equipe possibilitou o desenvol-
vimento de boas práticas porque, durante as reuniões de equipe, os profis-
sionais conversaram e discutiram sobre a VPI, consultando-se diante das
situações rastreadas, tendo o apoio da perspectiva socioassistencial trazida
pelo profissional da assistência social, construindo um clima colaborativo e
de corresponsabilização para instituir estratégias de atendimento centrado
nas mulheres vítimas de VPI (Goicolea et al., 2019).
No Brasil, alguns estudos apontam os Agentes Comunitários em
Saúde (ACS) como profissionais estratégicos no enfrentamento da expo-
sição à violência, pois possibilitam maior aproximação à realidade social
e às necessidades da população adstrita e, como conhecem as famílias e o
território, podem identificar situações de violência durante as visitas do-
miciliares (Da Silva Santos, Guimarães e Silva & Branco, 2017; Lima et al.,
2011; Ramos & Silva, 2011; Egry et al., 2017). A apreensão da real demanda
do usuário possibilita uma resposta mais eficiente e coerente com as neces-
sidades em saúde apresentadas pelo sujeito; maior implicação no Projeto
Terapêutico Singular (PTS) e efetiva corresponsabilidade na condução dos
casos pela equipe. 
Nesse sentido, para garantir a Atenção Integral à Saúde e a Singulari-
zação no Cuidado é necessário propiciar o engajamento dos usuários, tra-
balhadores e gestores como importantes atores, responsáveis não só pelas
ações de cuidado em saúde, mas também pela construção das macropolíti-
cas de um sistema público de saúde como o SUS. 

Educação Permanente

A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS),


instituída no ano de 2004, representou um marco para a formação e tra-
balho em saúde no país, pois enfatiza o processo constante de promoção
e desenvolvimento integral das equipes de saúde, respondendo de modo
condizente, crítico e criativo às necessidades de formação desses profissio-
nais para o enfrentamento das problemáticas cotidianas em seu local de
trabalho (Ministério da Saúde, 2020). 
Desde sua promulgação, a política teve expansão e abrangência im-
portantes na APS (Ferreira et al., 2019; Mesquita et al., 2020). No entanto,

Exposição à violência: desafios e recomendações... • 183


em relação ao enfrentamento da violência, alguns estudos apontam que há
despreparo dos profissionais de saúde para a identificação dos casos, com
necessidade de diretrizes mais claras sobre os fluxos de encaminhamento e
de maior conhecimento das equipes sobre a exposição à violência (Borsoi,
Brandão & Cavalcanti, 2009; Da Silva Santos, Guimarães e Silva & Branco,
2017; Machado et al., 2016; Moreira et al., 2014a).
Outros estudos apontam que, por meio da educação, é possível co-
nhecer as características da realidade, orientar e se vincular aos moradores
e à comunidade, o que pode fazer a diferença no enfrentamento das situ-
ações de violência (Da Silva Santos, Guimarães e Silva & Branco, 2017). A
realização de atividades de educação na comunidade, quando ocorre de
forma integrada e junto de ações intersetoriais, possui maior êxito se com-
parada com ações de caráter individual (Da Silva Santos, Guimarães e Silva
& Branco, 2017).
Na pesquisa de Silva et al. (2013), oficinas pedagógicas com a Estra-
tégia Saúde da Família (ESF), por meio da Pedagogia Problematizadora,
promoveram maior integração entre profissionais das equipes de saúde e
setores da educação, justiça e assistência social. Essa integração permitiu a
identificação das situações de violência de modo a qualificar os encaminha-
mentos intersetoriais de forma coerente com as necessidades dos sujeitos
(Silva et al., 2013). 
O conhecimento sobre a violência é um fator que pode dar segurança
para os trabalhadores, minimizando as barreiras afetivas e favorecendo o
foco na detecção de violência durante o atendimento (Goicolea et al., 2019;
Murillo et al., 2018). Da mesma forma, Murillo el al. (2018) encontraram
associação entre as horas do treinamento recebido com o nível de prepara-
ção e conhecimento percebido pelos profissionais que, quando combinadas
com o Apoio Institucional, aumentaram a capacidade de resposta dos pro-
fissionais de saúde às situações de violência (Murillo et al., 2018).
A APS é um espaço privilegiado para identificação das situações de
violência por ter acesso direto às comunidades e acompanhar as famílias
de forma longitudinal e periódica. Ações de educação permanente são um
investimento de baixo custo e grandes ganhos para a promoção de cuidado
integral diante da exposição à violência. 

Apoio Paideia, Apoio Matricial e Cogestão de Coletivos

O Apoio Paideia é uma metodologia para promover a gestão com-


partilhada, democratizando as instituições e qualificando as ofertas de cui-

184 • Capítulo 8
dado. Estimula a construção de espaços coletivos, onde os trabalhadores
e não somente gestores realizam análises e tomam decisões sobre os pro-
cessos de trabalho. Para isso, propõe dispositivos de Cogestão do trabalho,
como o “Apoio Matricial”, “Apoio Institucional” e “equipes de referência
no cuidado” (Campos et al., 2014; Campos, 2015; Viana & Campos, 2018).
Com dispositivos de Cogestão do trabalho, a APS pode superar a
fragmentação dos processos empregados no enfrentamento à exposição à
violência, a divisão do trabalho por especialidade, o distanciamento da co-
munidade e ampliar a compreensão dos profissionais sobre esse fenômeno.
Estudos indicam que uma compreensão superficial sobre a violência pode
gerar medo da perda de vínculo e retaliações, fragilizando as equipes no re-
conhecimento desse fenômeno na APS (Da Silva Santos, Guimarães e Silva
& Branco, 2017; Machado et al., 2016; Moreira et al., 2014a).
Os desafios enfrentados pelos profissionais no contato com a vulnera-
bilidade socioeconômica, somados ao convívio com a violência, produzem
angústias e aumentam o volume de trabalho das ESF e do Núcleo de Apoio
à Saúde da Família (NASF), fatores relacionados ao burnout e à alta rotati-
vidade dos profissionais (Chazan et al., 2019). Nessas condições, o Apoio
Paideia e a Clínica Ampliada e Compartilhada são importantes aportes teó­
ricos, pedagógicos e práticos para nortear as equipes das ESFs no enfrenta-
mento das situações de exposição à violência.
Um dos dispositivos essenciais no Apoio Paideia é o Apoio Matricial,
o qual oferta suporte técnico-pedagógico e ações conjuntas com a equipe
de referência da APS, favorecendo o compartilhamento de saberes, respon-
sabilidades e ações, por meio de discussões clínicas ou mesmo interven-
ções conjuntas em situações reais (Campos et al., 2014; Viana & Campos,
2018). Inspirados pela metodologia do Apoio Matricial, os NASF ofertam
suporte técnico-pedagógico e retaguarda especializada de equipe multipro-
fissional e complementar às ESFs, buscando garantir o trabalho horizontal,
integral e longitudinal na prestação de cuidados à população (Brasil, 2017).
Trata-se de um dispositivo de integração de redes de cuidado em saúde
(Treichel, Onocko-Campos & Campos, 2019b). Nesse sentido, os NASFs
possibilitam agilidade e resolutividade nas situações de exposição à vio-
lência, com ofertas complementares e especializadas, realizando avaliação
psicológica, participação em visitas domiciliares e em reuniões na rede in-
tersetorial, compartilhando saberes e fazeres, permitindo aos profissionais
da ESF mais segurança nas intervenções sobre determinantes do processo
saúde-doença em relação à exposição à violência (Lazarino, Silva & Dias,
2019; Moreira et al., 2014a; 2014b).

Exposição à violência: desafios e recomendações... • 185


Articulações Intersetoriais

Os atendimentos integrados, incluindo diferentes profissionais e


v­ isando a múltiplas ações e estratégias na atenção às formas de exposição
à violência, muitas vezes se encontram prejudicados, já que esses traba­
lhadores não compartilham visões e leituras de caso, acarretando a sobre-
posição ou a realização de ações antagônicas. A continuidade do cuidado
também encontra dificuldades pela fragilidade das políticas públicas em
termos de fixação de profissionais e continuidade das propostas (Onocko-
-Campos, 2012).
Um dos desafios no cuidado à exposição à violência é superar a frag-
mentação e a setorialização (Franceschini, 2019). A exposição à violência
não repercute apenas em demandas específicas para o setor saúde, portan-
to, as ações para seu enfrentamento não são exclusivas da APS e não devem
terminar nela (Mendonça et al., 2020).
As contribuições da educação, da segurança pública, da assistência
social, da justiça, entre outros setores, são significativas para ações de Pro-
moção da Saúde, proteção integral e prevenção da violência. Por meio da
intersetorialidade e da interdisciplinaridade pode-se exercer o potencial
de organização e territorialização da atenção à população (Franceschini,
2019), garantindo a continuidade do cuidado, a ampliação do acesso da
população, o melhor uso do que há disponível em cada setor e evitando a
duplicidade de vínculos e o desperdício de recursos.
Esta discussão é pertinente ao pensarmos na articulação da APS com
serviços ligados ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para o en-
frentamento da violência. O SUAS produz interfaces com o sistema de ga-
rantia de direitos para promover a proteção integral, prevenir e romper
o ciclo de violação de direitos, de violência de Estado e transgeracional
(Brasil, 2004). Utiliza técnicas de orientação socioeducativa, psicossocial,
pedagógica e jurídica para fortalecer as famílias e os indivíduos na apro-
priação das histórias de vida, responsabilização e promoção da cidadania.
Conta com recursos materiais, na perspectiva de produção de autonomia
e emancipação dos indivíduos e coletividades com histórico de violação de
direitos e exposição à violência (Brasil, 2009). Nesse sentido, o diálogo en-
tre a APS e o SUAS pode favorecer a avaliação permanente da evolução dos
casos e prevenir o agravamento das condições do núcleo familiar quando,
contrariando a lógica de atuação paternalista e assistencialista, promove o
acesso aos serviços e viabiliza a proteção e o cuidado integral (Malvezzi &
Nascimento, 2020).

186 • Capítulo 8
A articulação de redes intersetoriais tem sido a aposta e o desafio cen-
tral da pesquisa de implementação descrita inicialmente. Utilizando, para
sua concretização, a estratégia da Cogestão, a pesquisa pode se transformar
em um espaço de encontro e compartilhamento de questões dos setores da
Saúde e da Assistência Social. 
Inicialmente em reuniões semanais, e depois mensais, representantes
dos diversos serviços da região norte da cidade começaram a problematizar
os desafios para o melhor atendimento das pessoas expostas à violência:
gaps da rede, falta de recursos, necessidades de capacitação e de dispositi-
vos de integração da rede puderam ser levantados e consensuados, apesar
de alguns incômodos e tensões iniciais. A mediação realizada pelos pes-
quisadores viabilizou a escuta das questões e permitiu que as diferenças
pudessem ser suportadas e analisadas. A regularidade dos encontros foi
outorgando confiança ao espaço do CGP, permitindo manter aquecida a
rede não apenas de serviços, mas também de afetos entre os profissionais
envolvidos. 
A intersetorialidade, tantas vezes declamada e muito menos frequen-
temente praticada, precisa de um “lugar e um tempo” (Onocko-Campos,
2003) para poder acontecer. Para esse espaço de trocas e deliberações se
instituir, a presença de um terceiro se mostrou, na nossa experiência, fun-
damental. Confiança e afeto são imprescindíveis para produzir movimen-
tações das posições fechadas e das visões muitas vezes estereotipadas pelos
locais de inserção laboral. A intersetorialidade possível não é um ponto de
chegada, senão um lugar e um tempo no qual a processualidade da vida
permita a articulação de conhecimentos técnicos, valores, afetos e diferen-
ças, com a finalidade de sustentar a proteção e o cuidado integral à popula-
ção exposta às situações de violência.

Considerações finais

Sem a pretensão de esgotar as definições e discussões, buscou-se re-


conhecer aqui a importância da implicação de amplas esferas da sociedade
para enfrentarmos a violência. Dada sua complexidade e proporção, preve-
nir e combatê-la é um compromisso comum aos setores da saúde, educa-
ção, assistência social, dentre outros dispositivos do sistema de garantia de
direitos, e depende de planejamento e avaliação contínua. Assim, podere-
mos implementar políticas públicas cujo afinco seja a produção de cuidado
e proteção integral direcionados ao público exposto à violência, sendo ne-
cessárias ações intersetoriais e territorializadas.

Exposição à violência: desafios e recomendações... • 187


Reconhecemos que a atuação da APS é fundamental na organização
de estratégias de cuidado e prevenção de agravos à saúde de pessoas expos-
tas à violência. Esse nível de atenção tem papel privilegiado na identificação
de pessoas expostas à violência, podendo organizar o cuidado e a proteção
integral desde os primeiros atendimentos e em diálogo intersetorial. Uma
relação dialógica com amplos setores sociais e das políticas públicas é uma
saída importante para que a atuação do profissional da APS não se restrinja
à notificação dos casos e à atenção para as lesões físicas e mentais.

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192 • Capítulo 8
Capítulo 9
Desafios na atenção ao público infanto-juvenil
na Atenção Primária à Saúde (APS): violência,
notificação e cuidado

Felipe Guedes
Pedro Henrique Pirovani Rodrigues
Alice Andrade Silva

O reconhecimento da saúde como um direito universal e a garantia da


assistência integral à infância e adolescência são tributárias ao con-
texto de redemocratização do Brasil. A Constituição Cidadã é um marco
na conquista desses direitos e consequência das reivindicações de amplos
setores da sociedade. Esse ordenamento jurídico lançou as diretrizes legais
para a construção posterior do Sistema Único de Saúde (SUS), firmado so-
bre os princípios da universalidade, da equidade e da integralidade. Sob a
influência da Doutrina da Proteção Integral, a carta constitucional com o
art. 227 responsabilizou a família, o Estado e a sociedade, consolidando um
posicionamento ético-político, que visa a proteger e assegurar os direitos

Desafios na atenção ao público infanto-juvenil... • 193


das crianças e adolescentes com absoluta prioridade e ouvi-las em suas ne-
cessidades e escolhas (Brasil, 1988; Arantes, 2019).
A conformação de tais direitos também é reflexo das mudanças que
vinham ocorrendo no cenário internacional. A Conferência de Alma Ata
sobre cuidados primários em saúde, realizada em 1978, e a Primeira Con-
ferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada no Canadá, em
1986, foram marcos importantes na proposição da saúde como um direito
universal (Mendes, 2004; Heidmann, 2006). No campo da proteção inte-
gral, a Convenção Internacional sobre Direitos da Criança da Organização
das Nações Unidas (ONU), realizada em 1989, foi uma referência impor-
tante na criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990).
Nesse sentido, a conjunção “cuidado-proteção” compartilha não só aspec-
tos históricos e jurídicos, mas reconfigura os desafios e as possibilidades de
intervenção no cotidiano dos serviços de saúde.
O enfrentamento das situações de violência contra crianças e adolescen-
tes na Atenção Primária à Saúde (APS) torna-se um enredo difícil de solucio-
nar. A construção de manejos que considerem a conjunção “cuidado-prote-
ção” não se limita ao tanto de conhecimento técnico que as equipes têm, mas
exige o envolvimento de conhecimento de diferentes ordens. Aliás, há um
consenso no campo da saúde coletiva de que ter conhecimento técnico não
é o único requisito para prevenir os agravos e promover saúde (Campos et
al., 2014), ainda mais em territórios marcados pela pobreza, pela vulnerabi-
lidade e pela violência, temas que são uma constante para os profissionais da
Estratégia de Saúde da Família (ESF). As leituras que tentam reduzir a APS a
um cuidado básico com intervenções de menor complexidade não resistem a
um olhar mais detido sobre os problemas enfrentados pelos profissionais no
cotidiano de trabalho, principalmente em se tratando do enfrentamento da
violência direcionada ao público infanto-juvenil.
Não se pode omitir a importância da Estratégia de Saúde da Família
no cuidado à infância e o seu papel fundamental na redução dos índices
de mortalidade infantil nos últimos anos em nosso país. Há ainda uma
associação significativa entre a presença da ESF e o aumento da probabili-
dade das crianças continuarem na escola e na diminuição do atraso escolar
(NCPI, 2019). O relativo sucesso dos números, no entanto, não revela parte
dos impasses e desafios enfrentados pelos profissionais da APS no cuidado
a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e violência.
As reflexões desenvolvidas neste capítulo pretendem explorar parte
dessas questões, tomando como ponto de partida as discussões de casos
com profissionais da APS, no Curso de Especialização em Saúde da Famí-
lia, ofertado pela Universidade Estadual de Campinas entre os anos de 2018

194 • Capítulo 9
e 2020. Nessa ocasião, as equipes participantes trouxeram casos considera-
dos “mais difíceis” ou “mais complexos” sendo eles, em boa parte das vezes,
histórias envolvendo situações de vulnerabilidade e violência contra crian-
ças e adolescentes. Nas discussões se esboçaram questões como: até onde
intervir; quais consequências esperar das intervenções; qual o momento
de acionar outros serviços da rede; como a atuação desses serviços poderia
ajudar no problema identificado pela equipe; até quando as intervenções
deixavam de ser sinônimo de cuidado etc. Nesse sentido, as dificuldades
na articulação intersetorial, o receio de envolvimento emocional ou de jul-
gamentos morais e os impactos pessoais gerados pela proximidade com as
situações trazidas, no geral, compunham o cenário desses casos e pareciam
dificultar a construção de estratégias para promover o cuidado-proteção
esperado. Somadas a essas questões, os trabalhadores lembravam com fre-
quência da falta de estrutura das Unidades e da defasagem entre o número
de equipes e a população adscrita de cada território.
Conforme apontado por Deslandes (2002), a violência ainda é um
tema novo no campo da saúde pública e muitas vezes desafia os saberes,
desestabilizando modelos de explicação e causalidade, colocando em ques-
tão a racionalidade médico-científica. Nos últimos anos, há um esforço
importante do SUS para subsidiar a atuação dos profissionais, trazendo
referências e normativas que reconheçam a violência como um problema
de saúde, ao mesmo tempo em que buscam ampliar o repertório dos tra-
balhadores para lidarem com esse tema complexo, principalmente, quando
envolvem crianças e adolescentes. Destacamos aqui a Política Nacional de
Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (Brasil, 2001); a
Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes
e suas família em situação de violências: orientações para gestores e pro-
fissionais de saúde (Brasil, 2010); o Plano Nacional de enfrentamento da
violência sexual contra crianças e adolescentes (Brasil, 2013); e as Metodo-
logias para cuidado de crianças, adolescentes e suas famílias em situações
de violências (Brasil, 2014).
Em meio a essas diretrizes e ferramentas, há uma mudança impor-
tante em 2011, quando a violência se tornou um agravo de notificação
compulsória para os profissionais de saúde, a partir da Portaria n.º 104,
de 25 de janeiro de 2011 (Brasil, 2011). Essa portaria foi substituída mais
­tarde, pela Portaria n.º 1271, de 6 de junho de 2014 (Brasil, 2014). Nos
casos ­envolvendo crianças e adolescentes, a obrigatoriedade da notificação
é anterior e está prevista no ECA (Brasil, 1990), tornando compulsória a
notificação de casos confirmados e suspeitos e prevendo penas aos profis-
sionais que não comuniquem casos que são do seu conhecimento.

Desafios na atenção ao público infanto-juvenil... • 195


Em Campinas, a Secretaria Municipal de Saúde computa e divulga as
notificações anualmente a partir do Sistema de Notificação de Violências
de Campinas, que funciona desde 2005. Os dados divulgados são organi-
zados a partir dos tipos de violência, da faixa etária das vítimas, do local de
ocorrência e do perfil do agressor. Em 2018, o grupo etário de 0-19 anos
concentrou o maior número de notificações e a negligência foi a principal
violência sofrida, seguida da violência sexual. Diante disso, nota-se que a
importância da discussão da violência entre crianças e adolescentes se jus-
tifica pela sua complexidade — que é tema desse artigo — e pela sua mag-
nitude epidemiológica.

Notificação, cuidado-proteção e os dilemas dos profissionais da


APS diante de situações de violência contra crianças e adolescentes

A conformação dos primeiros saberes e práticas envolvendo a medi-


cina e os cuidados à infância se organizaram em torno da puericultura na
Europa Ocidental no século XIX e já carregavam um forte valor prescritivo
para a saúde física e mental das crianças, pautando ações nos discursos
normativos da ciência e da moralidade das classes dominantes da época
(Mendes, 1996). No Brasil do século XX, o discurso médico-higienista e
a educação se articularam na construção de práticas normativas quanto
à saúde física, mental e social de crianças e adolescentes (Abreu Junior &
Carvalho, 2012). Essas perspectivas fazem da infância um objeto de análise
científica e intervenções, pautadas em princípios universais a respeito das
condutas fundantes do desenvolvimento infantil ideal, condutas que não
poderiam ser negligenciadas em hipótese alguma.
O termo negligência pressupõe um “parâmetro de cuidado, consi-
derado aceitável socialmente e capaz de prover as necessidades essenciais
de crianças e adolescentes” (Mata, Silveira & Deslandes, 2017, p. 2882), ao
mesmo tempo em que aponta para os aspectos de poder e controle dos pro-
fissionais e instituições envolvidos em classificar a família e suas ações como
negligentes. De acordo com Faleiros (2011), os parâmetros para avaliação
da negligência incluem indicadores sobre as necessidades infantis que não
são atendidas e sobre a capacidade parental para responder às necessida-
des físicas, educacionais e psicológicas. Esses indicadores expressam ainda
um padrão minucioso e incluem aspectos relacionados à alimentação ade-
quada, saúde, comportamento social e disciplina adequados, escolarização,
relacionamento social, afeto, conforto, paciência, companhia e admiração
por um adulto (Faleiros, 2011).

196 • Capítulo 9
A negligência tem forte vinculação com o contexto familiar e pode
dar espaço para a intervenção das equipes a partir de parâmetros nem sem-
pre tão objetivos, abrindo possibilidade para a presença de aspectos morais
e emocionais dos profissionais, não só sobre a infância, mas também sobre
as famílias. De acordo com Barbosa (2009), os serviços podem vivenciar
dificuldades em reconhecer outras configurações e dinâmicas distintas do
modelo nuclear de família. Essas discussões assinalam a importância de
abrirmos espaços para que as equipes de saúde e assistência social colo-
quem em análise as expectativas sobre as funções, formas e papéis das famí-
lias, muitas vezes fundadas na centralidade do modelo de família nuclear.
A ideia da família como célula fundamental da sociedade e como es-
paço primordial de cuidado e proteção é naturalizada por muitos profis-
sionais. As famílias são tomadas como ponto central na organização das
intervenções das equipes da APS no território, mas as discussões em torno
das concepções, modelos, funções e composições esperadas das famílias
não comparecem no cotidiano das equipes com uma magnitude propor-
cional à sua centralidade. No Brasil, são numerosos os exemplos ao lon-
go da história em que a “defesa da família” foi apropriada como bandeira
de um discurso conservador, que operava quase sempre para privilegiar
modelos de família específicos que sequer condizem com a maioria das
famílias brasileiras, já que, de acordo com o IBGE (2010; 2011), mais da
metade dos lares brasileiros não são habitados por famílias nucleares com
pais, mães e filhos.
O trabalho envolvendo famílias é particularmente sensível às formas
ideais de cuidado adotadas pelas equipes e as situações envolvendo crian-
ças e adolescentes em situação de violência tocam particularmente nestas
questões. As leituras e análises realizadas pelos profissionais a respeito
das situações de violência envolvendo crianças e adolescentes, sobretudo
maus-tratos e negligência, estão diretamente relacionadas com o que os
profissionais esperam do tipo de cuidado que cada família consegue ofertar
concretamente. Em nossa experiência, com o apoio ao curso de Especia-
lização em Saúde da Família já citado, tais situações de violência se apre-
sentavam para os profissionais como paradoxais e eles se viam diante de
verdadeiros dilemas, não sem motivos.
A atuação dos profissionais da Atenção Primária é destacada como
tendo um potencial importante para prevenção das situações de violência,
já que a inserção no território pode facilitar a identificação de fatores de
risco e permitiria intervenções adequadas diante de situações de vulnerabi-
lidade (Lima et al., 2011). No entanto, é importante levar em consideração
os riscos de que, em nome da prevenção, se faça a promoção de estilos de

Desafios na atenção ao público infanto-juvenil... • 197


vida ideais, que não são apenas incompatíveis com a realidade da popula-
ção atendida, mas poderiam ser prejudiciais à maneira como conduzem
a vida, o que Onocko-Campos chamou de “intervenções ortopédicas em
comunidades” (2006, p. 12).
A autora chama a atenção para o fato de que diversas intervenções no
campo da saúde tomam a população a partir de um lugar cristalizado como
“pobres-carentes-que-nada-possuem”, impedindo que os profissionais en-
contrem os sujeitos em lugar diferente daqueles que seriam sinônimos de
passividade (Onocko-Campos, 2006, p. 17). Mata, Silveira & Deslandes
(2017) destacam o fato de que certas práticas culturais ou provocadas por
limites sociais e financeiros podem ser tomadas como negligência, levando
ao questionamento sobre a legitimidade de que as famílias tenham a guarda
dos filhos. Entretanto, é preciso lembrar que, de acordo com a Lei n.º 8.069,
de 13 de julho de 1990, no art. 23, “a falta ou a carência de recursos mate-
riais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio
poder familiar” (Brasil, 1990). Nesse contexto, as autoras indicam que há
riscos de que os profissionais atuem para punir famílias que escapam de
certas normas do cuidar, considerando que o parâmetro utilizado muitas
vezes é o da família tradicional patriarcal-burguesa (Mata, Silveira & Des-
landes, 2017).
Há uma frequente passagem de famílias da condição de pobres para
a de negligentes, entretanto, faz-se necessária uma questão: “famílias ne-
gligentes ou negligenciadas?” (Mata, Silveira & Deslandes, 2017, p. 2885).
Tal consideração abre espaço para a discussão sobre quem são os atores e
fatores a produzirem negligências contra as crianças pobres; seriam ape-
nas as famílias? Questões como essa também compareciam nas discussões
da e­ specialização, quando os profissionais refletiam sobre as famílias com
crianças em situações de violência que eram atendidas, sobretudo quan-
do elas não eram vítimas de uma violência ativa, do tipo físico ou sexual.
Muitas vezes os participantes do curso discutiram os impactos que a no-
tificação, tomada como denúncia, poderia trazer para as famílias que já
eram alvo de tantas outras violências consentidas pelo próprio Estado, que
naquele momento se encarnava nos profissionais de saúde.
O ECA, com o art. 245, dispõe sobre o papel dos setores de saúde
e de educação, responsabilizando-os como esferas privilegiadas de prote-
ção, com a competência de notificar as situações de violência, na busca de
­soluções para proteger a vítima e apoiar os familiares (Brasil, 1990). Aborda
também, com o art. 13, a obrigatoriedade de médicos e outros profissionais
de saúde, professores ou responsáveis por estabelecimentos de ensino de
notificar às autoridades competentes os casos (suspeitos ou confirmados),

198 • Capítulo 9
sendo prevista uma multa de três a vinte salários de referência nos casos
de omissão (Brasil, 1990). Aos conselhos tutelares, órgão indicado para
­receber as notificações, o ECA define com o art. 131, que cabe defender e
garantir os direitos das crianças e adolescentes, detendo o poder de aplicar
medidas de atendimento, responsabilização e proteção, quando necessário
(Brasil, 1990).
Embora a notificação de situações de violência seja compulsória como
já apontamos, numerosos estudos demonstram que a adesão dos profissio-
nais ao ato de notificar está longe de ser total (Lima et al., 2011; Porto, Bispo
Junior & Lima, 2014). Os fatores apontados pela literatura científica como
responsáveis pelo baixo índice de notificação na saúde estão associados ao
desconhecimento sobre os procedimentos de rotina para denúncia, a falta
de informações sobre a família, assim como questões relacionadas à que-
bra do sigilo profissional, descrença na eficiência do sistema de garantias
de direitos, receio de represálias dos agressores, ausência de mecanismos
legais de proteção aos profissionais e escassez de regulamentos que firmam
procedimentos técnicos para esse instrumento (De Oliveira et al., 2013; Si-
queira, Alves & Leão, 2012).
Como qualificar as ações dos profissionais de saúde para torná-las
mais assertivas no processo de identificação e notificação dos casos de
violência em crianças e adolescentes? Essa é uma questão para diversos
autores, cujos estudos sugerem que as boas práticas na identificação e
na notificação ocorrem com maior frequência entre os profissionais com
participação prévia em capacitação a respeito da violência (Lima et al.,
2011; Assis et al., 2012; Lobato, Moraes & Nascimento, 2012). Nesse sen-
tido, saber sobre os tipos de violência, conhecer a rede assistencial e a
legislação sobre o assunto pode ser um preditor para o ato de notificar.
Esses dados se revelam importantes, contudo, necessitam uma ressalva
diante da possibilidade de levarem a acreditar que os profissionais não
notificam apenas por desconhecimento sobre os mecanismos e implica-
ções da notificação.
A aposta de que mais informações resultaria automaticamente em
mais notificações pode ser questionada, pois existem elementos pessoais
que interferem na escolha pela notificação (Pires et al., 2005). Uma pesqui-
sa realizada com médicos pediatras vítimas de maus-tratos na infância, por
exemplo, comprovou que apenas 50% deles notificaram os casos de maus-
-tratos identificados entre os pacientes atendidos (Pires et al., 2005). Nesse
sentido, entendemos que o “ato de notificar”, assim como outras ações em
saúde, não depende somente das dimensões técnico-cognitivas (Campos
et al., 2014).

Desafios na atenção ao público infanto-juvenil... • 199


Os dilemas e as dificuldades das equipes acompanhadas no curso fica-
vam realçados diante de casos com importantes violações de direito de crian-
ças e adolescentes, sejam em circunstâncias flagradas ou suspeitas. Ocorria
com frequência de a notificação mobilizar certo imaginário das equipes de
que essa ação culminaria necessariamente no rompimento definitivo de vín-
culos da criança com a família, genitores ou responsável naquele momento.
Essa ideia presumida de que as notificações resultam quase automaticamente
na perda da guarda pelas famílias ou cuidadores aponta para um desconhe-
cimento, pelas equipes, sobre a atuação dos serviços de proteção à infância e
adolescência? Indica não um desconhecimento, mas, nos parece que diante
dessa possibilidade, os profissionais superestimam o poder que detêm dian-
te do desfecho de casos de violência contra criança e adolescente, o que os
conduz a uma paralisia e a não notificação. O dilema deixa de ser apenas
notificar ou não notificar, a polêmica gira em torno da questão: as crianças
devem ou não continuar residindo com os familiares e/ou responsáveis que
não as protegem? A discussão, quando colocada nesses termos, pode levar a
uma polarização entre aqueles que “sentenciaram” famílias à perda da guarda
e aqueles que acham que os familiares mereceriam uma segunda chance.
O ECA trabalha junto com o Código Civil para regulamentar o poder
familiar. A Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, com o art. 1638, define
que a perda do poder familiar é aplicada quando os pais ou responsáveis
promovem castigos imoderados, abuso de autoridade e abandono, ou quan-
do, como previsto no ECA em seu arts. 22 e 24, faltam aos deveres a eles
inerentes de prover sustento, guarda e educação (Brasil, 1990, arts. 22 e 24).
Entretanto, de acordo com o IPEA (2004) a medida protetiva de acolhimento
institucional tem sido utilizada de forma indiscriminada, sendo 52% dos ca-
sos relacionados a motivos de pobreza. Isso infringe o art. 23 do ECA que diz
“A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente
para a perda ou a suspensão do poder familiar” (Brasil, 1990, p. 27).
O acolhimento institucional de crianças e adolescentes é uma medida
protetiva excepcional e provisória, prevista no art. 101 do ECA, para situa-
ções em que as famílias em vez de proteger, violam os direitos (Brasil, 1990).
De acordo com a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, o aco-
lhimento institucional tem como objetivo a proteção integral da criança e
do adolescente em situação de abandono ou de grave risco social e pesso-
al, quando se identificam ameaças quanto à integridade física e psíquica da
criança e do adolescente (Brasil, 2009a). O acolhimento ocorre com estudo
diagnóstico realizado sob a “supervisão e estreita articulação com Conselho
Tutelar, Justiça da Infância e da Juventude e equipe de referência do órgão
gestor da Assistência Social” (Brasil, 2009b, p. 29). A sentença de medida pro-

200 • Capítulo 9
tetiva de acolhimento institucional é uma ação do Ministério Público. Pode
ocorrer ou não após solicitação emitida pelo Conselho Tutelar e implica a
suspensão temporária do poder familiar. Salvo raras exceções, o ECA prevê
com o art. 101 que, quando não houver tempo hábil para acionar a justiça, o
Conselho Tutelar pode acolher as crianças e os adolescentes sem determina-
ção judicial, realizando comunicação posterior (Brasil, 1990).
Do total de crianças e adolescentes abrigados no Brasil, 86,7% possuem
família e em 58,2% dos casos mantêm vínculos com ela (IPEA, 2004). Ocorre
que a convivência familiar e comunitária é um direito constitucional previsto
no art. 227 (Brasil, 1988), tão importante quanto os direitos à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito e à liberdade. Nesse sentido, a constituição presume com o §8.º
art. 226 e 229 que o Estado deve dar assistência aos membros da família e im-
pedir a violência dentro dela, possibilitando-a assistir, criar e educar os filhos
menores e exigindo que os filhos maiores ajudem e amparem os genitores
quando idosos ou enfermos (Brasil, 1988). E, nos casos em que a convivência
com a família de origem não é possível, o art. 28 do ECA prevê a colocação
em família substituta mediante guarda, tutela ou adoção (Brasil, 1990).
Em nosso entender, a ideia de uma notificação obrigatória não pode
servir para apagar os dilemas que muitos profissionais se deparam em sua
prática diante de situações de violência envolvendo violência crianças e
adolescentes. Portanto, a notificação obrigatória não deve significar um
ato irrefletido pelos profissionais; ao mesmo tempo em que a reflexão e a
complexificação dos fatores envolvidos em cada caso não necessariamente
devem resultar na não notificação. A notificação não deve ter apenas um
fim em si mesmo, mas servir como disparadora para outras ações de cui-
dado e proteção. Mais do que identificar os fatores associados com o ato de
notificar ou não notificar, importa para nós entender como os profissionais
da ESF se apropriam da complexidade que envolve esses casos e como ba-
seiam as suas decisões e relações com os demais atores da rede de proteção
às crianças e aos adolescentes.

A articulação da rede de cuidado-proteção da infância


e adolescência

A partir destas problemáticas que envolvem o ato de notificar, o acio-


namento do Conselho Tutelar e as expectativas e os receios em relação aos
diferentes dispositivos que têm como alvo prioritário o público infanto-
-juvenil, cabe aqui colocar em questão a função da APS e do sistema de

Desafios na atenção ao público infanto-juvenil... • 201


proteção na garantia dos direitos desse grupo. Discutiremos a partir disso
o significado da atuação em rede e da operacionalização do cuidado-pro-
teção à infância.
É preciso reconhecer que a territorialização da Atenção Primária lhe
confere um lugar privilegiado de atuação, quando possibilita aos profissio-
nais conhecer o usuário como um “indivíduo-situado no mundo” (Bonet &
Tavares, 2006, p. 387). O território é lugar oportuno para negociações, para
aproximações com o saber-fazer comunitário local, para monitoramento
dos condicionantes do processo saúde-doença e avaliação permanente dos
desfechos dos casos. A ESF, nesse lugar, é uma referência para a rede de ser-
viços que atua na interface entre o cuidado e a proteção das crianças e dos
adolescentes, porque ela opera uma tradução contínua desses espaços onde
as famílias vivem (Bonet & Tavares, 2006). Assim, a ESF pode fornecer sub-
sídios para às áreas da educação e assistência social, orientando a tomada
de decisão das ações prioritárias para enfrentar as situações de violência a
que estão expostos crianças e adolescentes.
Os profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e
as Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) são os principais protagonis-
tas no atendimento e articulação entre os saberes práticos e técnicos no
­enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes (Mo-
reira et al., 2014b). Estudos mostram que muito dos casos de violência
­doméstica são identificados durante as visitas domiciliares realizadas pelas
ACS, ­sendo confirmados em consultas clínicas por meio de observação e
exame físico. Entretanto, há lacunas nas ações intersetoriais, o que preju-
dica na resolutividade e gera sofrimento e angústia nos profissionais da
APS que podem, por vezes, se sentir despreparados e desprotegidos para
manejar as demandas das crianças vítimas de violência doméstica (Ramos
& Silva, 2011).
Diante disso, não seria pertinente questionar quais são os elementos
dificultadores das ações intersetoriais? Muito falamos sobre a ausência de
capacitações. Mas, além disso, os profissionais dos serviços enfrentam re-
sistências políticas, institucionais e burocráticas, ausência de espaços cole-
tivos de análise dos processos de trabalho, carência de recursos humanos,
financeiros e logísticos e a indefinição de fluxos eficazes para o cuidado-
-proteção de crianças e adolescentes expostos à violência. Essas dificul-
dades intersetoriais não são ao acaso, mas são perpassadas por discursos
e práticas de uma realidade social “cujos valores patriarcais naturalizam
desigualdades de poder no âmbito familiar, rotulando a violência contra a
criança como um problema de menor importância, restrita ao doméstico e
privado” (Egry et al., 2017, p. 124).

202 • Capítulo 9
Ao falarmos sobre as dificuldades de atuação em rede e a função dos
serviços, convém ter em vista que discursos e práticas são estes. Diferentes
linhas de produção de sentidos provenientes das instituições sociais exer-
cem importante papel sobre a infância. Instituição, aqui, não é sinônimo de
estabelecimento. Trata-se de instâncias simbólicas e materiais engendradas
em processos históricos e sociais, que disputam interesses e subjetivação
dos sujeitos, do mundo e na gestão da vida (Lins & Cecilio, 2008).
Entre estas instituições estão a educação, a família, a medicina, o ju-
diciário, dentre outras que estão em inter-relação e, dessa forma, atuam
sobre a concepção de infância e adolescência em nossa sociedade. Elas ain-
da podem produzir práticas discursivas que capturam e reduzem o olhar
sobre as subjetividades, como o processo de judicialização da vida, que
“implanta a lógica do julgamento, da punição, do uso da lei como parâ-
metro de organização da vida e o judiciário se estabelece como instância
a qual não é possível se opor. Além disso, no mundo da judicialização foi
implantada a máxima «somos todos responsáveis», que delega às redes de
proteção e a toda e qualquer pessoa os funcionamentos antes restritos aos
operadores da justiça. Construindo, assim, uma subjetividade que afirma
uma ­determinada vida certa a ser garantida pelo judiciário” (Nascimento,
Jashar & Barbosa, 2018).
Essas concepções atravessam o cotidiano das políticas públicas e,
ainda que sem a intenção declarada, podem estar presentes na prática de
trabalho dos profissionais de saúde, educação e assistência. Por vezes, eles
atuam orientados por certa discriminação de corpos, gêneros, idades, raça,
cor e classe social exercendo controle na tentativa de normatização e nor-
malização das vidas.
Quando analisamos o processo de notificação e as medidas de prote-
ção de acolhimento institucional que o Conselho Tutelar pode fazer, em al-
guns momentos podemos identificar práticas discursivas de judicialização
da vida. O Conselho Tutelar, que é responsável pelo atendimento de crian-
ças e adolescentes em situação de risco e de violações de direitos (Araújo
& Henriques, 2019) enfrenta falhas no processo de comunicação dessas
problemáticas. Uma vez que há a denúncia, ela é vista muito mais pela via
da responsabilização do agressor e abertura de processo criminal do que
pela necessidade de suporte psicossocial para as pessoas expostas à violên-
cia (Conceição et al., 2020). Outro complicador à discussão se refere à ação
de retirada de crianças e adolescentes de seus núcleos familiares, em que
estiveram expostas a situações de violência. Ocorre que, no momento do
acolhimento institucional, por vezes, os conselheiros tutelares se utilizam
de escolta policial, as famílias resistem em entregar seus filhos e a­ cabam

Desafios na atenção ao público infanto-juvenil... • 203


por sofrer coerção policial ou outras formas de violência. Tal manejo é
controverso, visto que, no ato do acolhimento destaca-se a importância do
afeto para promover o cuidado e proteção integral (Fernandes Jacobina &
Lemos de Paiva, 2020).
Problematizar o conceito de risco e a gestão que se faz sobre ele, exer-
cida pelos Conselhos Tutelares, implica em reconhecer que “todas as ações
da criança e de sua família, analisadas como déficit frente às normas so-
ciais tomadas como padrão, vão ser classificadas como fator de risco pe-
los peritos de diferentes saberes que orientam sua atuação à infância e à
adolescência” (Lemos, Scheinvar & Nascimento, 2014, p. 162). Dessa ma-
neira a atuação do Conselho Tutelar, se generaliza o olhar para os casos,
descontextualizando-os, e reduz a escuta, padronizando-os, pode servir ao
controle e como meio de judicialização da vida, confundindo ações de pro-
teção e de cuidado com a reificação de discursos instituídos (Nascimento,
Jashar & Barbosa, 2018).
Quando tais condutas pautadas no controle e normalização da vida
não dialogam com práticas de envolvimento das famílias em um processo
de reflexão e modificação das situações de violência, o vínculo e o cuidado-
-proteção às crianças e aos adolescentes podem ficar prejudicado. De acor-
do com Campos (2007, p. 68), vínculo “é um vocábulo de origem latina, é
algo que ata ou liga pessoas, indica interdependência, relações com linhas
de duplo sentido, compromisso dos profissionais com os pacientes e vice-
-versa”. Considerando a pertinência do vínculo profissionais-usuários para
o enfrentamento e rompimento dos ciclos de violência, não poderia a ESF
pautar a discussão em rede sobre a importância da construção do vínculo,
entendendo que essa é uma temática tão cara à Atenção Primária?
Muitos serviços podem se beneficiar dessa discussão em rede. Às ve-
zes, em razão de certo afastamento afetivo com os usuários, as famílias não
têm o Conselho Tutelar como rede de apoio (Brito, Nascimento & Rosa,
2018). De fato, os profissionais desses serviços, mesmo que tenham bons
conhecimentos sobre o sistema de garantia de direitos em muitos momen-
tos atribuem exclusivamente às famílias a responsabilidade pela situação
que motivou a denúncia, desconsiderando o papel do Estado nessa pro-
dução (Brito, Nascimento & Rosa, 2018). Um grupo focal realizado com
adolescentes institucionalizados, por outro lado, apontou que esse segmen-
to pode identificar como figuras de apoio não apenas o Conselho Tutelar,
como profissionais da instituição de acolhimento, a família extensa e mem-
bros da comunidade de origem (Carlos et al., 2014).
Ações de Apoio Matricial podem fomentar a corresponsabilização
entre os serviços, quesito fundamental para enfrentar a possibilidade de

204 • Capítulo 9
que trabalhadores da saúde fiquem receosos de que os desdobramentos da
identificação e posterior notificação da violência sejam pontos de parti-
da para o controle e judicialização. Essa articulação da rede por meio do
Apoio Matricial pode proporcionar que a notificação se torne um objeto
de investimento para qualificar os fluxos de cuidado-proteção da infância
e adolescência.
“A postura burocrática, o jogar-se tudo no futuro, o ressentimento ou
a culpa, a não apropriação de novos conhecimentos, a concentração de po-
der, todos são fatores ou sintomas que impedem a constituição de objetos
de investimento. [...] A construção desse objeto de investimento depende
de fatores políticos, cognitivos e afetivos. Há que se lidar com esta mescla.
Por outro lado, agir em função de outros, estabelecendo compromissos e
contratos; ou seja, sem renunciar absolutamente ao desejo ou ao interesse
particular. Agir tendo-os como referência, para compor espaços e modos
de agir que estabeleçam essas mediações” (Campos et al., 2014, p. 992).
Tornar a notificação um objeto de investimento implica em reconhe-
cer que a notificação não é um ato pontual que pode ser reduzido apenas a
seu caráter racional. Isto é, não há uma relação linear do tipo “sei” e por isso
“notifico”! Identificar e notificar uma situação de violência é um processo
complexo que não se restringe à dimensão cognitiva. É preciso reconhecer
as dimensões políticas (burocracias e relações de poder) e afetivas (cons-
cientes e inconscientes) nesse processo e discuti-las em rede, produzindo
espaços formativos para colocar em análise essa “escolha”. Além disso, tor-
nar a notificação um objetivo de investimento implica Cogestão, incluindo
usuários e profissionais dos setores da saúde, educação e assistência social
na discussão sobre vulnerabilidade, violência, cuidado e proteção à criança
e ao adolescente.
O aparente impasse instaurado na relação entre cuidado e proteção,
em que trabalhadores da saúde sentem que a potência do trabalho pode
ser ameaçada por uma lógica protetiva carregada de preconceitos e ações
reducionistas, precisa ser discutido entre os serviços, colocando em análise
os atravessamentos da articulação da rede intersetorial. Com os espaços
coletivos, em que a notificação se torna um objeto de investimento e de
análises, pode-se potencializar a corresponsabilização entre os serviços de
saúde, educação e assistência (Campos et al., 2014), fundamentais para a
construção de boas práticas em relação ao público infanto-juvenil que pas-
sou ou passa por algum tipo de violência.
Neste sentido, apesar de sermos críticos às atuações baseadas na ­gestão
de riscos pautadas na vigilância e no punitivismo que pode pairar sobre os
Conselhos Tutelares tratadas anteriormente, temos por intuito aqui colocar

Desafios na atenção ao público infanto-juvenil... • 205


em questão o papel do trabalhador da saúde, sobretudo da APS, na relação
com esse e outros serviços que exercem papel importante na proteção à
infância. O que observamos a partir da nossa experiência é que a já relatada
distorção dos profissionais quanto aos efeitos da notificação na manuten-
ção do poder familiar produz também impactos na relação com os demais
serviços da rede de proteção; quando optam pela denúncia, muitas vezes
os profissionais da APS esperam, apoiados em uma lógica ­punitivista, que
se produza a perda instantânea da guarda pela família e, quando isso não
acontece, termina por produzir uma dificuldade na relação com os outros
serviços da rede e a sensação de que eles não estão fazendo o seu trabalho.
Ressalta-se, portanto, que discursos naturalizados podem atraves-
sar o trabalho da saúde. Partindo disso, ao moralizar o cuidado, isto é, ao
­generalizar a operacionalização de sua atuação cotidiana, o trabalhador
da saúde pode estar investindo em práticas que resultem em violação de
­direitos da criança e do adolescente, ainda que não com essa intenção. Des-
sa forma, controle e vigilância da infância podem acontecer, em nome do
cuidado e da proteção, de formas sutis no cotidiano do trabalho de qual-
quer política pública.
Estas considerações em relação à saúde são particularmente funda-
mentais no campo da saúde mental e atenção psicossocial, em que traba-
lhadores estão em constante pressão para lidar com as capturas da judicia-
lização e da medicalização no cuidado de crianças e adolescentes, correndo
o risco de não singularizar as respostas às demandas, em uma lógica inter-
vencionista que dificulta ou impede que sejam analisadas as consequências
dos atos. A problemática da violência contra esse público encontra-se no
bojo dessa discussão e, na medida que abrange aspectos de saúde física e
mental, mas também familiares, sociais, econômicos, entre outros, as res-
postas a esse problema precisam ser articuladas em uma rede intersetorial.
O que estamos dizendo ao falar da necessidade de articular a rede?
Articular as redes é tecer conexões não lineares, realizar a identificação
e notificação, mas, além disso, a visita domiciliar, as ações de prevenção
da violência, o acompanhamento das famílias e outras ações construídas
­intersetorialmente, pensando o caso a partir de uma clínica ampliada. Re-
conhecemos o receio de profissionais de que o acionamento da rede in-
tersetorial reproduza e sustente uma lógica judicializante, porém a saída
para esse problema não é a atuação isolada dos serviços e a produção de
uma falsa dicotomia entre proteção e cuidado em saúde. É preciso ter como
norteador das ações em saúde que a lógica de cuidado deve estar conectada
com a noção de proteção, mesmo que a atuação dos serviços da rede inter-
setorial seja distinta, o que pode favorecer a ampliação do olhar em relação

206 • Capítulo 9
às famílias e, principalmente, às crianças e aos adolescentes, os quais, como
sujeito de direitos e, como o ECA aborda, protagonistas de suas vidas, são
também sujeitos com desejos e com vozes que precisam ser escutadas.

Considerações finais

O debate em torno da atenção às crianças e aos adolescentes expostos


à violência e atendidas na APS é maior e mais complexo do que este tex-
to conseguiu demonstrar. As ponderações dos entraves e desdobramentos
ligados à notificação não pretendem de modo algum desestimulá-la, mas
defender que a notificação não seja uma tarefa alienada pelos trabalhado-
res, que devem considerá-la como um processo, não sendo um ato com um
fim em si mesmo. Essa tarefa, no entanto, deve ser feita de forma cuidadosa
e os profissionais devem fazer da notificação um objeto de investimento
para que possam agir com a urgência que alguns casos demandam, sem
negligenciar ações preventivas.
Aqui não apostamos que os profissionais possam se colocar em uma
posição de completa isenção moral ou afetiva/emocional. Por isso mes-
mo apontamos a importância que decisões complexas como as que foram
discutidas aqui sejam tomadas em equipe e que as discussões em torno
dos desfechos e das prioridades das situações de violência que envolvem
crianças e adolescentes sejam tomados levando em conta outros serviços e
outras lógicas que não apenas a da saúde, daí a importância na construção
de uma rede viva e articulada.
Dada a proximidade do território e do cotidiano das pessoas, os servi-
ços da APS podem exercer um importante papel ao tensionar a rede de cui-
dados-proteção a crianças e adolescentes em situação de violência de modo
a ampliar o acesso e evitar práticas assistenciais parciais e omissas. Os dis-
cursos e as práticas podem ser modificados em espaços coletivos de forma-
ção, em que temas como construção do vínculo, territorialização, corres-
ponsabilização, dentre outros, podem ser trabalhados em ações de Apoio
Matricial. O trabalho dos profissionais de saúde muitas vezes se o ­ rganiza
em uma lógica diferente dos profissionais do Conselho Tutelar ou da Assis-
tência Social, o que faz que os pontos de diálogo devam ser valorizados e
que as diferenças não sejam tomadas como antagônicas, mas complemen-
tares ao promover o trabalho de cuidado e proteção a crianças e adolescen-
tes em situação de violência. O trabalho em rede pode ampliar a potência
de agir diante dos casos de violência contra crianças e a­ dolescentes.

Desafios na atenção ao público infanto-juvenil... • 207


Referências

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Desafios na atenção ao público infanto-juvenil... • 211


Capítulo 10
Experimentações para a construção de novas
abordagens de saúde da mulher na Atenção
Primária à Saúde

Thais Machado Dias


Cathana Freitas de Oliveira
Lilian Soares Vidal Terra

E m seu livro Como educar crianças feministas, a escritora africana Chi-


mamanda Ngozi Adichie indica duas “ferramentas feministas” sobre
as quais devemos nos debruçar ao pensar sobre a educação das crianças.
A primeira dessas premissas é desenvolver uma convicção clara e inabalá-
vel nas mulheres: eu tenho valor! A segunda se expressa por meio de uma
indagação: “podemos inverter X e ter o mesmo resultado?” Quase invaria-
velmente, quando a resposta for “sim”, estaremos lidando com uma questão
em que há igualdade de gênero e que, portanto, parte de uma perspectiva
feminista. No livro, a autora exemplifica: Se um homem trai sua esposa, ele

212 • Capítulo 9
pode ser perdoado? Se a resposta à questão inversa — Se uma mulher trai
seu marido, ela pode ser perdoada? — for sim, teremos uma situação que
está marcada pela possível igualdade de gênero, sendo uma lição positiva
para a qual as meninas podem direcionar sua atenção e sua escolha.
Partindo dessa reflexão, façamos um exercício semelhante ao discutir
o tema “Saúde da Mulher”. Sobre que bases se assentam essa área da saú-
de? É possível dizer, sobre a forma como é ensinada e praticada, que par-
te da perspectiva feminista, de igualdade de gênero? Convidamos o leitor
a nos acompanhar na construção de um novo olhar, e consequentemente
uma nova ética que deva pautar a formação e a atuação dos profissionais
de ­saúde.
Partimos do pressuposto de que a formação dos profissionais de s­ aúde
deve assegurar o desenvolvimento de competências técnicas, éticas e rela-
cionais para a compreensão das múltiplas dimensões constitutivas dos su-
jeitos e coletivos, para o trabalho interdisciplinar e em equipe, e para uma
aproximação genuína à complexa realidade das pessoas (Campos, Cunha &
Figueiredo, 2013). Tal formação ampliada torna-se especialmente impor-
tante no contexto da Atenção Primária à Saúde (APS), cuja vasta gama de
demandas exige dos profissionais — para além do conhecimento técnico,
e não menos importante — um conjunto de referenciais teóricos e práticos
que auxiliem no manejo dos processos subjetivos e sociais, essenciais para
uma produção de cuidado centrada no sujeito e nas suas múltiplas condi-
ções de existência. 
Com essa premissa, o Coletivo de Estudos e Apoio Paideia – UNI-
CAMP vem propondo diversas intervenções (cursos, seminários, pesqui-
sas, disciplinas) cujo objetivo é contribuir na produção de uma prática am-
pliada em saúde. Assim, na experiência que inspira este livro, um Curso de
Especialização em Saúde da Família para as equipes de APS de três municí-
pios brasileiros, ministrado nos anos de 2018 a 2020, optamos por discutir
as grandes áreas de atuação da Saúde da Família em uma abordagem que
potencializasse uma prática mais reflexiva, promovendo a autonomia dos
sujeitos (pacientes e profissionais de saúde) e a práxis de uma clínica am-
pliada (Campos, 2013), e fizesse frente às complexas necessidades da APS. 
No contexto do curso, discutir Saúde da Mulher junto com os profis-
sionais se apresentou como um desafio muito particular. A profunda desi-
gualdade entre os sexos e sua consequente desigualdade de gênero foi, no
âmbito da saúde, muitas vezes fundamentada pelas discussões das ciências
biológicas acerca do que seria a mulher e o feminino. Historicamente, estu-
dos na área da saúde e das ciências sociais mostram o quanto as condições

Experimentações para a construção de novas abordagens... • 213


entre homens e mulheres também são distintas no campo da saúde, e que
a busca pela equidade e integralidade deve ter como uma de suas imagens
objetivo a perspectiva de gênero. 
Para o escopo deste texto, consideramos que o corpo biológico é tam-
bém investido de história e significado. Ele adquire caráter político à me-
dida que se insere em um sistema de construção discursiva, onde social e
subjetivamente vai sendo dotado de diretrizes e normativas que o condu-
zem e o formam ao mesmo tempo; nele incidem práticas determinadas
pelo saber científico, sobre as quais o exercício da medicina se ancora. 
As práticas em saúde são constituídas socialmente em locais e tempos
históricos determinados. São fruto também das representações e formula-
ções acerca dos sujeitos e das relações humanas, assim como dos agravos
e doenças. Isso se torna especialmente delicado quando tratamos da saúde
das mulheres. Pretendemos, aqui, refletir sobre a origem de certos discur-
sos, mas especialmente os efeitos de poder que deles derivam.
Consideramos que a inclusão das dimensões sociais e subjetivas da
mulher amplia a compreensão de que a formação supostamente técnica das
áreas da saúde, em especial a Saúde da Mulher, foi constituída sobre uma
base social patriarcal. Ou seja, durante séculos, o que entendemos como fe-
minino foi formulado a partir de um sistema social de regras e normatiza-
ção em que o poder primário (de autoridade política, privilégio social, con-
trole das propriedades e domínio da família) é predominantemente ditado
pelos homens. Ainda reverberando nesse aspecto, apontamos que a própria
posição da ciência moderna, que dá base ao trabalho das áreas do campo
da saúde, pauta-se em uma visão de sujeito construída a partir da ideia do
homem racional, em geral branco e heterossexual. Afinal, todo poder se
encontra associado a uma forma de saber que orienta, justifica e legitima
determinadas práticas sociais, e não seria diferente com as esferas de subje-
tivação e sujeição da mulher. Os avanços para a inclusão da d­ iscussão sobre
gênero, que apontam o reconhecimento dos jogos de força e de poder entre
os sexos, apoiam, portanto, a formação de estudos e pesquisas que colo-
quem essa categoria de análise nos distintos campos de produção de saber. 
Poderíamos apostar que, na saúde, este tema estaria resolvido, visto
que uma maioria das profissões da área são ocupadas majoritariamente por
mulheres, como a terapia ocupacional, a psicologia e a enfermagem, e que
somos número significativo entre pesquisadoras e nos chamados cargos
de gestão intermediárias. Entretanto, isso não ocorre e o cenário geral de
­desigualdade se repete no campo da saúde no Brasil, em que a superio-
ridade numérica não é suficiente para gerar práticas que desnaturalizem

214 • Capítulo 10
o papel da mulher a partir das distinções entre os gêneros, além de que
­muitos comportamentos machistas e patriarcais são também reproduzidos
por mulheres (Oliveira & Marçon, 2019).
Neste ponto, torna-se importante — a partir de novas premissas para
educação de crianças e adultos, como nos propõe Chimamanda —, r­ essaltar
que as mulheres são as primeiras a serem reconhecidas quando falamos so-
bre o cuidado. Historicamente, ele tem sido atribuído ao gênero ­feminino
na maioria das sociedades. Cabe às mulheres gerir e alimentar os bebês,
educar as crianças, atender os idosos e assistir aos doentes. A designação
das mulheres como cuidadoras natas, desse modo, é um dos temas sociais
amplamente discutidos como pauta feminista, ­questionando-se a ideia de
que a responsabilidade no cuidado das crianças, doentes e/ou idosos seja
naturalmente das mulheres (Biroli, 2018). Dessa imposição social do papel
da mulher como cuidadora resulta uma secundarização do olhar às suas
necessidades e vulnerabilidades sociais. Torna-se necessário, ­portanto, in-
dagar: construímos um sistema de saúde que se propõe universal e equâni-
me, mas as mulheres possuem real acesso a ele, por meio de práticas e po-
líticas adequadas direcionadas a seus cuidados? (Oliveira & Marçon, 2019)
Será que estamos mesmo com uma prática de igualdade de gênero se
fizermos o exercício que nos propõe Chimamanda? 
O Coletivo de Estudos e Apoio Paideia vem propondo sistematica-
mente cursos de formação para profissionais de saúde a partir do Método
Paideia (Campos, 2013) que se originam de reflexões, tais como a discussão
aqui proposta, sobre a prática e a formação profissional. Para a construção
desse tema específico, foi realizada uma parceria com o Grupo de pesquisa
Conexões: Políticas da Subjetividade e Saúde/UNICAMP. Nessa oportuni-
dade, desejamos refletir junto com os profissionais de saúde sobre sua for-
mação, fundamentalmente no que diz respeito aos cuidados e as políticas
públicas direcionadas às mulheres. Buscando desnaturalizar um caminho
social que afirma uma visão de gênero e divisão do trabalho na produção
dos conhecimentos, dos discursos e das práticas em saúde, apostamos na
reflexão e na experiência crítica das mulheres. Acreditamos, assim, que no-
vas propostas políticas possam ser sustentadas no cotidiano dos serviços e
das trabalhadoras e dos trabalhadores que são formadores de opinião na
vida de milhares de usuárias(os) das Unidades Básicas de Saúde.

Experimentações para a construção de novas abordagens... • 215


O Gênero na formação em saúde

Para compreendermos melhor do trataremos neste capítulo, vamos


apresentar um pequeno histórico sobre estudos de gênero e formas nas
quais podemos encontrar sua expressão na construção social e na determi-
nação das ciências da saúde.
Acreditamos que gênero deva ser compreendido como uma catego-
ria de estudo e de luta política que evidencia a disputa da história a partir
da percepção “sobre o que podemos enxergar quando incluímos esta len-
te?”. Autoras clássicas norte-americanas, como Joan Scott (1987), ajudam
na construção de uma base de estudos comum entre as muitas definições
que podemos vir a utilizar. Segundo ela, a categoria gênero como potência
de problematização histórica das relações de poder e distinção de posição
social, parece ter aparecido primeiro entre as feministas americanas que
queriam insistir no caráter fundamentalmente social das distinções basea­
das no sexo. A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico
implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual” e posicionava
uma inscrição no mundo a partir de disputas na sociedade que incluíam a
produção das ciências. O uso do termo era proposto por aquelas que defen-
diam que a pesquisa sobre mulheres transformaria fundamentalmente os
paradigmas no seio de cada disciplina. As pesquisadoras feministas assina-
laram muito cedo que os estudos desenvolvidos pelas mulheres acrescenta-
riam não só novos temas como também permitiriam uma reavaliação crí-
tica das premissas e critérios do trabalho científico existente (Scott, 1987). 
Ademais, pensar nas lutas que envolvem a distinção entre os gêneros
nos remete a um importante tema: a forma como estes jogos de poder se en-
trelaçam com a formação da divisão social do trabalho e as maneiras ­pelas
quais essa questão influenciou, e ainda influencia a construção da ciên­cia,
da educação e da política de cuidados em saúde. Nesse sentido, Silvia Fede-
rici (2017), em Calibã e a Bruxa, apresenta uma fissura na história tradicio-
nal de ascensão do capitalismo, apontando que o episódio conhe­cido como
“caça às bruxas” foi uma importante ferramenta de silenciamento do saber
natural sobre o corpo, das diversas funções sociais de resistência e do apoio
mútuo no cuidado entre as mulheres. “A substituição da bruxa e da curan-
deira popular pelo doutor levanta a questão sobre o papel que o surgimento
da ciência moderna e da visão científica do mundo tiveram na ascensão e
queda da caça às bruxas” (Federici, 2017, p. 364). Segundo a autora, apagar
as funções sociais que as mulheres tinham e ocultar a morte de milhares

216 • Capítulo 10
delas — as bruxas — foi necessário para a desarticulação da sua resistên-
cia, principalmente no que diz respeito a formas de organização coletivas,
reforçando modos de vida da lógica privada, essenciais para o ­advento do
capitalismo e da ciência moderna. Depreende-se que esse período histó-
rico marca uma nova divisão social do trabalho: enquanto as funções não
remuneradas de reprodução da mão de obra se mantêm a c­ argo do gênero
feminino, o que era passível de entrar na esfera da produção passa a ser
atribuído aos homens (Federici, 2017). Assim, como mencionado anterior-
mente, toda a ciência que se desenvolve a respeito da produção do cuidado
é feita tendo o homem branco como padrão de normalidade ou mesmo
como referencial de adoecimento, tratamento e cura. Mesmo a figura da
saúde da mulher é uma mulher vista pelo homem, ou seja, sua existência
como objeto de conhecimento deriva de uma construção política de saber
e poder feita pela sociedade patriarcal. 
Vale ressaltar que até o século XVI o cuidado com as doenças femini-
nas pouco interessava aos médicos. Mulheres eram assistidas por mulhe-
res — as parteiras não apenas se encarregavam de questões relacionadas
à gestação e ao parto, como também de condições ginecológicas, que até
então compunham uma prática social circunscrita ao ambiente domiciliar.
É no século XVI que se iniciam as tentativas de regulação das atividades
das parteiras, menos por questões relacionadas às supostas “más práticas”
do que pela proteção de um determinado nicho de atuação que começava a
ser adentrado pelos profissionais médicos, naquela época todos homens. O
parteiro cirurgião, como era chamado o médico de partos na época, firma
presença ao longo dos séculos XVII e XVIII, com o advento do fórceps, da
cesariana, e de outras formas de instrumentalização do nascimento, cujo
exercício era proibido às parteiras. É nesse momento que surgem os pre-
cursores de uma ciência chamada Ginecologia (Rohden, 2001).
Entende-se que a construção desta ciência e do profissional que exer-
ce tal cuidado esteve vinculada às disputas profissionais e de mercado entre
parteiras e parteiros cirurgiões (futuros ginecologistas). Isso se perpetua
no presente, o que se exemplifica na falta de regulamentação e de cursos de
obstetrizes no Brasil, nas lutas em torno do parto domiciliar ou na disputa
entre a ginecologia e a medicina de família e comunidade pela assistência à
mulher na Atenção Primária.
Sabemos, do grego, que gyné (mulher) e lógos (estudo) formam o
conceito da Ginecologia. Desse termo deriva “a ideia de que a Ginecolo-
gia é uma «ciência da mulher» em sentido amplo” (Rohden, 2001 p. 49) e
isso não é trivial. Decorre que práticas médicas voltadas para problemas de
saúde uterinos resultaram em uma ciência própria, que ao longo dos anos

Experimentações para a construção de novas abordagens... • 217


passou a se pretender como uma “ciência da mulher”. Especialmente de-
pois dos séculos XVII e XVIII, serviu-se da biomedicina para normatizar as
mais diversas existências e experiências das mulheres no mundo. Podemos
exemplificar esse fenômeno com a ideia muito difundida à época (e ainda
hoje) da suposta predisposição da mulher ao lar, aos serviços domésticos e
à maternidade como sendo intrínsecos à condição de possuir um útero, ou
seja, como sendo biológicos e naturais. Isso teve impacto profundo em pra-
ticamente todas as profissões e as ciências da saúde, especialmente na saúde
mental, com a psicologia e posteriormente a terapia ocupacional. Assim, o
conhecimento médico foi simultaneamente resultado e promotor de uma
sociedade e uma cultura da mulher se identificando, subjetivando e agindo
no mundo pela reprodução. 
É singular que a preocupação da medicina com o estudo da mulher
fosse tal a ponto de a Ginecologia superar o foco na saúde reprodutiva, sen-
do esse profissional consagrado extraoficialmente como “clínico geral da
mulher”, “o médico da mulher”. Não houve, de forma alguma, um paralelo
para os homens. Não cabe questionar a legitimidade desse processo, nem
a disposição dos profissionais em beneficiar as pacientes, apenas explici-
tar que a distinta abordagem dos gêneros pela própria Medicina culminou
com a criação de uma ciência própria. Citando Moscucci, “embora a gine-
cologia tenha um equivalente masculino na medicina geniturinária, não
houve a criação de uma especialidade dedicada a estudar de que forma a
vida do homem é afetada pela reprodução” (Moscucci, 1996, p. 32). A uro-
logia, em nenhum momento histórico, aventou-se como uma “ciência dos
homens”, ou pretendeu discutir seu comportamento social. Mesmo o com-
portamento supostamente masculino também foi socialmente construído
e sistematizado a partir do que Rodhen chamará de “ciência da diferença”:
a Ginecologia. 
Nesta altura, é necessária uma ressalva. Não se busca retratar as mu-
lheres como vítimas dos médicos do passado, mas sim entender os efeitos
de poder do patriarcado a partir desses enunciados científicos e, por con-
seguinte, a importância de mudar o paradigma de saúde da mulher, seus
conhecimentos, técnicas e práticas. 
Também no Brasil, a história da Saúde da Mulher esteve, durante
muito tempo, centrada no seu papel reprodutivo. É relativamente comum
que artigos e documentos oficiais do Ministério da Saúde iniciem a história
das políticas de saúde da mulher no Brasil pelos programas materno-in-
fantis, elaborados nas décadas de 1930, 1950 e 1970. Acerca dos primeiros
olhares em Saúde da Mulher para as mulheres-mães, Elizabeth Badinter
(1985) analisa a priorização da saúde da criança em uma perspectiva de

218 • Capítulo 10
garantia de uma população produtiva — o que se observa desde os séculos
XVII e XVIII, em especial na França, — e como isso impacta e dá origem às
produções em saúde materna e materno-infantil. Nota-se, então, como essa
concepção de saúde coloca a saúde da criança como central na produção
dos modos de vida e na produção de existência femininos.

Quando o farol ideológico ilumina apenas o homem pai, e lhe dá todos


os poderes, a mãe passa à sombra e sua condição se assemelha à da crian-
ça. Inversamente, quando a sociedade se interessa pela criança, por sua
­sobrevivência e educação, o foco é apontado para a mãe, que se torna a per-
sonagem essencial (Badinter, p. 26, 1985). Depois de fazer nos primeiros
capítulos de seu livro um extenso apanhado da autoridade masculina na
casa e do desprezo social pela infância, a autora nos conduz a uma genea-
logia do amor materno e, consequentemente, da responsabilidade materna
pela criança.

Marcamos aqui uma época histórica, onde pouco — ou nada — da


voz das mulheres poderia ser escutada ou considerada nos espaços públi-
cos, políticos e científicos. Porém, a ideia de discutir gênero como uma
categoria fluida e em permanente construção também nos permite colo-
car essa lente nas distintas maneiras pelas quais as pautas das mulheres se
atualizam ao longo do tempo, visto que essa construção não ocorre sem
tensionamentos. 
No Brasil, mesmo antes da formação do SUS, podemos apontar que
grupos de mulheres se organizam para sustentar questionamentos sobre as
maneiras pelas quais viemos produzindo discursos e consequentes com-
preensões sobre as mulheres, bem como sobre o modo de construir a polí-
tica e o cuidado em saúde para essa categoria. Até então a frágil atuação das
mulheres na determinação das políticas de saúde e nos espaços de planeja-
mento volta a ter força de expressão a partir dos movimentos organizados
por mulheres no mundo nas décadas de 1960 e 1970; e no Brasil, em espe-
cial entre 1970 e 1980. 
 O Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado
a partir de uma importante luta social do movimento feminista brasileiro
em 1983, resgata a trajetória da luta das mulheres na construção e imple-
mentação das políticas. Esse movimento das mulheres como protagonistas
do debate resulta no rompimento com a concepção do ciclo materno-in-
fantil como principal foco do corpo feminino, direcionando-o para a saúde
integral. Além disso, reforça os limites da formação dos profissionais e da
organização dos serviços, que deveriam operar para romper com essa visão

Experimentações para a construção de novas abordagens... • 219


e contemplar a integralidade e a saúde das mulheres nas suas mais amplas
dimensões e singularidades. 
Em consonância com as lutas internacionais, o PAISM integrava um
anseio por, muito além das práticas clínicas, direito de ter/viver uma sexu-
alidade, além de um espaço de atuação no trabalho e na sociedade que se
estendesse para além da reprodução. Apresenta a marca de um sujeito po-
lítico e de direitos, que passam a ser disputados pela organização integrada
de vários segmentos sociais, denominada engajamento no coletivo (Souto,
2008). Na busca por integralidade, passa a colocar esse sujeito (mulher) no
social e ampliar a visão que se tem de suas necessidades: 

Esta concepção se insere no processo de formulação de políticas de produ-


ção de conhecimento neste campo, considerando a historicidade de valores
e crenças que permeiam o ser homem e o ser mulher e apresenta novos
elementos de análise: ‘Trata-se [ . . . ] de perceber que as subjetividades são
históricas e não naturais, que os sujeitos estão nos pontos de chegada e não
de partida, como acreditávamos então; e, ainda, que as conexões podem
ser estabelecidas entre campos, áreas, dimensões sem necessidade exterior
predeterminada (Souto 2008, Rago, 1998, p. 98).

Ou seja, a ideia de gênero e a inclusão das mulheres na formulação


política marcam uma nova perspectiva sobre as diferenças entre os sexos
e buscam obter um tratamento mais igualitário na sociedade. Exploram
a ideia da mulher não apenas vista como um corpo no social, mas reco-
nhecida na sociedade a partir da existência de seu corpo como potência/
produção. A diferenciação do corpo, uma vez aceita em um programa de
saúde, promove não só novas formas de cuidado, mas o início de uma luta
por direitos. As mulheres passam a figurar de outro jeito no social, pois
constroem e são construídas como cidadãs da saúde.

Por outro paradigma de formação e atuação

Diante do exposto, manter a discussão aqui proposta restrita ao uni-


verso acadêmico seria compactuar com a violência a que as mulheres estão
sujeitas nos serviços de saúde, seja ela perpetrada por meio do governo de
sua conduta, objetificação de seu corpo, normatização de sua subjetividade,
negligência de suas necessidades ou quaisquer outras tantas que presencia-
mos cotidianamente. Acreditamos que toda a produção e discussão sobre
o cuidado da mulher deva ser revista a partir da perspectiva feminista, a

220 • Capítulo 10
fim de que as práticas profissionais deixem de praticar a opressão patriar-
cal, e que os temas rapidamente discutidos neste capítulo façam parte do
currículo de toda a formação, envolvendo também as práticas de educação
permanente em saúde. 
Porém, isso ainda seria insuficiente caso o modelo de formação não
seja, ele mesmo, revisto. Para que se promova uma prática mais reflexiva,
que considere a subjetividade e o contexto socio-histórico das mulheres,
faz-se necessária uma formação também reflexiva. 
São diversos os autores que reconhecem a falência de um modelo de
ensino centrado em conteúdos e disciplinas fragmentadas (Almeida Filho,
2010; Nuto et al., 2006; Carvalho & Ceccim, 2012; Souza, 2001). Neste mo-
delo, perde-se muito da capacidade crítica dos alunos, dificultando o rom-
pimento com aspectos cristalizados nas instituições de saúde. Neste tema
em específico, permite que mesmo as mulheres sendo maioria numérica
em muitos cursos da área da saúde e sendo as principais afetadas pela vio-
lência operada pela determinação patriarcal nas ciências, elas ainda não
apresentam força de expressão suficiente para mudar esta situação. São ne-
cessárias práticas de problematização e escuta que permitam construção
crítica e espaço de produção social e educacional operados pelas mulheres,
em que a revisão dos livros didáticos e dos cenários de prática de formação
entrem em questão, refletindo também na prática dos serviços de saúde.
Nossa sugestão, para tanto, passa pela utilização de metodologias de
formação e educação permanente que explorem a experiência como base
dos processos reflexivos sobre o estudo teórico e a prática profissional. Es-
pecificamente na experiência de que trata este capítulo, utilizamo-nos do
Método Paideia (Campos, 2013). 
Ao abranger relações de poder, afeto e saberes, e propor uma intera-
ção menos vertical entre professor e estudante (transversal, nas palavras do
autor), o Método estimula uma postura mais ativa por ambos, permitindo
que o não dito da prática dos serviços (no caso, violência obstétrica, vio-
lência ginecológica, silenciamento das mulheres etc) venha à tona e seja
problematizado. Assim, por meio de ofertas teóricas, discussão de casos
e projetos de intervenção, uma formação pelo Método Paideia incentiva,
além da incorporação de novos conceitos e paradigmas, a realização de
intervenções concretas, ligadas às relações de poder, à gestão e à política,
integradas à clínica (Oliveira Viana & Campos, 2018), a partir das quais
seria possível a construção de um novo paradigma em Saúde da Mulher. 
Isso posto, o Coletivo de Estudos e Apoio Paideia se propôs a abor-
dar junto com profissionais das Equipes de Saúde da Família de todos os
níveis — fundamental, médio e superior — e todas as áreas que compõe as

Experimentações para a construção de novas abordagens... • 221


equipes e Núcleos de Apoio a Saúde da Família, o tema Saúde da Mulher
na perspectiva aqui proposta, incluindo-o nos cursos de especialização e de
extensão em Saúde da Família ministrados nos anos 2018 a 2020. 
Cabe mencionar que, na composição das turmas, os homens estavam
mais concentrados na categoria médica e as demais eram predominante-
mente femininas. A respeito da reação dos alunos à aula, da qual daremos
exemplos, algumas mulheres compartilharam experiências de cuidado em
saúde, vividas como profissionais ou como pacientes, que abarcavam inva-
são dos corpos e da privacidade, desconsideração sobre a produção sub-
jetiva e experiências de adoecimento. Nesse sentido, podemos dizer que
o tema da Saúde da Mulher, da forma como foi apresentado nos cursos,
mobilizou os alunos a se expressarem, compartilhando seus valores e suas
crenças, de modo que ficam explícitos os posicionamentos morais sobre as
práticas de trabalhadores.
Para o planejamento e preparação da aula, foram convidadas cole-
gas pesquisadoras do Grupo Conexões: Políticas da Subjetividade e Saú-
de/UNICAMP. As aulas foram ministradas pela médica de família e co-
munidade Thais Dias, coautora deste capítulo, e a experiência resultante
será aqui narrada e discutida com as reflexões postas, a fim de servir como
exemplo ou inspiração para futuras experiências pedagógicas. 
Como esperado, a experiência de realização da aula no curso foi de
fato extremamente singular. Havia o desafio de abordar, para profissionais
de diversas áreas e práticas profissionais, experiências de sujeição da mu-
lher na produção do conhecimento sobre o corpo feminino, com a profun-
didade teórica e epistemológica que o tema exige, e simultaneamente abrir
espaço para as vivências, tentando trazer uma proposição de mudança de
práticas que dialogasse com o cotidiano desses trabalhadores. 
Para a expositora, sendo médica, tratou-se também de compartilhar
parte da experiência de seu percurso clínico-profissional e revisitar sen-
timentos e afecções de seu processo de formação e educação continuada.
Consideramos que quando trabalhamos com esse tipo de metodologia,
colocamos em xeque nossa própria formação, abrindo espaço para proble-
matizar questões não vistas ao longo da graduação ou outros momentos de
educação permanente. A própria revisão de literatura, escrita neste capítulo
em trabalho conjunto das autoras, torna-se uma importante revisão de vi-
vências, desde as bases de formação ao questionamento das práticas atuais
de trabalho e pesquisa.
De partida, podemos afirmar, da perspectiva das autoras e experiên-
cia no curso, que por mais diferentes que sejam as categorias profissionais,
a vivência do patriarcado na elaboração dos modelos científicos apresenta

222 • Capítulo 10
pontos em comum. Compreendem desde os saberes clínicos das ciências
biomédicas, que abordamos de maneira mais pormenorizada anteriormen-
te, quanto os saberes “psi”, como a psicologia ou a terapia ocupacional, in-
fluenciados pela teoria freudiana em que, por exemplo, o lugar da mãe e
da sexualidade constroem uma subjetividade feminina própria que ainda
marcam profundamente muitas formas de atendimento clínico.
Certamente, haveria conteúdos suficientemente abundantes para as
conversas, sendo impossível tratar o tema de forma abrangente no perío­
do disponibilizado de 4 horas. Em virtude do grande número previsto de
participantes, cerca de 150 em cada turma, optamos por realizar uma ex-
posição dialogada, com auxílio de projeção de slides, sempre entrecortada
pela fala dos sujeitos presentes. A seguir, detalharemos a sequência de con-
teúdos proposta: 
A aula começa com algumas provocações um pouco mais lúdicas so-
bre a atualidade histórica do Movimento Feminista. Optou-se por aborda-
gem mais leve e com certo humor visto que, atualmente, ainda há grande
resistência das pessoas em relação ao tema. Tratou-se de um aquecimento
para aula, uma provocação, mas também de marcar posição em relação à
pertinência do debate sobre as opressões de gênero e do patriarcado. 
Segue-se então uma abordagem da Saúde Mental, propondo a dis-
cussão de um caso real atendido pela expositora. Tratava-se de uma adulta
jovem, de origem pobre, recém-formada em um concorrido curso de uma
universidade pública de renome. Uma mulher que seria, sob muitos as-
pectos, considerada bem-sucedida. Mesmo com muitos motivos a serem
comemorados, porém, ela se apresentava profundamente descontente em
relação à autoimagem corporal, por obesidade e estrias, culminando em
sentimentos tão negativos em relação à autoestima que chegavam a com-
prometer sua vida cotidiana.
Para debater este caso, a principal referência teórica foi a obra Saúde
Mental, Gênero e Dispositivos, de Valeska Zanello (2018) indicada também
como bibliografia de apoio para os profissionais que porventura desejassem
se aprofundar no tema. A autora aborda a forma como as mulheres se sub-
jetivam em uma sociedade patriarcal, submetendo-se a padrões (como, por
exemplo, de beleza) muito mais estreitos e rígidos que os masculinos. Tam-
bém trata da centralidade da relação amorosa na vida da mulher, que jun-
tamente com o padrão estético seriam marcadores de felicidade. A beleza
feminina é, para Zanello, um referencial masculino, do que é belo para um
determinado tipo de homem. Segundo a autora, a esfera da beleza, da se-
xualidade e do suposto “sucesso no amor”, bem como a importância social
dada à relação com um homem, como o casamento, estão profundamente

Experimentações para a construção de novas abordagens... • 223


relacionadas à autoestima das mulheres, e são, marcadores de realização,
mesmo que essa mulher seja absolutamente bem-sucedida em outras esfe-
ras da vida ela costuma ser lida socialmente e acaba se construindo como
“infeliz”. Muito diferentemente do que para os homens, em que o casamen-
to frequentemente aparece de maneira jocosa como prisão ou castigo.
Façamos uma comparação simples: um homem solteiro na faixa dos
40 anos dificilmente é considerado como infeliz per se, pelo contrário, é
frequentemente considerado socialmente como um homem livre, que
aproveita a vida mais do que seus amigos casados. Fazendo o exercício que
propõe Chimamanda, como é vista uma mulher solteira na faixa dos 40
anos? Ao não conquistar o suposto “sucesso no amor”, ou seja, o casamento,
por mais bem-sucedida que seja em outras esferas da vida (profissão, ou-
tros afetos que não o erótico, vida intelectual, financeira etc.) é considerada
infeliz, ou “mal-amada”. A subjetivação feminina pelo amor erótico (e ma-
terno) é amplamente discutida no livro. 
Ao longo do debate em torno desse caso, percebeu-se, por meio de
olhares e faces de aprovação ou reprovação, sorrisos e leves movimentos
de sim ou não com a cabeça, que o tema desperta afetos, em especial nas
mulheres, que com maior ou menor intensidade, sempre experienciam
no corpo e na sua subjetividade os padrões de beleza e o peso social de
nunca se encaixarem nele. Discutimos como isso e as relações afetivas e
­amorosas afetam e atravessam profundamente seu cuidado e suas deman-
das em saúde.
Ainda sobre as demandas em Saúde Mental, partimos de um texto
jornalístico do El País, publicado em 7 de março de 2019, “Dia da Mulher:
Carga mental: a tarefa invisível das mulheres de que ninguém fala | Brasil
| El País Brasil” (2019) que debate a divisão sexual do trabalho doméstico
e a sobrecarga mental que dela deriva. Sugerimos um exercício de refle-
xão: quem é o responsável, no domicílio dos trabalhadores presentes no
curso, pela limpeza da roupa de cama? Essa tarefa é igualmente compar-
tilhada entre os gêneros? De fato, é muito comumente realizada por mu-
lheres, seja como trabalho remunerado ou não. Novamente, olhares de
aprovação por parte de muitas trabalhadoras. E um debate curto a partir
da reportagem e do exercício de questionamento. Por meio dessa discus-
são, concretizamos dois pontos a que nos referimos anteriormente: como
a divisão sexual do trabalho invisibiliza o trabalho reprodutivo e como as
relações de poder que daí derivam marcam a construção da subjetividade
das mulheres. 
Em seguida, adentramos o campo das clínicas biomédicas que com-
põem a saúde das mulheres, para tanto nos utilizando de uma imagem

224 • Capítulo 10
provocativa (a anatomia da glândula mamária feminina) que explicita a
discussão estrutural desde os livro-textos anatômicos.
Neste momento, problematizamos o modo como a representação das
mulheres nas ciências biomédicas sempre teve como centralidade sua fun-
ção reprodutiva, remetendo-nos aos argumentos de Rodhen e Moscucci
expostos anteriormente. Tal prática gera e reforça o determinismo social
em relação à maternidade, e aparece de muitas maneiras estruturais, por
vezes sutis, na formação em saúde. Como exemplo, discutimos os livros
de anatomia e fisiologia, propondo o seguinte questionamento: que quan-
tidade de páginas, textos e ilustrações dos livros de anatomia em que cada
profissional estudou é dedicada ao sistema reprodutivo feminino, em ter-
mos concretos? E ao sistema de prazer sexual feminino? E nos livros de
fisiologia? O que estudamos sobre ereção ou ejaculação em mulheres? E
em comparação, quanto foi estudado sobre a fisiologia da resposta sexual
masculina, seus mecanismos de ereção e ejaculação, sistemas simpático e
parassimpático? Partimos dessa provocação para iniciar o debate sobre a
estrutura patriarcal dos cursos da área da saúde.
Com o objetivo de evidenciar as bases sobre as quais os conhecimentos
e as técnicas hoje utilizados na ginecologia foram concebidas, ­apresentamos
a história do médico estadunidense James Marion Sims, do início do século
XIX, conhecido como o “pai da ginecologia moderna” (Rohden, 2001) No
desenvolvimento dos seus estudos, Sims usou mulheres escravizadas afro-
-americanas como cobaias. Muitas cirurgias experimentais sem anestesia
foram realizadas compulsoriamente em mulheres escravizadas, com uma
série de sequelas. Especificamente, apresentamos a história de Anarcha,
uma de suas escravas, submetida a mais de 30 cirurgias experimentais.
Neste momento do curso, não passaram despercebidos da expositora
os afetos provocados por essa informação, visíveis na expressão dos rostos
dos alunos, especialmente das mulheres negras da turma. Especificamen-
te em um dos subgrupos, chegou a ter uma discussão entre uma mulher
negra, técnica de enfermagem, e um homem branco, dentista, em que ele
defendia que a crítica seria anacrônica, uma vez que muito da ciência mo-
derna foi construída por meio de experimentações que hoje não seriam
aceitas, enquanto ela defendia que tamanha violência contra seus antepas-
sados não se justifica em nenhum contexto ou momento histórico. 
Em seguida, para apresentar contrapontos e práticas de resistência
feminista presentes nas ciências biomédicas, utilizamo-nos de duas im-
portantes e simbólicas publicações do movimento feminista global. A pri-
meira dessas publicações é o livro “Our Bodies, Ourselves” The Boston Wo-
men’s Health Collective (2011) (posteriormente traduzido para o espanhol

Experimentações para a construção de novas abordagens... • 225


como “Nuestros cuerpos, Nuestras Vidas”) que foi uma grande experiência
de conteúdo clínico em Saúde da Mulher produzido em larga escala pelo
­movimento feminista. Esse conteúdo representa um importante marco
histórico na construção de outra Saúde da Mulher possível. Original de
1970, o livro está disponível gratuitamente na internet, em inglês e na
íntegra, e versões atuais, revisadas por coletivos feministas, podem ser
adquiridas nos idiomas inglês e espanhol. Sugerimos para os alunos que
assistissem ao documentário She’s Beautiful When She’s Angry, também
disponível gratuitamente on-line, que conta a história do movimento de
criação desse livro.
A segunda referência é a obra Mamamelis, de autoria da enfermeira
suíça Rina Nissim, fundadora, na década de 1970, do Dispensaire de Fe-
mmes, ambulatório em Genebra que inspirou a criação de centros para a
humanização da prática em Saúde da Mulher em muitos países. Na luta
contra a medicalização do corpo feminino, Nissim forja um conceito à
época chamado de “Medicina Doce”, utilizando-se de técnicas e práticas
em saúde que iam da homeopatia à acupuntura e, principalmente, resga-
tava os saberes tradicionalmente femininos da fitoterapia. Esse movimen-
to teve amplo impacto no Brasil e hoje é popularmente conhecido como
Ginecologia Natural, com cada vez mais adeptas, especialmente jovens de
camadas médias. 
Aqui importa ressaltar que em muitas Unidades Básicas de Saúde
­essas práticas se mantêm vivas, com curandeiras, erveiras e toda a sor-
te de mulheres envolvidas em práticas de cura, com amplos saberes em
­fitoterápicos regionais que devem ser respeitados pelos profissionais.
Mais uma vez voltamos a Federici (2017), que na obra Calibã e a Bruxa
se ­remete ao saber natural sobre o corpo e ao apoio mútuo no cuidado
entre as ­mulheres, posteriormente silenciado na caça às bruxas. Vê-se que
sempre houve resistência, e tais saberes mesmo perseguidos, puderam se
perpetuar no tempo. 
Após este debate, entramos em temas mais específicos, como a de-
nominação anatômica de “pequenos e grandes lábios” para a vulva fe-
minina. Essa nomeação destoa da realidade da maioria das vulvas, con-
tribuindo para o fenômeno histórico de cirurgias de ninfoplastia para a
suposta correção e estética de lábios vulvares. Também nos remetemos
à histórica erotização de vulvas infantis, partindo da observação de que
socialmente se tem como padrão de beleza vulvas róseas, sem pilificação
e vaginas “apertadas”, o que se remeteria ao padrão genital de uma crian-
ça. Ainda no campo da discussão anatomofisiológica, falamos a respeito
do clitóris, entendendo que a maior parte dos profissionais tem pouca

226 • Capítulo 10
formação a respeito desse órgão, o mesmo se valendo socialmente para as
mulheres como um todo. 
Partimos então para uma discussão sobre ciclos femininos, e sobre
como não somos acolhidas em nossa fisiologia essencialmente cíclica em
uma sociedade que cobra comportamentos e produtividade constantes no
tempo. Em seus ciclos hormonais as mulheres são, em comparação aos ho-
mens, igualmente produtivas, porém de forma irregular ao longo de um
ciclo. Não há, todavia, qualquer espaço para oscilações, de forma que são
os discursos e vivências patriarcais que moldam profundamente as relações
das mulheres com os próprios corpos e ciclos. A essa discussão seguiu-se a
apresentação do coletor menstrual e o esclarecimento de dúvidas sobre sua
utilização, entendendo que a maior parte dos trabalhadores e usuárias dos
serviços ainda possuem pouco acesso a esse dispositivo. 
Logo após, discutimos Violência Obstétrica, ainda que de forma
rápida e certamente aquém da importância do tema. O termo Violência
Obstétrica é utilizado para descrever formas de maus-tratos ocorridas na
assistência à gravidez, ao parto, ao pós-parto e ao abortamento. Um con-
junto de definições tem sido proposto nos últimos anos por diversos pa-
íses e instituições, sendo a Venezuela pioneira em tipificar essa forma de
violência no ano de 2007 (Diniz et al., 2015). Essa definição é um marco
mundial no movimento feminista, uma vez que na maior parte da literatu-
ra científica internacional, termos como “maus-tratos” (mistreatment) e/ou
“desrespeito” (disrespect) eram usados para nomear práticas hoje conside-
radas Violência Obstétrica. Em outras ocasiões, esses casos eram referidos
como problemas da ordem da relação médico-paciente ou violência ins-
titucional. A partir do momento em que se nomeiam essas práticas como
uma forma específica de violência contra a mulher, reforça-se o caráter de
gênero em torno dela, marcando um ponto de inflexão necessário ao real
enfrentamento do problema. A Violência Obstétrica pode ser expressa des-
de a negligência na assistência, discriminação social, violência verbal (tra-
tamento grosseiro, ameaças, reprimendas, gritos, humilhação intencional),
violência física (incluindo não utilização de medicação analgésica quan-
do tecnicamente indicada), uso inadequado de tecnologias, intervenções
e procedimentos desnecessários diante das evidências científicas (Diniz et
al., 2015). A pertinência desse tema no curso se deve às discussões sobre
o papel do pré-natal e a grande importância da Atenção Primária para o
enfrentamento específico dessa violência de gênero. Novamente, ao se dis-
cutir alguns casos específicos de Violência Obstétrica, a palestrante pôde
perceber reações nos alunos, visível nos olhares de mulheres e nas conver-
sas paralelas contando cenas e casos. 

Experimentações para a construção de novas abordagens... • 227


Finalmente, foi feita uma breve reflexão com os alunos sobre como co-
locar em prática o que fora trabalhado em aula. Discutimos a introjeção na
prática clínica cotidiana das UBS de pilares como: a) respeito à diversidade
de orientação sexual e diversidade de gênero; b) enfoque na construção de
autoconhecimento sobre o corpo; c) desmedicalização/Prevenção Quater-
nária; d) terapêutica ampliada, reconhecendo saberes locais e ­fitoterapia.
Sugerimos algumas perguntas concretas e recorremos ao treino de algumas
habilidades de comunicação para a abordagem de questões mais sensíveis
aos profissionais, como saúde sexual e orientação sexual.
Feito o encerramento e a abertura para perguntas, em uma das turmas
fomos tocadas por uma trabalhadora que comenta uma experiência abso-
lutamente pessoal como paciente de um serviço-escola no município de
São Paulo, quando submetida a tratamento para um câncer de colo uteri-
no. Ela se recorda dos atendimentos com muitos alunos e das truculências
e violências a que foi submetida durante o exame físico, até mesmo com
toques vaginais realizados por mais de dez alunos em contexto de ensino.
Ao compartilhar esse relato, chora muito, mesmo diante de um auditório
lotado. O que essa profissional passou como paciente hoje é considerado
Violência Ginecológica, novo termo derivado dos estudos de Violência
Obstétrica aplicado à assistência em Saúde da Mulher como um todo. O
que esse relato exprime e corporifica é uma das pautas mais centrais do
movimento feminista: “O pessoal é político”. Toda a questão epistemológica
e estrutural discutida ao longo da explanação incide sobre corpos concre-
tos, são práticas realizadas por pessoas sobre mulheres concretas. Geram
sofrimento nelas, e em todas nós.
Como mencionado anteriormente, a maioria dos profissionais de saú-
de, em especial na Atenção Primária, são mulheres e, nesse sentido, pode-
mos contar com os saberes oriundos das experiências. Corpos de mulheres,
em alguma medida, reconhecem a ação das opressões de gênero sobre si.
Não necessariamente as nomeiam ou conseguem deixar de reproduzi-las,
mas certamente as reconhecem.

Considerações finais 

De acordo com Luz (2009) é possível assumir três diferentes “tons”


nas proposições da Saúde Coletiva no que diz respeito à construção dos
saberes de núcleo: um tom analítico conceitual, um tom de análise socio-
-histórica e um tom interrogativo sobre o caráter coletivo desse campo. 

228 • Capítulo 10
Como prática analítica conceitual, a revisão aqui proposta adota di-
ferentes características de análise na formação de um conceito nuclear da
relação biomédica com a saúde da mulher que tematiza, fundamentalmen-
te, a necessidade de transformação das práticas e cuidados neste campo. 
Como análise socio-histórica, buscamos evidenciar o histórico de
lutas e  as crescentes transformações produzidas pelos coletivos de mu-
lheres na escrita e conformação das políticas de saúde, bem como seu en-
trecruzamento com o campo teórico/prático que o movimento feminista
nos ­oferece. Como efeitos desta aula, buscamos sustentar que as d ­ istintas
­disciplinas envolvidas com a saúde tornem conscientes as amarras ao pa-
radigma médico biologicista, com pequenas revoluções e rupturas nos
­saberes já instituídos. 
Sobre o caráter coletivo do campo, compreende-se que as necessida-
des de um sujeito são irredutíveis diante das necessidades de intervenção
populacional. Ao tematizar sobre a própria forma de estruturação do pen-
samento e problematizar saberes já constituídos, a Saúde Coletiva se apre-
senta como um núcleo de produção de resistência às práticas que descon-
sideram a singularidade e as subjetividades presentes nos encontros com
cada sujeito. 
Assim, sustentamos que o ensino no campo da Saúde Coletiva não se
dá pela formação de novas disciplinas que possam dar conta do sujeito da
saúde, mas sim pela construção de um plano transdisciplinar que avance
a partir da aceitação da complexidade dos saberes já instituídos e da flexi-
bilização das fronteiras deles para partilha de um objeto único, transdis-
ciplinar e complexo. Há uma irredutibilidade da Saúde Coletiva quanto à
adoção de um modelo único de discursos e práticas. Trata-se de abandonar
as formas de encontro com os sujeitos que visam à conformação de novas
teorias, para sucessivamente substituir a fragmentação das especialidades
pela construção de novos modelos de cuidado embasados em propostas de
valorização da vida (Oliveira & Guareschi , 2010).
Aqui, o entrecruzamento da Saúde Coletiva com a Saúde da Mulher
permitiria, a partir da singularidade — “o pessoal é político” —, construir
novas práticas de cuidado individual e coletivo pautadas na integralidade e
equidade e que partam da perspectiva feminista. 
Desse modo, este capítulo teve como objetivo iniciar o necessário
debate acerca da construção patriarcal da saúde que se perpetua ao lon-
go dos anos a partir da formação. Buscamos demonstrar, ainda, por meio
da e­ xperiência narrada, que a discussão teórica aqui apresentada deve não
­somente guiar o ensino da Saúde da Mulher nas formações da área da

Experimentações para a construção de novas abordagens... • 229


s­ aúde, mas transpor os muros da academia para a prática profissional e a
vida das m­ ulheres. 
Apontamos e reconhecemos que a forma de debate sobre o tema es-
teve ainda direcionada a um olhar para as mulheres cisgênero e heterose-
xuais. Não sentimos alcance, ainda, para o debate sobre as mulheres que
experimentam sua existência em outros padrões, apesar de termos plena
consciência e reconhecimento da importância disso. Em praticamente to-
dos os espaços universitários, coletivos feministas e LGBTQIA+ surgem
com grande potência, e muitas vezes é fora dos espaços acadêmicos for-
mais que alunos têm buscado conhecimento sobre o tema. Mas a estrutura
acadêmica não passa ilesa desse intenso movimento social, tensionada a
uma mudança de paradigma e ao estabelecimento de novas relações entre
docentes e alunas, mesmo que com resistência por parte das disciplinas
mais tradicionais.
No campo da Saúde Coletiva há uma grande abertura para debates
amplos que tomam a complexidade, os determinantes sociais e as dife-
renças para a produção transdisciplinar de novas soluções para o sistema
público de saúde. Experiências como essa, que pautam sua construção de
ensino na perspectiva política e crítica (Bondía, 2002) refletem e convidam
esse amplo e corajoso campo para que, dentro de si, abra novas formas de
se revisitar. Apostam, assim, na educação como uma práxis política e na
reflexão emancipatória das mulheres — e da Saúde da Mulher — a partir da
criação um espaço de desmonte da máquina de produzir sujeitos brancos e
masculinizados, construindo renovação institucional e abrindo espaço de
acesso e escuta das vozes de aprendentes e ensinantes.

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Experimentações para a construção de novas abordagens... • 231


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232 • Capítulo 10
Capítulo 11
Atenção aos pacientes crônicos na APS: ir
onde o povo está, conversar, versar, fazer
conversação, com versos e ações

Adail de Almeida Rollo


Gastão Wagner de Sousa Campos

[...] Aos idosos e não idosos, que levaram quase


sempre consigo o peso das múltiplas doenças crô-
nicas não transmissíveis e de tantas incapacidades
evitáveis a esperança de que sejam — de direito
e de fato — humanamente considerados pela so-
ciedade.
Paráfrase de Inês Lessa

Experimentações para a construção de novas abordagens... • 233


E ste capítulo pretende avaliar o contexto que envolve as Condições Crô-
nicas Não Transmissíveis (CCNT) com recorte nos quatro principais
grupos (circulatórias, cânceres, respiratórias crônicas e diabetes) e em seus
fatores de risco em comum modificáveis (tabagismo, álcool, inatividade
física, alimentação não saudável e obesidade). Objetiva também pensar
possibilidades de atuação da Atenção Primária no controle e tratamento
desses agravos, considerando seu propósito de defesa da vida, de produção
de sujeitos, de solidariedade e de implementação do SUS (Campos, 2000).
Atuar nas causas e na redução da morbimortalidade por condições
crônicas não é um desafio fácil, dada a complexidade que envolve o proces-
so saúde e doença dessas condições. O referencial da teoria da “coprodu-
ção singular de saúde e doença” de Campos (2014) nos auxilia na análise
ampliada dessa complexidade. O autor parte da “dialética multifatorial” do
processo saúde-doença, em que interferem fatores de ordem social, subje-
tiva e orgânica, tanto em interação conflitante como complementar, impli-
cando na necessidade de intervenção humana intencional para evitar ou
desconstruir contextos de produção de doenças e de exploração/domina-
ção de sujeitos.

Ampliando a análise do contexto que envolve as CCNT

Pesquisadores da Comissão de Pobreza alertam: Lesões e doenças não


transmissíveis são as maiores causas de morte de pessoas nos bilhões mais
pobres. No lançamento do relatório foi destacada a “sindemia” que atinge
a população pobre, resultante da combinação sistêmica das desigualdades
sociais com a alta prevalência das condições crônicas e a epidemia da Co-
vid-19, que levou a mortalidade a índices elevadíssimos entre os pobres
(Torres, 2020).
O relatório apresentou a desigualdade na expectativa de vida ajustada:
a perda de anos de vida por morte precoce ou incapacidade é de 20 anos
quando comparada a população de alta renda com a de baixa. A hipótese
explicativa, para os autores, é que os pobres enfrentam maiores riscos de
doenças e mortalidade em razão do menor acesso às ações de prevenção,
diagnóstico, tratamento e à má qualidade do atendimento, resultando em
diagnóstico tardio, menor adesão ao tratamento e desfechos evitáveis de
incapacidades e mortes prematuras (Bukhman et al., 2020).
Os autores ressaltaram que as CCNT são pouco reconhecidas pela
sociedade, mesmo entre profissionais e gestores da saúde como importan-
te causa de morte prematura e sofrimento da população mais vulnerável.

234 • Capítulo 11
Apontaram o entendimento reduzido da maioria das instituições de saúde,
que continuam a ver as condições crônicas apenas como inerentes ao en-
velhecimento, urbanização e estilo de vida das pessoas, como consagra-
do pela OMS no modelo cinco doenças x cinco fatores de risco (doenças
­cardiovasculares, câncer, diabetes, doenças respiratórias crônicas e proble-
mas de saúde mental X uso de tabaco, dietas não saudáveis, inatividade
física, uso nocivo de álcool e poluição do ar). Essa visão desconsidera a
exclusão social e a qualidade dos sistemas nacionais de saúde como impor-
tante fator de risco.
Alves & Morais Neto (2015), estudando a tendência da morte precoce
por condição crônica no Brasil no período de 2000 a 2011, encontraram
que a doença arteriosclerótica coronariana, o câncer, a doença renal crôni-
ca e o diabetes representavam 63,7% do total das mortes prematuras. Esses
autores observaram tendência de melhora da mortalidade prematura por
DCNT nesse período, notadamente por doenças do aparelho circulatório,
mas a redução da mortalidade prematura por neoplasias e diabetes melli-
tus permanecia como importante desafio, juntamente com as iniquidades
regionais/sociais e a atuação nos fatores de risco modificáveis.
O Ministério da Saúde do Brasil, na última década, alinhado ao Pla-
no Global da OMS de Prevenção e controle das condições crônicas res-
ponsáveis por 70% das mortes no mundo, vem promovendo uma série de
iniciativas relativas à atenção às CCNT, notadamente, com a proposição
do Plano de ações estratégicas para o enfrentamento das DCNT no Brasil
2011-2022 e da Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com DCNT de 2014
(OMS/OPAS, 2013; Brasil, 2011; Brasil, 2014).
Por recomendação do Plano de Ações Estratégicas para o
­enfren­tamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis, houve em pac-
tuação interfederativa dos gestores do SUS, a incorporação nos planos de
saúde nacional, estaduais e municipais, para o quadriênio 2018-2021, da
meta de redução em 2% ao ano das taxas de mortalidade prematura para
doenças do aparelho circulatório, cânceres, diabetes e doenças respirató-
rias, sendo assim, uma das metas nacionais do SUS (CIT, 2016). O balan-
ço das m ­ etas do Plano de DCNT 2011-2021 realizado pela Secretaria de
­Vigilância à Saúde do Ministério da Saúde em outubro de 2020 (Brasil,
2020), revelou:
:: A meta de redução da mortalidade prematura (30-69 anos) por
DCNT em 2% ao ano não está sendo e não será cumprida até 2021. Entre
2010 a 2018 a redução média foi de 1,70 pontos percentuais ao ano, com
maior queda acontecendo de 2010 a 2015 e diminuição da velocidade de
redução de 2015 a 2018;

Atenção aos pacientes crônicos na APS... • 235


:: A meta de deter o crescimento da obesidade em adultos não será
cumprida. Em 2010 era 15,1%, em 2019 saltou para 20,3%. De 2006 a 2019
houve um aumento de 72%;
:: A meta de aumento da prevalência da prática de atividade física
no tempo livre em 10% será cumprida. Em 2010, era de 30,5% da popula-
ção adulta, em 2019 foi para 39,0%. É maior no sexo masculino, diminui
com a progressão etária e apresenta forte aumento nas pessoas com maior
­escolaridade;
:: A meta da redução do consumo abusivo de bebidas alcoólicas em
10% não será cumprida. Em 2010 era 18,1%, em 2019 passou para 18,8%; e
:: A meta de redução da prevalência de tabagismo em 30% será atingi-
da. Em 2010 era de 14,1%, em 2019 caiu para 9,8%. Ela é maior em homens
e nos que têm menor escolaridade.

Os dados trazem uma parte da complexidade que envolve o c­ ontexto


das CCNT e evidenciam aumento na prevalência dos fatores de risco das
doenças e o não alcance das metas definidas. A este cenário se agrega
toda a repercussão da pandemia da Covid-19, as recorrentes epidemias
de ­arboviroses, a crise econômica com aumento da desigualdade, os al-
tos índices de desemprego e a significativa piora no financiamento do SUS
a ­partir da Emenda Constitucional 95 de 2017, que congelou os investi-
mentos na saúde, educação e promoção social. Questões que agravam o
quadro das condições crônicas, dos transtornos mentais, com aumento da
­demanda por serviços de saúde, dificultando a garantia de acesso e a qua-
lidade da atenção.
Cabe destacar que a preocupação com as condições crônicas não é
recente no Brasil. Em 1993 a epidemiologista, professora e pesquisadora
Inês Lessa apontou, de modo contundente o rápido envelhecimento da po-
pulação e o peso de riscos modificáveis como a alta prevalência do uso do
tabaco, o assustador incremento da prevalência do sobrepeso/obesidade da
população e a necessidade de ações amplas de controle tanto governamen-
tais como do empresariado e dos cidadãos para evitar que a morbimortali-
dade por condições crônicas contribuísse, mais ainda, para as desigualda-
des sociais existentes no Brasil.

[...] a população continuará em seu processo de envelhecimento acele-


rado, candidata a múltiplas patologias simultâneas, hospitalizando se
frequentemente, licenciando se do trabalho por questões de saúde, apo-
sentando se precocemente por doença, tornando se incapacitados e sem
condições de reintegração social, morrendo em idades produtivas da vida,

236 • Capítulo 11
enfim d
­ eterminando altos custos sociais e sem nenhuma perspectiva de
uma qualidade de vida digna de qualquer cidadão (Lessa, 1998, p. 248).

Papel da APS atenção às CCNT: é possível atuar para além


da oferta de consultas, exames laboratoriais e medicamentos?

O modelo de atenção dos sistemas nacionais e dos estabelecimentos


de saúde é determinante na garantia do acesso às tecnologias da clínica
e da saúde coletiva que defendem a vida e impactam nos indicadores de
saúde de uma dada população. Bárbara Starfield (2002) evidenciou isso,
na última década do século passado, realizando estudos comparativos de
modelos de atenção de vários países. Isso também se verifica nos relatórios
periódicos OECD (2019) e OPAS/OMS (2018).
As Políticas Nacionais do SUS de Humanização (Brasil, 2003), da
Atenção Básica (Brasil, 2011) e da Atenção Hospitalar (Brasil, 2013), den-
tre outras, têm referenciais importantes para o perene processo de inova-
ção de modelo de atenção e gestão dos serviços de saúde, com diretrizes
orientadoras para a atuação cotidiana dos profissionais e dos usuários na
disputa de modelos e concepções presentes na saúde: Saúde como direito
ou saúde como negócio? Usuário como sujeito ou objeto? Supremacia de
interesses mercantis e corporativos ou atendimento de necessidades indivi-
duais e coletivas dos cidadãos? Diretrizes e protocolos clínicos orientados
por evidências sanitárias e de produção de autonomia ou por interesses de
lucro das corporações empresariais?
Os processos de mudança de modelo de atenção são tanto um espaço
de criação como de tensão. No atual contexto ideológico, cultural e de po-
laridade política, é essencial propiciar espaços de reflexão crítica sobre as
práticas de saúde e seus efeitos na produção de vida e no modelo de aten-
ção na APS. Nesse espaço, a “autonomia de governo” das equipes é grande.
Campos (2003) aponta a importância de movimentos contra hegemônicos
moleculares com práxis transformadoras e “contagiantes”.
Neste sentido, a APS assume papel de alta relevância na mudança
de modelo, dada sua cobertura populacional e o número de profissionais
que nela atuam. O presente texto tem este chamamento e pretende atiçar
os leitores para novos modos de estar nas relações, com composição de
interesses, projetos e compromissos/contratos tácitos entre os profissionais
de saúde, usuários e gestores para que a atuação no processo saúde doença
contemple as expectativas dos implicados e tenha como resultante valor de
uso para todos (Campos, 2003).

Atenção aos pacientes crônicos na APS... • 237


Ir onde o povo está, conversar, versar, fazer conversação,
com versos e ações!

A partir do referencial da Clínica Ampliada e Compartilhada pro-


posto por Campos (2003), o que seria trabalhar com a ampliação do objeto
e priorização de objetivos e dos meios de intervenção no processo saúde
doença das condições crônicas na APS? Que resultados se poderia esperar?
Uma premissa é a não banalização dos encontros clínicos individuais
ou grupais e os entender como um “espaço coletivo”, um espaço de intera-
ção entre sujeitos, permeado de afetos, desejos, interesses, assimetrias, de
saberes e poderes, onde se faz necessário a reflexão sobre papéis e encargos
dos presentes e dos implicados não presentes.
Na complexidade dos encontros, procurar perceber que demandas
estão sendo apresentadas a partir de observações/escuta atenta, sem jul-
gamentos e rótulos prévios, perceber os sentimentos que brotam e avisam
sobre a abertura ou não dos participantes de assumir compromissos, de
cuidar das necessidades com definição de compromissos, e com tarefas co-
construídas. O vínculo terapêutico com relação horizontal e longitudinal
não pode deixar de ser ofertado nos encontros (Campos, 2014).
Como então trabalhar de modo ampliado no processo saúde doença
das condições crônicas? Partindo das quatro categorias analíticas proposta
por Campos (2014): o “Objeto” sobre o qual se trabalha, sobre o qual a equi-
pe se responsabiliza; os “Objetivos” ou as finalidades/propósitos do trabalho
em saúde; os “Meios de Intervenção” dos profissionais, saberes, processos de
trabalho, matérias e insumos; e os “Resultados”, efeitos, impacto das práticas.
Começando com a ampliação do Objeto: [...] “o objeto do trabalho
em saúde é um sujeito (paciente/família/comunidade) com problema de
saúde” (Campos, 2014, p. 67), com sua subjetividade em seu singular con-
texto afetivo, social e político, relativos ao local de moradia e trabalho. O
processo de adoecer das pessoas como objeto de atuação da clínica e da
saúde coletiva deve ter como uma de suas premissas a incorporação do
saber e vontade do sujeito na formulação e implementação de projeto de
saúde individual ou coletivo no seu território. Trabalhar com conceito am-
pliado de problema de saúde, integrando a análise de risco com a de vulne-
rabilidade dos indivíduos e dos coletivos (Ayres et al., 2014).
Na ampliação dos Objetivos e dos Meios de Intervenção, para as
CCNT, a proposição é aumentar os coeficientes de autonomia dos usuá-
rios por meio da descentralização das ofertas de atenção para os locais de
moradia e trabalho e a ampliação do rastreamento, estratificação de r­ isco

238 • Capítulo 11
e acompanhamento das pessoas. O propósito é que as pessoas possam am-
pliar sua compreensão e atuação em riscos modificáveis e no manejo da
condição clínica responsável por seu adoecimento, entendendo a saúde
não como um estado absoluto e sim em coeficientes relativos ao estado
de cada pessoa ou de cada agrupamento populacional, na polaridade de
bem estar e morte e a miríade de situações, possíveis, entre o saudável e a
doença. O “fator desejo” próprio do subjetivo das pessoas se faz presente
e deve ser considerado para se alcançar coeficientes ou graus maiores de
autonomia, sendo entendida como:

[...] a capacidade da pessoa e da coletividade lidar com suas dependências;


ou seja, autonomia em coeficientes e graus, nunca como conceito absoluto.
[...] Para a teoria Paideia a autonomia é a capacidade de compreender e
de agir sobre si mesmo e sobre o contexto, estabelecendo compromissos e
contratos com desejo, interesse e valores de outros sujeitos. Esta capacidade
não é um dom natural, inerente ao conjunto dos seres humanos ou a alguns
privilegiados. [ . . . ] Caberia construírem-se instrumentos que apoiem o de-
senvolvimento destas capacidades e de “potência suficiente” para uma vida
saudável, enquanto as pessoas frequentam escolas, serviços de saúde ou
grupos de convivência (Campos, 2014, pp. 61-4).

A ampliação dos Meios de Intervenção sobre o processo saúde-doen-


ça das condições crônicas pode começar pela equipe “ir aonde o povo está”,
com múltiplas rodas de reflexão no território de moradia e trabalho das
pessoas, propiciando espaços coletivos de relação dialógica, visando a am-
pliar a capacidade de análise/compreensão sobre o processo saúde-doença
das condições crônicas, situações e comportamentos de riscos, seus possí-
veis efeitos, ampliando a capacidade de atuação dos participantes sobre si e
no contexto de seu território vivencial (Campos, 2014).
Experiências significativas têm sido implementadas nesta lógica. Po-
demos citar o Centro de Saúde da Comunidade de uma Universidade Es-
tadual, que desde 2013, desenvolve o “Programa Cuide-se”, que tem como
objetivo a prevenção e tratamento de CCNT dos servidores da universida-
de. Esse programa é centrado em dois eixos de intervenção: o primeiro são
encontros de cerca de 60 a 90 minutos no local de trabalho durante a jor-
nada dos funcionários para conversar sobre conceito de saúde, redução de
danos, estilo de vida e fatores de risco, adoecimento, corresponsabilização
e autocuidado. Ao final do encontro é ofertado, no próprio local, o rastrea-
mento de pressão arterial, diabetes e sobrepeso/obesidade. O segundo eixo
é um leque de oferta de cuidado aos funcionários rastreados como de risco

Atenção aos pacientes crônicos na APS... • 239


ou adoecidos, que inclui grupos terapêuticos e agendamento de consultas
clínicas para seguimento longitudinal (Leme, 2019).
Em avaliação deste programa, Leme (2019) revelou, dentre outros:
a ampliação do acesso, da cobertura das ações e da adesão às propostas
terapêuticas, especialmente para o gênero masculino; ganhos de interação
social entre pessoas de diferentes áreas da universidade; a identificação de
pacientes de maior gravidade para elaboração de projeto terapêutico singu-
lar (PTS); a importância da equipe interdisciplinar implicada, valendo-se
da escuta reflexiva associada à conversa colaborativa e ao Apoio Institucio-
nal como referenciais para o trabalho como os grupos (idem).
A proposição é que estratégias desse tipo sejam adaptadas para as áre-
as de cobertura das UBS, com articulação de encontros por rua ou por qua-
dra, previamente combinados com os moradores, singularizando rodas de
conversas e as questões disparadoras ao contexto local. Observando reco-
mendações como: explicitar o propósito do encontro, acordar um contrato
preliminar de convivência (que sempre pode ser alterado) que garanta a
livre expressão dos participantes, compreender o encontro como um es-
paço continente e protegido, a valorização da escuta suportiva e compassi-
va, fazer análise de demandas, propiciar relação horizontal e longitudinal,
pactuar objetivos e tarefas, nas quais os participantes disponibilizem seus
recursos para alcançar resultados pretendidos em processos de Cogestão.
Quando ocorrer um atravessamento ou incidente crítico, analisá-lo obser-
vando os propósitos acordados no início do encontro (Matsuoka, <www.
comunicacaoconsciente.com>).
Ao final, à semelhança do exemplo relatado, ofertar no próprio local
da reunião, o rastreamento de pressão arterial, diabetes e sobrepeso/obesi-
dade. Os profissionais de saúde, a partir dos resultados dos rastreamentos
(pessoas com fatores de risco e/ou adoecidas) e do entendimento constru-
ído com as pessoas, devem ser portadores de ofertas de intervenção, que
incluem grupos terapêuticos ou educativos, práticas integrativas e agenda-
mento de consultas clínicas para seguimento longitudinal.
Um dos propósitos dos encontros é reduzir o desconhecimento so-
bre o processo saúde-doença das CC com atividades de aprendizagem,
acesso a informações e observação e atuação nas resistências dos sujeitos à
­mudança. Mesmo com o grau de incerteza do processo relacional do pro-
fissional de saúde/equipe com o usuário/sua rede socioafetiva, é possível
manejar a circulação de afetos, desde que eles sejam explicitados e avalia-
dos ao longo da relação.
Cabe ressaltar que, tanto nas atividades grupais como em encontros
individuais, a noção de “oferta” difere da noção de “prescrição”, porque

240 • Capítulo 11
pressupõe a possibilidade do usuário a analisar de modo crítico na rela-
ção dialógica para tomar uma decisão compartilhada. A oferta modificada
pela análise compartilhada se transforma em tarefa tanto para a equipe da
APS quanto para o usuário. Ter horários reservados para os momentos de
avaliação reflexiva sobre a realização das tarefas e seus resultados favore-
ce a compreensão de usuários e profissionais sobre suas resistências, seus
bloqueios e as restrições estruturais do contexto (Campos, 2014). Nesse
sentido, o autor, referenciado em Freud, destaca

Os profissionais ao estabelecerem relações de trabalho com uma pessoa ou


com um grupo contratransferem sentimentos e impressões, pré-julgando
estes usuários segundo critérios estereotipados. Esta padronização auto-
mática ocorre segundo categorias originárias da história pessoal de cada
profissional, da instituição ao qual se filiam (médicos, enfermeiros, etc.) ou
da organização em que trabalham (sistema público, pronto-socorro, hos-
pital, etc.). Assim é importante refletir sobre o tipo de sentimento que cada
caso produz no profissional responsável: indiferença burocrática, desafio
profissional, vontade de ajudar, indisposição em função de alguma caracte-
rística do usuário, como alcoolismo, dependência a drogas, violência, reli-
gião, ideologia, etc. Do mesmo modo, o usuário transfere aos profissionais,
e ao serviço, afetos diversos que precisam ser compreendidos pelos dois
lados: dependência absoluta do técnico, esperança mágica, revolta, desafio,
etc. A coconstrução de autonomia depende bastante da explicitação deste
paralelogramo de afetos que entrecruzam (Campos, 2014, p. 69).

A compreensão singular do processo saúde-doença pode evidenciar


que, em certos casos, o peso maior será como o sujeito anda no seu viver,
sua pulsão de vida, sua autonomia/capacidade de autocuidado; em outros,
o modelo de atenção reducionista praticado pelos profissionais de saúde
aliado a políticas públicas pobres iníquas, desde a concepção, nascimento
até a velhice dos cidadãos, que não garantem direitos da cidadania e aces-
so às tecnologias que produzem saúde; em outros casos a carga genética
desfavorável; em outros, a desagregação familiar e comunitária; em outros,
as condições de trabalho e por aí afora e adentro. Com essa compreensão,
Campos (2014) alerta para o risco que diretrizes genéricas ou reducionistas
e a abstração do conceito de integralidade podem causar a ânsia por mé-
todos que procuram dar conta de tudo, ou a simplificação do processo de
adoecimento, acabando por embaraçar a apreensão de singularidades de
casos e de seus contextos e advogarem e implicarem em intervenções não
efetivas.

Atenção aos pacientes crônicos na APS... • 241


Feinmann (2008) reflete sobre o sujeito a partir da citação de Sartre:

“Cada homem é aquilo que ele mesmo fez com aquilo quem fizeram dele.”
Isso para mim é uma das frases mais fundamentais de toda a história da
humanidade. Porque, com certeza, desde que nascemos fazem algo de nós;
nascemos e nos falam, nos dão uma língua, e nós a recebemos, como es-
ponjas, palavras, palavras, palavras. . . Quando começamos a falar, dizemos
o quê? Dizemos as palavras que nos disseram, ou seja, não temos então
uma linguagem autenticamente nossa; apenas acreditamos que domina-
mos uma língua e essa língua nos domina. Porém, algum dia teremos que
dizer uma palavra nova, algum dia teremos que dizer uma palavra que seja
nossa, e essa será a nossa liberdade. Assim, é verdade a linguagem que nos
condiciona, o ambiente político-social que nos condiciona, tudo isso é ver-
dade, que seja; mas, a partir de algum momento, temos que ser nós mesmos
responsáveis pela nossa vida, porque somos o que escolhemos ser. Por isso,
bem vinda a frase do mestre Jean-Paul, que diz que “cada homem é aquilo
que ele mesmo fez com aquilo quem fizeram dele” (Feinmann, 2008).

Uma paráfrase: nosso senso de self é parcialmente uma construção so-


cial, muito do que acontece na nossa mente não é nossa culpa, mas podemos
construir e tomar a responsabilidade para mudanças e começar a escolher e
cultivar diferentes versões de nós mesmos (Gilbert, 2014, p. 30). Completan-
do se, por um lado, as coisas, ou as estruturas, determinam a vida das pesso-
as, por outro, são estas mesmas pessoas que constroem as coisas, as normas,
os valores e as estruturas (Campos, 1994, p. 30).
Campos (2014) avança refletindo sobre os modos de subjetivação das
pessoas, as condições que se tem para aumentar o coeficiente de liberdade
e de autonomia da maioria da população, para que se tenha um futuro civi-
lizatório no qual impere a solidariedade, haja negociação e renúncias para
garantir a sobrevivência de todos e do meio ambiente. Superando tanto o
padrão do imediatismo pulsional dos que se julgam potentes e autorizados
a todos os tipos de gozo sem compromisso ético e sem se preocupar com
os efeitos disso, como do padrão de subjetivação, de alienação dos assujei-
tados, que em seu processo de sobrevivência agem de modo irreflexivo, au-
tomatizado na busca de satisfação de suas necessidades/desejos/interesses
e submissos às lógicas da dominação e exploração.
Interessa, para este artigo, como o padrão de subjetivação reflete no
modo de andar a vida das pessoas, “gastando mais ou menos saúde”, e a sua
capacidade de entendimento de seu corpo, da gestão de seus prazeres, da
relação com seu adoecimento/incômodo, com o meio socioafetivo, com

242 • Capítulo 11
seu trabalho e sua capacidade de estabelecer normas para si que ampliem
sua qualidade de vida (Campos, 1994).
No esforço de ampliar o conhecimento e a postura dos sujeitos no
processo saúde-doença das CCNT, as motivações e as emoções do e no
contexto do viver das pessoas tanto podem favorecer riscos e agravamento
como contribuírem para a proteção e controle da situação. Abaixo faremos,
sob o risco de simplificação, uma releitura das formulações que Paul Gil-
bert (2014) fez nesse âmbito, quando de sua proposição acerca das origens
e da natureza da terapia focada na compaixão, retomando aspectos evoluti-
vos que influenciam a construção do comportamento.
O sistema simpático está envolvido no alerta de ameaças e na ativação
de estratégia de defesa; no oferecimento de informação sobre recursos e
possíveis recompensas e na ativação de estratégias de ação e engajamento.
Diante das situações de perigo ou ameaça, ativa respostas mediadas pelos
hormônios do estresse (adrenalina e cortisol) com repercussões importan-
tes no funcionamento do sistema cardiovascular, no metabolismo glicê-
mico, das gorduras, nos fatores inflamatórios e na resposta imunológica,
com aumento da frequência cardíaca, da pressão arterial, do metabolismo
de glicose. E, ainda, pode desencadear quadros de ansiedade, raiva, medo
ou vergonha. Esses hormônios podem ser mantidos por um tempo após
a situação de estresse ter passado. Pessoas que vivem em contexto de vio-
lência, ameaça, carências, condições de trabalho inadequadas, de moradia,
do trânsito, poluição, desemprego, dívidas, perdas, frustações recorrentes
e pessoas com padrão de subjetividade egoístico, competitivo e de autoexi­
gência, comumente têm aumento desses hormônios, mantendo o padrão
de resposta metabólica ao estresse por tempo indeterminado (Torres, 2020;
Gilbert, 2014).
Também faz parte do sistema simpático, a dopamina, neurotrans-
missor do prazer, do comportamento motivado, ativador dos circuitos de
recompensa do cérebro. É responsável por ações relacionadas aos afetos
positivos de criação/construção, de procura por coisas agradáveis, do pro-
cessamento de ações de resposta e de enfrentamento às ameaças. Também,
é tida como ativadora de alegria, divertimento, excitação, prazer e da busca
e aquisição de recursos que podem propiciar conforto. A sensação de sa-
tisfação e prazer promovida pela dopamina é de curta duração, sua vida
média é de dois minutos e seu efeito dura menos de dez minutos. A esti-
mulação cerebral excessiva por ela leva à dessensibilização de receptores
e à necessidade de doses maiores para se obter o mesmo efeito, podendo
levar à repetição de comportamento, que pode configurar adicção, como se

Atenção aos pacientes crônicos na APS... • 243


observa em pessoas viciadas em trabalho, jogos, comidas, compras, sexo,
álcool e substâncias psicoativas (idem).
Seja em um extremo ou em outro, as pessoas que operam suas vidas cen-
tradas no sistema simpático estão sujeitas a danos orgânicos e ­psíquicos que
favorecem e complicam o manejo das condições crônicas, p ­ rincipalmente
da hipertensão arterial, diabetes, dislipidemias, e transtornos mentais.
O sistema parassimpático, que fornece informação sobre ­possibilidade
de repouso/inação, sensação de contentamento e abertura para conexões
com outras pessoas, seria capaz de proteger contra a ativação prolongada
do sistema simpático, porém é pouco acessado. Mediado pela liberação de
endorfinas, ocitocina, serotonina e vasopressina, promove a mudança no
balanço simpático-parassimpático com diminuição da pressão arterial, da
frequência cardíaca, do metabolismo de glicose, de fatores inflamatórios,
aumento dos processos digestivos e propicia a capacidade de afiliação, co-
nexão, repouso e emoções que estão no campo da amorosidade, amizade,
confiança, cuidado, cooperação, altruísmo, solidariedade, compaixão e au-
tocompaixão (Gilbert, 2014).
Esses sistemas se corregulam, misturam-se em função de como ­foram
maturados no processo de subjetivação do viver das pessoas. Ou seja, as
pessoas tendem a operar onde mais aprenderam, ou seja, com a adrenalina,
o cortisol e a dopamina, em virtude das pressões cotidianas a que estão
submetidas. Construir possibilidades de cultivar e atuar no sistema paras-
simpático é um desafio individual e societário. Criar espaços e ofertas co-
munitárias, públicas de lazer, convivência e cultura seria uma possibilidade.
Para os “cuidadores”, cabe ressaltar que quando as necessidades dos
que precisam de cuidado estão para além dos recursos que eles podem ofe-
recer ou articular na rede, ou quando estão além de suas habilidades/capa-
cidades profissionais, ou quando o fornecimento de cuidado é visto como
obrigatório, inútil e penoso, as consequências são adoecimento e bloqueio
da compaixão (Gilbert, 2014).
Seria de muita valia se houve compreensão e domínio público destes
sistemas para que as pessoas pudessem ser mais reflexivas e autônomas no
exercício de governar o seu pedaço de mundo, com amorosidade e coo-
peração. Certamente, isso diminuiria fatores de risco e aumentaria os de
proteção para muitas doenças. As atividades das práticas complementares e
integrativas são ativadoras do sistema parassimpático e também poderiam
ser empregadas.
Santos (2006), Larrosa (2017), Minayo & Costa (2019) e Campos
(2014) convergem em propor intervenções e modos de cuidado que visam
a aumentar a capacidade dos sujeitos de compreensão dos problemas e de

244 • Capítulo 11
intervenção nos encontros, o que também colabora para o desenvolvimen-
to da autorregulação do sistema simpático-parassimpático.
Boaventura de Sousa Santos (2006) ressalta a relevância da dilatação/
expansão de processos sociais em curso a fim de se conhecerem experiên-
cias vividas e delas obterem-se o aprendizado possível para novas orien-
tações. Propõe que se trabalhe com ecologia de saberes, com o princípio
da incompletude de conhecimentos que tem como condição sine qua non
o diálogo e o debate com diferentes campos de saberes e práticas. Instiga
para que se use o conhecimento como emancipação e não como regula-
ção, apontando para ação-por-clinâmen, por ele definida como processos
de ligeiros desvios, com efeitos cumulativos que possibilitam combinações
criativas entre sujeitos e grupos sociais, para novos devires.
Larrosa (2017) nos alerta para o risco de que o profissional escuta-
dor, pessoa transbordante de informações, agitada e com pretensão de
­conformar o mundo, realize interpretações precipitadas e indevidas, anu-
lando a possibilidade do compartilhamento dialógico da experiência. Ele
apresenta uma recomendação para escuta e interpretação de experiências,
sintetizada abaixo:

... como algo que nos toque, que possibilite a reflexão sobre elas, reque-
rendo interrupção: para olhar, para escutar, para sentir, para pensar; pensar
mais devagar, escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a
opinião, suspender o juízo, suspender o automatismo da interpretação e da
ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir olhos e ouvidos, falar o que nos
acontece, aprender a lentidão, cultivar a arte do encontro, calar, ter paciên-
cia e dar-se tempo e espaço (Larrosa, 2017, p. 25).

Minayo & Costa (2019), citando Heidegger, apontam que a compreen­


são precede a interpretação e esta é uma apropriação que se funda do que
se compreende. Assim, interpretar é formular/projetar possibilidades de
atuação a partir do que é compreendido.
Em geral, os cidadãos portadores de condições crônicas são resisten-
tes a mudanças no seu modo de estar no mundo, instituem e reproduzem
formas repetitivas no seu viver e têm entendimento limitado sobre os fato-
res de riscos modificáveis e os mecanismos de ação dos medicamentos. A
observação de repetições no comportamento das pessoas e suas consequên­
cias possibilita a formulação de conhecimentos sobre sujeitos e coletivos e a
identificação de fatores passíveis de serem modificados em processos dialó-
gicos de problematização e intervenção, a partir do conhecimento clínico,

Atenção aos pacientes crônicos na APS... • 245


epidemiológico, psicológico e sociológico. Porém, dada a complexidade da
coprodução singular do processo saúde-doença, a clínica, a saúde coletiva
e a gestão não conseguem prever com exatidão os efeitos e nem o resultado
das intervenções. Daí que a prudência costuma ser uma boa conselheira.
Desse modo, os procedimentos da semiologia, de guias e protocolos
terapêuticos, fornecidos por conhecimentos acumulados e validados, com
a “singularidade” da história do sujeito, de sua família, de seu contexto e
o seu modo de estar na vida e no mundo do trabalho, possibilitam a ela-
boração dos problemas de saúde a partir do conhecimento acumulado e
acessado em rodas de conversa, entrevista individual, exame físico, exames
de apoio diagnóstico. Autorizam o profissional/equipe de saúde a construir
uma parte do processo saúde-doença e fazer ofertas de atenção e a usar o
“poder terapêutico da palavra” nos processos de coanálise, codecisão, coo-
peração e coavaliação de projetos de saúde (Campos, 2014).
Na reflexão ampliada sobre o resultado das intervenções, Campos
(2014) propõe que a coavaliação seja realizada nos seguintes planos: da
“eficácia”, que indica a capacidade do trabalho em saúde produzir saúde e
bem-estar; da coconstrução de autonomia, capacidade de expressar dese-
jos e interesses e compor contratos ou redes com outros; e da produção do
menor dano possível, “primum, non nocere”, provocar o mínimo de efeito
colateral ou de iatrogenia possível.
As intervenções, farmacológicas ou não, sobre o corpo ou sobre o
modo de vida das pessoas nunca são inócuas. Produzem efeitos em diver-
sas direções em sentidos não esperados. O antídoto é o exame dos efeitos
produzidos de maneira franca e compartilhada.
Nos encontros, além dos objetivos de redução do desconhecimento
sobre o processo saúde doença, da observação das resistências internas dos
participantes que estão no plano do inconsciente, sem julgamentos aprio-
rísticos, de evocação da motivação e potência, também se deve apostar e
reforçar a possibilidade do estabelecimento de vínculo com os profissionais
da APS (Figlie & Guimarães, 2014). Para isso, também é preciso repensar a
forma como a APS recebe os usuários. Deve-se substituir a lógica do “moti-
vo da consulta médica ou de enfermagem ou odontológica” por “motivo do
contato com a UBS” (Brasil, 2014) que se refere aos porquês do cidadão que
saiu de sua casa ou trabalho para procurar o serviço de saúde, possibilitan-
do, assim, seu encontro com profissionais de saúde portadores de saberes
e ofertas de cuidado. A valorização desse encontro, comumente desvalori-
zado e desqualificado como mera demanda espontânea que de espontânea
não tem nada, pois é real e sentida e plena de motivos e de possibilidades
de ações de produção de saúde.

246 • Capítulo 11
Ainda nesse sentido, é muito relevante que seja oferecido aos usuários
o número do telefone celular ou tablet da equipe de referência e que se
estabeleça “o contrato de como o utilizar” e atualizar o número do ­telefone
dos participantes para estabelecer a “rede singular de comunicação”, a fim
de realizar avaliação de demandas, teleorientação, telemonitoramento, te-
leconsultas e agendamentos. A pandemia Covid-19 propiciou profusão de
experiências criativas de utilização de “redes locais de telessaúde” por várias
equipes da APS na comunicação com os usuários e abriu um grande veio
para a rápida incorporação dessa tecnologia no SUS (Porto Alegre, 2020).
Enfim, a abordagem ampliada e compartilhada do processo saúde
doença e o aumento do coeficiente de autonomia dos sujeitos requer in-
vestimento sistemático na coconstrução dos problemas/necessidades, na
proposição e na gestão do projeto terapêutico, articulando a racionalidade
clínico-sanitária com o interesse/desejo do usuário, com construção e esta-
belecimento de vínculo e com coavaliações regulares, priorizando a refle-
xão e a capacidade de elaborar compromissos e contratos.
A ampliação dos objetivos relativos às condições crônicas passa, tam-
bém, por fomentar movimentos societários vigorosos capazes de enfrentar
a “força de grana” que produz doença e de lutar pela regulação estatal rela-
tiva à propaganda e produção de alimentos e bebidas sabidamente maléfi-
cos para a saúde (os superaçucarados, salgados, gordurosos, processados e
bebidas alcoólicas); o mesmo se aplica à legislação trabalhista e jornadas de
trabalho protetoras e à criação de espaços públicos de lazer e cultura aces-
síveis em todos os espaços urbanos, na lógica da cidade para todos.
O apontamento de meios para efetivação desses objetivos não é nada
simples. Uma estratégia seria a ampliação do domínio público acerca do
conhecimento científico produzido e sistematizado sobre os fatores de ris-
co e proteção e das experiências de outros países, além de ocupar espaço
nas mídias para tratar do tema e articular uma agenda societária e legisla­
tiva de propostas de regulação protetiva com os partidos políticos do cam-
po democrático.
Entretanto, experiências focais de fomento a redes de produção de so-
lidariedade e de defesa da vida em territórios vivos têm sido efetivadas. Um
exemplo é a comunidade de Paraisópolis, na cidade de São Paulo, onde mo-
radores (ativistas e pequenos empresários), empenhados em garantir uma
proteção coletiva da comunidade durante a pandemia Covid-19, desen-
volveram uma tecnologia organizacional no bairro que contava com 420
voluntários, cada um cuidando de 50 casas. Mapearam as necessidades das
pessoas, realizaram capacitações relativas à prevenção e ao controle, arre-
cadaram e distribuíram álcool em gel, cestas básicas, marmitas e máscaras

Atenção aos pacientes crônicos na APS... • 247


produzidas cooperativamente e criaram canais próprios de comunicação.
Organizaram, em duas escolas públicas, centros de acolhida para pessoas
infectadas sem gravidade clínica, de modo a fazer o isolamento dos que
viviam em moradias precárias. A união de moradores conseguiu até con-
tratar médicos e enfermeiros, além de uma ambulância, já que o sistema
público de saúde resiste em entrar na favela. Apostaram, com sucesso, na
rede de solidariedade e coletivamente estão defendendo suas vidas (Gor-
tázar, 2020).

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250 • Capítulo 11
Capítulo 12
Elementos fundamentais para a abordagem do
uso problemático de SPA no contexto da APS

André Pimenta de Melo


Débora Gomes de Melo dos Santos Medeiros

O s transtornos mentais vêm ganhando, ao longo das últimas décadas,


uma crescente relevância no âmbito das políticas de saúde pública
e desenvolvimento. Assim, em consideração ao aumento da carga global
de doença atribuída aos transtornos mentais em todos os países (em um
contexto de grandes mudanças demográficas, sociais e ambientais) a saúde
mental foi recentemente incluída entre os Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável (Patel et al., 2018).
Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) evidenciam, por
exemplo, que um de cada cinco anos vividos com incapacidade se deve a
um transtorno mental e que apenas a depressão e os quadros de ansiedade
acarretam, globalmente, a perda econômica de um trilhão de dólares ao
ano. Em que pese esse cenário, mais de 80% das pessoas acometidas por
transtornos mentais não conseguem acessar um tratamento de qualidade, o

Atenção aos pacientes crônicos na APS... • 251


que levou a OMS a lançar sua atual iniciativa especial (2019-2023), visando
à cobertura universal de saúde no que se refere à saúde mental. Isso inclui,
entre outras estratégias, o aumento da disponibilidade e da qualidade do
cuidado nos diversos serviços sociais e de saúde (OMS, 2019).
Ao se tratar especificamente dos transtornos por uso de substâncias
psicoativas (TUS), o que se verifica é uma replicação desse quadro. Entre
os países que reportaram dados à OMS, menos de 35% ofereciam alta co-
bertura (acima de 40%) de serviços de saúde para os TUS ao se analisar o
tratamento para dependência de opióides, cocaína e cannabis em 2014 e
para a dependência de álcool em 2016 (OMS, 2019).
Além disso, entre os 152 países avaliados, apenas 15% dispunham
de rotinas de screening e intervenções breves para o uso problemático de
álcool em um terço dos serviços de Atenção Primária à Saúde (APS). De
forma semelhante, apenas 10% dos países utilizavam dessas rotinas clínicas
para abordagem dos transtornos por uso de outras drogas em um terço dos
serviços (OMS, 2019).
No Brasil — onde se tem há mais de uma década uma política nacio-
nal de atenção integral ao usuário de álcool e outras drogas centrada na
comunidade, que envolve todos os níveis de assistência à saúde e prioriza a
reabilitação e reinserção social (Brasil, 2004) — ainda existem fragilidades
significativas no que se refere à abordagem dos TUS no sistema de saú-
de, em especial nos dispositivos de cuidado não especializado da rede de
atenção psicossocial (RAPS). Aqui, destacam-se a dificuldade de estabele-
cimento de vínculo, o estigma e o preconceito contra o usuário de drogas
como barreiras que dificultam o acesso à atenção integral nos dispositivos
de Atenção Primária, com a concentração do cuidado em serviços especia-
lizados (Paula et al., 2014).
Da mesma forma, outros autores identificaram, no nível da APS, uma
falta de preparação profissional no que concerne às habilidades teórico-prá-
ticas necessárias para a abordagem de problemas de saúde associados ao uso
de álcool e outras drogas. Ao mesmo tempo, notou-se que uma vez que se
invista, valorize, capacite e explore as potencialidades dos profissionais des-
se nível de atenção, eles podem contribuir efetivamente no âmbito da assis-
tência aos usuários de drogas (Gonçalves, 2002 apud Barros & Pillon, 2006).
Posto isso, este capítulo objetiva contribuir com a capacitação dos pro-
fissionais da APS para a abordagem dos TUS, buscando assim a a­ mpliação
do acesso à saúde pelos usuários de substâncias psicoativas e para o fortale-
cimento da capacidade de abordagem desses quadros pela RAPS.

252 • Capítulo 12
Transtornos por uso de substância:
história, conceitos e especificidades

A compreensão dos profissionais de saúde acerca do uso de álcool e


de outras drogas sofre influência e é determinada, de forma significativa,
pelo ambiente cultural em que eles são formados. Essa influência, por sua
vez, é traduzida em práticas clínicas que podem não só limitar o acesso do
paciente usuário de drogas à saúde como contribuir para sua estigmatiza-
ção e exclusão social (Souza, 2016; Faria, 2017).
Assim, torna-se indispensável uma reflexão acerca de aspectos histó-
ricos e culturais associados à questão social das drogas, não somente como
um elemento constituinte da formação teórica dos profissionais, mas como
base para a reflexão crítica e revisão das práticas nas instituições de saúde.
O uso de substâncias psicoativas é um fenômeno amplamente presen-
te entre as diferentes comunidades humanas ao longo da história (Escoho-
tado, 1988). Ao mesmo tempo, a ideia de que o uso abusivo de uma droga
poderia ser visto como uma doença é algo recente que tem seus contor-
nos iniciais no começo do século XIX (Carneiro, 2002). Essa conceituação
remete a autores como o americano Benjamin Rush em 1791, o escocês
Thomas Trotter em 1804 e o francês Jean-Étinne Esquirol em 1838 e ocor-
re conjuntamente a um processo de patologização de uma série de outros
comportamentos humanos, como a homossexualidade e a masturbação,
por exemplo, e em um amplo esforço do Estado e outras instituições, como
a medicina, de controle das mais diversas populações (ibidem). Somou-se a
isso a popularização de ideias eugenistas raciais e sociais, que no caso mais
específico da psiquiatria da época, se expressavam na teoria da degeneres-
cência, cuja tese central era a defesa que tais comportamentos indesejados
eram efeito da deterioração racial, em especial o uso de drogas entre os ‘‘vi-
ciados’’. Essa mistura de leituras morais e racistas dentro da psiquiatria fica
muito visível em autores da época, como no caso do médico José Rodrigues
Dória, primeiro autor a falar do uso da cannabis no Brasil e defensor da tese
de que o “vício” nessa substância estaria vinculado a questões raciais, bem
como que sua disseminação seria uma espécie de vingança das populações
africanas pela escravidão (Dória, 2016).
Esse pensamento, além de estabelecer uma relação entre o preconcei-
to racial e a prática clínica, subsidiou uma série de ações higienistas pelo
Estado, que no caso brasileiro envolvia o incentivo a políticas de branque-
amento da população, favorecendo a imigração de nativos da Europa, e

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 253


ações antialcoólicas, ambas endossadas pela Liga Brasileira de Higiene
Mental (Costa, 1976).
Já nos Estados Unidos da América (EUA), isso foi acompanhado de
um forte movimento puritano de origem religiosa que incentivava a cria-
ção de ligas antissaloons. Essa mobilização chegou a proporções grandes o
suficiente para a fundação de um partido político, o Proibition Party, exis-
tente até hoje e com uma história de expressividade eleitoral em determi-
nadas regiões e períodos históricos (Carneiro, 2018).
Essa movimentação social foi de fundamental importância para a
criação de leis contra o uso da cannabis, da cocaína e do ópio, associadas
naquele país, às populações latinas, negras e chinesas, alvo de controle so-
cial (Escohotado, 2001). Foi, contudo, somente no século XX, que uma po-
lítica global sustentada por tratados internacionais surgiu, tendo seu início
com a Primeira Conferência do Ópio, em 1912, e sendo internacionalizada
depois das duas Grandes Guerras, já sob chancela da Organização das Na-
ções Unidas (ONU) (Fiore, 2012).
A proibição das drogas como conhecemos hoje, alicerçada em trata-
dos internacionais e na cooperação entre diferentes estados, está muito vin-
culada à Convenção Única sobre entorpecentes de 1961, patrocinada pelos
EUA e coordenada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Os efeitos
dessa política vão muito além do âmbito legislativo, constituindo um para-
digma que marca nosso entendimento sobre as drogas “[...] estabelecendo
os limites arbitrários para usos de drogas legais/positivas e ilegais/negati-
vas”(idem, 2012, p. 9).
Esse paradigma se sustenta sobre dois pressupostos fundamentais:
que o consumo de drogas é uma prática danosa que poderia ser dispensável
ou prescindível, portanto proibida de modo justificado pelo Estado; que a
atuação ideal do Estado deveria ser criminalizar a circulação e o consumo
de drogas visando ao seu combate (ibidem, 2012). Como Medeiros & Tófoli
(2018) apontam, há uma série de mitos derivados desse paradigma que não
são sustentados pelas evidências científicas disponíveis, tais como sistema-
tizados no quadro a seguir:

254 • Capítulo 12
Quadro 1. Mitos presentes na construção das políticas sobre drogas

o uso de drogas ilícitas é sempre problemático ou leva à dependência;

as drogas ilícitas são mais tóxicas e têm maior chance de levar à morte por overdose;

as substâncias ilícitas foram banidas por causar maior dano ao usuário ou à sociedade;

as drogas ilícitas não têm potencial de uso terapêutico;

é possível erradicar as drogas ilegais e banir completamente o seu uso;

o Estado deve criminalizar e punir o uso e o comércio de drogas para solucionar a questão social das
drogas;

a criminalização do uso e do comércio de drogas afeta igualmente toda a população;

a flexibilização das políticas sobre drogas levaria ao aumento indiscriminado do uso.

Fonte: Extraído de Medeiros & Tófoli. Mitos e evidências na construção das políticas sobre drogas, 2018.

Além de dificultar a construção e a difusão de um conhecimento cien-


tificamente embasado sobre as drogas, o ambiente cultural do proibicio-
nismo contribuiu para a formulação de políticas públicas cujo prejuízo à
saúde das populações já foi evidenciado. No que se refere à saúde coletiva,
Gomes-Medeiros, Faria, Tófoli & Campos (2019) apontaram como a atual
política de drogas produz um aumento da letalidade da violência policial
e de encarceramento, chegando, no caso do México, a reduzir a expectati-
va de vida da população. Ainda em relação ao encarceramento, os autores
apontam como isso está associado a uma maior propensão de contamina-
ção por HIV, hepatite C e tuberculose, bem como a uma maior prevalência
do próprio uso de drogas no ambiente carcerário. Sobre a última, os dados
do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Santos, 2014)
mostram que uma pessoa em privação de liberdade tem 28 vezes mais
chance de contrair tuberculose que a população geral, bem como tem o ris-
co de ocorrência de morte violenta aumentado em seis vezes (Ministério da
Justiça, 2013; idem, 2014). Vê-se, assim, que, embora o proibicionismo se
sustente alegando questões sanitárias, ele mesmo é produtor de uma série
de mazelas na saúde, como também aponta o relatório para Lancet elabo-
rado por Csete et al. (2016).

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 255


Quadro 2. Evidências científicas acumuladas sobre a problemática das drogas
uma minoria — em torno de 12% — dos usuários de drogas evolui para um padrão de dependência e
necessitará de tratamento;
há substâncias lícitas, como o álcool, que possuem segurança muito menor que diversas drogas ilíci-
tas, em relação ao risco de causar morte por overdose;
não se verifica uma correlação entre a capacidade avaliada de uma droga causar danos e seu status
legal;

diversas substâncias proscritas demonstraram potencial para uso terapêutico em estudos científicos;

a demanda pelas drogas permanece estável, apesar das políticas de criminalização;

a descriminalização do uso e dos pequenos crimes relacionados ao comércio de drogas justifica-se


pelo acumulado de evidências científicas;
a criminalização do uso de drogas atinge desproporcionalmente a população mais pobre, a população
negra e a população feminina;
não foi verificado aumento importante do uso de drogas nos países que flexibilizaram suas políticas
sobre drogas.

Fonte: Extraído de Medeiros & Tófoli. Mitos e evidências na construção das políticas sobre drogas, 2018.

Esta contextualização se faz necessária uma vez que a assistência aos


transtornos por uso de substâncias psicoativas ocorre dentro de uma cultu-
ra marcada pelo paradigma proibicionista. Assim, será sempre necessário
lembrar que apenas uma pequena parcela das pessoas que usam drogas
desenvolve alguma questão que poderia ser classificada como problemática
ou prejudicial (UNODC, 2018). Isso não diminui, contudo, a importância
da elaboração de políticas públicas que atuem sobre o tema, uma vez que
existem, por exemplo, estimativas que apontam que entre a população de
determinadas regiões do Brasil existe uma prevalência de até 1,1% de desen-
volvimento da dependência em algum momento durante a vida (Andrade,
Walters, Gentil & Laurenti, 2002). Em outras palavras, entre o grande con-
tingente das pessoas que usam drogas, apenas uma pequena porcentagem
desenvolve algo como uma dependência. Todavia essa porcentagem diante
da população geral é grande o suficiente para que se justifique a criação de
uma política pública voltada para essa questão.
Em relação às especificidades do uso problemático de drogas, que en-
volve os chamados transtornos por uso de substâncias, é preciso pontuar
que as classificações em relação ao tema são variadas, não existindo apenas
uma fonte utilizada entre profissionais da saúde e da saúde mental. Isso co-
meça pela profusão de diferentes nomes para o fenômeno: estupefacientes,
dipsomania, drogadição, farmacodependência, vício, adicção, t­ oxicomania,

256 • Capítulo 12
dependência química, transtorno por uso de drogas, uso prejudicial de
drogas, uso nocivo de drogas e uso problemático de drogas. Alguns desses
nomes são mais antigos e caíram em desuso, como estupefacientes e dip-
somania, outros são utilizados por grupos específicos, como toxicomania
entre os psicanalistas, enquanto existem aqueles que são vinculados a jul-
gamentos morais e deveriam ser evitados por profissionais da saúde, como
vício e derivados (alcoólatra, maconheiro, cheirado, crackeiro). Na literatu-
ra anglo-saxônica existe um uso grande do termo addiction, aportuguesado
como adicção, referindo-se à compulsão de diversos hábitos, como drogas,
sexo, compras e internet.
A décima edição da Classificação Estatística Internacional de Doen-
ças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) utiliza as noções de uso
nocivo para a saúde e síndrome de dependência. A primeira se refere ao
uso prejudicial à saúde, com complicações físicas, como hepatite em decor-
rência do compartilhamento de agulhas com drogas injetáveis, ou psíqui-
cas, como episódios depressivos depois do uso intenso de uma substância.
Síndrome de dependência, por sua vez, envolve um conjunto de sintomas
e sinais comportamentais, cognitivos e fisiológicos que ocorrem após o uso
contínuo de uma substância psicoativa. Tecnicamente a presença de três ou
mais critérios a seguir, caso eles tenham sido exibidos em algum momen-
to nos últimos 12 meses: forte desejo ou senso de compulsão para usar;
dificuldade em controlar o consumo tanto no início quando no fim ou na
quantidade consumida; sintomas corporais de síndrome de abstinência ou
uso constante da substância para evitá-la; evidência de tolerância, quando
são necessárias doses cada vez mais altas para alcançar um efeito antes pro-
duzido com uma quantidade menor; perda gradual de interesse e prazer
em outras atividades em detrimento do uso de substância psicoativa; per-
sistência do uso, mesmo quando constatado seus prejuízos (OMS,1993).
Já a quinta e mais recente edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais (ou em inglês Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders, o DSM) elaborada pela Associação Americana de
Psiquiatria, propõe a classificação por Transtornos do Uso de Substâncias
(TUS), dividindo-os em três graus de severidade (leve, moderado ou grave)
a partir da quantidade de sintomas apresentados.
É fundamental ressaltar, contudo, que essas definições trabalham com
uma diferenciação em grande parte artificial, uma vez que muitos usuários
têm modos de uso variados que mudam com o tempo, indo e voltando en-
tre as categorias (Tófoli, 2015). Feita a ressalva de que a categorização diag-
nóstica serve como balizador da comunicação entre profissionais e não é o
único determinante na definição de um projeto terapêutico, analisaremos

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 257


agora a prevalência do uso de drogas e das condições clínicas a ele associa-
dos e os aspectos relevantes à sua abordagem clínica no contexto da APS.

Epidemiologia do uso e dos transtornos por uso


de substâncias psicoativas

A epidemiologia do uso de substâncias psicoativas envolve importan-


tes pesquisas em âmbito internacional e nacional que medem e analisam o
consumo, a frequência e os fatores associados ao uso e ao uso prejudicial
de drogas. Em âmbito internacional, vale destacar o anualmente elabora-
do “Relatório Mundial sobre Drogas” (“World Drug Report”) feito pelo
­Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime da Organização das
Nações Unidas (United Nations Office on Drugs and Crime UNDOC), que
trabalha com os dados referentes à demanda e ao consumo internacional
de drogas.
Em âmbito nacional, é possível destacar o “Levantamento Nacional
sobre uso de Drogas pela população Brasileira”, realizado em três diferentes
ocasiões e publicado em 2007, 2014 e 2017, o “Levantamento Domiciliar
Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil”, realizado em 2001 e 2005,
ambos pelo Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas
(CEBRID), e o “Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psi-
cotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio da Rede Pú-
blica e Privada de Ensino nas Capitais Brasileiras”, já em sua sexta edição
e com realizações anteriores nos anos de 1987, 1989, 1993, 1997 e 2004,
também realizados pelo CEBRID. Por meio dessas pesquisas, é possível co-
nhecer mais de perto e de maneira mais consistente a real situação sobre o
uso de substância psicoativas, bem como avaliar de modo mais rigoroso os
principais usos de risco e fatores associados.
A mais recente pesquisa de grande amplitude realizada em cenário
nacional foi o III Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela popula-
ção brasileira realizado pela Fiocruz (2017), que entrevistou 16.273 pessoas
em todo território nacional, entre 12 e 65 anos, de ambos os sexos. Uma
síntese de alguns dos principais achados do levantamento está no quadro
3, conforme a substância, as diferentes frequências de uso e a prevalência
de dependência encontrada na população.

258 • Capítulo 12
Quadro 3. Síntese dos dados III LNUD (2017)
Substância Uso ao longo Uso nos últimos Uso nos últimos Dependência* 
da vida 12 meses 30 dias

♂ ♂
38,8%
74,3% 51,6%
30,1% 24% B
Álcool 66,4% 43,1% 1,5%
16,5%B ♀
♀ ♀
21,9%
59% 35%
9,5% B
♂ ♂ ♂
38,9% 18,4% 16,2%
Tabaco 33,5% 15,4% 13,6% 3,2%
♀ ♀ ♀
28,4% 12,5% 12,5%
Benzodiazepínicos 3,9% 1,4% 0,4% 0,2%
Opiáceos 2,9% 1,4% 0,6% 0,14%
Anfetamínicos 1,4% 0,3% 0,0% 0,01%
Maconha 7,7% 2,5% 1,5% 0,29%
Cocaína 3,1% 0,9% 0,3% 0,18%
Crack 0,9% 0,3% 0,1% 0,09%
Solvente 2,8% 0,2% 0,1% 0,01%

Legenda: B=Binge.
* nos últimos 12 meses entre a população entre 12 a 65 anos.
Fonte: ICICT, Fiocruz. III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira.

Dentre os diversos achados, vale destacar algumas informações que


podem ser de importante validade para os profissionais dos serviços de
saúde, em especial da APS. Em relação ao uso de álcool, o estudo observou
um importante uso de binge, caracterizado pelo uso intenso e episódico de
uma substância, por homens entre 18 e 34 anos, dos quais quase um quarto
refere à prática. Em relação ao tabaco também foi observado um uso mais
prevalente entre os homens do que nas mulheres (38,9% x 28,8% referem
ter feito uso na vida, respectivamente). Isso parece se concentrar nas faixas
etárias mais velhas, entre 35 e 65 anos, em que entre um terço e a metade
referem já ter feito uso na vida, entre 15% e 20% ou um quarto referem ter
feito uso nos últimos 12 meses e entre 14% e 19% referem ter feito uso nos
últimos 30 dias. Tais achados indicam que a maior prevalência de uso de
álcool e tabaco se concentra de maneira importante entre os homens de
faixas etárias diferentes. No caso do uso de álcool, há uma concentração
entre os mais jovens e no do tabaco, entre os mais velhos. Em termos da
assistência, isso pode apontar a necessidade de um perfil de intervenções

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 259


diferente, por se tratar de populações distintas e diferentes dinâmicas so-
cioculturais e subjetivas.
A pesquisa também avaliou o uso de medicamentos não prescritos
entre a população pesquisada, indicando que as classes de medicamentos
mais usadas ao longo da vida foram os benzodiazepínicos (3,9%), seguidas
dos opiáceos (2,9%) e anfetamínicos (1,4%). Diferentemente das substân-
cias recreativas lícitas, as estimativas por sexo indicam um uso mais pre-
valente de medicamentos não prescritos entre as mulheres do que os ho-
mens sejam durante a vida (9,4% contra 7,4%), nos últimos 12 meses (4,0%
x 2,0%) ou nos últimos 30 dias (1,5% x 0,7%). Esses dados corroboram
os últimos achados do relatório da UNODOC de 2019, que indicam um
uso muito maior de tranquilizantes e sedativos entre mulheres na América
Central e do Sul, e pontuam que entre as mulheres o uso de drogas tende a
mais rapidamente se desenvolver em direção a um transtorno do que entre
os homens (UNODOC, 2019). Isso parece indicar um perfil distinto entre
homens e mulheres sobre suas substâncias de escolha e modos de uso.

Quadro 4. Risco de dependência de diferentes substâncias


Probabilidade de se tornar dependente após
o uso de pelo menos uma vez
Tabaco 32%
Heroína 23%
Cocaína 17%
Álcool 15%
Estimulantes 11%
Ansiolíticos 9%
Cannabis 9%
Analgésicos 8%
Inalantes 4%

Fonte: ANTHONY, WARNER & KESSLER (1994). Comparative Epidemiology of Dependence on Tobac-
co, Alcohol, Controlled Substances, and Inhalants: Basic Findings From the National Comorbidity Survey.
Experimental and Clinical Psychopharmacology. 2, pp 244-268. 10.1037/1064-1297.2.3.244.

Diferentemente da epidemiologia do uso, a epidemiologia dos trans-


tornos por uso de substâncias psicoativas abrange uma população signi-
ficativamente menor. Ou seja, independentemente da substância, sejam
remédios, recreativas lícitas ou ilícitas, o tamanho da população que já fez

260 • Capítulo 12
uso alguma vez de determinada substância é muito maior do que a­ quele
que possui uma dependência ou desenvolve um uso problemático, tal
como sintetizado no quadro 4 (Anthony, Warner & Kessler, 1994). Em ter-
mos globais, estima-se que das 271 milhões de pessoas que fazem uso de
substância psicoativa anualmente, 35 milhões possuam alguma espécie de
uso prejudicial e necessitem de cuidado, ou seja, 12,91% de todos os usuá-
rios (UNODOC, 2019).
Mari, Jorge & Kohn (2006) indicam que em dois estudos, um multi-
cêntrico e outro na cidade de São Paulo, foram observados 1,4% de preva-
lência de abuso/dependência de drogas ilícitas durante a vida na população
brasileira; em relação específica ao álcool, esse número é de 8,1% a 6%; e em
relação à nicotina, de 23,6%. Quando comparadas aos transtornos mentais
(DSM-III) mais prevalentes na população em geral, como os transtornos de
ansiedade (17,6%), estados fóbicos (16,7%) e transtornos somato-dissocia-
tivos (8,1%), percebemos que as dependências despontaram entre os trans-
tornos mais prevalentes com uma frequência bem superior a outros tipos
de adoecimento, como os transtornos psicóticos (2%), estados depressivos
(2,8%) ou mania e ciclotimia (0,4%).

Prevalência do uso de substâncias psicoativas e dos TUS


na Atenção Primária à Saúde

Existem poucos estudos que abordam a prevalência do uso de drogas


na APS no do Brasil, bem como dos transtornos de uso de substâncias psi-
coativas nesse nível de atenção. Encontramos seis pesquisas que tratam do
tema (Abreu et al., 2016; 2017; 2018; Lima & Dimenstein, 2018; Ribeiro et
al., 2007) bem como uma revisão de literatura sobre o uso abusivo de psi-
cotrópicos na APS (Moura et al., 2016).
Em um mapeamento (Lima & Dimenstein, 2018) do uso abusivo de
álcool e outras drogas realizado com equipes da ESF em uma capital do
Nordeste brasileiro, 83% dos 406 entrevistados referiu já ter feito uso de
substâncias, lícitas ou ilícitas, ao longo da vida. Desses, 30,2% apresenta-
ram riscos de uso nocivo ou problemático e 8,1% de alto risco de depen-
dência. A pesquisa também observou que as substâncias com maior uso
durante a vida foram o álcool por 83,3%, o tabaco por 57% e a maconha
por 21,2%. Em relação aos riscos de dependência, avaliados por meio do
questionário ASSIST, para o álcool foram observados índices de uso nocivo
ou problemático de 30,2% e de uso com alto risco de dependência de 8,1%,

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 261


para o tabaco os índices de uso nocivo ou problemático de 6,8% e de uso
com alto risco de dependência de 18,9% e para a maconha de uso nocivo
ou problemático de 7,8% e de uso com alto risco de dependência de 0,9%.
Um estudo amplo transversal (Abreu et al., 2016) também se utili-
zando do ASSIST e contemplando 1489 sujeitos vinculados à Estratégia de
Saúde da Família (ESF) no Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Ja-
neiro, detectou maiores prevalências de uso de substância nos últimos três
meses em sua subamostra masculina para o uso do tabaco (56,4%), bebidas
alcoólicas (75,8%), cannabis (16,9%) e cocaína/crack (10,1%). Por meio do
ASSIST foram determinados os riscos (baixo risco, risco moderado, alto
risco) para o desenvolvimento de problemas relacionados à substância em
questão. O estudo observou entre a população pesquisada os seguintes ris-
cos conforme cada substância: para álcool foi detectado que 8,8% da po-
pulação apresentavam um uso de risco moderado e que 1,2% um uso de
alto risco; para tabaco, 16,6% da população apresentavam um uso de risco
moderado e 3,5% para uso de alto risco; para cannabis, 1,5% da população
apresentava um uso de risco moderado e de 0,3% alto risco; para cocaína/
crack, 0,8% da população um uso de risco moderado e 0,3% alto risco. Es-
ses dados indicam que, entre aquela comunidade em geral, questões rela-
cionadas ao uso de substâncias lícitas (álcool e tabaco) apresentavam mais
risco do que ao uso de substâncias ilícitas, ou seja, mais pessoas poderiam
desenvolver problemas vinculados ao uso do álcool e tabaco do que canna-
bis e cocaína/crack.
Em outro estudo transversal atrelado à mesma amostra (Abreu et al.,
2018), os pesquisadores observaram a frequência de uso durante a vida de
uma série de diferentes substâncias, realizando novamente uma avaliação
por meio do ASSIST dos usuários que necessitariam de uma Intervenção
Breve (explicada em detalhes mais à frente) no decorrer de seu uso de risco
de determinadas substâncias. Os achados, descritos no quadro 5, indicam a
porcentagem das pessoas que foram encaminhadas para Intervenção Breve
após uma avaliação com o ASSIST. Essas pessoas triadas apresentavam um
risco moderado em seus usos e receberam a indicação.

262 • Capítulo 12
Quadro 5. Frequência de uso e de indicação para Intervenção Breve na APS
Frequência do uso de drogas na vida entre usuários da Estratégia de
Saúde da Família, Rio de Janeiro, Brasil 2013/2014 (N=1031)
Substância Uso da droga na vida Frequência de aplicação
de Intervenção Breve 
Álcool 70,7% 7,9%
Tabaco 46,4% 16,4%
Maconha 8,4% 1,2%
Hipnóticos 4,6% 1,4%
Cocaína/Crack 4,2% 0,9%
Anfetaminas 2,2% 0,3%
Opioides 1,0% 0,2%
Inalantes 0,9% 0,3%
Alucinógenos 0,3% N/A

FONTE: Dados de (Abreu et al., 2018), elaboração própria.

Para além do uso, recreativo ou problemático, de substâncias lícitas e


ilícitas, os estudos de Moura et al., 2016 e (Ribeiro et al., 2007 abordam a
importância do uso de psicotrópicos na APS. Ribeiro et al. (2007) realiza-
ram pesquisa (n = 41)em 2001, no distrito noroeste de Campinas, com a
população da APS da região que havia feito uso de Diazepam por mais de
36 meses continuamente. Os autores observaram que 87,8% dos usuários
referiram experimentar sintomas significativos de síndrome de abstinência
quando não usavam a medicação, 76,9% referiram frustração ao tentar pa-
rar o uso, 43,6% referiram tentar comprar a medicação caso ela não fosse
prescrita e 41,3% referiram ter hábito de emprestar a medicação para ou-
tras pessoas. Em relação às principais causas que primeiramente os motiva-
ram a buscar esse uso, 41,4% referiram nervosismos, 36,6%, insônia e 9,8%,
medo e pânico. Entre as principais causas que motivam o uso contínuo des-
sa medicação, 24,4% referem insônia, 21,9% referem os efeitos calmantes,
12,2% referem dependência e 24,4% referem não saber o motivo.

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 263


Investigação e abordagem clínica dos TUS

Avaliação clínica: elementos fundamentais para investigação


de um TUS

Ao proceder à investigação clínica do uso problemático de qualquer


substância, seja ela lícita ou ilícita, é preciso ter em mente que uma mudan-
ça no padrão de uso, ainda que desejada, constitui um desafio ao sujeito
que a empreende.
Trata-se de um processo de mudança que envolve elementos bioló-
gicos (como o processo de adaptação neurofisiológica que ocorre durante
as síndromes de abstinência), psíquicos (como as flutuações esperadas no
desejo de mudança e a avaliação que o sujeito faz da própria capacidade de
mudar) e sociais (uma vez que a forma de se fazer uso de qualquer droga
se associa a padrões de sociabilidade e contextos de vida). Da mesma for-
ma, são condições clínicas em que o desejo ou motivação para a mudança
do próprio sujeito constituem determinantes fundamentais do prognóstico
clínico (Henderson, Saules & Galen, 2004; Callaghan et al., 2005).
Levando em conta os elementos que influem na abordagem clínica
dos TUS, são de especial valor as contribuições de Zinberg (1984). O autor
propôs que, para compreender o que impele alguém a usar drogas e como
a droga afeta o usuário, três fatores devem ser considerados: a ação farma-
cológica da substância (drug), a atitude do usuário no momento do uso e
a sua estrutura de personalidade (set), bem como a influência do ambiente
físico e social onde ocorre o uso de determinada droga (setting). Na análise
desses determinantes, o autor indicava ainda, que era precisamente o am-
biente social o fator capaz de exercer controle sobre o uso das drogas, por
meio de rituais e sanções sociais (Zinberg, 1984).
A tríade proposta por Zinberg (1984) — droga, indivíduo e ambiente
— guarda relação com os conceitos de fatores de risco e proteção associa-
dos ao uso problemático de álcool e outras drogas. Desse modo, no esforço
de defini-los para a construção de um projeto terapêutico em casos de TUS,
é importante que as equipes de saúde tenham em mente que esses fatores
irão variar não só conforme a droga utilizada, mas também conforme a
idade, o gênero, a condição médica geral e a inserção cultural do usuário
(Brasil, 2017).
Enquanto na adolescência a filosofia de vida e os transtornos psiqui-
átricos constituem importantes fatores de risco para o uso de drogas, entre
os idosos são as doenças médicas crônicas e perdas visuais e auditivas que

264 • Capítulo 12
predispõem ao uso. Da mesma forma, dadas as alterações fisiológicas do
processo de envelhecimento, os próprios efeitos do álcool e outras drogas
são distintos no idoso, podendo ocasionar problemas mesmo quando em
pequenas quantidades (idem, 2017). Além disso, fatores genéticos e am-
bientais impactam diferentemente o uso de drogas por homens e mulheres,
sendo os fatores genéticos para uso, abuso e dependência mais importantes
para os primeiros, enquanto os ambientais exercem maior influência sobre
o padrão de uso das últimas.
Por fim, enfatiza-se a relevância de fatores como aculturação, pobreza
e migrações forçadas como determinantes de risco para o desenvolvimento
de padrões problemáticos de uso de substâncias: os indígenas da América
Central e América do Sul, embora conhecessem o uso ritual de bebidas al-
coólicas em seu contexto cultural antes do encontro com o “homem bran-
co”, não eram afetados, até onde se sabe, por problemas de dependência
(ibdem, 2017). Assim, os transtornos por uso de álcool que hoje acometem
essas populações devem ser lidos à luz da desconstrução de um ambiente
cultural de controle social (ibdem, 2017; Zinberg, 1984).
Outra contribuição fundamental ao aprimoramento do manejo clíni-
co dos TUS veio de Prochaska et al., que se dedicaram à compreensão do
processo de mudança de comportamentos-problema e da implementação
de hábitos de vida saudável. Revisitando dezenas de modelos teóricos da
Psicologia — cognitivo-comportamental, existencial/humanista, psicanáli-
se, gestalt/experiencial, entre outras — foram identificadas e incorporadas
as explicações que cada teoria dava aos processos de mudança produzidos
pelos sujeitos. Assim foi concebido, ao final da década de 1970, o Modelo
Transteórico de Mudança do Comportamento (MTT), cuja aplicação no
tratamento dos transtornos por uso de substâncias psicoativas vem sendo
avaliada (Prochaska, Diclemente & Norcross, 1992; Szupszynski & Da Silva
Oliveira, 2008).
O MTT fundamenta-se na percepção de que a mudança comporta-
mental é um processo (e não um evento único) ao longo do qual os indiví-
duos transitam por diversos estágios de motivação para a mudança, sendo
a alteração do comportamento-problema mais provável em determinados
momentos desse processo. Sendo ainda um modelo focado na tomada de
decisão do indivíduo, preconiza a necessidade de adequação das estratégias
terapêuticas ao estágio de motivação para mudança em que o sujeito se en-
contra, tornando possível um uso mais eficaz das intervenções. Em síntese,
as automudanças bem-sucedidas dependeriam da aplicação de estratégias
certas (processos) na hora certa (estágios) (Prochaska, Diclemente & Nor-
cross, 1992; Szupszynski & Da Silva Oliveira, 2008).

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 265


Assim, considerando a relevância dos estágios de prontidão para a
mudança no planejamento da conduta clínica, torna-se fundamental que o
profissional que atua no contexto da APS os conheça. Prochaska et al. defi-
niram cinco momentos do processo de mudança: pré-contemplação, con-
templação, determinação ou preparação, ação e manutenção (Prochaska,
Diclemente & Norcross, 1992). Miller & Rollnick (2001), em sua aborda-
gem de Entrevista Motivacional (EM), incluíram a recaída como um sexto
estágio do processo de mudança, no qual o objetivo do indivíduo seria vol-
tar a circular pelos demais estágios (Miller & Rollnick, 2001; Szupszynski
& Da Silva Oliveira, 2008).
Os pacientes em estágio de pré-contemplação são aqueles cujo dis-
curso e comportamento não evidenciam intenção de mudança. Em sua
percepção dos problemas associados ao uso, predominam expressões de
negação. Em geral, os motivos que levam esses pacientes a buscarem trata-
mentos são externos, como encaminhamentos pela família, pela empresa
ou pelo poder judicial. Durante a abordagem clínica, é frequente que eles
resistam ativamente à mudança, o que pode ocorrer até mesmo, por se per-
ceberem incapazes de realizá-la (Prochaska, Diclemente & Norcross, 1994
apud Zupszynski & Da Silva Oliveira, 2008). Intervenções clínicas cuja efi-
cácia ou segurança dependam de uma alta adesão do paciente ao tratamen-
to não seriam, portanto, adequadas àqueles que se encontram nesse nível
de motivação.
Os sujeitos que se encontram no estágio de contemplação têm a am-
bivalência em relação à mudança como principal característica clínica. Ao
mesmo tempo em que percebem problemas associados ao uso e expressam
desejo de mudança, há dúvidas, ansiedades e temores que configuram obs-
táculos para a expressão desse desejo como ação efetiva. Alguns pacien-
tes nesse estágio podem substituir a ação pelo pensamento, tornando-se
contempladores crônicos (Prochaska, Diclemente & Norcross, 1994 apud
Zupszynski & Da Silva Oliveira, 2008).
Ressalta-se, ainda, que a contemplação é um momento do processo de
mudança em que é fundamental que o profissional tenha interesse em com-
preender, com empatia e esquivando-se de julgamentos, quais fatores mo-
tivam cada sujeito a modificar seu padrão de uso de substâncias e quais são
os elementos (biográficos, afetivos, cognitivos ou culturais) que concorrem
para que o paciente mantenha seu comportamento atual, ainda que tenha
demonstrado clareza quanto aos prejuízos dele decorrentes. É de suma im-
portância compreender a ambivalência como algo esperado, não a toman-
do como expressão de resistência ou oposição ao tratamento. Da mesma
forma é importante evitar, aqui, uma atitude clínica autoritária como forma

266 • Capítulo 12
de solucionar a ambivalência, extraindo do paciente as vantagens que o
próprio sujeito percebe em modificar seu comportamento, atuando como
um facilitador da mudança em vez de impô-la (Miller & Rollnick, 2001).
Quando os sujeitos que apenas contemplavam a mudança de seu pa-
drão de uso de qualquer substância transitam para o estágio de determi-
nação ou preparação para a mudança, duas modificações são observadas
em sua apresentação clínica: o foco do paciente passa a ser a resolução de
problemas, e sua visão da questão se orienta para o futuro, não mais para
o passado. Assim, o estágio de preparação é marcado pelo “planejamento”,
havendo maior conscientização do problema e elaboração cuidadosa de
um plano de ações orientadas para a mudança (Prochaska, Diclemente &
Norcross, 1994 apud Zupszynski & Da Silva Oliveira, 2008). Aqui, o profis-
sional que se ocupou de conhecer os determinantes biológicos, psíquicos e
sociais do comportamento de uso de cada um de seus pacientes será capaz
de favorecer a construção de um plano de ação individualizado e efetivo
para aquele sujeito, em vez de adotar uma conduta prescritiva e generali-
zante, na qual o paciente não se reconhece e à qual ele não adere.
Já o estágio de ação é aquele em que ocorre a modificação explícita dos
comportamentos-problema, ou seja, onde as mudanças no padrão de uso
de substâncias serão mais visíveis que nos estágios anteriores. Nesse mo-
mento, é fundamental que profissional e paciente atentem para não igualar
o estágio de ação ao sucesso de tratamento, sustentando a importância do
estágio seguinte — de manutenção — para o sucesso terapêutico. Nesse
último estágio, já tendo sido modificadas as formas de ação do sujeito rela-
tivas ao uso, têm-se como objetivo a consolidação do novo comportamen-
to, de modo a evitar lapsos e recaídas (Prochaska, Diclemente & Norcross,
1994 apud Zupszynski & Da Silva Oliveira, 2008).
De todo modo, é importante ter em mente que lapsos (episódios de
uso sem reinstalação do padrão anterior) e recaídas fazem parte do pro-
cesso de mudança, não devendo a sua ocorrência impactar a relação entre
o paciente e o profissional de saúde. Dessa forma, é fundamental que os
profissionais não moralizem a volta a padrões anteriores de uso, compre-
endendo seu contexto e reconhecendo o dinamismo do processo de mu-
dança. Há também, nesse estágio, objetivos específicos a serem buscados
no tratamento, sendo importante auxiliar o usuário a transitar novamente
pelos estágios motivacionais anteriores, retornando à ação logo que possí-
vel (Miller & Rollnick, 2001).
Em síntese, o profissional da APS deve ter em mente que, ao investigar
um TUS e ao formular um projeto terapêutico, é fundamental refinar a sua
avaliação clínica, indo além da identificação de um padrão problemático de

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 267


uso e de categorias diagnósticas. Para a proposição de estratégias terapêuti-
cas adequadas, que viabilizem a adesão do paciente, é indispensável c­ onhecer
também a relação do sujeito com cada substância utilizada, o contexto de
uso com seus fatores de risco e proteção e, especialmente, a m ­ otivação do
usuário para a alteração do comportamento em questão. Aqui também des-
tacamos o sentido que o uso daquela substância tem na vida do usuário,
bem como quando e em que contexto esse uso se tornou ­problemático.
No quadro 6, os autores deste capítulo elaboram um resumo acerca
dos estágios motivacionais, suas características e atitudes clínicas a serem
desenvolvidas e evitadas em cada situação com base nas formulações do
MTT e da EM (Prochaska, Diclemente & Norcross, 1992; Miller & Roll­
nick, 2001).

Quadro 6. Estágios de motivação para a mudança: características e intervenções


adequadas

Estágio Motivacional Características Intervenção Adequada

PRÉ- 1. Raramente se apresentam para 1. Informação e feedback


-CONTEMPLAÇÃO tratamento 2. Levantar dúvidas, aumentar a
2. Trazidos por demandas ex- percepção do paciente quanto
ternas (familiar, legal, outras aos problemas relacionados ao
condições clínicas) comportamento atual 
3. Reações de surpresa ou nega- 3. Apresentar a possibilidade de
ção quando da abordagem do mudança
problema
CONTEMPLAÇÃO 1. Ambivalência (tanto deseja a 1. Entrevista motivacional 
mudança como a rejeita) 2. “Inclinar a balança” decisória
2. O discurso sobre a área-pro- em um sentido favorável à
blema se divide entre motivos mudança: evocar as razões
de preocupação e justificativas para a mudança e os riscos de
para despreocupação não mudar na avaliação
3. É comum a busca por 3. Fortalecer autossuficiência do
tratamento nesse estágio paciente relativa à mudança
do comportamento atual

268 • Capítulo 12
DETERMINAÇÃO 1. Período em que a balança se 1. A principal tarefa já não é
inclina no sentido da motiva- motivar, mas adequar 
ção para a mudança 2. Ajudar o paciente a encontrar
2. “Eu preciso fazer algo em uma estratégia de mudança
relação a isso”; “como posso que seja aceitável, acessível,
mudar?” adequada e eficazDefinir uma
3. Janela de oportunidade que linha de ação a ser seguida na
se abre durante certo período busca pela mudança 
de tempo. O paciente tanto
pode seguir para a ação como
retornar à contemplação
AÇÃO 1. Paciente se engaja em ações 1. Produzir a mudança de
específicas para promover a comportamento em uma
mudança área-problema 
2. Pode ocorrer dentro ou fora
de um contexto de tratamento
formal 
MANUTENÇÃO  1. Ações efetivas para a mudança 1. Ajudar o paciente a identificar
do comportamento já foram e utilizar estratégias de pre-
tomadas e devem ser susten- venção de recaída
tadas
2. Podem ser necessárias habili-
dades distintas daquelas utili-
zadas para iniciar a mudança
RECAÍDA 1. Reinstalação do comporta- 1. Evitar desmoralização e imo-
mento-problema após ter bilismo
efetivado mudanças 2. Ajudar o paciente a renovar
2. Evento esperado na mudança os processos de contemplação,
de qualquer padrão comporta- determinação e ação
mental de longa duração

Fonte: Elaboração própria; baseado em Miller & Rollnick, 2001.

A intervenção clínica

O papel da APS na atenção à saúde do usuário de álcool e outras


drogas, e as estratégias de cuidado neste ambiente clínico

De acordo com o Programa de Atenção Integral a Usuários de Álco-


ol e outras Drogas, instituído pelo Ministério da Saúde em 2004, a Aten-
ção Primária à Saúde constitui um dos pilares da assistência à saúde destes
pacientes, em conjunto com os CAPS-Ad, ambulatórios e outros serviços
segue

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 269


especializados, a rede hospitalar de referência e a rede de suporte social
complementar (Brasil, 2004).
Conforme lembram Souza & Ronzani (2012), a APS é um ­dispositivo
privilegiado na abordagem dos problemas de saúde relacionados aos
usos de álcool e outras drogas, uma vez que é nela que os profissionais
têm ­contato com grande número de pessoas que possuem problemas já
­existentes associados ao uso de substâncias e que podem evoluir para um
padrão de dependência ou prejudicar significativamente a vida do p ­ aciente.
Os mesmos autores ressaltam, ainda, que diante da limitação de tem-
po e recursos públicos disponíveis para a APS, bem como da quantidade
de agravos que podem e devem ser prevenidos, importa priorizar medidas
de prevenção que apresentem comprovação de boa relação custo-benefí-
cio (Souza & Ronzani, 2012). Nesse quesito, destaca-se que o rastreamento
de abuso de álcool, seguido de aconselhamento na Atenção Primária es-
tiveram entre as cinco práticas mais efetivas e custo-efetivas nos Estados
Unidos em 2006, em um ranking de prioridades em prevenção elaborado
pela National Commission on Prevention Priorities (Solberg, Maciosek, &
Edwards, 2008; idem, 2012).
Considerando ainda que a abordagem precoce sobre os TUS se as-
socia à melhora do prognóstico clínico, justifica-se o uso de instrumentos
válidos, confiáveis e de baixo custo para a identificação de padrões proble-
máticos de uso de álcool e outras drogas.
No que se refere à triagem da dependência de álcool, há instrumentos
de fácil aplicação já validados no Brasil, como o CAGE e o AUDIT. No
que se refere à triagem ampla do uso de substâncias diversas (incluindo
também o álcool), destaca-se o instrumento desenvolvido no âmbito da
OMS, denominado ASSIST. Conforme lembram Henrique et al. (2004), o
ASSIST tem características adequadas ao uso em serviços de assistência
não especializados, quais sejam: sua estrutura padronizada, rapidez de apli-
cação, abordagem simultânea de várias classes de substâncias, facilidade de
interpretação e a possibilidade de ser utilizado por profissionais de saúde
de formações diversas.
Assim como os instrumentos de triagem, são necessárias interven-
ções concisas e eficazes para a abordagem dos TUS fora dos serviços espe-
cializados. Nesse contexto, destaca-se a técnica de Intervenção Breve (IB),
voltada para modificar a conduta de usuários de substâncias psicoativas em
relação àquelas drogas que lhes causam problemas, ajudando-os a perceber
os riscos envolvidos e os motivando para a mudança (ibidem, 2012).
No contexto da Atenção Primária, a prática da IB consiste em, após
uma escuta empática e atenta, oferecer feedback e aconselhamento que bus-

270 • Capítulo 12
que motivar usuários de substâncias com comportamentos de baixo e mo-
derado risco a mudarem sua conduta de consumo, criando um vínculo entre
seus hábitos atuais de uso e os riscos/danos a ele associados. Especialmente
delineada para pessoas que não são dependentes de álcool ou de outras dro-
gas, mas que consomem tais substâncias de maneira perigosa ou danosa —
tanto em relação à saúde quanto sociais, legais, laborais e econômicos — a
IB tem sido apontada como eficaz na identificação de usuários com risco
baixo e moderado de uso, sendo influente na modificação dos seus hábitos,
possuindo a vantagem de poder ser aplicada não só por especialistas, mas
por qualquer profissional de saúde capacitado e treinado (ibdem, 2012).
Ao analisar-se o exposto, fica também evidente que uma das atri-
buições primordiais dos profissionais da APS no manejo de pacientes em
uso problemático de quaisquer drogas é a identificação daqueles casos
que podem ser adequadamente assistidos nesse ambiente de cuidado e o
­encaminhamento precoce para os serviços especializados daqueles que de-
mandam intervenções mais intensivas (Brasil, 2004). Aqui, relembramos
que conforme os TUS evoluem em gravidade, mais intenso tende a ser o
comprometimento da condição geral do paciente e mais significativos os
prejuízos interpessoais e ocupacional decorrentes da persistência de um
padrão problemático de uso, e é a presença desses elementos que deve cha-
mar atenção do profissional da APS para que considere o encaminhamento
a serviços especializados.
Uma vez que a Atenção Primária se capacita para atender a demanda
dos usuários cujo padrão de uso de drogas não implica risco elevado, os
recursos especializados da RAPS ficam disponíveis para a abordagem das
situações mais complexas, que demandam habilidade clínica para atuação
em contextos de vida e ambientes peculiares (p. ex., usuários em situação
de rua, situação carcerária ou em cenas abertas de uso de drogas).

Redução de Danos

A Redução de Danos desponta como um elemento fundamental para


pensar as intervenções e práticas no campo das substâncias psicoativas. O
nascimento dessa ideia surge em 1926, na Inglaterra, como uma das reco-
mendações do Relatório Rolleston, um plano elaborado pelo governo bri-
tânico para lidar com o número crescente de ex-combatentes da Primeira
Guerra Mundial que haviam se tornados dependentes do uso de opioides
(Kinoshita, Silva & Silveira, 2013). A ideia ressurge na década de 1980, na
Holanda, desta vez com protagonismo dos usuários de drogas injetáveis

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 271


nas chamadas ‘‘Junkiebonds’’, como uma estratégia de cuidado diante da
crescente epidemia do HIV/Aids (Ribeiro, 2013).
A Redução de Danos é implementada como política social para di-
minuir os efeitos negativos associados ao uso de drogas, não pregando a
abstinência do uso como única via de cuidado (Sodelli, 2010). Isso envolve
a compreensão, pragmática e realista, de que muitas pessoas não querem,
nem conseguem ficar abstinentes e que, nem por isso, não possuem direito
a um cuidado em saúde ou a que outras ações possam ser tomadas tendo
em vista ampliar sua autonomia e saúde (Ribeiro, 2013). Alicerçada nos
direitos humanos e no princípio da dignidade humana, a Redução de Da-
nos compreende que o fenômeno do uso prejudicial de substâncias envol-
ve realidades complexas e contextos de vulnerabilidade que necessitam de
múltiplas estratégias de cuidado.
Para tanto, a Redução de Danos emprega uma grande gama de estra-
tégias que vão desde a distribuição de insumos de saúde que diminuem os
riscos associados ao uso de uma substância, como piteiras, seringas, agu-
lhas e outros materiais; distribuição de informações sobre as substâncias
que orientem as formas de uso menos arriscadas, como quais substâncias
não misturar; a estratégias de “terapia de substituição”, como uso da meta-
dona no caso dos opioides ou de psicotrópicos menos nocivos em relação
a outras substâncias (Marlatt, 1999). A Redução de Danos também envolve
princípios norteadores de práticas e políticas, como o princípio de baixa
exigência, segundo o qual os profissionais se mostram mais flexíveis com
os pré-requisitos para alguém acessar um cuidado, e o protagonismo dos
usuários em seu tratamento (Lancetti, 2015).
A Redução de Danos envolve uma prática não protocolar de cuida-
do, em que o profissional de saúde se mostra aberto ao conhecimento do
usuário sobre a substância e seus modos de uso, atento a suas experiências
subjetivas, compreendendo de forma ampla seu contexto de vida (Petuco,
2014). Como já mencionado, isso envolve analisar cada uso em uma tríade
entre sujeito, substância e contexto, reconhecendo uma complexidade de
relações, compreendendo pragmaticamente o que pode ser feito naquele
momento com aquela pessoa, reconhecendo seu desejo e autonomia.

Um olhar integral à saúde do usuário de álcool e outras drogas

Na abordagem dos usos problemáticos de substâncias no contexto da


APS, importa conhecer, mais do que as especificidades de cada transtorno
por uso de substância, os riscos globais à saúde mais frequentemente asso-

272 • Capítulo 12
ciados a esses quadros clínicos. Aqui, daremos destaque às comorbidades
psiquiátricas, uma vez que são condições comumente negligenciadas na
abordagem dos TUS (com alguns dados sugerindo que sejam abordadas
em apenas 12% dos casos) e cujo manejo inadequado impacta negativa-
mente o prognóstico clínico (Scheffer, Pasa & Almeida, 2010).
Scheffer, Pasa & Almeida (2010), ao tratar das comorbidades
psiquiá­tricas associadas ao uso de substâncias, lembram que os dados do
­Epidemiologic Catchment Área Study (ECA) demonstram que cerca de
metade dos indivíduos diagnosticados com problemas relacionados ao uso
de álcool e outras substâncias apresentavam um diagnóstico psiquiátrico
adicional: 26% apresentam transtornos do humor, 28% transtorno de an-
siedade, 18% transtornos da personalidade antissocial e 7% esquizofrenia.
Os autores retomam, ainda, a importância de outros dados que apontam
para uma prevalência de depressão maior entre dependentes químicos va-
riando de 30% a 50%, bem como resultados que sugerem que os transtorno
de humor e de ansiedade — de altíssima prevalência no contexto da Aten-
ção Primária — seriam os mais prevalentes nessa população, especialmente
em pacientes do sexo feminino.
Assim, sugere-se que, a busca por uma atenção integral à saúde em
casos de usos problemáticos de quaisquer substâncias, seja orientada por
uma compreensão biopsicossocial do fenômeno e considere: a combinação
específica da comorbidade clínica ou psiquiátrica com o estágio de moti-
vação ao escolher o melhor método de tratamento; a necessidade do uso
de farmacoterapia para o tratamento do transtorno psiquiátrico, desinto-
xicação e fase inicial de recuperação; o uso de técnicas psicossociais para
aumentar a motivação, auxiliar na resolução de problemas ambientais e no
manejo de situações difíceis; o fornecimento de apoio familiar e informa-
ção sobre tratamento adicional de apoio; o tratamento psiquiátrico para o
controle de sintomas psicóticos, depressivos e de mania, com ou sem risco
de suicídio (idem, 2010). A isso ainda adicionaríamos uma atenção espe-
cial às estratégias de Redução de Danos, ainda muitas vezes esquecidas.

Conclusão

Os usos problemáticos de substâncias são condições clínicas preva-


lentes, associadas a grande sofrimento psíquico, prejuízos sociais e ocupa­
cional dos pacientes, além de responsáveis por significativa carga global
de doença e demanda ao sistema de saúde. É de fundamental importân-
cia, posto isso, que os profissionais que atuam nos diferentes ambientes de

Elementos fundamentais para a abordagem do uso... • 273


cuidado estejam capacitados para a prevenção, compreensão, identificação,
avaliação e condução adequadas desses casos dentro do SUS e da RAPS.
A APS, pela possibilidade de identificação de problemas associados
ao uso antes que se configurem em uma demanda clínica complexa, tem
papel fundamental na provisão de atenção integral à saúde do usuário de
álcool e outras drogas. A capacitação e a sensibilização dos profissionais
que atuam nesse nível de assistência em relação aos fatores de risco e pro-
teção associados ao desenvolvimento desses quadros devem ser, portanto,
tomada como prioridade. Ademais, a APS, por seu contexto de proximida-
de com os territórios de vida da comunidade, possui um potencial ímpar de
intervir nessas situações complexas de uso, podendo acessar a população
de modo muito mais rápido e próximo do que os serviços especializados.
Diante disso, importa ressaltar que não só a falta de conhecimento
técnico como também os estigmas promovidos por um ambiente cultural
proibicionista cerceiam o desenvolvimento das habilidades clínicas neces-
sárias para lidar com estes casos de forma eficaz, custo-efetiva e atenta à
autonomia dos pacientes e aos direitos humanos.
A construção de uma abordagem adequada dos usos problemáticos
de substâncias dentro do Sistema Único de Saúde e da Rede de Atenção
Psicossocial necessita, portanto, da combinação do conhecimento científi-
co com uma visão ampliada da clínica e uma perspectiva crítica acerca das
políticas hegemônicas sobre drogas. Embora a introdução e a combinação
desses elementos no contexto das instituições de saúde não seja uma tarefa
fácil, a incorporação desses fundamentos pelos profissionais da APS é um
movimento fundamental para a construção de uma prática clínica inclusi-
va, ampliada, efetiva e custo-efetiva no âmbito do SUS.

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278 • Capítulo 12
Parte III
Capítulo 13
Formação de estudantes para uma Clínica
Ampliada e Compartilhada: contribuições dos
Grupos Balint-Paideia

Elisa Toffoli Rodrigues


Fernanda Nogueira Campos Rizzi
Henrique Cardoso Marcene
Gastão Wagner de Sousa Campos

E ste capítulo discute a formação de estudantes para uma clínica amplia-


da a partir de duas histórias que chegaram até os autores por meio dos
Grupos Balint-Paideia (GBP). Eles foram realizados com estudantes do úl-
timo período do curso de medicina que passavam pelo estágio obrigatório
curricular (internato) de saúde coletiva nas Unidades Básicas de Saúde. Os
estudantes eram organizados em duplas para realizar atendimento conjun-
to e deveriam escolher um usuário do serviço para compor um Projeto Te-
rapêutico Singular, levando em consideração os critérios de elegibilidade,
ou seja, a complexidade do caso e a necessidade de uma atenção interdisci-
plinar, intersetorial e longitudinal.

Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 281


Duas destas duplas trouxeram histórias que motivaram a escrita deste
capítulo. Optou-se por transcrever as narrativas delas entremeadas pelas
discussões que emergiram nos GBP e outras que vieram posteriormente
com leituras e com a constante reflexão dos autores como educadores, pes-
quisadores e profissionais de saúde.

Duas histórias

As narrativas das histórias foram realizadas mudando o nome dos


envolvidos e deixando clara certa ficcionalidade da narrativa, pois se tra-
tam de narrativas contratransferenciais. Por quê? Ouvimos, os autores deste
texto, os narradores e refizemos a narrativa, atentos à realidade e aos fatos,
mas os reproduzindo com nossas palavras, entremeando nossas percep-
ções, dando nossas ênfases e cientes de que deixamos passar o que possa,
porventura, ter sido ocultado ou ignorado pela dupla de alunos que acom-
panhou o caso. O nosso lugar de educadores em um Grupo Balint-Paideia
(GBP) permanece como um lugar de poder e avaliação, por mais que a
relação entre os participantes do grupo se proponha horizontalizada. 
Desta forma acreditamos que a narrativa transcrita é uma reedição
dos fatos, uma reinterpretação. Primeiro houve o encontro e a interpre-
tação deles pelas duplas de estudantes, posteriormente no GBP, durante a
apresentação do caso houve elaboração secundária dos dados e o que aqui
descrevemos é a nossa interpretação dessa apresentação editada pelos nos-
sos olhares.
Uma característica importante das narrativas apresentadas neste ca-
pítulo é que elas sofrem efeitos dos debates entre os alunos e das discussões
realizadas entre os docentes durante a supervisão dos casos do GBP, que
eram momentos, acima de tudo, formativos para esses atores. Além disso,
sabemos que, em alguma medida, as vozes dos estudantes ecoavam em par-
te as vozes das instituições que permearam o ambiente, seja das Unidades
Básicas de Saúde onde os estudantes estagiaram por seis meses consecuti-
vos, seja da universidade e, mais especificamente, do curso de medicina no
qual os alunos estiverem imersos por quase seis anos. 
Compartilhamos a seguir duas narrativas, sob a ótica dos docentes,
que chegam ao leitor também sujeita a novas leituras de realidade. Foram
somadas às narrativas perguntas, colaborações e reflexões da dupla de es-
tudantes responsável pelo caso, bem como dos demais estudantes e dos
docentes que participaram do GBP. 

282 • Capítulo 13
O material utilizado para este capítulo faz parte de uma pesquisa-ação
que teve como objetivo analisar os efeitos dos GBP na formação de estu-
dantes de medicina para a Atenção Primária à Saúde. Os preceitos éticos da
pesquisa com seres humanos foram obedecidos. Todos os participantes dos
GBP assinaram o termo de Consentimento Livre e Esclarecido, aprovado
pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Uberlândia sob o número
CAAE 00849118.0.3001.5152. 
Thomé: ver para crer

“Thomé é um paciente difícil”. Essa foi a primeira coisa que as estudantes do


último semestre do curso de medicina ouviram da Equipe de Saúde da Uni-
dade. Logo a dupla se dispôs ao desafio de realizar um Projeto Terapêutico
Singular (PTS) com Thomé, crendo que era um caso “complicado”: o pacien-
te tinha 65 anos, era diabético há muitos anos e a equipe o tachava como
teimoso. No relato das estudantes para o Grupo ­Balint-Paideia, Thomé foi
apresentado como insulinodependente “rebelde”, que se ­cuidava mal e faltava
nas consultas. Quando aparecia e eventualmente fazia exames, os resultados
não eram bons clinicamente. ­Aplicava a insulina NPH e regular em doses e
horários que ele mesmo escolhia e em local não recomendado (na região da
virilha). Uma das alunas referiu que achou engraçado o fato dele dizer que
entendia muito sobre diabetes já que ele não fazia “o que que os médicos
mandavam fazer”. Finalizando a a­ presentação inicial, as estudantes resumi-
ram: “o caso é esse: há falta de controle do diabetes e o paciente usa a insulina
do jeito que quer”.

A escolha desse caso para apresentação no GBP se deu pelo fato do


paciente ser “difícil”. A forma como Thomé foi apresentado às estudantes
pela equipe, deixava claro que não seria fácil fazer qualquer coisa por causa
da pouca colaboração do paciente. A impotência da equipe, como grupo
de pessoas e como uma Unidade, foi condensada e transferida para o tal
paciente difícil. Ele, por sua vez, possuía características específicas que con-
tribuíam para que o deslocamento ocorresse. Isso é um exemplo do fenô-
meno chamado de contratransferência, assim denominado na psicanálise
clínica e que se expandiu por influência de Balint para a Psicologia Médica
(Nogueira-Martins & Nogueira-Martins , 1998). 
Os conceitos de transferência e contratransferência têm sido utiliza-
dos e compreendidos à luz das relações humanas assimétricas em que uns
depositam em outros conteúdos inconscientes, repletos de experiências, de
expectativas, de gratificação e de frustração. Comumente um paciente que

Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 283


parece rebelde, teimoso e desleixado, apresenta-se assim não apenas em
relações com profissionais e instituições, mas em relações que repetem al-
guma característica de controle e/ou cuidado. O paciente transfere para a
equipe que reage e também contratransfere, transportando suas experiên-
cias anteriores para a atual.
Neste sentido a transferência tem um papel central na análise das re-
lações e na compreensão de falhas na comunicação e problemas de adesão.
Compreende-se que a equipe deve se atentar às transferências do paciente
e às suas reações contratranferenciais, aprendendo a manejar melhor suas
questões nas relações com a população. Assim, pode evitar a repetição “au-
tomática” de relações infantilizantes que não geram vínculos saudáveis, e
sim dependências e antipatias. 
Para que haja alguma forma de autonomia, considerada indispensável
para que a promoção de saúde se efetive, é necessário que haja reconheci-
mento de emoções e sentimentos da equipe dirigidos a certos pacientes
que dificultam o diálogo e o tratamento. É importante ainda considerar
que toda relação é intersubjetiva, ou seja, carregada de fatores emocionais
conscientes ou não e que, para realizar uma atenção integral ao paciente,
deve-se levar em conta essa dinâmica subjetiva.
Após o relato inicial, os demais estudantes e docentes apoiadores ini-
ciaram seus questionamentos com intuito de ampliar a compreensão do
caso, o primeiro passo da realização do Grupo Balint-Paideia. 

As internas contaram que na consulta, Thomé relatava apenas parestesias


nas pernas. As estudantes identificaram que sua alimentação era boa, mas
ficava longos períodos sem comer e assim propuseram um acordo com o pa-
ciente para que diminuísse os intervalos entre as refeições. Ao relatar, alunas
afirmaram que ele ingeria um litro de cerveja no almoço diariamente.

Ao problematizar sobre a não adesão do paciente às propostas da equipe,


as alunas relataram que Thomé considerava difícil realizar exames matinais
porque despertava muito cedo (às 4 horas da madrugada) e não conseguia
manter o jejum. As alunas se exaltaram ao contar que ele não frequentava
a UBS, convidando outros alunos a confirmar uma história recente: Thomé
machucara a cabeça na viga da escada da casa dele, foi para o pronto-socorro
e depois foi encaminhado para a UBS para fazer os curativos diários, o que
ele não fez. Os colegas que conheciam o caso e que atenderam Thomé na
ocasião disseram que o ferimento estava infeccionado nitidamente devido à
higienização precária. “É muito difícil dialogar. Seu Thomé nos diz que ele
conhece bem o corpo dele”.

284 • Capítulo 13
Posteriormente, o genograma e ecomapa realizado com Thomé e seus fami-
liares foi apresentado: ele trabalha na construção, é casado com Lúcia, tem
três filhos com quem tem boa relação e vínculos com amigos e parentes que ele
sempre visita. Durante as visitas domiciliares, ao conhecer um pouco o mun-
do de Thomé, as alunas pensaram em dialogar com ele por meio da metáfora
da construção “só você vai saber colocar o piso”, porque esse era universo de
trabalho do senhor Thomé. Assim, tentaram aproximar a linguagem delas à
realidade dele.

As estudantes relataram que ficavam com vontade de rir porque Thomé se


vangloriava de conhecer todos os métodos e técnicas e ao contar como usava
insulina, demonstrava certa ignorância. Relataram que, ao mesmo tempo, ele
era muito autônomo, fazia tudo sozinho e apesar dos familiares se queixarem
de que ele era teimoso, contavam com a ajuda para equipe da Unidade para
que o tratamento se efetivasse. As estudantes contavam que as filhas são pre-
sentes no cuidado do pai, atenciosas e que o delataram avisando que o pai
anota os valores da glicemia capilar errado de propósito, para “saírem do pé
dele”. Por isso, a dupla decidiu combinar com a esposa que ela iria entregar
fitas do glicosímetro, mesmo sabendo que ele não gostava de receber ajuda.
Era uma aposta das internas para controlar um pouco a sabotagem do pa-
ciente, causando polêmica entre os estudantes, já que uns acreditavam que
deveria ser reforçado a autonomia dele e outras achavam que essa ação não
interferiria na autonomia do cuidado e sim, ampliaria a rede de cuidados do
paciente.

A preocupação das estudantes claramente ligava-se ao controle da


glicemia. O que se trata de fato de um objetivo médico, o qual esbarrava,
nesse caso, na subjetividade de seu paciente. A reação de deboche de uma
das alunas, enquanto relatava o caso, fez emergir certa arrogância da dupla
de estudantes, aos olhos dos apoiadores do GBP, destacando a assimetria e
verticalidade na relação médico-paciente. O GBP permitiu, por outro lado,
que fosse destacada a autonomia do sujeito em detrimento da natureza do
saber. Logo, a discussão em grupo de forma reflexiva permitiu a aparição
do desconforto nos participantes do GBP: como construir uma rede sem
perder a autonomia? 
Valla (1996) e Gomes & Merhy (2011) entendem que as ideias pre-
concebidas dos profissionais de saúde tendem a reduzir a verdade sem a
devida escuta das falas da população. Dessa forma, o discurso popular e o
modo que operam seus saberes são mal compreendidos ou interpretados a
partir do referencial do próprio profissional. 

Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 285


O posicionamento das estudantes diante da suposta “ignorância” alte-
rou-se diante do desafio de se fazerem entendidas. Motivadas pela valoriza-
ção de sua formação, a dupla se arriscou na empreitada de uma reconexão
dos discursos. Nesse sentido, quando as internas consideraram o contexto
de vida do sujeito em questão, fizeram uma transmutação do “faz como
quer” para o “faz como entende”, sendo o entender o modo de operar o
saber e aprendizagem, de aceitar outro dizer, mesmo que distante de seus
conhecimentos e crenças: esse aceitar, em vez de passivo, torna-se ativo
quando ele, o paciente, torna-se sujeito e entra na história. Elas o convida-
ram a tomar sua posição de protagonista construtor, como pedreiro, sábio
da construção, como alguém com os próprios conhecimentos e saberes e
que poderia agregar no cuidado de si.
Percebe-se que a rede de relacionamentos e a família, são tomados
como parte do tratamento, como parceiros no cuidado, articulação possível
em razão de uma lógica ampliada de saúde em que se considera o ambiente
sistêmico do paciente. As ferramentas de abordagem familiar e comunitá-
ria auxiliaram na compreensão do caso e na sua singularização. 
Para se realizar uma clínica compartilhada é necessário refletir sobre
questões de gênero que estão presentes neste caso: Thomé como homem,
apresentava comportamentos que são apontados como comuns entre o
público masculino. A estrutura social machista solicita do homem a ma-
nutenção de um lugar de superioridade em relação às mulheres, que dá
a falsa impressão de garantir mais saúde e resistência (Teixeira, 2016). O
machismo estrutural indica que as mulheres são responsáveis pelo cuidado
de si e dos outros. Logo, cuidados e preocupações com saúde e corpo, são
relacionados ao público feminino, o que acaba por impactar na gestão de
cuidado e nas ações educativas dentro dos serviços comumente voltadas
para mulheres (Teixeira, 2016).
O medo de detecção de doenças, medo de exames invasivos como o
de toque retal, a vergonha de expor-se a profissionais de saúde do gêne-
ro feminino e a priorização do trabalho em vez do autocuidado aparecem
como fatores que afastam os homens das Unidades de Atenção Primária e
acabam empurrando-os para os adoecimentos silenciosos crônicos e para
os atendimentos emergenciais (Silva et al., 2020; Teixeira, 2016). Silva et
al. (2020) também identificaram que pacientes do sexo masculino buscam
os serviços comumente e ou se cuidam apenas em situações de urgência e
emergência. O horário de funcionamento das Unidades Básicas de Saúde,
que coincide com o horário comercial na maioria das vezes, é outro fator
que contribui para a falta de acesso desse público ao serviço de saúde, como

286 • Capítulo 13
no caso de Thomé que acordava cedo e logo saía para trabalhar, retornando
para casa apenas no fim do dia. 

Após compromissos firmados com Thomé, como o de que ele iria medir a gli-
cemia capilar antes de aplicar insulina, percebeu-se, em um retorno, que ele
não havia cumprido com o combinado. Em um ato de apelo das estudantes se
utilizaram da técnica do medo: “Você pode morrer, é uma coisa muito grave”. 

Uma das internas que apresentava o caso acreditava que seria efetivo o terror
quando a pessoa está em risco, mas notou que não é simples assim: juntamen-
te com os participantes do GBP pensou que essa estratégia dependia do perfil
da pessoa e que funcionava mais encontrar a motivação de vida do sujeito. O
consenso era que deveriam alcançar o ponto que dá sentido à pessoa realizar
o autocuidado.

Thomé age como um super-homem diante das duas jovens que se


propõem a cuidá-lo. A vontade de conseguir respeito pelo medo pode
­deflagrar uma reação contratransferencial em virtude da desvalorização do
trabalho e saber de duas jovens mulheres. Um choque de poderes pode
impedir aí um mútuo entendimento, o que foi superado pelo acolhimento
do GBP, pela preceptoria e supervisão das internas e, obviamente, pelas
formações pessoal e acadêmica que as permitiram reinventar um encontro,
possibilitando uma clínica compartilhada meio a enfrentamentos.
As relações contratransferenciais são inevitáveis no encontro inter-
-humano, pois trazem o deslocamento de afetos, fantasias e experiências
anteriores para aquelas que ali se constroem. A irritação das internas que
atenderam Thomé, por exemplo, pode ser compreendida como uma pro-
jeção das impotências e frustração que ele causa por uma “desobediência”.
Nesse caso, instala-se a relação adulto-criança, professor-aluno, ou seja,
aquele que ordena e aquele que se submete. Quando as internas assumi-
ram a conduta de assustar Thomé para que ele se atente às suas sugestões,
aliaram o poder da ciência ao do mestre e o enxergaram como uma criança
capaz de ser assustada pelo terror da morte. Diante da morte, todos pare-
cemos pequenos.

A discussão no grupo girou em torno de questões sobre até onde investir num
paciente resistente, surgindo falas dos estudantes como: “Não é fácil cuidar
de quem não quer ser cuidado”, “às vezes sentimos raiva”, “sensação de im-
potência”, e “temos que gerir até onde investir”. A reflexão abordou a insufi-
ciência da técnica e a potência de aprender manejos diferentes para pessoas

Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 287


­ iferentes de nós. Os estudantes reconheceram que a raiva não é do paciente
d
em si, mas do fato de ele negar o conhecimento que porventura possam ter
sobre sua saúde. Afirmaram que é dever do profissional médico fazê-lo acei-
tar, transmitindo o que sabemos e, se o paciente não quiser, acreditam que “o
problema deixa de ser nosso”. 

O termo transmissão utilizado pelos estudantes traz a conotação de


uma educação bancária e hierarquizada, ao contrário do formato proposto
na atenção básica, de uma educação que priorize a liberdade, autonomia
e que leve em conta que o conhecimento é construído na relação e não
depositado em outro desprovido de saber. O mal-estar gerado pela postura
defensiva de superioridade diluiu-se por meio da discussão no GBP, pois
coloca em questão o desejo de valorização profissional, que os estudantes
estavam prestes a ser, deixando transparecer a insegurança, os medos e as
dúvidas quanto alguns limites a se estabelecerem. Concluíram que

é necessário ter sensibilidade e intuição para decidir o momento de investir,


como investir e o tempo de recuar.

Na reapresentação do caso as alunas levaram ao GBP um trabalho de educa-


ção em saúde, tentaram devolver a Thomé seu poder em relação a seu cuida-
do, realizando uma dinâmica bem visual com material colorido e ilustrativo
elaborado pelas próprias estudantes (figura 1). Foram criadas pelas internas,
com cartolina e canetinha, células, bolinhas (que representavam a glicose) e
um vaso sanguíneo para explicar a fisiopatologia da doença diabetes. Cria-
ram um jogo com cartas, com desenhos de pé, coração, olho, entre outros,
que contribuíam para associações causa-efeito. Usaram uma tampa de uma
caneta para demonstrar a insulina e sua aplicação. A atividade foi realizada
com Thomé e sua esposa. Ambos deveriam resolver situações-problemas típi-
cas do dia a dia de Thomé utilizando o material levado como, por exemplo,
a seguinte pergunta: “se vocês estiverem com insulina de 300, como vocês
fariam?”.

O gráfico da insulina NPH foi apresentado ao paciente. Ao que as estudantes


perceberam que o paciente e a esposa ficaram satisfeitos com a atividade. O
resultado posterior foi evidente, como a diminuição da hemoglobina glicada
que passou de 15% para 11%, o que deixou as estudantes entusiasmadas. Os
sintomas da perna mudaram pouco, mas outras complicações foram preve-
nidas. Thomé disse ainda que diminuiu muito a bebida, bebia seis litros por
dia e passou para um, o que foi uma descoberta para as estudantes e cuja

288 • Capítulo 13
mudança viram como avanço considerável. Mesmo assim ele continuou não
indo muito à Unidade de Saúde. No entanto, todos os presentes no GBP acre-
ditam que houve um aumento da credibilidade de Thomé, que precisa ver/
viver para crer nos serviços e nos conhecimentos da atenção básica de saúde.

Nesse momento do caso percebe-se que as alunas priorizaram práti-


cas que se aproximaram da educação popular em saúde. Interessante no-
tar que, durante o acompanhamento de Thomé e durante as discussões no
GBP, as estudantes transitaram entre uma postura prescritiva de mudanças
de hábitos e o compartilhamento de saberes e decisões com o paciente. 

Figura 1. Material educativo elaborado pelas estudantes do 12.o período de me-


dicina para realização de uma atividade de educação em saúde com a temática
do diabetes

Isso pode ser justificado, em parte, por uma construção histórica em


que práticas de saúde e de educação eram vistas de maneira isoladas. O pro-
fissional de saúde, em sua ação, e as instituições, em seus planejamentos,
não priorizavam essas práticas, mantendo a postura prescritiva dos profis-
sionais e a necessidade dos serviços em ditar a mudança de hábitos dos que
adoeciam (Alves & Aerts, 2011, p. s/n; Falkenberg et al., 2014, p. s/n).
Formatos de educação verticalizados de caráter informativo não cor-
respondem às necessidades cotidianas de um diálogo que faça sentido na
relação entre o serviço de Atenção Primária e seus usuários. A educação
popular em saúde é uma teoria e prática da ruptura e, não só rompe, como
se movimenta no sentido contrário ao paradigma científico moderno po-
dendo ser chamada de educação contra-hegemônica. Ao romper com a
medicina formal, rompe com o modelo de educação “bancária” (Freire,

Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 289


1987), em que uns passivamente assimilam aquilo que é depositado pelo
sábio validado, cujos conhecimentos são considerados dele — educador —
e são doados para o outro — aprendiz. 
Diante de queixas frequentes dos estudantes e trabalhadores da aten-
ção básica sobre problemas de adesão da comunidade aos cuidados essen-
ciais para a própria saúde e às orientações profissionais, compreendemos
que a educação popular em saúde e a análise crítica de fenômenos subjeti-
vos como a transferência contribuem para a efetivação da clínica ampliada
e para a relação comunidade-serviços. Nesse sentido crítico algumas ques-
tões devem ser lançadas sem presunção da resposta: A obediência de um
paciente ao tratamento proposto por uma equipe de saúde significa adesão?
A obediência garante o bem-estar do paciente? A falta de adesão do paciente
pode ser compreendida com desinteresse na própria saúde? Qualquer negati-
va é irresponsável?
Para responder é necessário interpretarmos a partir de uma matriz
de saberes e, infelizmente, a matriz do saber biomédico e a matriz do saber
popular não coincidem. Enquanto o primeiro parte de métodos e evidên-
cias científicas o outro parte de experiências, cultura, lutas e concretude
cotidianas, além das suas interpretações, individuais e coletivas.
Valla (1996) entende que os problemas de interpretação entre comu-
nidade e profissionais estão ligados à falta de compartilhamento de critérios
de interpretação da realidade. A limitação de compreensão de contextos,
que transcendem consultórios e muros de Unidades de Saúde, impede até
o mais íntimo e longevo profissional em conceber empaticamente o mun-
do em que seu cliente está imerso, quais problemas cobram mais atenção
dele?, quais prioridades não são trazidas para o evento da consulta? “O que
frequentemente para o profissional é conformismo, falta de iniciativa e/ou
apatia é para a população uma avaliação (conjuntural e material) rigorosa
dos limites da sua melhoria” (Valla, 1996, p. 181). 
As internas extrapolaram os muros da Unidade de Saúde e tentaram
adentrar o universo da família de Thomé para realizar uma atividade com
caráter educativo, levando ofertas ao paciente (como o manejo adequado
da insulina), mas estando também abertas a novos aprendizados. 
Esse extrapolar ocorre em razão da proposta de se realizar uma Clí-
nica Ampliada e Compartilhada que lança mão de saberes múltiplos e de
uma construção coletiva de um projeto singular de cuidado. 
Durante o GBP, a apresentação da questão do alcoolismo de Thomé
foi marcada por uma lógica da abstinência. A narrativa das internas quanto
a isso, apresentou emoções genuínas quanto à ênfase do consumo de álcool
por Thomé como uma situação intolerável, mas não no que dizia respeito

290 • Capítulo 13
a interrelações com sua doença de base. A frase “Era mais fácil encontrá-lo
no boteco que na UBS se cuidando” atraiu as interações do GBP no senti-
do de um estereótipo que justificasse o senso do paciente-problema, o que
desencadeou intenções de práticas de Educação em Saúde e o desenvolvi-
mento do caso com propostas de ações benevolentes e magnânimas das
internas. No entanto, na reapresentação a dupla trouxe uma mudança: uma
diminuição importante no consumo diário de cerveja, associado a uma
compreensão de Thomé de que a melhora de seu quadro clínico solicitava
algum esforço pessoal. A dupla havia timidamente falado no GBP sobre
a postura redutora que adotaram ao ver a resistência de Thomé a tantas
orientações. O resultado foi transformador tanto para Thomé quanto para
as estudantes, pois a adesão a um manejo próprio da Redução de Danos
produziu autonomia e benefícios para o paciente, mantendo as premissas
de uma clínica compartilhada.
A discussão sobre Redução de Danos e o trabalho dos futuros médi-
cos no SUS surgiu também em outra experiência relatada, a do casal ligado
ao movimento “Malucos de Estrada”, Alísio e Mariele, sendo ela gestante e
ambos usuários de substâncias psicoativas.

Uma dupla de internos relatou que tinha escolhido para acompanhamen-


to uma gestante que lhes causou estranhamento no primeiro encontro pela
maneira dela se vestir (hippie), pelo penteado em dread e pelo fato dela che-
gar na Unidade carregando artesanatos. Em uma breve narrativa, os alunos
contaram que conheceram Mariele alguns dias atrás, num atendimento de
pré-natal que estava sendo realizado na UBS. Mariele era uma jovem de 21
anos que vivia com o marido Alísio há cerca de um ano. Ele, na casa dos
quarenta, era responsável pela construção daquele estilo de vida alternativo.

Em meio a esse relato, os alunos comentaram que a médica e o enfermeiro da


Unidade pediram que eles fizessem o PTS daquela gestante devido à dificul-
dade de Mariele seguir o pré-natal, afinal, ela já havia faltado em várias con-
sultas e no dia agendado para realizar a vacina. Além disso, ela usava drogas.

Na primeira visita domiciliar, apenas Alísio estava presente e deixou claro


que tinham preferência para o uso de plantas medicinais, ele mesmo prepa-
rava um jardim de fitoterápicos para a criança que chegaria. Sobre o uso de
drogas ilícitas, eram muito liberais, principalmente sobre o uso de cannabis e,
segundo os mesmos, faziam uso regular. Mariele vinha reduzindo o consumo
devido à gestação. 

Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 291


No GBP o debate sobre o uso de maconha durante a gestação levan-
tou muitos questionamentos e principalmente choques de ideias. Afinal, de
acordo com os alunos, a literatura médica indica que o uso desse psicotró-
pico durante a gestação oferece riscos à saúde do bebê, mas o desfecho da
história mostrou-se como uma exceção, para a surpresa da dupla. Embora
uma das apoiadoras tenha trazido à tona a discussão da Política de Redu-
ção de Danos, notou-se insegurança dos estudantes em concordarem com
essa lógica. 
A redução de Danos como alicerce para uma clínica amparada na au-
tonomia e no respeito a usuários de drogas coaduna também com a pers-
pectiva da promoção de saúde e prevenção de agravos, permeando ações
que já são realizadas nos serviços como: a orientação nutricional, os exames
pré-natais, o acolhimento e a escuta radical com preservação da autonomia
dos sujeitos (Silva & Garcia, 2017). De acordo com Campos et al. (2014) a
Clínica Ampliada e Compartilhada implica em uma prática menos prescri-
tiva e que coloca em evidência os sujeitos concretos para os quais saberes e
tecnologias são dirigidos. 

Assim, tanto a prevenção como a terapêutica devem partir das evidências e


da avaliação de riscos para negociar com as pessoas em termos de redução
de danos: o que é possível neste caso, para este paciente, neste contexto? O
exercício da função apoio na relação clínica e nas ações de Saúde Coletiva
é um recurso que pretende desenvolver, junto aos sujeitos, maiores graus
de responsabilização e autonomia para o cuidado com a saúde (Campos et
al., 2014, p. 991). 

Nesta perspectiva, não restrita à saúde mental e ao uso de substâncias,


o termo Redução de Danos é associado à avaliação da melhor possibilidade
a se pactuar com o paciente que não satisfaça simplesmente aos anseios de
controle e poder da equipe, mas que resulte em uma construção conjunta e
em maior resolutividade. 

Na primeira visita domiciliar os estudantes relataram que houve estranha-


mento com o estereótipo do esposo de Mariele: “esteticamente ele chama
atenção”, foi a fala dos alunos ao descrever esse primeiro contato com Alísio.
Impressionaram-se como o jardim estava bem cuidado e com a quantidade
de plantas medicinais e alucinógenas. Apesar de todo o estranhamento, os
alunos estavam abertos para novos olhares. Um dos estudantes relatou em-
polgado: “aprendi muito com ele! Foi uma conversa bem aberta que nunca
tinha feito na vida”.

292 • Capítulo 13
Uma aprendizagem significativa se apresenta nesse relato, em uma
perspectiva correlata à da Educação Popular: a dupla mantendo a postura
da clínica ampliada realizou uma escuta atenta a fim de conhecer o modo de
vida que gerava tanto “estranhamento”. A experiência com o novo estimu-
lou os estudantes a ultrapassarem barreiras, estereótipos e saberes prévios,
gerando uma tensão que possibilita a ampliação de seus conhecimentos
(Campos, Cunha & Figueiredo, 2013). Ao sair desse encontro, aprenderam
algo novo sobre as multiplicidades de organizações de vida. 

A relação da equipe para com o casal, sobretudo Mariele, se dava de uma


maneira que chamaram “policialesca”. A partir das questões obrigatórias
do pré-natal, as condutas tanto do enfermeiro quanto da médica eram ba-
seadas nos protocolos, sendo a tolerância pequena a questões singulares
de Mariele. Exemplificam isso com o fato de Mariele ter sido buscada, no
carro do próprio enfermeiro da UBS, para ser conduzida para o serviço de
saúde para garantir que o cartão de vacinas fosse atualizado.

Na reapresentação do caso no GBP a dupla de alunos referiu que ficou um


mês sem frequentar a Unidade de Saúde em razão do rodízio de estágios.
Neste intervalo, Mariele teve o bebê. Ficaram surpresos com o nascimento
saudável da criança, apesar do uso da maconha na gestação. Relataram com
bastante indignação que Mariele não fez a consulta do binômio nos primei-
ros 10 dias, conforme preconizado e, ao serem questionados, explicam que
ela (absurdamente) fez a primeira consulta apenas no 11.o dia. No entanto,
consideraram que a mãe era muito cuidadosa e preocupada com seu filho,
apesar do seu estilo de vida. 

Destacaram o envolvimento da equipe na condução do caso: visitas domi-


ciliares frequentes da agente comunitária de saúde, envolvimento da assis-
tente social, consulta do binômio pela médica, busca ativa da equipe para
realização do teste do pezinho (enfermeiro novamente levou paciente em
carro próprio para a Unidade vizinha onde era realizado o exame). Por
outro lado, identificaram ainda, muito preconceito em condutas e compor-
tamentos dos profissionais de saúde e destacaram como ficaram impressio-
nados com o tom impositivo e invasivo que foi utilizado, por membros da
equipe, ao orientarem Mariele, em visita domiciliar, a não oferecer chá ao
seu filho recém-nascido.

Campos et al. (2014) identifica as diferenças existentes nos objetivos


da equipe e dos usuários do serviço: enquanto a equipe pretende garantir

Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 293


a saúde e a vida e sentir-se realizada por isso, o usuário busca apoio para
que ele e a comunidade sintam-se bem e com melhor saúde. Hierarquica-
mente, em razão do seu lugar de suposto saber, a equipe encontra-se favo-
recida e seus interesses parecem ter mais validade diante dos interesses dos
usuários, ou pelo menos, a forma que irão se realizar. Em nome da razão
biomédica ou protocolar parece que Mariele foi submetida ao exercício do
poder da instituição.
No entanto, vale destacar que as atividades e procedimentos de saúde
da gestante possuem uma condição de controle, metas e cobranças dife-
rentes de muitas das atividades das Equipes de Saúde da Família. Muitas
vezes, não apenas a efetividade (bom trabalho aos olhos dos usuários),
mas também a produtividade (resposta às metas mínimas de cobertura)
são importantes fatores de estresse e angústia para as equipes, o que pode
ser transferido para os estudantes e pacientes. A atividade protocolar dos
profissionais de saúde quando se enrijecem, perdem a flexibilidade impres-
cindível para lidar com as peculiaridades de cada família.
Para o exercício da Clínica Ampliada e Compartilhada é desejável que
se amplie o “objeto de trabalho”, ou seja, espera-se que qualquer profissional
de saúde considere que seu objeto de trabalho “deve ser a pessoa ou grupos
de pessoas, por mais que o núcleo profissional (ou especialidade) seja bem
delimitado” (Brasil, 2010, p. 16). No caso, a ampliação da clínica se daria
pelo fato de reconhecer em Mariele mais do que uma gestante que necessi-
tava do acompanhamento pré-natal protocolado, ou seja, considerá-la uma
pessoa com singularidades e competências culturais que necessitavam de
um cuidado diferenciado e único.
A compreensão ampliada do processo saúde-doença, a partir do en-
volvimento da equipe multiprofissional na discussão sobre os diferentes as-
pectos da situação também contribui para a efetivação da Clínica ­Ampliada
e Compartilhada (Brasil, 2010). A elaboração do PTS pelos ­estudantes,
sobre o caso dos Malucos, previa a integração dos diversos membros da
­equipe para que houvesse encontros interdisciplinares e a ampliação do
olhar sobre o caso. Apesar do envolvimento de diversos profissionais, a
falta da cultura de discussão de casos na reunião de equipe dificultou o
enfrentamento da fragmentação do cuidado e da falta de elaboração de
­objetivos comuns para o caso. 
Além disso, a Clínica Ampliada e Compartilhada exige a transfor­
mação dos instrumentos de trabalho, sendo necessários dispositivos de
gestão que valorizem a comunicação transversal na equipe e entre as equi-
pes e que estimulem “a capacidade de escuta do outro e de si mesmo, a
capacidade de lidar com condutas automatizadas de forma crítica, de lidar

294 • Capítulo 13
com a ­expressão de problemas sociais e subjetivos, com família e com co-
munidade” (Brasil, 2010, p. 17).
São necessários também arranjos institucionais que deem su­porte
para os profissionais de saúde. Ao se reconhecer a subjetividade das ­relações
entre profissionais de saúde e usuários, é preciso que haja um espaço para
lidar com o sofrimento, a dor e o medo que o próprio trabalho pode trazer,
tirando o profissional da sensação de falsa proteção que a c­ línica reduzida
(protocolar) pode oferecer (Campos, Cunha & Figueiredo, 2013). 
Pela vivência dos estudantes e dos docentes na rede de saúde do mu-
nicípio onde ocorreu o caso dos Malucos de Estrada, sabe-se que os profis-
sionais da Equipe de Saúde da Família não dispunham destes espaços insti-
tucionalizados. Já os estudantes podiam contar com ambientes protegidos
ondes era possível falar sobre suas dificuldades e aprender a lidar com elas
(os grupos Balint-Paideia).
Nos GBP os estudantes oscilaram entre o movimento de ampliar o
cuidado e reproduzir o preconceito, sendo que em diversos momentos re-
conheciam o preconceito mais nos outros do que neles próprios. Perce-
be-se que houve um exercício constante dos alunos confrontarem-se com
seus próprios saberes, abrindo espaços para trabalhar (mesmo que timida-
mente) com as dimensões do afeto, resultando na ampliação da visão sobre
o caso e na capacidade de singularização das pessoas. 

Os alunos finalizaram o relato descrevendo a dificuldade de acompanhamento


do caso devido especificidades culturais da família. “Era esperado que eles não
iam fazer o que a gente falasse, já que nosso conhecimento é baseado numa
cultura alopática”. A impressão dos docentes, no grande grupo, é de que os es-
tudantes reconheceram as especificidades do caso, mas sentiam-se ainda impo-
tentes para trabalhar com grupos minoritários, tendo dificuldade de aplicar, na
prática, os conhecimentos e reflexões realizadas durante o curso de medicina.

O desenvolvimento dificultado do PTS para o caso dos Malucos de


Estrada foi influenciado pela complexidade do exercício da c­ ompetência
cultural na prática em saúde, considerando o ciclo de vida do casal e a
­necessidade de (co)construção de condutas e de papéis. A competência
cultural é um atributo derivado da Atenção Primária à Saúde descrito por
Starfield (2002), em que se presume o reconhecimento de necessidades
­diferenciadas em virtude de características étnicas, raciais ou outras carac-
terísticas especiais de uma determinada população. 
Segundo Gouveia, Silva & Pessoa (2019), a cultura pode ser enten-
dida como um iceberg. Se encarada de uma forma mais superficial, pode

Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 295


ser associada ao comportamento humano, ou seja, a forma de agir, pensar,
comer, vestir etc. Seria o que enxergamos externamente. Em um segundo
nível, pode-se pensar na cultura como as motivações da escolha de deter-
minado comportamento humano, aquilo que está relacionado a normas e
valores e que podem ser acessadas conscientemente pelas pessoas. Em uma
análise mais profunda, pode-se compreender a cultura como as motivações
ocultas da escolha dessas normas e valores. Para o bom desempenho da
competência cultural, é esperado que o profissional de saúde, na entrevista
clínica, acesse esse nível oculto, o qual está relacionado

[...] ao que as pessoas entendem sobre a natureza humana, relacionamen-


tos humanos, educação de filhos, conceito de tempo e espaço, o que é bom
ou ruim, certo ou errado, aceitável ou inaceitável. Crenças acerca do que é
a natureza e a causa das doenças ou do bem-estar (Gouveia, Silva & Pessoa,
2019, p. 85). 

Analisando as atitudes da equipe de saúde, por meio dos relatos dos


alunos, observou-se uma hiperimplicação dos profissionais, principalmen-
te pautada no reconhecimento, pela equipe, de uma dificuldade do casal
em cuidar da própria saúde e da saúde do filho. A equipe presumia a inap-
tidão de Mariele e Alísio para o momento do ciclo de vida em que estavam
por não reconhecerem as diferenças culturais, entretanto não houve ações
para o empoderamento dos sujeitos e a promoção da autonomia. Após o
parto por metas institucionais do serviço de saúde, a equipe assumiu a tu-
tela sobre as consultas e visitas. 
O aprendizado da competência cultural não deve ser pontual, nem
realizado apenas em um momento específico do currículo, a partir de disci-
plinas isoladas. Ele deve contemplar diversos cenários e também estar liga-
do à postura institucional (Gouveia, Silva & Pessoa, 2019). Como orientar
que os alunos devem atender sem preconceitos, com respeito à diversidade
e especificidades culturais se no dia a dia os preceptores atendem os casos
baseados em protocolos rígidos e sem singularizar os sujeitos? Essas atitu-
des são reproduzidas por estarem incorporadas na cultura da instituição e
acabam sendo naturalizadas pelos seus componentes e, por isso, não geram
estranhamentos. 
As diferenças socioculturais, muitas vezes consideradas como natu-
rais, são frutos de uma construção socio-histórica, feita por pessoas que
ocupam lugares na sociedade e que possuem olhares específicos, desejos e
poderes.

296 • Capítulo 13
Uma das explicações para a manutenção das diferenças sociais é o
pensamento essencialista, que racionaliza essas diferenças e facilita a ex-
pressão de juízos negativos sobre os grupos, reforçando o racismo, a discri-
minação social e o preconceito (Pereira et al., 2011).

O essencialismo procura compreender como as pessoas habitualmente ela-


boram as suas percepções sobre si mesmas, sobre os membros do próprio
grupo e dos outros grupos sociais. [ . . . ] Para o pensamento essencialista, a
crença, expressa por quem categoriza, de que os membros de um mesmo
grupo compartilham uma estrutura profunda que permite a sua diferen-
ciação dos membros de outros grupos é um fator decisivo na adoção do ra-
ciocínio categórico durante as relações sociais (Gelman & Wellman, 1991;
Medin, Goldstone & Gentner, 1993; Yzerbyt, Rocher, & Schadron, 1997
apud Pereira et al., 2011, p. 146).

A categorização no essencialismo pode acontecer tanto pela homoge-


neidade percebida em um grupo como pelas teorias implícitas. Isso faz que
as pessoas, após categorizar pela aparência ou pelas conjeturas disponíveis,
pensem que as coisas que existem são definitivas (Pereira et al., 2011).
Portanto, a noção de essência gera uma estereotipagem, um rótulo. A
homogeneização ocorre para categorizar e aprisionar ou apagar as diferen-
ças. Se alguém não cabe no rótulo, passa a ser vigiado e punido (Pereira et
al., 2011).
O caso dos Malucos vem carregado de estereótipos: um casal com
estilo hippie, sem residência fixa, liberal no uso das drogas, não adeptos a
nenhuma medicação convencional (alopática) e que não teria capacidade
de cuidar adequadamente do filho que iria nascer em breve. Esse foi o ró-
tulo inicial atribuído aos personagens reais do caso. 
Como pensar em práticas que desconstroem as essências? Como des-
naturalizar a cultura do instituído? 
O principal recurso para esta desnaturalização seria o exercício da
­crítica continuada. Os estudantes perceberam que houve um ­estranhamento
deles com o estilo de vida do casal e refletiram que em muitos aspectos
seria difícil lidar com esse “estrangeiro”. Também vivenciaram a realidade
de como alguns profissionais de saúde da unidade estavam “autorizados”
a prescrever a moral hegemônica, ou seja, ditavam o que o outro deve ou
não fazer, prescrevendo a vida de outras pessoas de acordo com valores e
­saberes dos próprios profissionais. Nos GBP foi possível fazer a reflexão
sobre como não perpetuar essa moral, fazendo o movimento de criticá-la

Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 297


e reconhecendo o sujeito em seu contexto para construir novas relações de
poder.
Ao descreverem o incômodo sob a forma de como o pré-natal esta-
va sendo conduzido pela Equipe de Saúde da Família (denominado como
“pré-natal fiscalizatório”), os estudantes identificaram que em diversos mo-
mentos do curso de medicina eles mesmos reproduziram de forma natu-
ralizada esse cuidado verticalizado, pontual e policialesco. Contaram que
era muito comum, nos ambulatórios de especialidades dentro do hospital
universitário, os professores “falarem para as pessoas o que elas tem que fa-
zer”. Dessa forma, a lógica era a tentativa de manutenção da saúde de forma
vertical, onde predominava o conceito de que o profissional de saúde era
responsável por “dar a saúde” para os usuários. A imposição do conheci-
mento, de desejos e saberes sobre o outro impede a compreensão do sujeito
como ser singular. 
A discussão do caso dos Malucos evidenciou para os estudantes, na
prática, que a escuta ativa é capaz de captar as singularidades, a variabili-
dade e a imprevisibilidade do humano. Além disso, notou-se que a partici-
pação do sujeito nas decisões, desde a definição do diagnóstico até os pro-
cedimentos terapêuticos ou preventivos, bem como compartilhar decisões
entre a própria equipe, os serviços de saúde ou outros espaços intersetoriais
pode ser muito mais potente do que a abordagem individual e unilateral.
Por último, o caso ajudou na reflexão de que a promoção da autono-
mia se dá por meio do aumento da capacidade do sujeito de cuidar de si
mesmo e de conviver socialmente. Todos esses fatores são essenciais para
o exercício da Clínica Ampliada e Compartilhada (Campos, Cunha & Fi-
gueiredo, 2013).
Outro ponto observado no relato foi a constante angústia dos alunos
quanto ao fato da dimensão médica do caso. Ao considerarem a técnica de
pré-natal rígida e inflexível ao cuidado da paciente incomum, os estudan-
tes fecharam suas expectativas para a oportunidade observacional sobre
a construção do concepto como personagem e integrante de uma família
com cultura e comportamento atípicos. A observação desse processo na
população majoritária (culturalmente típica) muitas vezes é velada pela si-
milaridade cultural entre observador e observado.
Em um contexto amplo, a questão sobre a integração entre as parti­
cularidades culturais destas minorias atípicas e os cuidados de saúde proto-
colados e institucionalizados é encarada no Brasil à luz das interpretações
de equidade no sistema de saúde. Dessa maneira, parte do processo é ab-
sorvida pelos conceitos antropológicos da saúde pública (Campos, 2006).

298 • Capítulo 13
Entretanto, no contexto prático, os processos e as interações culturais
são similares aos dilemas da saúde de populações migrantes e refugiados,
que hoje são profundamente discutidos na saúde coletiva em vários países
(Scheppers et al., 2006).
No Brasil, a situação haitiana, os imigrantes bolivianos em São Paulo,
a questão Venezuela em Roraima e os refugiados sírios são algumas das
expressões de grupos culturais atípicos e de recente contato que, como na
história dos Malucos, modificam o status quo da prática em saúde e da
capacidade dos profissionais em interagir e amalgamar a conhecimentos e
práticas. 

Considerações finais

Thomé e Malucos de Estrada são histórias que trazem em comum a


dificuldade de adesão do paciente ao serviço que, por sua vez, antecipa o
sujeito ao rotulá-lo, enrijecendo suas rotinas protocolares diante de pessoas
que exigem criatividade, invenção e compreensão de suas singularidades.
Independente da natureza do caso levado pelos estudantes para a discus-
são, um dos papéis dos Grupos Balint-Paideia é a valorização das diferen-
tes visões (incluindo a dos estudantes, equipe de saúde, usuários, família/
cuidadores e instituição), sem renunciarmos ao nosso conhecimento e do
nosso ponto de vista. Quando não lidamos com as diferentes formas de
se ver o mundo, não se torna possível alcançar o pacto entre os persona-
gens, que estimamos simplesmente na forma da “adesão”. Formar vínculos
e conseguir negociações viáveis é um processo de dar crédito e só acontece
com aproximação, aquela que permita ao sujeito se sentir contemplado nos
interesses institucionais.
Usuários necessitam de espaços de discussão e de construção dentro
dos serviços, para validar e valorizar suas demandas e ideias. Da mesma
forma, os estudantes necessitam de cogerir seus processos em assistência e
formação, desfrutando de coletivos de apoio que escutem, compreendam
e lhes ajudem a pensar suas ações. Esta potência do encontro formador
crítico parece abalar estruturas rígidas de saberes limitantes e permite aos
estudantes identificarem outras ferramentas com as quais podem exercer
uma clínica crescentemente ampliada.
Os Grupos Balint-Paideia, na formação, trabalham a partir de deman-
das trazidas pelos estudantes, mas também com ofertas teóricas, organiza-
das pelos supervisores (de forma sistematizada e entremeada às discussões

Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 299


dos casos), ferramenta que contribui para reflexão e ampliação da clínica.
Os temas debatidos por meio de metodologias ativas de ensino-aprendiza-
gem estão diretamente relacionados com a clínica que se exerce na Aten-
ção Primária. Nesse momento do GBP busca-se correlacionar os desafios
encontrados no campo prático com o que é estudado. A teoria às vezes
parece distante da realidade, porém, torna-se inspiração para as mudanças
nas práticas, as quais devem ser mais críticas e se configurarem como posi-
cionamentos políticos.
A construção deste espaço/oportunidade do GBP, diante de casos re-
ais vivenciados pelos alunos em momento de assistência em seus estágios,
junto com equipes reais da Estratégia de Saúde de Família e suas ausências
e emergências, fragilidades e potencialidades, estimulam os esforços para
transformarem suas visões de mundo, ampliando a compreensão sobre a
multiplicidade de contextos, famílias, personagens e papéis. 
A partir disso, um momento agregador e potencializador do cuidado
amplia, sem sombra de dúvida, as ações previamente previstas pela equipe,
que não estavam gerando o resultado esperado (adesão ao tratamento me-
dicamentoso para o diabetes, no caso do Sr. Thomé, e adesão ao pré-natal,
no caso da Mariele).
Isso permitiu que os estudantes conseguissem extrapolar as ações
usualmente realizadas, que tendiam a medicalizar os usuários, usufruindo
de saberes novos construídos a partir de uma Clínica Ampliada e Compar-
tilhada, como a metáfora da construção, no caso de Thomé, e como a vida
pode ser natural e livre, no caso dos Malucos de Estrada. 
As discussões dos casos nos GBP valorizaram o retorno do caso para
a equipe, estimulando a discussão do PTS com outros profissionais da UBS.
É esperado que cada profissional de saúde da equipe multiprofissional dis-
cuta o caso considerando principalmente o seu núcleo de competências
e responsabilidades (o saber específico de cada profissão, contrapondo-se
ao campo de competências e responsabilidades, que seriam os saberes co-
muns, que se entrelaçam nas diferentes profissões ou especialidades) (Cam-
pos, 1997). Isso enriquece a compreensão do caso e deve ser considerado
para a elaboração do PTS. 
Notou-se uma fragilidade importante nesse quesito já que a constru-
ção dos PTS foi grandemente centrada na visão do(a) médico(a) e dos(as)
estudantes de medicina e que as discussões com outros profissionais ocor-
reram de forma pontual. Além disso, percebe-se que os estudantes tive-
ram de lidar com visões já estigmatizadas, pelos profissionais de referência,
das famílias que passariam a ser acompanhadas por eles. Os internos, em

300 • Capítulo 13
diversos momentos, tentam romper com essa lógica. Tentaram se manter
abertos a novos saberes e em como lidar com o novo e inesperado para eles. 
Entretanto, em diversos momentos apareceram falas que demons-
travam como que, inconscientemente, os estudantes incorporaram alguns
discursos semelhantes ao da equipe em relação aos seus sentimentos pelos
usuários, conseguindo identificá-los durante as reflexões nos GBP. Um mo-
mento que isso ficou bem claro foi quando um estudante, que fazia o es-
tágio na unidade de referência do Thomé (mas que não estava responsável
por esse PTS) relata sobre o caso incorporando na fala todos os estigmas
que a equipe havia dado para ao paciente índice (“difícil”, “tigrão”, “impos-
sível de fazer que ele siga qualquer orientação”). Como as equipes não con-
seguiam se organizar para ter espaços de roda, percebe-se que as reflexões
sobre prática ocorreram principalmente nos GBP ou nas intervenções dos
docentes durante supervisão in loco nas UBS. 
Os GBP têm como estratégia central a discussão de caso, exatamente
para instigar a reflexão sobre a prática. Isso permite ir além da metodologia
clássica de discussão teórica, pois permite a valorização da potência dos
sujeitos e a possibilidade de fazer clínica centrada na pessoa, encarando-a
como ser social e como agente transformador da realidade (no caso, de si
mesmos e das instituições onde estão inseridos). A inserção da proposta
de Balint permitiu falas mais livres e atenção aos aspectos subjetivos das
relações institucionais e humanas que se desenhavam com o grupo. Dessa
forma os alunos se viam inteiros e complexos assim como aquelas famílias
para as quais dirigiam a atenção. 
Diante da apresentação destas experiências ressaltamos a importân-
cia dos Grupos Balint-Paideia como estratégia pedagógica na formação de
futuros médicos. Em razão de suas características realísticas e reflexivas, o
método influi em aprendizado prático, crítico e autocrítico, sobretudo re-
lacionado a habilidades ampliadas dos campos e práticas em saúde. Desse
modo, o incremento da formação, com amplitude e potencialidade, agrega
percepções interdisciplinares, humanistas, sociais e integrais à prática dos
estudantes, no sentido das expectativas para as novas gerações de profissio-
nais da saúde.

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302 • Capítulo 13
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Formação de estudantes para uma Clínica Ampliada... • 303


Capítulo 14
Grupo de autocuidado apoiado: estratégia
de qualificação do cuidado aos usuários com
hipertensão e diabetes na APS

Vanessa Cristina dos Santos Pinto


Gustavo Tenório Cunha
Mônica Martins de Oliveira Viana

N este capítulo, buscamos relatar uma experiência grupal para pacientes


hipertensos e diabéticos formulada em uma Unidade Básica de Saúde
(UBS) localizada em uma região de grande vulnerabilidade social. O grupo
tem uma dinâmica muito distinta da maior parte das propostas dos grupos
tradicionais, principalmente quanto às estratégias e técnicas utilizadas e os
critérios de acesso dos participantes. A proposta se desenvolveu durante a
participação de um dos membros da equipe no curso de especialização em
Saúde da Família, com método Balint-Paideia.
Partimos do entendimento de que um dos desafios dos sistemas de
saúde, especificamente do Sistema Único de Saúde (SUS), é a tripla car-

304 • Capítulo 14
ga de doença que consiste em: 1) uma agenda não concluída de casos de
­infecções, desnutrição e problemas de saúde reprodutiva; 2) o desafio das
doenças crônicas e de seus fatores de risco — tabagismo, obesidade, estres-
se, alimentação inadequada; e 3) o forte crescimento da violência e das cau-
sas externas. Agrava a situação a predominância de um modelo de atenção
à saúde ainda fragmentado, episódico, reativo e voltado prioritariamente
para condições e eventos agudos (Mendes, 2012). Os Determinantes Sociais
de Saúde, a desigualdade social e econômica afeta diretamente esse proces-
so de transformação e são um grande desafio para o sistema de ­saúde.
Dentro deste desafio para o Sistema de saúde, há que se considerar
também que as transformações socioeconômicas, culturais e políticas mo-
dificaram as formas como a população conduz sua vida, refletindo direta-
mente na alteração dos padrões de adoecimento com nítido aumento das
condições crônicas de saúde (Cunha & Souza, 2017). Esse cenário traz à
tona a necessidade de os serviços de saúde se organizarem para o cuidado
das pessoas portadoras de condições crônicas não transmissíveis (CCNT),
tais como hipertensão e diabetes. 
Silveira & Ribeiro (2005) destacam que o tratamento do paciente por-
tador de doença crônica diferencia-se, e muito, daquele às condições agu-
das, pois precisa prever estratégias que propiciem a adaptação da pessoa
a uma nova condição permanente, de maneira que ela possa desenvolver
estratégias próprias de manejar a vida, prevenindo complicações e agravos.
Para as condições crônicas, segundo as autoras, trata-se de diferenciar entre
adesão ao tratamento (manejo da vida) e ao medicamento. 
A adesão ao tratamento requer apoio aos pacientes para aprende-
rem a conviver com a doença, o que por sua vez, só é possível baseado
na ­produção de vínculos afetivos e efetivos entre usuário e profissional da
saúde e na construção de espaços dialógicos para a discussão (Silveira &
Ribeiro, 2005).
A literatura científica tem demonstrado que os países com serviços de
saúde que estruturam seus modelos de atenção com base em uma Atenção
Primária à Saúde forte e resolutiva têm maiores chances de efetuar o cui-
dado integral aos pacientes portadores CCNT e com resultados sanitários
melhores (Starfield, 2002). No entanto, para isso há necessidade de apri-
morar o modelo de atenção. É importante ampliar o cardápio de ofertas,
trabalhar com clínica ampliada, não se restringir ao combate ou controle da
doença, mas também aplicar-se em promover saúde e fortalecer os sujeitos
individuais e coletivos, respeitando as singularidades (Campos, 2013).
Na Atenção Primária brasileira, os grupos têm configurado uma ofer-
ta recorrente de cuidado para os portadores de CCNT. Assim, o presente

Grupo de autocuidado apoiado... • 305


trabalho apresenta uma experiência baseada na efetivação de mudanças em
relação aos grupos tradicionais voltados para hipertensos e diabéticos, com
uma proposta pautada em um referencial teórico e metodológico que busca
incluir os pacientes como sujeitos ativos do seu processo de cuidar. 

As práticas grupais tradicionais

Dentre os tipos de grupos utilizados na Atenção Primária, More &


Ribeiro (2010) destacam os grupos de educação em saúde, os grupos psi-
coterapêuticos e os grupos de informação e adesão ao tratamento, sendo
nessa última modalidade que situamos os grupos de hipertensos, diabéti-
cos, gestantes e portadores de distúrbios alimentares.
Esses grupos de informação e adesão ao tratamento, de acordo com
More & Ribeiro (2010), caracterizam-se por poderem ser coordenados
por profissionais da saúde de qualquer especialidade ou por algum de seus
membros-grupos e por seu conteúdo de ajuda mútua entre os participantes
visando ao protagonismo deles no cuidado à saúde. Empregando a nomen-
clatura utilizada por Zimerman & Osório (1997), esses grupos costumam
ser do tipo aberto e homogêneo. Ou seja, são compostos por participantes
que apresentam algum traço (idade, sexo) ou condição de saúde (patolo-
gia) em comum; sem um tempo de duração ou número de encontros fixo e
que permite a entrada de novos participantes em qualquer momento.
Apesar das recomendações de Chacra (2005) a respeito de condições
e requisitos desejáveis para uma grupalidade afetiva e efetiva, os grupos
de hipertensos e diabéticos na Atenção Primária, com grande frequência,
baseiam-se em estratégias pedagógicas unilaterais e informativas, dentro
de uma perspectiva que Paulo Freire (2014) caracteriza como treinamento
pragmático pautado por um elitismo autoritário. 
Muitas vezes, segundo Silveira & Ribeiro (2005) estas escolhas das
equipes são justificadas pela sua formação biologizante, pela familiarida-
de com este modelo grupal, pelo tamanho da população adscrita e pela
demanda excessiva. Não raro, o serviço de saúde condiciona o acesso às
consultas médicas à participação nestes grupos, como se o grupo fosse um
tipo de “pedágio” para as consultas individuais. 
Tendo em vista as afirmações de Zanella & Pereira (2001) de que a
constituição grupal depende da passagem de agrupamento para grupos a
partir de construções coletivas, desencadeadas a partir do reconhecimento

306 • Capítulo 14
e do envolvimento mútuo de seus integrantes, pode-se dizer que, em geral,
essas iniciativas das equipes nem sempre conseguem efetuar essa passa-
gem, pois a grupalidade produzida é muito limitada. 
Misturam-se exposições dos profissionais no formato de aulas com
procedimentos seriados, realizados de forma pública (coleta e avaliação de
exames, partes de exame físico etc). A organização deste tipo de grupo,
muitas vezes, está centrada na busca e atualização de parâmetros bioló-
gicos, assim como no monitoramento de certa quantidade de consultas e
exames anuais, supostamente necessários para cada “grupo de risco”. Bus-
cam informar exaustivamente o ponto de vista biomédico a respeito das
doenças e reforçar cronicamente as recomendações quanto aos hábitos e
parâmetros a serem buscados e evitados pelos usuários. 
Muito provavelmente, aqueles que têm mais disposição e disponibili-
dade para participação regular neste tipo de atividade grupal, conseguem
se tornar mais visíveis no serviço de saúde e, por vezes, passam a se ­motivar
ao autocuidado a partir desse tipo de oferta grupal. Também podem se be-
neficiar aqueles cuja relação com o adoecimento não é perturbada pela fo-
calização nos parâmetros biológicos e que não necessitam de apoio profis-
sional para compreender e lidar com o conjunto de variáveis que ­costumam
interferir no resultado final do enfrentamento de um problema de saúde. 
No entanto, a maior parte das doenças crônicas requer um vínculo
terapêutico positivo com a equipe de saúde, possibilidades de compreensão
da complexidade do adoecimento e construção compartilhada de proje-
tos terapêuticos singulares adequados a cada pessoa, momento e situação
(Silveira & Ribeiro, 2005). Trata-se, para as condições crônicas, de retirar
o usuário da condição de passividade e estimular sua assunção ao papel de
Sujeito protagonista da própria história e cuidado de si (Freire, 2014).
Além disto, os projetos terapêuticos também ganham eficácia quando
são negociados com os pacientes, articulados na rede de saúde e com os
seus trabalhadores. Por outro lado, costumam ser menos eficazes as estra-
tégias que pouco consideram os pacientes como coprodutores de sua saú-
de, valorizam excessivamente fatores biológicos e determinantes orgânicos
desconsiderando a subjetividade como um fator particular que influencia a
coprodução da saúde (Campos, 2006).

Grupo de autocuidado apoiado... • 307


Grupo de Autocuidado Apoiado (GAA): construções teóricas,
planejamento em equipe e proposta de funcionamento

A Unidade onde foram realizados os grupos pertence a um municí-


pio de grande porte do interior paulista e atende uma população de cerca
18mil pessoas. Essa Unidade de Saúde adota um modelo misto de Saúde
da Família e conta com três Equipes de Saúde da Família compostas por
um enfermeiro, um pediatra, três técnicos de enfermagem e quatro agentes
comunitários de saúde. Porém, existe apenas um médico generalista para
toda Unidade. 
Localiza-se em uma região de alta vulnerabilidade e distante do cen-
tro da cidade, o que dificulta a fixação de profissionais, especialmente mé-
dicos. Em 2018, teve 321 nascidos vivos (Secretaria Municipal de Saúde
Campinas, 2020) e por isso o pré-natal, a puericultura e o atendimento de
crianças estavam tomando a maior parte da agenda, o que terminava pre-
judicando o atendimento de adultos. 
A Unidade passou por recorrentes trocas na gestão local, com di-
ferentes repercussões no processo de trabalho e que produziu impactos
negativos para as equipes. Em alguns momentos, o Colegiado Gestor —
Dispositivo de humanização, espaço coletivo e democrático com função
deliberativa, para ampliar o grau de comunicação entre equipe, gestores e
usuários e assim aumentar a qualidade dos serviços de saúde — chegou a
ser suprimido da Unidade, fazendo que a equipe se sentisse deslegitimada
no seu trabalho.
Após sucessivos desgastes, na última mudança de gestão, foi pactuado
com o Distrito de Saúde que novas gestões fariam mudanças somente me-
diante conversa prévia com o Colegiado. A partir dessa conquista, o pro-
cesso de trabalho da equipe do Centro de Saúde começou a se consolidar.
Os resultados do trabalho começaram a ficar evidentes e pouco a pouco
se instalou o reconhecimento de que era fruto do trabalho da equipe em
conjunto com o gestor. A equipe passou a ver-se como parte desse processo
e se responsabilizou pelo alcance dos objetivos da Unidade: qualificar o
cuidado prestado, mesmo com recursos profissionais insuficientes.
Este processo de reestruturação do trabalho em equipe está em con-
sonância com o entendimento de Mendes (2012) de que uma verdadeira
equipe depende de “uma clara compreensão de que, ainda que as funções
sejam diferenciadas, não se chega aos resultados desejados para os pacien-
tes se todos não participarem de forma integrada e cooperativa”.

308 • Capítulo 14
Analisando o plano gerencial que se estabeleceu, pudemos observar
que o trabalho em equipe mostra-se bem-sucedido quando há: (1) clareza
para a equipe de que o resultado do trabalho em cooperação é melhor do
que o trabalho individualizado e fragmentado; (2) percepção de que exis-
tem mecanismos (às vezes sutis) que promovem a competição entre traba-
lhadores e conduzem à menor eficácia e maior desgaste; (3) reconhecimen-
to que todos os diferentes trabalhadores e suas habilidades são necessários
e importantes (de diferentes modos e pesos a cada momento e em cada
situação singular); (4) compreensão que políticas, programas e protocolos
a respeito de determinados problemas de saúde são importantes e necessá-
rios, porém não suficientes para garantir um cuidado adequado.
Foi neste contexto de retomada do trabalho em equipe que se iniciou
o processo de planejamento da reestruturação dos grupos de hipertensos
e diabéticos. 
Para a elaboração da proposta, a equipe levou em consideração as
recomendações contidas no Caderno de Atenção Básica “Caderno 35: es-
tratégias para o cuidado da pessoa com doença crônica” (Brasil, 2014) e
realizou oficinas com os trabalhadores envolvidos, na lógica da Educação
Permanente em Serviço (Brasil, 2004), tendo como pressuposto a aprendi-
zagem no trabalho, o aprender e o ensinar incorporados ao cotidiano das
organizações e do processo de trabalho.
O desafio consistia em construir uma proposta de grupo pensando
no paciente como um ser único, com uma singularidade que o diferen-
cia do diagnóstico (“hipertenso”, “diabético”). Assim, surge a proposta do
Grupo de Autocuidado Apoiado, buscando apostar nos “pacientes” como
sujeitos e protagonistas de seu cuidado para que construíssem ações que
fizessem sentido em sua vida. Em outras palavras, dentro da concepção da
pedagogia da autonomia, estruturar um grupo centrado em experiências
­estimuladoras da decisão, da responsabilidade e da liberdade respeitosa
(Freire, 2014).
Além da pedagogia da autonomia, outra contribuição teórica foram
os Grupos Operativos, que, segundo Pichon-Rivière (1998), podem ser de-
finidos como um conjunto de pessoas reunidas por constantes de tempo
e espaço, articuladas por sua mútua representação interna, que se propõe,
implícita ou explicitamente, uma tarefa que constitui sua finalidade (Pi-
chon-Rivière, 1998). Nesse tipo de grupo, ocorre atividade centrada na
­mobilização de estruturas estereotipadas, nas dificuldades de aprendiza-
gem e de comunicação, trabalhando no coletivo a ansiedade despertada
pelas mudanças necessárias. 

Grupo de autocuidado apoiado... • 309


Derivando destes conceitos pichonianos, incluiu-se o entendimento
de que a tarefa do grupo não consistia em cura, reabilitação ou produção
lucrativa, mas em estabelecer relações críticas e dialéticas sobre sua expe-
riência de adoecimento, cuidado de si e convívio com a condição crônica.
Grupo, portanto, como dispositivo de cuidado a partir da possibilidade de
diferir; capaz de promover mudanças e desdobrar-se em novas práticas e
novos sujeitos (Benevides-Barros, 2014).
Considerando a coconstrução de autonomia e buscando evitar a
fragmentação do cuidado dos pacientes, ficou decidido utilizar também
técnicas de Entrevista Motivacional, uma abordagem criada para auxiliar
o sujeito a reconhecer seus problemas atuais e potenciais propondo inter-
venções terapêuticas. A Entrevista Motivacional traz um estilo de aconse-
lhamento que pretende estimular a mudança de comportamento na qual o
princípio central é a negociação e não o conflito (Miller & Rollnick, 2001).
A partir do estudo dessa contribuição, foram feitas adaptações para a sua
aplicabilidade no GAA. 
Aplicando estes pressupostos, a equipe percebeu que seria necessá-
rio aprender a resistir ao reflexo de fazer as coisas pelo paciente; buscar
e explorar as motivações das pessoas; escutar com empatia e a fortalecer
a pessoa, estimulando a esperança e o otimismo. Quando os pacientes se
dispõem a mudar, o grupo o apoia e contribui para dar rumos à mudança.
Trata-se de realizar com o grupo o Apoio Paideia, acolhendo as dificulda-
des ao mesmo tempo em que impulsiona para a mudança (Campos, Cunha
& Figueiredo, 2013).
A escolha de profissionais para participar do grupo foi construída em
reuniões, como desdobramento do processo de Educação Permanente. A
princípio elegeram uma enfermeira, mas pensando em ampliar o número
de vagas ofertadas e atender a demanda identificada, foram inseridas duas
técnicas e, dada a necessidade de avaliação médica para casos de média e alta
complexidade, optou-se pela inserção do médico. Os profissionais envolvi-
dos representam as equipes de referência da Unidade e estão diretamente
envolvidos em setores de atendimento a pacientes hipertensos e diabéticos.
O conceito de tecnologias leve, leve-dura e dura, inspirou a estrutu-
ração do trabalho a ser desenvolvido com o grupo (Merhy, 2013). As tec-
nologias leves seriam as relacionais, o acolhimento e a escuta sensível, que
valoriza e estimula a fala dos sujeitos, as dinâmicas de aquecimento dos
grupos com vídeos educativos e a visita guiada à Farmácia Viva (desenvol-
vido em parceria da Universidade de Campinas com a Secretaria de Saúde
de Campinas, com criação de hortas de cultivo de plantas medicinais den-
tro dos Centros de Saúde). Já as tecnologias leve-duras, seriam os saberes

310 • Capítulo 14
estruturados compartilhados entre a equipe multiprofissional que opera
no processo de trabalho em saúde; seriam os protocolos de Hipertensos e
Diabéticos traduzidos para as práticas de saúde pelo olhar de cada uma das
equipes. Como tecnologias duras, teríamos os materiais e equipamentos
utilizados para a realização do grupo e as estruturas organizacionais, tais
como balança para verificação de peso e altura para cálculo de Índice de
Massa Corpórea, fita métrica para verificação de circunferência abdomi-
nal, caixa com fichas organizadas por equipe para cadastrar os pacientes,
esfigmomanômetro para aferição de pressão arterial e glicosímetro para
verificação de glicemia capilar, utilizadas ao término do Grupo.
Assim, a partir de outubro de 2018 os pacientes classificados como
hipertensos ou diabéticos, provenientes de vários segmentos do serviço de
saúde (pacientes que buscavam agendamento tanto na rotina quanto na
urgência; pacientes que buscavam aferição da pressão arterial e glicemia;
pacientes provenientes de consultas médicas e de enfermagem; pacientes
oriundos de outros grupos educativos), passaram a ser convidados para
participar do Grupo de Autocuidado Apoiado (GAA). Aqui se destaca uma
importante diferença em relação aos grupos de HiperDia mais frequentes.
O encaminhamento ocorria predominantemente associado ao momento
em que havia uma procura do serviço de saúde (muitas vezes com uma
queixa). Existe, dessa forma, uma motivação muito maior de estar no gru-
po para esse usuário do que para aquele que é cronicamente convidado ou
convocado a participar, como parte do tratamento já instituído, e muitas
vezes insatisfatório. 

A dinâmica do Grupo de Autocuidado Apoiado

Ao chegar no GAA, todos os pacientes são cadastrados por área de


abrangência e adscritos a uma equipe de referência do serviço de saúde para
o atendimento individual quando necessário e demais acompa­nhamentos. 
Quanto à dinâmica do grupo, o início é marcado com um convite
aos participantes para uma apresentação individual. Além das questões
­pessoais que cada um deseje falar, nesse momento pergunta-se também
sobre a equipe de referência a qual o usuário pertence, qual problema de
saúde possui, como ele enxerga este processo de adoecimento em sua vida,
se há limitações em seu cotidiano e busca-se abordar a experiência dos
pacientes perante suas condições de saúde. O intuito é de identificar os
­aspectos emocionais, as crenças e as ações individuais e a percepção do
paciente em relação ao seu processo saúde-doença. 

Grupo de autocuidado apoiado... • 311


No decorrer das falas, os trabalhadores utilizam um sistema de ava-
liação de pertinência, perguntando sobre os temas levantados, tais como:
dificuldade na alimentação, dificuldade de acesso, culpabilização do ou-
tro quanto ao seu problema de saúde, dificuldades no manejo da medica-
ção, problemas relacionados à saúde mental e financeira, dificuldades com
familiares, dúvidas no diagnóstico e demais dificuldades no manejo que
se apresentem naquele momento. Identificam-se os temas que têm mais
significado para aquele grupo naquele momento. Os coordenadores do
grupo sugerem algumas dessas dificuldades para serem discutidas e ini-
cia-se a construção de um projeto de intervenção para alterar a situação
­coletivamente.
Assim, os critérios para escolha de temas que são abordados e discu-
tidos em cada reunião são definidos a cada encontro, sendo selecionados
com o grupo aqueles que tenham maior relevância no momento. Para in-
centivar as falas dos pacientes na apresentação, os coordenadores procu-
ram envolver-se na orientação grupal mais que dirigi-la, acompanhar mais
do que confrontar. Aposta em fundamentar-se no caráter colaborativo,
evocativo e de respeito pela autonomia da pessoa, entendendo assim que
um melhor enfrentamento do adoecimento é uma decisão pessoal, mas que
pode ser apoiada por uma equipe de saúde bem preparada.
A coordenação do grupo é revezada entre os profissionais que o com-
põe. Na dinâmica de funcionamento do grupo, a função do coordenador
é introduzir a discussão e mantê-la acesa. Ele enfatiza para o grupo que
não há respostas erradas ou certas; observa os participantes, encorajando
a palavra de cada um. Desenvolve a atenção para aproveitar as “deixas” de
continuidade da própria discussão nas falas de cada um. Também busca
construir relações dos usuários e temas com os outros trabalhadores da
Unidade, para que depois o usuário possa aprofundar, individualmente,
respostas e temas considerados relevantes. O coordenador também procu-
ra observar as comunicações não verbais e o ritmo próprio dos participan-
tes, sempre manejando o tempo previsto.
O grupo acontece semanalmente, com duração de duas horas, divi-
didas em: uma hora de discussão, seguidos de uma hora de atendimento
coletivo, no qual é construído um projeto terapêutico em conjunto com o
usuário e sistematizado o atendimento em dois encontros:
:: Primeiro encontro: Realizamos o cadastro do paciente no grupo,
por meio de fichas separadas por equipe de referência para melhor controle
da equipe de referência e agentes de saúde; orientamos a importância do
acompanhamento com oftalmologista e o encaminhamento para avaliação
de fundo de olho; solicitamos exames de rotina se necessário, avaliamos e

312 • Capítulo 14
renovamos as receitas, apoiamos a compreensão da indicação de cada me-
dicação e a efetividade da tomada da medicação, pedimos um retorno da
discussão e pactuamos metas a serem alcançadas para o próximo encontro;
:: Segundo encontro: Avaliamos os exames coletados, checamos se o
usuário passou em consulta com oftalmologista; avaliamos o cumprimento
da meta proposta; reformulamos novas metas a serem alcançadas e avalia-
mos a necessidade de passar em consultas individuais. Quando identifica-
mos falha no processo, os casos são encaminhados para gestão de caso da
equipe, que como conduta poderá optar por atendimentos com técnico de
enfermagem, enfermeiro, médico ou psicólogo e realização de visita domi-
ciliar para avaliação da dinâmica familiar e social.
Os encontros subsequentes são livres para que os pacientes venham
quando sentirem necessidade de suporte na manutenção de seu cuidado.
O grupo trabalha com 15 pacientes agendados para primeiro atendimento
e retorno.
No retorno ao grupo, ajudamos na identificação dos benefícios e va-
lorização do que está funcionando, auxiliamos no reconhecimento das si-
tuações de risco e na construção conjunta de estratégias de enfrentamento
das “dificuldades”. Quando elas são identificadas por outros setores da UBS,
somos acionados e se realiza busca ativa dos pacientes com dificuldades.
Avaliamos em conjunto a melhor forma para prevenir e/ou lidar com fu-
turas situações.
Em “alguns casos”, a equipe compreende que necessita do envolvi-
mento da equipe de referência ampliada e eles são encaminhados para dis-
cussão em reunião de equipe para que seja realizada a gestão do caso. Nesse
momento ocorre um processo cooperativo entre os profissionais que estão
na gestão do caso, o paciente e sua família. Os objetivos são propiciar aten-
ção de qualidade, humanizada, diminuir a fragmentação da atenção à saú-
de, aumentar a capacidade funcional e preservar a autonomia individual e
familiar. O GAA busca construir uma atuação integrada com a UBS. 

Resultados da experiência

O grupo iniciou as suas atividades em outubro de 2018 e ao longo de


1 ano e 4 meses, foram realizados 62 encontros, atendendo 740 pacientes,
com absenteísmo de 30%, tendo sido cadastrados 111 usuários hiperten-
sos, 82 diabéticos e 325 hipertensos e diabéticos.
Após a instituição do GAA, observamos uma diminuição de pacien-
tes hipertensos e diabéticos em setores de demanda espontânea, tais como

Grupo de autocuidado apoiado... • 313


acolhimento (pacientes com classificação de risco azul, verde e amarelo) e
urgência (classificação de risco vermelho). Esses dados são comprovados a
partir do acesso ao livro de registro interno da Unidade: Caderno de Urgên-
cias (registro em livro ata específico de todos os atendimentos realizados na
Unidade de urgência para posterior busca ativa pela equipe de referência)
e Caderno de Acolhimento (livro ata para registro dos pacientes atendidos
em demanda espontânea para posterior levantamento das demandas para
adequar a oferta com a necessidade). 

Gráfico 1. Pacientes hipertensos e diabéticos atendidos na urgência da Unidade


em 2018 antes do início do GAA e em 2019, após início do GAA

Fonte: Caderno de Urgências, 2019.

Gráfico 2. Pacientes atendidos mensalmente no acolhimento da Unidade com


queixa aguda

Fonte: Caderno de Acolhimento de queixa agudas, 2019.

Os motivos da diminuição abrupta em outubro foram: a entrada do


médico no grupo, que permitiu a reavaliação de pacientes descompensados
clinicamente no ato e a mudança no processo de agendamento de equipe
da Unidade, que passou a adotar a prática de acesso avançado por equipe
(formato de organização de agenda que prega a máxima “Faça hoje o tra-
balho de hoje”. Buscar ativamente reduzir a demanda reprimida de atendi-
mentos, reduzir o absenteísmo e ampliar o acesso aos usuários a sua equipe
de referência).

314 • Capítulo 14
A diminuição das urgências pode ser explicada pela própria observa-
ção que se tem dos pacientes, pois eles já se mostram conscientes das razões
para a utilização de tecnologias duras, trazendo para os profissionais sua
pressão aferida e anotada, o mapa de glicemia quando solicitado, os exames
laboratoriais e o eletrocardiograma (ECG), bem como a contrarreferência
do exame de fundo de olho para que seja arquivado em seu prontuário. 
Com o grupo, os pacientes passaram a se envolver mais nas decisões
individuais e grupais, aprenderam a compartilhar suas dúvidas, seus medos
e adquiriram mais conhecimento sobre o processo de adoecimento, o que
levou a reflexões sobre o que cada um pode fazer para evitar as complica-
ções advindas da hipertensão e do diabetes. Também verificamos um nú-
mero maior de participantes que mudaram de hábitos pelo conhecimento
e a experiência vivida no grupo, diferente das mudanças que costumam
ocorrer pelo medo. 
Um aspecto que se destacou na atividade grupal foi entender que uma
chave para o autocuidado é a compreensão do paciente e sua família de
que existe uma correlação entre o seu bem-estar e a manutenção dos níveis
pressóricos e glicêmicos. E que esses parâmetros são sensíveis às ações e
escolhas dos participantes, como a prática regular de atividade física e os
cuidados com a alimentação.
Não apenas os usuários, mas também os trabalhadores envolvidos no
grupo, ao longo da realização das atividades educativas, relataram mudan-
ças em seu autocuidado, buscando hábitos de vida mais saudáveis, redu-
zindo consumo de alimentos processados e procurando vincularem-se aos
demais grupos de educação em saúde da Unidade para apropriação maior
dos temas a serem abordados nos grupos de autocuidado.
Apresentamos a seguir alguns exemplos de casos emblemáticos que
ilustram o cuidado integral proporcionado pelo grupo e os resultados iden-
tificados. 
“Um casal participante do grupo, o homem com 72 anos, diabético,
insulinodependente há 15 anos em uso de hipoglicemiantes e a mulher, 70
anos, hipertensa, obesa e com dislipidemia e diagnóstico recente de hiper-
tensão arterial. Estiveram juntos no GAA desde a primeira vez. Fizeram
anotações e participaram de forma ativa da discussão. No encontro sub-
sequente, após um mês, o homem retornou com um “dossiê de sua saúde”,
intitulado assim, por ele, no qual em folhas encadernadas anotou informa-
ções que julgava importante passar para outros pacientes e também iniciou
um mapeamento da sua glicemia para apresentar para o médico, uma vez
que iniciou com episódios de hipoglicemia decorrentes das mudanças nos
seus hábitos alimentares. A mulher por sua vez, conseguiu emagrecer o

Grupo de autocuidado apoiado... • 315


que havia proposto como meta e ambos, nos seus retornos, sempre se fa-
ziam ativos, participativos e implicados em ajudar pessoas a sentirem-se
sujeitos do seu cuidado”. O caso demonstra a possibilidade de melhor com-
preensão do usuário em seu processo de cuidar e maior pertencimento e
­responsabilização . 
“Um homem de 52 anos, hipertenso, tabagista há 36 anos, há 3 anos
vinha acessando a Unidade na urgência por hipertensão. Sentia esgotados
seus recursos terapêuticos. Com o apoio do GAA e do grupo de tabagismo,
conseguiu parar de fumar e mudar seus hábitos alimentares, controlando
seus níveis pressóricos, reduzindo assim a dose da medicação prescrita”. O
GAA não oferece dietas restritivas, mas apresenta as classes de alimentos, a
quantidade recomendada em cada refeição e as possibilidades de substitui-
ção de alimentos ultraprocessados e processados por alimentos saudáveis.
Costumamos falar: “descascar mais e desembalar menos”.
“Homem de 53 anos, diabético, insulino dependente, com retinopatia
diabética e sua esposa com hipertensão. Com o apoio do GAA, logo ade-
riram a “Farmácia Viva” da Unidade, fazendo uso de plantas medicinais
no seu tratamento. No retorno ao GAA, relataram ao grupo que estavam
satisfeitos, pois estavam deixando de tomar medicação graças às plantas
medicinais e do grupo. Uma usuária parabenizou-os pelo esforço, mas ob-
servou, conforme havia aprendido no GAA, que não era prudente praticar
a desmedicalização por conta própria. Seria mais seguro reforçar seus con-
troles e trazê-los ao grupo para o ajuste que fosse necessário”.
“Mulher de 30 anos, com hipertensão, dislipidemia e obesidade com-
pareceu ao primeiro GAA descontente com o serviço de saúde e culpabili-
zando a falta de acesso ao médico pelo seu estado de saúde. Após participa-
ções no GAA e com suporte dos pacientes que já haviam aderido ao grupo,
a paciente retornou com um discurso de autocuidado efetivo, relatando ter
mudado seu hábitos de vida e que compreendia que a Unidade de saúde
seria mais um recurso do seu cuidado, mas não o único, melhorando assim,
sua impressão quanto a que tipo de acesso ela queria ter, grupos terapêuti-
cos, espaços de educação em saúde, que eram ofertados e a ela desconhecia
sua importância”. 

Considerações finais 

Com a criação do GAA, estabeleceu-se maior vínculo de confiança


entre a equipe de saúde e a população local, ampliando o conhecimento dos
pacientes quanto às atividades ofertadas na Unidade de saúde, os limites de

316 • Capítulo 14
atuação profissional e o grau de corresponsabilização do cuidado da saúde
do indivíduo. Embora pareça um fato óbvio, é necessário reafirmá-lo: com
o grupo, ficou evidente que a compreensão dos problemas de saúde e mu-
danças no autocuidado não se acontecem por imposição de tratamentos,
ameaças e restrições. Sobre esse aspecto, foram contribuições valiosas os
estudos realizados durante o processo de Educação Permanente sobre as
práticas assistenciais aos portadores de CCNT pautados em modelos de
atenção com base em experiências próprias dos pacientes. 
Para o sucesso do grupo, também se mostrou fundamental que o tra-
balho da equipe seja multidisciplinar, pois assim se garante a valorização de
outros conhecimentos e de um espectro mais amplo de recursos envolvido
no cuidado integral aos usuários. O cuidado aos portadores de CCNT que
antes estava pautada na relação hierárquica de trabalho convencional, com
forte domínio médico, foi substituído, com a formulação do grupo, por
relações mais horizontais, já que cada membro da equipe foi valorizado na
sua capacidade de prestar cuidados significativos e imprescindíveis para a
melhoria da saúde dos portadores de condições crônicas.
Destacamos a seguir alguns aspectos da dinâmica do GAA que con-
tribuíram de forma mais decisiva para o resultado final, para que possam
ser empregados na construção do GAA em outras Unidades e em outros
contextos da saúde:
a) Critério de acesso ao grupo pautado no diagnóstico de dificulda-
des com o autocuidado, feito por qualquer profissional da Unida-
de. A atividade grupal deve ter um sentido concreto e imediato
para os usuários;
b) Constituição de espaços coletivos mais democráticos para a dis-
cussão da equipe sobre o grupo, a fim de compreender melhor
os problemas, aprender com novas experiências e lidar com a di-
mensão afetiva do trabalho em saúde;
c) Estimular e permitir que os profissionais tenham acesso a novos
conteúdos teóricos e que possam conhecer e experimentar criti-
camente mudanças no processo de trabalho e na gestão;
d) O GAA não deve estar isolado de outras atividades na UBS. Ao
contrário, deve estar integrado tão intimamente à rotina da Uni-
dade de modo que o grupo se torne um recurso de todos os pro-
fissionais. Dessa forma, os objetivos do grupo e o seu modo de
lidar com os usuários podem influenciar também outras práticas
clínicas na UBS;
e) O trabalho multidisciplinar constitui pré-requisito para a orga-
nização do GAA. Na experiência aqui relatada, o GAA iniciou

Grupo de autocuidado apoiado... • 317


seu funcionamento em um momento de escassez de profissionais
médicos na UBS. A situação não intimidou os profissionais que
criaram a proposta e o GAA se fortaleceu e qualificou o trabalho
da UBS quando novos médicos chegaram. 
f) A proposta do GAA com estruturação do plano de trabalho para
os usuários deve possibilitar a negociação da participação (ele
participa de alguns encontros e depois retorna quando desejar) e
retira o temor de assumir um compromisso grupal eterno.

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318 • Capítulo 14
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Grupo de autocuidado apoiado... • 319


Capítulo 15
A bailarina e o mar: acompanhamento de
um caso grave de saúde mental na Atenção
Primária à Saúde

Natálhia Ferrari Gabetta


Mércia Flaibam Romanin
Felipe Guedes
Adail de Almeida Rollo

Este era um dos sonhos de uma menina do interior que desejava cha-
mar-se Rosa: “Bailarina é ter a alma de uma flor”. Viver na ponta do pé é
o movimento de erguer e descer, equilíbrio e desequilíbrio, em um treino
exaustivo. Analogicamente, a vida de Rosa é uma exaustão entre erguer-se/
descer; equilibrar-se/desequilibrar. Aos 15 anos, alguns de seus comporta-
mentos começaram a desafinar, afetando o arranjo dos seus sentimentos;
das suas características intrínsecas como a liberdade, a intensidade, a viva-
cidade, o contato consigo, com o seu coração, foram se transformando em
um desarranjo sem maestro para orquestrar o emaranhado de sensações.

320 • Capítulo 15
Cisão entre mente e corpo; pensamento e ação. Rosa foi diagnosticada com
esquizofrenia. A menina de bom convívio social, elogiada e reconhecida na
escola, havia mudado, causando estranheza em casa, passara a apresentar
um isolamento notável. A perda dos avós maternos, referência de afeto e
de cuidados, e o distanciamento dos familiares nucleares (mãe, padrasto
e irmã) podem ter exaltado os sintomas, mas Rosa era resistente à ajuda
médica procurada por sua mãe, Luana.
Com o desejo de sentir novamente a liberdade, vivacidade, encontrar-
-se, fugiu de casa várias vezes. Na primeira “viagem” aos 16 anos, ao estado
do Rio de Janeiro, ficou por três anos com uma nova família, família essa
que não tinha nenhuma relação anterior com Rosa ou Luana, dificultando
o contato. Suas idas sempre foram para lugares sem conexão com sua vida
anterior ou família. Em seus retornos, permanecia por pouco tempo com
a família e novamente se ia, sem dar informações à mãe, ao mesmo tem-
po em que ela não realizava nenhum movimento em busca da filha, cogi-
tando em alguns momentos a morte dela por não ter informações. Nesses
momentos em que esteve fora, Rosa, vivendo pelas ruas, percorreu muitas
cidades e estados, sobretudo as praias das quais mantém memória e desejos
vívidos de retornar, mas sempre sem acessar qualquer serviço de saúde.
O distanciamento afetivo de Luana da filha parecia evidente. Aos 25
anos, Rosa retorna à casa da mãe, permanecendo por seis meses até a pró-
xima fuga em busca de si mesma. A última fuga durou cinco anos. Foi
encontrada em um hospital após um atropelamento em Minas Gerais, a
notícia chegou à mãe por meio de uma publicação nas redes sociais. Dias
após o atropelamento, foi achada à beira de um canavial e ficou internada
por quatro meses, sendo cuidada apenas da parte orgânica e novamente
privada do acesso aos cuidados em saúde mental. Até hoje carrega a ferida
aberta na perna como “cicatriz” do atropelamento. 
Miscelânea da menina alma de bailarina com a menina radical. Ra-
dical não apenas por usar o skate várias vezes como seu meio de locomo-
ção nas fugas, mas radical nos sentimentos manifestos pelas pessoas ao seu
redor, de exaltar-se, ressaltar-se, evidenciar-se, desmedir-se, exagerar-se,
exceder-se. Assim transcendia a confusão e o emaranhado dentro de si.
Passos embalados por um fundo musical com várias vozes, nem sempre
afinadas, agradáveis e harmônicas; arranjos imaginários, misturados e in-
compatíveis com a realidade das demais pessoas. Assim, a piora do quadro
psiquiátrico se tornou evidente: pensamentos delirantes, negativos e sui-
cidas; alucinações visuais, auditivas; paranoias; isolamento social e fami-
liar, sendo perceptível à mãe como a figura com quem tinha uma relação
­conturbada. 

A bailarina e o mar: acompanhamento de um caso... • 321


A narrativa descrita partiu de sensações, olhares e condutas empreen-
didas pelos profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) acerca do caso
de Rosa, quando passou a ser atendida por uma equipe multiprofissional
em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). O relato do caso de Rosa foi cons-
truído a partir da experiência real e da reflexão acerca da complexidade que
era o cuidado a um caso grave de saúde mental por profissionais da APS.
O caso de Rosa permite ilustrar as possibilidades de cuidado a transtornos
graves de saúde mental no território, tendo a APS como ordenadora do
cuidado, sem prescindir da articulação com outros serviços e com outros
pontos das redes de apoio e cuidado. 
A equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) tomou co-
nhecimento do caso pela equipe de referência da UBS. As informações eram
que Rosa se encontrava sem tratamento em relação ao quadro de transtor-
no mental severo que apresentava, recusava-se a receber qualquer serviço
ou profissional de saúde; recusava também alimentação; estava “morando”
no banheiro e não abria a porta para ninguém; ela mesma fazia os curativos
da lesão em virtude do grave atropelamento que sofrera. No período em
que ficou desassistida dos cuidados de saúde, seu quadro psiquiátrico se
manifestou em dificuldade para se alimentar, pois ela acreditava que sua
comida estava sendo envenenada por sua mãe, percebida como sequestra-
dora e inimiga, desenvolvendo, assim, uma desnutrição severa.
Os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) acionados na-
quele momento demonstravam resistência em assumir a condução do caso,
alegavam certo esgotamento, argumentando que a urgência de Rosa era
orgânica, suspenderam as visitas por resistência da família e também por
falta de pessoal.

O vínculo como condição necessária ao cuidado

A equipe do NASF acordou que a primeira visita domiciliar (VD) à


Rosa seria feita por Manoela (terapeuta ocupacional), pela Agente Comu-
nitária de Saúde (ACS) de referência e pela enfermeira do CAPS, visto que,
segundo a equipe da UBS, ela era uma usuária paranoica e de difícil vin-
culação. O intuito era de aproximação e retomada do acompanhamento de
saúde mental e das sequelas da lesão em sua perna.
A primeira VD realizada por Manoela juntamente com a ACS ocorreu
sem a presença da enfermeira do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
que não compareceu. Rosa estava no fundo da casa, fechada no banhei-
ro. Manuela, a profissional do NASF se identificou e pediu para conversar,

322 • Capítulo 15
Rosa concordou. Inicialmente ficou desconfiada, perguntou sobre o crachá
usado pela profissional; a terapeuta ocupacional afirmou ser profissional da
saúde, do “posto de saúde” do seu território e a motivação em conhecê-la
decorrera de indicação da equipe do posto de saúde, estavam  preocupa-
dos  com ela, justificando, assim, o motivo de sua visita. Rosa ficou mais
tranquila, contou sobre alguns delírios de sequestro pela mãe, que a man-
teria em cárcere privado e tentaria envenená-la. Mostrou para Manoela al-
gumas poesias e recortes que fazia e pediu algumas coisas que gostaria de
ter. Falou que não tinha mais nome, que tudo lhe fora roubado e pediu para
que fosse chamada por um novo nome, Rosa, e concordou com o retorno
da profissional, ficando combinado um próximo encontro.
Dessa maneira, iniciou-se um acompanhamento mais frequente para
estabelecimento e fortalecimento de vínculo e relação de confiança com
Rosa e sua família. Durante esses encontros, foram levados materiais pela
terapeuta, a partir dos pedidos de Rosa e algumas produções foram cons-
truídas com a usuária. Também, foi conversado sobre a oferta de Acompa-
nhamento Terapêutico (AT) como dispositivo de atendimento, ampliando
a possibilidade de ocupar outros espaços da casa e realizar saídas para com-
pras de alimentos, visto que Rosa recusava-se a receber a alimentação ofer-
tada por sua mãe, mas vinha aceitando receber os produtos procedentes da
terapeuta ocupacional.
Nessa visita, Manoela também conheceu Luana, a mãe, que tentou
diversas vezes participar do atendimento que ocorria à sua filha, mesmo
após orientação dos profissionais sobre a necessidade de separar a escu-
ta de ambas. A mãe era muito invasiva e a equipe se questionou se esse
comportamento contribuía para o quadro persecutório da filha. Após esse
encontro, acordou-se que as visitas seriam semanais. Foi pactuado que a
psicóloga, Júlia, iniciaria os atendimentos à mãe, enquanto Manoela ficaria
como profissional de referência para Rosa.
A postura profissional adotada pelas profissionais foi de observar as
recomendações sugeridas por Miranda (2009), procurando dar suporte às
ilogicidades de Rosa e a acolher de maneira que ela conseguisse se apresen-
tar, respeitando o modo como ela vivia suas agonias. Ou seja, uma postura
que buscava se adaptar ao ritmo psicossomático de Rosa e às suas necessi-
dades emocionais primitivas. 
O analista Winnicott (1994) indica a importância do trabalho “não
interpretativo” e aponta que a psicanálise é, antes de tudo, o fornecimen-
to de um contexto profissional para o desenvolvimento da confiança, que
requer a capacidade do profissional para a vivência de “identificações cru-
zadas”, ou seja, a capacidade para se colocar no lugar do outro e permitir o

A bailarina e o mar: acompanhamento de um caso... • 323


inverso. Por meio dessa vivência, o profissional encontrará meios de ofere-
cer ao sujeito um suporte suficiente, a fim de que ele encontre uma solução
pessoal para os seus complexos problemas emocionais. Em meio a essas re-
flexões, Miranda (2009) defende que o conceito da tão desejada “cura” seja
remetido à sua raiz etimológica, que traz a noção de “cuidado”. Mediante
a acepção do termo, a autora propõe que os profissionais da área de saúde
resgatem em suas práticas fenômenos naturais de sustentação e confiabili-
dade, que todos vivenciamos para nos desenvolver no sentido humano. Na
teoria winnicottiana, é proposto que os distúrbios psicóticos sejam tratados
por “provisão ambiental”, que se dá no compartilhamento do cotidiano. 
Miranda (2009) argumenta que quando o trabalho é feito com usuá­
rios psicóticos ocorrem importantes processos em nível pré-verbal, cujo
objetivo principal é a construção da crença num ambiente confiável, em
que é possível existir e experimentar as agonias inerentes a essa existência.
Para esses casos, o terapeuta não é mais um decifrador dos con­teúdos in-
conscientes, mas aquele cuja presença possibilita uma experiência de con-
tato e de comunicação com outro ser humano. Segundo a autora, o sentido
geral do trabalho é a comunicação que, para ser efetiva, se estrutura so-
bre a confiabilidade; as palavras passam para segundo plano, pois está se
­tratando de estados regredidos, cuja capacidade de compreensão ainda é
muito pequena. 
Para Palombini (2007), o tratamento da psicose requer, portanto,
uma adaptação ativa às necessidades e o respeito ao processo que se põe
em curso ao se proporcionar um ambiente facilitador. Trata-se de “uma
experiência primária, não algo a ser recordado e revivido na técnica do
analista”. (idem, 2007, p. 155). A função interpretativa da análise dá lugar
ao holding, isto é, à capacidade do analista de oferecer suporte ao sujeito
por meio de uma atitude empática. Essa atitude mostra que o terapeuta
percebe e compreende a profunda ansiedade que o sujeito experimenta,
reconhece a tendência do sujeito a se desintegrar, a deixar de existir. Ainda
afirma que é importante que o terapeuta seja capaz de sustentar o desenro-
lar desse momento, renunciando uma atitude interpretativa para mover-se
no campo da identificação com o usuário, de maneira que ele, em fusão
com o terapeuta, possa colher os efeitos, na regressão, dessa vivência de
uma plena adaptação do ambiente às suas necessidades. Procurou-se pôr
em prática esses referenciais nos contatos que as profissionais tiveram com
Rosa nas VD.

324 • Capítulo 15
Investimento no cuidado da família
e construção de redes de apoio

Paralelamente ao acompanhamento proposto a Rosa, a psicóloga Júlia


tentou realizar os atendimentos de Luana na Unidade Básica de Saúde, mas
ela era relutante, pois acreditava que quem precisava de tratamento era a
filha. Teve pelo menos três faltas com Júlia e verbalizou que não precisava
de acompanhamento. Novas VDs foram cogitadas, mas Luana as recusava.
Numa dada visita, Luana informou Manoela que foi orientada por seu
advogado a não liberar mais o dinheiro do beneficio da usuária para a com-
pra dos alimentos, bem como não deixar Rosa fazer as saídas do Acom-
panhamento Terapêutico (AT). Então a assistente social do NASF, Emília,
entrou no caso e foi com quem Luana se vinculou. A profissional conseguiu
sustentar a escuta, quase sempre espontânea de Luana. Júlia passou a ma-
triciar os atendimentos. Com essa vinculação, a equipe investiu na possi-
bilidade de conseguir contatos de possíveis redes de apoio para a família e
Rosa. Emília percebeu a ambivalência da mãe em relação ao cuidado com
a filha e o seu incômodo ao ver a filha receber alimento e se vincular com
alguém fora do seu âmbito social e familiar.
Os atendimentos realizados pela equipe da UBS e NASF foram discu-
tidos com o CAPS. Além da impossibilidade de introdução medicamento-
sa via oral e de cuidados clínicos específicos diante da gravidade do quadro
psiquiátrico, a equipe do CAPS não via possibilidade de cuidado sem a
medicação. As equipes do NASF e da UBS também levantaram a dificul-
dade na melhora do quadro estando Rosa aos cuidados exclusivos da mãe. 
Diante das dificuldades impostas pelo caso, iniciou-se uma conversa
com as equipes do NASF, Equipe de Saúde da Família (eSF) e a coordena-
ção da APS da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) sobre a possibilidade
de articulação com o hospital para uma nova internação breve visando a
introdução de cuidados clínicos e psiquiátricos. A proposta de interna-
ção foi considerada uma ação prioritária do Projeto Terapêutico Singular
(PTS), sendo sustentada em um hospital geral, de forma articulada e em
Cogestão com o CAPS-NASF-UBS, ou seja, ativando de modo solidário e
complementar sua rede de cuidado (Brasil, 2013). 
Os pressupostos norteadores da RAPS não foram esquecidos, tais
como o de fundamentar a organização da rede na perspectiva de acolher,
abordar e cuidar de pessoas em situação de crise no território; de evitar a
internação psiquiátrica e sustentar o usuário no seu contexto de vida com
o apoio da RAPS; de qualificar e desenvolver intervenções nas situações de

A bailarina e o mar: acompanhamento de um caso... • 325


crise, apostando no cuidado longitudinal e na constituição e fortalecimento
de vínculos (Brasil, 2013).
Diante do afastamento da TO por licença maternidade, que era uma
das profissionais mais próximas ao caso, e da saída de outras, alguns aspec-
tos antes compartilhados entre essas profissionais e equipe não ocorreram,
repercutindo na não vinculação de Rosa com outros membros do serviço,
ficando o caso desacompanhado por um tempo.
Júlia e Emília rediscutiram o caso com a equipe do CAPS sobre a pos-
sibilidade de internação para introdução da medicação, visto que quando
Rosa estava medicada, seu quadro persecutório ficou mais brando, mesmo
que mantidos em parte os delírios. O CAPS realizou uma visita com psi-
cólogo e a nova psiquiatra que diziam da impossibilidade de introduzir
medicação pelo estado nutricional da usuária.
Ao retorno de Manoela, foi retomado o contato com a família e a mãe
informou que Rosa tentara fugir três vezes nesse período. Foi ponderado
com a mãe que as necessidades de Rosa não eram apenas orgânicas, mas
que apresentava questões importantes quanto ao seu estado psíquico. Ou-
tros membros da família foram cogitados para a responsabilização e am-
pliação da rede no cuidado de Rosa. A irmã e tia da usuária mostraram-se
resistentes e mantinham a ideia de internação para usuária. Já o padrasto
(Deivid) mostrou-se disponível para conversar e colaborar nos cuidados
com Rosa. Alguns pontos abordados com ele iam na direção de sensibili-
zá-lo para questão da saúde mental de Rosa, das ações não adequadas de
Luana e manejo de ambas. 
Aspectos envolvidos nos pacientes com transtorno mental grave so-
brecarregam e fragilizam os familiares e/ou cuidadores que poderiam se
envolver cooperativamente no manejo desses pacientes. A falta de compro-
metimento ou apoio e a fragilidade do usuário, bem como dos envolvidos
podem ser potencializadas pelo desgaste emocional, físico e por não conse-
guirem suportar a carga advinda das mudanças na rotina da família (Borba,
2008 apud Silva & Koch, 2015, p. 14).
Com os retornos às VD da terapeuta ocupacional, ficou evidente que
Rosa estava extremamente emagrecida. Ela dizia estar sofrendo privação ali-
mentar e material. A mãe dizia que ela não aceitava alimentação e tinha difi-
culdade de entender as razões disso, apesar da conversa sobre o delírio e a ra-
zão de não aceitar determinados alimentos serem muito recorrentes nas VD. 
Após nova VD da equipe e avaliação da parte clínica, foram discutidas
novas estratégias para o cuidado de Rosa, entre elas a solicitação de exames
médicos e a indicação de uma internação clínica justificada pela desnutri-
ção, visto que ela não poderia ser negada pelo hospital geral do município.

326 • Capítulo 15
Buscaram-se novos movimentos institucionais com a secretaria e
houve uma nova mobilização dos serviços e reaproximação para articula-
ção com a RAPS, assim, o caso foi discutido com profissionais de todos os
serviços envolvidos — UBS, CAPS, Hospital e Secretaria de Saúde — no
final, Rosa foi internada no hospital geral do município de sua residência.
Segundo Delfini et al. (2009), as equipes devem possibilitar ações in-
tegradas, formando uma atuação mais completa, na qual cada equipe possa
ora ser responsável direta pelo cuidado ou ação produzida, ora correspon-
sável, na tentativa de construir o caso clínico a partir das vivências, in-
tervenções, experiências e diferentes olhares dos vários serviços e equipes.
Esses autores apontam para a importância da responsabilidade comparti-
lhada no cuidado dos casos de saúde mental, cujo objetivo é proporcionar
um atendimento singularizado e personalizado, possibilitando que as equi-
pes acompanhem melhor, no tempo, o processo saúde-enfermidade-inter-
venção de cada usuário. 
A corresponsabilização dos casos entre as equipes pretende aumentar
a capacidade resolutiva de problemas de saúde pela equipe que recebe o
caso, sem necessitar recorrer frequentemente a outros serviços. Sendo as-
sim, estabelecem-se intervenções, encontros, articulações, transferências,
circulação de saberes e acontecimentos na atenção ao sujeito atendido. Os
conceitos discutidos nortearam o trabalho cotidiano, não apenas como
uma referência para os técnicos de saúde mental, mas como ferramentas
para todos os sujeitos envolvidos na construção de um saber coletivo e de
uma prática mais rica de possibilidades (idem, 2009). Esses novos arranjos
devem ser transversais, a fim de produzir e estimular padrões de relação
que perpassem todos os trabalhadores e usuários, favorecendo a troca de
informações e a ampliação do compromisso dos profissionais com a pro-
dução de saúde. 
No primeiro atendimento feito por Manoela a Rosa no hospital geral,
ela estava sonolenta, com dificuldades em sentar-se e para conversar. Na
noite anterior, a equipe fez uma contenção química após Rosa ficar agitada
depois de realizar avaliação ortopédica. 
Foi discutido, novamente com todos os envolvidos, manejos para que
as intervenções não fossem recebidas como violência; ponderou-se a neces-
sidade de estender o tempo de internação, dado que a complexidade reque-
ria articulações e tempo para sustentar e viabilizar o cuidado em casa, visto
que o hospital daria alta com menos de uma semana por não ter indicação
clínica de permanência maior, pois durante a internação estava aceitan-
do alimentação e medicação. A falta de uma enfermaria de saúde mental
nesse hospital, único do SUS no município, funcionava como ­argumento

A bailarina e o mar: acompanhamento de um caso... • 327


para justificar a internação dos pacientes no espaço de Pronto Atendimento
(PA), o que dificultava as articulações e a construção do PTS, considerando
as particularidades de cada caso. A permanência no espaço do PA tam-
bém era decorrente, como em outros casos, da dificuldade de manejo de
usuários que apresentam transtornos mentais graves durante as crises, que
eventualmente apresentam episódios de desorganização e agitações.
No contexto atual, segundo Burgos et al. (2013), a saúde mental vem
passando por diferentes transformações, procurando modificar a lógica
manicomial. Buscando o fim da institucionalização, o Ministério da Saúde
preconizou a instituição de dispositivos para o atendimento humanizado
às pessoas em sofrimento psíquico. Segundo esse autor a Política de Saú-
de Mental no Brasil, apoiada pela Portaria n.o 3088 (Brasil, 2011), buscava
promover a redução dos leitos psiquiátricos de longa permanência e ob-
jetivava, quando houvesse necessidade de intervenção hospitalar, que ela
ocorresse em hospitais gerais, com o tempo de internação reduzido, objeti-
vando estabilizar a crise e, em articulação com a rede de atenção psicosso-
cial (Burgos et al., 2013). 
Os autores ainda ressaltam a importância de que a construção dos lei-
tos nos hospitais gerais seja acompanhada de articulação com a rede de saú-
de mental para continuidade do cuidado, pois o seu papel está direcionado
para o atendimento de urgências e emergências, no manejo do paciente em
crise com sintomas psíquicos agudizados. Assim, o período de internação
deve ser curto, sem deixar de proporcionar um atendimento integral e de
articulação com equipe da rede de atenção à saúde mental (Burgos et al.,
2013). No município em questão, essas ações foram dificultadas, pois, caso
houvesse necessidade de estender-se a permanência, a internação se daria
em clínicas psiquiátricas fora da cidade e sem articulação com serviços que
acompanham os usuários da RAPS.
No momento em que Rosa encontrava-se internada, Manoela se apro-
ximou da mãe e do padrasto para conversar sobre o retorno de Rosa para
casa e os manejos possíveis para manutenção das condutas realizadas no
hospital geral referente à alimentação e medicação. Também foi discutido
sobre a preparação do ambiente com pintura, móveis e utensílios para am-
pliar autonomia e circulação da usuária.
Em novo atendimento, ainda durante a internação, Rosa estava mais
tranquila com a medicação e aceitando melhor a presença de Luana. Nesse
atendimento conversaram sobre o retorno à casa e a reconstrução do seu
espaço. 

328 • Capítulo 15
O Resgate da subjetividade: adaptação ou autonomia?

Rosa saiu da internação para casa com indicação de clozapina e ha-


loperidol decanoato, apesar das discussões acerca da dificuldade de sus-
tentar medicação via oral e controle de hemogramas frequentes demanda-
dos por uma das medicações indicadas. Após as discussões, combinou-se
a ­retomada das VD pela APS e a aplicação quinzenal do decanoato pela
equipe do CAPS.
Na retomada das VD foi possível a construção conjunta dos elemen-
tos que identificariam aquele espaço como dela. Rosa havia parado com a
medicação via oral, mas estava aceitando alimentação ofertada por Luana.
Queixava-se de não estar dormindo e dizia do desejo de morrer; pedia aju-
da para ir ao seu “descanso final”, e Manoela ponderava não poder ajudá-la
nisso, mas que era possível pensar maneiras de tornar seus dias mais sig-
nificativos. Rosa dizia já estar morta, mas pedia para a profissional alguns
itens decorativos para o próximo encontro. Os movimentos dicotômicos de
Rosa indicados pelo discurso de morte, mas que trazia ao mesmo tempo o
desejo de novos materiais na próxima visita permitiu compreender a crise
como um processo de restabelecimento pelo qual se constitui uma nova
forma de lidar com as consequências do adoecimento, a fim de favorecer
uma vida plena: “um processo contínuo, não linear, para além da remissão
dos sintomas, englobando senso de esperança, autonomia, empoderamen-
to e capacidade de lidar com os sintomas e as possíveis adversidades da
situação” (Peixoto et al., 2016, p. 884).
Apesar de Rosa estar mais tranquila, dormindo melhor, alimentan-
do-se, tomando banho no chuveiro e fazendo as necessidades novamente
no banheiro, ela mantinha um discurso delirante e dizia não ter desejo de
nada mais, só de descansar em paz. Não escrevia mais, nem escutava músi-
ca ou fazia seus recortes. Parecia apática e passiva, diferentemente de como
se apresentava habitualmente. Queixava-se muito dos efeitos colaterais da
medicação, dizia sentir seus olhos pesados o tempo todo. Manoela ponde-
rava que ela precisava sair um pouco do quarto e da casa e que, enquanto
não conseguia seu descanso final, tinha de passar melhor seus dias. Nova-
mente a equipe da UBS discutiu o caso com os profissionais do CAPS sobre
essa impressão, eles informaram sobre o aumento na dose do haloperidol
decanoato que permanecia a cada 15 dias e contaram que Rosa estava mais
tranquila com eles, mas ainda resistente às injeções.
Palombini (2007)apud Tenório (2001), alerta que não é pequeno o ris-
co de recair em uma prática que busca o “equilíbrio psicossocial”, ­fazendo

A bailarina e o mar: acompanhamento de um caso... • 329


uso do monitoramento de sintomas ou do silenciamento daquilo que, de
uma subjetividade, manifesta-se como gritante diferença. O risco, nesse
sentido, alcança a própria comunidade, sujeita a tornar-se igualmente alvo
de uma “pedagogia da sociabilidade” como nova forma de higienismo com
a qual se intenta o êxito nas mediações de que as equipes se fazem cargo.
Manoela propôs a Luana que fosse à UBS para conversar sobre o segui-
mento de Rosa, pela dificuldade de encontra-lá em casa, mas ela não com-
pareceu. Manoela conseguiu contato com Deivid e reforçou a importância
do acompanhamento de Rosa para além das medicações e também da par-
ticipação da mãe no processo terapêutico. Isso viabilizou posteriormente
a conversa com Luana na UBS sobre as restrições de atividades significati-
vas de Rosa e a ponderação que, apesar de Rosa estar mais organizada no
autocuidado, percebia-se a perda de sua vivacidade e das suas produções
criativas. Conversaram sobre a importância de se investir em atividades
prazerosas e sobre manejos para realizar saídas com ela para mercados e
parques, onde gostava de circular. Luana cogitou a possibilidade de realizar
uma viagem, aproveitando o momento de calmaria que estavam vivendo.
Neste período notou-se deslocamento interessante da mãe que, ape-
sar de identificar certa passividade de Rosa como algo positivo, reconheceu
a importância de uma vida mais satisfatória, e assim houve a possibilidade
de discutir sobre o que seria importante no tratamento de pessoas com
quadros psiquiátricos como o da filha. Tais orientações favorecem e podem
ajudar as famílias, ampliando o conhecimento e conscientização sobre o
transtorno psiquiátrico, facilitando a flexibilização de suas exigências ao
usuário, possibilitando encontrar novas formas para diminuir as “recaídas”,
a adesão ao tratamento medicamentoso, a manutenção das atividades diá-
rias para suprir as necessidades básicas e de lazer, inserindo o usuário como
corresponsável no seu tratamento (Silva & Koch, 2015). A percepção sobre
a mudança desses fatores facilita a comunicação com a equipe e possíveis
reajustes que venham a ser necessários tanto à família como ao usuário e
novos manejos pela equipe, portanto, viabilizando a não associação à re-
manescente cultura manicomial de produtores de passividade no usuário
com transtorno mental grave (Peixoto et al., 2016). Os espaços de conversa
criados possibilitaram a ressignificação das relações dos familiares entre si,
bem como com a equipe e dela com os demais envolvidos na relação com
a paciente. 
Nesta ocasião, as equipes da UBS e do NASF discutiram novamen-
te com o CAPS a importância de investir na intensificação do PTS para
dentro daquele serviço, ofertando à usuária atividades de reabilitação no
CAPS, além das visitas domiciliares para aplicar a medicação. O Médico

330 • Capítulo 15
da eSF realizou VD e após averificação da infecção decorrente do acidente
sofrido anos atrás, Rosa concordou e aderiu ao tratamento medicamentoso
via oral, conforme observado pelo médico na VD seguinte. No entanto, ao
contrário da percepção do médico, Rosa não havia percebido melhora do
ferimento.
Na última visita de Manoela a Rosa, ela voltou a escutar música e
­estava saindo do quarto para tomar sol diariamente, dizendo que se comu-
nicava com o sol e ele a chamava para o “descanso final”. Disse não querer
realizar nenhuma produção, que sua existência estava insuportável e con-
tinuava desejando seu “descanso final”. Manoela a lembrou de como antes
pensava e desejava estar em outros lugares e rever outras pessoas, mas Rosa
dizia preferir encontrá-los em outro plano. Novamente a profissional inves-
tiu na construção de atividades prazerosas enquanto Rosa não conseguia
seu objetivo. A usuária concordou que Manoela conversasse com Luana
para combinar saídas ao parque onde teria mais contato com o sol e a natu-
reza, assim como ir à praia. Em conversa com Luana, ela disse ter realizado
saídas ao mercado com Rosa, onde tem cadeiras adaptadas e acha que seu
humor está melhor. A mãe ainda disse da programação da viagem ao litoral
no mês seguinte. Saindo dessa VD, Manoela e ACS articularam o emprés-
timo de uma cadeira de rodas com o Centro de Referência em Assistência
Social (CRAS) para viabilizar os passeios.
Aproveitar os mais diferentes espaços, relações e situações para que o
sujeito possa vivenciar sua existência e enriquecer suas formas de estar no
mundo, remete à perspectiva da Reforma Psiquiátrica (Ribeiro, 2009), em
que a reinserção social visa, antes de tudo, permitir uma ocupação cidadã
do seu lugar na sociedade pelos loucos.

Algumas reflexões

No processo de cuidado procurou-se manter e fortalecer o vínculo


terapêutico e a atuação clínica durante os atendimentos dentro da casa,
em sua internação e no retorno ao domicílio. O vínculo com Rosa orien-
tou e facilitou a negociação do tratamento, apoiando algumas de suas so-
licitações, bem como a preservação possível da sua autonomia diante do
tratamento. Nossa intervenção não apostou exclusivamente na prescrição
de medicamentos, pelo contrário, buscamos desenvolver habilidades tera-
pêuticas para entender o significado simbólico dos sintomas e das dificul-
dades enfrentadas na aliança para o cuidado com Rosa. O vínculo tera-
pêutico com o usuário foi um elemento importante por ser facilitador nas

A bailarina e o mar: acompanhamento de um caso... • 331


­ egociações para o manejo clínico e da saúde mental como redes de apoio
n
para pacientes com transtorno mental grave — a família, a comunidade e a
RAPS — para ampliação de ações considerando a subjetividade do usuário,
sem esquecer o lugar ocupado pelos sintomas e pelas medicações, buscan-
do um equilíbrio entre todos esses componentes. 
Não se devem esquecer os reposicionamentos que foram adotados
pelos familiares da usuária, embora não sem impasses. Durante os atendi-
mentos, muitos foram os entraves vivenciados, principalmente na relação
da mãe com a filha, bem como da não aceitação de Luana da vinculação de
Rosa com seu padrasto, um dos atores que auxiliaram no manejo da usuá-
ria dentro do meio sociofamiliar. Agregar familiares no cuidado contribui
para não haver acúmulo de tarefas e de papéis, facilitando a divisão nos
cuidados e auxiliando nas dificuldades financeiras, visto que pacientes com
transtornos mentais graves exigem reorganização dos aspectos econômi-
cos, emocionais e dos papéis aos quais familiares ficam submetidos (Silva
& Koch, 2015) “por interferir de forma considerável em todo o sistema
familiar, fazendo com que estes modifiquem seu modo de vida, bem como
forma de perceber o futuro.” (Szymanski, 2004 apud Silva & Koch, 2015, p.
7). Após a disponibilidade de Deivid, Luana mostrou-se aberta a orienta-
ções e se disponibilizou, em certa medida, a criar com a usuária momentos
de lazer e passeios, extrapolando a ideia de controle dos sintomas psiquiá-
tricos para momentos significativos de aproximação entre ambas. 
A construção do caso apresentado mostrou as potencialidades
de ação na APS. Segundo Nunes & Torrente (2019), quando se iniciam
as ­discussões acerca do acompanhamento em saúde mental na Atenção
­Primária existiam algumas resistências que, com a corresponsabilização
desse ­cuidado, se agravasse o movimento da medicalização das experiên-
cias de s­ ofrimento psíquico, pensando no despreparo dos profissionais de
Saúde da Família no manejo dos usuários com transtornos mentais graves
(idem, 2019). 
Ao contrário do que adverte a literatura, a experiência apresentada
aqui ressaltou que o cuidado à saúde mental dentro da APS pode se mos-
trar como um antídoto à medicalização. Nunes & Torrente (2019) alertam
ainda para o risco de uma psiquiatrização ou reducionismo na abordagem
psicossocial ocorrerem também nos serviços especializados reproduzindo
uma lógica manicomial, por exemplo, focada na introdução e manutenção
medicamentosa (idem, 2019).
No cotidiano vivo da RAPS muitas vezes se produz uma divisão ar-
tificial dos casos que ficarão sob-responsabilidade da APS ou dos serviços
especializados. Nessa divisão, caberia exclusivamente ao CAPS a condução

332 • Capítulo 15
dos casos tidos como mais graves. No entanto, a nossa experiência buscou
demonstrar as potencialidades da atuação da APS na condução de casos
graves como o de Rosa e de como alguns pressupostos de um cuidado lon-
gitudinal e no território — duas diretrizes primordiais do trabalho na APS
— podem produzir efeitos significativos na condução dos casos. A atuação
com Rosa leva a pensar que os casos mais difíceis devem convocar não a
atuação isolada dos serviços especializados, mas sim um cuidado em rede,
em que o papel da APS é fundamental, tendo em vista a sua função como
ordenadora do cuidado. Mais do que isso, a experiência que aqui destaca-
mos mostra o papel fundamental que a APS pode desempenhar em reativar
as redes, seja aquela composta pelos serviços ou pela comunidade e pelos
familiares.
Este esforço de ampliar a atuação com os usuários de saúde mental
considerados mais graves é vivido diariamente dentro da própria APS. No
caso em questão, ele ficou evidenciado na empreitada feita pelas profissio-
nais do NASF (tida como “especialista”) para aproximar e implicar outros
profissionais da equipe no cuidado, seja a partir das visitas compartilhadas
ou da própria discussão constante do caso. O presente trabalho buscou evi-
denciar parte dos esforços e dificuldades enfrentados pelos profissionais na
construção e na ativação cotidiana da rede de cuidados, acreditando que as
elaborações em torno dos impasses e dos desafios trazidos por essas tare-
fas podem iluminar experiências semelhantes, levando em conta que esse
tipo de trabalho envolve tanto esforço quanto aquele que é empreendido no
contato presencial com o usuário. 
A visão de clínica ampliada e cuidado do processo saúde-doença ar-
ticulando com outros profissionais e equipamentos por meio da corres-
ponsabilização contribuíram para as intervenções no quadro apresentado
pela usuária, mesmo compreendendo que possíveis ajustes ainda se façam
necessários para sua reabilitação e a fim de continuar garantindo, como
citado por Devera & Costa-Rosa (2007), “os cuidados e tratamentos pres-
tados salvaguardados a dignidade pessoal e os direitos humanos e civis; e
se deve propiciar a permanência da pessoa com transtorno mental em seu
meio comunitário” (Declaração de Caracas, 1991 apud Devera & Costa-
-Rosa, 2007, p. 70).
Os serviços e profissionais que atuam no cuidado à saúde mental
devem ser orientados pelos princípios da Reforma Psiquiátrica, baseando
suas práticas no respeito às singularidades e em defesa da vida. Deve-se ter
como pressuposto ético e norteador das práticas a Reabilitação Psicosso-
cial, no sentido em que apresenta Saraceno (1999), como não sendo um
conjunto de técnicas instrumentalizadas para ocupar o tempo dos usuários

A bailarina e o mar: acompanhamento de um caso... • 333


que apresentam algum transtorno mental e que objetiva enquadrá-los em
determinados modelos preestabelecidos, mas sim ver suas potencialidades
e criar situações respeitando seus limites, sendo um processo que aponta
para realizar mudanças, buscando criar possibilidades de vida e de se cons-
truir a cidadania plena (idem, 1999). Dessa maneira, as práticas e ações
pensadas pela equipe vêm ao encontro dessas premissas e orientações;
quando se tenciona ocupar outros espaços e ampliar as possibilidades de
vida, busca-se extrapolar a indicação de uma socialização e/ou ocupação
desprovida de sentido ou simplesmente um desejo desses profissionais em
proporcionar uma vida mais rica.
Pinto & Ferreira (2010) apontam que a reabilitação psicossocial em-
basa políticas de saúde mental brasileiras, sendo um importante operador
teórico-prático da Reforma Psiquiátrica, mas alertam para práticas que
retomam antigas formas de “psiquiatrização” com uma nova roupagem.
Esses autores buscam mapear os novos perigos de captura que se apresen-
tam nos novos modos de poder e gestão que aparecem; procuram também
problematizar a Reforma Psiquiátrica e mapear os novos riscos trazidos no
seu cerne, não no sentido de inviabilizá-la ou colocá-la na mesma perspec-
tiva do asilamento, mas, antes de tudo, em uma tentativa de reforçá-la, de
retomar a sua força crítica e não tomá-la como um processo finalizado que
devemos nos regozijar e comemorar: “Mas que qualquer comemoração só
é válida no alerta constante dos seus novos riscos” (idem, 2010, p. 30).
Se por um lado há o desejo de “reabilitar” a pessoa, de forma a
(re)inseri-la em seu contexto social e comunitário, por outro há os vários
riscos que essa tarefa traz. Ainda existe pouca disponibilidade em nossas
formas de vida coletiva para acolher a experiência da loucura. Pinto & Fer-
reira (2010), dizem que não se pode negar que a reabilitação psicossocial
produz transformações, mas é necessário identificar problemas para que
esse dispositivo não seja um mero encarceramento do lado de fora dos mu-
ros do antigo sistema asilar.

Mesmo reconhecendo os avanços operados pela reabilitação psicossocial,


deve-se alertar que esta pode conduzir a uma estratégia de medicalização
do social, produzindo certos engessamentos e flexibilizações no manejo
dos corpos em espaço aberto. Aqui, as práticas de reabilitação não estariam
apresentando apenas as velhas formas de poder psiquiátrico, mas trazendo
novas formas de controle (idem, 2010, p. 32). 

A partir dessa perspectiva foi que se buscou justificar os tensiona-


mentos realizados com a família de Rosa, às equipes e aos serviços da Rede

334 • Capítulo 15
a fim de não se satisfazer ou acomodar-se com a introdução de medicação
e a retomada de algum autocuidado, mas abrir para toda potencialidade e
ampliação para outros aspectos do sujeito. Não basta pensar na reabilitação
como controle de alguns sintomas, é necessário engajar os usuários com a
cidade, produzir espaços existenciais. As críticas, dessa maneira, não têm
qualquer finalidade paralisadora, mas sim para abrir possibilidades de no-
vas formas de vida e de experiência.
Estas discussões se fazem necessárias e produções como o presente
trabalho devem ser estimulados para que a potência do cuidado em saúde
mental na Atenção Primária à Saúde seja difundida e reconhecida. Isso é
especialmente importante considerando o momento político em que ve-
mos a diminuição dos recursos direcionados para esse nível de atenção
e o desinvestimento em ricos dispositivos como os NASF, que carregam
grande potencial para aumentar a resolutividade das Equipes de Saúde da
Família e ampliar os manejos possíveis com os usuários e a comunidade.

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A bailarina e o mar: acompanhamento de um caso... • 335


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336 • Capítulo 15
Capítulo 16
O cuidado a idosos em situação de
vulnerabilidade: desafios para uma equipe da
APS

Vanessa Bueno da Silva


Adilson Rocha Campos
Robenia Mara Ribeiro
Julia Amorim Santos

A Atenção Primária à Saúde, dada sua alta capacidade resolutiva, tem


sido foco de investimento de alguns governos municipais mesmo em
um contexto de crise de financiamento. Nesse sentido, as Equipes de Saúde
da Família (EqSF) de um município do interior de Minas Gerais foram
alvo de um curso de Educação Permanente promovido pela Secretaria Mu-
nicipal de Saúde e pelo Coletivo de Estudos e Apoio Paideia, vinculado à
Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Como parte desse processo,
passaram a ter uma série de ações articuladas, de reorganização do traba-
lho e de educação permanente. 

O cuidado a idosos em situação de vulnerabilidade... • 337


O curso, iniciado em setembro de 2018 e finalizado em abril de 2020,
partia do Método Paideia, com articulação de aspectos teóricos e práticos
por meio de discussões coletivas dos profissionais de saúde com ­apoiadores.
Tinha-se como intuito ampliar o coeficiente de intencionalidade dos sujei-
tos, considerando a coprodução de acontecimentos e ações a serem desen-
volvidas dentro das equipes. Buscou expandir os níveis da capacidade de
reflexão e de intervenção sobre a dinâmica do processo saúde- doença-cui-
dado, instituindo um trabalho em saúde como prática interrelacional, de
maneira a operar os conhecimentos técnicos/científicos, relações de afeto
e de poder que se estabelecem no cotidiano dos serviços (Campos, 2013).
Nesse contexto, as equipes discutiam a caracterização do território e
identificação das necessidades de saúde, além da possibilidade de ampliar
o cuidado priorizando ações coletivas, para além das demandas de cuidado
individual que já eram realizadas. Percebeu-se, ao longo deste processo,
que passaram a desenvolver ações de prevenção, promoção, assistência e
reabilitação de maneira mais articulada, planejada e interdisciplinar. Insti-
tuíram reuniões semanais, com discussão de caso e organização das ações
para além da demanda espontânea, possibilitando uma atuação mais or-
gânica da no território adscrito, o que refletiu em uma aproximação com
a própria população atendida. Essa aproximação ficou explícita em uma
demanda de cuidado que chegou a uma das EqSF do município em uma
área rural, a qual é objeto de reflexão do presente capítulo.
Uma Agente Comunitária de Saúde (ACS) recebeu uma denúncia,
por meio de vizinhos, de um possível caso de violência contra uma mulher
idosa em sua área de abrangência. Em razão da importância do conteúdo
da denúncia, de imediato a coordenação da Unidade tratou do assunto em
reunião de equipe.
Experiências nas políticas públicas de saúde têm reforçado a necessi-
dade de constituição de práticas voltadas para o cuidado ao idoso e garan-
tia de um envelhecimento saudável. As equipes de APS, que se constituem
como o principal contato dos usuários com os sistemas de saúde, orienta-
das pelos princípios da universalidade, da acessibilidade e da coordenação
do cuidado, do vínculo e continuidade, da integralidade, da responsabili-
zação, da humanização, da equidade e da participação social, se deparam
com grandes desafios para instituir um processo de trabalho que garanta
um cuidado familiar e comunitário à população de sua área adscrita (Bra-
sil, 2006; Brasil 2017).
Documento do Ministério da Saúde (Brasil, 2006) destaca que o en-
velhecimento pode ser compreendido como um processo natural, de di-
minuição progressiva da reserva funcional dos indivíduos (senescência),

338 • Capítulo 16
aspecto esse que, em condições normais, não seria considerado problema
de saúde. Entretanto, observa-se que em situações de sobrecarga, patolo-
gias não cuidadas de maneira regular, acidentes e estresse emocional, a se-
nescência pode levar a agravos à saúde e gerar demandas mais específicas
de assistência. Ademais, destaca-se que um dos desafios no cuidado da po-
pulação dessa faixa etária é a possível perda da capacidade funcional, com
restrições das habilidades físicas e mentais necessárias para a realização de
suas atividades básicas.
No processo de cuidado ao idoso com grande grau de dependência fa-
miliar, podem-se observar conflitos de gerações, algumas vezes com casos
de violência e abandono. A Organização Mundial da Saúde (OMS) adota o
conceito de maus-tratos ou violência contra idosos como sendo qualquer
ato ou falta de ato, único ou repetido, proposital ou impensado, causan-
do danos e sofrimento desnecessário e redução de qualidade de vida da
pessoa idosa. Essa atitude pode ser praticada dentro ou fora do ambien-
te doméstico, por algum membro da família ou por pessoas que exerçam
uma relação de poder sobre a pessoa idosa, como, por exemplo, cuidadores
(OMS, 2002). Esforços têm sido feitos a fim de despertar a atenção de auto-
ridades e profissionais de saúde para o aumento das ocorrências de agravos
a idosos, como acidentes, violência, abandono e maus-tratos. No caso que
iremos tratar, a demanda foi trazida pela própria comunidade e posta a
problemática aos trabalhadores da saúde.
Já no início, a equipe considerou que se tratava de caso com uma
abordagem não convencional, pois, em geral, casos de suspeita de violência
podem ser denunciados a outras instituições, como a polícia militar, guar-
da municipal, Ministério Público etc. No entanto, avaliou-se que o nível de
confiabilidade da população local no SUS fez que a denúncia fosse feita à
equipe de saúde.
A literatura indica que os principais casos de violência contra idosos
envolvem episódios de abusos físicos, psicológicos e sexuais, abandono fa-
miliar, negligência e abusos financeiros. Trata-se de um problema mundial
que independe de cultura, nível socioeconômico, etnia e religião. Geral-
mente, os idosos se mostram vulneráveis a vários tipos de maus-tratos ao
mesmo tempo, devendo merecer atenção não apenas das autoridades res-
ponsáveis, como de familiares (Moreira et al., 2016). 
No Brasil, discriminação e negligência são as duas formas mais co-
muns de violência aos idosos. Porém, a violência contra esta faixa etária,
cada vez mais crescente na população, manifesta-se de forma estrutural,
envolvendo vários fatores advindos da desigualdade social e é naturaliza-
da nas manifestações de pobreza, de miséria e de discriminação; pode ser

O cuidado a idosos em situação de vulnerabilidade... • 339


também de natureza interpessoal nas formas de comunicação e de intera-
ção cotidiana; e institucional, na aplicação ou omissão na gestão das políti-
cas sociais, pelo Estado e pelas instituições de assistência. Constitui-se, as-
sim, forma privilegiada de reprodução das relações assimétricas de poder,
de domínio, de menosprezo e de discriminação que sempre marcaram a
formação do povo brasileiro (Avanci, Pinto & Assis, 2017).
A violência doméstica, por sua vez, é concebida como todo o tipo
de violência praticada por membros do ambiente doméstico, familiares ou
não, que convivam no espaço doméstico, incluindo pessoas que convivam
esporadicamente nesse espaço. Esse tipo de violência está profundamen-
te arraigado na vida social, sendo percebido muitas vezes pela população
como “situação normal” (Narvaz & Koller, 2006). A violência intrafamiliar
se refere a toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade
física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de
outro membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função
de pai e mãe, ainda que sem laços de sangue (Day et al., 2003). O fenô-
meno da violência acarreta sérias e graves consequências não só para o
pleno e integral desenvolvimento da vítima, comprometendo o exercício
da cidadania e dos direitos humanos, mas também para o desenvolvimento
socioeconômico do país, de modo que faz parte do trabalho das equipes
de saúde não considerá-lo apenas como mais uma questão privada, mas
objeto de preocupação social e de seu trabalho. 
Diante dessa problemática, a primeira ação a ser desenvolvida direta-
mente com a família foi a realização de uma visita domiciliar. Ficou claro
para os profissionais da EqSF que a tarefa inicial seria identificar os fatores
de risco aos quais aquela senhora supostamente estaria exposta, para então
estabelecer meios de intervir de forma apropriada. 
Para a viabilização da visita, foi disponibilizado veículo da prefeitu-
ra para o transporte da enfermeira coordenadora e da ACS responsável por
aquela microárea. A propriedade se localizava em área rural do município,
de difícil acesso por estradas não pavimentadas. Chegando ao local, mesmo
antes de serem recebidas pelos moradores, as profissionais de saúde obser-
varam que se tratava de uma propriedade muito simples, com pouca infra-
estrutura. Como o processo de territorialização e cadastro das famílias não
estava terminado, aquela era uma das residências que a equipe não conhecia
previamente.
Para conseguir acesso ao local e, principalmente, à residência e seus
moradores, as profissionais se identificaram para o irmão da suposta vítima
de violência, que foi quem as recebeu, oferecendo atenção à saúde e aferição
de sua pressão arterial, bem como dos outros moradores. Um dos pilares da

340 • Capítulo 16
APS é a constituição de vínculo com os moradores da área, para a qual a
EqSF ­desenvolve diferentes estratégias. Ao mesmo tempo, deve-se proceder
a um diagnóstico psicossocial que detecte situações de vulnerabilidade fami-
liar. Dessa forma, um cuidado ampliado, para além de um sujeito índice, é
necessário.
Estavam na casa a senhora e seu irmão. O contato inicial foi de muita
resistência diante das intervenções das profissionais, mas aos poucos foram
se aproximando da residência para que pudessem ser feitas as abordagens
da equipe. Imediatamente puderam observar um contato ríspido entre os fa-
miliares. Estava claro, também, que, para além da simplicidade do local, os
familiares que ali residiam estavam com dificuldade de organização do coti-
diano, móveis não eram adaptados para as necessidades da idosa e não havia
a manutenção de condições de higiene. 
Além disso, durante essa primeira avaliação, verificou-se uma situação
precária de higiene e de cuidado básico da senhora, como limpeza corporal,
dos cabelos e das unhas. Na avaliação clínica de enfermagem, a profissional
observou olhos hiperemiados, pele desidratada, abdômen distendido, hema-
tomas nos membros inferiores, face, região cervical posterior, além de ede-
ma importante em antebraço direito, com dor à palpação. Outro aspecto que
causou muita preocupação da equipe foi a ausência de movimentação ativa
na mão direita, cianose de extremidades, além de sinais sugestivos de fratu-
ra incruenta no punho direito. Nessa oportunidade, a senhora relatou sofrer
violência física e simbólica regularmente. Além disso, as profissionais obser-
varam, nessa primeira avaliação da situação familiar, que a idosa não estava
tendo acesso ao seu benefício, que seria gerido por outra irmã.
Além do contato com a família, a equipe de saúde fez uma abordagem
com os vizinhos, que as procuraram após o momento da visita, indicando
haver diversas situações de violência contra a senhora. Relataram que ela
permanecia dentro da casa ao longo de todo o dia, podendo sair apenas no
início da manhã quando a família ordenhava o leite das vacas, e se queixa-
ram da existência de muitos animais que também eram mantidos no interior
da casa, aspectos indicados como potenciais causadores de danos à saúde da
senhora. Os vizinhos ainda falaram sobre a preocupação com a integridade
física da idosa a partir daquele momento, pois, segundo eles, o irmão certa-
mente teria atitudes de represália contra ela.
Após a visita domiciliar, a equipe se viu obrigada a realizar novas dis-
cussões coletivamente. Ainda que uma das funções das EqSF seja de auxi-
liar os familiares a renegociarem seus papéis de maneira a constituírem um
Sistema Familiar mais harmônico e funcional, a fim de garantir o cuidado
à pessoa idosa (Brasil, 2006), nesse caso específico a equipe entendeu que

O cuidado a idosos em situação de vulnerabilidade... • 341


o estabelecimento de um novo equilíbrio seria difícil, pois considerou se
tratar de situação de extrema gravidade. Amparados pela regulamentação
da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), da Portaria n.º 2.528 de 19-
10-2006 correspondente à Política Nacional de Saúde do Idoso, além da Lei
n.° 10.741 de 1-10-2003, que institui o Estatuto do Idoso, os quais regula-
mentam os direitos da pessoa idosa, comprovaram que realmente estavam
diante de um caso complexo, em que havia uma situação de violência e
violação de direitos daquela idosa. Diante disso, optaram por comunicar o
caso à supervisora municipal de enfermagem do município.
Segundo a Política Nacional de Atenção Básica, é atribuição das equi-
pes da atenção básica:

Coordenar o cuidado: elaborar, acompanhar e organizar o fluxo dos


­usuários entre os pontos de atenção das RAS. Atuando como o centro de
comunicação entre os diversos pontos de atenção, responsabilizando-se
pelo cuidado dos usuários em qualquer destes pontos através de uma rela-
ção horizontal, contínua e integrada, com o objetivo de produzir a gestão
compartilhada da atenção integral. Articulando também as outras estru-
turas das redes de saúde e intersetoriais, públicas, comunitárias e sociais
(PNAB, 2017).

Após novas discussões em equipe, foi proposta uma intervenção jun-


tamente com a promoção de cuidados da idosa na Unidade de Saúde, onde
recebeu acolhimento pela EqSF, que cuidou de sua higiene com banho de
aspersão, das lesões aparentes, forneceu alimentação e providenciou roupas
adequadas. Ao mesmo tempo em que a equipe estreitava o vínculo com a
­usuária, pôde aprofundar os cuidados e colher a história de vida, que con-
tinha episódios de abuso sexual. Os cuidados referentes à sua saúde foram
ampliados para além da equipe local, com articulação de avaliações pela
­Unidade de Pronto-Socorro e Hospital do município onde, em exames de
imagem, atestaram fratura fechada de rádio e ulna em antebraço direito e
realizaram imobilização com tala gessada, com indicação de cirurgia a ser
realizada em seguida. 
A equipe teve de realizar um diagnóstico multidimensional, como pre-
conizado pelas instituições de saúde. Esse diagnóstico é influenciado por di-
versos fatores, tais como o ambiente onde o idoso vive, a relação profissional
de saúde/pessoa idosa e profissional de saúde/familiares, a história clínica —
aspectos biológicos, psíquicos, funcionais e sociais — e o exame físico. Assim,
verificaram que a idosa precisava iniciar um tratamento de diabetes tipo 2,
sendo estabelecido o cuidado clínico e medicamentoso.

342 • Capítulo 16
A política de saúde brasileira preconiza que o cuidado em saúde
mental na APS não é exclusividade de uma categoria profissional, mas que
todos os profissionais da equipe multidisciplinar podem se apropriar do
cuidado das demandas subjetivas e sofrimento psíquico (Brasil, 2013). No
caso relatado, essa questão estava posta e exigiu debate coletivo ao longo
das reuniões da EqSF. Um ponto importante para a mediação, nesse senti-
do, foi o processo de articulação com o Núcleo de Apoio à Saúde da Família
(NASF) por meio do Apoio Matricial.
Segundo Campos & Domitti (2007) o Apoio Matricial e equipe de
referência “são, ao mesmo tempo, arranjos organizacionais e uma metodo-
logia para a gestão do trabalho em saúde, objetivando ampliar as possibili-
dades de realizar-se clínica ampliada e integração dialógica entre distintas
especialidades e profissões” (idem, 2007, p. 400). Dessa forma, constitui-se
em uma proposta de ofertas de apoio técnico especializado aos profissio-
nais das equipes de referência, visando à qualificação das intervenções. 
É preconizado que esse apoio será realizado por um conjunto de pro-
fissionais que não têm, necessariamente, relação direta e cotidiana com o
usuário, mas cujas tarefas serão de prestar suporte às equipes, personali-
zando o sistema de referência e contrarreferência e desconstruindo a lógica
de encaminhamentos consecutivos. Assim, esse arranjo institucional prevê
encontros periódicos, com discussão de casos selecionados e elaboração de
Projetos Terapêuticos Singulares. Parte de uma perspectiva de intervenção
a partir de duas dimensões: suporte assistencial e suporte técnico-pedagó-
gico. A dimensão assistencial é aquela que vai produzir ação clínica direta
com os usuários, e a ação técnico-pedagógica vai produzir ação de apoio
educativo com e para a equipe (idem, 2007; Brasil, 2009).
Durante o processo de Educação Permanente instituído pelo curso,
a equipe do NASF passou a acompanhar a reunião das EqSF de maneira
regular, estando presente uma vez ao mês em cada equipe do município.
Além disso, os profissionais se encontravam quinzenalmente nos encon-
tros do curso, aspecto esse que foi considerado como mais uma forma de
ampliação do diálogo e articulação entre as equipes. Durante a avaliação do
caso em questão, foi relatada a importância de se abordar discussões sobre
o envolvimento profissional, pessoal e emocional de todas as pessoas envol-
vidas, além da contribuição da equipe do NASF sobre os encaminhamentos
do caso propriamente dito. Explicita-se, nessas afirmações, como se consti-
tuiu o suporte técnico-pedagógico preconizado na proposta de trabalho do
Apoio Matricial ao longo do processo.
A EqSF se manteve como coordenadora do cuidado, garantindo a ar-
ticulação das ações de maneira longitudinal, mas diante da complexidade

O cuidado a idosos em situação de vulnerabilidade... • 343


do caso e das demandas de cuidado, foi necessário criar espaços coletivos
protegidos que permitissem a discussão das diferentes leituras, buscan-
do-se construir uma análise e uma interpretação sintética entre os vários
­profissionais. 
A partir da construção do PTS e da ampliação dos cuidados na rede
de saúde, avaliou-se a necessidade de estabelecer uma ação intersetorial,
para tanto acionando a rede de Assistência Social. É inscrito na Consti-
tuição Federal, através do art. 203, que a assistência social será prestada a
quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade so-
cial. Um dos seus objetivos é a proteção à família, à maternidade, à infância,
à adolescência e à velhice (Brasil, 1988). 
Dentro do SUAS (Sistema Único de Assistência Social), cabe à Pro-
teção Social Especial os cuidados às famílias e indivíduos que já se encon-
tram em situação de risco e que tiveram seus direitos violados. Nesse nível
de proteção social, um dos serviços disponíveis são as unidades de aco-
lhimento, serviços especializados que oferecem acolhimento e proteção a
pessoas e famílias que acabam sendo afastadas do seu núcleo familiar e/
ou comunitário de origem por se encontrarem em situação de abandono,
ameaça ou violação de direitos (Brasil, 2014). 
Silvestre & Costa Neto (2003) destacam a importância de um cuidado
pela EqSF com as famílias, com as ações de prevenção e promoção de saúde
e com as atividades de reabilitação, devendo-se objetivar ao máximo man-
ter o idoso na comunidade, com cuidado domiciliar, da forma mais digna e
confortável possível. Assim, o seu deslocamento para um serviço de longa
permanência, seja ele um hospital de longa estada, asilo, casa de repouso ou
similar, é considerado como alternativa secundária, após outras ações de
cuidado terem falhado ou quando não há possibilidade de serem adotadas.
Foi o que ocorreu no caso relatado, em que, após os cuidados e a avaliação
da EqSF, os procedimentos ortopédicos e a alta hospitalar, considerou-se
importante a garantia de um cuidado em uma instituição de longa duração.
A usuária foi encaminhada para Casa de Idosos da cidade, obtendo
acomodação. Essa instituição asilar filantrópica é assistida por outra EqSF,
responsável pelo território onde está situada. A atenção aos idosos é feita
por meio de visitas de Agentes Comunitários de Saúde, profissionais de
enfermagem e médicas quinzenalmente ou quando se faz necessária, em
livre demanda. Dessa forma, para além dos pontos de atenção já acionados
e articulação intersetorial com serviços da assistência social, a equipe res-
ponsável pelo PTS precisou estabelecer novas discussões e articulação com
a outra EqSF, sendo, então, transferida a referência de cuidado.

344 • Capítulo 16
Entretanto, o vínculo entre a idosa e as profissionais da equipe res-
ponsável pelos cuidados iniciais permaneceu forte, de maneira que se man-
tiveram as visitas dos profissionais dessa equipe a partir de solicitações da
usuária, que lhes enviava recados solicitando a presença.
O desenlace do caso também não foi convencional, afinal, a idosa pas-
sou a viver em uma instituição de longa permanência. Embora se priorize
sempre um cuidado junto dos familiares e no território, nesse caso se ava-
liou que não seria possível tal intermediação. Ainda assim, diante da com-
plexa relação familiar, a EqSF avalia que é ali que ela vem conseguindo res-
gatar sua autoestima e dignidade, tendo a garantia de um envelhecimento
saudável e a possibilidade de reparação dos danos sofridos pelas agressões. 
As equipes relatam que a usuária manifesta sensações de felicidade,
estando muitas vezes sorridente e afetiva no contato com os profissionais
de saúde. Com o passar do tempo, foi se mostrando vaidosa, ampliando seu
autocuidado de maneira autônoma, além de haver relato de que ela passou
a estabelecer uma relação afetuosa com os demais moradores da instituição.
Segundo informações da coordenação do asilo e da EqSF responsável por
aquele território, a idosa tem se alimentado bem, refere melhora no sono,
caminha e toma banho de sol pelas manhãs, além de ter desenvolvido uma
vida social ativa dentro da instituição, participando da celebração da missa
aos domingos e dos grupos de atividades regularmente. Um aspecto que as
equipes destaca é que ela passou a colecionar bonecas e, como parte da sua
rotina, “cuida” delas. A usuária recebe visita de uma irmã esporadicamente.
Além da construção do cuidado em rede, a EqSF preencheu os do-
cumentos de notificação de agravos de violência doméstica contra idoso
e os encaminhou à Secretaria Municipal de Saúde para notificação no Sis-
tema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Também, como
um dos encaminhamentos, o Ministério Público deferiu medida protetiva
para a idosa, impedindo que o irmão denunciado como seu agressor fosse
visitá-la ou mesmo que permanecesse a uma distância menor que um qui-
lômetro do asilo.
A denúncia feita pelos vizinhos à Agente Comunitária de Saúde trou-
xe à luz uma realidade muitas vezes tornada invisível, que é a da violência
contra os idosos e, particularmente, contra as mulheres idosas no ambiente
rural. A denúncia levou a EqSF a buscar alternativas para abordá-la, por
entenderem ser um caso grave e extremamente complexo, com necessidade
de uma intervenção rápida para proteção da usuária.
Ao mesmo tempo, explicitou o quanto é papel da atenção básica rea-
lizar o acolhimento à pessoa idosa e aos seus familiares, com investimento

O cuidado a idosos em situação de vulnerabilidade... • 345


na qualificação dos trabalhadores. Mostrou-se a necessidade da EqSf ­estar
preparada para lidar com as questões do processo de envelhecimento, par-
ticularmente no que concerne à dimensão subjetiva da pessoa idosa. A
partir da situação vivenciada as equipes tiveram de abordar a discussão
de uma avaliação funcional que busca verificar, de forma sistematizada,
em que nível as doenças ou os agravos impedem o desempenho, de forma
autônoma e independente, das atividades cotidianas ou atividades de vida
diária das pessoas idosas. 
Além disso, ao longo da construção deste PTS, a equipe procurou for-
mular um planejamento assistencial mais adequado, com sistematização de
importantes ferramentas para a garantia de uma atenção humanizada. A
importância do trabalho interdisciplinar e a integração entre a rede básica
e o sistema de referências ficaram latentes, sendo necessária a superação
da fragmentação do processo de trabalho e interação precários das equipes
multiprofissionais. 
Como é indicado na Política Nacional de Saúde do Idoso (Brasil,
2006), a finalidade primordial é

recuperar, manter e promover a autonomia e a independência dos indiví-


duos idosos, direcionando medidas coletivas e individuais de saúde para
esse fim, em consonância com os princípios e diretrizes do Sistema Único
de Saúde [ . . . ] . A promoção do envelhecimento ativo, isto é, envelhecer
mantendo a capacidade funcional e a autonomia, é reconhecidamente a
meta de toda ação de saúde. Ela permeia todas as ações desde o pré-natal
até a fase da velhice. A abordagem do envelhecimento ativo baseia-se no
reconhecimento dos direitos das pessoas idosas e nos princípios de inde-
pendência, participação, dignidade, assistência e autorrealização.

Este documento indica que o sistema de saúde brasileiro, tradicional-


mente, está organizado para atender à saúde materno-infantil, ou outras
demandas de saúde, mas que de maneira geral as equipes não têm consi-
derado o envelhecimento como uma de suas prioridades. Silvestre & Costa
Neto (2003) destacam a capacitação e a integração dos Agentes Comunitá-
rios de Saúde, importante profissional da equipe de saúde para promoção
desses cuidados. Os autores afirmam que esses profissionais não podem
ser considerados apenas como um membro da comunidade informante de
seus problemas, mas devem compor as equipes como um profissional que
receba formação e oferte informações/orientações para articulação do cui-
dado no cotidiano das equipes.

346 • Capítulo 16
Problematiza-se, a partir desta experiência e discussões de caso, que
para garantir o cuidado ao idoso na perspectiva integral, as equipes pre-
cisam ampliar o processo de cadastramento e identificação das demandas
no território. Isso ajudaria a, além de promover ações visando ao envelhe-
cimento ativo e saudável de maneira geral e suporte às famílias, identificar
casos de violação de direitos e negligência de maneira precoce. Assim, caso
as EqSF consigam abordar a questão do cuidado à pessoa idosa no seu co-
tidiano como forma de promoção à saúde, a possibilidade de mediação
de situações conflitivas e a constituição de novo equilíbrio familiar para
­cuidado ao idoso torna-se mais possível.

Referências

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348 • Capítulo 16
Capítulo 17
Enfrentando na Atenção Básica o desafio do
cuidado a uma família com mulher em situação
de abuso de substâncias psicoativas e filhos sob
a violação de direitos

Paulo Vicente Bonilha Almeida


Carolina Da Silva Krzesinski
Marcia Merisse
Rosangela Santos Oliveira

U m grande desafio atual da atenção básica à saúde de Campinas e do


Brasil, diz respeito ao, cada vez mais frequente, atendimento de ca-
sos de famílias com crianças em situação de vulnerabilidade e violação de
direitos, em decorrência de mãe em situação de abuso de álcool e outras
substâncias psicoativas, frequentemente vivendo sozinha com seus filhos,
como “chefe de família”.
Relatório global da ONU (2012) mostra que o abuso e/ou dependên-
cia de drogas são os fatores associados à maior incidência de mortes no

Enfrentando na Atenção Básica o desafio do cuidado... • 349


mundo. Observa-se relação direta do abuso da substância com diversos
problemas físicos, sociais e psicológicos, com efeitos diretos em grupos so-
ciais, tais como desemprego, violência familiar, negligência infantil e abuso,
problemas com justiça criminal e danos causados por crimes e acidentes
automobilísticos. Aproximadamente 1 em cada 100 mortes entre adultos é
atribuída ao uso de drogas ilícitas.
Em grávidas, pesquisa de Kassada et al. (2013) em Unidades Básicas
de Saúde da cidade de Maringá/PR, detectaram prevalência de 6% para o
uso de álcool, 9% para cigarro, 0,51% para maconha e 0,5% para crack. Fa-
tores de risco identificados de Violência contra a mulher: psicológica, física
ou sexual; aspectos psicossociais como estresse, ansiedade, depressão; e su-
porte social da mulher, como rede social e apoio social, são fatores de risco
já descritos associados ao uso de drogas ilícitas na gestação. 
O uso de drogas lícitas e ilícitas na gestação e depois de forma con-
tinuada após o parto leva a risco de negligência no cuidado com o filho,
exigindo políticas públicas de cuidado e suporte a essa mulher-mãe. 
A convivência familiar e comunitária constitui direito fundamental
de crianças e adolescentes garantido pela Constituição Federal (1988), em
seu artigo 227 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Em seu
artigo 19, o ECA estabelece que toda criança ou adolescente tem direito a
ser criado e educado por sua família e, na falta dela, por família substituta. 
Na situação de famílias que, em vez de protegerem a criança e o ado-
lescente, violam seus direitos, uma das medidas previstas no ECA (artigo
101) para impedir a violência e a negligência contra eles é o abrigamento
em instituição. Essa decisão é aplicada pelo Conselho Tutelar, por determi-
nação judicial e implica na suspensão temporária do poder familiar sobre
crianças e adolescentes em situação de risco e no afastamento deles de casa.
De acordo com os artigos 22 e 24 do Estatuto, a medida extrema de
suspensão do poder familiar deve ser aplicada apenas nos casos em que,
injustificadamente, os pais ou responsáveis deixarem de cumprir os de-
veres de sustentar e proteger seus filhos, em que eles forem submetidos a
abusos ou maus-tratos ou em razão do descumprimento de determinações
­judiciais.
O acolhimento institucional deve ser uma medida excepcional e pro-
visória e o ECA exige que se garanta a “preservação dos vínculos familiares
e a integração em família substituta quando esgotados os recursos de ma-
nutenção na família de origem” (artigos 92 e 100). Nessa situação, a lei de-
fine que a colocação em família substituta se dê em definitivo, por meio da
adoção ou, provisoriamente, via tutela ou guarda (artigos 28 a 52 do ECA).

350 • Capítulo 17
Neste contexto de abordagem intersetorial do problema, Equipes de
Saúde da Família se defrontam com o dilema entre até quando investir na
busca de adesão da mulher a este amplo projeto terapêutico singular, ne-
cessário para apoiá-la a fim de ressignificar sua vida e sua relação com as
drogas, de forma a permitir cuidados adequados com sua prole e a partir
de quando devem reconhecer sua inviabilidade e passarem a apoiar ações
com o Conselho Tutelar no sentido da medida protetiva de retirada destas
crianças da família de origem. 
Durante o “Curso de Especialização em Saúde da Família: atenção e
gestão do cuidado na Atenção Básica” e o “Curso de Extensão em Saúde da
Família”, pude acompanhar a apresentação de Projeto Terapêutico Singular
(PTS) de casos com essa temática, por vários profissionais.
O Projeto Terapêutico Singular é um instrumento que visa, em tra-
balho de equipe, de forma integrada, analisar o caso em tela com um olhar
ampliado, em seu diagnóstico e tratamento, indo além dos aspectos biomé-
dicos e da terapia medicamentosa, da tradicional discussão de caso clínico
(Cunha, 2009).
O médico e psicanalista húngaro Michael Balint, radicado na Ingla-
terra em 1939, interessado no estudo da relação médico-paciente, desen-
volveu, na década de 1950, importante trabalho com médicos de família de
Londres, que atenderam a seu convite para participarem de grupo de dis-
cussão de casos clínicos por eles trazidos, que tivessem por característica
os instigarem do ponto de vista emocional ou de relacionamento com seus
pacientes (Lakasing, 2005).
E foi um caso com esta temática aqui discutida, que a enfermeira Lu-
cia, de uma Equipe de Saúde da Família, trouxe para a roda de discus-
são, com metodologia Balint-Paideia, de nosso curso de extensão, em duas
oportunidades, com um intervalo de cinco meses entre elas. 
Visando a manutenção do sigilo, os nomes dos profissionais e mem-
bros da família do caso aqui estudado são fictícios.
A enfermeira iniciou sua apresentação referindo que a seleção deste
caso se deu, especialmente pelos desafios que sua equipe encontrou para
lidar com a família, com a dificuldade de adesão dela às propostas de acom-
panhamento e, principalmente, pela expectativa de que a discussão em
grupo no curso pudesse contribuir para os rumos do seguimento do caso
pela equipe. 
Relatou que o caso chegou ao conhecimento da equipe em 2018 (cer-
ca de um ano antes desta apresentação) por meio de solicitação do Conse-
lho Tutelar de “averiguação das condições de saúde e moradia da família da

Enfrentando na Atenção Básica o desafio do cuidado... • 351


usuária Nayara, por causa da denúncia realizada pela escola de seus filhos,
que informava que “as crianças estavam sempre sujas e mal-alimentadas”.
Foi quando tomaram conhecimento de que essa família havia se mudado
para o território da Unidade Básica de Saúde. Dessa forma, foi realizada
uma visita domiciliar pelo agente comunitário de saúde responsável por
essa área e também contato com a Unidade Básica que anteriormente aten-
dia a família, para obter detalhes sobre a situação da família.
No momento do primeiro relato, Nayara era mãe de três filhos: Yaro
(cinco anos), Marcos (três anos) e o recém-nascido Laercio, de sete dias, ti-
nha vinte e três anos, estava desempregada, sobrevivendo com recursos ad-
vindos do Bolsa Família e, segundo apurado, também do tráfico de drogas,
residindo em uma área de ocupação, com a mãe que possui diagnostico de
esquizofrenia. Ela não apresenta problemas de saúde atuais, mas recebeu
tratamento completo para sífilis em 2017 e faz uso pesado de álcool, maco-
nha e cocaína, não tendo parado mesmo durante as gestações. 
O companheiro de Nayara, David, de quarenta e seis anos, pai das
crianças, com quem ela foi viver aos quinze anos, está preso por tráfico de
drogas (pena deve terminar em sete anos) e possui um casamento anterior
e filhos dessa outra relação. 
A história familiar de Nayara é conturbada. Filha de um casal divor-
ciado, Ismar (cinquenta e seis anos) e Cícera (idade desconhecida), que
viveram juntos por vinte e três anos, tendo três filhos, sendo dois homens
e ela. Os pais faziam uso de álcool e outras drogas (cocaína e maconha).
Os dois filhos homens acabaram sendo presos, por tráfico de drogas. A
mãe, Cícera, teria passado por um quadro depressivo, após o nascimento
de Nayara, mas não teria recebido nenhum tratamento. Evoluiu com qua-
dros de muita agressividade e no momento era acompanhada em CAPS III,
com diagnóstico de esquizofrenia.
Os dois filhos mais velhos de Nayara apresentam quadros respirató-
rios crônicos, com diagnóstico de asma, sendo que Marcos tem histórico
de numerosas internações por bronquiolite, crises asmáticas e pneumonia.
Yaro, o mais velho, foi acompanhado com regularidade em outro Centro
de Saúde até cinco meses, quando o pai foi preso e a situação de cuidados
às crianças pareceu piorar. Há relato de que, aos cinco meses, teria apresen-
tado uma fratura de crânio, por traumatismo cranioencefálico secundário
a possível queda da cama. As vacinas das crianças estão sempre atrasadas
e são realizadas em visita domiciliar ou quando a ela procura a Unidade
Básica de Saúde por qualquer necessidade, sendo que a mãe tem o hábito
de procurar ajuda quando cobrada pelo Conselho Tutelar. 

352 • Capítulo 17
Nayara sempre costuma deixar seus filhos sozinhos em casa e sair
para usar substâncias psicoativas. Nessas situações, suas primas, Jussara e
Silviane, que moram próximas, tentam cuidar das crianças, quando podem
e a Nayara permite. Outro fator preocupante é que as crianças não são le-
vadas à escola regularmente, nem comparecem em consultas agendadas na
Unidade Básica de Saúde e muitas vezes encontram-se com um nível de
higiene muito ruim, sem receber alimentação adequada ou tratamentos de
saúde recomendados. 
Durante este período em que o David está na prisão, Nayara faz vi-
sitas regulares para ele e leva as crianças para verem o pai. Contudo, até o
momento também se relacionava com um morador de rua, que fazia uso de
álcool e outras drogas (maconha, cocaína e crack). 
Finalmente a enfermeira Lucia apresentou as ações que a sua equipe já
havia desenvolvido com a família: visitas domiciliares regulares pelo agente
de saúde da área para criação de vínculo com a usuária e seus familiares,
atendimento flexível com ou sem agendamento prévio com realização de
testes rápidos para sífilis, HIV e hepatite B aproveitando sua presença em
algumas consultas na última gestação e, após essa última gestação, tenta-
tiva de inclusão de Nayara em planejamento familiar, porém sem adesão
dela aos exames e aos atendimentos necessários. Finalmente reuniões com
as escolas das crianças, o Centro de Referência Especializado da Assistên-
cia Social (CREAS) e Conselho Tutelar. Após essa reunião com o Conse-
lho, a equipe passou a encaminhar informações sobre ocorrências com as
crianças imediatamente após acontecerem, tais como não comparecimento
a consultas agendadas, situação em que, por orientação do Conselho, são
feitas convocações.
Após a apresentação do caso, foi aberta a palavra para a roda de pro-
fissionais da turma, quando ficou evidente, pelo discurso da maioria dos
profissionais, a revolta com a situação das crianças, com falas iniciais já
conclusivas, apontando a necessidade de “encaminhamento para o Conse-
lho Tutelar abrigar urgente essas crianças!” Outra já sugeria o investimento
na possibilidade de as primas assumirem a guarda das crianças.
As falas citadas, de uma médica e uma agente de saúde, ilustram um
fenômeno comum no início destas rodas de discussão, do tipo Balint-Pai-
deia, de profissionais apresentarem soluções prontas, simplistas e superfi-
ciais, em geral tomadas de emoção, para a resolução do caso em tela. Por
mais que, ao final da evolução do caso, essas falas aparentemente estivessem
cobertas de razão, naquele início de discussão estavam evidentemente pre-
cipitadas, o que foi ficando evidenciado com o correr das ­falas ­subsequentes,

Enfrentando na Atenção Básica o desafio do cuidado... • 353


que foram identificando muitas lacunas de informação pela equipe sobre o
pensamento de Nayara, sobre seu companheiro e suas p ­ rimas, bem como
de estratégias para superar esse desconhecimento ­(novas visitas domici-
liares para conversas com essas pessoas) e até para lidar com o Conselho
Tutelar, como uma proposta de visita domiciliar conjunta. 
Uma lacuna importante, e que nunca seria resolvida pela equipe, con-
sistia em um melhor entendimento e abordagem do funcionamento psi-
cológico de Nayara, evidentemente uma vítima, repetindo com seus filhos
a infância/adolescência conturbada que teve, com seus pais usuários de
­álcool e outras drogas, irmãos presos, por tráfico de drogas etc.
A OMS (2006) classifica a violência contra a criança em quatro tipos:
física, sexual, emocional/psicológica e negligência. Os casos de violência
fazem parte da rotina dos profissionais na Atenção Básica, mas este, pela
particularidade de envolver violência contra a criança, na forma de negli-
gência, mobilizou os profissionais de forma significativa. Segundo Oliveira
& Ferigato (2019) casos de violência, como a situação destas crianças, po-
dem ser atravessados pela concepção de violência, das vivências e fantasias
pessoais dos profissionais de saúde.
Como já dito, Balint, com grupos de médicos, semelhante ao com-
posto por estes profissionais de saúde, fomentava que apresentassem casos,
examinando em suas emoções, o sentido de suas ações e reações no pro-
cesso de diagnóstico e tratamento, acreditando que todos os atos médicos
(aqui poderíamos ampliar para todos os atos dos profissionais de saúde,
em geral) estão carregados de sentimentos, que podem ser benéficos ou
prejudiciais ao paciente (Balint, 1988). 
Os profissionais reconhecerem seus sentimentos de raiva, de revolta,
de impotência é importante para que, como discutido no curso sobre os
conceitos de transferência e contratransferência, eles estejam atentos para a
influência desses sentimentos nos atendimentos a seus pacientes. 
Somente esta abertura, para analisarem seus próprios sentimentos,
possibilitará a outra profissional, revelar seu sentimento de revolta, expres-
sando que “Ela tem recursos, a casa da mãe. . . Perdeu tudo e expôs as crian-
ças!”, e podendo então entender que, de nada contribuirão, para sua prática
de cuidado, juízos morais como esses, muito comuns e até naturais de serem
suscitados nos profissionais que lidam com mães ou pais que não cumprem
com seus papéis e responsabilidades, socialmente convencionados, para
com seus filhos. Balint denominou de “função apostólica do médico”, essa
tendência, aqui estendida para os demais profissionais de saúde, de usarem,
para analisar e julgar o comportamento de seus pacientes, os seus próprios
valores, devendo os pacientes serem “convertidos”, caso deles desviarem.

354 • Capítulo 17
No desenrolar da discussão, um dos agentes de saúde manifestou re-
volta contra o fato de Nayara ter parido seu último filho dias antes na ma-
ternidade “e a assistente social não ter segurado o bebê lá!”. 
Esta fala sobre a forma das maternidades lidarem com parturientes
com este perfil aqui discutido, aponta para um problema percebido nos
profissionais da equipe, bem como nos demais profissionais do curso, que
é a falta de informações sobre as políticas públicas de assistência social e
saúde voltadas para a proteção do direito à convivência familiar e comu-
nitária, bem como de habilidades para lidar com um olhar ampliado para
a temática, que lhes permitisse elaborar Projetos Terapêuticos Singulares
com mais potência para apoiar tais famílias. 
Em relação às políticas públicas voltadas para o enfrentamento des-
ta problemática, o município de Campinas elaborou, em 2011, seu Plano
Municipal de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Ado-
lescentes à Convivência Familiar e Comunitária e, a partir daí, o município
vem sendo destacado como uma experiência exitosa nesse campo, conside-
rado como verdadeiro contraponto a várias realidades negativas em âmbito
nacional, em especial a já citada retirada compulsória de bebês das mães
em vulnerabilidade social (Valente, 2019).
Assim, foram criadas políticas públicas intersetoriais, articulando
Consultório na Rua e abrigos, próprios e conveniados, voltados para rece-
ber mães em situação de vulnerabilidade social juntamente com seus bebês,
inclusive com tratamento para mulheres grávidas em uso de substâncias
psicoativas, tudo visando a evitar a separação das crianças de suas famílias
de origem ou para promover a reunificação familiar ou, se for no melhor
interesse das crianças, identificar e assegurar as formas mais adequadas de
cuidados alternativos, em condições que promovam o seu desenvolvimen-
to pleno e harmonioso, como parte de uma política nacional integrada de
proteção à criança
Em especial, com este acolhimento das crianças juntamente com suas
mães, foi conquistada uma diminuição do número de recém-nascidos aco-
lhidos em abrigo, caindo de dezoito bebês em 2014, para cinco em 2016,
oito em 2017 e quatro em 2018 (Valente, 2019). E mesmo os oito separados
das mães, por medida protetiva, foram acolhidos em família acolhedora,
evitando a institucionalização, cumprindo as Diretrizes de Cuidados Alter-
nativos à Criança (ONU, 2009). 
O caso de Nayara, que havia parido sua última filha há cerca de seis
meses, ilustra a situação oposta a este processo anteriormente enaltecido,
pois na maternidade de fato foi desperdiçada uma oportunidade de um
acolhimento de Nayara juntamente com seu recém-nascido, visando a

Enfrentando na Atenção Básica o desafio do cuidado... • 355


e­ vitar que a bebê ficasse exposta à situação de violação de direitos à qual
seus irmãos já estavam, sem por outro lado cair no extremo de retirá-la da
mãe, com um abrigamento precipitado, sem que uma tentativa de trabalho
anterior fosse feita.
Cinco meses após o primeiro relato do caso, a enfermeira Lucia o re-
memora para o grupo, acrescentando que, há dois meses, Nayara iniciou
outro relacionamento, com Jaílson, um ex-presidiário, que ela conheceu
nas visitas a um de seus irmãos na prisão. Essa relação atual está evoluindo
de forma muito conturbada, pois ambos fazem uso de álcool e outras dro-
gas (cocaína e crack) e são muito agressivos um com o outro. O vínculo da
equipe com Nayara foi muito prejudicado após o início de sua relação com
Jaílson, pois ele é extremamente controlador e não permite que ela mante-
nha conversas sem sua presença. Aconteceu uma situação em que ele teria
danificado a caderneta vacinal das três crianças, após briga com Nayara,
com agressões físicas, sendo que os vizinhos realizaram boletim de ocor-
rência, em virtude de recorrência dessas agressões. Nayara foi estimulada
para também denunciar a violência, mas não o fez.
Neste período, a equipe foi informada pelos familiares de que Nayara
estava abrigada com seus filhos após nova agressão de seu atual compa-
nheiro, porém, ao questioná-la, informou que optou por sair do abriga-
mento, pois Jaílson seria “bom para seus filhos e com ele mantém uma boa
condição de vida”. 
No início do seu relacionamento com Jaílson, moravam com seus três
filhos e sua mãe. Porém, por decisão que seria desse seu atual parceiro (mas
mantendo uma prática já apresentada por ela algumas vezes), se mudou
novamente, com ele e os filhos, deixando a mãe com suas primas e retor-
nando ao bairro onde residia em 2018, provavelmente para se afastar destes
vizinhos que a denunciavam. Esse bairro não pertence à área de abrangên-
cia da Unidade Básica da Equipe de Saúde da Família. 
Antes da mudança, os vizinhos realizaram uma denúncia contra ela
por maus-tratos contra sua mãe. Relataram que Nayara deixava a mãe
sem ser alimentada, sem receber tratamento adequado para seu transtor-
no mental, trancada do lado de fora da casa e fazendo uso indiscriminado
de bebidas alcoólicas. Dentro desse cenário, os vizinhos relataram que, em
muitos momentos, Nayara deixava seu filho Laércio com a avó, porém, por
causa das condições de saúde dela, os cuidados prestados para o Laércio
eram sempre muito precários. 
A equipe organizou nova reunião envolvendo a escola, representan-
te do Conselho Tutelar e do CREAS. Nela a equipe relatou o cenário e as
­seguintes situações: o lactente Laércio, já está com cinco meses e já teve

356 • Capítulo 17
uma internação por provável coqueluche, sendo que estava com a vacina-
ção atrasada; Nayara não compareceu para consulta pós-parto e não adere
ao planejamento familiar, mas, ao contrário, tem procurado a Unidade Bá-
sica para realizar testes de gravidez.
As primas já se ofereceram para ficarem com as duas crianças maio-
res, mas a mãe não aceita.
Até o presente momento, o Conselho Tutelar não considera o abriga-
mento das crianças como uma medida necessária e imediata. O objetivo é
tentar apoiar a reorganização de Nayara em sua rotina e manter as crianças
sob os seus cuidados.
Imediatamente após receberem a notificação, via agente de saúde,
sobre a área para a qual havia se mudado, comunicaram a nova Unidade
Básica e encaminharam os relatórios que fizemos na Unidade, informa-
ram o Conselho Tutelar e agendaram reunião conjunta para transferência
do caso. Porém, não obtiveram resposta da nova Unidade Básica sobre a
disponibilidade da equipe para essa reunião e em virtude da eleição dos
novos conselheiros tutelares, ocorreu a saída da conselheira que realizou o
acompanhamento do caso, dessa forma se observa uma lentidão maior nas
decisões necessárias.
Mesmo não morando mais na área, ela voltou à Unidade Básica da
equipe, o que deixou os profissionais satisfeitos, entendendo que isso foi
decorrência de um bom vínculo estabelecido. Assim sendo, preocupados
com as condições de saúde dos três filhos, da paciente, todos mantendo
baixo nível de higiene e condições respiratórias crônicas, autorizaram que
continuem frequentando o serviço sempre que precisarem. Dificuldade
nesse processo era que Nayara continuava sempre acompanhada por Jaíl-
son e mantendo o comportamento de faltas nas consultas agendadas para
si e seus filhos. 
Como balanço do acompanhamento do caso, a equipe relata que ele
gerou um aprendizado muito grande, principalmente na interlocução com
outros serviços e abordagem de usuários com graves quadros familiares.
Porém, referem frustração diante dos resultados negativos, pois as
crianças continuavam em situação desfavorável e de risco, com seus direi-
tos não sendo garantidos. 
A equipe reconhece no Conselho Tutelar e demais órgãos competen-
tes uma incansável tentativa de apoiar esta mãe para prestar os cuidados
aos seus filhos, porém a equipe julga que isso é impossível, em razão do
quadro de desorganização emocional da dela, pois ela contínua fazendo
o uso de múltiplas drogas, como maconha, cocaína e crack, não conse-
guindo manter um emprego regular, sendo que, em sua única tentativa,

Enfrentando na Atenção Básica o desafio do cuidado... • 357


e­ stava ­vendendo mercadorias roubadas e para fazer isso deixava seus filhos
­sozinhos ou sob os cuidados de terceiros sem condições de cuidá-los com
segurança.
Para a equipe, o caso mostra a dificuldade em que seja garantido os
direitos das crianças e/ou adolescentes, previstos no Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), nestes tipos de situação familiar visto nas Unidades
Básicas com frequência e cujo manejo depende de outros órgãos para que
sua efetivação seja garantida. 
Os profissionais concordam que o abrigamento deve ser sempre
a última opção para uma criança, então neste caso defendia que para as
crianças a melhor opção seria passar a tutela para as primas da Nayara e
futuramente quando ela estivesse em tratamento da dependência de SPA,
organizada e capaz de manter uma rotina mínima de cuidados aos seus fi-
lhos, eles voltassem ao seu convívio. Percebiam que o nível de desordem em
que ela vivia prejudicava diretamente essas crianças e, infelizmente, para
que ela possa se organizar e manter o cuidado de três crianças não estava
sendo viável. Deixaram claro para o Conselho Tutelar e o CREAS que essa
era a opinião da equipe de saúde.
Referem sentimento de impotência, com os limites do sistema de saú-
de diante deste tipo de caso, que gera grande decepção nos profissionais,
pois realizam intervenções e não notam nenhuma mudança de comporta-
mento da Nayara.
Com a notícia da mudança da família de região de cobertura da equi-
pe e a impossibilidade de continuidade do, já difícil, acompanhamento de
Nayara e família, ao final da discussão não houve propostas de novos enca-
minhamentos para o caso, pairando no ar uma sensação de encerramento
dele, com clima de desânimo e revolta.
Neste clima de balanço, a enfermeira Lucia, como aluna do curso,
refletiu que: “O fato de podermos compartilhar o caso no curso foi ex-
tremamente positivo para nossa equipe, pois chegamos a muitos momen-
tos, onde não sabíamos como conduzir e discussões realizadas nas aulas
geraram novos caminhos e novas possibilidades. Compartilhar casos em
grupos ampliados, com diferentes olhares é grandioso para as equipes da
atenção básica, pois lidamos com casos complexos que envolvem o usuário,
sua família, seu trabalho ou a falta dele e todos os vínculos dessa pessoa”. 
Esta fala da enfermeira, sobre a contribuição trazida pelo curso para
ela e sua ESF, pelo fato de poderem compartilhar o caso com um grupo am-
pliado, mostra como, analisar a prática em um espaço coletivo, utilizando a
metodologia Balint-Paideia pode ser potente para um dos principais obje-
tivos deste curso, de ampliação do olhar dos alunos sobre sua prática pro-

358 • Capítulo 17
fissional e sobre ele saber interdisciplinar, esta práxis da saúde, bem como
sobre seus sentimentos em relação a seus pacientes e demais envolvidos no
processo de cuidado, possibilitando de fato uma clínica ampliada (Campos
et al., 2014; Cunha, 2005).
Mais potente ainda pode se tornar esta discussão com profissionais de
saúde, quando além da já discutida abordagem da dimensão psicológica,
proposta por Balint, se acrescenta na metodologia do grupo o componente
Paideia, estimulando a abordagem também das questões políticas e insti-
tucionais, bem como a organização do trabalho e aspectos do modelo de
atenção e de gestão. Para a discussão de casos com forte dependência de
trabalho em rede intersetorial, como o descrito, com a interação de múlti-
plos profissionais, serviços e políticas públicas diferentes (SUS, SUAS, Sis-
tema de Garantia de Direitos etc.) passa a ser fundamental, sob pena da
discussão se tornar ingênua e alienada da realidade política e institucional.
A perceptível ampliação de capacidade reflexiva e analítica dos pro-
fissionais ao longo do curso, provavelmente se deve a este reconhecimento,
facilitado pela metodologia, da dimensão política da clínica, compreen-
dendo o continuum das práticas assistenciais com a forma como se orga-
nizam os serviços envolvidos, ou seja, a própria UBS, a escola, o CREAS,
o Conselho Tutelar, bem como sobre o papel social deles próprios, como
profissionais de saúde. 
Finalmente, mas não menos importante, falar sobre a perceptível in-
corporação pelos profissionais, com o desenrolar da discussão deste caso,
de conhecimentos sobre o complexo tema da atuação diante da situação de
criança vítima de violação de direitos, que, há muito, não se resume mais
em separação precipitada dos pais e abrigamento (acolhimento institucio-
nal). Puderam compreender que, nesta situação, se faz obrigatório priori-
zar o uso de outras estratégias de proteção da criança, sem sua instituciona-
lização e garantindo o seu direito à convivência familiar e comunitária, por
exemplo, por meio do cuidado por família extensa. No caso em questão,
poderia ter sido implementada pelo Conselho Tutelar a proposta maturada
pela equipe, do envolvimento das primas de Nayara no cuidado das crian-
ças, estratégia essa que infelizmente não chegou a ser sequer iniciada.
Interessante pontuar como reflexão final, como o modelo de trabalho
da Saúde da Família, centrado em um trabalho de equipe, com articulação
intersetorial e um olhar ampliado para o biopsicossocial, tem permitido
aos profissionais da atenção básica começarem a ir além da postura tradi-
cional da saúde perante casos deste tipo, predominante reativa, centrada
na responsabilização apenas clínica, no máximo desenvolvendo estratégias
para facilitar à mulher e às crianças o acesso aos tratamentos necessários,

Enfrentando na Atenção Básica o desafio do cuidado... • 359


consultas, exames, vacinas etc. e cumprindo o dever legal de notificação
do caso ao Conselho Tutelar. Tem possibilitado, como no presente caso,
que as equipes assumam também para si, papel com a rede de serviços da
assistência social (CRAS, CREAS etc.) e do sistema de garantia de direitos
(Conselho Tutelar etc.) ações proativas e preventivas de apoio à família, de
fomento do vínculo mãe-filhos, de fortalecimento da rede de apoio social
para a família e de participação ativa nas decisões do Conselho quanto ao
destino das crianças (Nascimento, 2012; Reichenheim, 2008).

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Enfrentando na Atenção Básica o desafio do cuidado... • 361


Apêndice
Apoio Matricial e núcleos de apoio à Saúde
da Família: conjuntura atual e a prática —
nas entrelinhas dos relatos de caso

Mônica Martins de Oliveira Viana


Tatiana de Vasconcellos Anéas

E ste texto tem como objetivo apresentar uma breve caracterização do


atual contexto do Apoio Matricial e dos Núcleos de Apoio à Saúde da
Família (NASF), recentemente renomeados como Núcleos Ampliados de
Saúde da Família e Atenção Básica (NASF -AB). Para ilustrar as discussões,
faz menção aos casos apresentados ao longo da parte III deste livro, que por
sua vez se assentam na experiência dos participantes da Formação Paideia
em Saúde da Família. 
Sua denominação como apêndice surge da intertextualidade que
apresenta com os demais capítulos, de sua construção a posteriori, e tam-
bém de seu caráter complementar, tal como o Apoio Matricial, que se dá a
partir do que Starfield (2003) denomina como trabalho compartilhado ou
trabalho colaborativo, ampliando o repertório de discussões das equipes da

362 • Apêndice
Atenção Primária em Saúde (APS). Trata-se de uma construção teórica de
caráter explicativo do papel do Apoio Matricial na interação com as equi-
pes, cuja ausência ao longo do livro se tornou notória, sobretudo pela re-
corrência que se impunha a discussão sobre a atuação das equipes de NASF,
recém-implantadas nos municípios. Do total de alunos (79 pessoas) que
concordaram em responder um questionário de caracterização aplicado no
início da Formação, 20 profissionais (25%) referiram atuar no NASF ou em
alguma modalidade de apoio à APS.
A proposta do Apoio Matricial, que deu origem ao NASF, configura
uma metodologia teórico-operacional que propõe diretrizes para a intera-
ção entre especialistas e as equipes da APS. 
Avança em relação ao cuidado compartilhado/colaborativo (Vingilis
et al., 2007; Garcia-Tavalera Espín et al., 2012, Foy et al., 2010; Kelly et al.,
2011), por sua maior vinculação e compromisso ético com a democracia
institucional e com a produção de autonomia entre os envolvidos, apre-
sentando maior afinidade com os princípios do SUS e com as diretrizes do
cuidado humanizado e da Clínica Ampliada e Compartilhada (Oliveira &
Campos, 2015).
Por se tratar de uma metodologia de trabalho, o Apoio Matricial pode
assumir diversos formatos (Castro, Oliveira & Campos, 2016), com espe-
cialistas oriundos de diversos pontos da rede de atenção assumindo agen-
das de encontros regulares na Atenção Primária, combinadas com a dispo-
nibilidade para contatos emergenciais. Em qualquer contexto em que esteja
operando, o Apoio deve manter como característica seu compromisso com
a corresponsabilidade pelo cuidado, pela construção compartilhada de
diretrizes clínicas e sanitárias e de critérios para o encaminhamento dos
casos, além da troca de saberes para ampliação do repertório e da resoluti-
vidade das equipes da APS.
Guiada pelas diretrizes da gestão colegiada e da interdisciplinarida-
de, a proposta do Apoio Matricial pretende levar a lógica da Cogestão, da
­democracia institucional e da colaboração para as relações interprofissio-
nais, implementando concomitantemente as dimensões de suporte técni-
co-pedagógico e assistencial (Campos, Cunha & Figueiredo, 2013; Bonfim
et al., 2013).
O Apoio Matricial ganhou notoriedade em âmbito nacional ao se efe-
tivar como política ministerial, mediante os Núcleos de Apoio à Saúde da
Família (NASF), propostos pela portaria ministerial 154, de 24 de janeiro
de 2008 (Brasil, 2008), que previa auxílio financeiro para o provimento de
equipes multiprofissionais especializadas, compostas segundo as necessi-
dades identificadas pelas Equipes de Saúde da Família na Atenção Primária. 

Apêndice • 363
O NASF surge da busca por modificar os sistemas de referência e con-
trarreferência, que tradicionalmente são impessoais, burocratizados e com
baixo acompanhamento do itinerário terapêutico dos usuários. E traz con-
sigo ainda os demais pressupostos e diretrizes do Apoio Matricial.
Em 2012, com a regulamentação das Portarias n.o 2.488, de 21 de ou-
tubro de 2011 e n.o 3.124, de 28 de dezembro de 2012 (Brasil, 2012; Brasil,
2014), ampliou-se a atuação das equipes de NASF, abrindo-se a possibi-
lidade de que qualquer município do Brasil fizesse sua instituição, desde
que tivesse ao menos uma equipe de Saúde da Família. Também se criou as
equipes NASF para apoiar as equipes na Atenção Primária que cuidam de
populações específicas (consultórios na rua, equipes ribeirinhas e fluviais).
Visando à institucionalização do NASF como arranjo prioritário do
Ministério da Saúde para a inserção dos especialistas na Atenção Primá-
ria, foram produzidos documentos de marco regulatório. Dentre eles, po-
demos citar a própria Portaria n.o 154 (Brasil, 2008), a Portaria n.o 2.488,
que normatiza a PNAB (Brasil, 2012), a Portaria de n.o 3124, que redefine
os parâmetros do NASF, material da oficina de qualificação do NASF com
foco na redução da mortalidade infantil, documento de autoavaliação para
melhoria da qualidade da Atenção Básica para os NASF (AMAQ/NASF),
além dos Cadernos de Atenção Básica voltados aos Núcleos de Apoio à
Saúde da Família (Brasil, 2009; Brasil, 2014), que se destacam pela ampla
divulgação e por apresentarem de modo mais detalhado as diretrizes para
o trabalho das equipes.
Segundo essas diretrizes, as equipes NASF devem oferecer apoio edu-
cativo para as equipes de referência e desenvolver ações conjuntas. Podem
também realizar ações clínicas diretamente com os usuários, desde que
previamente pactuadas com as equipes de referência e como parte de um
projeto terapêutico, sem perder de vista o compromisso com a correspon-
sabilização do cuidado de usuários e território (Campos, Cunha & Figuei-
redo, 2013).
Em 2017, os NASF foram renomeados pela nova Política de Aten-
ção Básica (Brasil, 2017) como Núcleos Ampliados de Saúde da Família e
Atenção Básica (NASF-AB), podendo dar apoio a qualquer modalidade de
Unidade Básica de Saúde, independente da adoção da Estratégia de Saúde
da Família.
A Portaria de n.o 2979, de 12 de novembro de 2019, que aprova o
Programa Previne Brasil (Brasil,2019), altera o modelo de financiamento
de custeio da Atenção Primária, e passa a priorizar apenas alguns progra-
mas no repasse de incentivos para ações estratégicas. Nessa resolução, os

364 • Apêndice
NASF não estão previstos, cabendo aos municípios a decisão de manter
essas equipes.
Giovanella, Franco & Almeida (2020) e Morosini, Fonseca & Baptista
(2020) compreendem que as mudanças recentes coadunadas pela PNAB
2017, pelo Programa Previne Brasil, pela criação da Agência de Desenvol-
vimento da APS (ADAPS) e pela Carteira de Serviços da Atenção Primária
(CaSAP) representam um incomensurável retrocesso ao trabalho inter-
disciplinar, ao cuidado centrado na família e comunidade e, portanto, à
integralidade da Atenção Primária. Nesse cenário, entende-se o acesso à
saúde de modo restrito aos seus atributos biomédicos e se fortalece o mo-
delo h­ egemônico, de práticas fragmentadas e a passividade dos usuários.
Abre-se o caminho para a privatização da APS e para a mercantilização do
cuidado à saúde.
Este contexto tende a anular por completo o componente de Apoio do
NASF e sua existência passa a ser fortemente inviabilizada pelas restrições
orçamentárias e pelas dificuldades para o cadastramento de novas equi-
pes. Sua manutenção fica a critério dos municípios, devendo ser por eles
financiados, medida que tende a prejudicar principalmente as cidades de
pequeno porte. 
É sabido que a existência e o sucesso do NASF, bem como do Apoio
Matricial de modo geral, dependem de modificações amplas e contra-he-
gemônicas, que incluem desde a adequação da estrutura organizacional até
transformações de atitudes e práticas dos profissionais e gestores (Cam-
pos, 2012). Está ligada à efetivação de uma APS abrangente e da democra-
cia institucional entre profissionais e usuários. Justamente por isso, vai na
contramão de tudo o que está posto em pauta nas mudanças recentes em
nível federal. Em outras palavras, a ameaça ao NASF extrapola a questão
do financiamento, e reside no desmantelamento da proposta civilizatória e
de cidadania contidas na Constituição de 1988 e, por conseguinte, no SUS.
Assim, nosso interesse em incluir o debate acerca do NASF no presen-
te livro se justifica pela necessidade de defesa desse arranjo que, criado em
2008, por meio de uma Política do Ministério da Saúde para todo o Brasil,
com incentivos e repasses para os municípios, está sob ameaça apesar de
seus 12 anos de experiências e discussões.
Neste apêndice, acrescentamos para o debate do NASF uma bre-
ve reflexão a partir da análise dos casos apresentados na parte III deste
livro. Eles são ilustrativos da complexidade das situações acompanhadas
na Atenção Primária, que vão desde a adesão e autocuidado nas doen-
ças crônicas, questões de saúde mental relatadas em situações de uso de

Apêndice • 365
s­ ubstâncias ­psicoativas e no sofrimento psíquico grave, até as diversas situ-
ações de ­violências. Todos os relatos nos mostram que a dimensão psicos-
social ­ainda é um grande desafio para este nível de atenção no SUS (Cam-
pos, Cunha & Figueiredo, 2013; Gonçalves et al., 2013; Bonfim et al., 2013).
Tendo esse grande desafio, a proposta do NASF, como equipe de apoio,
composta por especialistas, configura um dispositivo promissor para dis-
parar mudanças em direção a uma ampliação da clínica e rompimento da
fragmentação do cuidado. 
De modo geral, pode-se afirmar que a maioria dos capítulos privile-
giam casos clínicos, seja de condução de grupos ou cuidado de pacientes
ou famílias. Assim, embora casos institucionais tenham sido apresentados
como uma opção na Formação e na proposta do livro, os relatos carecem
de discussões específicas e diretas envolvendo os percalços e os avanços
da interação entre as equipes de referência e NASF. Talvez isso se deva à
familiaridade dos profissionais em relação à clínica ou à percepção de mu-
danças e aos melhores resultados nessa modalidade de atuação, que os per-
mitiria mais autonomia. De todo o modo, a análise do papel do NASF com
base em relatos de casos aqui empreendidos, ocorreu a partir da leitura nas
entrelinhas e na inferência de sentidos ainda não totalmente explicitados.
Dito isto, merece destaque nos casos a forma como as equipes de
Apoio e as equipes apoiadas, de modo geral, protagonizam de forma sepa-
rada todo o processo de intervenção nas situações elencadas. Nota-se, em
alguns relatos, que a equipe de Apoio não é citada e não participa do pro-
cesso de reflexão e intervenção e, tampouco é vista como fazendo parte da
equipe multiprofissional. Em outras situações, ela aparece, mas com pouco
protagonismo, sem muita clareza do seu papel. Há também situações em
que o NASF centraliza as intervenções, e a Equipe de Saúde da Família pou-
co aparece como corresponsável na construção dos caminhos do cuidado.
O apagamento de uma equipe em relação à outra é mútuo. E o que isso nos
mostra? Indicam quão desafiadoras são a integração e a articulação de uma
equipe de Apoio como o NASF com as Equipes de Saúde da Família; a cor-
responsabilidade pelos casos e grupos na APS se torna, como evidenciado,
uma grande questão.
As dificuldades dessa articulação decorrem, eminentemente, dos
impasses ainda existentes para que estas equipes se constituam como um
coletivo para a produção de saúde (Campos, 2000). O Apoio Matricial pro-
põe, em seu fundamento, que a clínica, para que possa ser interdisciplinar,
esteja alicerçada na democracia e Cogestão. O que significa dizer que todos
os participantes, incluindo os usuários, devem ser ativos e participativos
no processo, coletivamente deliberando, construindo pactuações e enca-

366 • Apêndice
minhamentos. Isso pode parecer uma tarefa fácil, mas o cotidiano, como
evidenciado pelos casos, nos mostra que não é. 
Construir e efetivar propostas de cunho democrático são um desafio
não apenas para o trabalho do NASF, mas para o SUS de modo geral, bem
como para a vida e a relação em sociedade. A democracia é algo a se ter
no horizonte, algo a ser perseguido. Envolve uma série de fatores que vão
desde o momento histórico e cultural, até singularidades dos sujeitos en-
volvidos com a sua história de vida, seus valores, enfim, sua subjetividade. 
Desse modo, para se produzir um coletivo que tenha como horizonte
operar democraticamente, há que se considerar uma série de fatores. Nessa
perspectiva, modelos de gestão verticais e autoritários são obstáculos para
a constituição das equipes. Tais modelos operam a partir da disciplina e do
controle dos trabalhadores. Organizam em sua estrutura uma separação
entre quem planeja (gestão) e quem opera a política, produzindo aliena-
ção e redução de autonomia, espontaneidade e criatividade do trabalhador
(Campos, 2000; Terra, 2018). Democracia e Cogestão em todos os níveis,
da gestão do sistema até a gestão dos serviços de saúde, caminham em sin-
cronicidade com o Apoio Matricial, fortalecendo a proposta. No entanto,
sabemos que não é usual encontrar propostas de gestão nessa perspectiva.
De modo que, de maneira contra-hegemônica e mesmo diante das dificul-
dades citadas, o Método Paideia aposta na dialética e compreende que o su-
jeito não é determinado pelo seu contexto e tem autonomia para construir
espaços de resistência em busca de democracia. Para isso, precisa refletir e
analisar sobre si mesmo, sobre as relações e sobre esse contexto. 
E como trazer a democracia e a Cogestão para fortalecer o trabalho
do NASF e poder superar a desarticulação entre as equipes? 
Os profissionais do NASF, de forma geral, junto com as Equipes de
Saúde da Família, têm construído o seu processo de trabalho tendo como
base seu conhecimento técnico. Se temos como princípio que a inserção
desses especialistas na Atenção Primária ocorre pelo saber que possuem,
essa dimensão é de fato fundamental, mas, isolada, não garante a efetivi-
dade na articulação entre as equipes. É preciso que os profissionais possam
articular, além da técnica, a subjetividade e a dimensão da política para
construção conjunta do processo de trabalho.
Existe um esvaziamento da subjetividade e da política no trabalho
cotidiano das equipes. A subjetividade tem sido considerada, em nossa so-
ciedade neoliberal, como algo pessoal, do âmbito do privado, e não algo
que deva circular no coletivo. Porém, a subjetividade atravessa o trabalho
cotidiano dos profissionais da APS, desde as relações que estabelecemos,
seja com os nossos colegas de trabalho, seja com os nossos pacientes, e

Apêndice • 367
interfere na produção de cuidado. Da mesma forma, pouco manejamos a
dimensão política, enfraquecendo o processo de contratualidade entre as
equipes. As relações de poder percorrem o cotidiano sob várias formas,
que precisam ser desveladas e discutidas a fim de se construir negociações
e pactuações, que muitas vezes não significa chegar a um consenso (Anéas,
2018; Gutiérrez, 2014). 
No Brasil, a instiuição da equipe NASF foi de ordem burocrática e
teve como base recursos e financiamento do governo federal para os muni-
cípios que fizeram a adesão. Contratar os profissionais e alocá-los nas Uni-
dades como equipe NASF não faz que, magicamente, consigam construir
o trabalho na perspectiva do Apoio Matricial. É necessário investimento
constante para a construção dessa lógica de trabalho, como forma de forta-
lecer as dimensões já mencionadas.
Para além das questões estruturais, de condição de trabalho e finan-
ciamento adequados, algumas estratégias podem ser utilizadas com essa
finalidade. Destacam-se o Apoio Institucional, a Educação Permanente e
a Supervisão Clínica Institucional. Esses dispositivos confluem no objeti-
vo de garantir e estimular que as equipes, de Apoio e de Referência, pos-
sam refletir sobre a prática, nomear os conflitos e tensionamentos e buscar
formas de manejá-los no cotidiano. Seria uma estratégia para trabalhar o
saber dos profissionais em conjunto com a subjetividade e com a política.
É importante que sejam disponibilizados recursos para que as equi-
pes NASF se reinventem periodicamente, tendo em vista as necessidades
das equipes e do território que apoiam. O fortalecimento do NASF e das
demais possibilidades de realização do Apoio Matricial, que inclui a orga-
nização do Apoio a partir de serviços da Atenção Secundária e Terciária,
torna-se premente no atual contexto político do país, como forma de asse-
gurar e reforçar a proposta da Cogestão e da participação social. Propostas
que têm passado por constantes desmontes. 
Não se devem negar os desafios para a efetivação do trabalho do
NASF no Brasil. Desafios esses que não se destacam de todo o conjunto de
desafios existentes na Atenção Primária e outros pontos do sistema. 
Fortalecer o NASF é resistir! É resistir por uma Atenção Primária
abrangente, com a participação de profissionais e da população em defesa
do SUS, com a coconstrução de coletivos potentes, organizados para o tra-
balho, para o cuidado e para o exercício da cidadania.

368 • Apêndice
Referências

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UNICAMP, 2018.
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NASF. Portaria GM/MS n.o 154. Janeiro 24, 2008.
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Família. Cadernos de Atenção Básica DAB/SAS/MS. Brasília: Editora do
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BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de
Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, 2012. (Série
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BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de
Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Cadernos de Atenção
Básica, n.o 39. Brasília, 2014.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n.º 2.436, de 21 de setembro de 2017.
Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de
diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema
Único de Saúde (SUS). Brasília: Diário Oficial da União, 2017.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n.º 2.979, de 12 de novembro de 2019.
Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece o novo modelo de finan-
ciamento de custeio da Atenção Primária à Saúde no âmbito do SUS, por
meio da alteração da Portaria de Consolidação n.o 6/GM/MS de 28/9/17.
Brasília: Diário Oficial da União, 2019.
CAMPOS, G. W. S. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constitui-
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método da roda. 1.ª ed. São Paulo: Hucitec, 2000.
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Apêndice • 369
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2007.

370 • Apêndice
TÍTULOS PUBLICADOS NA COLEÇÃO “SAÚDE EM DEBATE”ATÉ DEZEMBRO DE 2017
Saúde e Assistência Médica no Brasil, Carlos Gentile de Mello
Ensaios Médico-Sociais, Samuel Pessoa
Medicina e Política, Giovanni Berlinguer
O Sistema de Saúde em Crise, Carlos Gentile de Mello
Saúde e Previdência: Estudos de Política Social, José Carlos de Souza Braga & Sérgio Góes de Paula
Saúde nas Fábricas, Giovanni Berlinguer
Ecologia: Capital, Trabalho e Ambiente, Laura Conti
Ambiente de Trabalho: a Luta dos Trabalhadores Pela Saúde, Ivar Oddone et al
Saúde Para Todos: um Desafio ao Município — a Resposta de Bauru, David Capistrano Filho (org.)
Os Médicos e a Política de Saúde, Gastão Wagner de Sousa Campos
Epidemiologia da Desigualdade, César G. Victora, Fernando C. de Barros & Patrick Vaughan
Saúde e Nutrição das Crianças de São Paulo, Carlos Augusto Monteiro
Saúde do Trabalhador, Aparecida Linhares Pimenta & David Capistrano Filho
A Doença, Giovanni Berlinguer
Reforma Sanitária: Itália e Brasil, Giovanni Berlinguer, Sônia M. Fleury Teixeira & Gastão Wagner de Sousa Campos
Educação Popular nos Serviços de Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos
Processo de Produção e Saúde, Asa Cristina Laurell & Mariano Noriega
Trabalho em Turnos e Noturno, Joseph Rutenfranz, Peter Knauth & Frida Marina Fischer
Programa de Saúde dos Trabalhadores (a Experiência da Zona Norte: Uma Alternativa em Saúde Pública), Danilo Fernandes Costa,
José Carlos do Carmo, Maria Maeno Settimi & Ubiratan de Paula Santos
A Saúde das Cidades, Rita Esmanhoto & Nizan Pereira Almeida
Saúde e Trabalho. A Crise da Previdência Social, Cristina Possas
Saúde Não se Dá, Conquista-se, Demócrito Moura
Planejamento sem Normas, Gastão Wagner de Souza Campos, Emerson Elias Merhy & Everardo Duarte Nunes
Epidemiologia e Sociedade. Heterogeneidade Estrutural e Saúde no Brasil, Cristina Possas
Tópicos de Saúde do Trabalhador, Frida Marina Fischer, Jorge da Rocha Gomes & Sérgio Colacioppo
Epidemiologia do Medicamento. Princípios Gerais, Joan-Ramon Laporte et al.
Educação Médica e Capitalismo, Lilia Blima Schraiber
SaúdeLoucura 1, Antonio Lancetti et al.
Desinstitucionalização, Franco Rotelli et al.
Programação em Saúde Hoje, Lilia Blima Schraiber (org.)
SaúdeLoucura 2, Félix Guatarri, Gilles Deleuze et al.
Epidemiologia: Teoria e Objeto, Dina Czeresnia Costa (org.)
Sobre a Maneira de Transmissão do Cólera, John Snow
Hospital, Dor e Morte Como Ofício, Ana Pitta
A Multiplicação Dramática, Hernán Kesselman & Eduardo Pavlovsky
Cinco Lições Sobre a Transferência, Gregorio Baremblitt
A Saúde Pública e a Defesa da Vida, Gastão Wagner de Sousa Campos
Epidemiologia da Saúde Infantil, Fernando C. Barros & Cesar G. Victora
Juqueri, o Espinho Adormecido, Evelin Naked de Castro Sá & Cid Roberto Bertozzo Pimentel
O Marketing da Fertilidade, Yvan Wolffers et al.
Lacantroças, Gregorio Baremblitt
Terapia Ocupacional: Lógica do Trabalho ou do Capital? Lea Beatriz Teixeira Soares
Minhas Pulgas, Giovanni Berlinguer
Mulheres: Sanitaristas de Pés Descalços, Nelsina Mello de Oliveira Dias
Epidemiologia — Economia, Política e Saúde, Jaime Breilh
O Desafio do Conhecimento, Maria Cecília de Souza Minayo
SaúdeLoucura 3, Herbert Daniel et al.
Saúde, Ambiente e Desenvolvimento, Maria do Carmo Leal et al.
Promovendo a Eqüidade: um Novo Enfoque com Base no Setor da Saúde, Emanuel de Kadt & Renato Tasca
A Saúde Pública Como Política, Emerson Elias Merhy
Sistema Único de Saúde, Guido Ivan de Carvalho & Lenir Santos
Reforma da Reforma, Gastão Wagner S. Campos
O Município e a Saúde, Luiza S. Heimann et al.
Epidemiologia Para Municípios, J. P. Vaughan
Distrito Sanitário, Eugênio Vilaça Mendes
Psicologia e Saúde, Florianita Braga Campos (org.)
Questões de Vida: Ética, Ciência, Saúde, Giovanni Berlinguer
Saúde Mental e Cidadania no Contexto dos Sistemas Locais de Saúde, Maria E. X. Kalil (org.)
Mario Tommasini: Vida e Feitos de um Democrata Radical, Franca Ongaro Basaglia
Saúde Mental no Hospital Geral: Espaço Para o Psíquico, Neury J. Botega & Paulo Dalgalarrondo
O Médico e seu Trabalho: Limites da Liberdade, Lilia Blima Schraiber
O Limite da Exclusão Social. Meninos e Meninas de Rua no Brasil, Maria Cecília de Souza Minayo
Saúde e Trabalho no Sistema Único do Sus, Neiry Primo Alessi et al.
Ruído: Riscos e Prevenção, Ubiratan de Paula Santos (org.)
Informações em Saúde: da Prática Fragmentada ao Exercício da Cidadania, Ilara Hammerty Sozzi de Moraes
Saúde Loucura 4, Gregorio Baremblitt et al
Odontologia e Saúde Bucal Coletiva, Paulo Capel Narvai
Manual de Saúde Mental, Benedetto Saraceno et al.
Assistência Pré-Natal: Prática de Saúde a Serviço da Vida, Maria Inês Nogueira
Saber Preparar Uma Pesquisa, André-Pierre Contandriopoulos et al.
Pensamento Estratégico e Lógica da Programação, Mario Testa
Os Estados Brasileiros e o Direito à Saúde, Sueli G. Dallari
Inventando a Mudança na Saúde, Luiz Carlos de Oliveira Cecílio et al.
Uma História da Saúde Pública, George Rosen
Drogas e Aids, Fábio Mesquita & Francisco Inácio Bastos
Tecnologia e Organização Social das Práticas de Saúde, Ricardo Bruno Mendes Gonçalves
Epidemiologia e Emancipação, José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres
Razão e Planejamento, Edmundo Gallo, Ricardo Bruno Mendes Gonçalves & Emerson Elias Merhy
Os Muitos Brasis: Saúde e População na Década de 80, Maria Cecília de Souza Minayo (org.)
Da Saúde e das Cidades, David Capistrano Filho
Sistemas de Saúde: Continuidades e Mudanças, Paulo Marchiori Buss & María Eliana Labra
Aids: Ética, Medicina e Tecnologia, Dina Czeresnia et al.
Aids: Pesquisa Social e Educação, Dina Czeresnia et al.
Maternidade: Dilema entre Nascimento e Morte, Ana Cristina d’Andretta Tanaka
Construindo Distritos Sanitários. A Experiência da Cooperação Italiana no Município de São Paulo, Carmen Fontes Teixeira &
Cristina Melo (orgs.)
Memórias da Saúde Pública: a Fotografia como Testemunha, Maria da Penha C. Vasconcellos (coord.)
Medicamentos, Drogas e Saúde, E. A. Carlini
Indústria Farmacêutica, Estado e Sociedade, Jorge Antonio Zepeda Bermudez
Propaganda de Medicamentos: Atentado à Saúde? José Augusto Cabral de Barros
Relação Ensino/Serviços: Dez Anos de Integração Docente Assistencial (IDA) no Brasil, Regina Giffoni Marsiglia
Velhos e Novos Males da Saúde no Brasil, Carlos Augusto Monteiro (org.)
Dilemas e Desafios das Ciências Sociais na Saúde Coletiva, Ana Maria Canesqui
O “Mito” da Atividade Física e Saúde, Yara Maria de Carvalho
Saúde & Comunicação: Visibilidades e Silêncios, Aurea M. da Rocha Pitta
Profissionalização e Conhecimento: a Nutrição em Questão, Maria Lúcia Magalhães Bosi
Saúde do Adulto: Programas e Ações na Unidade Básica, Lilia Blima Schraiber, Maria Ines Baptistela Nemes & Ricardo Bruno
Mendes-Gonçalves (orgs.)
Nutrição, Trabalho e Sociedade, Solange Veloso Viana
Uma Agenda para a Saúde, Eugênio Vilaça Mendes
A Construção da Política Nacional de Medicamentos, José Ruben de Alcântara Bonfim & Vera Lúcia Mercucci (orgs.)
Ética da Saúde, Giovanni Berlinguer
A Construção do SUS a Partir do Município: Etapas para a Municipalização Plena da Saúde, Silvio Fernandes da Silva
Reabilitação Psicossocial no Brasil, Ana Pitta (org.)
SaúdeLoucura 5, Gregorio Baremblitt (org.)
SaúdeLoucura 6, Eduardo Passos Guimarães (org.)
Assistência Social e Cidadania, Antonio Lancetti (org.)
Sobre o Risco: Para Compreender a Epidemiologia, José Ricardo de Mesquita Aires
Ciências Sociais e Saúde, Ana Maria Canesqui (org.)
Agir em Saúde, Emerson Elias Merhy & Rosana Onocko (orgs.)
Contra a Maré à Beira-Mar, Florianita Braga Campos & Cláudio Maierovitch
Princípios Para Uma Clínica Antimanicomial, Ana Marta Lobosque
Modelos Tecnoassistenciais em Saúde: o Debate no Campo da Saúde Coletiva, Aluísio G. da Silva Junior
Políticas Públicas, Justiça Distributiva e Inovação: Saúde e Saneamento na Agenda Social, Nilson do Rosário Costa
A Era do Saneamento: as Bases da Política de Saúde Pública no Brasil, Gilberto Hochman
O Adulto Brasileiro e as Doenças da Modernidade: Epidemiologia das Doenças Crônicas Não-Transmissíveis, Ines Lessa (org.)
Malária e Seu Controle, Rita Barradas Barata
O Dengue no Espaço Habitado, Maria Rita de Camargo Donalisio
A Organização da Saúde no Nível Local, Eugênio Vilaça Mendes (org.)
Trabalho e Saúde na Aviação: a Experiência entre o Invisível e o Risco, Alice Itani
Mudanças na Educação Médica e Residência Médica no Brasil, Laura Feuerwerker
A Evolução da Doença de Chagas no Estado de São Paulo, Luis Jacintho da Silva
Malária em São Paulo: Epidemiologia e História, Marina Ruiz de Matos
Civilização e Doença, Henry Sigerist
Medicamentos e a Reforma do Setor Saúde, Jorge Antonio Zepeda Bermudez & José Ruben de Alcântara Bonfim (orgs.)
A Mulher, a Sexualidade e o Trabalho, Eleonora Menicucci de Oliveira
Saúde Sexual e Reprodutiva no Brasil, Loren Galvão & Juan Díaz (orgs.)
A Educação dos Profissionais de Saúde da América Latina (Teoria e Prática de um Movimento de Mudança) — Tomo 1 “Um Olhar
Analítico” — Tomo 2 “As Vozes dos Protagonistas”, Marcio Almeida, Laura Feuerwerker & Manuel Llanos C. (orgs.)
Vigilância Sanitária: Proteção e Defesa da Saúde, Ediná Alves Costa
Sobre a Sociologia da Saúde. Origens e Desenvolvimento, Everardo Duarte Nunes
Ciências Sociais e Saúde para o Ensino Médico, Ana Maria Canesqui (org.)
Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família, Eymard Mourão Vasconcelos
Um Método Para Análise e Co-Gestão de Coletivos, Gastão Wagner de Sousa Campos
A Ciência da Saúde, Naomar de Almeida Filho
A Voz do Dono e o Dono da Voz: Saúde e Cidadania no Cotidiano Fabril, José Carlos “Cacau” Lopes
Da Arte Dentária, Carlos Botazzo
Saúde e Humanização: a Experiência de Chapecó, Aparecida Linhares Pimenta (org.)
Consumo de Drogas: Desafios e Perspectivas, Fábio Mesquita & Sérgio Seibel
SaúdeLoucura 7, Antonio Lancetti (org.)
Ampliar o Possível: a Política de Saúde do Brasil, José Serra
SUS Passo a Passo: Normas, Gestão e Financiamento, Luiz Odorico Monteiro de Andrade
A Saúde nas Palavras e nos Gestos: Reflexões da Rede Educação Popular e Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos (org.)
Municipalização da Saúde e Poder Local: Sujeitos, Atores e Políticas, Silvio Fernandes da Silva
A Cor-Agem do PSF, Maria Fátima de Souza
Agentes Comunitários de Saúde: Choque de Povo, Maria Fátima de Souza
A Reforma Psiquiátrica no Cotidiano, Angelina Harari & Willians Valentini (orgs.)
Saúde: Cartografia do Trabalho Vivo, Emerson Elias Merhy
Além do Discurso de Mudança na Educação Médica: Processos e Resultados, Laura Feuerwerker
Tendências de Mudanças na Formação Médica no Brasil: Tipologia das Escolas, Jadete Barbosa Lampert
Os Sinais Vermelhos do PSF, Maria Fátima de Sousa (org.)
O Planejamento no Labirinto: Uma Viagem Hermenêutica, Rosana Onocko Campos
Saúde Paideia, Gastão Wagner de Sousa Campos
Biomedicina, Saber & Ciência: Uma Abordagem Crítica, Kenneth R. de Camargo Jr.
Epidemiologia nos Municípios: Muito Além das Normas, Marcos Drumond Júnior
A Psicoterapia Institucional e o Clube dos Saberes, Arthur Hyppólito de Moura
Epidemiologia Social: Compreensão e Crítica, Djalma Agripino de Melo Filho
O Trabalho em Saúde: Olhando e Experienciando o SUS no Cotidiano, Emerson Elias Merhy et al.
Natural, Racional Social: Razão Médica e Racionalidade Científica, Madel T. Luz
Acolher Chapecó: Uma Experiência de Mudança do Modelo Assistencial, com Base no Processo de Trabalho, Túlio Batista Franco et al.
Educação Médica em Transformação: Instrumentos para a Construção de Novas Realidades, João José Neves Marins
Proteção Social. Dilemas e Desafios, Ana Luiza d’Ávila Viana, Paulo Eduardo M. Elias & Nelson Ibañez (orgs.)
O Público e o Privado na Saúde, Luiza Sterman Heimann, Lauro Cesar Ibanhes & Renato Barbosa (orgs.)
O Currículo Integrado do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina: do Sonho à Realidade, Maria Solange Gomes
Dellaroza & Marli Terezinha Oliveira Vanucchi (orgs.)
A Construção da Clínica Ampliada na Atenção Básica, Gustavo Tenório Cunha
Saúde Coletiva e Promoção da Saúde: Sujeito e Mudança, Sérgio Resende Carvalho
Saúde e Desenvolvimento Local, Marco Akerman
Saúde do Trabalhador no SUS: Aprender com o Passado, Trabalhar o Presente e Construir o Futuro, Maria Maeno & José Carlos do
Carmo
A Espiritualidade do Trabalho em Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos (org.)
Saúde Todo Dia: Uma Construção Coletiva, Rogério Carvalho Santos
As Duas Faces da Montanha: Estudos sobre Medicina Chinesa e Acupuntura, Marilene Cabral do Nascimento
Perplexidade na Universidade: Vivências nos Cursos de Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos, Lia Haikal Frota & Eduardo Simon
Tratado de Saúde Coletiva, Gastão Wagner de Sousa Campos, Maria Cecília de Souza Minayo, Marco Akerman, Marcos Drumond
Jr. & Yara Maria de Carvalho (orgs.)
Entre Arte e Ciência: Fundamentos Hermenêuticos da Medicina Homeopática, Paulo Rosenbaum
A Saúde e o Dilema da Intersetorialidade, Luiz Odorico Monteiro de Andrade
Olhares Socioantropológicos Sobre os Adoecidos Crônicos, Ana Maria Canesqui (org.)
Na Boca do Rádio: o Radialista e as Políticas Públicas, Ana Luísa Zaniboni Gomes
SUS: Ressignificando a Promoção da Saúde, Adriana Castro & Miguel Malo (orgs.)
SUS: Pacto Federativo e Gestão Pública, Vânia Barbosa do Nascimento
Memórias de um Médico Sanitarista que Virou Professor Enquanto Escrevia Sobre..., Gastão Wagner de Sousa Campos
Saúde da Família, Saúde da Criança: a Resposta de Sobral, Anamaria Cavalcante Silva
A Construção da Medicina Integrativa: um Desafio para o Campo da Saúde, Nelson Filice de Barros
O Projeto Terapêutico e a Mudança nos Modos de Produzir Saúde, Gustavo Nunes de Oliveira
As Dimensões da Saúde: Inquérito Populacional em Campinas, SP, Marilisa Berti de Azevedo Barros, Chester Luiz Galvão César,
Luana Carandina & Moisés Goldbaum (orgs.)
Avaliar para Compreender: Uma Experiência na Gestão de Programa Social com Jovens em Osasco, SP, Juan Carlos Aneiros Fernan-
dez, Marisa Campos & Dulce Helena Cazzuni (orgs.)
O Médico e Suas Interações: Confiança em Crise, Lília Blima Schraiber
Ética nas Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais na Saúde, Iara Coelho Zito Guerriero, Maria Luisa Sandoval Schmidt & Fabio
Zicker (orgs.)
Homeopatia, Universidade e SUS: Resistências e Aproximações, Sandra Abrahão Chaim Salles
Manual de Práticas de Atenção Básica: Saúde Ampliada e Compartilhada, Gastão Wagner de Sousa Campos & André Vinicius Pires
Guerrero (orgs.)
Saúde Comunitária: Pensar e Fazer, Cezar Wagner de Lima Góis
Pesquisa Avaliativa em Saúde Mental: Desenho Participativo e Efeitos da Narratividade, Rosana Onocko Campos, Juarez Pereira
Furtado, Eduardo Passos & Regina Benevides
Saúde, Desenvolvimento e Território, Ana Luiza d’Ávila Viana, Nelson Ibañez & Paulo Eduardo Mangeon Elias (orgs.)
Educação e Saúde, Ana Luiza d’Ávila Viana & Célia Regina Pierantoni (orgs.)
Direito à Saúde: Discursos e Práticas na Construção do SUS, Solange L’Abbate
Infância e Saúde: Perspectivas Históricas, André Mota e Lilia Blima Schraiber (orgs.)
Conexões: Saúde Coletiva e Políticas de Subjetividade, Sérgio Resende Carvalho, Sabrina Ferigato, Maria Elisabeth Barros (orgs.)
Medicina e Sociedade, Cecília Donnangelo
Sujeitos, Saberes e Estruturas: uma Introdução ao Enfoque Relacional no Estudo da Saúde Coletiva, Eduardo L. Menéndez
Saúde e Sociedade: o Médico e seu Mercado de Trabalho, Cecília Donnangelo & Luiz Pereira
A Produção Subjetiva do Cuidado: Cartografias da Estratégia Saúde da Família, Tulio Batista Franco, Cristina Setenta Andrade &
Vitória Solange Coelho Ferreira (orgs.)
Medicalização Social e Atenção à Saúde no SUS, Charles D. Tesser (org.)
Saúde e História, Luiz Antonio de Castro Santos & Lina Faria
Violência e Juventude, Marcia Faria Westphal & Cynthia Rachid Bydlowski
Walter Sidney Pereira Leser: das Análises Clínicas à Medicina Preventiva e à Saúde Pública, José Ruben de Alcântara Bonfim &
Silvia Bastos (orgs.)
Atenção em Saúde Mental para Crianças e Adolescentes no SUS, Edith Lauridsen-Ribeiro & Oswaldo Yoshimi Tanaka (orgs.)
Dilemas e Desafios da Gestão Municipal do SUS: Avaliação da Implantação do Sistema Municipal de Saúde em Vitória da Conquista
(Bahia) 1997-2008, Jorge José Santos Pereira Solla
Semiótica, Afecção e o Trabalho em Saúde, Túlio Batista Franco & Valéria do Carmo Ramos
Adoecimento Crônico Infantil: um estudo das narrativas familiares, Marcelo Castellanos
Poder, Autonomia e Responsabilização: Promoção da Saúde em Espaços Sociais da Vida Cotidiana, Kênia Lara Silva & Roseli Ro-
sângela de Sena
Política e Gestão Pública em Saúde, Nelson Ibañez, Paulo Eduardo Mangeon Elias & Paulo Henrique D’Angelo Seixas (orgs.)
Educação Popular na Formação Universitária: Reflexões com Base em uma Experiência, Eymard Mourão Vasconcelos & Pedro José
Santos Carneiro Cruz (orgs.)
O Ensino das Práticas Integrativas e Complementares: Experiências e Percepções, Nelson Filice de Barros, Pamela Siegel & Márcia
Aparecida Padovan Otani (orgs.)
Saúde Suplementar, Biopolítica e Promoção da Saúde, Carlos Dimas Martins Ribeiro, Túlio Batista Franco, Aluisio Gomes da Silva
Júnior, Rita de Cássia Duarte Lima, Cristina Setenta Andrade (orgs.)
Promoção da Saúde: Práticas Grupais na Estratégia Saúde da Família, João Leite Ferreira Neto & Luciana Kind
Capitalismo e Saúde no Brasil nos anos 90: as Propostas do Banco Mundial e o Desmonte do SUS, Maria Lucia Frizon Rizzotto
Masculino e Feminino: a Primeira Vez. A Análise de Gênero sobre a Sexualidade na Adolescência, Silmara Conchão
Educação Médica: Gestão, Cuidado, Avaliação, João José Neves Marins & Sergio Rego (orgs.)
Retratos da Formação Médica nos Novos Cenários de Prática, Maria Inês Nogueira
Saúde da Mulher na Diversidade do Cuidado na Atenção Básica, Raimunda Magalhães da Silva, Luiza Jane Eyre de Souza Vieira,
Patrícia Moreira Costa Collares (orgs.)
Cuidados da Doença Crônica na Atenção Primária de Saúde, Nelson Filice de Barros (org.)
Tempos Turbulentos na Saúde Pública Brasileira: Impasses do Financiamento no Capitalismo Financeirizado, Áquilas Mendes
A Melhoria Rápida da Qualidade nas Organizações de Saúde, Georges Maguerez
Saúde, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação, Ana Luiza d’Ávila Viana, Aylene Bousquat & Nelson Ibañez
Tecendo Redes: os Planos de Educação, Cuidado e Gestão na Construção do SUS. A Experiência de Volta Redonda (RJ), Suely Pinto,
Túlio Batista Franco, Marta Gama de Magalhães, Paulo Eduardo Xavier Mendonça, Angela Guidoreni, Kathleen Tereza da
Cruz & Emerson Elias Merhy (orgs.)
Coquetel. A Incrível História dos Antirretrovirais e do Tratamento da Aids no Brasil, Mário Scheffer
Psicanálise e Saúde Coletiva: Interfaces, Rosana Onocko Campos
A Medicina da Alma: Artes do Viver e Discursos Terapêuticos, Paulo Henrique Fernandes Silveira
Clínica Comum: Itinerários de uma Formação em Saúde (orgs.), Angela Aparecida Capozzolo, Sidnei José Casetto & Alexandre de
Oliveira Henz
Práxis e e Formação Paideia: apoio e cogestão em saúde, Gastão Wagner de Sousa Campos, Gustavo Tenório Cunha & Mariana
Dorsa Figueiredo (orgs.)
Intercâmbio Solidário de Saberes e Práticas de Saúde: Racionalidades Médicas e Práticas Integrativas e Complementares, Marilene
Cabral do Nascimento & Maria Inês Nogueira (orgs.)
Depois da Reforma: Contribuição para a Crítica da Saúde Coletiva, Giovanni Gurgel Aciole
Diálogos sobre a Boca, Carlos Botazzo
Violência e Saúde na diversidade dos escritos acadêmicos, Luiza Jane Eyre de Souza Vieira, Raimunda Magalhães da Silva & Samira
Valentim Gama Lira
Trabalho, Produção do Cuidado e Subjetividade em Saúde: Textos Reunidos, Túlio Batista Franco & Emerson Elias Merhy
Adoecimentos e Sofrimentos de Longa Duração, Ana Maria Canesqui (org.)
Os Hospitais no Brasil, Ivan Coelho
As Bases do Raciocínio Médico, Fernando Queiroz Monte
A Saúde entre os Negócios e a Questão Social: Privatização, Modernização e Segregação na Ditadura Civil—Militar (1964-1985),
Felipe Monte Cardoso
Descentralização e Política de Saúde: Origens, Contexto e Alcance da Descentralização, Ana Luiza d’Ávila Viana Análise Institucional e
Saúde Coletiva no Brasil, Solange L’Abbate, Lucia Cardoso Mourão & Luciane Maria Pezzato (orgs.)
Por uma Crítica da Promoção da Saúde: Contradições e Potencialidades no Contexto do SUS, Kathleen Elane Leal Vasconcelos &
Maria Dalva Horácio da Costa (orgs.)
Fisioterapia e Saúde Coletiva: Reflexões, Fundamentos e Desafios, José Patrício Bispo Júnior (org.)
Educação Popular na Universidade: Reflexões e Vivências da Articulação Nacional de Extensão Popular (Anepop), Pedro José Santos
Carneiro Cruz, Marcos Oliveira Dias Vasconcelos, Fernanda Isabela Gondim Sarmento, Murilo Leandro Marcos & Eymard
Mourão Vasconcelos (orgs.)
Regiões de Saúde: Diversidade e Processo de Regionalização em Mato Grosso, João Henrique Scatena, Ruth Terezinha Kehrig &
Maria Angélica dos Santos Spinelli (orgs.)
Avaliação de Projetos na Lógica da Promoção da Saúde na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Juan Carlos Aneiros Fernan-
dez & Marco Antonio de Moraes (orgs.)
As Ciências Sociais na Educação Médica, Nelson Filice de Barros
Os Mapas do Cuidado: o Agir Leigo na Saúde, Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Graça Carapinheiros & Rosemarie Andreazza (orgs.)
Saúde que Funciona: a Estratégia Saúde da Família no Extremo Sul do Município de São Paulo, Davi Rumel & Adélia Aparecida
Marçal dos Santos (eds.)
A reformulação da clínica e a gestão na saúde: subjetividade, política e invenção de práticas, Bernadete Perêz Coelho
Saberes e práticas na Atenção Primária à Saúde: Cuidado à População em Situação de Rua e Usuários de Álcool, Crack e Outras
Drogas, Mirna Teixeira & Zilma Fonseca (orgs.)
Velhos e Novos Males da Saúde no Brasil: de Geisel a Dilma, Carlos Augusto Monteiro & Renata Bertazzi Levy (orgs.)
Saúde e Utopia: o Cebes e a Reforma Sanitária Brasileira (1976-1986), Daniela Carvalho Sophia
Lutas Sociais e Construção do SUS: o Movimento de Saúde da Zona Leste e a Conquista da Participação Popular, João Palma
Uma ou Várias? IdentidadeS para o Sanitarista!, Allan Gomes de Lorena & Marco Akerman
O CAPSI e o desafio da Gestão em Rede, Edith Lauridsen-Ribeiro & Cristiana Beatrice Lykouropoulos (orgs.)
Rede de pesquisa em Manguinhos: sociedade, gestores e pesquisadores em conexão com o SUS, Isabela Soares Santos & Roberta
Argento Goldstein (orgs.)
Saúde e Atenção Psicossocial nas Prisões: um olhar sobre os Sistema Prisional Brasileiro com base em um estudo em Santa Catarina,
Walter Ferreira de Oliveira & Fernando Balvedi Damas
Reconhecer o Patrimônio da Reforma Rsiquiátrica: o que queremos reformar hoje? I Mostra de Práticas em Saúde Mental, Gastão
Wagner de Sousa Campos & Juliana Azevedo Fernandes (orgs.)
Envelhecimento: um Olhar Interdisciplinar, Lina Faria, Luciana Karen Calábria & Waneska Alexandra Alves (orgs.)
Caminhos da Vigilância Sanitária Brasileira: Proteger, Viagiar, Regular, Ana Figueiredo
Formação e Educação Permanente em Saúde: Processos e Produtos no Âmbito do Mestrado Profissional, Mônica Villela Gouvêa,
Ândrea Carsoso de Souza, Gisella de Carvalho Queluci, Cláudia Mara de Melo Tavares (orgs.)
Políticas, Tecnologias e Práticas em Promoção da Saúde, Glória Lúcia Alves Figueiredo & Carlos Henrique Gomes Martins (orgs.)
Políticas e Riscos Sociais no Brasil e na Europa: Convergências e Divergências, Isabela Soares Santos & Paulo Henrique de Almeida
Rodrigues (orgs.)
Investigação sobre Cogestão, Apoio Institucional e Apoio Matricial no SUS, Gastão Wagner de Sousa Campos, Juliana Azevedo
Fernandes, Cristiane Pereira de Castro & Tatiana de Vasconcellos Anéas (orgs.)
O Apoio Paideia e Suas Rodas: Reflexões sobre Práticas em Saúde, Gastão Wagner de Sousa Campos, Mariana Dorsa Figueiredo &
Mônica Martins de Oliveira (orgs.)
Trabalhar no SUS: gestão do trabalho, repercussões psicossociais e política de proteção à saúde, Francisco Antonio de Castro Lacaz,
Patrícia Martins Goulart, Virginia Junqueira
Práticas e saberes no hospital contemporâneo: o novo normal, Daniel Gomes Monteiro Beltrammi & Viviane Moreira de Camargo
(orgs.)
Corpo e pensamento: espaços e tempos de afirmação da vida na sua potência criadora, Valéria do Carmos Ramos, Maximus Taveira
Santiago & Paula Cristina Pereira (orgs.)
História da saúde no Brasil, Luiz Antonio Teixeira, Tânia Salgado Pimenta & Gilberto Hochman (orgs.)
Exploração sexual de crianças e adolescentes: interpretações plurais e modos de enfrentamento, Suely Ferreira Deslandes & Patrícia
Constantino (orgs.)
Educação popular em saúde: desafios atuais, Pedro José Santos Carneiro Cruz (org.)
Educação popular no Sistema Único de Saúde, Bruno Oliveira de Botelho, Eymard Mourão Vasconcelos, Daniela Gomes de Brito
Carneiro, Ernande Valentin do Prado & Pedro José Santos Carneiro Cruz (orgs.)
Formação e educação permanente em saúde: processos e produtos no âmbito do Mestrado Profissional, volume 2, Lucia Cardoso
Mourão, Ana Clementina Vieira de Almeida, Marcos Paulo Fonseca Corvino, Elaine Antunes Cortez & Rose Mary Costa Rosa
Andrade Silva (orgs.)
História, saúde coletiva e medicina: questões teórico-metodológicas, André Mota e Maria Cristina da Costa Marques (orgs.)
O médico alienado: reflexões sobre a alienação do trabalho na atenção primária à saúde, Lilian Terra
Estudos sobre teoria social e saúde pública no Brasil, Aurea Maria Zöllner Ianni
O Apoio Institucional no SUS: os dilemas da integração interfederativa e da cogestão, Nilton Pereira Júnior
Estado e sujeito: a saúde entre a micro e a macropolítica.. . de drogas, Tadeu de Paula Souza
Organizações sociais: agenda política e os custos para o setor público da saúde, Francis Sodré, Elda Coelho de Azevedo Bussinger
& Ligia Bahia (orgs.)
Privados de la salud: las políticas de privatización de los sistemas de salud en Argentina, Brasil, Chile y Colombia, María José Luzuriaga
Dicionário de empresas, grupos econômicos e financeirização na saúde, Júlio César França Lima (org.)
Vulnerabilidades e saúde: grupos em cena por visibilidade no espaço urbano, Glória Lúcia Alves Figueiredo, Carlos Henrique Gomes
Martins & Marco Akerman (orgs.)
Escola para todos e as pessoas com deficiência: contribuições da terapia ocupacional, Eucenir Fredini Rocha, Maria Inês Britto Bru-
nello & Camila Cristina Bortolozzo Ximenes de Souza (orgs.)

SÉRIE “LINHA DE FRENTE”


Ciências Sociais e Saúde no Brasil, Ana Maria Canesqui
Avaliação Econômica em Saúde, Leila Sancho
Promoção da Saúde e Gestão Local, Juan Carlos Aneiros Fernandez & Rosilda Mendes (orgs.)
Ciências Sociais e Saúde: Crônicas do Conhecimento, Everardo Duarte Nunes & Nelson Filice de Barros
História da Clínica e a Atenção Básica: o Desafio da Ampliação, Rubens Bedrikow & Gastão Wagner de Sousa Campos
O apoio institucional no SUS: os dilemas da integração interfederativa e da cogestão, Nilton Pereira Júnior

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