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Maria Cecília de Souza Minayo

o DESAFIO
DO CONHECIMENTO
PESQ UISA QUALITATIVA EM SAÚD E

14.“ EDIÇÃO

HUCITEC EDITORA
sta obra, a partir da nona edição, constitui
E uma revisão ampliada e aprimorada do livro
O Desafio do Conhecimento. Nele, Cecília Minayo,
uma das autoras brasileiras mais importantes no
campo das ciências sociais em saúde, introduz o
leitor nas abordagens desse ramo do conhecimen­
to e, em especial, da pesquisa qualitativa aplicada
à saúde. O livro faz uma releitura das edições an­
teriores, colocando-se em dia com as mudanças
no campo das ciências em geral, no campo das
ciências sociais e no campo metodológico. E, por
isso, um texto aprofundado e complexo que evi­
dencia os anos de experiência pessoal e de tra­
balho em equipe da autora.
Embora ofereça elementos para elaboração de
investigações sociais de qualquer tipo, o forte deste
livro é a construção de pesquisas empíricas. Para
isso, a autora trata da metodologia como um cam­
po de conhecimento específico e ao mesmo tempo
articulado com as teorias sociais, com a filosofia da
ciência e com os influxos das mudanças no mundo
da vida. Esta obra está composta por cinco partes,
além da introdução e da conclusão.
Na primeira parte, são analisados os conceitos
principais que dão consistência ao tema da meto­
dologia e das abordagens qualitativas. Na segunda
parte, são abordadas as principais teorias sociais
com seu acervo de métodos, pois a autora entende
que teoria e método caminham juntos. Na tercei­
ra parte, são apresentados e problematizados to­
dos os passos para construção de um projeto de
pesquisa qualitativa e para o processo explorató­
rio que qualquer investigação requer. Na quarta
parte, são tratadas as bases teóricas, as estratégias e
as técnicas de trabalho de campo. Na quinta pat-
te, estão abordadas várias técnicas de análise, além
de uma teflexão específica sobre validação e fide-
dignidade em investigação qualitativa e uma pro­
posta para triangulação de métodos quantitativos
e qualitativos.
Pela abrangência e profundidade que contém,
este livro, além de propor instrumentos efetivos
de abordagem qualitativa é também uma fonte de
reflexão sobre o lugar do social no campo da
.saúde.
Saúde em Debate 46
direção de
Gastão Wagner de Sousa Campos
Maria Cecília de Souza Minayo
José Rubem de Alcântara Bonfim
Marco Akerman
Marcos Drumond Júnior
Yafa Maria de CarvaJho

ex-diretores
David Capistrano Filho
Emerson Elias Merhy

É por certo a saúde coisa mui preciosa, a única


merecedora de todas as nossas atenções e cuida­
dos e de que a ela se sacrifiquem não somente
todos os bens mas a própria vida, porquanto na
sua ausência a existência se nos torna pesada e
porque sem ela o prazer, a sabedoria, a ciência, e
até a virtude se turvam e se esvaem.
— M ic iie l Eyquem de M o n t a ig n e (1 5 3 3 -1 5 9 2 ).
Ensaios. "Da semelhança dos pais com os filhos".
Trad. Sérgio Milliet
Saúde em Debate
TÍTULOS PUBLICADOS APÓS JANEIRO DE 2 0 1 0

. Atenção em Saúde M en tal p ara Crianças e Adolescentes no SUS, Edith Lauridsen-Ribeiro ôc Oswaldo Yoshimi
Tanaka (orgs.)
Dilerttas e Desafios da Gestão Municipal do SUS: Avaliação da Implantação do Sistema Municipal de Saúde em Vitó­
ria da Conquista (Bahia) 1997-2008, Jorge José Santos Pereira Solla
Semiótica, Afecção e o Trabalho em Saúde, Túlio Batista Franco 8c Valéria do Carmo Ramos
Adoecimento Crônico Infantil: um estudo das narrativas familiares, Marcelo Castellanos
Poder, Autonomia e Responsabilização: Promoção da Saúde em Espaços Soáais da Vida Cotidiana, Kênia Lara Silva
8c Roseli Rosângela de Sena
Política e Gestão Pública em Saúde, Nelson Ibanez, Paulo Eduardo Mangeon Elias 8c Paulo Henrique D ’Angelo
Seixas (orgs.)
Educação Popular na Formação Universitária: Reflexões com Base em uma Experiência, Eymard Mourão Vascon­
celos 6c Pedro José Santos Carneiro Cmz (orgs.)
O Ensino das Práticas In ter a tiv a s e Complementares: Experiências e Percepções, Nelson Filice de Barros, Pamela
Siegel 6cM árcia Aparecida Padovan Otani (orgs.)
Saúde Suplementar, Biopolíticae Promoção da Saúde, Carlos Dimas Martins Ribeiro, Túlio Batista Franco, Aluisio
Gomes da Silva Júnior, Rita de Cássia Duarte Lima, Cristina Setenta Andrade (orgs.)
Promoção da Saúde: Práticas Grupais na Estratégia Saúde da Família, João Leite Ferreira Neto 8c Luciana Kind
Capitalismo e Saúde no Brasil nos anos 90: as Propostas do Banco M undiale o Desmonte do S US, Maria Lucia Frizon
Kizzotto
Masculino c Fem inino: a Prim eira Vez. A Análise de Gênero sobre a Sexualidade na Adolescência, Silmara Conchão
Educação Médica: Gestão, Cuidado, A valiação,]o^ o]osé Neves Marins ôc Sérgio Rego (orgs.)
Retratos da Formação M édica nos Novos Cenários de Prática, Maria Inês Nogueira
Saúde da Mulher na Diversidade do Cuidado na Atenção Básica, Raimunda Magalhães da Silva, Luiza Jane Eyre de
Souza Vieira, Patrícia Moreira Costa CoUares (orgs.)
Cuidados da Doença Crônica na Atenção Prim ária de Saúde, Nelson Filice de Barros (org.)
Tempos Turbulentos na Saúde Pública Brasileira: Impasses do Financiamento no Capitalismo Financeirizado, Áquilas
Mendes
A Melhoria R ápida da Qualidade nas Organizações de Saúde, Georges Maguerez
Saúde, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação, Ana Luiza d’Avila Viana, Aylene Bousquat ôcNelson
Ibanez
Tecendo Redes: os Planos de Educação, Cuidado e Gestão na Construção do SUS. A Experiência de Volta Redonda (RJ).
Suely Pinto, Túlio Batista Franco, Marta Gama de Magalhães, Paulo Eduardo Xavier Mendonça, Angela
Guidoreni, Kathleen Tereza da Cruz ôc Emerson Elias Merhy (orgs.)
Coquetel. A Incrível H istória dosAntirretrovirais e do Tratamento daA ids no Brasil, Mário SchefFer
Psicanálise e Saúde Coletiva: Interfaces, Rosana Onocko Canmos
A M edicina da A lm a: Artes do Viver e Discursos Terapêuticos, Paulo Henrique Fernandes Silveira
Clínica Comum: Itinerários de uma Formação em Saúde, Angela Aparecida Capozzolo, Sidnei José Casetto ôc
Alexandre de Oliveira Henz (orgs.)
Práxis e Formação Paideia: Apoio e Cogestão em Saúde, Gastão Wagner de Sousa Campos, GustavoTenório Cunha
ôcMariana Dorsa Figueiredo (orgs.)
Intercâmbio Solidário de Saberes em Saúde: Raáonalidades Médicas e Práticas Integrativas e Complementares, Marilene
Cabral do Nascimento ôcMaria Inês Nogueira (orgs.)
Depois da Reforma. Contribuição p ara a Crítica da Saúde Coletiva, Giovanni Gurgel Aciole
Diálogos sobre a Boca, Carlos Botazzo
Violência e Saúde na diversidade dos escritos acadêmicos, Luiza Jane Eyre de Souza Vieira, Raimunda Magalhães
da Silva ôc Samira Valentim Gama Lira (orgs.)
Trabalho, Produção do Cuidado e Subjetividade em Saúde: Textos Reunid»s,T\iIxo Batista Franco ôc Emerson Elias
Merhy
Adoecimentos e Sofrimentos de Longa Duração, Ana Maria Canesqui (org.)
Os Hospitais no Brasil, Ivan Coelho
As Bases do Raciocínio Médico, Fernando Queiroz M onte
A Saúde entre os Negócios e a Questão Social: Privatização, M odernização e Segregação na D itadura C ivil-M ilitar
(1964-1985), Fdipe M onte Cardoso
Descentralização e Política de Saúde: Origens, Contexto e Alcance da Descentralização, Ana Luiza d 'Ávila Viana
Análise Institucionale Saúde Coletiva no Brasil, Solange L ’Ábbate, Lucia Cardoso Mourão ôc Luciane Maria
Pezzato (orgs.)
Por uma Crítica da Promoção da Saúde: Contradições e Potencialidades no Contexto do SUS, Kathleen Elane Leal
Vasconcelos ÔcMaria Dalva Horácio da Costa (orgs.)
Fisioterapia e Saúde Coletiva: Reflexões, Fundamentos e Desafios, José Patrício Bispo Júnior (org.)
Educação Popular na Universidade: reflexões e vivências da Articulação N acional de Extensão Popular (Anepop),
Pedro José Santos Carneiro Cruz, Marcos Oliveira Dias Vasconcelos, Fernanda Isabela Gondim Sarmento,
Murilo Leandro Marcos ôc Eymard Mourão Vasconcelos (orgs.)
Regiões de Saúde: Diversidade e Processo de Regionalização cm M ato Crosso,]ol.Q Henrique Scatena, RutliTerezinha
Rehrig ÔcMaria Angélica dos Santos Spinelli (orgs.)
o DESAFIO D O C O N H EC IM EN T O
Pesqu isa Q u alitativa em Saúde
DE MARIA CECÍ LI A DE S OUZA MI NAYO, NA E DI TORA HUCI T E C

Limites da Exclusão Social: Meninos e Meninas de Rua no Brasil


(organizadora)
Os Muitos Brasis: Saúde e População na Década de 80
(organizadora)
Tratado de Saúde Coletiva
(organizadora, com Gastão Wagner de Sousa Campos,
Marco Akerman, Marcos Drumond Jr. & Yara Maria de Carvalho)
MARIA CECÍLIA DE SOUZA MINAYO

O DESAFIO DO CONHECIMENTO
Pesquisa Qualitativa em Saúde

DÉCIMA QUARTA EDIÇÃO

HUCITEC EDITORA
São Paulo, 2014
® 2004, de Maria Cecília de Souza Minayo.
® 2014, desta edição de
Hucitec Editora Ltda.,
Rua Águas Virtuosas, 323
02532-000 São Paulo, SP.
Telefone (55) 11 2373-6411
www.huciteceditora.com.br
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Coordenação editorial
M ariana N ada
Assessoria editorial
M ariangela G iannei .la
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Tel.: (11)3892-7772 - Fax: (11)3892-7776

Dados de Catalogação na Publicarão (CIP)


(Sandra Regina Vitzcl Domingues)

M 615 Minayo, Maria Cecília de Souza


O desafio do conhecim ento: pesquisa qualitativa em
saúde./Maria Cecília de Souza Minayo. - 14. ed. - São Paulo:
Hucitec, 2014.
40 7 p.; 21 cm. - (Saúde em Debate; 4 6 )
Referências: p. 3 93
ISBN 978-85-271-0181-3

1. Pesquisas Sociais - Metodologia 2. Saúde Pública


- Pesquisa I. Título II. Série
CD D 6 1 4 .0 7 2

índice para catálogo sistemático:

1. Pesquiss Sociais: M etodologia 614.072


2. Pesquisas: Saúde Pública 614.072
Dedicatória e Agradecimentos

íT Carlos, companíieiro em todas as dificuldades, de todas as Horas, de


todos os dias, de todos os projetos e de todas as realizações. Cíijuejii
agradeço também a revisão fn a l deste livro.

"Em memória d e‘Veboraíi, filíia querida que nos assiste com sua luz e
seu amor.

Cí CHristiana e Miryam, filíias queridas, livres para ser e para voar,


com as quais partilíw crescimento, amor e esperança.

Sts companíieirqs e aos companíieiros do Claves, onde aprendo a


conviver, compartilfmr, dividir e multiplicar experiências de trabalíiar
em equipe, produzir pesquisas, disseminar confiecimentos, servirá
sociedade e cultivar amizades.

SCos meus orientandos e orientandas de mestrado e doutorado da


‘Tiocruz com quem partilíio confiecimentos, indagações, descobertas e
projetos de vida.

EE‘Vanúzia de ‘Taula e a Marcelo ‘Tereira que muito me ajudaram


na parte técnica de finalização deste trabalíio.
SUMARIO

PÁG.

APRESENTAÇÃO 11

Capítulo 1
IN T R O D U Ç Ã O AO D E SA F IO DO C O N H E C IM E N T O 21

Parte I
C O N C E IT O S B Á S IC O S SO BRE M E T O D O L O G IA E SO BRE
A BO DA GEN S Q U A LITA TIV A S 35

Capítulo 2
METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL E EM SAÚDE 39

Capítulo 3
CONTRADIÇÕES E CONSENSOS NA COMBINAÇÃO DE
MÉTODOS QUAN riTATIVOS E QUALITATIVOS 54

Parte II
TEORIA, EPISTEMOLOGIA E M ÉTO D O S: CAMINHOS DO PENSA­

MENTO 77

Capítulo 4
CORRENTES DE PENSAMENTO 81

Capítulo 5
MODALIDADES DE ABORDAGENS COMPREENSIVAS
Parte III
C O N S T R U Ç Ã O D O P R O J E T O D E P E S Q U I S A I FASE E X P L O R A T Ó R I A 171

Capítulo 6
CONCEITOS PARA OPERACIONALIZAÇÃO DA PESQUISA 175

Capítulo 7
PROJETO DE INVESTIGAÇÃO 182

Capítulo 8
CONSTRUÇÃO DOS INSTRUMENTOS E EXPLORAÇÃO DE
ÇAMPO 189

Parte IV
TRABALHO DE CA M PO ! T EO R IA , ESTRATÉGIAS E TÉCN ICAS 201

Capítulo 9
PALAVRA, INTERAÇÕES E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 204

Capítulo 10
TÉCNICAS DE PESQUISA 261

Parte V 299
FASE D E A N Á L I S E D O M A T E R I A L Q U A L I T A T I V O

Capítulo 11
TÉCNICAS DE ANÃLISE DE MATERIAL QUALITATIVO 303

Capítulo 12
TRIANGULAÇÃO DE MÉTODOS QUANTITATIVOS E QUALI­
TATIVOS 361

Capítulo 13
SOBRE VALIDADE E VERIFICAÇÃO EM PESQUISÃ QUALITÃ-
TIVA 373

CONCLUSÃO 385

REFERÊNCIAS 393
APRESENTAÇÃO

N esta ed iç ã o busco atualizar e ampliar as oito versões


anteriores de O Desafio do Conhecimento. Nada fez tanto jus
ao nome deste trabalho como o desafio que foi colocá-lo em
dia com o meu próprio amadurecimento, com os avanços da
teoria da ciência que ocorreram nesse período e com a pro­
dução intelectual no campo da pesquisa qualitativa, princi­
palmente da pesquisa qualitativa em saúde. Foi muito difícil
reformar o texto. Ao fazê-lo entendi o sentido do termo revo­
lução: pois teria sido menos penoso acabar com tudo e come­
çar de novo. Também compreendi muito mais a mim mesma
e as coisas que venho dizendo e ouvindo sobre a questão da
inexorável historicidade de tudo o que é humano. Pois, mes­
mo numa obra em que, pretensamente, trate do lado padro­
nizado e operativo de como fazer ciência, eu senti muito o
peso, a leveza e a fugacidade das mudanças.
O lado bom desta experiência de revisão foi a descoberta
de que eu também amadureci, atualizando-me com o tempo,
fazendo sínteses mais elaboradas e tudo isso impulsionada
pelas pesquisas permanentes e incontáveis desenvolvidas in­
dividualmente ou em colaboração com os investigadores e
investigadoras do Claves (Centro Latino-Americano de Estu­
dos sobre Violência e Saúde) o centro de pesquisa onde me
localizo na Fiocruz. É importante ressaltar que nesse processo
de crescimento muito vêm contribuindo comigo meus orien-
tandos de mestrado e doutorado com quem mais aprendo
que ensino.
Tive um dilema na escolha de novas citações para o livro.
Fiquei preocupada porque cresceram exponencialmente as
investigações qualitativas nestes doze anos no Brasil e no mun­
do e não teria como trabalhar com todas as referências hoje
existentes e disponíveis, a não ser fazendo uma revisão crítica
da produção. Decidi que não seria este meu papel, neste li­
vro, pois apresentar uma revisão significaria um volume de tra­
balho imenso e fugiría ao escopo da obra. Escolhi referenciar
apenas as obras que ajudassem na argumentação do trabalho.
No entanto, quero expressar minha satisfação ao constatar o
crescimento em número e em rigor dos trabalhos empíricos e
dos marcos teórico-metodológicos de tantos estudos.
Nesta apresentação esboçarei alguns pensamentos sobre
as transformações históricas e sociológicas que acabaram con­
tribuindo para aperfeiçoar as formas, o sentido e a ética da
pesquisa no mundo contemporâneo. Mesmo sendo esta uma
obra voltada para o desenvolvimento de metodologias e prá­
ticas teóricas, julguei que ao leitor interessaria discutir os de­
safios do campo da ciência e da tecnologia que se tornaram
nos mais importantes fatores produtivos e de geração de ri­
queza no mundo atual. A esse contexto denomino lado exter­
no da ciência. O lado interno que corresponde a um jargão es­
pecífico e a torna passível de ser reconhecida e apropriada em
todo o mundo é o objeto deste livro.
O lado externo da ciência a que me refiro é movido pelas
mudanças nos processos produtivos e de trabalho em todos
os setores, mudanças essas indubitavelmente impulsionadas
hoje pela ciência e facilitadas pela chamada revolução da mi-
croeletrónica e por todo o complexo informacional-comuni-
cacional.
É muito ingênuo pensar que, numa época de tão acelera­
das transformações e que atingem as duas categorias funda­
mentais do pensamento humano, espaço e tempo, o mundo
universitário e das instituições de pesquisa pudesse permane­
cer intocado. O paradoxo dessa situação, no entanto, vem do
fato de que as mudanças aceleradoras do desenvolvimento
vêm exatamente do campo da ciência e da tecnologia, cuja
dinâtnica movimenta o surgimento das inovações nos merca­
dos de capital, trabalho, bens e serviços. Por sua vez, esse
mercado de alguma forma globalizado ou intensamente in­
ternacionalizado e interdependente, exige readequações nos
modos de fazer ciência, tanto nos processos metodológicos,
portanto internos à produção científica, como nas situações e
condições de trabalho que dizem respeito ao perfil dos inves­
tigadores e das instituições, às formas de organizar, de finan­
ciar, de fazer e de avaliar pesquisa.
Essas transformações se intensificaram nas duas últimas
décadas do século XX e vão se transformando em práxis no
século XXL A introdução de novas tecnologias, matérias-pri­
mas e formas de organização da produção não só estão remo­
delando as bases materiais da sociedade, como vão redefinin­
do as relações entre a economia, o Estado e a sociedade. A
principal repercussão de tais processos no campo da ciência é
que seus avanços já não ocorrem mais por meio de incremen­
tos graduais numa disciplina científica dada, mas, quase sem­
pre e cada vez mais, por meio da solução de problemas com­
plexos que atravessam várias disciplinas. Essas mudanças
mobilizam todos os elementos das forças produtivas e das
relações de produção do campo científico: os investigadores
com seus requisitos especiais de formação e condições de tra­
balho; os novos instmmentos teórico-metodológicos que de­
vem ser incorporados e as células físicas e singulares que são
as unidades de investigação (Pellegrini, 2000).
Uma expressão da capacidade de adaptação do setor, e
que aparece como tendência dos gmpos e instituições mais
dinâmicos, é a nova modalidade ão trabalho em rede e em coo­
peração diversificada, juntando, freqüentemente, várias uni­
dades de uma mesma instituição, várias universidades, insti­
tutos de pesquisa, grupos de consultorias e empresas de um
país e de diversos países, que passam a se organizar ao redor
de um campus (real e virtual) e estabelecem relações entre si, de
acordo com seus interesses, em projetos específicos e sobre
temas considerados relevantes para cada um.
Nesse ambiente, denominado por alguns "sistema de pro­
dução de conhecimento socialmente distribuído" (Pellegrini,
2000), a universidade e os centros de pesquisa tradicionais
são questionados e desafiados em sua performance, sendo cha­
mados a evoluir de uma situação de instituição fechada sobre
si mesma e sobre sua própria produtividade, para se transfor­
mar num núcleo irradiador de relações e de construção do
conhecimento. Novas tecnologias de informação e comunica­
ção tornam viável uma organização de trabalho mais ágil no
tempo e no espaço, assegurando a fluidez das relações entre
os participantes dos projetos, geralmente coordenados por um
gmpo sob a liderança de pesquisadores experientes. Cria-se
assim uma modalidade nova de "universidade", no sentido
literal do termo, que funciona num misto de pluralidade de
pessoas, de locais, e de realidades presenciais e virtuais. Ora,
essa nova dinâmica tende a romper barreiras de departamen­
tos, de disciplinas e, também, a pôr em xeque idéias de carrei­
ras tradicionais regulares e de estabilidade no emprego, inter­
ferindo, muitas vezes negativamente, nas relações de trabalho.
Em todas as épocas históricas, a sociologia da ciência evi­
dencia algumas disciplinas liderando os processos de mudan­
ça. Hoje duas áreas dão a direção das transformações pós-
modernas: a chamada "nova biologia", principalmente nas
especialidades que se constroem em torno da genética; e todo
o campo das ciências da computação que se constitui na es­
trada larga por onde passa a maioria das possibilidades de
inovações. As novas formas de fazer ciência nessas áreas fo­
ram cunhadas com o epíteto de "big Science", cujas caracterís­
ticas principais são: (1) um conhecimento constmído de ma­
neira coordenada e cooperativa envolvendo grande número
de pesquisadores e de centros de pesquisa; (2) um processo
liderado por algum centro, universidade ou empresa, em tor­
no dos quais se congrega um número de pesquisadores sele­
cionados e diferenciados; (3) um ou alguns pesquisadores
formam a base do projeto e o coordenam, (4) uma relativiza-
ção dos espaços fixos, pois o projeto pode estar em qualquer
estado do país ou em qualquer parte do mundo, sediado em
qualquer universidade ou instituto que ofereça apoio ou su­
porte para isso, (5) uma inclusão de pessoas e gmpos de pes­
quisa nos mais diferentes estágios, agregando, portanto, jo­
vens investigadores e gmpos emergentes.
As novas modalidades do processo de trabalho investiga-
tivo que vão paulatinamente se afigurando inovam também
na gestão científica, à medida que socializam tarefas, descen­
tralizam atividades de coordenação e responsabilizam a to­
dos os que aceitam participar dos processos. A produção na
modalidade "big Science" tem metas bem-definidas entre to­
dos os participantes e prazos para apresentação de resulta­
dos, já anteriormente previstos no projeto inicial. A forma de
comunicação privilegiada é a virtual, congregando pessoas e
grupos em tempo real. Os produtos são cooperativos e os
créditos pelo tfabalho são socialmente distribuídos, embora
de forma hierarquizada por mérito.
Do ponto de vista interno da produção do conhecimento,
a ampliação das possibilidades trazidas pelo modelo "big Sci­
ence" dissolve, na prática, a antiga dicotomia entre ciência bá­
sica e ciência aplicada, pois cada vez mais se criam estratégias
visando a articular processos de investigação com desenvolvi­
mento tecnológico e de produção. A disjuntiva entre "ciência
para compreender", "ciência para explicar" e "ciência para apli­
car" processualmente vai sendo substituída pelo conceito de
pesquisa estratégica (Pellegrini, 2000), que, segundo Bulmer
(1978), significa a execução de investigações que associam o
desenvolvimento de conceitos básicos, com estratégias inter-
disciplinares e de aplicação tanto para a formulação de políti­
cas públicas como para a criação de instmmentos de inovação
tecnológica.
Nesse contexto de transformações, o papel do Estado
como único agente financiador em diálogo exclusivo com a
comunidade científica se relativiza, embora seja ele ainda o
maior mantenedor do desenvolvimento da ciência em todo
o mundo. Cada vez mais, parceiros tanto do universo empre­
sarial como da sociedade civil são chamados a se colocar ao
lado do Estado no financiamento, na discussão das propos­
tas e na aplicação dos resultados. Assim, a ciência é assumida
como atividade que intervém na dinâmica social, devendo ter
suas prioridades definidas de forma coletiva e pública.
Também se recoloca, em tais circunstâncias, o sentido da
formulação de prioridades. O tema das "prioridades em pes­
quisa" foi sempre um tabu no âmbito da ciência tradicional,
como se as instituições científicas existissem acima e indepen­
dentemente da sociedade. A nova forma de fazer ciência le­
vanta a questão de que não apenas os cientistas devem for­
mular prioridades, mas estar abertos a um conjunto de atores,
em espaços que facilitem a formação de consensos.
Por fim, cria-se a necessidade de rever a economia interna
do campo de investigação, refietindo-se sobre opções meto­
dológicas que respondam aos desafios colocados pelas trans­
formações. Espedficamente na área da saúde alguns desses
desafios podem ser pontuados: (a) necessidade de se cons­
truir uma abertura para modelos de "investigação por pro­
blemas", que rompam a lógica unidisciplinar e adotem estra­
tégias inter e transdisciplinares. Essas estratégias devem ser
entendidas como a construção de possibilidades de trânsito
por campos de conhecimento distintos. É claro que tal aber­
tura tem, como precondição de sua efetividade, a cooperação
e o diálogo entre investigadores de áreas distintas, em todas
as etapas de uma pesquisa (Minayo, 2003; 2005); (b) A cons­
trução de um pensamento complexo, que atua pela busca de
interações e interconexões entre conceitos, noções e métodos
das várias disciplinas e das relações entre o todo e parte que
um tema específico representa (Minayo & Minayo-Gomez,
2002); (c) A abertura para o trabalho coletivo, tratando a plu-
raMade de pensamento e de experiências como elementos de
enriquecimento do gmpo (Minayo, Assis & Souza, 2005); (d)
Por fim, a articulação dos conhecimentos gerados com as práticas,
voltadas para as necessidades concretas da população (Pelle-
grini, Almeida Filho &Trostle, 1998).
Novos problemas eclodem na dinâmica contemporânea
do campo científico. Dos mais graves são as investidas das
empresas privadas, uma vez que ciência e tecnologia se torna­
ram o fator de produção mais cobiçado, visando à "mercanti-
lização" das atividades de pesquisa sobre temas cujas desco­
bertas são potencialmente muito lucrativas. Os padrões de
competitividade entre os países passam a se basear no domí­
nio de novas tecnologias, levando a que os resultados das in­
vestigações sejam privatizados já desde a concepção da pesqui­
sa, sobretudo por meio de contratos fechados, por exemplo,
entre universidade e empresa. Essa dinâmica do mercado,
potencializada pelos mecanismos internacionais de proteção
ã propriedade intelectual, acaba por monopolizar o conheci­
mento e a dificultar as possibilidades de sua transferência vi­
sando ao bem comum. Presencia-se ou mobiliza-se, hoje, o
estabelecimento de esquemas de aliança entre países e empre­
sas para o acesso às inovações e a constituição de megamerca-
dos, cuja lógica é a busca por recuperar, rapidamente, os inves­
timentos feitos em produtos e processos altamente lucrativos.
Por sua vez, dado o alto valor dos conhecimentos científicos
como força produtiva, numa contradição inescapável, os pro­
dutos gerados rapidamente se tornam obsoletos.
Em conseqüência, os processos de investimento privado
e estatal dos países desenvolvidos, comparados com os escas-
SOS investimentos dos países subdesenvolvidos, estão favore­
cendo o aumento das desigualdades científicas e tecnológi­
cas. Castells (1998) lembra que houve uma formidável acele­
ração do desenvolvimento provocada pela liberação das forças
produtivas geradas pelas novas tecnologias e, ao mesmo tem­
po, a consolidação da pobreza extrema.
Neste momento histórico em que ciência e tecnologia são
as maiores fontes de agregação de valores, foi preciso que, numa
Conferência Mundial em Budapeste, em 1999, a Unesco e o Con­
selho Internacional para a Ciência reunissem cientistas do mun­
do inteiro e estabelecessem alguns parâmetros éticos para atu­
ação do setor através do lema "Ciência para o Século XXI: Um
Novo Compromisso". O principal diagnóstico dos cientistas
que participaram desse evento é que o futuro da Humanida­
de dependerá cada vez mais de que a produção, distribuição
e utilização do conhecimento científico sejam eqüitativas.
Portanto, seria importante e urgente que a comunidade inter­
nacional fizesse investimentos específicos, nesse sentido, nos
países subdesenvolvidos. Nas conclusões desse evento algu­
mas afirmações foram consensualizadas: (a) a ciência deve estar
a serviço de toda a humanidade; (b) a ciência deve contribuir
para o conhecimento mais profundo da natureza e da socie­
dade; (c) a ciência deve contribuir para a qualidade de vida e
para criar um ambiente saudável para as gerações presentes e
futuras (Unesco & Icsu, 1999).
Apesar dos elementos contextuais, fortemente marcados
pelas mudanças globais de financiamento e de formas de ges­
tão científica, é preciso lembrar que a maioria das dificulda­
des vividas no meio científico contemporâneo se deve a pro­
blemas de ordem microinstitucionais e psicossociais. Elas se
configuram em forma de resistência a mudanças concretas,
por parte de instituições e de pesquisadores. O medo de se
colocar em dia, o temor ao desconhecido, o conservadorismo
por convicção ou por comodismo estão presentes nas insti­
tuições mais tradicionais que se regem por padrões muito rí­
gidos de organização da produção do saber, geralmente cons-
tmídos em práticas unidisciplinares. Na maioria dos casos,
essas configurações tendem a se aprofundar. As mudanças são
vistas como modismo, como "onda do livre mercado", des­
conhecendo-se o que freqüentemente está em jogo: as difi­
culdades culturais e mentais do aggiornamento. Por exemplo,
em lugar de uma busca de organização em função da missão
de gerar conhecimentos, hoje muitas universidades e centros
de pesquisa no Brasil se perdem na gestão do excesso de cor­
pos colegiados, de comissões e de consultas internas. Nos países
em desenvolvimento, as dificuldades institucionais de mu­
dança geralmente vêm tendo como conseqüência, em lugar
de uma capacidade de resposta aos desafios atuais da Ciência
(& Tecnologia, a exagerada politização de qualquer decisão, a
burocratização dos processos e a reprodução dos interesses
corporativos (Pellegrini, 2000). Predomina nelas o instinto ãe
autopreservação (travestido de democratismo) diante do medo
de dar os passos para as mudanças necessárias.
Terminando, resumo as duas idéias principais aqui trata­
das. A primeira: fazer pesquisa constitui um processo de tra­
balho complexo que envolve teoria, método, operacionaliza-
ção e criatividade. E esse nível de atuação metódica e universal,
permitindo a comparação de processos e de resultados, que
tornou a Ciência a forma de conhecimento mais legitimada
na sociedade moderna. A segunda: ser pesquisador é também
estar integrado no mundo: não existe conhecimento científi­
co acima ou fora da realidade. Mesmo um tema tão árido como
método de investigação está altamente imbricado com o con­
texto social e histórico. Não existe "uma metodologia" inter­
na que possa eximir o investigador dos significados atuais,
para o bem e para o mal, do conceito da Sociedade do Conhe­
cimento. Grupos e pessoas estão sob a mira de um desafio: ou
experimentam vôos de águias ou se contentam com o conser­
vadorismo que corrói a energia das instituições.

Capítulo 1
INTRODUÇÃO AO
DESAFIO DO CONHECIMENTO

"A última coisa que se encontra ao fazer


uma obra é o que se deve colocar em pri­
meiro lugar" (Pascal, Pensée, frase n.° 19,
19 7 8 ), pois "sendo então todas as coisas
causadas e causadoras, ajudadas e ajudan­
tes, mediata e imediatamente, e todas se
relacionando por um vinculo natural e in­
sensível que liga as mais afastadas e mais
diferentes, creio ser tão impossível co­
nhecer as partes sem conhecer o todo
com o conhecer o todo, sem conhecer par­
ticularmente as partes" (Pascal, Pensée, fra­
se n.° 73, 1978).

Jb D EN T R O DA D IA LÉT IC A tão bem expressa por Pascal e


citada em epígrafe que introduzo o presente trabalho, uma
proposta teórico-metodológica para abordagem qualitativa das
relações sociais que informam o campo da Saúde. Embora
pouco a pouco a problemática vá se desdoBrãndõT este estu­
do se organiza dentro de alguns pontos fundamentais que
perpassam o conjunto das questões tratadas, quais sejam, a
natureza do social; as relações entre indivíduo e sociedade;
entre ação, estrutura e significados; entre sujeito e objeto; entre
fato e valor; entre realidade e ideologia e a possibilidade do
conhecimento, visto sob o prisma de algumas correntes so­
ciológicas.
Por se constituir como um estudo sobre metodologia, é a
partir desse ângulo que a problemática citada toma corpo e se
explicita nos diferentes níveis de abordagem da realidade, atin­
gindo a discussão dos métodos e das técnicas de pesquisa. Ten­
do como foco a questão metodológica, tento introduzir alguns
eixos de reflexão, explicitando o caminho seguido. Toda a pro­
blemática aqui abordada tem como espaço privilegiado de in­
terrogação a prática de pesquisa, que busco referenciar como
a atividade fundamental na produção do conhecimento.
Na verdade este estudo é perpassado pela problematiza-
ção de conceitos usualmente empregados para a construção
do conhecimento e por uma teorização sobre a prática de
pesquisa, entendendo-se que nem a teoria e nem a prática
são isentas de interesses, de preconceitos e de incursões sub­
jetivas. Conforme adverte Bourdieu (1972), "a teoria da práti­
ca que aparece como condição de uma ciência rigorosa das
práticas, não é menos teórica" (Bourdieu, 1972, p. 157). O
privilégio presente em toda atividade teórica supõe um corte
epistemológico e um corte social e ambos governam sutilmente
essa realidade (Bourdieu, 1972), portanto, qualquer investi­
gador deve pôr em questão os pressupostos inerentes a sua
qualidade de observador externo que importa para o objeto,
os princípios de sua relação com a realidade, incluindo-se aí
suas próprias relevâncias.
Dentro desse espírito, tento trabalhar o conceito de Me­
todologia, fugindo, de um lado, daquelas abordagens apenas
teóricas que não chegam a enfrentar a prática de pesquisa; de
outro, daquelas concepções que consideram o labor da in­
vestigação como uma tecnologia neutra, isenta, a ser domina­
da e aplicada indistintamente e independente dos pressupos­
tos teóricos que a sustentam.
O objeto principal de discussão são as Metodologias de Pes­
quisa Qualitativa, entendidas como aquelas capazes de incor­
porar a questão do s i g n i f i c a d o e da i n t e n c i o n a l i d a d e
como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo
essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua
transformação, como construções humanas significativas.
A introdução dessa definição insere conseqüências teóri­
cas e praticas na abordagem do social. A primeira delas é uma
interrogação sobre a possibilidade de se considerar científico
ou não um trabalho de investigação que, ao levar em conta os
níveis mais profundos das rêlãçoês sõcrãis',' nâó po’dê“õperã7
ciohalizá-los em números e variáveis, critérios usuãlmente acei­
tos para emitir juízo de verdade no campo intelectüarTJfa,
essa questão remete às próprias entranhas do positivismo
sociológico que apenas reconhece como ciência a atividade
"objetiva", capaz de traçar as leis e as regularidades que regem
os fenômenos, menosprezando os aspectos chamados "subje­
tivos", impossíveis de serem sintetizados em dados estatísti­
cos. No entanto, o próprio positivismo tenta trabalhar a "qua­
lidade do social". Seja buscando substantivá-lo em variáveis.
Seja por meio do estmtural-funcionalismo, focalizando os pro­
dutos da interação social como componentes funcionais da
realidade. Seja tratando-os como entidades passíveis de estu­
do, independentemente de sua constituição pelos indivíduos.
Assim, o investimento que faço neste livro diz respeito à
pesquisa qualitativa que visa a compreender a lógica interna
de grupos, instituições e atores quanto a; (a) valores culturais
e representações sobre sua história e temas específicos; (b)
relações entre indivíduos, instituições e movimentos sociais;
(cj processos históricos, sociais e de implementação de políti­
cas públicas e sociais.
Sobre a história, o sentido e a pertinência do processo so­
cial denominado "investigação qualitativa", devo lembrar que
as diferentes teorias que o sustentam abrangem aspectos par­
ticulares e relegam outros, revelando o inevitável imbricamento
entre conhecimento e interesse, entre condições históricas e
avanço das ciências, entre identidade do pesquisador e seu
objeto e entre a necessidade indiscutível da crítica interna e
externa na objetivação do saber. A própria expressão "Meto­
dologias Qualitativas" consagra uma imprecisão, uma dificul­
dade histórica das teorias de se posicionar ante a especificida­
de do social. Ele supõe uma afirmação da qualidade contra a
quantidade, refletindo uma luta teórica entre o positivismo e
as correntes compreensivistas em relação às formas de valori­
zação dos significados. Quando se entende a interdependên­
cia e a inseparabilidade entre os aspectos quantificáveis e a
vivência significativa da realidade objetiva no cotidiano, con-
clui-se que a referida denominação é redundante e mesmo
parcial. A noção de "Metodologia de Pesquisa Social", não
fossem as conotações históricas de construção do conceito,
deveria ser suficiente para qualificar o campo de abordagem
das relações sociais em todos os seus aspectos históricos, es-
tmturais e simbólicos.
Em oposição ao Positivismo, as perguntas sobre valores,
representações, crenças e relações são mais bem respondidas
pela Sociologia Compreensiva. Como o próprio nome indica,
ela considera como tarefa das Ciências Sociais a compreensão
da realidade humana vivida socialmente e de forma diferente
do universo das ciências naturais. Em suas múltiplas manifes­
tações como a Fenomenologia, a Etnometodologia, o Intera-
cionismo Simbólico, o s i g n i f i c a d o é o conceito central para
a análise sociológica.
Numa oposição frontal ao positivismo, a sociologia com­
preensiva propõe a subjetividade como fundante de sentido
e defende-a como constitutiva do social e inerente ao enten­
dimento objetivo. Essa corrente de pensamento não se preo­
cupa com os processos de quantificação, mas de explicar os
meandros das relações sociais consideradas essência e resulta­
do da atividade humana criadora, afetiva e racional. Q univer­
so das investigações qualitativas é o cotidiano e as experiên­
cias do senso comum, interpretadas e re-interpretadas pelos
sujeitos que as vivenciam.
No entanto, a aplicação das teorias compreensivas apre­
senta problemas quando se realizam análises atomizadas da
realidade e dos grupos sociais, como se esses fenômenos cons­
tituíssem totalidades reduzidas a si mesmas. Nesses casos, os
estudos qualitativos se ausentam de contextualizações refe­
rentes a problemas históricos, culturais e estmturais que sem­
pre envolvem os eventos tópicos. Essa focalização dos fatos,
cercando-os como se fosse possível analisá-los em si mesmos,
é reducionista pois desconhece que sempre existe uma base
material para o universo simbólico.
Propondo fazer uma síntese sobre a questão qualitativa,
tentando superar o positivismo e as abordagens compreensi­
vistas, ^ dialética marxista abarca não somente o sistema de
relações que constrói o modo de conhecimento exterior ao
sujeito, mas também as representações sociais que constituem
a vivência das relações objetivas jáèlós álores sociais que lhe
atribuem significados (Goldmann, 1967). Ante as abordagens
que separam quantidade e da qualidade, a dialética assume
que a qualidade dos fatos e das relações sociais é sua proprie­
dade inerente e que quantidade e qualidade são inseparáveis
e interdependentes.
A dialética, do ponto de vista filosófico, enseja a dissolu-
ção de dicotomias tais como quantitativo/qualitativo, macro/
micro, interioridade/exterioridade com qúe se debatern~ãs' di-
sversas correntes sociológicas. Com relação aos significados, ela
os considera como parte integrante da totalidade, devendo
ser compreendidos e interpretados tanto no nível das repre­
sentações sociais como das determinações essenciais. Sob esse
enfoque, não se entende a ação humana independentemente
do significado que lhe é atribuído pelo autor, mas também
não se identifica essa ação com a interpretação que o ator so­
cial lhe reserva. Portanto, em relação à abordagem qualitativa,
o método dialético, como diz Sartre (1978), "recusa-se a re­
duzir. Ele ultrapassa conservando" (Sartre, 1978, p. 177). Por
isso, demonstra sua superioridade precisamente pela capaci­
dade de incorporar as "verdades parciais" das outras corren­
tes, criticando e negando suas limitações. Isso ocorre quando
uma boa análise considera que existe uma relação inseparável
entre o mundo natural e o social; entre pensamento e base ma­
terial; entre objeto e suas questões; entre a ação do ser huma­
no enquanto sujeito histórico e as determinações que a condi­
cionam. Os princípios de especificidade histórica e de totalidade
lhe conferem potencialidade, para, do ponto de vista metodo­
lógico, apreender e analisar os acontecimentos, as relações e as
etapas de um processo como parte de um todo. Os critérios de
complexidade e de diferenciação lhe permitem trabalhar o caráter
de antagonismo, de conflito e de colaboração entre os gmpos
sociais e no interior de cada um deles e, pensar suas relações
como múltiplas em seus próprios ângulos, intercondiciona-
das em seus movimentos e desenvolvimento interior e intera­
gindo com outros fenômenos ou grupos de fenômenos.
A abordagem dialética, porém, está pouco desenvolvida
para análises da realidade empírica, tendo em vista que, divul­
gada pelo marxismo, acabou sendo aprisionada pela sua cor­
rente mais positivista e mecanicista (Anderson, 1987). Isso leva
a que os estudos substantivos realizados a partir dessa pers­
pectiva sejam um desafio que enfrenta o pesquisador, pois
exige dele uma superação dos instmmentos de pesquisa usual­
mente empregados pelas correntes compreensivistas ou fun-
cionalistas, e a inclusão dos s i g n i f i c a d o s na totalidade histó-
rico-estrutural. Nos últimos anos, felizmente, muitas pesquisas
vêm apostando na chamada perspectiva hermenêutico-dialé-
tica, na esteira de Habermas (1987a) e de Gadamer (1999),
contribuindo para que se contextualizem de forma crítica a
história e a linguagem dos problemas de saúde e das práticas
sociais da área.
Nesta nova edição deste livro introduzo uma discussão
dos modelos complexos de investigação, cuja corrente reflexi­
va vem das abordagens sistêmicas. As primeiras elaborações
do pensamento sistêmico se devem ao biólogo Ludwig von
Bertalanffy que, em 1973, publicou um livro de grande reper­
cussão titulado Teoria Geral dos Sistemas. Nele Bertalanffy (1973)
apontou a necessidade de se criarem categorias teóricas rigo­
rosas que pudessem responder a questões referentes ao am­
plo espectro dos seres vivos que vão da biologia à sociologia.
Esse autor identificou a interação como ponto nevrálgico para
todos os campos científicos. Observou que há uma enorme
ordem hierárquica de entidades na organização dos seres vi­
vos e que elas se superpõem em muitos níveis, indo dos siste­
mas físicos e químicos aos biológicos, sociológicos e políticos,
possibilitando "uniformidades estmturais dos diferentes sis­
temas da realidade" (Bertalanffy, 1973, p. 124).
Do ponto de vista operacional, o pensamento sistêmico,
tal como se apresenta para as ciências sociais no momento
presente, pode ser considerado uma forma de ver a realidade
e de articulá-la. Não está propondo técnicas de investigação.
Mas exige um olhar e uma abordagem diferentes: ilumina aque­
le ponto cego da visão unidimensional, fazendo-o enxergar
as interações; subverte a mente compartimentalizada, buscan­
do fazer as diferenças e as oposições se comunicarem; e mo­
difica a antiga prática positivista que só valoriza regularidades
e normas. Ao contrário, mostra as coisas que permanecem e
ressalta "o que" muda e "como" as coisas se transformam, auto-
organizando-se. Essa visão vai se incorporando ao campo da
pesquisa em saúde e é objeto de pesquisa e de indagações tam­
bém nas Ciências Sociais (Wallerstein, 1999) coincidindo com
o pensamento de Pascal (1978) citado ao início deste texto.
A discussão crítica do conceito de "Metodologias Qualita­
tivas" me levou também a acrescentar uma rápida reflexão
sobre triangulação de métodos, cada vez mais necessária e
adequada para estudos e avaliações na área da saúde. Não me
proponho a pensar essas modalidades de produzir investiga­
ção como crítica ideológica às abordagens quantitativas e sim
dentro de uma linha de complementaridade (Minayo, 2005).
Não advogo um ecletismo sem sentido e nem estou fazendo
uma concessão ao positivismo, pois a filosofia dessa aproxi­
mação é o reconhecimento da incompletude tanto das disci­
plinas como dos métodos (Minayo & Sanchez, 1993; Minayo
& Cmz Neto, 1999; Minayo et al., 2003b; Minayo & Minayo-
Gomez, 2003a; Samaja, 1993).
Por fim, ao trazer o debate do "qualitativo" para o campo
da Saúde considero que é preciso impregná-lo das discussões
e críticas atuais das Ciências Sociais. Por isso, tanto no que
concerne à problemática teórica quanto Ji metodológica, to­
das as reflexões deste livro estão sob o signo da historicidade
e submetidas às vicissitudes, avanços, recuos, interrogações e
perspectivas da totalidade social em seu dinamismo. Isso se
justifica no fato de as ciências da saúde não se instituírem
como uma disciplina (e sim, como uma variedade delas) e
nem como um campo separado das outras instâncias de in­
terpretação da realidade.
No entanto, por tratarem de um híbrido biológico-social
(Latour, 2000) as inflexões das ciências da saúde também pre­
cisam (embora não tenha me sentido competente para fazê-
lo) incorporar os avanços da biologia, da física e de outras
disciplinas, associando-as às questões socioeconômicas, polí­
ticas e ideológicas. Portanto, no campo da saúde se vivência a
complexidade dos objetos de estudo pois a abrangente área
biomédica não pode prescindir da problemática social, uma
vez que o corpo humano está atravessado pelas determina­
ções das condições, situações e estilos de vida.
Embora existam dificuldades epistemológicas e práticas de
aproximação, o desafio de tratar do objeto saúde/doença é
vencer dicotomias analíticas, movendo-se no terreno das in-
ter-relações e interconexões. O saber teórico e pratico sobre
saúde e doença faz parte de um universo dinâmico recheado
de história e de inter-relações mediadas por institucionaliza­
ções, organizações, lógicas de prestação de serviços e partici­
pação dos cidadãos.
Dentro desse caráter peculiar de abrangência das ciências
que compõem o campo da saúde, as teorias sobre pesquisa
qualitativa e sobre métodos e técnicas pertinentes ao tema se
articulam num-todo maior, guardando distinção e contri­
buindo para o maior entendimento dos problemas práticos
envolvidos. Mas é preciso dizer que elas são fundamentais
para essa área, em que a realidade dos fatos está inteira e in­
tensamente permeada pelo campo simbólico e afetivo.
As dificuldades teóricas do campo da saúde podem ser
exemplificadas pelas limitações de conceitos como "Saúde
Pública" ou "Saúde Coletiva". O primeiro consagra uma di­
mensão histórica de intervenção do Estado na área social, de
forma mais ampla e complexa do que a definida pelas diretri­
zes sanitárias oficiais. O segundo termo também é ambíguo e
inespecífico. Donnangelo (1983) e Merhy (1985) detectam a
imprecisão do adjetivo coletivo para conceituar um campo da
saúde, por causa da ampla conotação que comporta e pela
relação de exterioridade que estabelece ante o objeto. Essa
ambigüidade se torna muito presente em Teixeira (1985) quan­
do a autora considera "Saúde Coletiva" como um conceito
operacional para se analisar corpos sociais, reduzindo as di­
mensões teóricas e históricas desta noção bastante imprecisa
a uma ferramenta de pesquisa.
Tento, neste livro, ampliar a compreensão do conceito
sociológico de saúde para que abranja a totalidade das rela­
ções sociais e dos investimentos emocionais que contêm e se
expressam no cultural, lembrando com Boltanski (1979) que:

"Os determinismos sociais não informam jamais o


corpo de maneira imediata, por meio de uma ação que se
exercería diretamente sobre a ordem biológica sem a me­
diação do cultural que os re-traduz e os transforma em
regras, em obrigações, em proibições, em repulsas ou de­
sejos, em gostos e aversões" (Boltanski, 1979, p. 119).

Tal como é pensado neste trabalho, o conceito sociológi­


co de saúde retém ao mesmo tempo suas dimensões biológi­
cas, estmturais e políticas e contém os aspectos histórico-cul-
turais e simbólicos de sua realização. Em primeiro lugar, como
questão humana e existencial, saúde é um bem complexo,
compartilhado indistintamente por todos os segmentos e di-
versidades sociais. Isso implica que, para todos os gmpos, ain­
da que de forma específica e peculiar, saúde e doença expres­
sam, agora e sempre, no corpo ou na mente, particularidades
biológicas, sociais e ambientais vividas subjetivamente, na
peculiar totalidade existencial do indivíduo ou dos gmpos.
As formas como cada pessoa e a sociedade onde ela se insere
experimentam esses fenômenos, cristalizam e simbolizam as
maneiras pelas quais lidam com seu medo da morte e exorci­
za seus fantasmas.
Em segundo lugar, como qualquer tema abrangente do
cultural, o conceito de saúde aqui será analisado dentro de
uma sociologia que primeiramente é histórica e diferencia clas­
se, segmentos, gênero e faixas etárias. Uma vez que^s condi-
ções de vida e de trabalho qualificam de fornia diferenciada a
maneira pela qual as classes, as etnias, os gêneros e seus seg-
mentos pensam, sentem e agem a respeito dela._.
Dessa forma, as modalidades de análises qualitativas aqui
propostas, na sua aplicação (a) devem ser contextualizadas,
permitindo distinguir as visões dominantes das outras for­
mas de pensar a realidade (pois as classes e segmentos se en­
contram entre si, no seio de uma sociedade em relação e em
aculturação recíproca); (b) devem levar em conta a origem e a
historicidade dos fatos sociais e dos gmpos que estão sendo
estudados; (c) devem incluir os espaços formais da economia
e da política como matrizes essenciais da cultura da família,
da vizinhança, dos gmpos etários, dos gmpos de lazer, dos
gmpos religiosos, mas também percebê-los como sendo per­
meados por esse mundo da vida; (d) devem considerar espa­
ços ao mesmo tempo de consensos e de conflitos, contradi­
ções, subordinação e resistência, tanto as unidades de trabalho
como o bairro, o sindicato como a casa, a consciência como o
sexo, a política como a religião.
Introduzindo a cultura na definição do conceito de saú­
de, a visão qualitativa demarca um espaçamento radical: ela
amplia e contém as articulações da realidade social. Pensada
assim, cultura não é apenas um lugar subjetivo, ela abrange
uma objetividade com a espessura que tem a vida, por onde
passa o econômico, o político, o religioso, o simbólico e o ima­
ginário. Ela é o locus onde se articulam os conflitos e as conces­
sões," as tradições e as mudanças e onde tudo ganha sentido,
ou sentidos, uma vez que nunca há nada humano sem signi­
ficado e nem apenas uma explicação para os fenômenos.
Em resumo, saúde e doença importam tanto por seus efei­
tos no corpo como por suas repercussões no imaginário: am­
bos são reais em suas conseqüências. Portanto, todas as ações
clínicas, técnicas, de tratamento, de prevenção ou de planeja­
mento devem estar atentas aos valores, atitudes e crenças das
pessoas a quem a ação se dirige. É preciso entender que, ao
ampliar suas bases conceituais incluindo o social e o subjeti­
vo como elementos constitutivos, as ciências da saúde não se
tornam menos "científicas", pelo contrário, elas se aproximam
com maior luminosidade dos contornos reais dos fenôme­
nos que abarcam.
De qualquer forma, devo sublinhar que a abordagem so-
cioantropológica da saúde, do ponto de vista cultural e quali­
tativo, não constitui uma ideologia e não institui uma po­
sição unívoca. Historicamente ela é perpassada pelo debate
teórico das ciências sociais. O estmtural-funcionalismo tem
marcado a linha do conhecimento dos gmpos étnicos e so­
ciais a partir da antropologia, sobretudo vincplado à "medi­
cina tropical" e como subsídio às "ciências da conduta" (Nu­
nes, 1985; 1999). Seu enraizamento no campo da saúde,
evidencia, entre outras questões, o fato de que as próprias
bases do funcionalismo se espelham no modelo biológico
como metáfora da sociedade.
Das abordagens qualitativas, a fenomenologia é a que tem
tido maior relevância na área da saúde. As análises fúndamen-
tadas em seus pressupostos mostram que as concepções de
saúde e doença são culturalmente específicas. Por isso evi­
denciam a arbitrariedade do Estado na imposição de padrões
culturais próprios da biomedicina, que tem um caráter repro­
dutor das instituições médicas e da dominação corporativa.
Proposições da política de atenção primária, de autocuidado,
revalorização da medicina tradicional comunitária e de certos
grupos de investigação-ação e de pesquisa participante em
saúde reverberam as influências fenomenológicas (Nunes,
1985; Garcia, 1983). As aproximações dialéticas que partem
do ponto de vista dos sujeitos sociais e abrangem as relações
de produção e de poder das instituições continuam escassas.
E tentando somar esforços com os que buscam ampliar o
debate teórico e metodológico nq campo da saúde, que colo-
co este trabalho dentro de uma perspectiva específica de aná­
lise qualitativa. Em nenhum momento pretendi ou pretendo
veicular a idéia de um livro acabado ou magistral. A revisão
aqui encetada mostra que tudo passa, e se mesmo tudo o
que sólido desmancha no ar, muito mais razão tenho para
desconfiar de minhas poucas certezas.
Do ponto de vista de sua organização, este livro desdo-
bra-se num conjunto de partes, cada uma com alguns capí­
tulos incluídos, focalizando sempre as questões metodo­
lógicas.
A idéia central da prática teórica 'é que toda pesquisa deve­
ria realizar-se dentro da dinâmica de Ciclo a partir de um pro­
cesso de trabalho que termina num produto provisório e reco­
meça nas interrogações lançadas pela analise final. As páginas
seguintes são a explicitação desse esforço, mediante a reflexão e
a crítica de conceitos e da proposta de um caminho de pen­
samento.
Na primeira parte, apresento os pressupostos e especifici-
dades próprias ao campo metodológico, ou seja, os conceitos
de Metodologia, de Pesquisa Social, de Pesquisa Estratégica e
dos termos Qualitativo e de Quantitativo.
Na segunda parte, trato das principais correntes de pensa­
mento utilizadas para análises na área da saúde coletiva e apre­
sento resumidamente alguns tipos de abordagem qualitativas
hoje disponíveis ao investigador que queira se aproximar dessa
modalidade de estudo.
Na terceira parte, desenvolvo todos os elementos necessá­
rios para o cumprimento da primeira etapa do Ciclo de Pes­
quisa) a Fase Exploratória da Pesquisa cuja importância funda­
mental é superar o empirismo nas abordagens das questões
sociais. Estão aí discutidos os conceitos básicos de um marco
teórico, a problemática de definição do objeto, a constmção
dos instrumentos de abordagem empírica, a amostragem na
investigação qualitativa e a aproximação do campo.
Na quarta parta, abordo o momento do Trabalho de Cam­
po, como segunda etapa do Ciclo de Pesquisa, em dois capí­
tulos. No primeiro, trato de dois conceitos fundamentais; o
status da palavra e da fala e o tema das representações sociais.
Num segundo capítulo, aprofundo e problematizo as técni­
cas de campo: Observação Participante, Entrevista, Crupos
Focais e outras.
Por fim, na quinta parte exponho as modalidades mais
freqüentes de Tratamento do Material Qualitativo, isto é, os
conceitos de Análise de Conteúdo, de Discurso e de Análise
Hermenêutico-Dialética. Termino com uma proposta prática,
buscando sintetizar e ultrapassar as modalidades usuais de
abordagem.
O Ciclo completo projeta a investigação como um proces­
so com etapas e atividades específicas em cada fase, que po­
dem e devem ser delimitadas em cronograma. Ao mesmo tem­
po, apresento a visão de um movimento reflexivo permanente
de integração das partes no todo e vice-versa, em sucessivo
recomeço e enriquecimento.
O sentimento de que proponho algo que se completa com
a relatividade do que deve ser ainda interrogado e descoberto
faz parte da utopia que une este trabalho a todos os esforços
daqueles que buscam uma "ciência mais científica" no campo
da saúde. Nele compartilho a idéia de que o conhecimento é
um processo infinito e não há condição de fechá-lo numa
fase final, assim como não se pode prever o final do processo
histórico^embora seja possível projetá-lp comn^SolitTcãmen-
te mais democrático e ecologicamente saudável.
Parte I
CONCEITOS BÁSICOS SOBRE METODOLOGIA
E SOBRE ABORDAGENS QUALITATIVAS

N a SOCIEDADE OCIDENTAL, a ciência é a forma hegemô­


nica de constmção do conhecimento, emhora seja considera­
da por muitos críticos como um novo mito da atualidade
por causa de sua pretensão de ser o único motor e critério de
verdade. Particularmente não concordo com os que ahsolu-
tizam o sentido e o valor da ciência, pois a humanidade sem­
pre, desde que existe o Homo sapiens, criou formas de explicar
os fenômenos que cercam a vida e a morte e o lugar dos in­
divíduos na organização social, assim como os mecanismos
de poder, de controle e de reprodução. Desde tempos ime­
moriais, as religiões, a filosofia, os mitos, a poesia e a arte têm
sido instrumentos poderosos de conhecimento, desvendan­
do lógicas profundas do inconsciente coletivo, da vida co­
tidiana e do destino humano. O que a ciência possui de dife­
rencial em relação às outras modalidades de saher?
Mencionarei duas razões da hegemonia contemporânea
da ciência como forma de conhecimento. Uma externa, que
se acelerou a partir da modernidade, e diz respeito a seu po­
der de dar respostas técnicas e tecnológicas aos problemas
postos pelo desenvolvimento social e humano. Embora esse
ponto seja discutível, uma vez que problemas cruciais como
pobreza, miséria, fome e violência continuam a desafiar as
civilizações sem que a ciência tenha sido capaz de oferecer
respostas e propostas efetivas. A razão de ordem interna con­
siste no fato de os cientistas terem sido capazes de estabele­
cer uma linguagem universal, fundamentada em conceitos,
métodos e técnicas para a compreensão do mundo, das coi­
sas, dos fenômenos, dos processos, das relações e das repre­
sentações.
Regras universais e padrões rígidos permitindo uma lin­
guagem comum divulgada e conhecida no mundo inteiro,
atualização e críticas permanentes fizeram da ciência a "cren­
ça" mais respeitável a partir da modernidade. A força da ciên­
cia, que se tornou um fator produtivo de elevada potência
na contemporaneidade, levou o filósofo Popper (1973) a dar
ênfase em suas análises à lógica interna da Comunidade
Científica, utilizando para isso a expressão o terceiro mundo,
uma espécie de classe ou casta, com sua economia e lógica
próprias, embora permeado por conflitos e contradições como
qualquer outra criação e instituição humana. O certo é que o
campo científico tem suas regras para conferir o grau de cien-
tificidade ao que é produzido e reproduzido dentro e fora
dele. Suas atividades caminham sempre em duas direções —
numa, elabora suas teorias, métodos, princípios e estabele­
ce resultados. Noutra, inventa, ratifica seu caminho, aban­
dona certas vias e orienta-se por novas rotas. Ao se enveredar
nesse terceiro mundo, os cientistas aceitam as condições insti­
tuídas e, ao mesmo tempo, o caráter de historicidade e provi-
soriedade peculiar do universo em que decidiram investir sua
vida.
Ao introduzir o leitor nesta parte do trabalho, pretendo
discutir com ele aqueles mecanismos internos e normativos
que asseguram a cientificidade das atividades de pesquisa.
Apresento alguns conceitos importantes para quem entra no
universo da investigação científica, especificamente os do cam­
po semântico da expressão Metodologia de Pesquisa Social. Dis­
cutirei: (1) a especificidade das ciências sociais no universo
científico; (2) o conceito de metodologia de pesquisa; (3) o
conceito de pesquisa social; (4) o conceito de método quali­
tativo em contraposição a método quantitativo; (5) as con­
tradições e os consensos na combinação de métodos quanti­
tativos e qualitativos.
sà'. I '
Capítulo 2
METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL
E EM SAÚDE

Especificidade das Ciências Sociais

A C I E N T I F I C I D A D E não pode ser reduzida a só uma forma


de conhecer: ela pré-contém, por assim dizer, diversas manei­
ras concretas e potenciais de realização. A diferenciação entre
métodos específicos das ciências sociais e das ciências físico-
naturais e biológicas refere-se à natureza de cada uma das áreas.
Aqui se ressaltam alguns pontos que distinguem as Ciências
Sociais e as tornam peculiares no campo do conhecimento
dos seres vivos, resumidos a partir de Demo (1981).
O primeiro deles é o fato incontestável de que o objeto
das Ciências Sociais é histórico. As sociedades humanas exis­
tem num determinado espaço cuja formação social e configu­
rações culturais são específicas. Elas vivem o presente marca­
do pelo passado e projetado para o futuro que em si traz,
dialeticamente, as marcas pregressas, numa re-constmção cons­
tante do que está dado e do novo que surge. Toda investL
gação social precisa registrar a historicidade hurnana, respei-
tando a especificidade da cultura que traz em si e, de forma
complexa, os traços dos acontecimentos de curta, média e longa
duração, expressos em seus bens materiais e simbólicos. Mas
as pesquisas sociais contemporâneas precisam também Qonv
preender a simultaneidade das diferentes culturas e dos dife­
rentes tempos num mesmo espaco, como algo real e que en­
riquece a humanidade. Isso significa compreender o global e
o local, convivendo ^e sendo, ao mesmo tempo, mutáveis e
permanentes. Pois o ser humano é autor das instituições, das
leis, das visões de mundo que, em ritmos diferentes, são to­
das provisórias, passageiras, trazendo em si mesmas as semen­
tes de transformação.
Como conseqüência do primeiro princípio, pode-se dizer
que d sociedade e os indivíduos têm consciência, histórkã^Ou
seja, não é apenas o investigador que dá sentido a seu traba­
lho intelectual, mas os seres humanos, os gmpos e a socieda­
de dão significado e intencionalidade e interpretam suas ações
e construções'.! Àslnstituições £ as esfnfiufás Itãda^nãis sãd>
^ e ações humanas objetivadas. [De acordo com o desenvol­
vimento das forças produtivas e com a organização particular
da sociedade e de sua dinâmica interna, criam-se visões de
mundo, com nuanças e diferenciações relacionadas às condi­
ções de vida e às heranças culturais. Tal consciência se projeta
no mundo da vida, assim como passa a ser registrada nos pro­
cessos emditos de construção do conhecimento.
Goldmann (1980) introduz nas suas análises da cultura
os conceitos d e [consciência possível)e d e jconsciência real} para
separar os diferentes níveis de elaboração ideológica. Essas
categorias baseiam-se no conceito marxista de ideologia, se­
gundo o qual a sociedade tende a perceber a dominação de
forma invertida. O conceito de "consciência possível" indica­
ria que determinados atores sociais superariam os níveis ele­
mentares da ideologia, conseguindo compreender melhor e
atuar positivamente diante dos processos de alienação social.
No entanto, a idéia de consciência histórica traz também em­
butida em si a tese de que se deve sempre analisar a contribui­
ção de determinado ator social ou coletivo levando em conta
o tempo histórico em que viveu, pois seu conhecimento e
sua prática são relativos aos limites das relações sociais de pro­
dução concretas. O pensamento e a consciência são processos
que, ao mesmo tempo, têm como base a dinâmica histórica
que por sua vez é influenciada pelas ideologias. As ciências
sociais são também fmto de um tipo de "consciência possí­
vel" e fazem parte dos bens públicos e coletivos criados histo­
ricamente, tendo por limites o desenvolvimento social.
Os pesquisadores são, dialeticamente, autores e frutos de
seu tempo histórico. Crises, conflitos e contradições têm re­
flexo tanto no desenvolvimento como na decadência de pen­
sadores e de teorias sociais. As transformações socioeconõmi-
cas e culturais, por sua vez, influenciam decisivamente os
processos internos e as condições de possibilidades do de­
senvolvimento da ciência.
Uma terceira característica das Ciências Sociais é que elas
trabalham no nível á a liâeniiãããe entre o sujeito e o objetivg da
investigação. A pesquisa nessa área lida com seres humanos
que, por razões culturais, de classe, de idade, de religião ou
por qualquer outro motivo, têm um substrato comum de iden­
tidade com o investigador, tornando-os solidariamente im-
bricados e comprometidos como lembra Lévi-Strauss: "Numa
ciência onde o observador é da mesma natureza que o obje­
to, o observador, ele mesmo, é parte de sua observação" (1975,
p. 215). Isso significa, segundo o pensamento de autores como
Schultz (1982) que o primeiro constmto interpretativo das
investigações sociais é realizado pelos próprios atores no ní­
vel do senso comum. Por isso, é papel do pesquisador com­
preender essa lógica interpretativa de "primeiro nível", uma
vez que ela é potente e eficaz para fazer o mundo da vida se
realizar.
Outro aspecto distintivo das Ciências Sociais é o fato de
que ela é^ trínsêcà e extrinsecamente ideológica. Ninguém hoje
ousaria negar ã evidencia de que toda ciência, em sua constm-
ção e desenvolvimento, passa pela subjetividade e por inte­
resses diversos. Nos processos de produção do conhecimen-
,to se veiculam interesses e visões de mundo historicamente
constmídos. Mas as ciências físicas e biológicas participam de
forma diferente do comprometimento social, uma vez que
existe um distanciamento de natureza do físico e do biológi­
co em relação a seu objeto. Embora, sempre exista um imbri-
camento relacionai entre o pesquisador e seu objeto, uma vez
que, de um lado, o investigador depende dos artefatos cria­
dos anteriormente por outros; e de outro, ele é limitado pelo
nível de desenvolvimento desses dispositivos.
Na investigação social, porém, a relação entre o sujeito
investigador e o sujeito investigado é crucial. A visão de mun­
do de ambos está implicada em todo o processo de conheci­
mento, desde a concepção do objeto até o resultado do tra­
balho. O reconhecimento dessa contingência é uma condição
sine qua non da pesquisa que, uma vez compreendida, pode
ter como fruto investimentos radicais no processo de objetiva-
ção (Demo, 1981) do conhecimento. Isto é, cabe ao pesquisa­
dor usar um acurado instrumental teórico e metodológico que
o municie na aproximação e na constmção da realidade, ao
mesmo tempo que mantém a crítica não só sobre as condi­
ções de compreensão do objeto como de seus próprios pro­
cedimentos.
Por fim, é preciso declarar que o objeto das Ciências So­
ciais é essencialmente qualitativo. A realidade social é o pró-
prio dinamismo da vida individual e coletiva com toda a ri-
^ e z a de significados que transborda dela. A possibilidade
de enumérãção dos fatos, por exemplo, é uma qualidade do
indivíduo e da sociedade que contêm, em si, elementos de
homogeneidade e de regularidades. Essa mesma realidade é
mais rica que qualquer teoria, que qualquer pensamento e
qualquer discurso político ou teórico que tente explicá-la.
Portanto, trabalhar dentro dos marcos das Ciências So­
ciais significa enfrentar o desafio de manejar ou criar (ou fazer
as duas coisas ao mesmo tempo) teorias e instmmentos capa­
zes de promover a aproximação da suntuosidade e da diversi­
dade que é a vida dos seres humanos em sociedade, ainda
que de forma incompleta, imperfeita e insatisfatória. O acer­
vo dessas Ciências contempla o conjunto das expressões hu­
manas constantes nas estruturas, nos processos, nas relações,
nos sujeitos, nos significados e nas representações. As regula­
ridades desse conjunto de elementos se expressam nas abor­
dagens quantitativas, fazendo a junção das dimensões de ex-
tensividade e de intensividade inerentes a todos os processos
que dizem respeito aos seres vivos e, principalmente, aos se­
res humanos. Como lembra Kant em sua Matemática Transcen­
dental, a quantidade é, em si mesma, uma qualidade do obje­
to, assim como a qualidade é um dos elementos da quantidade.
Por exemplo, quando se fala de Saúde ou Doença, obser­
va-se que essas duas categorias trazem uma carga histórica,
cultural, política e ideológica que não pode ser contida ape­
nas numa formula numérica ou num dado estatístico, embo­
ra os estudos de ordem quantitativa apresentem um quadro
de magnitude e de tendências que as abordagens históricas e
socioantropológicas não informam. Ambas as abordagens são
importantes e o ideal no campo da pesquisa em saúde é que
sejam trabalhadas de forma que se complementem sistemati­
camente. Gurvitch (1955) lembra que a realidade tem cama­
das que interagem e a grande tarefa do pesquisador é com­
preender e apreender, além do visível, do "morfológico e do
ecológico", os outros níveis que se interconectam e tornam o
social tão complexo.
Neste livro, porém, o escopo é específico: tratar do caráter
qualitativo das ciências sociais e da metodologia apropriada para
constmir teoricamente o significado de Saúde e de Doença.

Conceito de Metodologia

Começo dizendo que o próprio conceito de metodolo­


gia, foco da discussão, já é, em sim, assunto controverso. Há
quem o iguale a métodos e técnicas, como é caso da maior
parte dos manuais e textos americanos, produzidos para a
formação de pesquisadores. Há quem o coloque no campo
da epistemologia, separando-o da operacionalização, como
faz a maioria dos intelectuais franceses que trabalham com
teorias das ciências. Há quem separe teoria e método como
faz o cientista americano Thomas Merton (1969) e há os que
consideram esses dois termos inseparáveis, devendo ser trata­
dos de maneira integrada e apropriada quando se escolhe um
tema, um objeto, ou um problema de investigação. Filio-me
a este último gmpo que tem em Denzin (1973) um dos mais
brilhantes pensadores. Portanto, discutir metodologia é en­
trar num forte debate de idéias, de opções e de práticas.
Durante os últimos vinte anos venho tentando contribuir
para superar as posturas, muitíssimo freqüentes, de tratar se­
paradamente (Questões epistemológicas e instrumentos operacionais,
uma vez que considero o conceito de Metodologia de forma
abrangente e concomitante: (a) como a discussão epistemo-
lógica sobre o "caminho do pensamento" que o tema ou o
objeto de investigação requer; (b) como a apresentação ade­
quada e justificada dos métodos, das técnicas e dos instrumentos
operativos que devem ser utilizados para as buscas relativas às
indagações da investigação; (c) e como o que denominei "cri­
atividade do pesquisador", ou seja, a sua marca pessoal e es­
pecífica na forma de articular teoria, métodos, achados expe­
rimentais, observacionais ou de qualquer outro tipo específico
de resposta às indagações científicas.
A metodologia ocupa lugar central no interior da sociolo­
gia do conhecimento, uma vez que ela faz parte intrínseca da
visão social de mundo, veiculada na teoria. Em face da dialéti­
ca, por exemplo, o método é o próprio processo de desenvol­
vimento das coisas. Lênin comenta que o método não é a
forma exterior, é a própria alma do conteúdo porque ele faz a
relação entre pensamento e existência e vice-versa (1955, p.
148). A metodologia constitui o "caminho do pensamento",
segundo Habermas (1987), e constitui uma "prática teórica
pensada", na expressão de Bourdieu em Ésquisse d'une Théorie
de la Pratique (1972). Isso quer dizer, trocando em miúdos,
que é diferente pensar a metodologia de uma pesquisa de
inspiração funcionalista, ou marxista, ou fenomenológica ou
que utilize a abordagem sistêmica. Por sua vez, é diferente
pensar o desenho e a metodologia de uma pesquisa unidisci-
plinar ou a que tem caráter interdisciplinar e se fundamenta
na filosofia da complexidade.
Neste estudo, portanto, teoria e metodologia caminham
juntas e vinculadas. Por sua vez, o conjunto de técnicas que
constitui o instmmental necessário para aplicação da teoria
aqui é tratado como elemento fundamental para a coerência
metódica e sistemática da investigação. Evito tanto o endeu-
samento teórico como a reificação da realidade empírica, por­
que no primeiro caso há um menosprezo pela dinâmica dos
fatos. E no segundo, concretiza-se uma redução da verdade à
dimensão dos acontecimentos localizados. A excessiva teori-
zação e a improvisação de instmmentos para abordar a reali­
dade, provenientes de uma perspectiva pouco heurística, pro­
duzem divagações abstratas, impressionistas e pouco precisas
em relação ao objeto de estudo.
Se teoria, método e técnicas são indispensáveis para a in­
vestigação social, a capacidade criadora e a experiência do pes­
quisador também jogam papel importante. Elas podem rela-
tivizar o instmmental técnico e superá-lo pela arte. O que se
denomina "criatividade do pesquisador" é algo difícil de se
definir, uma vez que esta expressão se refere ao campo da
história pessoal e da experiência subjetiva. Este termo é aqui
usado no mesmo sentido em que Wright Mills (1972; 1974) e
Denzin (1973) denominam "imaginação" e outros autores
falam de "intuição". Essa "criatividade do pesquisador" cor­
responde a sua experiência reflexiva, a sua capacidade pessoal
de análise e de síntese teórica, a sua memória intelectual, a
seu nível de comprometimento com o objeto, a sua capacida­
de de exposição lógica e a seus interesses. Fazendo coro com
grande número de estudiosos (Weber, 1965; Gadamer, 1999;
Habermas, 1987; Myrdal, 1969; Granger, 1967; Gurvitch, 1955;
Denzin, 1973; dentre outros), entendo que não se pode acre­
ditar em ciência neutra, pois todo o processo de constmção
teórica é, ao mesmo tempo, uma dialética de subjetivação e
de objetivação. Assim o que aqui considero "criatividade do
pesquisador" diferencia os resultados das investigações, o que
pode ser constatado quando vários trabalham têm os mes­
mos objetos e as mesmas indagações.
A reflexão sobre metodologia enquanto sistemática de
abordagem da realidade é assunto para pesquisadores comuns
que se exercitam em seus respectivos campos de conhecimen­
to. Os gênios não precisam desses dispositivos, pois atraves­
sam parâmetros estabelecidos e projetam, em poucas linhas,
novos insights, modificando paradigmas em seus campos cien­
tíficos (Kuhn, 1962).

Conceito de Pesquisa Social

Entrar no campo da Pesquisa Social é penetrar num mun­


do polêmico onde há questões não resolvidas e onde o deba­
te tem sido perene e não conclusivo. O tema mais problemá­
tico é o da sua própria cientificidade que deve ser pensado
como uma idéia reguladora de alta abstração e não como si­
nônimo de modelos e normas a serem seguidos. Entendo que
deve existir uma unidade no mundo da ciência quando se diz
que qualquer produção científica só pode ser reconhecida
quando contém teoria, métodos e técnicas de abordagem. E
todo discurso teórico deve conter conceitos, categorias, teses
e hipóteses ou pressupostos. Esses são elementos indispen­
sáveis e universais de auto-regulação do processo de conheci­
mento. Mas também entendo que a unidade científica deve
ser tratada de forma complexa, incluindo a diversidade das
áreas de conhecimento, no interior das quais todo o arcabou­
ço teórico geral se transforma em especificidade e adequação.
Nesse sentido, o labor científico caminha sempre em duas
direções: numa, elabora marcos teórico-metodolõgicos e ins­
trumentais operativos para conseguir resultados; noutra, in­
venta, ratifica caminhos, abandona certas vias, faz novas inda­
gações e se orienta para outras direções. Ao fazer essas trilhas,
os investigadores aceitam os critérios de historicidade, de cola­
boração e da única certeza possível: a de que qualquer conhe­
cimento é aproximado, é constmído. A história da ciência re­
vela não um a priori, mas o que foi produzido em determinado
momento histórico com toda a relatividade que o dinamis­
mo do processo social requer.
Defino Pescjuisa como a atividade básica das Ciências na
sua indagação e construção da realidade. É a pesquisa que
alimenta a atividade de ensino. Pesquisar constitui uma atitu­
de e uma prática teórica de constante busca e, por isso, tem a
característica do acabado provisório e do inacabado perma­
nente. É uma atividade de aproximação sucessiva da realidade
que nunca se esgota, fazendo uma combinação particular en­
tre teoria e dados, pensamento e ação.
Compreendo como Pescjuisa Social os vários tipos de in­
vestigação que tratam do ser humano em sociedade, de suas
relações e instituições, de sua história e de sua produção sim­
bólica. Como quaisquer fenômenos humanos, investigações
sociais estão relacionadas a interesses e circunstâncias social­
mente concatenadas. Pesquisas nascem de determinado tipo
de inserção no real, nele encontrando razões e objetivos. En­
quanto prática intelectual, o ato de investigar reflete também
dificuldades e problemas próprios das Ciências Sociais, so­
bretudo sua intrínseca relação com a dinâmica histórica.
Conceituo como Pescjuisa social em saúde todas as investi­
gações que tratam do fenômeno saúde/doença, de sua repre­
sentação pelos vários atores que atuam no campo: as institui­
ções políticas e de serviços e os profissionais e usuários.
Analisando o conceito de pesquisa do ponto de vista an­
tropológico, pode-se dizer que sempre existiu a preocupação
do Homo sapiens com o conhecimento da realidade. As tribos
primitivas, por meio dos mitos, já tentavam explicar os fenô­
menos que cercam a vida e a morte, o lugar dos indivíduos na
organização social com seus mecanismos de poder, controle,
convivência e reprodução do conjunto da existência social.
Dentro das dimensões de espaço e tempo, a religião tem sido
um dos relevantes fenômenos explicativos das indagações dos
seres humanos sobre os significados da existência individual
e gmpal.
Hoje todas as modalidades de conhecimento convivem
concomitantemente, buscando soluções para dramas huma­
nos e para o avanço da humanidade. Uma delas é hegemôni­
ca: a Ciência. As Ciências na era moderna conseguiram se cons­
tituir como esquemas de explicações dominantes. Nessa etapa
do desenvolvimento do capitalismo pós-industrial, elas se
tornaram a força produtiva mais importante da história. Nem
por isso, no entanto, seu arcabouço explicativo é exclusivo e
conclusivo. Os problemas atuais dos seres humanos e da or­
ganização social trazem questões cmciais como a fome, a mi­
gração, a violência, para as quais a ciência, mesmo a social,
continua sem resposta e sem formulações.
Do ponto de vista histórico, a Pesquisa Social vem carre­
gada de ênfases e interesses mais amplos do que seu campo
específico. Alguns autores, como Schrader (1978) fazem uma
revisão dessa prática acadêmica no tempo, mostrando que ela
nasceu de grupos contestadores das desigualdades produzi­
das pela sociedade industrial. Seu desenvolvimento exponen-
cial se deu na segunda metade do século XX e muitos pesqui­
sadores renomados como Lazarsfeld, Jahoda e Gunnar Myrdal
iniciaram suas carreiras de investigadores na busca de solução
para os problemas sociais causados pela Segunda Guerra Mun­
dial. Nos Estados Unidos, por exemplo, ela nasceu nos jor­
nais de crítica social, segundo o autor.
Mas não existe uma história única da pesquisa social. Na
Inglaterra, por exemplo, os antropólogos avançaram muito
na compreensão de sociedades primitivas, realizando pesqui­
sas de interesses dos colonizadores. No entanto, as investiga­
ções antropológicas levantaram questões que contrariavam os
interesses da metrópole e dos seus financiadores, trazendo à
luz temas como o do relativismo cultural, do pensamento
lógico dos primitivos e da auto-suficiência de sua organização
social.
' A partir da Segunda Grande Guerra, com a ampliação do
poder dos Estados Unidos e sob o signo da industrialização,
do crescimento econômico e populacional, houve grande avan­
ço da pesquisa social voltada para o planejamento estratégico
e para a produção de intervenções na organização dos meios
gerais de produção e de reprodução e, sobretudo, na avalia­
ção dos investimentos públicos e privados voltados para o
desenvolvimento. Particularmente muito foi investido no di-
mensionamento dos chamados problemas, sociais referentes
à pobreza, à saúde, à educação e às políticas de bem-estar. O
termo Pescjuisa em Políticas Sociais passou a significar um cam­
po científico com implicações imediatas do ponto de vista de
controle do Estado. A proliferação de centros de pesquisas
sociais, tanto nos países industrializados como nos subde­
senvolvidos, veio junto com o interesse do poder público de
conhecer, regular e controlar a sociedade civil ou de articular-
se com ela para solucionar as mazelas sociais sempre presen­
tes no capitalismo e aprofundadas no atual período de pós-
industrialização.
Do ponto de vista teórico e formal, existe uma classifica­
ção tradicional que divide a Pesquisa em "pura" e "aplicada".
O investigador inglês, Bulmer (1978), questiona o reducio-
nismo dessa classificação. Gomenta que "pura ou básica" e
"aplicada" referem-se a uma falsa divisão do conhecimento,
uma vez que pesquisas teóricas podem ter e têm importan­
tes conseqüências práticas; e pesquisas aplicadas costumam
ter implicações e contribuições teóricas. Essa dicotomia ba-
seia-se no modelo de tecnologia em que o cliente que paga
explicita o que quer. Tal exigência se torna inadequada às
ciências sociais.
Bulmer (1978) propõe uma classificação alternativa de Pes­
quisa Social, substituindo a divisão tradicional. As cinco mo­
dalidades, referidas abaixo, constituem, segundo o autor, "ti­
pos" dentro de um continuum, com o mérito de dar visibilidade
e legitimidade a diferentes formas de abordar a realidade:
1. Pesquisa básica: preocupa-se com o avanço do conheci­
mento por meio da construção de teorias e teste delas ou tam­
bém com a satisfação da curiosidade científica. Ela não tem
um objetivo prático em seu projeto inicial, embora as desco­
bertas advindas dos dados gerados possam influenciar e sub­
sidiar tanto políticas públicas, novas descobertas, investimen­
tos, decisões dos homens e mulheres de negócio como avanços
na consciência social.
2. Pesquisa estratégica: baseia-se nas teorias das ciências so­
ciais, mas orienta-se para problemas concretos, focais, que sur­
gem na sociedade, ainda que não caibam, ao investigador, as
soluções práticas para os problemas que aponta. Ela tem a
finalidade de lançar luz sobre determinados aspectos da reali­
dade. Seus instrumentos são os mesmos com que a pesquisa
básica atua, tanto em termos teóricos como metodológicos,
mas sua finalidade é a ação governamental ou da sociedade.
Essa modalidade seria a mais apropriada para o conhecimen­
to e a avaliação de problemas e políticas dcv setor Saúde.
3. Pesquisa orientada para problemas específicos: é uma mo­
dalidade operacional que é, em geral, realizada dentro das ins­
tituições governamentais e não-governamentais e empresas,
visando ao conhecimento imediato. Eundamenta-se, sem ne­
cessariamente explicitá-lo, nos conhecimentos gerados por in­
vestigações básicas. Os resultados desse tipo de pesquisa vi­
sam a ajudar a lidar com questões práticas e operacionais.
4. Pesquisa-Ação: consiste na investigação que segue pari
passu o desenvolvimento de programas sociais ou governa­
mentais para medir o seu impacto. A definição desse termo
por Bulmer (1987) difere do conceito de pesquisa-ação apre­
sentado por Thiollent (1986), segundo o qual, por pesquisa-
ação se entende um tipo de investigação social com base em­
pírica, concebida e realizada em estreita associação com uma
ação voltada à resolução de problemas comunitários e sociais.
Nessa modalidade, os pesquisadores e participantes represen­
tativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo
cooperativo ou participativo. A diferença básica das concei-
tuações de Bulmer e Thiollent reside no fato de que, no pri­
meiro caso, a investigação acompanha as ações dos progra­
mas, mas é externa a elas. No segundo, o envolvimento do
pesquisador e dos que atuam é parte integrante da pesquisa.
5. Pesquisa de Inteligência: que se refere aos grandes levan­
tamentos de dados demográficos, econômicos, estatísticos,
epidemiológicos, realizados por especialistas geralmente vin­
culados a instituições públicas ou empresas, visando ao pla­
nejamento e ã formulação de políticas específicas e à tomada
de decisão. Os Censos e as Pesquisas do IBGE são exemplos
clássicos de pesquisas de inteligência. De forma simplificada,
as Pesquisas de Opinião Pública preenchem também essa fun­
ção sociológica (Bulmer, 1978, pp. 8-9).
Bulmer comenta, referindo-se ao campo das Investigações
Estratégicas, que a "Pesquisa Básica" tem tido, como sua mar­
ca permanente, uma forte orientação unidisciplinar, dificul­
tando sua aplicação para políticas públicas. Na ponta oposta,
os estudos interdisciplinares têm sido bastante questionados
pela pouca consistência teórico-metodológica. Segundo ele,
os surveys se tornaram o reino do senso comum, pois freqüen-
temente estão orientados: (a) pelo "empirismo" e pelo "posi­
tivismo", cuja ideologia se baseia no princípio de que os fatos
falam por si mesmos e de que nada existe além dos dados; (b)
ou por interesses políticos dos cientistas ou de autoridades
que encomendam e financiam seu trabalho. Neste segundo
caso, há um pressuposto, geralmente falseado pela realidade,
de que os governantes e políticos precisam conhecer os fatos
para poderem optar ao tomar decisões. O risco do empirismo
e do positivismo é a minimização dos problemas teóricos e
da redução do papel do pesquisador a um levantador de da­
dos técnicos e provedor de informações. Uma vez que apre­
senta sua visão técnica da realidade, seu papel cessa, e a inter­
pretação passa a ser conduzida por outros, e as relevâncias
são expostas por interesses políticos e econômicos, como lem­
bra Wright Mills (1952).
Minba experiência pessoal de mais de vinte anos no cam­
po da investigação social em saúde em colaboração com epi-
demiologistas me ensinou que não é preciso fazer escolhas
parciais. É possível desenvolver pesquisas básicas sobre temas
ainda pouco desenvolvidos, abrangendo problemas estraté­
gicos do ponto de vista de sua relevância social e direcionar os
resultados de forma operacional. Vários estudos da equipe do
Claves (Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência
e Saúde/Fiocruz) no qual trabalho, apontam para o fato de
que em todas as investigações da área de saúde coletiva é possível
juntar consistência teórica e relevância social na direção que aqui
menciono de forma bastante concreta: (1) já na construção
do projeto prever os produtos que se pretende construir; (2)
no seu desenvolvimento realizar todos os procedimentos (ge­
ralmente de forma interdisciplinar contendo aspectos socio-
antropológicos e epidemiológicos do problema em foco), teó­
ricos e metodológicos típicos de investigação básica; (3) no
processo de análise, direcionar a reflexão e os resultados para
descobrir ou compreender aspectos da realidade que necessi­
tam de intervenção, orientando-os para níveis de especifici­
dade; (4) em adendo constmir, com dados e análises da pes­
quisa, um texto complexo executivo, direto e curto que possa
servir à ação social.
Concluo dizendo que a Pesquisa Social não pode ser de­
finida de forma estática ou estanque. Ela precisa ser concei­
tuada historicamente e entendendo-se todas as injunções,
contradições e conflitos que configuram seu caminho. Por sua
vez, seu âmbito de ação precisa sair dos marcos da unidisci-
plina e do academicismo. Sobretudo no campo da saúde, a
realidade a ser abordada se apresenta sempre como uma tota­
lidade que envolve diferentes áreas de conhecimento e abran­
ge a dinâmica do mundo da vida.
E por fim, devo ressaltar ainda uma vez que o universo da
pesquisa social e dos pesquisadores vive sob o signo das con­
tingências'históricas. De um lado, estão as dificuldades de
financiamento que cerceiam ou restringem as possibilidades,
tanto da investigação como do encaminhamento de conclu­
sões. Do outro, existem questões éticas e científicas que o
investigador tem de enfrentar sobre a realidade e sobre o des­
tino do produto artesanal que realiza, no que diz respeito ao
alcance de suas ações e ao uso social que dela possa ser feito
para a sociedade em que vive.
Capítulo 3
CONTRADIÇÕES E CONSENSOS NA COMBINAÇÃO
DE MÉTODOS QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS

Discussão crítica
sobre métodos quantitativo e qualitativo

O C O N H E C I M E N T O C I E N T Í F I C O se produz pela busca de ar­


ticulação entre teoria e realidade empírica. O método tem uma
função fundamental: tornar plausível a abordagem da reali­
dade a partir das perguntas feitas pelo investigador. No campo
da saúde coletiva, os métodos freqüentemente usados para es­
tudos das populações humanas são os quantitativos (mais fre-
qüentes por meio da epidemiologia) e qualitativos (mais utili­
zados pelas ciências sociais). Ao se desenvolver uma proposta
de investigação e no desenrolar das etapas de uma pesquisa,
o investigador trabalha com o reconhecimento, a conveniên­
cia e a utilidade dos métodos disponíveis, em face do tipo de
informações necessárias para se cumprirem os objetivos do
trabalho.
Freqüentemente, a discussão relativa aos métodos quan­
titativos e qualitativos na abordagem do social e da saúde
coletiva tem-se desenvolvido de forma inadequada e por opo­
sição, muitas vezes irreconciliável, como mostra a história de
seu desenvolvimento (Pirès, 1982). A dicotomia que se esta­
belece na prática, como já foi referido anteriormente, não con­
diz com o que epistemologicamente é mais correto e plausí­
vel. Propriedades numéricas e qualidades intrínsecas são atri­
butos de todos os fenômenos, como lembra Kant (1980). No
entanto, historicamente, predominam estudos de ordem quan­
titativa do social, deixando à sombra questões de significado
e de intencionalidade.
Neste liVro trato sobretudo do método qualitativo. Por­
tanto, não elaboro nenhuma discussão aprofundada sobre o
método quantitativo e reconheço sua importância para a aná­
lise de magnitude dos fenômenos. Apenas me aposso de al­
gumas críticas que vêm sendo feitas a essa predominância,
por vários motivos: a forma de legitimação científica tradicio­
nal é a quantificação; a atividade intelectual fundada na men-
suração se tornou hegemônica na produção de dados para se
aplicarem às políticas públicas em todo o Ocidente desde a
Segunda Guerra Mundial; ao recusarem qualquer análise con-
textualizada da realidade por medo do risco da ideologiza-
ção, os investigadores deixam a porta aberta para a manipula­
ção dos dados pelo poder e, em conseqüência, consagram o
tecnicismo, tão bem definido por Théodore Roszak:

O grande segredo da tecnocracia do social é sua capa­


cidade de nos convencer do silogismo seguinte: que as
necessidades vitais do ser humano, contrariamente a tudo
o que nos foi ensinado pelos grandes sábios, são de cará­
ter puramente técnico, ou seja, que as exigências de nossa
espécie são suscetíveis de ser plenamente determinadas
por uma análise formal, conduzida por especialistas qua­
lificados; que essas exigências podem ser traduzidas em
programas sociais e econômicos e assim satisfeitas e que,
se um problema não tem solução técnica ele é apenas um
falso problema, uma ilusão, uma ficção nascida de qual­
quer tendência cultural regressiva (1970, p. 24).
O USO de métodos quantitativos tem o objetivo de trazer
à luz dados, indicadores e tendências observáveis ou produzir
modelos teóricos de alta abstração com aplicabilidade práti­
ca. Sua natureza diferencia-se, no dizer de Kant em sua Ma­
temática Transcendental (1980), por se referir ao plano da ex-
tensividade e das regularidades nos fenômenos. Nas ciências
sociais contemporâneas, a abordagem quantitativa está pro­
fundamente marcada pela reprodução do positivismo clássi­
co, segundo o qual: (a) o mundo social opera de acordo com
leis causais últimas; (b) o alicerce da ciência é a observação
sensorial; (c) a realidade consiste em estmturas e instituições
identificáveis enquanto dados bmtos por um lado, crenças e
valores, por outro; (d) estas duas ordens são correlacionadas
para fornecer generalizações e regularidades; (e) o que é real
são os dados estatísticos sobre os fatos, considerados dados
objetivos, portanto valores e crenças são realidades subjetivas
que só podem ser compreendidas a partir de análises quanti-
ficáveis (Hughes, 1983).
As restrições ao quantitativismo voltado para interpreta­
ção de informações sociais não se referem às técnicas que uti­
liza, uma vez que essas são instmmentos de trabalho indis­
pensáveis. Dirige-se ao reducionismo na avaliação da realidade
social. Adorno <& Horkheimer (1979) chegam a dizer que o
método positivista empírico ameaça fetichizar seus assuntos
e torna-se a si mesmo um fetiche, na medida em que reduz a
objetividade ao método e não atinge o conteúdo. Além das
críticas filosóficas citadas em Hughes (1983), os teóricos da
sociologia compreensiva acrescentam as seguintes: (a) as abor­
dagens quantitativas sacrificam os significados (Harrison, 1947;
Dilthey, 1956; Weber, 1949; Schutz, 1963); (b) elas partem
da crença ingênua de que as distorções na abordagem da rea­
lidade podem ser evitadas pela codificação; (c) os métodos
quantitativos quando se aplicam ao empírico tendem a sim­
plificar a complexa vida social limitando-a aos fenômenos que
podem ser enumerados (Park & Burgess, 1921); (d) geral-
mente, os quantitativistas trabalham apriorística e precon-
ceituosamente, tomando como familiar os fenômenos que
observam, sem levar em conta os sentidos que os fatos e as
coisas têm para os sujeitos que os vivem (Harrison, 1947;
Schutz, 1964 1 ____________
^O^ue é o método qualitativo?]o método qualitativo é o
q u e ^ aplica ao estudo da história, das relações, das repre­
sentações, das crenças, das percepções e das opiniões, produ-
tos das interpretações que os humanos fazem a respeito de
como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem
e pensam. Embora já tenham sido usadas para estudos de
aglomerados de grandes dimensões (IBGE, 1976; Parga Nina
et al., 1985), as abordagens qualitativas se conformam me­
lhor a investigações de grupos e segmentos delimitados e fo­
calizados, de histórias sociais sob a ótica dos atores, de rela­
ções e para análises de discursos e de documentos.

L
Esse tipo de método que tem fundamento teórico, além
de permitir desvelar processos sociais ainda pouco conheci-
dos referentes a grupos particulares, propicia a constmcão de
novas abordagens, revisão e criação de novos conceitos e ca-
tegorias durante a investigação. Caracteriza-se pela empiria e
pela sistematização progressiva de conhecimento até a com­
preensão da lógica interna do gmpo ou do processo em estu­
do. Por isso, é também utilizado para a elaboração de novas
hipóteses, constmção de indicadores qualitativos, variáveis e
tipologias.
Na comparação com as abordagens quantitativas, enten­
do que cada um dos dois tipos de método tem seu papel, seu
lugar e sua adequação. No entanto, ambos podem conduzir
a resultados importantes sobre a realidade social, não haven­
do sentido de atribuir prioridade de um sobre o outro.
Para falar filosoficamente sobre o tema, é importante tra­
zer a tona a reflexão de Granger em seu artigo sobre "Modèles
Qualitatifs, Modèles Quantitatifs dans la Connaissance Scien-
tifique" (1982). O autor chama atenção para o que parece
Óbvio: os acontecimentos são percebidos primeiramente como
qualidade, em dois níveis: em primeiro lugar, como o vivido
absoluto e único; em segundo lugar, a experiência é vivida no
nível da forma, de modo que ela pode ser compreendida por
contraste (é um recorte do campo perceptivo) e por continuida­
de (expressa-se na unidade e na indivisibilidade). No entan­
to, o mesmo autor assinala o risco de "uma redução simplista
do qualitativo", quando o observador se contenta com a per­
cepção de alguma parte do fenômeno que observa e esta é
apenas é um predicado contingente e relativo do objeto, pro­
duzindo percepções incompletas.
Granger distingue "qualidade objetiva" e "qualidade do
objeto psíquico" e considera ser um esforço necessário da epis-
temologia das ciências humanas atuais, estabelecer relações
entre "qualidade do objeto psíquico" e estruturação científi­
ca (1967, p. 197).

É assim meridianamente claro que a utilização de mé­


todos e técnicas não quantitativas em uma pesquisa não é
questão de escolha de alternativa ou de preferência pes­
soal: são procedimentos simplesmente necessários. [. . .]
A necessidade de usar métodos e técnicas não quantitati­
vas é conseqüência da necessidade de captar algo dos as­
pectos subjetivos da realidade social, e de reconhecer a
dualidade real entre quantitativo e do qualitativo (Gran­
ger, 1967, pp. 82-3).

Por sua vez, Mannheim (1968), um estudioso da sociolo­


gia do conhecimento, também se opõe à visão do positivis­
mo clássico que tenta tornar mensuráveis, discerníveis e sem
ambigüidades todos os fatores sociais. Comenta que há cer­
tos termos tão carregados de valores que só um participante
do sistema social estudado pode compreendê-lo. Chama aten­
ção para a participação do sociólogo como observador da rea­
lidade que pesquisa e diz que isso pode significar o sacrifício
do que às vezes se considera como a necessária "neutralidade
e objetividade científica". Mas acrescenta que o intento de obter
objetividade, no sentido positivista, se configura como real
obstáculo aos conhecimentos sociológicos:

Está claro que uma situação humana só é caracterizá-


vel quando se tomam em consideração as concepções qué
os participantes têm dela, a maneira como experimentam
suas tensões nesta situação e como reagem a essas tensões
assim concebidas (Mannheim, 1968, p. 70).

Completa afirmando que:

Para se trabalhar com ciências sociais é necessário par­


ticipar do processo social. Mas essa participação no incons­
ciente coletivo não significa, de modo algum, que se falsi­
fiquem os fatos ou que eles sejam vistos incorretamente.
Pelo contrário, a participação no contexto vivo da vida so­
cial é uma pressuposição da compreensão da natureza in­
terna de seu conteúdo. O desprezo pelos elementos qua­
litativos e a completa restrição da vontade não constitui
objetividade e sim negação da qualidade essencial do ob­
jeto (1968, p. 73).

As palavras de Mannheim expressam o pensamento de


várias correntes teóricas das ciências sociais, mas, ao mesmo
tempo, dizem respeito a um embate no campo intelectual
quanto aos estudos de ordem compreensiva. O funcionalis­
mo destaca a importância do sentido social da conduta hu­
mana, em oposição às atribuições individuais dos motivos
das condutas. Isto é, substitui as explicações subjetivas pelos
determinantes dos sistemas culturais e busca o sentido da in-
ter-relação entre órgãos e funções. A sociologia compreensiva,
cujo representante clássico é Weber, diz que o caráter defini­
dor da ação social é o seu sentido. "Na ação está contida toda
a conduta humana, na medida em que o ator lhe atribui um
sentido subjetivo" (1974, p. 110).
A fenomenologia, cujo expoente no campo das ciências
sociais é Schutz (1982), defende a idéia de que as realidades
sociais são construídas nos significados e através deles, e só
podem ser identificadas na medida em que se mergulha na
linguagem significativa da interação social. A linguagem, as
práticas e as coisas são inseparáveis na abordagem fenomeno-
lógica, uma vez que os significados são gerados na interação
social. No quadro de referência fenomenológico, o mundo se
apresenta ao indivíduo na forma de um sistema objetivado
de designações compartilhadas e de formas expressivas. O
marxismo clássico, por sua vez, interpreta a realidade como
uma totalidade onde tanto os fatores visíveis como as repre­
sentações sociais integram e configuram um modo de vida
condicionado pelo modo de produção específico.
Apesar da pluralidade de interpretações das correntes de
pensamento citadas, todas têm em comum o recqnhecirnen-
to da subjetividade e do simbólico como partes integrantes da
realidade social. Igualmente, todas trazem para o interior das
análises o indissociável imbricamento entre subjetivo e obje­
tivo, entre atores sociais e investigadores, entre fatos e signifi­
cados, entre estmturas e representações.
O valor da pesquisa qualitativa, no entanto, não é reco­
nhecido integralmente nem dentro das ciências sociais. Mui­
tos cientistas sociais consideram importantes os estudos qua­
litativos apenas para fins exploratórios, recomendando sempre
o uso de questionários estmturados para o que definem como
"pesquisa científica", na qual são exigidos testes de hipóte­
ses, possibilidades de repetição pela estandardização das per­
guntas e testes de validade e fidedignidade. Essa concepção é
oriunda do positivismo, cuja suposição é de que o refina­
mento dos instrumentos padronizados e das técnicas estatís­
ticas é capaz de solucionar a fidedignidade das pesquisas, como
já foi dito.
Referindo-se às restrições do próprio campo das ciências
sociais aos estudos de cunho qualitativo, o sociólogo cana­
dense Pires (1982) mostra que tal repúdio foi magnificado
no pensamento americano da década de 30 do século XX, por
meio de cientistas sociais importantes como Stouffer (1931)
que, após analisar vários trabalhos com abordagens metodo­
lógicas quantitativas e qualitativas, optou pelas primeiras. Esse
autor, de grande influência no campo da pesquisa social, par­
tiu da constatação de dificuldades técnicas de trabalhar com
dados subjetivos na constmção do conhecimento e conferiu
o título de "pré-científico" ao método qualitativo (Stouffer,
1931), afirmando que sua contribuição é "útil para dar idéia"
e seus achados "não são generalizáveis". Em outros momen­
tos, chamou ostensivamente a investigação qualitativa de "jor­
nalismo obscuro e aborrecido".
"Não podem ser descartadas as dificuldades de se traba­
lhar com uma abordagem metodológica de um tipo de ciên­
cia em que o observador e o observado são da mesma nature­
za e em que o investigador e seu tema compartilham dos
mesmos recursos", diz Giddens (1978, p. 234). Por isso, mui­
tas vezes os críticos têm razões em suas ressalvas como de­
monstra Minayo (1998), com base numa revisão dos traba­
lhos qualitativos de autores brasileiros da área da saúde, a
partir dos anos 1980: há muitas investigações mal-elaboradas
e interpretações simplistas; há evidentes descuidos nas fun­
damentações teórico-metodológicas de vários trabalhos; per­
siste a antiga confusão entre as opiniões dos sujeitos e a ló­
gica interna de suas representações; muitos pesquisadores
professam um empirismo arraigado que os leva a conside­
rar como ciência a própria descrição dos fatos fornecidos
pelos atores sociais, tomando a versão das pessoas sobre os
fatos como a própria verdade; alguns promovem um envolvi­
mento prejudicial ao processo investigativo com os valo­
res, emoções e visão de mundo na análise da realidade, den­
tre outros.
No mesmo sentido lembra Eco (1992) que o princípio da
semiótica ilimitada não pode constituir-se numa derivação
incontrolável de sentidos. Ainda que as interpretações de um
texto, de uma fala, de um evento possam ser múltiplos, nem
todas elas são boas. Não se pode estabelecer qual foi a que
atingiu a melhor compreensão, mas é absolutamente possível
dizer as que são inaceitáveis.
Em resumo, também na pesquisa qualitativa é importan­
te a objetivação, isto é, o processo de investigação que reco­
nhece a complexidade do objeto das ciências sociais, teoriza,
revê criticamente o conhecimento acumulado sobre o tema
em pauta, estabelece conceitos e categorias, usa técnicas ade­
quadas e realiza análises ao mesmo tempo específicas e con-
textualizadas. A objetivação leva a repudiar o discurso ingênuo
ou malicioso da neutralidade, mas exige buscar formas de re­
duzir a incursão excessiva dos juízos de valor na pesquisa. Os
métodos e técnicas de preparação do objeto de estudo, de
coleta e de tratamento dos dados ajudam o pesquisador, de
um lado, a ter uma visão crítica de seu trabalho e, de outro, a
agir com instrumentos que lhe indicam elaborações mais
objetivadas.
No momento atual, existe um grande esforço teórico-me-
todológico no Brasil e no plano internacional (Minayo, 1989;
1991; 1993; 1998; 2003; Bosi & Mercado, 2004; Mercado, Ca-
taldo & Calderón, 2003; Wolcott, 2003; Strauss & Corbin,
2003; Coffrey & Atkinson, 2003) para dar sustentação às in­
vestigações qualitativas e desenvolver o seu potencial de con­
tribuição às análises sociais. Isso vem ocorrendo por vários
motivos que se conjugam, dentre os quais (a) a forte emer­
gência da questão social, (b) ressaltada pelos processos de
exclusão e pela elevação da consciência dos direitos dos di­
ferentes atores sociais e (c) pela crítica interpares que cresce
com o aumento da produção científica utilizando essa abor­
dagem.
Possibilidades de combinação:
métodos quantitativos e qualitativos

Sobre a combinação de métodos, a antropologia, mesmo


a funcionalista, tenta romper a barreira das explicações sim­
plistas, criando abordagens mais complexas, como propõe
Malinowski (1975) dizendo que é preciso; (a) documentar
estatisticamente, "mediante evidência concreta", tudo o que
pode ser mensurado no "arcabouço da sociedade"; (b) com­
plementar os registros quantitativos pela observação da "ma­
neira como determinados costumes, regras ou exceções são
vividas no cotidiano pelos nativos pois esses são fenômenos
sociológicos"; (c) estar atento ao "corpo e sangue da vida real
pois eles compõem o esqueleto das construções abstratas";
"compreender os imponderáveis da vida real"; (d) ouvir e
buscar compreender o "ponto de vista, as opiniões e a ex­
pressões dos nativos", isto é, ter em conta as maneiras típicas
do pensar e sentir que correspondem às instituições e à cultu­
ra de uma comunidade (1975, pp. 54-60).
A proposta antropológica de Malinowski, com maior ou
menor perfeição, pode ser praticada, como evidenciam vários
trabalhos que utilizam a estratégia de triangulação de méto­
dos, dentre os quais os de Minayo & Cruz Neto (1999); Mi­
nayo et al (2003); Minayo & Minayo-Gomez (2003); Minayo,
Assis <&Souza (2005). A questão das relações entre quantitati­
vo e qualitativo, porém, secundada pelo problema epistemo-
lógico da objetividade e da subjetividade não pode ser assu­
mida de forma simplista como uma opção pessoal do cientista
ao abordar a realidade. Ela tem que ver como o caráter do
objeto específico de conhecimento aqui tratado: com o en­
tendimento de que nos fenômenos sociais há possibilidade
de se analisarem regularidades, freqüências, mas também re­
lações, histórias, representações, pontos de vista e lógica in­
terna dos sujeitos em ação.
Vários documentos recentes, dentre eles a Carta de Otawa
(MS, 1995) e artigos nacionais e internacionais definem a saú­
de como um processo social no qual as sociedades fazem esco­
lhas conscientes ou inconscientes para assegurar as condições
nas quais as pessoas podem ser saudáveis (Minayo, 2000). Ao
expressarem tal tese, os atores coletivos enunciam que este
tema faz parte da esfera de sua vida e se expressam na eco­
nomia, na política, no direito e na experiência subjetiva e não
apenas no campo denominado setor saúde (Minayo, 2003a;
2003b).
Trazer a discussão da saúde para a arena política e viven-
cial (Gadamer, 1999) tem por fundamento a convicção de que
ela é um bem social compartilhado. Em conseqüência, sua
manutenção e promoção são de responsabilidade coletiva e
individual, embora todos tenham consciência de que, nas so­
ciedades complexas contemporâneas, os direitos são diferen­
temente distribuídos e apropriados de forma heterogênea e
conflituosa. Por isso, os problemas atinentes ao âmbito da
saúde precisam ser compreendidos por meio de categorias clas-
sificatórias que contemplem as diversidades e as diferenças.
Dessas categorias, as mais estmturantes são: classes e segmen­
tos de classes, gênero, idade e etnia, expressando condições
de vida e de trabalho, em espaços e tempos sociodemográfi-
cos e culturais específicos. Vivências desiguais constroem for­
mas diversas de pensar, sentir e agir peculiares a respeito da
saúde e da doença: não há saúde nem constmção social da
saúde em abstrato e fora da sociedade que as geram, como há
muito lembraram Lévi-Strauss (1963); Marcei Mauss (1950) e
Boltanski (1979).
Exemplos infindáveis sobre a singularidade cultural dos
fenômenos atinentes à saúde e à doença que exigem pesquisa
qualitativa poderiam ser aqui descritos, como provam estu­
dos sobre explicações religiosas a respeito da morte em geral
ou sobre a mortalidade infantil no Nordeste brasileiro, por
exemplo (Minayo, 1991); sobre a gestação e o parto nas peri­
ferias da cidade do México (Scrimshaw, 1987); sobre causas e
origens das doenças em tribos neozelandesas em Marcei Mauss
(1974) e, mais recentemente, em Sfez (1997) que pesquisou
o fenômeno a que denomina concepção e representação de
"saúde perfeita" nas classes abastadas das sociedades ameri­
cana, japonesa e européias pós-industriais. A compreensão
das especificidades citadas acima seria impossível por meio de
métodos quantitativos.
Do ponto de vista conceituai, portanto, faz parte de uma
visão complexa da ciência incorporar, teoricamente e na práti­
ca, a evidência empírica de que saúde e doença não se redu­
zem a uma experiência orgânica, biológica e externa aos sujei­
tos. Tais reflexões se escudam nos fundamentos da teoria de
Weber (1974) sobre o significado subjetivo da ação social.
Assim, a compreensão particular e intersubjetiva de determi­
nada situação produz comportamentos que por sua vez se
desdobram, transformando a experiência "numa profecia au-
to-realizável" (Tbomas, 1970, p. 246). Tais premissas reafir­
mam, nas experiências de saúde e doença, a intricada relação
entre fatos, eficácia de idéias (Weber, 1974) e intencionalida-
de (Scbutz, 1964). Por sua vez, o reconhecimento de que o
setor saúde trabalha, ao mesmo tempo, com problemas cole­
tivos e determinações biológico-sociais (Latour, 1994) ou bio-
lógico-social-ambientais (Waltners-Toews, 2001; Forget & Le-
bel, 2001) não diminui a responsabilidade do investigador de
entender que todos os problemas se materializam na realida­
de antropológica. Daí que as exigências epistemológicas para
a pesquisa qualitativa e para as abordagens quantitativas e
qualitativas são fundamentais.
A combinação de métodos, no entanto, constitui-se como
desafio porque, na prática científica contemporânea, aborda­
gens quantitativas e qualitativas passaram a significar não ape­
nas duas formas "profissionalmente distintas" de apreender
(epidemiologia) e compreender (antropologia) o real, mas
duas modalidades de investigação com campos teóricos pró­
prios, delimitados e freqüentemente antagônicos. Geralmen­
te, as pesquisas epidemiológicas primam pelo reificação da
estatística, tendo por base a crença positivista na "verdade dos
números" e, por sua vez, as socioantropológicas costumam iso­
lar-se das bases quantitativas, freqüentemente confundindo
a "verdade" apenas com o significado expresso pelos sujeitos.
Historicamente, pode-se observar que as relações entre
epidemiologia e ciências sociais vêm se construindo na convi­
vência com, pelo menos, três modelos de explicação das doen­
ças: o organicista, o social e o ecossistêmico.
O primeiro confere existência independente à saúde e en­
fermidade, cujo modelo mais radical era o da teoria microbia-
na que se vangloriava de poder superar todas as ideologias
políticas e interpretações sociais que minavam o campo da
cientificidade da medicina (Nunes, 1985). Sua versão contem­
porânea se evidencia nas áreas mais avançadas das pesquisas
básicas e aplicadas da genética, que prometem a utopia da
"saúde perfeita" de forma independente dos processos so­
ciais, segundo Sfez (1997).
Um segundo modelo, articula saúde e doença com condi­
ções de vida. Exemplos de sua aplicação podem ser encontra­
dos em John Snow (1967), sobre a Transmissão do Cólera e o
trabalho de Engels sobre a Situação da Classe Trabalhadora na In­
glaterra (1977). Esse modelo se radicalizou na epidemiologia
brasileira e latino-americana. Reagindo ao tecnicismo e ao biolo-
gicismo da medicina e da epidemiologia tradicional, surgiu na
região nos anos 70 do século XX, uma corrente de pensamento
propondo pensar saúde e doença por meio da sua história
social, sob o olhar do marxismo em seu viés estmtural. Sua
aplicação aparece no chamado "paradigma da epidemiologia
social" (Breilh, 1979; Laurell, 1977), que centra sua discussão
na idéia da eqüidade social e expressa seu maior vigor na área
temática de trabalho e ambiente (Carvalho, 2002). Essa cor­
rente está hoje em declínio, acompanhando a crise do marxis­
mo na sociedade ocidental e no pensamento sociológico.
Sua decadência deve-se sobretudo à falta de consistência
de seu arcabouço muito mais político que científico, dando
margem a críticas sobre a idéia de totalização da determinação
do social atuando na produção da saúde/enfermidade. As con­
siderações atuais põem em foco a fragilidade epistemológica
da epidemiologia social por se apoiar nas bases do pensamen­
to marxista mecanicista. Vários autores questionam a media­
ção constmída entre a visão positivista da epidemiologia des­
critiva e o determinismo também positivista (Pereira, 2000;
Medronho, 2002) do marxismo althusseriano. Na realidade, a
epidemiologia social enquanto proposta histórica recente não
se desprendeu das correntes teóricas fundamentadas na filoso­
fia da consciência (ou seja, da observação exterior dos fenôme­
nos). Sua abordagem, ora assumiu a questão social como ce­
nário de produção das doenças, ora como determinante sem
mediações, das situações, dos comportamentos e dos sujeitos.
Da mesma forma que a epidemiologia positivista, a epi­
demiologia social pouco levou em conta as questões da sub­
jetividade e os processos microssociológicos do mundo da vi­
da, esses últimos, complexificadores das expressões de saúde
e doença no terreno da prática. Se é verdade que os proble­
mas sociais se expressam nas condições de saúde, é porque o
social está simultaneamente na própria produção fisiopato-
lógica e epidemiológica, permeando e modificando suas ma­
nifestações e não apenas lhes dando continência. Por isso,
ressaltando as dificuldades de conceituação, Almeida Filho diz
(|ue "será sempre redundante qualquer referência a uma epi-
ilemiologia social" (1989, p. 5).
O terceiro modelo vem se desenvolvendo, sobretudo a
p.irlir da teoria quadrangular de Lalonde (1956) sobre os fa-
lores que interferem na saúde, da Carta de Otawa (MS, 1995) e
ifin sua expressão atual na denominada abordagem ecossistê-
mica de saúde. Esse tipo de enfoque é influenciado por vários
movimentos dentre os quais o ambientalista e o feminista,
que tentam combinar a epidemiologia das enfermidades com
as condições sociais que as determinam ou influenciam na
sua ocorrência e, também, com variáveis ambientais. Seu fun­
damento, embora apresentado de forma muito mais comple­
xa, remonta às teorias ecológicas e multicausais das enfermi­
dades (Waltners-Toews, 2001; Forget & Lebel, 2001; Minayo,
2002). Dentro deste modelo, os fatores são vistos de forma
combinada a serem conhecidos nos processos sociossanitá-
rios concretos. Seus princípios norteadores são, em primeiro
lugar, (1) o pensamento sistêmico, para o qual toda a com­
plexidade dos seres vivos precisa ser levada em conta na pro­
dução da saúde humana; (2) as questões de gênero devem
ser evidenciadas nas investigações e ações transformadoras;
(3) a eqüidade é um princípio básico da promoção da saúde,
e (4) a participação e a responsabilização social dos diferentes
atores tomados em seus contextos têm de ser incorporadas
como parte integrante da constmção de uma vida saudável.
Do ponto de vista disciplinar, as correntes explicativas dos
processos de adoecimento baseiam-se em três principais pila­
res: ciências biológicas, sociais e estatísticas (incluindo-se as
ciências matemáticas e a demografla) (Pereira, 2000). Entre­
tanto, a ênfase disciplinar sempre recaiu nas ciências biológi­
cas e na estatística. Inicialmente, o status de cientificidade da
epidemiologia era dado pela descrição anatomoflsiológica,
microbiológica e parasitológica detalhada na mediação do
processo patológico. Posteriormente, "com a sofisticação da
análise estatística e o emprego da informática, a epidemiolo­
gia dos fatores de risco adquire quase exclusividade como pro­
dução científica da área [epidemiologia] e chega mesmo a de­
fini-la" (Medronho, 2002, p. 6).
Ainda atualmente, na maioria das vezes, a inserção das teo­
rias sociais na epidemiologia se faz pela apropriação de ter­
mos de forma ideológica ou pelo senso comum. Isso aconte­
ce não apenas no momento da redução de conceitos a variáveis,
mas também na incorporação superficial e acrítica de marcos
teóricos.
Numa compilação de referências denominada Bases Histó­
ricas da Epidemiologia, Almeida Filho (1989) detalha o proces­
so de construção dessa disciplina, numa escalada rumo ao
quantitativismo e à abordagem tecnicista: (a) ela remonta a
uma apropriação da Aritmética Política de William Petty e dos
levantamentos de Estatística Médica de John Graunt no sécu­
lo XVII (Last, 1983); (b) articula-se aos estudos pelo método
numérico pâra conhecimento da incidência e prevalência de
doenças na França, nos Estados Unidos e na Inglaterra, no
século XIX (Lilienfeld, 1976); (c) é filha da institucionalização
da Estatística Médica, na Inglaterra, a partir do trabalhos de
William Farr, que, desde 1839, criou o registro anual de mortali­
dade e morbidade para a Inglaterra e o País de Galles (Last,
1983), mas só se institucionaliza vindo a ser ensinada como
disciplina nas universidades já no século XX. MacMahon et al.
(1969) escreveram o primeiro manual de Epidemiologia, na
década de 60 do século XX.
A busca de cientificidade positivista na disciplina nascente
e na constmção da própria história da Epidemiologia ocorreu
pari passu com a revolução bacteriana. O extraordinário de­
senvolvimento da bacteriologia, no final do século XIX e iní­
cio do século XX, provocou inegável fortalecimento da medi­
cina organicista, contrariando as tentativas da chamada Medicina
Social e Política que, nesse mesmo período, tentava buscar os
nexos entre o aparecimento das doenças e as questões sociais
(Nunes, 1985; 1999). Assim, a epidemiologia quantitativista
))assou a se destacar da Saúde Pública, refletindo o diagnóstico
médico ontológico e nosológico da história natural das doen­
ças. O contrário também ocorreu: "a versão britânica da Medi-
( ina Social evoluiu para uma vertente pretensamente técnica,
(onstituindo a chamada Saúde Pública" (Almeida Filho, 1989,
p. 3). É importante observar a simbiose teórica que desde en-
1,10 vem se processando entre o que é saúde pública e o que é
eiúdemiologia: essa espécie de "sinonímia" está presente em
textos, debates e congressos da área e manifestando-se, ora
sob a forma de redução, ora sob a forma de expansão. Os
reducionistas privilegiam a visão técnica e biológica da distri­
buição das doenças na população. Os expansionistas, cuja
lógica bebe na fonte originária da Medicina Social do século
XIX (Nunes, 1999), juntam e articulam conceitos e métodos
da epidemiologia e das ciências sociais. Alguns desses últimos
conseguem êxitos na apropriação das teorias sociológicas,
outros as incorporam de forma naturalizada e mecânica.
Em síntese, conclui-se que as duas formas mais comuns
de absorção dos conceitos sociológicos usados para a análise
de contexto dos processos de saúde enfermidade, pela epide­
miologia, têm sido a sua instmmentalização ou seu uso ideo­
lógico. Nesse último caso, além de considerar a epidemiolo­
gia social como a própria saúde pública, a abordagem marxista
da epidemiologia tomou uma determinada vertente do mar­
xismo (a mais vulgar, segundo Perry Anderson, 1987) como a
totalidade da ciência social. Nessa práxis ocorreu um parado­
xo: de um lado, produção de análises em alto nível de abstra­
ção e uso de esquemas macrossociais e antiantropológicos;
de outro, busca crescente de aperfeiçoamento e uso cada vez
mais aprimorado e tecnicista dos métodos e das técnicas bio-
estatísticas para explicações dos problemas de saúde e enfer­
midade. No meio, foi gerado um vazio interpretativo dos pro­
cessos sociais vivenciados no cotidiano. Portanto, a proposta
diferenciadora da epidemiologia crítica está ainda por ser rea­
lizada, tendo em vista que esse termo crítica, em sua matriz,
significou, historicamente, submissão à corrente marxista de
viés estmturalista, à qual se agregaram, sem mediações, análi­
ses de dados quantitativos.
Nas décadas de 80 e 90 do século XX, algumas tentativas
foram feitas para tornar conscientes os estudiosos da área so­
bre o lugar do "sujeito" na epidemiologia e nas práticas de
planejamento. No entanto, continuam hegemônicas as abor­
dagens tecnicistas em que o dinamismo do social é um "lugar
vazio" ou, quando muito, "elemento de estratégia". Ao con­
trário do florescimento do tecnicismo epidemiológico, prati­
camente caíram em desuso as análises da epidemiologia so­
cial tais como eram feitas.
Ao terminar esta crítica e a bem da verdade, é preciso dizer
que o mal-estar em relação ao reducionismo e ao fetichismo
do método também é relatado e assumido por epidemiolo-
gistas que buscam a incorporação das ciências sociais em sêus
quadros rêflexivos e analíticos, como é relatado na introdu­
ção de dois recentes e importantes livros brasileiros que ser­
vem de base à formação de uma nova escola de epidemiolo-
gistas. Ambos os textos colocam a incorporação das ciências
sociais que trabalham com relações e significados na aborda­
gem epidemiológica como uma condição essencial para seu
desenvolvimento no século XXI (Medronho et al., 2002; Pe­
reira, 2000).
Por sua parte, a introdução das Ciências Sociais no campo
de constmção da Saúde Pública em geral se fez de forma cau-
tlatária, por causa da hegemonia histórica da medicina na área
das ciências da saúde. Embora a reflexão sobre a interferência
dos aspectos econômicos, políticos e sociais sobre a saúde
seja antiga e tenha florescido na metade do século XIX, a ra-
( ionalidade médica sempre predominou nas tentativas de for­
malização teórica da área. Os termos referentes ao social nun-
<a mereceram aprofundamento conceituai.
Eoi já no século XX, conta Nunes (1985), que sociólogos,
■iiitropólogos e psicólogos foram chamados, como profissio­
nais, a integrar o campo de saúde. Num primeiro momento,
dominou, nas abordagens, o viés condutivista e funcionalis-
la, respondendo ã demanda do campo médico que sempre
buscou ter acesso a chaves de compreensão dos códigos dife-
ii Mles com os quais os leigos conceituam e vivenciam os pro-
I cssos de saúde e doença, acessam aos serviços e representam
os ir.uamentos. O objetivo das primeiras articulações foi prag­
mático: administrar normas de comportamento saudáveis aos
IfIgO S.
. Num segundo momento, aos dentistas sodais foi pedido
que fornecessem análises mais aprofundadas das "variáveis so­
ciais" da história das doenças. Ora, essa tem sido a forma mais
comum de articulação disciplinar entre a área da epidemiolo-
gia e da clínica com as ciências sociais. Até hoje, muito do que
é feito nos países subdesenvolvidos com financiamento de
organizações internacionais conserva o mesmo paradigma.
É preciso ressaltar aqui que, também nas ciências sociais, a
lógica tecnicista tem predominado. Ela se irradiou dos Esta­
dos Unidos, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial,
e tornou-se hegemônica. Assim a confusão entre cientificida-
de e quantificação não constitui privilégio da área da epide-
miologia, como já foi referido anteriormente.
No caso brasileiro, a presença dos cientistas sociais no cam­
po da saúde é relativamente recente, de tal modo que a histó­
ria de sua inserção sistemática tem pouco mais que trinta anos
(Nunes, 1985; Canesqui, 1998; Nunes, 1999; 2003; 2005; Mi-
nayo, 2000; Luz, 2000). A maioria, nos anos 1970 e 1980, se­
guiu a linha acadêmica mais geral na sociologia nacional,
distinguindo-se pela realização de análises macrossociais, ins­
titucionais e de estudos a partir de dados secundários e docu­
mentais. Algumas se destacam pelas contribuições epistemoló-
gicas e sociológicas e outras pelas análises das políticas do setor.
É interessante observar que, antes dos anos 1980, raros
eram os cientistas sociais da saúde que iam a campo e realiza­
vam trabalhos empíricos com a população. Os estudos étni­
cos constituíam exclusividade dos antropólogos stricto sensu.
Uma extensa e profunda revisão bibliográfica realizada por
Nunes e datada de 1985 praticamente mapeia, no País, ape­
nas um estudo antropológico sobre saúde no conjunto da
produção científica brasileira de saúde. Hoje essa contribui­
ção é substancial e, dentre muitos, cito aqui Alves & Rabelo
(1998); Rabelo, Alves & Souza (1999); Knauth (1998); Duarte
& Leal (1998); Alves <&Minayo (1994); Garrara (1996); Rodri­
gues (2001); Deslandes (2002).
Da mesma forma que na epidemiologia, nas décadas de
70 e 80 do século XX, os cientistas sociais que trabalhavam no
setor saúde no Brasil, na maioria, produziram um saber cuja
matriz se restringia às teorias marxistas, no seu viés positivista
e estrutural de inspiração althusseriana. A partir da metade
dos anos 1980 houve uma inflexão dos investimentos teóri-
co-conceituais e metodológicos em outras abordagens com-
preensivaà e dialéticas das determinações e do lugar da inter-
subjetividade. Em relação ao marxismo, a forte influência de
Althusser foi substituída pelo pensamento de Gramsci (1981),
cuja elaboração teórica se mostrava muito mais aberta em re­
lação ao campo das idéias, da subjetividade e da história. Desde
então, vão se configurando algumas tendências: (1) crise ou o
abandono dos marcos referenciais baseados nas ditas meta-
narrativas ou das macro teorias; (2) aumento da produção cien­
tífica de base compreensiva, diferenciando-se da tendência cada
vez mais acelerada da epidemiologia para reverenciar os po­
deres das técnicas estatísticas; (3) expressivas tentativas de
produção de estudos interdisciplinares, transdisciplinares por
triangulação de métodos quantitativos e qualitativos nas abor­
dagens dos problemas de saúde.
Ghamo atenção para dois tipos de questionamento que
freqüentemente têm sido feitos aos cientistas sociais pelos
outros profissionais e pesquisadores sobre estudos qualitati­
vos na área de saúde. De um lado, existe uma crítica contun­
dente em relação à baixa potencialidade de aplicação prática
lios conhecimentos gerados. Esse questionamento, geralmen-
le, evidencia uma dificuldade de muitos profissionais da área
social em ultrapassar o formato das análises de alto nível de
alrstração teórica, pouco propositivas, distantes de problemas
imediatos e ausentes de uma perspectiva de ação que o cam­
po da saúde demanda. Ora, a área da saúde, mesmo propor-
( ionando um campo expressivo para o investimento em pes-
igiisas básicas, clama por uma relação mais comprometida com
as prioridades sociais.
Nesse sentido, é importante ouvir a sabedoria de Wright
Mills em sua obra clássica Imaginação Sociológica (1971) sobre
as relações entre os cientistas e a realidade. Nela, o autor fala
que o papel dos cientistas sociais deveria ser o de evidenciar,
para seus contemporâneos, a significância da dinâmica da so­
ciedade em que vivem e o sentido de sua participação especí­
fica. A utilidade da ciência, diz Mills, é dada pela sua capacida­
de de transformar os grandes problemas sociais que o povo
vive em questões públicas em favor de mudanças sociais, co­
laborando para que os cidadãos informados sejam capazes
de sair de seus limites individuais para se sentirem parte de
uma história à qual sua biografia está estreitamente vincula­
da. As mesmas teses são endossadas por outros renomados
autores como Adorno & Horkheimer (1991), dois expoentes
da chamada Sociologia Crítica Alemã.
Outra fonte de crítica dos epidemiologistas à produção
das ciências sociais na área da saúde diz respeito ao contrário
do que foi exposto anteriormente. Diz respeito ao empirismo
(Minayo, 2002) ingênuo de muitos estudiosos que transfor­
mam opiniões, crenças e queixas dos usuários do sistema de
saúde em verdades, evidenciando incapacidade de realizar aná­
lises contextualizadas, fundamentadas e elaboradas teorica­
mente. Esse questionamento tem como pano de fundo a quan­
tidade de estudos simplificados ou fenomenológicos, em que
os investigadores abrem mão de "construtos de segunda or­
dem" (Schutz, 1982, p. 137), cujo ônus lhes deveria caber. Em
tais produções, a verdade dos informantes se confunde com a
verdade científica, desacreditando-se sua possível contribuição.
As duas principais críticas expostas acima tensionam o an­
tigo debate sobre o papel da ciência, da técnica e do que seja
a construção de uma tecnociência (modelo mais difundido
no campo da saúde). Elas expõem, também, o significado pra-
xiológico da ciência, sobretudo numa área em que as desco­
bertas e propostas dizem respeito a valores tão fúndamentais
como vida e morte, saúde e doença.
As possibilidades de contribuição da interação entre teo­
rias e métodos para análises de problemas de saúde provêm,
justamente, de suas diferenças. Por um lado, se fundamen­
tam na busca de compreensão em profundidade dos valores, prá­
ticas, lógicas de ação, crenças, hábitos e atitudes de grupos e
indivíduos sobre a saúde, a doença, as terapêuticas, as políti­
cas, os programas e demais ações protagonizadas pelos servi­
ços de saúde. E,'por outro lado, baseiam-se na leitura da expli­
cação em extensão de como esses sujeitos, agregados em um
nível populacional, tornam-se expostos ou vulneráveis a even­
tos ou processos que põem em risco sua saúde, como adoe­
cem, como e com qual magnitude demandam tratamento e
atenção. Mais que pares de oposições, os métodos quantita­
tivos e qualitativos traduzem, cada qual à sua maneira, as arti­
culações entre o singular, o individual e o coletivo presentes
nos processos de saúde-doença. A interação dialógica entre
ambos os aportes (e não por justaposição ou subordinação
de um desses campos) constitui avanço inegável para a com­
preensão dos problemas de saúde.
Para a prática interdisciplinar, o exercício teórico discipli­
nar é tão fundamental quanto o diálogo entre as diferentes
áreas. Contudo, a articulação entre diferentes campos de sa­
ber só é possível se passar por traduções das distintas lógicas
c critérios de cientificidade, de uma hermenêutica do modus
operandi de cada metodologia e da arquitetura dos conceitos
c|ue cada teoria de referência apresenta. Sem esse diálogo dos
fundamentos de cada uma das ciências, os praticantes das di­
ferentes tradições científicas estarão restritos ao infrutífero
debate dos limites desse ou daquele conceito, das condições
de sua operacionalização ou da justaposição de métodos e
técnicas.
O exercício de triangulação de métodos não é fácil e nem
simples. Os que decidem realizá-lo precisam aprofundar, con-
( omitantemente, conceitos disciplinares, de tal forma que to­
dos os que são essenciais para a investigação possam ser con­
frontados e enriquecidos transversal mente. Por razões episte-
mológicas e práticas já citadas, é preciso saudar os pesquisa­
dores que estão rompendo barreiras e ampliando fronteiras
do conhecimento, sem abrir mão do rigor e da competência.
Em síntese, a experiência de trabalho com as abordagens
quantitativas e qualitativas mostra que: (1) elas não são in­
compatíveis e podem ser integradas num mesmo projeto de
pesquisa; (2) uma investigação de cunho quantitativo pode
ensejar questões passíveis de serem respondidas só por meio
de estudos qualitativos, trazendo-lhe um acréscimo compre­
ensivo e vice-versa; (3) que o arcabouço qualitativo é o que
melhor se coaduna a estudos de situações particulares, gru­
pos específicos e universos simbólicos; (4) que todo o co­
nhecimento do social (por método quantitativo ou qualitati­
vo) sempre será um recorte, uma redução ou uma aproximação;
(5) que em lugar de se oporem, os estudos quantitativos e
qualitativos, quando feitos em conjunto, promovem uma mais
elaborada e completa construção da realidade, ensejando o
desenvolvimento de teorias e de novas técnicas cooperativas.
Encerro este texto com palavras de um epidemiologista:

É imperativo abrir a ciência epidemiológica à investi­


gação dos aspectos simbólicos (tais como valor, relevância
e significado) do risco e de seus determinantes. Se toma­
mos esta abordagem contextual até'suas últimas conse-
qüências lógicas, podemos dizer que "fatores de risco so­
ciais" nada mais são que a expressão do modo de vida de
grupos populacionais. Assim, para dar conta do grande
desafio de desenvolver uma epidemiologia do modo de
vida, precisamos, portanto, empreender uma reavaliação
metodológica radical da nossa disciplina (Almeida Filho,
2000, p. 174).
Parte II
TEORIA, EPISTEMOLOGIA E MÉTODOS:
CAMINHOS DO PENSAMENTO

Envolver uma teoria com o manto da


verdade é atribuir-lhe uma característica
não realizável historicamente. Nada mais
prejudicial ao processo científico que o
apego a enunciados evidentes, não discu­
tíveis. Somente na teoria se pode dizer
que a ciência é a interpretação verdadeira
da realidade, porque, na prática, toda in­
terpretação realiza apenas uma versão his­
toricamente possível
— D emo , 1981, p. 25.

A n tes d e tratar d o tem a e s p e c íf ic o da Metodologia


da Pesquisa social, é importante discutir o legado das Ciên­
cias Sociais, como menciona Emmanuel Wallerstein (1999),
fazendo uma caminhada pelas raízes desse campo de conhe­
cimento que tem "pais fundadores", data do final do sécu­
lo XIX e entrelaça disciplinas, estruturas corporativas e comu­
nidades de investigadores, configurando uma cultura espe­
cífica. Na sociologia, Durkheim, Weber e Marx constituem a
trilogia que apresenta contribuições seminais e, ao mesmo tem-
po, evidencia formas diferenciadas de ver o mundo e de inter­
pretá-lo.
Embora as Ciências Sociais tenham avançado e se diversi­
ficado quanto aos temas que abordam e às teorias que englo­
bam, esses três autores são as referências clássicas das várias
correntes de pensamento, demonstrando que nenhuma teo­
ria da sociedade é neutra e que qualquer estudo tem, implíci­
tas ou explícitas, marcas teóricas de filiação. Pode-se dizer tam­
bém que nenhuma das linhas de pensamento sobre o social
tem o monopólio de compreensão da totalidade. Aos fatos e
processos se ascende por aproximação, dando razão ã obser­
vação de Lênin; "a marcha do real é sempre filosoficamente
mais verdadeira e mais profunda do que nossos pensamen­
tos mais profundos" (1965, p. 235).
Em relação ãs principais correntes de pensamento, tecerei
algumas interpretações reflexivas, sempre alertando ao leitor
de que se trata de um simples resumo de idéias, cada uma
delas sendo respaldada por autores respeitáveis, de grande
saber e potência intelectual. Os referenciais que tomo para
este estudo são os originais dos autores e análises de estudio­
sos como Hughes (1983) e Wallerstein (1999) para as ciências
sociais em geral e, no caso de aplicação no campo da saúde,
textos de Nunes (1983, 1985; 1999) Juan César Garcia (1983);
Donnangelo (1983); Luz (1979), dentre outros.
Em Ciências Sociais e Saúde na América Latina, Nunes toma
1.663 referências de produção teórica na área entre os anos de
1950 a 1979, classifica o material e o analisa'dentro de um
marco referencial histórico-estmtural, passando pela (a) Me­
dicina Tradicional; (b) Serviços de Saúde; (c) Processo Saúde/
Doença e (d) Formação de Recursos Humanos.
No estudo do material referido, Nunes aprofunda várias
questões que não constituem objeto de preocupação deste
livro, mas enfatiza também um enfoque que diz respeito ao
tema: as correntes de pensamento da produção intelectual do
período recortado, contextualizando-as no interior das preo­
cupações mais amplas da sociedade brasileira e latino-ame­
ricana.
Sem querer estabelecer etapas estanques, Nunes mostra
que, na década de 1950, as pesquisas estiveram marcadas pe­
las teorias funcionalistas e culturalistas, servindo à implemen­
tação de desenvolvimento e organização de comunidade.
Nas décadas de 1960 e 1970, as abordagens fenomenoló-
gicas influenciaram efetivamente o pensamento e as práticas
da saúde coletiva. Elas questionaram a onipotência e onipre­
sença do Estado sobre os indivíduos e sobre os grupos de
referência e a arbitrariedade impositiva das classes dominan­
tes por meio dos sistemas de saúde. Sua emergência fez eclo-
dir uma reação de negação dos princípios positivistas e fun­
cionalistas mais voltados para o todo e para as massas, em
favor de uma afirmação dos direitos individuais, do princípio
da autonomia das pessoas e da constmção de gmpos media­
dores ante o Estado e as grandes instituições médicas e sanitá­
rias. A fenomenologia ocupou lugar importante nas reflexões
sobre os significados subjetivos da saúde e da doença e na
condenação teórica do anonimato, das leis gerais e das inva-
riâncias próprias do positivismo sociológico.
A partir dos anos 1970, houve grande incremento da pro­
dução intelectual na área de saúde, dentro do enfoque mar­
xista histórico-estmtural. A presença do marxismo no ambien­
te acadêmico da saúde coincidiu com a resistência cidadã ao
autoritarismo e à violência política vigente no período da di­
tadura militar. Esse movimento, que arregimentava uma orga­
nização denominada informalmente "partido sanitário", con­
tribuiu para a produção de uma crítica teórico-prática sobre a
fragilidade e a fragmentação das análises fenomenológicas
(Nunes, 1985), propondo mudanças estmturais na distribui­
ção da saúde, como bem social e do acesso aos serviços de
saúde, no Brasil e na América Latina.
As três correntes de pensamento continuam presentes,
atuantes e de forma concorrente nas análises referentes ã rela­
ção Saúde e Sociedade. Eazem parte da própria pluralidade
ideológica da sociedade atual, onde as visões sociais de mun­
do estão comprometidas com posturas concretas na prática
teórica e política. Chamo atenção, no entanto, para o fato de
que a lógica do capitalismo contemporâneo, marcado princi­
palmente pelas transformações nas formas e fundamentos da
comunicação e da informação, traz ã tona as noções de rede e
de sistemas para explicar a dinâmica da realidade atual. Embo­
ra desenvolvidas inicialmente pela biologia e pela cibernética,
as correntes de "pensamento sistêmico" vêm assumindo, aos
poucos, um lugar também nas ciências sociais e nos estudos
que compõem a área da saúde.
Em 1983, Garcia já advertia que nenhuma das correntes de
pensamento desconhece a vinculação da medicina com a es-
tmtura social, no entanto, suas diferenciações se explicitam na
interpretação de como se dá essa vinculação e em que grau de
autonomia ou dependência se situa o fenômeno saúde-doen-
ça como manifestação biológico-social. As diferentes visões
de mundo presentes nas interpretações da realidade refletem
a dificuldade do pensamento de apreender e compreender o
objeto "social" e, em conseqüência, a "saúde" em toda a sua
complexidade e articulações.
Esta parte contém dois capítulos fundamentais. O primei­
ro se compõe da introdução às principais correntes de pensa­
mento sociológicas que têm influência na teoria e na prática
da saúde: o positivismo, o compreensivismo, o marxismo e o
pensamento sistêmico. No segundo, apresentO'algumas abor­
dagens compreensivas com suas potencialidades de aplicação
para estudos e investigações do setor.
Capítulo 4
CORRENTES DE PENSAMENTO

Positivismo sociológico

O POSITIVISMO CONSTITUI a corrente filosófica que man­


tém o domínio intelectual no seio das Ciências Sociais e tam­
bém na relação entre Ciências Sociais, Medicina e Saúde. As
teses básicas do positivismo podem ser assim resumidas: (1)
a realidade se constitui essencialmente naquilo que os senti­
dos podem perceber; (2) as Ciências Sociais e as Ciências Na­
turais compartilham de um mesmo fundamento lógico e me­
todológico: elas se distinguem apenas no objeto de estudo;
(3) existe uma distinção fundamental entre fato e valor: a ciên­
cia se ocupa do fato e deve buscar livrar-se do valor.
A hipótese central do positivismo sociológico é de que a
sociedade humana é regulada por leis naturais que atingem o
funcionamento da vida social, econômica, política e cultural
de seus membros. Portanto, os cientistas sociais quando ana­
lisam determinado grupo ou comunidade têm de descobrir
as leis invariáveis e independentes de seu funcionamento.
Daí decorre que os métodos e técnicas para se conhecer
uma sociedade ou determinado segmento dela devam ser da
mesma natureza que os empregados nas ciências naturais. E
ainda mais, da mesma forma que as ciências naturais propug-
nam um conhecimento objetivo, neutro, livre de juízo de va­
lor, de implicações político-sociais (o que se pode pôr tam­
bém em questão) também as ciências sociais devem buscar,
para sua cientificidade, este "conhecimento objetivo". Nou­
tras palavras, dentro da filosofia positivista, o cientista social
deve comportar-se ante seu objeto de estudo — a sociedade,
qualquer segmento ou setor dela — livre de juízo de valor,
tentando neutralizar qualquer interveniência que possa lesar
a sua objetividade na explicação dos fenômenos.
A postura positivista advoga uma ciência social desvincu­
lada da posição de classe, de valores morais e de posição polí­
tica dos cientistas. Denomina "pré-juízos", "pré-conceitos",
"pré-noções" ao senso comum sobre os assuntos estudados
e ao conjunto de valores e opções político-ideolôgicas do pes­
quisador. Na proposta positivista, o cientista sempre deve ul­
trapassar os limites de sua subjetividade (Durkheim, 1978).
A ciência positivista tem raízes na filosofia das luzes no
século XVIII (Lowy, 1986). Para Lowy, o pai do positivismo é
Condorcet, um enciclopedista que formulou de forma clara e
precisa a idéia de que a ciência da sociedade deveria ser uma
Matemática Social baseada em estudos quantitativos rigoro­
sos e probabilísticos. Condorcet considerava que, da mesma
forma que nas ciências físicas e matemáticas, os interesses e as
paixões não deveríam perturbar e nem influenciar os estudos
das ciências sociais. Por isso atribuía as dificuldades no pro­
gresso do conhecimento da realidade ao fato de que o social
era, no seu tempo, objeto de interesses religiosos e políticos.
Daí que a meta dos estudiosos deveria ser conseguir uma ela­
boração "livre de preconceitos" (Condorcet, in: Mora, 1982).
Condorcet podería ser considerado um crítico avançado para
sua época, tendo em vista que a realidade social era então
interpretada pelos códigos da religião católica e pela autori­
dade do Estado oligárquico. Esse pensador acenava para a
necessidade de romper com esse monopólio autoritário do

l
pensamento, livrando as ciências do social dos interesses e
paixões das classes feudais, das doutrinas teológicas, dos ar­
gumentos de autoridade da Igreja e de todos os dogmas fos­
silizados.
Lowy inclui entre os discípulos de Condorcet e defensor
de suas idéias, o socialista utópico Saint-Simon (Lowy, 1986),
para quem a ciência da sociedade consistia numa "fisiologia
social", cuja dinâmica tem dois movimentos históricos: as épo­
cas críticas que conseguem eliminar as fossilizações sociais; e
as épocas orgânicas que se caracterizam pela estabilidade e
reprodução das estruturas. Saint-Simon ressaltava que, em sua
época, havia duas classes parasitas do organismo social: o cle­
ro e a aristocracia. E, portanto, seria preciso que essas fossili­
zações dessem lugar a uma nova forma de organização do
corpo social. Para isso apresentava um projeto novo de socie­
dade, baseado não na igualdade, mas numa pirâmide de clas­
ses, visando a elevar a capacidade produtiva das pessoas a um
grau máximo de desenvolvimento. Segundo Saint-Simon, a
moral e as idéias têm de ser distintas para as distintas classes
fundamentais, a fim de que a sociedade seja livre e dedicada à
produção. Propunha que a igreja fosse substituída pela fábri­
ca (Saint-Simon, in: Mora, 1982).
Tanto a proposta da matemática social de Condorcet, como
as teorias fisiológicas da sociedade" de Saint-Simon faziam
uma dura crítica social de seu tempo. Nomeavam quais eram
as classes dominantes e opressoras e propunham mudanças
condizentes com a nova sociedade industrial que se agiganta­
va. Até o início do século XIX, o positivismo desenhado por
esses precursores constituiu uma visão social-utópica-crítica
do mundo de seu tempo.’ O mesmo não se poderia dizer das

' Uso aqui o termo u tó p ic o no mesmo sentido de Karl Mannheim em I d e o lo g ia


(1968). Mannheim distingue os conceitos de ideologia e utopia. A primeira
e U to p ia
seria constituída por concepções, idéias, representações e teorias que se orientam para
a estabilização, legitimação e reprodução da ordem vigente. Ideologias seriam o con­
junto das doutrinas e teorias de caráter conservador, isto é, servem para a manuten-
teorias de Augusto Comte, embora este autor se considerasse
herdeiro dos dois primeiros.
Para Comte, o pensamento teria de ser totalmente positi­
vo. Isto é, dele deveria ser eliminado todo o conteúdo crítico
para que os cientistas descobrissem as leis da sociedade. Seu
"método positivo", propunha que o cientista social se consa­
grasse teórica e praticamente à defesa da ordem e fosse con­
trário ao que considerava "«negativismo» perigoso das dou­
trinas críticas, destrutivas, subversivas e revolucionárias da
Revolução Francesa e do Socialismo" (Comte, 1978, p. 44).
Sua teoria social, inicialmente, foi chamada por ele próprio
como Física Social e assim definida: "A Física Social é uma ciên­
cia que tem por objetivo o estudo dos fenômenos sociais,
considerados no mesmo espírito que os fenômenos astronô­
micos, físicos, químicos e fisiológicos" (1978, p. 13).
Dizia Comte que há uma ordem interna que rege a socie­
dade da mesma forma que essa ordem existe na natureza. Toda
sociedade caminharia para a harmonia, o desenvolvimento e
a prosperidade. Ao cientista social cabería descobrir essa or­
dem e explicitá-la aos leitores para que, com base em sua com­
preensão, a estabilidade social fosse mantida.
Comte considerava importante que os sociólogos expli­
cassem aos proletários a lei que rege a distribuição de rique­
zas, a concentração de poder econômico e o seu lugar na so­
ciedade. Ao fazê-lo estariam cumprindo o papel pedagógico
de ensinar que os lugares que os trabalhadores ocupam são
resultantes da própria natureza da organização social que tem
suas leis invariantes. Segundo esse pensador, graças ao positi­
vismo, os trabalhadores reconheceríam as vantagens da sub­
missão e do fato de que não teriam de se preocupar com o

ção do sistema social de forma geral. Pelo contrário, as U to p ia s seriam as representa­


ções, idéias e teorias que têm em vista uma realidade ainda inexistente. Trazem no seu
bojo uma dimensão crítica, de negação, ruptura e possibilidade de superação do sta tu
cjuo. É nesse sentido que se pode falar dos "elementos utópicos" no positivismo de
Condorcet e Saint-Simon.
governo da sociedade e, sim, entregá-lo a outras mãos mais
sábias e mais poderosas. Dessa forma, o positivismo como
"ciência livre de juízo de valor e neutra" se propunha a não
amaldiçoar os fatos políticos tais quais se apresentam, mas a
aceitá-los e a legitimá-los. Eis as palavras do autor:

O positivismo tende, poderosamente, pela sua pró­


pria natureza, a considerar a ordem pública pelo desen­
volvimento de uma sábia resignação. Porque não pode
existir uma verdadeira resignação, isto é, uma disposição
permanente a suportar com constância e sem nenhuma
esperança de mudança os males inevitáveis que regem to­
dos os fenômenos naturais, senão através do profundo
sentimento dessas leis inevitáveis. A filosofia positiva, que
cria essa disposição, se aplica a todos os campos, inclusive
aos males políticos (1978, p. 70).

Segundo Comte, os elementos distintivos do espírito po­


sitivista seriam o senso de realidade, a utilidade, a certeza, a
aptidão orgânica e o bom senso prático.
Não há dúvidas de que o positivismo clássico combina
com todo o conservadorismo político e legitimador de situa­
ções vigentes e o fundamenta. Não é ocioso lembrar que o
lema da bandeira nacional republicana brasileira "Ordem e
Progresso" tem sua inspiração na doutrina positivista, em sua
filosofia social e em sua ideologia política.
No campo das ciências sociais propriamente ditas, foi
Durkheim quem primeiro fundamentou teórica e metodolo-
gicamente o positivismo que existia como doutrina, trazen-
do-o para a compreensão da sociedade. Esse autor seminal,
para divulgar a nova ciência a que denominou "sociologia" e
classificou como disciplina científica, criou a mais antiga revis­
ta da área denominada L'Année Sociologicjue, cujo centenário
se comemorou em 1998 e reuniu em tomo de si um gmpo
importante e influente de pensadores.
Reconhecendo-se discípulo de Comte, Durkheim se apli­
cou a pensar a especificidade do objeto da sociologia, relacio­
ná-la com as outras ciências e lançar os fundamentos de um
método para pesquisa social. Para ele, o escopo da sociedade
é estudar fatos que obedecem a leis invariáveis, de forma ob­
jetiva e neutra. Os "pré-juízos" e as "pré-noções" provenien­
tes da ideologia e da visão de mundo do sociólogo teriam de
ser eliminados das investigações por meio das regras do mé­
todo científico: "a sociologia não é nem individualista e nem
socialista", dizia ele (1978, p. 27).
No prefácio da segunda edição de As Regras do Método So­
ciológico, escrito em 1901, Durkheim refuta críticas a sua pro­
posta dizendo que "os fatos sociais devem ser tratados como
coisas" e que quando diz isso significa que "coisa" se opõe a
"idéia" no sentido de que são externas aos indivíduos. Por
isso, ratifica sua concepção da sociedade como um fenôme­
no moral, uma vez que os modos coletivos de pensar, perce­
ber, sentir e agir incluem elementos de coerção e obrigação,
constituindo assim uma consciência coletiva que se expres­
sa na religião, na divisão do trabalho e nas instituições. Mas
esse fenômeno moral, diz ele, precisa ser olhado objetivamen­
te, "como uma coisa", para ser devidamente explicado. Para
isso, Durkheim criou um método para apreensão e explica­
ção da realidade social, cabendo ao cientista: (a) descrever as
características dos fatos: tudo o que se afirma de uma ação
concreta, seus graus de adequação e sentido, sua explicação
compreensiva e causai, deveria ser alvo de verificação; (b) de­
monstrar como os fatos vêm a existir; (c) relacioná-los en­
tre si; (d) encontrar sua organicidade; {e) tentar separar o que
são "representações" e o que são fatos propriamente ditos,
"coisa-real" (1978). Em seu método, Durkheim distingue a
categoria "senso comum", como uma criação cultural dos
membros de uma sociedade para explicar e descrever o mun­
do em que vivem, dos "conceitos científicos", que consti­
tuem elaborações teóricas que permitem descrever, classificar.
explicar, organizar e correlacionar os "fatos sociais" de forma
"objetiva".
Respondendo ao espírito de seu tempo, uma época his­
tórica marcada pelo poder político e religioso da Igreja, Durk­
heim insistiu, categoricamente, que as causas dos fatos sociais
devem ser buscadas em outros fatos sociais e não na teologia
ou nos indivíduos. Portanto, os sociólogos deveríam descre­
vê-los, classíficá-los com precisão e de forma independente,
até mesmo, de suas próprias idéias sobre a realidade. Esse fun­
dador da sociologia ensinava que, certamente, um cientista
social tem suas preferências políticas, simpatiza com os ope­
rários ou com os patrões, é liberal ou é socialista, mas, no
exercício de sua ciência, precisa fazer calar suas paixões. Só
nesse silêncio deve iniciar seu estudo (1978). Essa externali-
dade do observador quanto ao que deve ser observado no
social é a essência de seu método.
Diante das críticas que recebeu, Durkheim sempre reafir­
mou seus princípios teóricos: a existência da coação social que
se reafirma nas instituições e em seu funcionamento; a idéia
do fato social que depende de interações individuais, mas re­
sultam em crenças e modos de comportamento da coletivida­
de; na tese de que a realidade é socialmente constmída e que
existe uma realidade objetiva dos fatos sociais que é diferente
dos fenômenos que dizem respeito ao indivíduo em suas emo­
ções e fisiologia. Esses deveríam ser estudados pela psicologia
e pela biologia, respectivamente.
Uma das principais influências do positivismo nas ciên­
cias sociais é a prática da pesquisa empírica. Metodologica-
mente, até hoje, sob a ótica positivista, isso significa a desco-
berta das características de regularidades e invariâncias nos fatos
sociais, entendidos por Durkheim como "toda maneira de
lazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo
uma coação exterior" ou ainda "o que é geral no conjunto de
uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existên-
I i.i própria, independente das manifestações individuais"
(1978, p. 92). Para descobrir as regularidades, Durkheim e os
positivistas em geral invocam a imagem do organismo hu­
mano, enfatizando os termos estrutura e função, morfologia e
fisiologia, numa clara apropriação dos termos do organis­
mo biológico como referência da sociedade e de sua dinâmica
interna.
Embora o positivismo sociológico domine nas Ciências
Sociais, ainda hoje é alvo de muitas críticas. A mais forte res­
trição a essa corrente vem da constatação de que os seres
humanos não são simples forma, tamanho e movimentos:
possuem uma vida interior que escapa à observação primá­
ria e que, em si, constitui uma realidade passível de análi­
se. Daí derivam várias controvérsias. A primeira diz respeito à
questão da "neutralidade" e da "objetividade" que, segundo
Durkheim, poderiam ser mantidas, uma vez que ao cientista
social caberia observar manifestações comportamentais ex­
teriores a ele próprio. Ora, esse argumento não leva em conta
o fato de que tudo o que é feito pelos humanos (portanto,
por qualquer cientista) passa por sua subjetividade, sendo to­
talmente impossível se falar em "objetividade" em seu senti­
do pleno.
A história do positivismo revela que a concepção de obje­
tividade e de neutralidade se confunde com a execução de
estudos de cunho quantitativo. Hoje há um desenvolvimen­
to extremamente rápido de métodos de pesquisa de base es­
tatística, reproduzindo não só um método científico mas, com
certeza, uma doutrina que tem, em sua base, idéias bem esta­
belecidas e conservadoras. Muitas pesquisas (não todas) exi­
mem-se até de análise contextual, temendo contaminar a pu­
reza dos "dados"^ e exalar algum juízo de valor.

^ Na concepção deste trabalho, não se aceita a idéia de que um dado seja "puro"
e sem contaminação subjetiva, pois quem escolhe a pergunta por meio da qual se
obtém um dado é um ser humano marcado por sua história e por seus interesses. E
mais, a rigor, não existe nada "dado" em pesquisa: tudo é constmfdo e construído por
alguém que é sujeito, tem interesses e ideologia.
A força do positivismo associa-se a sua funcionalidade para
o poder, sobrevalorizando-se a tendência de usar instmmen-
tos de análise como se eles falassem por si mesmos, na ilusão
de que nada há além deles. A inspiração desse comportamen­
to vem de Durkheim, no Prefácio à primeira edição das Regras
do Método Sociológico:

Não podemos cair na tentação de ultrapassar os fatos,


quer para explicá-los, quer para explicar o seu curso. [. . .]
Se eles são inteiramente inteligíveis, então bastam tanto à
ciência, porque, neste caso, não há motivo para procurar
fora deles próprios a sua razão de ser; e a prática, porque
o seu valor útil é uma das suas razões (1978, p. 74).

Hoje existe um consenso entre os que adotam os princí­


pios positivistas de que os dados são objetivos (passíveis de
erros calculáveis), quando produzidos por instmmentos pa­
dronizados, visando a eliminar fontes de propensão de to­
dos os tipos e apresentar uma semântica observacional neu­
tra. A linguagem das variáveis representaria a possibilidade de
expressar generalizações com objetividade e precisão.
As questões aqui levantadas ultrapassam os limites do
debate sobre técnicas de pesquisa. Não pretendo demonizar
ou negar o papel, a importância e o sentido das tecnologias
quantitativas. O problema apresentado pela crítica teõrica é a
produção de uma verdadeira reificação do método que pre­
cisa ser criticada pelo menos em dois pontos: o primeiro é
epistemolõgico e diz respeito à pretensão de os dados obser­
váveis explicar a realidade, restringindo-a ao quantifícável. O
segundo é de ordem moral. Sobre os dois aspectos vale a pe­
na rememorar os sábios pensamentos de Wright Mills (1952)
i|ue, desde os anos 1950, questiona a sociologia positivista
americana.
Segundo esse autor, o papel do cientista social deveria ser
o de tornar evidente, para seus contemporâneos, a dinâmica
da -sociedade em que vive e o sentido de sua participação es­
pecífica. A utilidade das ciências sociais seria dada pela sua
capacidade de transformar os grandes problemas vividos pelo
povo em questões públicas, em favor de mudanças sociais,
tornando os cidadãos capazes de saírem de seus limites indi­
viduais e se sentirem parte de uma história à qual sua bio­
grafia está estreitamente vinculada. Sua crítica centrou-se, so­
bretudo, na falta de perspectiva epistemológica dos que se
empenhavam escrupulosamente na construção de modelos
matemáticos para seus dados e que se mostravam totalmente
incapazes de fazer uma análise sociológica dos indicadores
que geravam, deixando, aos demandantes das pesquisas, to­
tal liberdade para usá-los de acordo com interpretações que
passam por interesses econômicos e políticos. O escrúpulo
profissional tão propalado pelos positivistas, que consiste em
não interpretar fato ou processo algum que não possa ser com­
provado por dados matemáticos, na verdade se configura para
Wright Mills como uma subserviência ao poder.
Da mesma forma que Wright Mills (1952), Adorno &
Horkheimer (1991), expoentes da Escola Crítica na Sociologia
dos anos 1970 e 1980, desenvolveram uma contundente aná­
lise sobre a proliferação de estudos quantitativos nas Ciências
Sociais em geral. Sua avaliação fundamental foi de que nas
ciências sociais contemporâneas há uma reificação e uma feti-
chização dos métodos e das técnicas, em detrimento da teoria
e dos contextos. Reafirmaram, concordando com Wright Mills,
que a "quantitificação" não havia tornado as Ciências Sociais
nem mais "ciência" e nem mais "científicas". Detectaram que a
proliferação de pesquisas positivistas nas quais é indubitável
a obsessão pelo rigor das técnicas não tem nenhuma corres­
pondência com a importância das investigações para a socie­
dade, uma vez que a maioria das perguntas e dos temas é me­
díocre e não se ancora em relevâncias do ponto de vista dos
investigados.
Funcionalismo como derivação do positivismo

Uma das variantes do positivismo sociológico é o funcio­


nalismo, cujos representantes clássicos são, na antropologia
inglesa, Malinowski e Radcliffe-Brown (1973) e, na sociologia
americana, Merton (1970) e Parsons (1951). O positivismo nao
se constitui simplesmente como uma ciência normativa com
um conjunto de regras uniformes. Cada autor, diante dos pro­
blemas que descreve e interpreta, cria peculiaridades na con­
cepção e análise da realidade. No entanto, há um substrato bá­
sico, uma postura diante do objeto de estudo que permite
colocar, lado a lado, Merton, Parsons, Radcliffe-Brown e Mali­
nowski. O funcionalismo tem sido a corrente de pensamento
(dentro do positivismo) mais utilizada nas abordagens e nas
práticas do setor saúde.^ Os funcionalistas diferenciam-se de
Comte (1978) e Durkheim (1978) na medida em que negam
as leis gerais que regem o funcionamento da sociedade como
um todo. Também não reduzem a ciência do social à descrição
de acontecimentos ou de fatos observáveis. Desenvolvem um
tipo de teoria especialmente aplicável à compreensão da estru­
tura social e da diversidade cultural que pode ser resumida nos
princípios que se seguem: (a) As sociedades são totalidades que
se constituem como organismos vivos. São compostas por ele­
mentos que interagem, inter-relacionam-se e são interdepen-
tlentes. Compõem-se como sistemas com subsistemas onde
cada parte se integra no todo, produzindo equilíbrio, estabili-
tlade e sendo passível de ajustes, (fc) Por isso mesmo cada so­
ciedade tem seus mecanismos de controle para regular as in-
lliiências eventuais de elementos externos ou internos que

^ Para melhor compreensão do funcionalismo recomenda-se a leitura de: Mali­


nowski, U m a T e o r ia C ie n t ífic a d a C u ltu ra , Rio de Janeiro: Zahar, 1975; O s A r g o n a u ta s
ihf P a c ífic o , São Paulo: Abril, 1978; Radcliffe-Brown, E stru tu ra e F u n ç ã o n a S o c ie d a d e
V iim itiv a, Petrópolis: Vozes, 1973; Robert Merton, S o c io lo g ia : T e o r ia e E stru tu ra . São
l'.Milo: Mestre Jou, 1970; Talcott Parsons, T h e S o c ia l S y stem , Glencoe, 111.: The Free
1'ic'ss, 1951.
ameacem sua homeostase. "Desvios" e "disfunções" fazem
parte da concepção do sistema que, por meio dos mecanismos
próprios de controle, tendem a absorvê-los, produzindo inte­
gração. Esta é a tendência viva do sistema, (c) A integração se
consegue pelo consenso, por meio de crenças, valores e nor­
mas compartilhados socialmente pelos subsistemas que inte­
ragem constantemente e se reforçam mutuamente, (d) A con-
ceituação de progresso, de desenvolvimento e de mudança é
adaptativa. O sistema social tem em si a tendência à conserva­
ção e à reprodução, por isso as inovações, as invenções e as
tensões se direcionam para a revitalização do sistema e são
absorvidas no seu interior. Como num organismo vivo cuja
estrutura permanece e se revigora no movimento funcional,
as mudanças sociais não atingem as estmturas, não são revo­
lucionárias. Acontecem no nível da superestrutura que tem a
função de adaptação e de manutenção do statu cjuo (Hughes,
1983; Timasheff, 1965).
Os conceitos centrais do funcionalismo (sistema, subsis-
tema, estmtura, função, adaptação, integração, desvio e con­
senso) são coerentes com os princípios do positivismo socio­
lógico, para quem as leis que regem os fenômenos sociais são
intemporais, invariáveis e tendentes à estabilidade e à coesão.
A implicação metodológica de ambos (positivismo sociológi­
co e funcionalismo como uma de suas variantes) é de que as
totalidades funcionais, ainda que a investigação não seja de
orientação empírica, sejam replicáveis. A tarefa principal do
investigador, dentro deste esquema, é reproduzir as condi­
ções globais da existência social de um gmpo, descrevendo-as
em sua complexidade, diversidade e movimento integrativo,
de tal forma que possam ser comparadas.

Positivismo e Funcionalismo nos estudos em saúde

Dentre os funcionalistas, Parsons tem relevância funda­


mental para o setor saúde, porque este cientista americano
aplica a teoria funcionalista à explicação da medicina e das
relações entre médico e paciente nos Estados Unidos. Em sua
obra The Social System (1951), o tema central é o funciona­
mento das estruturas das instituições, consideradas como o
nódulo e o foco da Sociologia. As instituições constituem,
segundo Parsons, o mecanismo integrativo fundamental dos
sistemas sociais, definidos ora como uma pluralidade de agen­
tes individuais interagindo, ora como uma rede de relações
entre agentes. Nesta obra o autor oferece um conceito de saú-
de/doença, do qual se pode depreender sua visão funcionalis­
ta: "E um estado de perturbação no funcionamento normal
do indivíduo humano total, compreendendo-se o estado do
organismo como o sistema biológico e o estado de seus ajus­
tamentos pessoal e social" (1951, p. 48).
Uma análise lingüística destaca, na definição, o jargão fun­
cionalista: estado, funcionamento, normal, organismo, siste­
ma, ajustamento. No conceito, o biológico se vincula ao so­
cial por meio da noção de equilíbrio ou de desequilíbrio
individual, ante as pressões sociais. A doença é, para Parsons,
"uma conduta desviada" e o doente é um personagem social
que se reconhece na forma como a sociedade institucionaliza
o desvio e assim o assimila e o integra. Daí que, segundo sua
teoria, os papéis e funções de médico e paciente são comple­
mentares. A prática médica é um mecanismo do sistema social
que reconduz o doente à normalidade, mas reconhece seu
desvio e o institucionaliza. Ela tem por finalidade o controle
dos desvios individuais.
Juan César Garcia (1983), em seu estudo sobre as corren­
tes de pensamento na medicina, faz uma crítica contundente
ao funcionalismo de Parsons quando analisa o sistema mé­
dico. Ao definir a prática da medicina pela finalidade de curar
e prevenir as doenças, diz ele, Parsons se limita a descrever
(omo essa instituição funciona e se transforma em fenôme­
no observável, desconhecendo as condições de sua produ-
1..10 e reprodução. Reduz a concepção de doença à noção de
"desvio" pondo-a no âmbito exclusivo do paciente e do mé­
dico. Enfatiza seus respectivos papéis como atores sociais
no conjunto da sociedade como se essa fosse harmônica e
equilibrada.
Ao atribuir maior ou menor suscetibilidade individual às
tensões sociais responsáveis pela doença, Parsons desconhe­
ce que a sociedade é sempre conflituosa, nunca está em equi­
líbrio, é formada e permeada de interesses. E tudo isso entra­
nha as instituições médicas que são uma produção social, assim
como o são as determinações sociais da saúde e da doença.
Em resumo, se conclui que o positivismo e sua forma mais
utilizada que é o funcionalismo sociológico têm sido as cor­
rentes de pensamento com maior influência e vigor na pro­
dução intelectual referente às análises de saúde. Isso não é
estranho, uma vez que essas teorias se prestam para conservar
e justificar a prática médica hegemônica e os enfoques práti­
cos no tratamento dos doentes e das doenças. Ninguém du­
vida que a instituição da medicina e a área da saúde pública
são profundamente autoritárias e impositivas.
Em sua extensa revisão bibliográfica da produção científi­
ca da área da saúde na América Latina, Nunes (1985) afirma o
positivismo como o pensamento dominante dos anos 1950,
permeando as análises funcionalistas e culturalistas da saúde.
Mas hoje ainda tal corrente continua viva e presente tanto na
produção científica como na prática, podendo ser identifica­
da por alguns sinais: («) pouca valorização conceituai do pro­
cesso saúde e doença e seus determinantes; (b) enfoque prag­
mático e funcionalista da medicina como se ela fosse uma
ciência universal, atemporal e isenta de valores; (c) valoriza­
ção das ciências sociais como acessório ou complemento na
prática e na teoria médicas, considerando-as como ciências
normativas e com finalidade adaptativa e funcional; (d) Valo­
rização excessiva da concreção estatística nos estudos epide-
miológicos onde se tende a confundir objetividade das técni­
cas com verdade sobre os fenômenos.
Na prática médica e nas suas relações com a sociedade, o
positivismo manifesta-se, dentre outras formas: (1) Na con­
cepção da saúde e da doença como fenômeno apenas bioló­
gico individual, em que o social entra apenas como variável e
ilustração do modo de vida, quando não é omitido. (2) Na
valorização excessiva da tecnologia e na crença da capacidade
absoluta da medicina de erradicar as doenças. (3) Na domi­
nação corporativa dos médicos em relação aos outros campos
do conhecimento, adotando-os de forma pragmática (a so­
ciologia e a antropologia são consideradas importantes ape­
nas para fazer questionários, produzir informes culturais, en­
sinar alguns conceitos básicos). (4) No tratamento subalterno
dado aos outros profissionais da área (enfermeiros, assis­
tentes sociais, nutricionistas, atendentes, psicólogos, fisiote­
rapeutas e outros). (5) No menosprezo ao senso comum da
população. Essa postura nunca é totalmente vitoriosa, pois
ao mesmo tempo que desqualifica a medicina popular e as
práticas tradicionais, a medicina as absorve (Freidson, 1971;
Boltanski, 1979).

Teorias Compreensivas

Uma segunda visão do mundo que tem tido profunda


influência na construção do conhecimento da realidade, tam­
bém na interpretação das relações entre medicina e sociedade,
é a chamada Sociologia Compreensiva. Ela é reconhecidamente
antipositivista e desenvolveu-se sob os princípios da filosofia
alemã, tendo Dilthey como um dos seus expoentes. Como o
próprio nome indica, a sociologia compreensiva privilegia a
compreensão e a inteligibilidade como propriedades específi­
cas dos fenômenos sociais, mostrando que os conceitos de
significado e de intencionalidade os separam dos fenômenos
naturais.
Na Introdução às Ciências do Espírito, Dilthey polemiza com
o positivismo, afirmando que os fatos humanos não são sus­
cetíveis de quantificação e de objetivação porque cada um
deles tem sentido próprio e identidade peculiar, exigindo uma
compreensão específica e concreta. Daí, ele deduz, são falsas
as teorias sociológicas e a filosofia da história que vêem na
descrição do singular uma simples matéria-prima para poste­
riores abstrações: "não há última palavra da história que con­
tenha o verdadeiro sentido" (Dilthey, 1956, p. 25).
No campo das Ciências Sociais, foi MaxWeber quem esta­
beleceu as bases teórico-metodológicas da Sociologia Com­
preensiva. Contra os princípios do positivismo, ele diz que:
"A sociologia exige um ponto de vista específico já que os
fatos de que se ocupa implicam um gênero de causação des­
conhecido das ciências da natureza" (1964, p. 3).
Sua definição de Sociologia passou a ser um marco para
os que consideram, teoricamente, o papel do indivíduo e da
sua ação na constmção da realidade:

É uma ciência que se preocupa com a compreensão


interpretativa da ação social, para chegar à explicação cau­
sai de seu curso e de seus efeitos. Em "ação" está incluído
todo o comportamento humano quando e até onde a
ação individual lhe atribui um significado subjetivo. A
"ação" neste sentido pode ser tanto aberta quanto subje­
tiva. [. . .] A "ação" é social quando, em virtude do signifi­
cado subjetivo atribuído a ela pelos indivíduos, leva em
conta o comportamento dos outros e é orientada por ele
na sua realização (Weber, 1964, p. 33).

Weber, como Durkheim, também investiu na divulgação


de sua proposta teórica, sendo co-editor do Arquivo de Ciên­
cias Sociais {Archivfür Sozialwissenschaft), publicação de grande
relevância no desenvolvimento dessa área de conhecimento
na Alemanha.
Weber considera "a captação da relação de sentido da ação
humana" (1964, p. 32) como o foco central das Ciências So­
ciais, afirmando que os sociólogos necessariamente têm de
tratar dos significados subjetivos do ato social. Ressalta em
seus escritos que, ao tratar da subjetividade, o cientista social
não está fazendo psicologia, e sim afirmando que a sociedade
é fmto de uma inter-relação de atores sociais, em que as ações
de uns são reciprocamente orientadas em direção às ações dos
outros. Por causa disso, para Weber, a sociologia requer uma
abordagem diferente das ciências da natureza, dentro dos se­
guintes parâmetros: (a) realização de pesquisas empíricas, a
fim de se construírem dados que dêem conta das formula­
ções teóricas; (b) os dados devem derivar do modo da vida
dos atores sociais; (c) os agentes sociais dão significados a
seus ambientes, relações e eventos de forma extremamente
variada; (d) e os mesmos agentes podem também descrever,
explicar e justificar suas ações, motivadas por causas tradicio­
nais, sentimentos afetivos ou por elementos racionais; (e) as
realidades sociais só podem ser identificadas na linguagem
significativa da interação social. Por isso, a linguagem, as prá­
ticas, as coisas e os acontecimentos são inseparáveis.
Em sua formulação teórica, Weber, da mesma forma que
Durkheim, está preocupado com a objetividade da investiga­
ção. Por isso propõe, para conseguir compreender a realidade
social, dois princípios metodológicos: (a) a neutralidade de
valor e (b) a construção do tipo-ideal.
Partindo do princípio de que a história humana se consti­
tui de "constelações singulares", de "caso concreto", o autor
propõe a teoria dos tipos-ideais como instrumento racional e
teórico de aproximação da realidade, em busca de um olhar,
o mais possível, objetivo. Os "tipos-ideais", pensados por
Weber, não existem na realidade, são artifícios, construções
teóricas que permitem ordenar os fenômenos e indicar suas
articulações e seu sentido: representam o primeiro nível de
generalização de conceitos abstratos e, correspondendo às exi­
gências lógicas da prova, estão intimamente vinculados à rea­
lidade concreta. Segundo o próprio autor, eles são "conceitos

í
histórico-concretos". Sintetizam e evidenciam os traços típi­
cos e originais de determinado fenômeno, tornando-o inteli­
gível. Weber sugere aos estudiosos esse artefato que ele pró­
prio utiliza, indicando que existe um sistema de "tipos-ideais",
entre os quais os de lei, de autoridade e de legitimidade, de
democracia, de capitalismo, de feudalismo, de sociedade, de
burocracia e de patrimonialismo.
A intenção de Weber, ao propor o tipo-ideal como instm-
mento metodológico de compreensão da realidade é tornar
as Ciências Sociais rigorosas e fidedignas, mas a partir de uma
perspectiva diferente da abordagem positivista:

Não existe uma análise da cultura absolutamente ob­


jetiva dos fenômenos sociais, independente dos pontos
de vista especiais e parciais, segundo os quais, de forma
explícita ou tática, consciente ou subconsciente, aqueles
são selecionados e organizados para propósitos expositi-
vos. Todo conhecimento da realidade cultural, como pode
ser visto, é sempre conhecimento a partir de pontos de
vista específicos (Weber, 1949, p. 72).

Para Weber, as singularidades históricas são fmto de com­


binações específicas de fatores gerais que, se isolados, são quan-
tificáveis. Mas a forma numérica de sua apresentação precisa
estar associada à visão de outros elementos que propiciam
combinações peculiares, uma vez que tudo o que se afirma
de uma ação concreta, seus graus de adequação e sentido, sua
explicação compreensiva e causai, são hipóteses suscetíveis de
verificação. Portanto, a interpretação causai correta de uma
ação concreta significa que o desenvolvimento externo e o
motivo da ação foram conhecidos de um certo modo que
leva em conta seu sentido e suas articulações.
Estudos compreensivos usando o desenho de tipo ideal
para análise de um fenômeno ou de uma situação, para se­
rem operativos, devem sintetizar e evidenciar os traços típi-

J
COS e originais desse determinado fenômeno, tornando-o inte­
ligível. A realização de uma avaliação a partir do modelo áe
tipos-ideais, (a) funda-se numa investigação empírica que per­
mita confrontar os dados da realidade com o modelo (tipo-
ideal); (b) seus dados devem sempre derivar do modo de vida,
das relações e das representações dos atores; (c) orientar-se
para captação e compreensão dos vários e diferentes signifi­
cados dos sujeitos sobre os processos que estão vivendo e (d)
e apoiar-se na crença de que os atores envolvidos em inter­
venções sociais são capazes de descrever, explicar e justificar
suas ações e relações com argumentos afetivos, tradicionais e
racionais.
Os que apontam controvérsias nas abordagens sociais por
meio de tipos-ideais consideram que Weber, na tentativa de
fugir ao positivismo que tanto criticou e, ao mesmo tempo,
visando a produzir investigações objetivas, fez de seu dese­
nho metodológico um artifício rígido que não se conforma às
realidades concretas e dinâmicas. Porém, não é bem assim.
No seu embate teórico contra o positivismo, Weber reconhe­
ce que os valores têm papel destacado na seleção do objeto
de investigação, na escolha da problemática e nas questões
que o pesquisador se propõe. Porém, cabe ao investigador
buscar formas de garantir a isenção máxima possível da intro­
missão ideológica nos estudos sociais, pelo método e pela
técnica. Sua busca de "objetividade" coincide com o que, nes­
te livro, se denomina "objetivação", que visa a assegurar, no
campo da pesquisa, um processo que tenha fundamentos teó­
ricos e, ao mesmo tempo, padrões universais e específicos, na
prática de investigação. A partir dos conceitos gerais que di­
zem respeito ao comportamento do fenômeno social, Weber
sugere que o investigador formule conceitos mediadores, ade-
r|uados e peculiares, visando a se aproximar cada vez mais das
características concretas dos acontecimentos históricos e das
interações.

A
Abordagens compreensivas nas pescjuisas em saúde

Sintetizando os principais aspectos das abordagens com­


preensivas, é importante ressaltar que, embora haja diferentes
métodos e desenhos na sua operacionalização, existem ele­
mentos comuns a todas: (a) seu foco é a experiência vivencial
e o reconhecimento de que as realidades humanas são com­
plexas; (b) o contato com as pessoas se realiza nos seus pró­
prios contextos sociais; (c) a relação entre o investigador e os
sujeitos investigados enfatiza o encontro intersubjetivo, face
a face e a empatia entre ambos; (d) os resultados buscam ex­
plicitar a racionalidade dos contextos e a lógica interna dos
diversos atores e grupos que estão sendo estudados; (d) os
textos provenientes de análises compreensivas apresentam a
realidade de forma dinâmica e evidenciam o ponto de vista
dos vários atores ante um projeto social sempre em constru­
ção e em projeção para o futuro e (d) suas conclusões não são
universalizáveis, embora a compreensão de contextos pecu­
liares permita inferências mais abrangentes que a análise das
microrrealidades e comparações.
Em seu texto As Correntes de Pensamento no Campo da Saú­
de (1983), Juan César Garcia refere-se à forma específica do
desenvolvimento das teorias compreensivas e muito particu­
larmente a fenomenologia nas análises sociológicas e no de­
bate político sobre relações entre Medicina e Sociedade. Na
década de 1960 e com maior força nos anos 1970, a fenome­
nologia, junto com o marxismo, propôs uma crítica radical
das relações de produção e dos esquemas de dominação que
acompanharam o enorme crescimento das forças produtivas
ocorrido nos países capitalistas a partir da Segunda Guerra
Mundial. A onda desenvolvimentista, cujos rumos do pro­
gresso não significaram a socialização do bem-estar; a consta­
tação do aprofundamento das desigualdades entre ricos e po­
bres, entre países centrais e países periféricos; o caos ecológico
e social dos grandes centros urbanos e a corrida armamentis-
ta, tudo isso fez crescer um movimento oposicionista na so­
ciedade civil e um questionamento profundo da ciência como
verdade incontestável. A concepção positivista da ciência uni­
versal, atemporal e isenta de valores conduzindo os mmos da
humanidade, na área da saúde foi sendo problematizada por
um debate teórico e ideológico que engajou questões tanto
de cientifiddade dos postulados vigentes como da ética da
investigação científica.
Nos anos 1960, autores fenomenólogos e marxistas estive­
ram juntos numa crítica radical ao contexto macrossocial. Po­
rém, a partir da metade da década de 1970, pouco a pouco foi
se delineando uma diferença radical entre ambas as correntes
de pensamento no campo teórico, ideológico e de propostas
relativas aos rumos das mudanças necessárias ao setor saúde.
Para Garcia (1983), a fenomenologia passou de radical a rea­
cionária, embora sua contribuição tenha sido fundamental.
Os fenomenólogos consideram que a cura se baseia em
valores, símbolos e sistemas de significados compartilhados
nos seus gmpos de referência. São esses gmpos de referência
i|iie protegeriam os indivíduos contra as grandes estruturas
im|-)essoais e anônimas nas quais, comenta Schutz, eles se tor­
nam um número. Gom base nesses princípios, os fenomeno-
logistas propõem uma reforma do sistema de saúde baseada
em valores culturais dos indivíduos, dos seus mediadores (os
gmpos) e de seus ecossistemas (Manning & Fábrega, 1973;
Douglas, 1971).
As idéias fenomenológicas influenciaram também o surgi­
mento de linhas holísticas na concepção da saúde e da doen-
(..1, unificando-as nos seguintes pontos: (a) a saúde tem de
sei pensada como um bem-estar integral: físico, mental, so-
I i.il e espiritual; (b) os indivíduos devem assumir sua respon-
s.ibilidade inalienável diante das questões de sua saúde; (c)
,is práticas da medicina holística devem ajudar as pessoas a
desenvolver atitudes, disposições, hábitos e práticas que pro­
movam seu bem-estar integral; (d) o sistema de saúde deve
ser reorientado para tratar das causas ambientais, comporta-
mentais e sociais que provocam as doenças; (e) as pessoas
devem voltar-se para a harmonia com a natureza, também para
utilizar práticas e meios naturais de tratamento (Garcia, 1983).
Os resultados práticos das concepções fenomenológicas
sobre o setor saúde têm sido: {a) questionamento sobre o pa­
pel do Estado e das grandes instituições médicas; (b) incremen­
to dos pequenos gmpos privados e voluntários voltados para
a promoção da saúde; (c) reconhecimento de modalidades
alternativas de expressão e de tratamento das enfermidades e
agravos; (d) aparecimento de novas formas institucionaliza­
das de saúde pública, combinando associações voluntárias,
atenção primária, autocuidado, uso de medicina tradicional,
participação comunitária e educação e saúde vinculadas à pes-
quisa-ação.
Não faltaram críticas dos fenomenologistas ao positivis­
mo quanto a vários aspectos de sua influência na instituição
médica, na prática médica, na ética médica, no sistema públi­
co de saúde e na concepção biomédica de saúde e doença.
Uma análise contundente sobre o caráter reprodutor e coerci­
tivo das instituições e sobre os efeitos negativos da medicali-
zação foi realizada por Ivan Illich em A Expropriação da Saúde
(1975). O radicalismo de seus questionamentos, contra a do­
minação totalizante da instituição médica; chegou a um nível
quase fóbico. Mas se o exagero pode até desacreditar cientifi­
camente sua obra, devem ser levados em conta vários proble­
mas levantados por Illich, com os quais coincidem outros in­
telectuais. O foco de sua crítica se debmça sobre a hipertrofia
das grandes instituições voltadas para a assistência à saúde, o
que, a seu ver, as tornou o maior obstáculo à realização dos
objetivos a que o setor saúde se propõe.
Illich (1975) fala do "crescimento mórbido da medicina"
que conduz: (a) à ineficácia global do sistema; (b) à perda da
capacidade da população de se adaptar ao meio social, de acei­
tar a dor e o sofrimento, por causa da medicalização da vida;
(c) à idéia mítica de que a medicina seja capaz de acabar com
a dor, o sofrimento e a doença, mito esse que compromete a
capacidade cultural dos indivíduos e da sociedade contem­
porânea de lidar com a vida e com a morte.
O livro de Illich é particularmente relevante para o exercí­
cio do debate sobre as relações entre indivíduo e sociedade e
0 poder dO indivíduo (cidadão) ante os esquemas coerciti­
vos. Essa discussão que de alguma forma permeia todas as
correntes de pensamento, levou a afirmações que hoje se cons­
tituem em verdadeiras teses do pensamento crítico da área da
saúde coletiva: (a) primeiro, que a atenção médica não tem
significado necessariamente a melhoria de qualidade de saú­
de da população (McKeown, 1984); (b) segundo, que o cará­
ter dominador da medicina tem induzido a prática médica a
ampliar cada vez mais seu controle sobre o corpo, sobre os
eventos da vida humana, sobre os ciclos biológicos e sobre a
vida social (Boltanski, 1979); (c) e, por fim, que o profissio­
nalismo médico tem redundado principalmente na defesa de
privilégios corporativos e servido mais para atender a interes­
ses econômicos do que para responder às necessidades de
saúde da população (Boltanski, 1979; Arouca, 1975).
Aos questionamentos citados, a fenomenologia socioló­
gica acrescenta alguns sobre a ética médica e sobre uma con-
( epção social mais abrangente da saúde e da doença. Os feno-
menólogos, sobretudo nos anos 70 do século XX, defenderam
denodadamente a necessidade de se desenvolver uma filoso-
lia da medicina que (a) fundamentasse questões éticas relati­
vas à realização de experimentos e serviços que têm como
objeto a vida humana e (b) formulasse uma concepção de
saude e doença com relevância antropológica, levando em
tonta, também, fenômenos como religião e crenças de socie-
ilatles e de grupos específicos (Pellegrino, 1976).
Desde 1968, a literatura e os congressos sobre ética médi-
1a desceram aceleradamente, influenciando movimentos da
sociedade civil no sentido de se criar uma consciência dos di­
reitos dos usuários do sistema de saúde e de repúdio ao do­
mínio controlador do saber e do fazer médicos. A partir dos
anos 1970, no mundo inteiro foram criadas comissões de éti­
ca voltadas para garantir que as pessoas tenham direito de ser
informadas e de participar do processo de reflexão sobre o
que acontece nos laboratórios, nos hospitais e nas clínicas.
No Brasil espedficamente, os comitês de ética para analisar
experimentos e investigações com seres humanos se multi­
plicaram, principalmente nos anos 1990, sendo regulamen­
tados pela Resolução n.° 96/1996 do Conselho Nacional de
Saúde que deu diretrizes e normas sobre pesquisas envol­
vendo seres humanos. Esse documento passou a ter força de
lei para as instituições de investigação e para as fontes finan­
ciadoras, respaldando direitos da sociedade civil e dos indi­
víduos.
A abordagem fenomenológica no campo da saúde, apesar
de sua grande contribuição para o pensar e o fazer saúde, tam­
bém recebeu e vem recebendo críticas de outras correntes de
pensamento. Particularmente para alguns autores marxistas,
as propostas dos fenomenólogos abriram o flanco para uma
re-acomodação e posterior assimilação e uso pelo Estado ca­
pitalista das alternativas que a fenomenologia propõe. Assim,
em lugar de radicalizar mudanças, o pensamento fenomeno-
lógico tornou-se conservador na forma como concebe e apre­
ende a estrutura e o sentido da ação social. Ao tomar como
totalidade de análise a autonomia dos indivíduos, dos pe­
quenos grupos, dos sistemas de crença e valores, os fenome­
nólogos menosprezam os contextos e as bases sociais dos
valores e crenças historicamente constmídos e as relações de
dominação econômica, política e ideológica do sistema ca­
pitalista.
A fenomenologia também assume o componente ético
como algo absoluto que deve antepor-se às relações entre ciên­
cia e moral. O marxismo relativiza, afirmando que a ética e a
ciência são duas formas de consciência em relação dialética
com as condições materiais de sua produção. Dessa forma
submete à crítica tanto uma como outra.
Juan César Garcia chama atenção para o fato de que as
proposições fenomenológicas têm sido usadas nos países ca­
pitalistas tanto centrais como periféricos para orientar a reor­
ganização de sistemas de saúde, freqüentemente desoneran­
do as responsabilidades do Estado:

No terreno da prática médica surgem programas al­


ternativos de autocuidado de saúde, atenção primária por
pessoal não-profissional, revitalização da medicina tra­
dicional, etc. A maioria destas experiências e os princí­
pios sobre os quais se sustentam foram apropriados pelo
Estado na maioria dos países da América Latina na década
de 70, ao mesmo tempo em que se reduziam, de forma
relativa, os orçamentos estatais para a área social (1983,
p. 121).

A assunção de posturas condizentes com as teses feno­


menológicas que enfatizam a responsabilidade dos cidadãos
sobre sua própria saúde vem acontecendo pari passu com a
crise fiscal do Estado e com a globalização dos meios de pro­
dução capitalista. A resposta mais comum às crescentes ne­
cessidades da população vem sendo, em muitos países, a
adoção de alternativas baratas que não respondem às reais
necessidades da população, como já em 1983 assinalava Juan
( lésar Garcia:

É uma tentativa de converter o consumidor da assis­


tência médica em provedor desta, através do autocuidado
e da sua participação nas estmturas intermediárias. O de­
senvolvimento econômico-social é entendido — dentro
deste corpo teórico reacionário [refere-se à fenomenolo-
gia| — como determinado pelo investimento privado ge-
. rador de riqueza e pela ajuda voluntária, contribuinte do
bem-estar social (Garcia, 1983, p. 130).

As conclusões de Garcia, referidas ao contexto de vinte


anos atrás, precisam ser hoje revistas. Primeiro, porque está
claro para os melhores sistemas de saúde, como o canadense
e o inglês, que é preciso ter a cumplicidade dos sujeitos e sua
responsabilização, também, ao lado das responsabilidades ine­
gáveis do Estado. A sociedade e os cidadãos não podem abrir
mão da saúde (concepções, instituições e práticas) como um
bem precioso sobre o qual têm poder e dever de zelar. Em
segundo lugar, porque no Brasil e em vários países da América
Latina, a partir dos anos 1990, muitos programas de aproxi­
mação e compreensão da população vêm ocorrendo, como é
o caso brasileiro do Saúde da Família.
No programa Saúde da Família, a idéia do pequeno grupo,
da célula de relações primárias — tão cara ãs abordagens com­
preensivas — tornou-se o alvo de uma proposta de mudança
do modelo hospitalocêntrico (ainda hegemônico). Esse últi­
mo em geral se rege por normas institucionais burocráticas e
abrange toda a cadeia de atenção à saúde, sendo um modelo
extremamente caro, ineficiente e pessoal. O programa Saúde
da Família abrange hoje mais de cinqúenta milhões de pes­
soas no Brasil e, embora também apresente muitos problemas
em sua implementação, aposta em serviços mais pessoais, com­
preensivos e interativos, permitindo capilarizar serviços bási­
cos de assistência e princípios da promoção, incluindo res­
ponsabilidades do Estado, da sociedade e dos indivíduos.
Por isso, entendo e defendo que os questionamentos tra­
zidos pelas teorias compreensivas para o campo da saúde,
quando não são tomadas em suas vertentes reducionistas, têm
sido fundamentais para a promoção das interações entre to­
dos os agentes do setor, para a compreensão de fenômenos
focalizados, locais e específicos e para humanizar o sistema
de saúde.
Marxismo e algumas de suas correntes

Toda a obra de Marx é coerente com o princípio básico de


sua metodologia de investigação científica: tem a marca da
totalidade. Por isso mesmo, uma das polêmicas sobre a con­
tribuição de seu trabalho para as Ciências Sociais se deve ao
fato da dificuldade de catalogá-la, pois ela é, ao mesmo tem­
po, Filosofia, História, Economia, Sociologia e Antropologia.
E esse caráter de abrangência, que tenta, de uma perspectiva
histórica, cercar o objeto de conhecimento por meio da com­
preensão de todas as suas mediações e correlações, consti­
tuindo a riqueza, a novidade e a propriedade da dialética mar­
xista. Goldmann (1980) considera essa versatilidade da obra
de Maix, ao fato de ele ter conseguido levantar as mais impor­
tantes questões teóricas para análise da sociedade capitalista,
vinculando-as à utilidade e às necessidades humanas.
Constitui uma tarefa gigantesca e profunda a aproxima­
ção do pensamento de Marx e dos marxistas que, fiéis a ele,
tentaram refletir sobre o ser humano, a sociedade e o indiví-
iliio. Como o escopo específico deste texto é a discussão das
loirentes de pensamento e metodologias que têm influído
nas análises e nas práticas do setor saúde, é por esse veio que
o marxismo será abordado. Dar-se-á ênfase à dialética das re­
lações entre o indivíduo e a sociedade, entre as idéias e a base
material, entre a realidade e a sua compreensão pela ciência,
(onio também às correntes que enfatizam o sujeito histórico
(■a luta de classes. E de todas as correntes internas, faz-se uma
opção por aquela que articula condições gerais de produção e
iciirodução à problemática da subjetividade humana.
Na perspectiva marxista, os princípios que explicam o pro-
( esso de desenvolvimento social podem ser sintetizados nas
fxnressões materialismo histórico e materialismo dialético.
No marxismo, o materialismo histórico representa o cami­
nho teórico que aponta a dinâmica do real na efervescência
de. uma sociedade. Por sua vez, a dialética refere-se ao método.
de abordagem da realidade, reconhecendo-a como processo
histórico em seu peculiar dinamismo, provisoriedade e trans­
formação. A dialética é a estratégia de apreensão e de compre_2_
ensão da prática social empírica dos indivíduos em sociedade
(nos grupos, classes e segmentos sociais), de realização da crí­
tica das ideologias e das tentativas de articulação entre sujeito
e objeto, ambos históricos. O materialismo histórico, como
caminho teórico, e a dialética, como estratégia metodológica,
estão profundamente vinculados, pois, como lembra Lênin
(1965), o método é a própria alma do conteúdo. Esse imbri-
camento é tão profundo que autores como Lowy (1986), pre­
ferem usar indistintamente expressões como dialética marxis­
ta, materialismo dialético, materialismo histórico e filosofia da práxis
(esta última expressão é uma denominação gramsciana) para
se referirem ao marxismo. Diz Lowy: "todos esses termos
apontam para elementos do método marxista". Mas "o histo-
ricismo é o centro, o elemento motor, a dimensão dialética e
revolucionária do método" (1986, p. 26).
Lowy (1 9 8 6 ), Goldmann (1 9 8 0 ), Bottomore & Rubel
(1988), Adam Schaff (1967) insistem em mostrar que a di­
mensão materialista não constitui, em si, a maior novidade
do marxismo. O próprio Marx, tomando a história como cen­
tro, tem um diálogo com os que denomina "materialistas vul­
gares", contrapondo-os aos "ideólogos alemães" e criticando
a ambos:

Para os materialistas vulgares a produção real da vida


aparece como não histórica, ao passo que o histórico é
mostrado à vida comum supraterrestre (1973, p. 27) [. . .]
A filosofia hegeliana da história é a última conseqüência,
levada à sua expressão mais pura, de toda a historiogra­
fia alemã que pretende ver, não os interesses reais nem
sequer políticos, mas os pensamentos puros que inevita­
velmente aparecem, como uma série de pensamentos que
devoram uns aos outros até serem engolidos pela auto-
consciência (1984, p. 5).

Um exame do prefácio da Contribuição à Crítica da Econo­


mia Política (1973) evidencia que o termo material em Marx é
usado simplesmente para designar as condições primárias da
vida humana. Suas expressões: vida material, condições mate­
riais de existência, forças materiais de produção, transformação das
condições materiais de produção estão relacionadas com uma
historiografia. Visam a promover uma interpretação científica
das transformações sociais que baixam do céu para a terra,
isto é, das idéias como fonte, para o ser humano, a natureza e
a sociedade como geradores. Nesse sentido, sua historiogra­
fia é uma "sociologia histórica", conforme a expressão usada
por Goldmann (1980). Também Bottomore & Rubel comen­
tam sobre a especificidade do "materialismo" em Marx:

A ênfase que ele [Marx] dava à estmtura econômica na


sociedade não era novidade. Sua contribuição pessoal
nessa esfera foi o contexto dentro do qual discutiu a es­
trutura econômica: o contexto do desenvolvimento his­
tórico do trabalho humano como relação primária entre
homem-natureza e entre os homens e seus semelhantes.
O trabalho de Marx conforme ele mesmo disse, antes de
itido era uma nova historiografia, e seu interesse domi­
nante era a transformação histórica (1988, p. 34).

São dois os conceitos fundamentais que resumem o ma-


iriialismo dialético, conceitos que possuem um alto grau de
.ilislração: Modo de Produção e Formação Social.
Por Modo de Produção se compreeii3è:~(fl) uma estmtura
global formada por estmturas regionais (ou instâncias) eco­
nômicas, jurídico-políticas e ideológicas; (b) uma estmtura
gjobal, na qual existe sempre uma estmtura regional que do­
mina as demais. Essa dominância de qualquer instância se dá
historicamente e não a priori; (c) uma estrutura global, na qual
é sempre o nível econômico que determina as outras (Fiora-
vanti, 1978). Modo de Produção se configura como um concei­
to abstrato formal e como modelo teórico de aproximação da
realidade. A ele Marx associa o de Formação Social, que se refe­
re às dimensões dinâmicas das relações sociais concretas numa
sociedade dada.'‘
Formação Social se constitui numa unidade complexa de
articulação das várias instâncias de organização social que
podem, também, conter vários modos de produção simultâ­
neos (o que se observa na realidade histórica), entre os quais
um é dominante e determina os outros (Fioravante, 1978). A
formação social de um espaço cultural concreto deve ser enten­
dida como a realidade que se forma processualmente na his­
tória: refere-se tanto a dimensões macro como microssociais.
O estudo de uma formação social deve incluir a análise das
mudançasetransformações assimcoinoidãspermanênciasque
se fixam nas estruturas. '
O conceito de Formação Social diz respeito ao movimento:
(a) das forças produtivas e das relações sociais de produção;
(b) das classes sociais básicas e dos segmentos específicos, em
conflitos, convergências e contradições; (c) da divisão do tra­
balho; (d) das formas de produção, circulação e consumo de
bens; (e) da população e dos movimentos populacionais; (f)
do Estado; (g) do desenvolvimento da Sociedade Civil; (h)
das relações nacionais e internacionais de comércio; (i) das
formas de consciência real possível dos diferentes grupos so­
ciais; (j) e dos modos de vida, tema que Marx vincula ao "modo
de produção" e às "condições gerais de produção".
Marx apropriou-se do conceito de dialética tal como utili-

“ Nessa reflexão há uma profunda discordância do marxismo interpretado por


Althusser e toda a corrente mecanicista que nega a história como construção humana
significativa e o sujeito social a não ser como "efeito ilusório de estruturas ideológicas"
em P o u r M a r x , Paris: Maspéro, 1965; A n á lis e c r ític a d a te o r ia m a rx ista , Rio de Janeiro,
Zahar, 1967.
zado por Hegel e o transformou. Mas o termo é muito mais
antigo, vem da filosofia grega, trazendo um sentido dinâmico
de inquietação e pergunta sobre as coisas, os fatos da vida e
da sociedade. Esse conceito vai tomando várias conotações
no decorrer da bistória.^ _______
prírneira tese da dialética é a da especificidade históúc^
tia vida bumana:jnada existe totalmente dado, eterno, fixo e
absoFuto. Portanto, não bá nem idéias, nem instituições e nem
categorias estáticas. Toda vida bumana e social está sujeita a
mudanças, transformações, sendo perecível e podendo ser
reconstmída. Diferentemente dos positivistas que buscavam
leis invàfiãt^s da estrutura social para conservá-la, a lógica
ilialética introduz na compreensão da realidade o princípio
ilo conflito e da contradição como algo permanente e que
explica o inacabado, o imperfeito e a transformação.
Nada se constrói fora da bistória e nem a bistória é pro­
duto das idéias, dizem Marx & Engels, no texto que escreve-
um sobre a Sagrada Família (1967). Ela não é uma unidade
v.izia ou estática da realidade, mas uma totalidade dinâmica
(!»• relações que explicam e são explicadas pelo modo de pro­
dução concreto. Isto é, os fenômenos econômicos e sociais
s.io produtos da ação e da interação, da produção e da repro­
dução da sociedade pelos indivíduos. "Não é a bistória que
SC serve dos seres bumanos para alcançar seus fins. A história
c .1 penas a atividade dos seres humanos perseguindo seus
nlijctivos" (1967, p. 361).
Em relação à primeira tese que se assenta sobre o princí­
pio d.i especificidade histórica, aqui se dá realce ao pensamento
dc (ioidmann, um dos mais importantes intérpretes da obra
dc Marx sobre o sentido da ação humana e da cultura. Esse
.luioi tem uma contribuição metodológica fundamental quan-

P.ii.i uma análise mais detalhada do conceito de d ia lé t ic a , ver em M. C. S.


Min.ivii, in: M. C. S. Minayo & S. F. Deslandes. C a m in h o s d o p e n s a m e n to . Rio de Ja-
II. lui I iocruz, onde, num capítulo sobre "Hermenêutica e Dialética" a autora
iMh.illi.i us vários sentidos históricos do termo.
do se quer pensar em investigações, ao mesmo tempo, situa­
das e contextualizadas. Goldmann começa por situar em pé
de igualdade e de reciprocidade duas disciplinas que nem sem­
pre caminham juntas: a história e a sociologia. "Todo fato social
é um fato histórico" diz ele (1980, p. 17). Aconselha aos cien­
tistas sociais, portanto, como caminho metodológico, que
abandonem toda as correntes sociológicas abstratas e bus­
quem uma ciência dos fatos históricos "que deve ser uma so­
ciologia histórica e uma história sociológica" (1980, p. 18). O
fundamento de tal ciência^ócíõdíístóri^ segundo Goldmann,
é o fato de que os seres humanosTtao são apenas objeto de
investigação, mas pessoas que constroem seu mundo, suas
estmturas, suas ideologias e se enredam nelas. Diz Goldmann,
criticando os cientistas sociais formalistas e positivistas que se
fundamentam no fetiche do método:

A deformação científica maior não começa quando se


tenta aplicar ao estudo das comunidades métodos das
ciências físico-químicas, mas quando se considera essa co­
munidade apenas um objeto de estudo (1980, p. 22).

Para Goldmann, a vida social constitui o único valor co­


mum que reúne os homens de todos os tempos e de todos
os lugares. Por isso, insiste em diferenciar o que chama a "nova
historiografia ou sociologia marxista" qu& tem como objeto,
tanto em relação ao passado como ao presente, (a) a compre­
ensão das atitudes fundamentais dos indivíduos e dos gru­
pos em face dos valores, da comunidade e do universo; (b) a
compreensão das transformações do sujeito da ação no seu
relacionamento dialético com o mundo, fazendo em si a sín­
tese entre o passado e o presente; (c) e, em conseqüência, a
compreensão das ações humanas de todos os tipos e de to­
dos os lugares que tiveram impacto na existência e na estmtu-
ra de determinado gmpo no passado, no presente e em sua
projeção para o futuro.
Goldmann (1980) engloba na sua definição de objeto a
história e os fenômenos em seus níveis coletivos, individuais
e específicos. Por isso, supera e faz a síntese da historiografia
tradicional que dá ênfase à ação dos governantes e líderes e
da que leva em conta as determinações do modo de produ­
ção e o papel da coletividade, do povo, quase sempre deixa­
do de lado na visão positivista dos acontecimentos.
Na perspectiva da dialética marxista de autores como Gold­
mann (1980) e Lowy (1985), ^ d o o que ultrapassa o indiví-
duo para atingir a vida social constitui acontecimento histó­
rico^. Ambos leniBram que Marx consTdêrávã^ a HT^ófFa do
mundo também do ponto de vista dos que a fazem sem ter a
possibilidade de prever as chances de seu sucesso, referindo-
se ao valor que dava ao movimento operário e aos trabalha­
dores. Gontrariando o pensamento de outros autores tam-
hém intérpretes de Marx, como Althusser, Goldmann valoriza
as teorias de base compreensiva e a antropologia: "O que bus-
( .unos na compreensão das formas historicamente diferentes
ile viver em comum é a significação humana, impossível de
ser compreendida fora da estmtura social" (1980, p. 24). Por­
que, na sua ótica sobre a dialética, a consciência se concebe.
ilesde a origem, como um produto social da necessidade e.da
■u,.io humana sobre a natureza, em relação aos outros seres
liiimanos e dentro de determinadas condições de produção,
Goldmann reconhece e recupera dialeticamente o mérito
d.i (enomenologia ao lembrar a importância dos significados
.iliil)uídos pelos atores sociais a seus atos^e ans açpntecimen-
i|ue consideram relevantes, isto é,(^rnõtivaçõe^ aos ob-
ji iivos perseguidos e aos fins vividos enrcoirraTiMade. Mas,
t iiihora a valorize, Goldmann distingue a fenomenolqgia em
u fi(,.u) ao marxismo, criticando a sua postura apenas descri-
•h'-' '■ compreensiva dos fenômenos. Para ele, as Giências So-
•l.iis lêin de abranger, ao mesmo tempo, a compreensão dos
iiles sobre os fatos e as coisas e os fatores sociais inevitá-
vi l‘. (|iie geram e são gerados nessa compreensão, indepen­
dentemente das intenções dos atores sociais e das significa­
ções que eles lhes atribuam. Noutras palavras, a análise sócio-
histórica deve dar conta da coerência e da força criadora dos
indivíduos e da relação entre as consciências individuais e a
realidade objetiva.
(2) A segunda tese da dialética rnarxista diz respeito ao
princípio d á [totalidade da existência humana^, em conseqüên-
cia, à ligação inquestionável entre história dos fatos econômi­
cos, sociais e das idéias. O princípio da totalidade pode ser
evocado para análises macrossociais, como instrumento in-
terpretativo dos contextos e^ecífícõs, para identificação dos
padrões de invariância das transformações concomitantes, para
compreensão das diferenças numa unidade de estudo pecu­
liar. Portanto, no processo de pesquisa de cunho dialético,
busca-se reter a explicação do particular no geral e vice-versa.
Joja (1965) chama atenção, repetindo Lênin (1965), para o
fato de que o particular não existe senão quando se vincula
ao geral e o geral só existe no particular e por meio dele. Por­
tanto, o princípio metodológico da totalidade conduz a que,
na investigação e na análise dos fatos, se deva:

^ Apreender os fenômenos em sua auto-relação e hete-


ro-relação, em suas relações com a multiplicidade de seus
próprios ângulos e de seus aspectos intercondicionados,
V
em seu movimento e desenvolvimento, em sua multipli­
cidade e condicionamentos recíprocos por outros fenô­
menos ou grupos de fenômenos (Joja, 1964, p. 53).

Isso significa: (1) compreender as semelhanças e as diferen­


ças numa unidade ou totalidade parcial dos fatos, fenômenos
e processos; (2) entender as conexões orgânicas, isto é, os mo­
dos de relacionamento entre as várias instâncias da realidade
e o processo de constituição da totalidade parcial; (3) desven­
dar, na totalidade parcial em análise, as determinações especí­
ficas e gerais e as condições e efeitos de sua manifestação.
A perspectiva totãlizãdorã tal como pensada pelo marxis­
mo é heurística e exige a compreensão de relações reais: (a) ao
mesmo tempo que se observa a realidade objetiva como um
todo coerente; (b) compreendem-se e analisam-se as partes
do todo, formando correlações concretas de conjuntos e uni­
dades que contêm determinações e condicionamentos gerais,
afirmando-se a complexidade e as diferenciações presentes em
todos os fenômenos, fatos e processos. Essa postura meto­
dológica é assim referida por Marx e Engels:

É preciso que, em cada caso particular, a observação


empírica coloque necessariamente em relevo — empirica-
mente e sem qualquer especulação ou mistificação — a
conexão entre estmtura social, política e produção (1984,
p. 35).

O princípio da totalidade não é sinônimo de fechamento,


de certezas absolutas e de verdades estabelecidas. Para a dia-
í?lica, nãcThá ponto de pãiFudirdêfrnitivo a priori. Goldmann,
ciiando Pascal, lembra que "a última coisa que se encontra ao
lazer uma obra é a compreensão do que se deve colocar em pri­
meiro lugar, pois nunca se pode chegar a uma totalidade que
luo seja, ela mesma, elemento ou parte" (1967, p. 11). Essa é
.1 proposta da abordagem dialética, cuja fundamentação é o
pensamento vivo e o caráter inacabado tanto da história como
(l.i ciência, levando a que o conhecimento da realidade "seja
nina perpétua oscilação entre o todo e as partes que devem se
<s( larecer mutuamente" (Goldmann, 1967, p. 4).
( 3 ) 0 terceiro princípio da dialética é o daifTím^ dos contrá-
M(i.s,)no interior das totalidades dinâmicas e vivas. Esse prin-
I ipio contrapõe o método dialético a qualquer visão mani-
qiieista ou positivista da história e da sociedade. Para defini-lo,
<.nidmann recorre mais uma vez ao Pensée 73." de Pascal, já
I liado em epígrafe no início deste livro:
Sendo então todas as coisas causadas e causadoras,
ajudadas e ajudantes, mediata e imediatamente, e todas
se relacionando por um vínculo natural e sensível que liga
as mais afastadas e as diferentes, creio ser tão impossível
conhecer as partes sem conhecer o todo, como conhecer
o todo sem conhecer as partes (1967, p. 4).

Ora, a união dos contrários está presente nas totalidades


e partes delas em vários movimentos de entrelaçamento e de
conflitos:
(a) entre os fenômenos e sua essênciUi entre a.s leis e o fenôme­
no, movimento sobre o qual vale evidenciar o pensamento de
Lukács: "Em relação ao mundo das leis, o mundo dos fenô­
menos representa o todo, a totalidade, porque contém a lei e
além disso, a própria forma que a move" (1967, p. 232) e de
Kosik: "O fenômeno indica a essência e a esconde; e sem a
compreensão do fenômeno em suas manifestações, a essên­
cia seria inatingível" (1969, p. 12).
(b) entre o singular e o universal, entre o particular e o geral.
dinâmica tralTalhada especialmente pela filosofia de Lênin,
segundo o qual "o particular e o singular não existem a não
ser por sua participação no universal" (1965, p. 215), acres­
centando que o geral e o universal só se realizam nas totalida­
des parciais.\Ò concreto aparece como um ponto de chegada
e como um ponto de partida, mediado por teorias e métodos
que conduzem a sua compreensão, tornando-se "concreto pen- y
^sado" em Marx (1973, p. 209)]TPortanto, é nas determinações
pãffiõnãres^íienjTiTeíõdõ vai buscar o nexo explicativo das
totalidades concretas, de tal forma que o real, como um dado
imediato, reaparece mediatizado pela teoria.
(c) entre a imaginação e a razão. As concepções teóricas da
dialética marxista superam duas idéias opostas, mostrando o
seu imbricamento na constmção do conhecimento: a da su­
premacia da razão própria do positivismo e a da supremacia
das emoções e do senso comum, advinda da fenomenologia.

1
Em seus textos filosóficos Lênin comenta que, ao refletir a
realidade, o conhecimento oferece uma imagem mais grossei­
ra que o real, tanto no plano do pensamento como do senti­
mento. Por isso, "seria ridículo negar o papel da imaginação
mesmo na ciência mais rigorosa" (1965, p. 218).
(d) entre a base material e a consciência, considerando-se que
existe uma correlação dos modos de produção, das estmturas
de classe e dàs maneiras de pensar. Embora o pensamento
marxista defenda a tese de que as bases econômicas sejam de­
terminantes nas transformações sociais, também faz parte de
sua melhor tradição a idéia da influência mútua entre as ins­
tâncias que conformam a realidade. Do ponto de vista da pes­
quisa, essa concepção dialética das relações entre idéias e fa­
tos socioeconômicos traz algumas conseqüências práticas,
sobre as quais existem propostas específicas de Goldmann.
Segundo esse autor, basta estudar seriamente a realidade hu­
mana para sempre se encontrar o pensamento, caso se tenha
partido de seu aspecto material; e para se encontrar os fatos
sociais econômicos, caso se tenha começado pela história das
itléias ou pela análise das representações:

^Para o pen^ado7 dialético^ as doutrinas fazem parte


integrante do fato social estudado e só podem ser separa-
das por uma absUacão provisória: seu estudo é indispen­
sável para a análise do problema. Da mesma forma, a com-
preensão da realidade social e histórica constitui um dos
elementos mais importantes quando se visa a compreen-
tler a vida espiritual de uma época (1980, p. 51).

Solrre a articulação entre as instâncias, Lojkine (1981) lem-


l>u i|iie não se trata de dois ou três mundos divididos e sim
df UMI idades entrelaçadas que se conformam na produção.
Ml) (oiisumo, na cultura e na política estatal, esta última, na
u giil.ição dos fenômenos sociais. Por isso esse autor ressalta
i|iie nos estudos sobre determinações devem ser contempla­
dos OS vínculos entre política estatal e socialização con trad i­
tória das forças produtivas e das relações de produção:

Considerar a urbanização como domínio do consu­


mo, do não trabalho, opor reprodução da força de traba­
lho a trabalho vivo é retomar um dos temas da ideologia
burguesa segundo a qual só é atividade produtiva a ativi­
dade de produção de mais-valia (Lojkine, 1981, p. 122).

Noutras palavras, na realidade pulsante da vida social, a


aglomeração da população, as diferenciações dos bairros, a lo­
calização dos meios de consumo coletivo (equipamentos de
saúde, de educação, de transporte, de cultura, de lazer, etc.)
têm leis semelhantes às que regem a acumulação de capital. A
esfera de produção, consumo e troca estão em permanente
interação e todos são espaços históricos de investigação.
Como conseqüência, a configuração histórica do espaço
(urbano ou rural) que congrega a produção e as condições
gerais de produção é um locus demonstrativo e efetivo da si­
tuação das classes e seus segmentos. Nele se cristalizam os re­
sultantes das exigências do trabalho vivo e as restrições a esse
desenvolvimento, que a lógica da acumulação impõe.
Por sua vez, desde o advento da modernidade, o Estado
sempre tem de ser incorporado nas análises das questões so­
ciais, pois sua existência e dinâmica refletem as contradições
de classes, os conflitos de interesse e os resultados da segrega­
ção social. O Estado é uma forma ampliada de socialização
das condições”gerais de produ^õTuma w z ju e realiza; (a) a
reguTá^o sociál que atenua os efeito das desigualdades, da
exclusão e da mutilação capitalista em relação às classes traba­
lhadoras; (b) a seleção, a dissociação e a segregação dos recur­
sos públicos destinados aos meios de consumo coletivo para
a reprodução da força de trabalho; (c) e os anseios prove­
nientes da ação humana organizada e do papel do sujeito
histórico na constmção social. Este último ponto diz respeito
i

i
à constituição da sociedade civil como contraponto aos apara­
tos do Estado, constituindo uma força social com capacidade
de intervir no jogo de interesses que, tradicional mente aliam
os governos e os políticos. Marx, cujo pensamento exposto a
seguir merece realce, desenvolve pouco esse tema que vai ser
tratado em profundidade por Gramsci (1981).

Não só as condições objetivas se modificam no ato da


reprodução, mas também os reprodutores mudam, pois
trazem à luz novas qualidades que neles existiam, envol-
vem-se com a produção, transformam-se, desenvolvem
novos poderes e idéias, novos modos de intercâmbio,
novas necessidades e novas linguagens (Marx, 1973a, p.
494).

entre teoria e prátic^ existe uma integração entre esses


tioistèrmos. No pensamento marxista, a categoria básica de
análise da sociedade é o modo de produção historicamente
determinado. A categoria mediadora das relações roçigjs_é_ü
inilíalhc^ a atividade prática. O trabalho constitui um aspecto
p.iiticular da ordem cultural, mas tem valor de determinação
dessa ordem: "é por meio do trabalho que o reino da cultura
se sobrepõe ao reino da natureza", lembra Marx (1984, p. 15).
l’or isso, a teoria marxista é, essencialmente, a teoria da ação
liiimana que, ao mesmo tempo, faz a história e é determina­
da por ela. Ela se dedica a entender as transformações do su-
leiio da a ç ^ , isto é, as transformações da sociedade humana.
I '() ponto de vista do processo de conhecimento, a atividade
Immana é seu critério decisivo, lembra Lukács, um dos mais
Imporlantes intérpretes de Marx:

O conhecimento que está em condições de apreender


ilialeticamente as astúcias da evolução só é válido e eficaz
quando suas aquisições forem expedientes para a ação prá-
iiia cujas experiências virão, por sua vez, enriquecer o co-
• nhecimento e lhe fornecer uma força sempre nova (1967,
p. 237).

É na práxis que o marxismo reconhece a possibilidade^de


emancipação subjetiva e objetiva do ser humano e a destmi-
ção da opressão enquanto estmtura e transforma^o~Hã~cõns-
ciênd ^ O u seja, as transformações das idéias sobre a realida
de e a transformação da realidade, no pensamento dialético,
caminham juntas.
(f) entre o objetivo e o subjetivo. A abordagem dialética consi­
dera(partes da mesma totalidadé)o(objeto e o siãjiít^. Autores
como Lukács criticam a tenomenologia que coloca o subjetivo
quase como um absoluto, na constmção da realidade. Comen­
ta que essa teoria filosófica mitifica o mundo das sensações
como se ele fosse objetivo e pudesse proclamar a existência
independente da consciência. Critica também, e em conse-
qüência, o método fenomenológiço que pretende partir dos
dados imêdiitõs~da experiência vivida sem analisar s u ^ e s ^
tura e condicionamentos (1967). Goldmann estabelece vários
questionamentos sobre essa separação teórica dizendo que:

O conhecimento em sociologia se encontra no duplo


plano do sujeito que conhece e do objeto estudado pois
até os comportamentos exteriores são comportamentos
de seres conscientes que julgam e escolhem, com maior
ou menor liberdade, sua maneira de agir (1980, p. 98).

Tanto Lukács como Goldmann não compartilham com o


racionalismo à moda do século XVIII e XIX e vigente ainda
na atualidade, para quem a razão é a única instância de co­
nhecimento adequado e em que sensações, sentimentos, ex­
periência vivida, idéia e imaginação seriam elementos desti­
nados a papéis subordinados ou mesmo enganadores, na
hierarquia do material específico para estudos das ciências
sociais. As concepções teóricas desses autores (Lukács, 1967;


Goldmann, 1980) não admitem os exageros da supremacia
da razão, assim como dos subjetivismos, pois atuam com a
mútua relação de interconexões entre fatores objetivos e sub­
jetivos e entre instância material e espiritual em sua unidade
dialética. Lukács lembra que os conhecimentos produzidos
são apenas aproximações da dinâmica do mundo social e, por
isso mesmo, são sempre relativos. Na medida em que repre­
sentam úma aproximação efetiva da realidade objetiva que
existe independentemente da consciência, porém, são sem­
pre absolutos:

O caráter ao mesmo tempo absoluto e relativo da cons­


ciência forma unidade indivisível. Na medida em que as
ciências sociais escamoteiam a dialética do sentido abso­
luto e relativo do conhecimento, amputando-o de apro­
ximação, suprime-se a margem de liberdade filosófica da
atividade social (1967, p. 235).

Essa mesma percepção complexa da realidade, é refletida


por Lênin quando sugere que: "O que dificulta a compreen­
são é o pensamento porque ele separa e mantém em distinção
os momentos de um objeto interligado na realidade" (1965
p. 215).
(g) entre indução e dedução. Na lógica dialética indução e
iledução são obrigatoriamente complementares. Não se pode
( onliecer uma coisa, um fenômeno ou um processo a não ser
d('( ornpondo-os, para a seguir recompô-los, reconstruí-los e
if agrupar suas partes.^^Anállse e síntese são inseparável^mas
paia se realizar uma síntese com êxito é preciso analisar. Por-
i.iiilo, "sempre que a indução parte do essencial ela se con-
(iiiule com a dedução, pois a análise dedutiva elimina as cir-
Hiiistâncias e apresenta o fenômeno em sua simplicidade e
. ssnicialidade conceituai" lembra Joja (1965, p. 166). Esse
aiilor reflete sobre a impropriedade dos termos indutivo, de-
diiilvo, quando se fala da lógica dialética: "Na ordem do co-
nhec-imento, apreendemos o essencial por meio do geral por
ser este mais acessível e manejável. Mas o geral só se realiza no
particular" (1964, p. 167). Engels refere-se ao absurdo que é
opor indução a dedução, como se indução não fosse raciocí­
nio e, portanto, igualmente dedução:

Indução e dedução vão necessariamente em par como


síntese e análise. Em lugar de se destacar uma delas, tra-
tando-a como principal, é preciso saber utilizá-las onde
couberem e isso só será possível quando se tenha em vis­
ta que elas fazem um par e se completam reciprocamente
(1952, p. 230).

O uso do método dialético não é simples, o que pode ser


comprovado pelo fato de a maioria dos investigadores que
dizem usá-lo como parâmetro, fazerem análises simplificadas
e reducionistas, freqüentemente em contundente retorno ao
positivismo. É o que Sartre, em Questão de Método (1980), cri­
tica de forma veemente, sobretudo em seus debates com Al-
thusser (1963; 1967) em seus clássicos escritos:

O marxismo aborda o processo histórico com esque­


mas universalizantes e totalizadores. Mas em nenhum caso,
nos trabalhos de Marx, esta perspectiva pretende impedir
ou tornar inútil a apreciação do processo como totalidade
singular. Marx mostra os fatos no pormenor e no conjun­
to. Se ele subordina fatos anedóticos à totalidade, é por­
que, através deles, pretende descobri-la. Assim o marxis­
mo vivo é heurístico: com relação à pesquisa concreta, seus
princípios e seu saber anteriores aparecem como regula­
dores (1980, p. 27).

Sartre adverte a seus leitores contra as doutrinas dogmáti­


cas e o pensamento especulativo. No mesmo sentido que
Thiollent (1982) comenta que muitos marxistas, na sua ativi-

J
dade intelectual, transformaram o processo de conhecimento
em mera procura de fatos e situações empíricas capazes de
provar as verdades contidas nos esquemas abstratos de deter­
minações gerais. Portanto, a aplicação do método dialético
não depende apenas de conhecimento técnico, mas de uma
postura intelectual e de uma visão social da realidade.

Aplicações do marxismo ao campo da saúde

Quando se abordam as questões de saúde e da doença,


assim como da medicina e das instituições médicas, do ponto
de vista marxista, as análises precisam se fundamentar histori­
camente. O campo da medicina e da saúde coletiva constituem-
se de instâncias de poder econômico, político e ideológico. Na
sociedade contemporânea, altamente tecnificada, a ciência e a
tecnologia desenvolvidas na área se transformaram em moto­
res potentes de desenvolvimento e espaços de disputas de
poder e de interesses econômicos. Saúde e Doença, portanto,
precisam ser tratadas como processos fundamentados na base
material de sua produção, além de se levar em conta as carac­
terísticas biológicas e culturais em que se manifestam.
Como nas análises de todos os processos sociais, no trato
d.is questões de saúde e doença e das instituições do campo,
as abordagens marxistas partem de várias leituras e tradições.
Nos estudos até os anos 50 e 60 do século XX, Garcia (1983)
as divide entre as que enfatizam o desenvolvimento das for-
t,as produtivas e as que acentuam a dinâmica histórica das
ii lações de produção.
No primeiro caso, estão os trabalhos de Stern (1927), Si-
gfiist (1960), por exemplo. Esses autores, ainda que pionei-
los americanos na leitura da saúde sob o enfoque marxista,
•■m t|iie pese sua imensa colaboração, reconhecida em estudo
l"ti Nunes (1999), não conseguiram romper as barreiras do
posiiivismo. Seus escritos veiculam uma visão desenvolvimen-
liMa da tecnologia própria da medicina oficial e uma crença
na {KDSsibilidade de d o m ín io , pelos cientistas do setor, das
d oenças e da m orte. A crítica que se p od e fazer de suas análi­
ses reside na visão idealista e desenvolvim entista da m edici­
na, sem levar em con ta as relações de desigualdades sociais,
de superexploração, da depredação da força de trabalho e da
p ou ca eficácia dos atos m édicos em relação às condições ge­
rais da p rod u ção capitalista. Suas obras ressaltam tam b ém um a
legitim ação radical da m edicina em detrim ento das possibili­
dades m ágico-religiosas ou tradicionais da população.
Dentre os autores do mesmo período que se centraram
nas relações de produção como o elemento dinâmico e es­
sencial da realidade social em relação ao tema da saúde, desta-
ca-se Pollack (1983), na França, com sua obra A Medicina do
Capital Este livro ressalta o fato de a questão da saúde e da
doença das diferentes classes sociais no capitalismo estar mar­
cada pela lógica do lucro, da produção e da reprodução do
sistema. Seu marco de análise segue as teorias reprodutivistas
e estruturalistas de análise que tiveram grande destaque na
França dos anos 70 do século XX, para explicar, sobretudo, as
políticas sociais de educação e saúde (Bourdieu, 1970). Seu
trabalho reflete ainda o ambiente de contestação da intelec­
tualidade francesa que se expressou do Movimento Social de
maio de 1968. Embora elabore uma crítica radical ao econo-
micismo na saúde, Polack cai nas tramas do estruturalismo.
Minimiza ou omite as contradições que permitem às classes
trabalhadoras encontrar respostas históricas e ser protagonis­
ta, mesmo dentro das situações de declarada dominação.
Na América Latina, a abordagem marxista da saúde se de­
senvolveu ao mesmo tempo que eclodiu um amplo movi­
mento social pela universalização do direito à saúde a partir
da década de 1960, numa contestação ao sentido de progres­
so que a industrialização dependente acarretou para os países
periféricos. A modernização capitalista traduziu-se na inter­
nacionalização acelerada do capital, na industrialização e na
urbanização também aceleradas, em fortes migrações do cam­
po para as cidades e numa dinâmica de ampliação das tradi­
cionais desigualdades sociais.
Sem negar o papel, o avanço e as contribuições da biome-
dicina, iniciou-se um movimento intelectual no interior do
próprio setor saúde e conjugado com movimentos sociais e
políticos, buscando explicações históricas e sociológicas mais
abrangentes e mais adequadas para a situação de morbimor-
talidade das populações brasileiras. Nesse esforço, não se pode
separar o labor teórico e a militância política dos sanitaristas
que se desenvolveram pari passu, tanto no setor saúde como
no movimento social, visando a uma nova leitura e a uma
nova postura dos profissionais, técnicos e intelectuais da área.
Nunes (1985) refere que a partir da década de 70 do sécu­
lo XX crescem na América Latina as análises do materialismo
histórico e dialético para explicar o fenômeno da saúde e da
doença nas situações locais. Em geral, os estudos dessa déca­
da tiveram como premissa a posição de classe como elemento
fundamental na explicação da distribuição da saúde e da doen­
ça e dos tipos de patologias prevalentes.
Muitas análises foram produzidas, numa visão crítica so-
bre os equívocos positivistas e desenvolvimentistas, mostran-
tlo: (a) que o avanço científico e tecnológico da medicina não
correspondeu às melhorias de saúde das sociedades da re­
gião; (b) que a distribuição dos serviços perpetuavam a inver­
são das necessidades ante o poder econômico; (c) que não
bastava ter uma leitura fenomenológica das situações de saú­
de, uma vez que a prática e o saber médicos fazem parte da
ilinâmica das formações socioeconômicas e é no interior de­
las que a eclosão de enfermidades e a acessibilidade aos servi­
ços precisam ser explicadas.
Uma revisão dos estudos sob o enfoque do materialismo
liislórico faz parte da pesquisa de Nunes (1985), que descre­
ve sua abrangência; questões de saúde e sociedade, políticas
publicas, planejamento e administração, concepções de saú-
ile e doença, análises institucionais, análise de processos de
trabalho e questões metodológicas. Dentre os autores são re­
ferências obrigatórias: Arouca (1975); Donnangelo (1976);
Possas (1981); Tambellini (1975); Laurell (1978; 1983; 1986;
1987); Breilh & Granda (1986); Garcia (1981; 1983); Gordeiro
(1980); Oliveira & Teixeira (1985); Nunes (1976; 1983; 1985;
1999); Gonçalves (1979).
Nunes (1985) assinala que é também na década de 1970,
e sob a égide da reflexão marxista, que o campo de estudos
sobre a saúde se abre para as ciências políticas e para outras
áreas de ciências sociais, como educação, nutrição, serviço so­
cial, junto com a sociologia e a antropologia — desta vez com
outras preocupações que a visão positivista não abrangia. Essa
abertura se deveu a vários fatores: (a) análises da deterioração
das condições de vida de contingentes imensos das popula­
ções aglomeradas nas cidades, passando a exigir respostas mais
adequadas que as dadas pela definição unicausal-biológica
das doenças; (b) crescente consciência da própria sociedade
(sobretudo dos estratos urbanos da classe trabalhadora) de
que a acessibilidade à saúde é um bem inegociável; (c) e cres­
cimento de movimentos sociais, definindo e reivindicando
que a provisão de saúde é dever do Estado e direito dos ci­
dadãos.
No Brasil e na América Latina, o objeto tradicional de teo­
rias, concepções e práticas, denominado Saúde Pública iniciou
uma trajetória de transformações históric-as tornando-se tema
de questionamentos, análises e propostas de movimentos so­
ciais, políticos, sindicais e comunitários. Uma das mudanças
efetivadas foi a troca do termo público por coletivo, para desig­
nar a área, visando a chamar a sociedade para a transformação
de uma área que era praticamente dominada pela corporação
médica e mais excluía que incluía a população. Tomada como
campo estratégico para formulação teórica, política e para a
atuação prática, a Saúde Coletiva incorporou definitivamente
as Giências Sociais no estudo dos fenômenos da saúde e da
doença e tornou-se também um domínio corporativo mate­
rializado na criação da Abrasco (Associação Brasileira de Saú­
de Coletiva) em 1979.
Teixeira especifica o que considera "mudança qualitativa"
do enfoque da Saúde Coletiva: A possibilidade de constitui­
ção de um corpo específico de conhecimento sobre a saúde
coletiva encontra-se dado precisamente pela adoção do mé­
todo histórico-estmtural" (1985, p. 90), vinculando os novos
mmos do pensamento da saúde a uma linha marxista especí­
fica. Também Cordeiro expressa assim a nova visão:

A doença em sua expressão normativa da vida, como


fenômeno individual e em sua expressão coletiva, epide-
miológica, onde adquire significado no conjunto das re­
presentações sociais e nas reivindicações políticas, está
estruturada em uma totalidade social. Como forma adap-
tativa da vida, resultante das relações dos grupos sociais
entre si e com a natureza, mediadas pelo processo de tra­
balho e doença tem uma historicidade das relações sociais
econômicas, políticas e ideológicas — que se realizam
nas sociedades concretas (1984, p. 91).

I’elo fato de a área de Saúde ser um campo que necessa-


ii.imente junta a teoria e a prática de forma imediata, a posi-
I..IO marxista em seu viés histórico-estmtural, em relação às
niiii.is correntes de pensamento (positivismo e fenomenolo-
gi.i) pa.ssou a tomar, no Brasil, nos anos 1970 e 1980, o caráter
ilf posição ideológica e política, repercutindo nos movimen-
los soiiais e sendo fertilizada por eles e, ao mesmo tempo,
inlliii nciando questões relativas ao direito e outros temas
•m.•l^•,(•lUes. O campo emergente da Saúde Coletiva manifestou
(I peso teórico, político e ideológico na VIII Conferência
N.it loii.il de Saúde em 1986 e, posteriormente, no capítulo dos
I 'ii.Hos Sociais na Constituição Cidadã de 1988 (Escorei, 1998).
I >o ponto de vista teórico e metodológico, a Saúde Coleti-

Cti t o m o objeto de estudo ainda está em constmção e, nos


Últimos trinta anos, vem expressando extremo vigor. Vai lon­
ge a justeza da expressão "caixa-preta" utilizada por Laurell
(1983), quando se referia à dificuldade do pensamento de
abranger e apreender as relações e correlações do tema. No
entanto muito investimento precisa ser feito, porque junto
com a efervescência das investigações e dos temas da área, vem
um processo de fragmentação de abordagens e de fóruns de
estabelecimento de alguns consensos teórico-metodológicos.
Como objeto de intervenção, o tema Saúde Coletiva nas­
ceu no contexto das correntes de pensamento marxistas e es-
tmturalistas, fazendo parte de um movimento social muito
mais amplo. No capítulo em que desenvolvo as questões de
combinação de métodos, faço a crítica da apropriação do
marxismo mecanicista, influenciado pelo pensamento de Al-
thusser (1965; 1967), que dominou, sobretudo, a corrente
chamada "Epidemiologia Social", no Brasil e na América Lati­
na. Hoje, novas abordagens teóricas e metodológicas e novas
disciplinas vêm contribuindo para dar maior abrangência e
aprofundamento à conceituação de saúde e de doença e para
a adequação de um sistema de saúde que atenda às necessi­
dades e aspirações da população.
Como preocupação metodológica, o subsistema que deu
maior ênfase à abordagem histórico-estrutural é o de Saúde
do Trabalhador. Seu eixo básico é o conceito Processo de Traba­
lho, visto a partir das unidades de produção e como determi­
nante para o desgaste, os riscos e o quadro de morbidade dos
trabalhadores. Os estudos vinculados à práxis dos trabalha­
dores se multiplicaram, e os referenciais estão assinalados na
revisão de Minayo-Gomez & Thedim (1995) e em outras aná­
lises bibliográficas como a de Mendes (2003). Talvez por ter
sido o subsistema que mais intensamente aplicou os concei­
tos marxistas stricto sensu, é também o que mais ressentiu o
declínio do marxismo real e as mudanças no mundo do tra­
balho, do emprego e da ocupação. O paradigma ancorado
no conceito de processo de trabalho (principalmente de cará-

J
ter industrial) vem demandando mudanças conceituais e de
abrangência de objetos para dar conta dos problemas trazi­
dos pela globalização, pelas novas formas de produção e por
uma série de outros fatores. Dentre eles, é fundamental des­
tacar a predominância contemporânea dos trabalhadores do
setor de serviços e seus problemas específicos, em detrimen­
to do setor industrial a partir do qual foi construído o pa­
radigma marxista de saúde e trabalho (Minayo-Gomez & La-
caz, 2005).
As contribuições das correntes marxistas mais complexas,
que incorporam o sujeito, avançaram muito nos anos atuais,
deixando para trás os referenciais estmturalistas e mecanicis-
(as (Minayo, 1998). Os primeiros serviram muito para infor­
mar as análises políticas e os segundos, foram suplantados
jrela obsolescência das análises que produzia, fúndamenta-
das, preferencialmente, nos pressupostos althusserianos. Em
Altluisser o sujeito era considerado apenas como "efeito ilu­
sório das estmturas ideológicas" (Anderson, 1984, p. 44) como
pode ser constatado no trecho de uma de suas obras:

A estrutura das relações de produção determina os lu­


gares e as funções que são assumidas pelos agentes de
produção que não são mais do que ocupantes destas fun­
ções. Os verdadeiros "sujeitos" não são seus ocupantes e
limcionários. Contra todas as evidências do "dado" da
antropologia ingênua, não são os "indivíduos concretos",
os "homens reais" mas a definição e a distribuição destes
lugares e destas funções. Os verdadeiros "sujeitos" são,
pois, estes definidores e estes distribuidores: as relações
de produção (Althusser, 1967, p. 157).

A introdução do referencial gramsciano para análises de


'i.iinle ocorrida nos anos 80 do século XX fez o pensamento
iiiaixista na área evoluir e ampliar seu quadro de referência,
iMltirindo em estudos de política e de educação em saúde. O
quadro teórico de Gramsci, ao contrário do althusseriano,
valoriza o campo ideológico não apenas como forma de do­
minação, mas também de conhecimento, identificando o di­
namismo, a concreção e a historicidade das visões diferencia­
das de mundo (Gramsci, 1981), constituindo um "ponto de
Arquimedes" (Anderson, 1984, p. 123) e superando-se as di-
cotomias entre estruturas objetivas e relações intersubjetivas.
Em resumo, tem havido várias tentativas, mas ainda são
pequenos os avanços do setor saúde na construção de um
referencial que supere as dicotomias entre as estmturas obje­
tivas e as relações intersubjetivas. Isso exige uma visão com­
plexa da realidade e um real aprofundamento teórico. No
entanto, a pouca produção existente evidencia múltiplas pos­
sibilidades que extrapolam os aspectos meramente técnicos e
econômicos e se articulam sobretudo em torno de um entrela­
çamento de perspectivas, sobretudo de interdisciplinaridade.
Para a finalidade deste livro que trata da questão qualita­
tiva da vida social, ressalto que a significação da ação do sujei­
to histórico em Marx leva em conta o fato de que os seres
humanos não são árbitros totalmente livres de seus atos. Pelo
contrário, a leitura de seu pensamento deixa claro que o pro­
duto da atividade prévia (os contextos sociais, mesmo de va­
lores, crenças e atitudes) representa limitações sobre o leque
de opções do presente. No entanto, ainda quando a realida­
de é determinada por condições e estruturas anteriores, os
seres humanos são capazes de deixar nelas a sua marca trans­
formadora. As considerações anteriores se conjugam com: (a)
a importância da cultura como mediadora entre a objetivida­
de das relações dadas e o sujeito histórico transformador; [b)
o caráter de amplitude das visões dominantes e, ao mesmo
tempo, a recíproca aculturação que se processa inter e intra-
classes, inter e intragmpos, segmento e categorias no que con­
cerne aos fenômenos sociais, incluindo-se a saúde e a doen­
ça; (c) a relação intra e interclasses permeada por estruturas e
mecanismos econômicos e políticos formais, mas também
pelas matrizes essenciais de conformação do modo de vida,
como a família, a vizinhança, os espaços de lazer.
Nas análises de saúde, é preciso dar atenção à cultura como
produtora de categorias de pensar, sentir, agir e expressar de
determinado gmpo, classe ou segmento. Nela se articulam con­
cessões, conflitos, subordinação e resistências. Ela é o espaço
de expressão da subjetividade e, também, um lugar objetivo
com a espessura do cotidiano por onde passam e ganham cor
processos políticos e econômicos, sistemas simbólicos e o ima­
ginário social. Em relação à saúde, a cultura, vista a partir dos
sujeitos individuais ou coletivos, expressa a totalidade funda­
mental do ser humano que se resume no perene conúbio entre
corpo e mente, matéria e espírito, e que Marx tão bem define
etn seus escritos filosóficos:

A visão da totalidade parte do indivíduo real particu­


lar, porque a coletividade contra cuja separação de si, rea­
ge o indivíduo, é a verdadeira coletividade do homem, o
ser humano (1972, p. 75).

A posição diferenciada de classe, categoria ou segmento


I iiiilere ao sujeito uma forma peculiar de perceber e de reagir
ili.mie dos fenômenos que dizem respeito ã vida e ã sua mor-
if No entanto, o avanço no campo dos direitos sociais e indi­
viduais coloca concomitantemente outras categorias classifi-
I aioiias potentes como gênero, etnia e idade, que devem ser
It vadas em conta em qualquer pesquisa. Por isso uma boa
inalisf marxista dos fenômenos de saúde precisa enfatizar as
dllnnu iações e a complexidade das relações entre e intraclas-
K 1, a', diferenças e contradições entre suas práticas e concep-
1,1*11 *■ incluir outras variáveis que dizem respeito à experiên-
*ti vivida (Verret, 1972; Gramsci, 1981; Gadamer, 1999).
I >tjii.ulro teórico de aproximação da totalidade dos pro-
........ dl* saúde e doença, na abordagem marxista "qualitati-
V.» paiii' do fenômeno ideológico e do dinamismo das cons­
truções e das relações sociais, devendo sempre merecer con-
textualização e articulação entre pensamento e base material
(Thompson, 1978; Gramsci, 1981; 1972; Goldmann, 1980;
Sartre, 1978). Por conseguinte, minha posição neste livro se
alinha à desses atores e se contrapõe ao estmturalismo de Al-
thusser que corta o nó da relação entre sujeito e estrutura.

Pensamento sistêmico

Na revisão empreendida neste livro, seria uma imperdoá­


vel omissão deixar de tratar o conjunto de propostas filosó­
ficas teóricas e metodológicas conhecidas pelos termos pen­
samento sistêmico. Há quem diga até que esse caminho do
pensamento é a novidade do século XXI, trazida a partir dos
70 do século XX, sobretudo a partir da biologia, da cibernéti­
ca e da física e abrangendo discussões multidisciplinares e mul-
tiprofissionais (Atlan, 1979; 1984; 1991; Bertalanffi, 1968; Ma-
turana & Varela, 1979; Maturana, 1987; Morin, 1982; 1983;
Prigogine & Stengers, 1984; Wierner, 1948; e outros).
Não pretendo realizar uma reflexão aprofundada sobre o
assunto, ainda pouco desenvolvido no âmbito das Ciências
Sociais. Minha intenção é acenar, nesta nova versão de O De­
safio do Conhecimento, para caminhos de possibilidades que
se abrem a partir de um novo paradigma que, em seu seio,
sintetiza avanços teóricos e metodológicos de várias ciências e
novos rumos do pensamento social, tangido por profundas
mudanças no mundo chamado pós-industrial ou pós-mo-
derno (Harvey, 2001; Kunar, 1995). Todo o campo científico
vem, de fato, revendo muitos de seus conceitos e métodos e
o pensamento sistêmico apresenta formas alternativas de tra­
tar os objetos de investigação, a vida, o mundo, as práticas
sociais e sobretudo, as implicações do investigador com seu
objeto de pesquisa. A idéia do pensamento sistêmico tem-se
traduzido em várias expressões: teoria geral dos sistemas (Ber­
talanffi, 1968); pensamento complexo (Morin, 1990), para­
digma da ordem a partir da flutuação (Prigogine, 1991) e pa­
radigma da auto-organização a partir do mído (Atlan, 1984).
Teoria sistêmica — As primeiras elaborações do pensamento
sistêmico se devem ao biólogo Ludwig von Bertalanffy que,
em 1968, publicou um livro de grande repercussão titulado
Teoria Geral dos Sistemas. Nessa obra, Bertalanffy apontou a
necessidade de se criarem categorias teóricas rigorosas que pu­
dessem resf)onder a questões referentes ao amplo espectro
dos seres vivos que vão da biologia à sociologia. Esse autor
mostrou que a termodinâmica clássica que lida com o equilí­
brio, precisaria ser complementada por uma teoria que abar-
( asse também os sistemas abertos que se afastam do equi­
líbrio. Identificando a interação como ponto nevrálgico para
Iodos os campos científicos, definiu sistema como conceito
(entrai de sua teoria geral. Observou que há uma enorme or-
dc‘in hierárquica de entidades na organização dos seres vivos
e i|ue elas se superpõem em muitos níveis, indo dos sistemas
lisicos e químicos aos biológicos, sociológicos e políticos,
po.ssibilitando "uniformidades estruturais dos diferentes sis-
inn.is da realidade" (Bertalanffy, 1968, p. 124). Segundo o
.iiiior, esses sistemas são abertos e interconectados, instáveis
>■riii permanente dinamismo recursivo.
Ao propor uma nova teoria interpretativa da realidade,
lli ii.il.mffy não fala de disciplinas e sim de "totalidades cons­
umidas no interior da organização dos fenômenos" (1968, p.
I .*')), de tal forma que sua teoria geral dos sistemas se propõe a
1 1 1 lima ciência da totalidade ou dos todos organizados. Na
»ii.i visão, o esforço dos cientistas deveria encaminhar-se para
hii-iiai a unidade da ciência baseada na isomorfia de leis re-
liillv.i'. a diferentes áreas. Mas o autor esclarece que a compre-
•ii-..i(t dos sistemas vivos, complexos e unificados precisa ser
iili .iiiyida sem a redução dos fenômenos, sem a transferên-
ilii iiigciiiia de conceitos e sem buscar semelhanças superfi-
ilitln fiiiie abordagens, como muitas vezes ocorre na trans-
|ionli.ao de modelos biológicos para interpretação social, por
exemplo. Por isso, Bertallanfy não fala sobre redução das par­
tes ao todo e, sim, sobre interação entre todas as áreas do co­
nhecimento.
Segundo Bertalanffy, sistema é um todo integrado cujas
propriedades não podem ser reduzidas às propriedades das
partes. Portanto, o comportamento do todo é mais comple­
xo do que a soma do comportamento das partes, e os aconte­
cimentos implicam mais que decisões das partes individual­
mente. Igualmente, ao sistema não se aplicam operações
analíticas, no sentido de dissecação das partes. A concepção
de interdependência entre os elementos é complementada
pelas noções de causalidade circular, causalidade recursiva, ou
retroação, como características da abordagem sistêmica.
Na organização hierarquizada, a realidade como um todo
caracteriza-se pela superposição de níveis dos sistemas, cada
um deles constituindo-se como um todo e sendo irredutí­
vel aos níveis inferiores, o que os impede de serem tratados
analiticamente (por partes). Os membros individuais do sis­
tema são ao mesmo tempo todo e parte, funcionando no sen­
tido integrativo com o conjunto e afirmativo de sua autono­
mia. Nessa hierarquia, o social e o político constituem o ápice
da organização. E a concepção de interações sistêmicas, de sis­
temas interligados ou do mundo como sistema de sistemas
remete à idéia de ecossistema: cada um com sua totalidade (in­
divíduo, família, sociedade, cidade, nação) interagindo, numa
rede dinâmica de interdependências, interações e influências
mútuas.
Qual a idéia de mudança na teoria sistêmica? E por que é
preciso pensar em mudança no enfoque ecossistêmico? Nes­
sa abordagem, a idéia de mudança é fundamental, pois toda a
teoria ecossistêmica de saúde parte do princípio de que é pos­
sível e é necessário intervir para transformar e de que é possí­
vel escolher um rumo que leve à vida saudável e com qualida­
de, de forma solidária. Ora, na abordagem sistêmica a visão
de mudança se relaciona a crise e aponta para várias saídas.
Segundo Prigogine (1991; 1984), à medida que surge uma cri­
se, o sistema deixa seu curso natural e escolhe outras alterna­
tivas disponíveis. Nesse ponto de bifurcação provocado pela
crise, são produzidas mudanças quantitativas e qualitativas.
Mas o mmo dessas transformações é, em princípio, imprevisí­
vel, pois existem várias possibilidades de escolhas disponíveis
nos si.stemas complexos. Atlan (1992), um dos biólogos-filó-
sofos que tratam das teorias da complexidade, fala que as mu­
danças dos organismos vivos acontecem quando eles têm de
se adaptar aos "ruídos", ou seja, aos elementos inesperados
que atuam como fatores de distúrbio da homeostase usual
do sistema. Atlan prova que se esses "mídos" são usados de
forma positiva eles se tornam indispensáveis para o desenvol­
vimento do sistema, causando-lhe um crescimento de com­
plexidade e o desempenho de novas funções.
Três dimensões epistemológicas diferenciam as teorias tra­
dicionais do paradigma sistêmico: (1) a idéia de simplicidade
dos fenômenos é substituída pela noção de complexidade; (2)
.1 noção de estabilidade e de regularidade é contraposta à no-
ç.io de instabilidade do mundo dos seres vivos; (3) a crença na
objetividade dá lugar à noção de intersubjetividade na constitui­
rão da realidade e de sua compreensão.
(1) Complexidade significa entrelaçamento de causas. O tema
da complexidade tem ampla abrangência semântica: sistemas
tomplexos, organizações complexas, complexidade da socie­
dade, dentre outros. Um sistema complexo é formado por gran­
de número de unidades constitutivas e inter-relacionadas e uma
eimmie quantidade de interações. Seus comportamentos se-
gnem dois padrões: mantêm uma estrutura permanente e são
an mesmo tempo instáveis, desordenados, caóticos, emara-
nludos e de difícil previsão. Atlan (1992) adverte que as no-
i.iies de simplicidade e de complexidade não são inerentes
aii', (enomenos e, sim, às condições lógicas e empíricas em
i|iif sao observados. Esse autor lembra, por exemplo, que
ili pois de os cientistas terem separado muito bem o sistema
nervo50 do sistema digestivo, assustam-se ao encontrar neu-
rotransmissores no sistema digestivo e hormônios digestivos
no sistema nervoso.
Nas teorias da complexidade, os temas de estudo são en­
tendidos como objetos em contexto. Contextualizar é ver um
objeto existindo dentro do sistema e pôr foco nas suas inter­
ligações, conexões e redes de comunicação. Contextualizar é,
também, realizar operações lógicas contrárias à disjunção e à
redução e em favor da distinção de um objeto ou de fenôme­
no, realçando o que ele tem de específico e integrando-o no
todo do qual faz parte. Os autores que trabalham as teorias
sistêmicas que tratam dos seres vivos utilizam a expressão re­
lações causais recursivas, cuja imagem é a da espiral, para se re­
ferir às interações em que os efeitos e os produtos são neces­
sários ao próprio processo que os gera.
(2) O segundo pressuposto dos sistemas abertos é a insta­
bilidade. Esse princípio vem da constatação de que o mundo
sempre está em processo de "tornar-se", e de "devir", haven­
do, portanto, uma lógica na desordem: ela é um elemento
necessário à auto-organização, conforme se refere Atlan (1992)
à auto-organização através do mído (ruído como sinônimo
de crise), que pode levar os seres vivos a um nível mais eleva­
do de complexidade. Segundo esse princípio, o resultado fi­
nal de um fenômeno vai sempre depender de um interjogo
complexo entre leis determinísticas e a sucessão probabilísti-
ca das flutuações (crises).
A partir das descobertas da física, decorre hoje a revisão de
crenças na previsibilidade e no controle para se acentuar a
imprevisibilidade e a incontrolabilidade de muitos fenômenos.
Isso se opõe à idéia positivista de um mundo mecânico em
que as coisas funcionariam como relógios. Investigações so­
bre sistemas que funcionam longe do equilíbrio e sobre a fle­
cha do tempo são uma grande contribuição do Prêmio Nobel
de Física, Ilya Prigogine (1997). Suas pesquisas tornaram pos­
sível fundamentar uma superação da compartimentalização

íá
entre disciplinas e propiciar uma comunicação transdiscipli-
nar entre cientistas das mais diversas áreas.
(3) O terceiro pressuposto do pensamento sistêmico é o
da intersubjetividade na constmção da realidade e do saber, o
que se opõe à idéia da possibilidade de existir um conheci­
mento objetivo externo aos sujeitos. De tal ponto de vista,
sujeito e objeto só existem relacionalmente e nas interações
que estabelecem entre si. Ambos, em suas interações, se in­
fluenciam e promovem mudanças: no organismo (a estmtu-
ra) e no ambiente. Assim, é difícil determinar de fora o que
um sistema fará nas interações que mantém com o ambiente,
uma vez que, a cada momento, a estrutura de um organismo
incorpora as transformações conseqüentes de suas experiên­
cias, de suas interações e modifica suas possibilidades poten­
ciais, apresentando novas interações.
As premissas do pensamento sistêmico sugerem aos pro­
fissionais que atuam de forma transdisciplinar as seguintes
posturas metodológicas:
♦ Ampliação do foco: contextualizando o fenômeno em
estudo, entendendo-o em suas interações e retroalimentações
(as coisas são causadas e causadoras) e tratando-o como par­
te de um sistema interconectado com outros sistemas;
* Aposta nos processos de auto-organização: observan-
ilo o dinamismo das mudanças e as forças de resistências, os
estudiosos admitem que nem tudo é só positivo ou só nega­
tivo, que existem muitos caminhos e que é impossível con­
trolar a direção dos processos;
• Adoção do caminho da objetividade entre parênteses: o es­
tudioso se reconhece parte do sistema e entende que só há
sentido na co-constmção das soluções. Dentro desse tipo de
visão, do ponto de vista ético, não cabe pensar que a solução
p.ii a os problemas está na existência de códigos exteriores aos
sujeitos, a serem aplicados por autoridades competentes.
Do ponto de vista operacional, o pensamento sistêmico
11,10 está propondo técnicas. Na verdade, ele se configura como
uma visão epistemológica que permite o uso dos recursos
desenvolvidos dentro dos paradigmas da ciência tradicional.
Mas esse uso exige algo muito novo, o exercício de um olhar e
uma abordagem diferente: que ilumina aquele ponto cego da
visão unidimensional, fazendo-o enxergar as interações; sub­
verte a mente compartimentalizada, buscando fazer as dife­
renças e as oposições se comunicarem; e modifica a prática
antiga que só valoriza regularidades e normas. Ao contrário,
mostra as coisas que permanecem e ressalta "o que" muda e
"como" as coisas se transformam, auto-organizando-se.

Pensamento sistêmico na área da saúde

Na área da Saúde Coletiva, o pensamento sistêmico é ain­


da incipiente e vem sendo introduzido por alguns poucos
autores. Com certeza, existe um temor dos investigadores de
um retorno aos paradigmas biologicistas ou fisicalistas dos
fenômenos, certamente pelo desconhecimento de que o pen­
samento sistêmico não é sinônimo da teoria funcionalista que
sempre trabalhou com a metáfora do organismo biológico.
Ele traz, ao contrário, a possibilidade de ter um olhar mais
abrangente e complexo que atravessa as interconexões entre
o biológico, o social e o ambiental. Nessa área, mais que em
qualquer outra, manifestam-se a união e a simultaneidade
entre o caos e a ordem, o familiar e o estranho, o linear e as
não-linearidades e a inseparabilidade entre oposições, dua­
lidades, diferenças e diversidades, desafiando as maneiras for­
mais do pensar.
A proposta mais elaborada sobre o pensamento sistêmico
é o chamado enfoque ecossistêmico de saúde humana fruto, tam­
bém, de preocupações práticas. O casamento da idéia de ecos­
sistema <& saúde humana, compondo a proposta de enfoque
ecossistêmico da saúde humana é fruto de preocupações práti­
cas. Nasceu com a observação e a consciência ecológica de ame­
ricanos e canadenses em relação à área dos Grandes Lagos que

L
dividem Canadá e Estados Unidos e contêm 21% das reservas
de água doce do mundo. Pois bem, as margens desses Gran­
des Lagos foram invadidas por projetos agrícolas e industriais,
que floresceram acompanhando a época do acelerado pro­
gresso econômico americano do norte pós-Segunda Guerra
Mundial, quando ainda era hegemônica no mundo a idéia de
que o ecossistema seria capaz de assimilar todos os processos
de dominarão humana sobre a natureza.
A partir da ampliação e aprofundamento da consciência am­
biental da década de 1970, ofidalmente, estudos começaram
a ser realizados por uma comissão criada pelos governos dos
dois países, denominada International Joint Comission of Great
I,akes (1978), diagnosticando a intensa exploração econômi­
ca do espaço sócio-político-cultural-ambiental e o processo de
deterioração ecológica e de ameaça à saúde das populações que
aí habitavam. Esses estudos evidenciaram, com grande clare­
za, a insuficiência teórica unidisciplinar para a compreensão
tias dimensões dos problemas gerados pelo uso descontrola-
tlo da água e do solo e das propostas de solução, levando a
(|ue o gmpo passasse a integrar análises geradas individual­
mente e a chamar a sociedade civil para as discussões das so­
luções. Criaram-se, assim, estratégias transdisciplinares e par­
ticipativas de abordagem da problemática que afetava toda
essa privilegiada região e que hoje se denomina abordagem
l•( Ossistêmica. Seu desenvolvimento passa por conhecimentos
específicos e integração de atores e de abordagens; de discipli­
nas e de setores; de cientistas, de autoridades reguladoras, de
políticos e gestores; de todos eles com o público, em geral, e
( om a sociedade civil organizada.
O llnfocfue de Ecossistemas em Saúde Humana está funda-
iMfMiado na construção de nexos que vinculam estratégias de
gi stao integral do meio ambiente (ecossistemas saudáveis)
I o m uma abordagem da promoção da saúde humana dentro

ilr mna visão complexa. O objetivo desse enfoque é desen-


s olvn novos conhecimentos sobre a relação saúde-ambiente-
políticas-participação social-eqüidade de gênero, em realida­
des concretas, de forma que permita ações adequadas, apro­
priadas e saudáveis das pessoas que vivem aí. Nessa propos­
ta, ciência e mundo existencial se unem na construção da
qualidade de vida, fazendo lembrar os princípios da filosofia
da ação comunicativa (Habermas, 1987a), por meio de uma
melhor gestão do ecossistema e da responsabilidade coletiva
e individual sobre a saúde.
Todos os estudiosos que vêm atuando nos marcos da pro­
posta ecossistêmica para saúde humana mostram que o limi­
te do espaço e do universo será sempre arbitrário, uma vez
que ambos existem em relação aos sistemas que o circundam.
Ou seja, não há um ecossistema sobre o qual se possa aplicar
uma definição. Mas os atores que nele atuam, sejam investi­
gadores ou gestores, assumem a responsabilidade de defini-
lo de acordo com os objetivos de mudança e intervenção, sem­
pre levando em conta que o espaço específico está no interior
e em relação permanente com sistemas abertos e maiores, in-
tercomunicando-se (Forget <& Lebell, 2001). Portanto, a no­
ção de ecossistema é usada muito mais para designar uma uni­
dade analítica do que como uma entidade biológica.
A abordagem ecossistêmica parte de alguns pressupostos:
♦ de que existe uma interação dinâmica entre os diversos
componentes do ecossistema e o bem-estar da saúde humana;
♦ de que projetos interdisciplinares, que integram análises
de gênero e métodos participativos para compreensão da reali­
dade e para geração de ações de transformação, podem resultar
em investigações mais precisas e propiciar a promoção de me­
lhorias nos padrões de saúde humana e do meio ambiente.
♦ de que a articulação entre os componentes da saúde, da
questão social e do ambiente requer novas metodologias de
abordagem.
E tem alguns desafios metodológicos fundamentais:
♦ não dividir e sim integrar as questões de saúde coletiva
e individual dentro de um mesmo foco de observação;
♦ conseguir aprofundar conceitos que integrem a articu­
lação da questão ambiental, social e do coletivo com o indivi­
dual, nos estudos e práticas do setor saúde;
♦ mudar a visão linear de diferentes disciplinas para um
enfoque dinâmico de interação que leve os participantes a
uma atuação transdisciplinar;
♦ integrar dados e indicadores quantitativos e qualitativos;
♦ exercitar a transdisciplinaridade;
♦ integrar o conceito de gênero nos fundamentos do mé­
todo;
■* integrar a participação de todos os agentes sociais en­
volvidos nos problemas em análise, seja porque realizam, seja
porque sofrem com as intervenções ambientais e sociais que
repercutem na saúde e que, a partir da saúde, provocam efei­
tos recursivos.
♦ criar instmmentos práticos e participativos de exercício
de transdisciplinaridade, transetorialidade e transfatorialidade;
♦ promover, na investigação, a participação das pessoas
loinuns que vivem os problemas ambientais e de saúde no
•.fii cotidiano, como ação fundamental e imprescindível;
♦ considerar o conceito de participação social como sendo
imiito mais amplo que o de participação comunitária, incluindo
IMS ledexões e ações, gestores públicos, políticos, e cidadãos.
Além da abordagem ecossistêmica, há outros enfoques
•iisicmicos de problemas de saúde. Por exemplo, sobre o tema
il.i Mprodução, em suas quatro dimensões; biológica, de auto-
I iMisi iêiicia, política e societal existem várias pesquisas e aná-
ll’.i s de Samaja, desde 1993. Esse autor trata das relações hie-
i.iii|tii(as dentro dos sistemas vivos, num aprofundamento
Ifuiiio (|iie ele denomina Epistemología de la Salud. Metodo-
Im|i|( .iiiuMite trabalha ainda as questões da intersubjetividade
t il.i tuiisdisciplinaridade. A revisão bibliográfica da obra de
'i.iMM).i iiu lui todos os expoentes das teorias da complexida-
dt iiifiios I lenri Atlan, o que não deixa de ser um vácuo im-
pMii.inii- iM sua contribuição.
Outros autores trazem contribuição teórica incipiente,
como é o caso de Tarride (1998). Oliveira & Minayo (2003)
discutem a teoria da complexidade aplicada à análise da mor­
talidade infantil. Aleksandrowics (2003) trabalha o marco teó­
rico aproximando-o da questão de gênero e idade. Aleksan­
drowics & Minayo (2005) abordam o tema da humanização,
hoje assunto prioritário na pauta da gestão e da assistência à
saúde. E Schenker & Minayo (2005) discutem a implicação da
família na drogadição infanto-juvenil. Todos esses trabalhos
injetam mudanças nos paradigmas tradicionais.
Em sua obra El Legado de la Sociologia, la Promesa de la Ciên­
cia Social, Wallerstein (1999), importante cientista e presiden­
te do XIV Congresso Mundial de Sociologia, chama atenção
dos colegas, dizendo que, a seu ver, um dos grandes desafios
dessa área de ciências sociais hoje é sua integração metodoló­
gica e conceituai nos paradigmas da teoria da complexidade.
Creio que uma pergunta final permanece para o leitor a
respeito das diferenciações entre as teorias sistêmicas e as teo­
rias funcionalistas. Buscarei esclarecer algumas que considero
serem fundamentais. Enquanto no funcionalismo a realidade
é concebida como um todo que busca sempre a homeostase,
as teorias sistêmicas concebem todos os seres vivos como par­
te de uma totalidade com hierarquias e códigos próprios (sub-
sistemas) em constantes e permanentes interações, indo des­
de as células até as organizações sociais e políticas. Enquanto
no positivismo são as leis gerais que devem ser desvendadas
para ressaltar regularidades, nas teorias sistêmicas são as rela­
ções, os gargalos, os mídos que precisam ser apreendidos, na
busca de compreensão dos sentidos das mudanças, cujos m-
mos (não previstos, porque se abrem várias possibilidades)
não são um retorno ao momento inicial, mas tanto a possibi­
lidade de decadência como a de criação de maior complexida­
de auto-organizativa.
Capítulo 5
MODALIDADES DE ABORDAGENS
COMPREENSIVAS

A. PARTIR vários tipos de


DA F I L OS OF I A C OMP RE E NS I VA,
abordagem metodológica se desenvolveram, dentre as quais
se destacam a fenomenologia sociológica; a etnometodolo-
gia, o interacionismo simbólico, as histórias de vida e os estu­
dos de caso que apresento resumidamente a seguir.

Fenomenologia sociológica

Para abordagens qualitativas, em diversas teorias se encon­


tra o peso da contribuição de Weber, embora cada qual conser­
ve seu esquema conceituai peculiar. Uma das mais influentes é
a Icrumenologia sociológica. A fenomenologia é considerada, den-
II o das Ciências Sociais, a Sociologia da Vida Cotidiana. Embora
em sua elaboração existam influências weberianas é na filoso-
(ia de I lusserl que busca fundamentação metodológica. O argu-
iiwnlo filosófico de Husserl segue a mesma linha de Dilthey e
ile Weber, segundo os quais os atos sociais envolvem uma pro­
priedade que não está presente nos outros setores do universo
abau ados pelas ciências naturais: o significado (Husserl, 1980).
Nas Ciências Sociais, Alfred Schutz (1964; 1971; 1979;
ó o representante mais significativo do pensamento fe-
noijienológico. Ele dá consistência sociológica aos princípios
filosóficos de Husserl e cria teoria e método para abordagem
da realidade social. A fenomenologia sociológica apresenta:
(íí) uma crítica radical ao objetivismo da ciência e propõe a
subjetividade como fundante do sentido; (b) dá relevância à
subjetividade como constitutiva do social e inerente ao âmbi­
to da autocompreensão objetiva; (c) constitui a descrição fe-
nomenológica como tarefa principal da sociologia.
A fenomenologia da vida cotidiana trabalha com o fato de
que as pessoas se situam na vida com suas angústias e preocu­
pações, em intersubjetividade com seus semelhantes (compa­
nheiros, predecessores, sucessores e contemporâneos) e isso
constitui a existência social, por isso, o espaço e o tempo privi­
legiados nessa teoria são a vida presente e a relação face a face.
Schutz (1979) divide em três categorias os conhecimentos
constmídos a partir da compreensão da realidade social: (a) o
vivido e o experimentado no cotidiano; (b) a epistemologia
que investiga esse mundo vivido; (c) e o método científico
para proceder à investigação.
No primeiro nível, diz ele, o mundo social apresenta-se
aos indivíduos na forma de um sistema objetivado de designa­
ções compartilhadas e de formas expressivas. Esse é o mundo
da cotidianidade, tal como é vivenciado pelos seres humanos
em atitude natural e aceito por eles. Dentro dessa atitude natu­
ral, segundo Schutz, as pessoas não costumam questionar as
coisas e os acontecimentos, simplesmente vivem-nas como es-
tmturas significativas que atribuem sentido a sua existência.
O mundo cotidiano apresenta-se, para Schutz, nas tipifi­
cações constmídas pelos próprios atores sociais, que expres­
sam suas próprias relevâncias ao classificar a realidade. Essas
tipificações incluem tanto o universal e o estável como o es­
pecífico e o mutável. Aqui se observa uma diferença radical
entre Schutz e Weber. Enquanto, para este, o tipo-ideal é uma
constmção analítica criada pelo cientista para se aproximar do
real, os "tipos" e as "tipificações" tais como pensadas por
Schutz dizem respeito a constmções do ser humano comum
quando busca compreender a realidade em que vive e se co­
municar com seus semelhantes.
Schutz (1964) lembra, em conseqüência de sua proposta
de tipificação, que os dados primários colhidos em campo pelos
cientistas sociais já vêm estruturados e interpretados pelas
pessoas e grupos que eles pretendem compreender, pois a
realidade social possui sentido para os que vivem nela. Dessa
forma, diz ele, "os objetos das ciências sociais são construtos
em segunda potência" (1964, p. 300). Dizendo com outras
palavras, a matéria-prima para a investigação fenomenologia
sociológica são os "constmtos de primeira potência" elabora­
dos pelos membros de uma sociedade ou comunidade, na
sua vivência que inclui presente, passado e projeção para o
futuro. Portanto, as expressões dessa realidade, ainda que
transmitidas em idéias vagas, fragmentadas, imbuídas de emo­
ção e de ambigüidades são informações preciosas para os pes-
i|uisadores sociais.
Schutz (1982) não questiona se o conhecimento do sen­
so comum é superior ou inferior à constmção científica. Se­
gundo ele, o propósito do cientista social é revelar os signifi-
( .idos subjetivos implícitos que conformam o universo dos
.iiores sociais, em sua lógica mais profunda. Cabe ao investi-
g.ulor criar um saber diferente a partir do conhecimento de
primeira ordem", captando os modelos de tipificação do ator
siK ial, explicitando os significados da realidade social. Os
moilelos constmídos pelo cientista a partir do mundo da vida
•niidiana distinguem-se do senso comum, segundo Schutz:
(a) pela consistência lógica, isto é, pela possibilidade de des-
<levei o vivido, buscando trazê-lo para a ordem das significa-
(h) pela possibilidade de interpretação; e (c) pela sua
iid('i|uação à realidade social.
Sdiiitz (1971) descreve os princípios que conformam o
iiiiidelo científico para compreensão do mundo social: (a) a
liiinsubjetividade: os seres humanos estão sempre em rela­
ção .uns com os outros; (b) a compreensão: para atingir o
mundo do vivido, a ciência tem de apreender as coisas sociais
como significativas; (c) a racionalidade e a internacionalida-
de: o mundo social é constituído sempre por ações e intera­
ções que obedecem a usos, costumes e regras ou que conhe­
cem meios, fins e resultados.
Para a compreensão empírica da realidade, Schutz elabora
alguns conceitos que remetem ao ator social. O primeiro de­
les é o de situação: que significa o lugar que alguém ocupa na
sociedade, o papel que desempenha e suas posições ético-
religiosas, intelectuais e políticas. Em segundo lugar, trabalha
com a idéia de experiência biográfica, lembrando que uma pes­
soa sempre está situada biograficamente no mundo da vida e
é nesse contexto que pensa, sente e age. Inova também com a
noção de estoque de conhecimento, expressão que diz respeito à
sedimentação das experiências e situações vivenciadas, a partir
das quais o ator social interpreta o mundo e pauta sua ação.
Em sua constmção teórica, Schutz (1971) faz uma distin­
ção de grande importância para a prática de pesquisa, entre
experiência e conhecimento. Ele comenta que muitas pessoas
podem ter simultaneamente uma mesma experiência. No en­
tanto, o conhecimento gerado dessa vivência é diferenciado e
variado, de acordo com a bagagem biográfica e reflexiva das
pessoas. Essa distinção é preciosa para quem trabalha com
entrevistas qualitativas, pois os trabalhadores de campo en­
contrarão sempre muitas diferenças de detalhes e de aprofun­
damento em narrativas sobre o mesmo fato, contadas por ato­
res diferentes, mesmo que esses estejam vivendo ou tenham
vivido a mesma realidade.
Schutz (1971) desenvolve ainda duas noções fundamen­
tais dentro de sua teoria: o de relevância e o de estrutura de
relevâncias, referindo-se à importância que os objetos e os con­
textos possuem para o sujeito, o que se relaciona, por sua
vez, com sua bagagem de conhecimento, seus desejos e pro
jetos de vida e com sua situação biográfica. Há outros concei
tos desenvolvidos pela sociologia fenomenológica de Schutz
que têm extrema importância para a fundamentação da pes­
quisa qualitativa, ajudando o investigador a passar do contex­
to das entrevistas individuais para a compreensão do grupo e
da comunidade onde vivem os informantes, como é o caso de:
"reciprocidade de perspectiva", "comunidade de objetivos" e
"interpretação intersubjetiva" (1971, p. 300). Segundo Schutz,
todos os que vivem num gmpo determinado recebem a maior
parte de seus conhecimentos através dos pais, professores e
predecessores. Recebem também uma visão de mundo, ma­
neiras de classificar e tipificar a realidade, criando um universo
vivencial específico, de tal forma que seu saber vai do "fami­
liar" ao "anônimo" a partir da situação "face a face" e da vida
prática, por meio das quais se relacionam com o mundo:

Na realidade a pergunta mais séria a que a metodolo­


gia das ciências sociais deve responder é: como é possível
formar conceitos objetivos e teorias objetivamente verifi­
cáveis partindo de estruturas de significados subjetivos? A
lesposta é dada pela visão básica de que os conceitos for­
mados pelos cientistas sociais são "constmtos" dos "cons-
irutos" científicos formados no segundo nível, de acordo
«om as regras de procedimento válidas para todas as ciên-
( ias empíricas. São constmtos de tipo-ideal objetivo, e
(omo tais, diferentes daqueles desenvolvidos no primei-
10 nível de pensamento do senso-comum, aos quais eles
devem superar. São sistemas teóricos incorporando hipó-
leses testáveis (1971, p. 498).

I'aia Schutz, a intersubjetividaãe é a categoria central da aná-


Ib» lenomenológica, porque ela é um dado que fundamenta
rt ' ^lsl(■ll( ia humana no mundo. Essa relação é assim resumida
|Ulit .iiiior: "Aqui onde estou — lá onde meu semelhante está:
podemos estar no mesmo lugar, estar na mesma posi-
eM.ii os dois aqui ou lá" (1971, p. 147). Ou seja, a inter-
subjetividade é vivida em situação de "familiaridade" sob a for­
ma do "nós" permitindo a compreensão do outro como único
em sua individualidade. Ao contrário da intersubjetividade, exis­
te a situação de anonimato que, na teoria de Schutz, é a nega­
ção da vida social pois, nela, a unicidade e individualidade dos
sujeitos não são reconhecidas. O grau máximo de anonimato é
a consideração do outro como número ou função.
Como se pode concluir, na fenomenologia não existe pre­
ocupação com os fenômenos estruturais e há ausência de dis­
cussão sobre as questões do poder, da dominação, da força e
da estratificação social. Sua abordagem, que focaliza a produ­
ção interacional e simbólica nela se compraz, como se cada
fato ou grupo constituísse um mundo social independente.
Segundo a consideração de alguns filósofos, a fenomeno­
logia seria uma "teoria fraca" desenvolvida a partir do contex­
to pessimista do nazismo e do estalinismo que vigoraram no
fim da primeira metade do século XX, e nos quais prevalece­
ram razões de Estado sobre a vontade e a liberdade dos gru­
pos sociais. A crítica de teorias que enalteciam valores ideoló­
gicos acima dos contextos da vida social concreta teria levado
os fenomenólogos a acentuar a relevância da família, das enti­
dades religiosas, das associações voluntárias, responsáveis pela
identificação dos indivíduos, por sua estabilidade e por seu
sistema de significados, valores esses construídos por meio
de uma visão de mundo compartilhada.
A fenomenologia contrapõe-se ao positivismo nos mais
diferentes aspectos: (a) A ambição dessa teoria de construir
explicações totalizantes e invariáveis, a fenomenologia afirma
que a vida humana é essencialmente diferente e só pode ser
compreendida por meio do mergulho na linguagem significa­
tiva da interação social, (b) A separação entre fatos sociais e
valores no positivismo, a fenomenologia diz que linguagem,
práticas, coisas e acontecimentos são inseparáveis. A lingua­
gem é essencial para que a realidade seja do jeito que é, pois
na vida cotidiana os indivíduos que se comunicam, concor­
dam, discordam, justificam-se, negam ou recriam razões de
existir, (c) À pretensão positivista de construir conhecimentos
objetivos e neutros, a fenomenologia diz que só há conheci­
mento subjetivo, pois é o ser humano que imprime leis ao
real. O ato de conhecer reúne o observador e o observado,
ambos possuidores de significados atribuídos intersubjetiva-
mente pelas próprias pessoas e grupos, (d) A coerção da so­
ciedade sobre o indivíduo, a fenomenologia proclama a liber­
dade do ator social que, por meio de sua história biográfica e
em inter-relação com seus semelhantes, cria significados e cons­
trói sua realidade, (e) Dessa forma a fenomenologia proclama
e absolutiza o componente ético na relação da ciência com a
sociedade. Diz que o conhecimento deve estar sempre sub­
metido a exigências morais, pois ele é uma forma dentre as
possíveis de confirmação da realidade. E, ao contrário do po­
sitivismo que confere primazia ao reinado da ciência, a feno­
menologia advoga sua submissão aos princípios da ética e da
moral da sociedade em que é desenvolvida.^

Etnometodologia

A etnometodologia dá nome a um conjunto de estratégias


de pesquisa cujo ponto comum é a descrição minuciosa dos
objetos que investiga e, por isso, é também conhecida como
pesquisa situada". Os desenhos operacionais de cunho et-
IIOmetodológico preconizam a observação direta e a investi-
ga(,iio detalhada dos fatos, no lugar em que eles ocorrem, com
.1 IinaIidade de produzir uma descrição minuciosa e densa das
pessoas, de suas relações e de ,sua cultura. Suas fontes de inspi-
t.ii.iio são as abordagens antropológicas. Mas diferenciam-se
di las por não terem pretensão de produzir análises culturais

' Ali'in de Schutz, é importante citar como nomes relevantes da Sociologia


!• iiiiinrnolrtgica, Peter Berger & Thomas Luckmann, A C o n s t r u ç ã o S o c ia l d a R e a lid a -
1 1 iiiipolis: Vozes, 1973 e Alfred Cicourel. M e t h o d a n d M e a s u r e m e n t S o c io lo g y , Nova
> 'il llii' I ree Press, 1969.
totalizantes. As estratégias de investigação etnometodológica
dão atenção especial às técnicas de observação participante e
à compreensão dos símbolos e categorias empíricas que um
determinado grupo usa para se referir a seu mundo e aos pro­
cessos que está vivendo.
Geertz (1979) comenta que, mesmo quando está em con­
tato e em empatia com o grupo que observa e avalia, o obser­
vador e o avaliador põem em jogo suas próprias normas e
condutas. Por isso, considera que o etnometodólogo traba­
lha como mediador entre marcos de significados, seus e do
outro. Uma das grandes vantagens da etnometodologia é tra­
zer para a compreensão social uma grande riqueza de infor­
mações, fazendo mediação entre estratégias de abordagem e
uma nova teoria gerada a partir do campo.
O berço da etnometodologia foi a Universidade de Chica­
go e seu principal formulador Robert Park que, nas décadas
de 20 e 30 do século XX, preconizava a convivência direta dos
investigadores com os investigados no campo, para a com­
preensão de sua realidade. O material que esse autor conside­
rava de excelência e essência da sociologia era o proveniente
das Histórias de Vida (Park & Burgess, 1921). As idéias de Park
foram posteriormente desenvolvidas por Harold Garfinkel
(1976) na década de 30 do século XX.
Garfinkel propõe uma teoria para compreender a prática
artesanal da vida cotidiana, tendo em conta que essa prática
já vem interpretada em primeira instância pelos próprios ato­
res sociais, como preconiza Schutz (1972). Em primeiro lugar,
estabelece que a vida social é uma realidade que se constitui
de estmturas, regras, normas e conhecimentos compartilha­
dos, tornando possível a interação entre as pessoas. As carac­
terísticas dessa realidade, diz ele, são inseparáveis dos proces­
sos interpretativos, pois faz parte da constituição do mundo
a forma pela qual os seres humanos chegam ao sentido da rea­
lidade objetiva. Essa forma expressa-se por meio do senso co­
mum. E já que o ser humano tem como característica funda­
mental, a reflexibilidade sobre seus atos, o papel dos etnome-
todólogos é estudar a cotidianidade e nela descobrir os mode­
los de racionalidade subjacentes à ação de indivíduos, dos
gmpos e das coletividades (Payne et al„ 1981; Smart, 1978).
Tom Harrison e Charles Madge foram dois expoentes da
aplicação da etnometodologia na Inglaterra. Desde 1937, eles
já tentavam criar procedimentos para tornar viável um tipo de
abordagem que levasse a compreender o dia-a-dia do homem
comum na sociedade complexa. Suas idéias, desenvolvidas na
chamada teoria da "Observação de Massa", contêm críticas e
propostas, buscando compreender e analisar, em escala ampli­
ada, o que vinha sendo estudado por antropólogos ingleses a
respeito de gmpos pequenos e específicos. Harrison questiona
a idéia comum ao positivismo de que as grandes leis sobre o
comportamento humano possam ser encontradas sem que
os cientistas sociais compreendam as interações que aconte­
cem na realidade empírica. É sua a frase: "as abordagens quan­
titativas sacrificam o significado no altar do rigor matemático"
(Harrison, 1947, p. 10). Esse autor, por meio de observadores
voluntários, passou a colecionar atitudes, palavras e reações
dos ingleses aos acontecimentos do dia-a-dia, "visando a com-
preender o comum, o mágico, os hábitos, os rituais e tabus
de uma cultura pretensamente conhecida" (1942, p. 11).
I larrison publicou vários livros antes e depois da Segun-
d.i CiUerra Mundial, até mesmo tentando desconstmir vários
mitos constmídos pelos governantes no período de guerra.
<olocou à luz a cultura popular inglesa sob vários aspectos,
deixando a marca de sua contribuição tanto para o cinema, as
aites, como para as técnicas de pesquisa de mercado e de opi­
nião juiblica. Seu arquivo de investigação passou a classificar
lindos como arte, assuntos financeiros, anti-semitismo, so-
olios, comportamento sexual. Apesar de seu espírito inova­
do 1 e da justeza de suas preocupações teóricas, Harrison tem
Nido Mulito criticado no âmbito científico, por causa da sua
l.ill.i de rigor metodológico.
Entre os problemas que a etnometodologia apresenta,
destaca-se o fato de que, em seu sentido estrito, ela não per­
mite comparação e nem se presta à construção de cenários
quanto ao futuro. São-lhe feitas algumas restrições de ordem
epistemológica, tanto por positivistas como por marxistas: faj
crítica à consideração de que os significados subjetivos criam
a realidade do mundo; (b) crítica à redução da estrutura social
a procedimentos interpretativos; (c) crítica ao desconhecimento
dos fatores que determinam ou condicionam a visão das pes­
soas sobre sua situação social; (d) crítica à separação entre
pensamento e ação (Smart, 1978).
Dos anos 30 aos anos 60 do século XX, as pesquisas de
cunho etnometodológico decaíram na sociedade de conheci­
mento anglo-saxônica, voltando a ressurgir a partir da Segun­
da Guerra Mundial, e notadamente a partir dos anos 1960,
com a emergência dos movimentos sociais de valorização do
sujeito e da subjetividade nas ciências sociais. Hoje há um
renascer de estudos socioantropológicos de pequenos gru­
pos dentro de abordagens etnometodológicas, ocupando o
espaço deixado pelo descrédito do positivismo e pelo escasso
desenvolvimento heurístico das correntes marxistas, mais preo­
cupadas com abordagens filosóficas ou macrossociais. Den­
tre os trabalhos de maior expressão a partir da abordagem
etnometodológica, cito os de Goffman (1959; 1961; 1975a;
1975b), especialmente dedicados à análise de instituições to­
tais e de estigmatizações sociais.

Interacionismo Simbólico

Este tipo de abordagem metodológica pode ser compre­


endido como uma vertente da etnometodologia. Sua origem,
também da década de 20 do século XX, reúne estudos impor­
tantes como os de Thomas (1970); Mead (1934) e Gooley
(1926). Seu autor seminal foi Herbert Blumer que, em 1937,
atribuiu à sua abordagem o nome de "interacionismo simbó
lico . Nos anos 70 do século XX, Denzin foi um autor funda­
mental para aprofundar a discussão teórica e metodológica
da proposta, em sua obra clássica The Act o f Research (1973).
Diz Blumer sobre sua proposta:

Nós podemos, e eu penso que posso, olhar a vida hu­


mana, acima de tudo como um vasto processo de interpre­
tação, no qual o povo, individual e coletivamente guia a si
mesmo para definir objetivos, acontecimentos e situações
que encontram. Nenhum esquema designado para anali­
sar a vida dos gmpos humanos em seus caracteres gerais se
conforma a esse processo de interpretação (1969, p. 686).

A concepção interacionista de Blumer fundamenta-se no


princípio de que o comportamento humano é autodirigido e
observável em dois sentidos: o simbólico e o relacionai, uma
vez iiue qualquer ser humano, realizando as tarefas mais ele­
mentares, planeja e dirige suas ações em relação aos outros,
. onlere-lhes sentido e cria e produz significados sobre os ob-
leios c|ue utiliza para realizar seus planos. Além disso, segun­
do os interacionistas, a vida social constitui uma espécie de
I oiisenso que propicia um processo de inter-relações e de in-
leipictações de significados compartilhados por um gmpo ou
'oiimnidade que pode ao mesmo tempo, manipular, redefi-
nii f modificar seus sentidos.
Do ponto de vista metodológico, os princípios interacio-
niM.is enfatizam que: (a) símbolos e interação devem ser os
........ 'l>•>is elementos a se apreender na investigação; (b) sím-
holus, significados e definições são constmídos pelos atores
*0. i.iis; (c) portanto, é preciso apreender e compreender a na-
tm. .-.1 reflexiva dos sujeitos pesquisados. Em contraponto
t'im ti positivismo, os interacionistas simbólicos consideram
qm n investigador deveria fugir da falácia do objetivismo,
•iih-.iimindo sua própria perspectiva pela do gmpo que ele
Mbt .Mudando (Payne, 1981; Haguette, 1988; Denzin, 1973).
História de Vida, Narrativa de Vida,
História Oral e Etnobiografia

Vários termos têm sido usados para referenciar tipos de


estratégias para pesquisar o sentido da experiência humana
comum em lugares sociais específicos. Uma das principais é
pedir aos atores que contem suas histórias. Há várias formas
como isso pode ser feito, buscando-se, de um lado, compre­
ender a permanência dos fatos e das determinações e, de ou­
tro, escutar o que sobre eles as pessoas têm que dizer. As nar­
rativas de vida nunca serão uma verdade sobre os fatos vividos
e, sim, uma versão possível que lhes atribuem os que viven-
ciaram os fatos, a partir dos dados de sua biografia, de sua
experiência, de seu conhecimento e de sua visão do futuro.
Os termos para definir as formas de abordagem dessas
experiências são múltiplos e certamente há nuanças que os
diferenciam e muitos elementos que os assemelham. Denzin
(1973), por exemplo, utiliza a expressão life story, cujo sentido
se aproxima ao de récit ãe vie em Bertaux (1980) e narrativa de
vida, ou ainda "as estórias ou testemunhos" que as pessoas
oferecem sobre os fatos. Mas Denzin (1973) também fala em
life history, referindo-se aos relatos da história de gmpos so­
ciais específicos. Como entusiasta dessa modalidade de pes­
quisa empírica, esse autor, em The Research 'Act, trata da defini­
ção e dos pressupostos para sua realização, das suas várias
modalidades, de sua relação com a historiografia clássica, das
estratégicas analíticas e da relevância dessas técnicas asseme­
lhadas para as Ciências Sociais. A história de vida pode ser a
melhor abordagem para se compreender o processo de socia­
lização, a emergência de um gmpo, a estmtura organizacio­
nal, o nascimento e o declínio de uma relação social e as res­
postas situacionais a contingências cotidianas.
Sartre (1978), em um de seus clássicos. Questão de Método,
questiona o marxismo mecanicista que omite o sujeito, pro­
põe O método biográfico regressivo progressivo como método de
análise da realidade social. Ele o desenvolve como uma estra­
tégia para realizar a compreensão da existência, usando a bio­
grafia de forma contextualizada historicamente. O biografado
é colocado de forma analítica, compreensiva e crítica, no con­
texto das determinações que o constrangem e de sua liberda­
de como sujeito. O autor não só apresenta sua teoria como a
fundamenta filosoficamente e a exemplifica com casos diver­
sos, dentre os quais a análise da obra de Flaubert, Maãame
Bovary. O exemplo de aproximação da biografia e o trabalho
de análise realizado por Sartre são primorosos, também como
pistas do como fazer . Diz ele, referindo-se aos vários ele­
mentos de aproximação, a partir do sujeito:

E preciso considerar em cada caso o papel do indivíduo


nos acontecimentos históricos. Pois este papel não está
definido de uma vez por todas. É a estrutura dos gmpos
que o determina em cada circunstância. O gmpo confere
seu poder e sua eficácia aos indivíduos que, por sua vez, o
constituíram. Mas o indivíduo tem uma particularidade
irredutível que é sua maneira de viver a universalidade,
portanto, nada pode ser descoberto se, de início, não che­
garmos tão longe quanto nos for possível na singularida­
de histórica do objeto (1978, pp. 168-9).

Bourdieu et al. (1973) também apresentam e enaltecem a


i siratégia da história vida individual como sendo uma cer-
u especificação da história coletiva de um gmpo e de uma
1 1,is.se:

Podemos ver", diz ele, "nos sistemas de disposições


individuais, variantes estruturais de habitus de gmpo e de
<l.isse, sistematicamente organizados nas diferenças que os
separam: o estilo pessoal, isto é, esta arca particular que
luz todos os produtos de um mesmo habitus, é uma va-
riação em relação ao estilo de uma época ou de uma classe
(1973, p. 189).

Na introdução ao extenso e denso trabalho de história


oral sobre a Guerra Espanhola, Fraser (1979) evidencia e res­
salta a importância dessa abordagem, valorizando-a como a
forma de conhecer como o povo vivência os acontecimentos
de seu tempo. Ressalta que a história de vida (tópica ou mais
completa) verbalizada pelos participantes constitui uma ten­
tativa de revelar o ambiente intangível dos acontecimentos
que fazem parte da experiência de determinado grupo social.
Visa a descobrir o ponto de vista e as motivações dos partici­
pantes voluntários ou involuntários na História, portanto,
protagonistas dos fatos sociais embora, geralmente, descarta­
dos da historiografia oficial que privilegia a dinâmica do po­
der e dos poderosos.
Diz Fraser: "É a história vista pela política interna das clas­
ses. Por mais intangível que pareça, ela trata do que o povo
sente. E o sentir constitui a base de seus atos. O que as pes­
soas pensam e o que elas pensam que pensam também cons­
tituem um fato histórico" (Fraser, 1979, p. 29).
Um dos mais importantes historiadores do século XX, Paul
Thompson (1980), refere-se às técnicas de história de vida e
de história oral como abordagens etno-históricas, no centro
das quais se coloca a questão das mudanças sociais e de seus
atores. Esse autor utiliza o termo método para falar das abor­
dagens das histórias de vida. Seu grande valor, diz Thomp­
son, comparando a etno-história com os surveys, é a captura
de informações que, pela sua própria natureza, formam uma
totalidade coerente e enraizada na experiência social real. No
mesmo sentido, este autor comenta que, a bem da verdade, é
preciso dizer que não se pode fazer uma distinção radical en­
tre interpretações subjetivas e objetivas, uma vez que elas sem­
pre e em toda parte estão profundamente imbricadas, citan­
do o uso de ambas em sua obra The Voice o f the Past (1978). A
etno-história, lembra Thompson, introduz a dimensão tem­
poral nas análises sociológicas: o ciclo de vida, a mobilidade
social, a oposição entre tradição e mudança, a compreensão
das formas de consciência popular, a formação das represen­
tações e dos valores pela socialização, o desenvolvimento de
atitudes desde a infância até a experiência adulta, a partir do
presente. Comenta que, metodologicamente, a descrição de
cada caso particular, ao mesmo tempo ilustra, de maneira con­
creta, a estrutura social global e transmite, por meio de uma
individualidade distinta, o caráter às vezes único e representa­
tivo de cada caso, "revelando assim a realidade incômoda so­
bre a qual a interpretação sociológica e histórica deve repou­
sar" (1980, p. 253).
Thompson considera que é a flexibilidade intrínseca à
abordagem da etno-história (história oral, história de vida, nar­
rativas de vida) a chave de suas potencialidades, uma vez que
ela se move entre a exploração e o questionamento dos fatos
e sobre os fatos, à medida que as entrevistas ocorrem, permi­
ti ndo a verificação e a reformulação de hipóteses durante o
processo de trabalho de campo, criando-se uma teoria (não
rmpiricista), mas fortemente ancorada na realidade social.
1hompson resume a definição e as vantagens desse tipo
de abordagem dizendo que ela deve ser realizada por meio de
eiII revistas com participantes, testemunhas oculares dos even-
los do passado e visam à reconstmção histórica permitindo:
• acessar as experiências não documentadas, sobretudo
.e. Iiistórias de categorias sociais geralmente menosprezadas;
• explorar aspectos da experiência histórica raramente re-
tiisli.ulos;
evidenciar significados subjetivos de eventos do passado;
» engajar
e os investigadores em relacionamentos humanos
aiivDs na observação dos fatos.
Ileiiaiix (1980) faz longa revisão sobre o assunto, mos-
ii.mdo (|iie o uso da estratégia da história de vida (termo que
iiqnl niilizo para generalizar as diferentes denominações: nar-
rativas de vida, autobiografia, etno-história, etnobiografia) se
caracteriza pela unidade na diversidade. Várias teorias a utili­
zam: o marxismo, o estmturalismo, a fenomenologia, o em-
pirismo, o interacionismo simbólico, a hermenêutica e ou­
tros. Vários meios sociais são investigados: artesãos, industriais,
trabalhadores, elites, jovens delinqüentes, sobreviventes de
guerra, usuários de drogas, doentes específicos e outros. Vá­
rios recortes teóricos são escolhidos: papéis sociais, histórias
psicológicas, trajetórias e modos de vida, por exemplo. Vários
temas são tratados: vida material, consumo, usos e costumes,
modos de vida e fenômenos simbólicos.
Em resumo, sob as mais diferentes modalidades, a histó­
ria de vida, a etno-história e a história oral são consideradas,
no âmbito da pesquisa qualitativa, poderosos instrumentos
para a descoberta, a exploração e a avaliação de como as pes­
soas compreendem seu passado, vinculam sua experiência
individual a seu contexto social, interpretam-na e dão-lhes
significado, a partir do momento presente. Por isso, elas ofe­
recem material para generalização sociológica, descrição de
época e também possibilitam levantar questões novas e de
diversos níveis de abrangência, assim como corrigir teses con­
sagradas ou inconsistências teóricas.
A partir da década de 1970, vários autores buscaram apri­
morar as modalidades de abordagem da história de vida, e
dentre os mais importantes testemunhos'sobre esse assunto
estão os citados em Cahiers Internationaux de Sociologie (1980),
que trazem aportes tanto epistemológicos como metodológi­
cos. Os autores como Thompson (1980) e Bertaux (1980) tra­
tam também de questões operacionais. No entanto, é preciso
ressaltar que a maioria dos historiadores e cientistas sociais
tem-se preocupado menos com técnicas e mais com o movi­
mento sociológico de articulação empírica, contextualizadora
e teórica que faz da história de vida (em todas as suas varian­
tes) uma eminente forma de pesquisar o sentido da experiên­
cia humana no tempo e no espaço (Thompson, 1980; Maf-
fesoli, 1980; Ferratori, 1980; Bertaux, 1980; Balan & Jelin,
1980). Bertaux, por exemplo lembra que "uma metodologia
sem conteúdo social é árida" (1980, p. 207). Os esforços de
aperfeiçoamento metodológico vêm seguidos de dúvidas epis-
temológicas sobre o significado dos achados nas narrativas de
lembranças, levando os investigadores a se questionarem, por
exemplo sobre:
♦ o que acontece com a experiência quando ela vai se tor­
nando memória?
♦ o que acontece com as experiências quando vão se tor­
nando história?
♦ o que ocorre com a memória coletiva quando a vivência
de fatos muito fortes (guerra espanhola, o holocausto, ou vi­
vências mais simples) se distancia no tempo?
Todas essas indagações ocorrem em busca de aperfeiçoa­
mento das técnicas (a que muitos chamam métodos) visando
a tornar os procedimentos cada vez mais fidedignos e científi­
cos, numa proposta complementar à da historiografia oficial
ou como forma de questioná-la.
Do ponto de vista prático, seguem algumas sugestões so-
lire questões mais ou menos comuns na utilização desse ti­
pos de abordagem:
♦ Como proceder no campol Em geral se trabalha com entre­
vista e observação participante. A entrevista aberta e não dire­
tiva parece ser a melbor forma de começar a interação visando
■t narrativa de vida. À medida que a relação se estabelece entre
<1 entrevistador e seu interlocutor, o mais importante é criar
inn ambiente reflexivo que combine atitude diretiva para in-
liII inações gerais, escuta atenta mas não passiva para apro-
Iniulamento de temas relevantes e exploração das lógicas con-
iiaditórias por meio de perguntas que possam enriquecer as
naiialivas. Becker (1994), por exemplo, amplia o âmbito da
IniK.ao da entrevistas para a história de vida. Sugere que ela
>tiiv.i como pedra de toque, através da qual teorias, hipóteses
c iMcssnposições possam ser avaliadas. À medida que acres­
centa dados pessoais e visões subjetivas a partir de determi­
nado lugar social, permite abrir caminhos de investigação em
áreas que pareciam resolvidas, tanto no campo das rotinas
institucionais como dos processos e relações sociais. "Além
disso, tem o potencial de conseguir dados difíceis e quase
inacessíveis em experimentações ou «surveys» retrospectivos"
(Becker, 1994, p. 26).
♦ A cjuem e a cjuantas pessoas entrevistar'^. Pode-se trabalhar,
como Sartre (1980), Sacks (2002) e Cavalcante (2003) o fize­
ram, apenas com biografias únicas (1980), destacando singu­
laridades nelas mas contextualizando-as e retirando delas
conclusões teóricas importantes. Ou, então, podem ser utili­
zadas várias narrativas, como o fizeram Thompson (1980),
Poirier & Clapier-Valladon (1980) e Ferrarotti (1980), dentre
outros. Nesse caso, o número de informantes depende dos
objetivos da investigação e dos critérios de saturação que orien­
tam qualquer pesquisa qualitativa. Ainda do ponto de vista
prático, o trabalho de campo pode realizar-se de várias for­
mas, sendo suas principais modalidades: (a) a história de vida
completa que recobre todo o conjunto da experiência vivida
por uma pessoa, um gmpo ou uma instituição; (b) a história
de vida tópica que dá ênfase a determinada etapa ou setor da
vida pessoal ou de uma organização.
♦ Como proceder à continuidade das narrativas'? É importante
que o investigador vá transcrevendo sucessivamente suas en­
trevistas e, a partir delas, ir procedendo à escolha de novos
interlocutores, transferindo questionamentos de uns para ou­
tros, triangulando visões de vários informantes e buscando
percorrer caminhos imperceptíveis para assegurar a qualidade
das informações.
♦ O cjue fazer com o caráter incompleto das narrativas? Cabe
ao pesquisador o esforço de articular as informações, como
num quebra-cabeça, colocando-as no contexto histórico, re­
lacionai, social e sempre buscando, como em todas as moda­
lidades de investigação qualitativa, a lógica interna do gmpo
em questão. O trabalho reflexivo e inquiridor, aparentemente
espontâneo, que as grandes biografias ou histórias de gmpos
parecem esconder, é que dá à estratégia de história de vida o
valor etnológico e etnográfico que tanto se admira. É preciso
ter em mente, como já expliquei, que a pessoa não conta sua
vida, reflete sobre ela enquanto a narra, buscando um fio con­
dutor que lhe dê sentido, a partir do presente e projetando o
futuro. Portanto, o investigador nunca encontrará a verdade
e, sim, a versão situada dos participantes nos episódios narra­
tivos. Igualmente, sua biografia, nalgum momento, deverá ser
posta no contexto etnográfico.
♦ Em que momento o investigador procederá à análise? Nas
modalidades de história de vida por entrevistas, a análise se
l.iz durante toda a realização do trabalho de campo e como
II ma etapa específica subseqüente a ele. No primeiro caso, o
investigador só deve parar quando conseguir "constmir uma
lepresentação de seu objeto socioantropológico" (Bertaux,
1980, p. 210) que passará depois por um constmto de segun­
da ordem, composto pelo olhar compreensivo e interpretati-
vo do investigador, em que seu objeto de estudo será situa­
do, analisado, contextualizado e teorizado (Schutz, 1982).
Os pressupostos teóricos que validam a história de vida
s.io da mesma natureza dos que fundamentam a entrevista e
a oliservação participante. Todas essas estratégias exigem uma
mnsciência reflexiva que abrange investigadores e interlocu-
loics na constmção de um pré-texto inserido num contexto
•IIu ial mais amplo e mais complexo.

Investigação participante e investigação-ação

lais abordagens têm origem na década de 1960, influen-


I ladas pelo pensamento crítico sobre a realidade social no Brasil
» na América Latina. Um dos seus inspiradores foi Paulo Frei-
u ( 19bb; 1976; 1981; 1985; 1992; 1996), cujas obras são mun-
dlalmenle conhecidas e respeitadas.
•Buscando sempre combinar investigação, participação e
política (Gajardo, 1984), ambas as abordagens partem de al­
guns princípios: (a) a idéia de um sujeito popular; (b) a idéia
de um projeto político encampado por uma frente popular;
(c) o privilegiamento do espaço local como locus político e
(d) o papel do investigador como ator político transforma­
dor. O pressuposto de tais propostas é de que (a) a inclusão
social só se alcança se os setores econômica e socialmente ex­
cluídos passarem a incorporar a consciência de seus interes­
ses, práticas de organização e real significação social e política
e de que (b) a investigação social pode ser um potente veicu-
lador dessas mudanças (Gajardo, 1984; Barbier, 1985).
Assim, investigação-ação e pesquisa participativa nasceram
orientadas para a solução de problemas concretos como ten­
tativa de promover o incremento de participação dos campo­
neses e gmpos sociais mais relegados da sociedade nos pro­
cessos sociais e sua integração no debate político.
Embora criadas dentro do mesmo contexto histórico e dos
mesmos objetivos sociais, há diferenças teóricas e práticas entre
investigação-ação e investigação participante. A primeira con­
siste num tipo de pesquisa estreitamente concebida e realiza­
da junto com intervenções sociais orientadas para a resolução
de um problema coletivo, no qual se envolvem os investiga­
dores e os participantes. Esses últimos devem ser representa­
tivos do processo que buscam transformar (Thiollent, 1987).
A investigação participante inclui pessoas leigas, represen­
tativas de situações a serem transformadas, de forma orgânica
à produção de conhecimento sobre tais situações, sem neces­
sariamente estar vinculada a uma ação direta. Em ambas as
modalidades, a população-alvo é levada a identificar o pro­
blema, a levantar os dados sobre ele, a realizar análises críticas
e a buscar soluções adequadas para as questões em pauta. O
pesquisador deve trabalhar de tal forma que a própria seleção
do problema de investigação brote da discussão entre espe­
cialistas e a população.
Ambas as modalidades de pesquisa estão vinculadas a um
tipo de visão emancipatória, e suas propostas e método fo­
ram aplicados em vários países da América Latina, especial­
mente em projetos de educação popular nas décadas de 1970
e 1980 (Brandão, 1985).
Considerados semelhantes, os desenhos de investigação-
ação e de investigação participante, do ponto de vista meto­
dológico supõem que: (a) gmpos com saberes diferenciados
se coloquem em inter-relação; (b) seja formulado um quadro
teórico referente ao problema para o qual se busca solução;
(c) em todas as fases de desdobramento do projeto as pes­
soas interessadas no projeto participem; (d) todas as discus­
sões sobre os dados sejam socializadas e (e) se constmam pla­
nos de ação, em conjunto, permitindo enfrentar e resolver,
com metas no curto, médio e longo prazo os problemas diag­
nosticados.
As modalidades de investigação-ação e de investigação
participativa (Demo, 1998), com o sentido político que lhes
deu origem, escassearam a partir dos anos 1980, quando as
ditaduras latino-americanas foram caindo e os espaços demo-
( láticos de discussão passaram a substituir tais estratégias de
P*-sciuisas de cunho político. Igualmente, a análise das pes-
(|iiisas realizadas gerou muitas críticas epistemológicas, sobre­
tudo quanto ao seu status de cientificidade. Do ponto de vista
.!(.ulêmico os experimentos freqüentemente demonstraram
gi.iiule fragilidade teórica ou, simplesmente, não tiveram a
p.iilicipação das pessoas comuns que vivenciam os proble­
mas em estudo, em todas as etapas de sua realização. Do ponto
dl' vista do envolvimento dos atores leigos, cada vez mais se
iiimou difícil seu engajamento, a não ser de forma remunera­
da e não como uma militância política engajada na pesquisa.
I loje, no entanto, as expressões pesquisa participativa e pes-
qiiis,ração continuam presentes, principalmente em dois con-
icMos: o da área de educação e de gestão, sobretudo no cam-
pM da avaliação institucional (Waiselfsz, 1998), somando-se
aos processos de auto-avaliação e de avaliação interna. Essas
abordagens passaram a ser utilizadas como instmmentos de
constmção de consensos dentro das organizações, a partir de
diagnósticos e formulação de propostas dos educadores e
funcionários. Nesse sentido, elas continuam a cumprir uma
função estratégica.

Estudo de Caso

Goode & Hatt assim definem o estudo de caso: "É um


meio de organizar dados sociais, preservando o caráter unitá­
rio do objeto social estudado" (1969, p. 422). Bonoma (1985)
dá ênfase ao caráter de intensidade sobre o objeto neste tipo
de abordagem. Segundo Yin (1989), a preferência por estu­
dos de caso deve ser dada quando é possível fazer observação
direta sobre os fenômenos. Os estudos de caso utilizam es­
tratégias de investigação qualitativa para mapear, descrever e
analisar o contexto, as relações e as percepções a respeito da
situação, fenômeno ou episódio em questão. E é útil para
gerar conhecimento sobre características significativas de even­
tos vivenciados, tais como intervenções e processos de mu­
dança. Assemelha-se à focalização sobre um experimento que
se busca compreender por meio de entrevistas, observações,
uso de banco de dados e documentos.
Metodologicamente, os estudos de easo evidenciam liga­
ções causais entre intervenções e situações da vida real; o con­
texto em que uma ação ou intervenção ocorreu ou ocorre; o
rumo de um processo em curso e maneiras de interpretá-lo;
o sentido e a relevância de algumas situações-chave nos resul­
tados de uma intervenção. E seus objetivos podem ser resu­
midos em: (a) compreender os esquemas de referência e as es­
truturas de relevância relacionadas a um evento ou fenômeno
por parte um gmpo específico; (b) permitir um exame deta
lhado de processos organizacionais ou relacionais; (c) esclare­
cer os fatores que interferem em determinados processos; (d)
apresentar modelos de análise replicáveis em situações seme­
lhantes e até possibilitar comparações, quando no projeto,
no decurso do trabalho de campo e nas análises o investiga­
dor trabalhar com tipificações.
Hoje, os estudos de caso são utilizados principalmente na
área de administração e de avaliação, social tendo aplicações
bastante funcionais como (1) compreender o impacto de de­
terminadas políticas numa realidade concreta; (2) descrever
um contexto no qual será aplicada determinada intervenção;
(.3) avaliar processos e resultados de propostas pedagógicas
ou administrativas e (4) explorar situações em que interven­
ções determinadas não trouxeram resultados previstos.
Os itens principais de um desenho de um estudo de caso
s.io:
• questão de estudo ou definição do foco de pesquisa: este mé-
lodo é indicado para responder ao "como" e ao "porque"
ilelerminado fenômeno se apresenta;
• determinação da unidade de análise e sua descrição prelimi­
nar. se é um gmpo, uma organização, um setor;
• justificativa do estudo: explicação da importância e do sen-
iiilo do estudo;
• jormulação e esclarecimento das proposições especificamen-
it oiieuladas para os vários aspectos em estudo;
• esclarecimento da lógica entre as várias proposições;
• estabelecimento de critérios para a interpretação dos dados
(u (ricucial teórico e categorias).
t )s leõricos do método de estudo de caso aconselham aos
(H'hi|iiis.ulores que utilizem múltiplas fontes de informação,
toie.iiu.im um banco de dados ao longo da investigação e
Hli m uma cadeia de evidências relevantes durante o trabalho
ili' lampo. Os instmmentos utilizados nesse tipo de aborda-
^rm •.,in dados secundários visando à contextualização do
ma, documentos escritos e material primário recolhido
l»H( I impo, por meio de entrevistas, gmpos focais e observa­
d o t i>i aiiibutos que se esperam de um pesquisador que tra-
balha com estudo de caso são as mesmas requeridas de qual­
quer um que atua com abordagens qualitativas: habilidade para
fazer perguntas, ouvir e observar, ser flexível e ao mesmo tem­
po firme nos parâmetros propositivos de sua investigação.
Muitas críticas metodológicas têm sido feitas aos estudos
de caso, sobretudo à sua falta de rigor, à existência de muitos
vieses do investigador e à pouca probabilidade de generaliza­
ção dos resultados, se a investigação não for corretamente pre­
parada e conduzida. Por causa disso, autores como Bonoma
(1985) o consideram mais adequado a estudos exploratórios
e, como Yin (1989), dizem que ele é o irmão mais fraco entre
as abordagens das ciências sociais. No entanto, é possível, com
um adequado e fundamentado projeto, com bom treinamento
em pesquisa de campo e permanente balizamento entre as
proposições teóricas delineadas inicialmente e os achados
empíricos, fazer bom uso da proposta de Estudo de Caso.

Hermenêutica-dialética

Essa combinação entre hermenêutica e dialética foi pri­


meiramente descrita por Habermas (1987a), por entender que,
do ponto de vista do pensamento, ela faz a síntese dos pro­
cessos compreensivos e críticos.
Hermenêutica, segundo Gadamer f 19991, é a busca de com­
preensão de sentido que se dá na cormmicação entre seres
humanos, tendo na linjguagem se.u.mÍ*^eo cect^^ Assim como
todas as outras formas de abordagem aqui citadas, a herme­
nêutica trabalha çqm a çqnmnicaçãq da vida.iX)lidiana e do
senso com im , dentro dos seguintes pressupostos: o ser hu­
mano como ser histórico e finito complementa-se por meio
da comunicação; sua linguagem também é limitada, ocupan
do um ponto no tempo e no espaço; por isso, é preciso com
preender também seu contexto e sua cultura.
A hermenêutica se fundamenta em dois importantes prin
cípios: experiência cultural traz os rgsultadosjÍQ£_çon

i
sensos que se convertem em estruturas, vivências, significa­
dos compartilhados e símbolos.jO mundo da cotidianidade
é o horizonte e o parâmetro do processo de entendimento
(Gadamer, 1999); (b) por outro lado, pem tudo na vida social
é transparente e inteligível e nem a linguagem é uma estrutura
completa da vida social. Por isso é importante apoiar-se nas
análises de contexto e da práxis (Habermas, 1987).
Do ponto de vista metodológico, a abordagem herme­
nêutica se encaminha dentro dos parâmetros seguintes: (a)
busca esclarecer o contexto dos diferentes atores e das pro-
postas que produzem; (b) acredita que existe um teor de ra-
( ionalidade e de responsabilidade nas diferentes linguagens
servem como veículo de comunicação; (c) coloca os fa-
los, os relatos e as observações no contexto dos atores; (ã)
.issiime seu papel de julgar e tomar posição sobre o que ouve,
observa e compartilha; e (e) produz um relato dos fatos em
t|iie os diferentes atores se sintam contemplados.
AAialética é a ciência e a arte do diálogo, da pergunta e da
loMimvérsia. Diferentemente da hermenêutica, ela busca nos
l.iios, na linguagem, nos símbolos e na cultura, os núcleos
ol)S( nms e contraditórios para realizar uma crítica informada
Noliic des. Ao falar da articulação promissora entre dialética e
lifinienêutica, Habermas diz que "a mesma razão que com-
l'if.-nde, esclarece e reúne, também contesta, dissocia e criti-
•.1 (1987, p. 20), pois há tanta intransparência na linguagem
iiiiiii) na vida real, na qual poder e relações de produção
• contraditoriamente pessoas, grupos e classes. Lembra
II .111(01, a prõpria linguagem é um instmmento de domina-
(.aii, nece.ssitando, por isso, ser desmitificada e tornar-se obje-
(ii ilr idlexão: tanto a que é comunicada pelos informantes
(iiimi a t|ue é utilizada pelos investigadores.
1 *n iiQiUo de vista m etod ológico, a abordagem dialética
I '" •l’i.i I l iar instrum entos de crítica e de apreensão das con-
Mititli.iii s na linguagem ; com p reen d er que a_análise dos s i ^ i -
lliiiilo.. ,1 partir do ch ão das práticas sociais; vãTõrizar os p ro ­
cessos e as dinâmicas de criação de consensos e contradições
no interior dos quais a própria oposição entre o pesquisador
e seus interlocutores se colocam, e ressaltar o condicionamento
histórico das falas, relações e ações (Minayo, 2002).
Na sua articulação, a hermenêutica-dialética constitui um
importante caminho do pensamento para fundamentar pes­
quisas qualitativas, cobrindo também uma quase ausência de
pesquisas de fundamentação marxista que levem em conta a
subjetividade. Essa combinação de estratégias não cria nenhu­
ma técnica específica, pois o que Habermas (1987) deseja va­
lorizar são os elementos teóricos que possam dar parâmetros
aos investigadores. Do ponto de vista da operacionalização,
esse autor, ao mesmo tempo, valoriza a fenomenologia, o in-
teracionismo simbólico e a etnometodologia como caminhos
importantes para o trabalho de campo de cunho compreensi­
vo (Habermas, 1987), mas diferencia o que propõe com a
hermenêutica-dialética em relação a essas teorias e abordagens,
consideradas por ele como descontextualizadas e extremamen­
te presas à produção da linguagem em si.
Daí que a proposta de Habermas passa pela construção
de um movimento interativo entre a hermenêutica e a dialéti­
ca, valorizando as complementaridades e oposições entre as
duas: (a) ambas trazem em seu núcleo a idéia fecunda dos
condicionamentos históricos da linguagem, das relações e das
práticas; (b) ambas partem do pressuposto de que não há
observador imparcial; (c) ambas questionam o tecnicismo em
favor do processo intersubjetivo de compreensão e de crítica;
(d) ambas ultrapassam as tarefas de serem simples ferramen­
tas para o pensamento e (e) ambas estão referidas à práxis
estruturada pela tradição, pela linguagem, pelo poder e pelo
trabalho. No entanto, enquanto a hermenêutica enfatiza o
significado do que é consensual, da mediação, do acordo e
da unidade de sentido, a dialética se orienta para a diferença,
o contraste, o dissenso, a mptura de sentido e, portanto, para
a crítica (Minayo, 2002).
Encerrando a discussão sobre correntes de pensamento e
vários tipos de abordagem compreensiva, repito que minha
postura neste trabalho é de olhar a ciência com seus paradig­
mas, suas teorias, métodos e técnicas como constmções so­
ciais, com todas as ousadias, resistências, tentativas e erros
próprios das instituições humanas. Por considerar que não
há ciência em geral, entendo que existem práticas científicas
diferenciadas, desigualmente desenvolvidas e todas tendo,
como substrato, movimentos que envolvem sociedades e vi­
sões sociais de mundo diversas.
Tento, portanto, uma aproximação dos marcos referen­
ciais que dentro das Ciências Sociais ou de fora delas vêm
influenciando com maior vigor as produções teóricas e as prá­
ticas no campo da saúde. O pensamento sistêmico complexo
aqui foi posto ainda como desafio. Seria reiterativo dizer que
a forma esquemática como foram abordadas as várias pos­
sibilidades de apreender a realidade se deve ao escopo do li­
vro. Qualquer estudioso tem, na bibliografia, ao final, vasto
material de consulta capaz de guiá-lo em busca de aprofun­
damento.

L
Parte III
CONSTRUÇÃO DO PROJETO DE PESQUISA:
FASE EXPLORATÓRIA

A F AS E EXPLORATÓRIA DE UMA INVESTIGAÇÃO é tãO


importante que ela em si pode ser considerada uma Pesquisa
lAploratória. Compreende desde a etapa de construção do
projeto até os procedimentos e testes para entrada em cam­
po. Contém a escolha do tópico de investigação, a delimita­
ção do problema, a definição do objeto e dos objetivos, a
(onstrução de hipóteses ou pressupostos e do marco teórico
(onceitual, a elaboração dos instrumentos de coleta de dados
e da exploração do campo.
Apresento, inicialmente as balizas filosóficas dentro das
(jii.iis se processa o caminho de elaboração científica. A pri­
meira delas é o caráter aproximado do conhecimento que se
iniistrói a partir de outros conhecimentos sobre os quais se
exercita a apreensão, a compreensão, a crítica e a dúvida, em­
iti na isso não se dê de forma linear e nem somativa. Limoeiro
t .mioso (1977) esclarece muito bem esse movimento de in-
Mxligação, usando a imagem do feixe de luz:

O conhecimento se faz à custa de muitas tentativas e


da incidência de muitos feixes de luz, multiplicando os
pontos de vista diferentes. A incidência de um único feixe
de luz não é suficiente para iluminar um objeto. O resul­
tado dessa experiência só pode ser incompleto e imperfei­
to, dependendo da perspectiva em que a luz é irradiada e
da sua intensidade. A incidência, a partir de outros pon­
tos de vista e de outras intensidades luminosas, vai dan­
do formas mais definidas ao objeto, vai construindo um
objeto que lhe é próprio. A utilização de outras fontes
luminosas poderá formar um objeto inteiramente diver­
so, ou indicar dimensões inteiramente novas ao objeto
(Limoeiro Cardoso, 1977, p. 27).

O caráter aproximado do saber intelectual é um tema rele­


vante da epistemologia, unindo a visão dos mais diferentes
autores como Lênin (1965), segundo o qual, ao refletir a rea­
lidade, o conhecimento oferece sempre uma imagem mais gros­
seira que o real, tanto no plano do pensamento como dos
sentimentos (Lênin, 1965). Ou de Bachelard (1978) que de­
dica uma obra inteira ao que denomina "La connaissance ap-
prochée". Por sua vez, as modernas teorias da complexidade
dão ênfase à intersubjetividade presente na construção de to­
das as modalidades do processo de conhecimento (Matura-
na, 1987; 1997).
A segunda baliza diz respeito ao caráter de inacessibilida­
de e de incontrolabilidade do objeto. A inatingibilidade do
objeto se explica pelo fato de que as idéias que se fazem sobre
os fatos são sempre mediadas pelo sujeito (sua história, for­
mação, idéias) e portanto são imprecisas, parciais e mais im­
perfeitas que a totalidade em observação. O processo de pes­
quisa é, em conseqüência, um movimento de definição e
redefinição do objeto durante todas as suas etapas. De um
lado, porque seu conhecimento é fruto de um exercício de
cooperação em que investigadores trabalham sohre as desco­
bertas uns dos outros, aceitando-as como patamares para in­
vestimentos seguintes ou criticando-as e formulando novas
perguntas; de outro, porque cada teoria constrói o objeto se­
gundo seus pressupostos. Nesse sentido, o objeto é sempre
uma "representação" sob determinado ponto de vista, em que
o investigador, a seu modo, busca reproduzir o real.
A terceira baliza refere-se à vinculação entre pensamento e
ação. Ou seja, nada pode ser intelectualmente um problema,
se não tiver sido, em primeira instância, um problema da vida
prática, pelo menos no caso das Ciências Sociais. Isso quer
dizer que a escolha de um tema não emerge espontaneamen­
te, da mesma forma que o conhecimento não é espontâneo.
Surge de interesses e circunstâncias socialmente condiciona­
dos, fmtos de determinada inserção no real, nele encontran­
do suas razões e seus objetivos. Esse é um ponto de vista que
reúne tanto o racionalismo aberto de Bachelard (1978) como
a dialética marxista de Lukács (1974) as teorias críticas da Es­
cola de Frankfurt (Habermas, 1980; 1988) e o perspectivismo
de Mannheim (1968, 1974a; 1974b).
O quarto parâmetro enfatiza o caráter originariamente in­
teressado do conhecimento, ao mesmo tempo que ressalta
sua relativa autonomia. O olhar sohre o objeto está condicio­
nado historicamente pela posição social do cientista e pelas
correntes de pensamento em conflito na sociedade (Lowy,
1985, p. 15). Porém, existe uma "autonomia relativa" das ciên-
( ias sociais que se manifesta numa certa continuidade, evolu­
ç ã o e crítica no interior da própria ciência, fazendo parte da

lógica interna da pesquisa científica enquanto prática, teoria


geral e disciplinar, visando ã descoberta da verdade (Lowy,
1985). Mannheim (1968; 1974a) fala dessa questão em suas
ledexões epistemológicas, reafirmando estreita relação entre
liileresses específicos de classe e de status, teorias, métodos e
pieocupações sociológicas. No entanto, diz, ele, é necessário
ailmilir que, após uma área científica ter descoberto e divulga-
ili I .ilgum fato histórico ou sociológico, todos os gmpos, quais-
i|iin .sejam seus interesses, não só acabam por levar em consi-
di i.içao as descobertas publicadas como de alguma forma as
liitiHporam ao seu sistema de interpretação do mundo. Nes­
se sentido, as correntes intelectuais diversas não se desenvol­
vem isoladamente e, embora freqüentemente cooncorram en­
tre si, também são mutuamente afetadas e se enriquecem (Man-
nheim, 1974a).
Dentro dos princípios descritos, passo a discutir os ele­
mentos que compõem a fase exploratória de uma investiga­
ção e todas as suas etapas subseqüentes. (1) Analiso alguns
conceitos fundamentais usados na prática das Ciências So­
ciais para a construção do quadro teórico da pesquisa. (2) Em
seguida, demonstro que a constmção do objeto é labor teóri­
co que requer esforço prático de construção de informação,
crítica e experiência. (3) Proponho, fmalmente, uma discus­
são sobre o instmmento de abordagem dos dados empíricos
e de entrada exploratória no campo da investigação. Ressalto
uma discussão sobre o tema da Amostragem Qualitativa que
costuma ser um dos pontos de maior impasse para o investi­
gador que trabalha em pesquisa de cunho compreensivo.
Capítulo 6
CONCEITOS PARA OPERACIONALIZAÇÃO
DA PESQUISA

B USCAREl AQUI DEFINIR ALGUNS TERMOS ap rop riad os


c necessários ao desen volvim ento de qualquer investigação:
teoria, co n ceito , n o ção , categoria, hipótese e pressupostos.

Teoria

Denomino teoria a um conjunto coerente de proposições


»|iie inter-relaciona princípios, definições, teses e hipóteses e
s«Tve para dar organização lógica à interpretação da realidade
empírica. Toda a teoria é um discurso científico que se consti­
tui como uma grade através da qual o seu formulador analisa
um fenômeno ou um processo. Uma teoria reúne pressupos­
tos (• axiomas (uma afirmação cuja verdade é evidente e uni-
VCls.ilmente aceita em determinada disciplina) e proposições
logit a mente inter-relacionadas e empiricamente verificáveis. As
pioposições de uma teoria são consideradas leis ou teses se já
loum suficientemente comprovadas, e hipóteses, se constituem
illuila problema de investigação. Na realidade, tanto leis como
......... cses devem estar sempre sujeitas a problematização e a
•«'loiimilação pois, como lembra Bachelard (1978), nada im­
pede tanto o avanço científico como verdades estabelecidas e
certezas absolutas. A essência de uma teoria consiste na sua
potencialidade de explicar uma gama ampla de fenômenos
por meio de um esquema conceituai ao mesmo tempo abran­
gente e sintético.
Todas as teorias são historicamente constmídas e expres­
sam interesses porque representam o real a partir de determi­
nadas escolhas (Habermas, 1980). Elas são, por isso, formas
de conhecimento e de ocultamento da verdade, na medida
em que projetam luz sobre determinados aspectos da realida­
de e sombreiam outros, evidenciando limitações lógicas e so­
ciológicas (Lukács, 1967; Lowy, 1985).
A relação dinâmica entre teoria e empiria se expressa no
fato de que a realidade informa a teoria, que, por sua vez, a
antecede, permite percebê-la, formulá-la, dar conta dela, fa-
zendo-a distinta, num processo de distanciamento, aproxima­
ção e reorganização. A teoria domina a constmção do conheci­
mento por meio de conceitos gerais considerados verdadeiros.
Seu aprofundamento, de forma crítica, permite desvendar di­
mensões não evidentes da realidade, mas o acesso a uma teo­
ria ajuda apenas quando o investigador faz perguntas perti­
nentes e inteligentes sobre a realidade que pesquisa.

Conceitos

Toda construção teórica é um sistema cujas vigas mestras


estão representadas por conceitos. Conceitos são unidades de
significação que definem a forma e o conteúdo de uma teo­
ria. Podem ser considerados como operações mentais que re­
fletem pontos de vista verdadeiros e construídos em relação
dinâmica com a realidade (sempre dentro de um quadro teó­
rico determinado). Os conceitos podem ser considerados um
caminho de ordenação teórica dos fatos, relações e processos
sociais, devendo ser, pelo confronto com o campo empírico,
permanentemente recriados e reconstruídos.
Todo conceito é historicamente construído e para se en­
tender seu alcance ou para reformulá-los, nas ciências sociais,
se preconiza que sejam analisados em sua origem e percurso,
de forma crítica. A própria hierarquização dos conceitos, numa
determinada teoria, revela a que aspectos da realidade o teóri­
co dá maior atenção. Portanto, na formulação de uma pes­
quisa, não é o suficiente compreendê-los como operações
lógicas e se estão corretamente concatenados. É preciso, além
disso, entender o sentido histórico e sociológico de sua defi­
nição e das combinações que produzem.

Noções

Faz parte do jargão da pesquisa o termo noção, que ocupa


um lugar inferior ao termo conceito, para definir uma idéia, um
lenômeno, um processo menos elaborado. Etimologicamen-
le a palavra conceito vem de concepção, isto é, está vinculada à
subjetividade referindo-se a algo humanamente construído
para explicar fenômenos e processos. No entanto, como já
loi dito, o termo conceito remete a uma refinada elaboração
histórica e teórica, por isso diz respeito aos pilares do discur­
so científico. Ao contrário, noções dizem respeito aos elemen­
tos de uma teoria que ainda não possuem clareza suficiente
p.iia alcançar o status de conceito e são usados como "ima-
gfiis" para explicações aproximadas do real. No entanto, as
noi,oes também representam o esforço do pensamento para
(li s( lever determinadas experiências e, por isso, ocupam lugar
IIf importância no processo de investigação, uma vez que todo
s.ihn está baseado em pré-conhecimento, todo fato e todo
4 '' il.ido já são interpretações: "Se não quisermos que as catego-
-í.-
II.IS .malíticas que adotamos permaneçam estranhas ao obje-
im ', iliz Demo, "devemos aceitar a existência de noções pré-
vl.is" (Demo, 1981, p. 18).
Categorias

Categorias são conceitos classificatórios. Constituem-se


como terrrms carregados de significação,_g^or meio dos quais a
(realidade é pensada de forma hierar q u iz a ^ Todo ser huma
no classifica a sociedade e os fenômenos que vivência. O cien­
tista o faz de maneira diferenciada: cria sistemas de categorias
buscando encontrar unidade na diversidade e produzir expli­
cações e generalizações. Na visão positiva, as categorias são
consideradas "rubricas ou classes que reúnem um grupo de
elementos sob um título genérico, agmpamento esse, efetua­
do em razão dos caracteres comuns desses elementos" (Bar-
din, 1979, p. 117).
Na Introdução à Crítica da Economia Política Marx (1973),
faz uso por diversas vezes do termo categoria para indicar con­
ceitos relevantes e carregados de sentido que permitem ex­
pressar os aspectos fundamentais das relações dos seres hu-
manos entre si e com ITnatureza. Dentro do pensamento
dialético, assim como os conceitos e as noções, as categorias
não são entidades, são construçõesJlistóric^s que atravessam
o desenvolvimento do conhecimento e da prática social. Por
exemplo,(trabaíh ^ la s s e social, família, consciência de classe,
saúde, doença, idade, dentre outras, são categorias que ex­
pressam a unidade das relações entre a dinâmica da história e
o pensamento lógico.
Para a finalidade da pesquisa social, utilizo aqui uma das;
sificacão do conceito de categoria separando Categorias Analí-
ticas, Categorias Operacionais e Categorias Empíricas. Considero
Categorias anaíític^ as que retêm, historicamente, as relações
sociais fundamentais, servindo como ^ i a s teóricos e balizas
para o conhecimento de um objeEíí nos seus aspectos gerais.
Elas comportam vários graus de generalização e de aproxima­
ção. Por exemplo, hoje um investigador social não pode dis
pensar em seus estudos as categorias de elevada abstração e
de alto poder explicativo como classe social, gênero, etnia.
faixa etária. E outros termos como estado civil, religião, parti­
cipação social e participação nolftica
Ao contrário,^categorias operacionai^ são construídas com
finalidade de aproximação ao objeto de pesquisa (na sua fase
empíricãj, devendo ser apropriadas ou constmídas com a fi­
nalidade de permitir a observação e o trabalho de campo. Por
isso, fazem parte da elaboração específica de cada projeto de
investigação e devem ser claras, bem definidas e, como o pró­
prio nome indica, operativas.
Quando são construídas a posteriori, a partir da compreen­
são do ponto de vista dos atores sociais, possibilitando des-
vendar relações específicas do gmpo em questão, são chama-
'Çategorias empírica^ Categorias empíricas constituem-se em
classificações com dupla forma de elaboração: são, antes de
expressões classificatórias que os atores sociais de de-
lerminada realidade constroem e lhes permitem dar sentido a
sua v|da, suas relações e suas aspirações. Portanto, emanam
d.i realidade. Por outro lado, são elaborações do investigador,
e sua sensibilidade e acuidade que lhe permitem compreen­
de Ias e valorizá-las, à medida que vai desvendando a lógica
mierna do grupo (objeto) pesquisado e descobre essas ex-
picssões, as exploram e sobre elas criam constmtos de segun-
d.i ordem. Geralmente, quando um pesquisador consegue
apieciider e compreender as categorias empíricas de classifica-
t. io ila realidade do grupo investigado, perceberá que elas são
•t.iuiiailas de sentido e chaves para compreensão teórica da
u .ilid.ule em sua especificidade histórica e em sua diferencia-
t,.io iiiierna.
Hipóteses

I >c(iuo as hipóteses como afirmações provisórias a respeito


ili determinado fenômeno em estudo. São proposições a se-
Mm lesi.ulas empiricamente e depois confirmadas ou rejeita-
llm.i hipótese científica deriva de um sistema teórico e
dos resultados de estudos anteriores e portanto fazem parte
ou são deduzidas das teorias, mas também podem surgir da
observação e da experiência, no interjogo sempre inacabado
que r daciona teoria e prática.
Goode & Hatt (1979) propõem algumas condições para a
formulação de hipóteses em ciências sociais: (a) que sejam
conceitualmente claras, parcimoniosas e com poder explicati­
vo, chegando a definir sua operacionalidade; (b) que tenham
referências empíricas, isto é, que estejam relacionadas com os
fenômenos concretos que se pretende estudar; (c) que este­
jam relacionadas com as técnicas disponíveis, isto é, possibili­
tem a apreensão empírica dos aspectos que se quer investigar.
Da mesma forma que os termos problematizados ante­
riormente, as Hipóteses têm sua historia, fazem parte do qua­
dro de preocupações teóricas e práticas do investigador quan­
do se pergunta sobre os aspectos da realidade que pretende
investigar.
O termo hipótese entrou na história da ciência pelas mãos
das ciências naturais e possui uma conotação positivista, uma
vez que proveio da crença de que existe conhecimento objeti­
vo e de que essa objetividade se concretiza em provas estatís-
tico-matemáticas. Todas as correntes de pensamento das ciên­
cias sociais acolheram o termo e seu sentido dentro de suas
elaborações conceituais, mas cada uma delas o reinterpreta de
acordo com seu discurso teórico. Para efeitos deste trabalho,
abordarei o significado dado ao termo pelas correntes com-
preensivistas.
Na abordagem qualitativa, o termo hipótese é utilizado,
sobretudo, quando se trata de aprofundamento de estudos
já realizados ou de cooperação com análises quantitativas.
Costuma-se usar, também, o termo pressupostos quando o in­
vestigador que usa a abordagem compreensiva se refere à ela­
boração de parâmetros básicos que permitem encaminhar a
investigação empírica qualitativa. O termo Pressupostos pode­
ría ser considerado como um conceito mais brando, substi
tuindo o termo Hipótese que possui conotações muito for­
mais e, por vezes, inadequadas ao objeto de estudo qualitati­
vo. Na verdade, os dois termos, pressupostos e hipóteses, são
usados, dependendo do nível de avanço do conhecimento
em relação ao tema da pesquisa. Nos estudos exploratórios
cabe melhor o termo pressuposto. Nos que tratam de continui­
dade e avanço de investigação é adequado usar hipótese.
É importante, cada vez mais, ultrapassar o debate inútil
sobre a cientificidade das ciências sociais, exigindo que, para
que sejam científicas e válidas, sempre apresentem dados quan-
tificáveis. Os estudos qualitativos também possibilitam cons­
truir teorias, reformulá-las, re-focalizá-las ou clarificá-las, como
já argumentei por diversas vezes, anteriormente. A natureza
mais aberta e interativa de um trabalho qualitativo que envol­
ve observação participante, permite que o investigador com-
bine o afazer de confirmar ou desconstruir hipóteses com as
vantagens de uma abordagem não estruturada. Levantando
interrogações que vão sendo discutidas durante o processo
de trabalho de campo, o investigador elimina questões irrele­
vantes, dá ênfase a determinados aspectos que surgem empi-
iii ainente e reformula suas hipóteses ou pressupostos iniciais
e provisórios.
As observações sobre a questão das hipóteses na aborda-
H< in i|ualitativa remetem a um clássico da antropologia, Mali-
mtwsUi. De acordo com a orientação desse investigador semi-
n-il paia a metodologia antropológica, o pesquisador tem de
.'smerar na constmção, ampliação, articulação e aprofun-
d.inifiito de seu quadro teórico. É esse referencial que lhe
pniniiiiá estabelecer perguntas fundamentais para compre-
•n•..l^ da realidade empírica. Porém, é fundamental que con-
tt ivc abertura e flexibilidade capazes de, apesar da teoria, des-
"-bm as particularidades da realidade empírica (Malinowski,
l'*n I ) ( :ertamente essas observações situam o trabalho cien-
lllli II bem acima de uma postura técnica de comprovação ou
ItilIniMçao de hipóteses.
Capítulo 7
PROJETO DE INVESTIGAÇÃO

G e r a l m e n t e , q u a n d o o i n v e s t i g a d o r se propõe a
iniciar sua atividade de pesquisa, situa-se num quadro de in­
dagações teóricas e operacionais.

Área de interesse

Geralmente, quando escolhe um tema, o pesquisador co­


meça por delimitar sua área de interesse que pode ser definida
como um campo de práticas e teorias em que as questões que
lhe incitam a curiosidade científica se concentram. Por exem­
plo são áreas de interesse em diferentes dimensões de gene­
ralidade- Saúde do Trabalhador, Políticas Públicas, Saúde e
Cultura, Educação e Saúde, Violência e Saúde, num sentido
bem amplo. Em termos mais restritos o são; Violência contra
a Mulher; Avaliação em Saúde; Controle Social em Saúde; por
exemplo. No interior dessa Área de Interesse, que é o seio e o
continente de um projeto específico, situa-se o Objeto ou o
também chamado Problema de Investigação.

Objeto de Investigação

O Objeto ou o Problema é uma parte, um fragmento, um


recorte de determinada totalidade que, para ser estudada em
1fli
sua significação, deve conter relações essenciais e expressar
especificidade. Quando se fala em delimitar um objeto, o in­
vestigador deve entender a expressão não como uma disseca­
ção do real, mas como a possibilidade de projetar seu olhar
sobre determinado fenômeno que, embora analisável em suas
dimensões, faz parte de um sistema ou de uma realidade muito
mais abrangente.
Do ponto de vista prático, o Objeto é geralmente colocado
em forma de pergunta — é uma questão — e se vincula a
descobertas anteriores e a indagações provenientes de múlti­
plos interesses (de ordem pessoal, lógica ou sociológica). A
clareza e a precisão nessa escolha decorre de um esforço para
estabelecer relações entre marcos conceituais amplos, abran­
gentes e, ao mesmo tempo, específicos e voltados para o pro­
blema, articulando-os com a prática. O real está sempre colo­
cado como premissa, embora operacionalmente se parta do
abstrato para o concreto. Operacionalmente, eu diria que a
definição clara do objeto deve sempre preceder ao esforço
discursivo, de tal forma que, na primeira linha de um projeto,
qualquer leitor possa identificá-lo e compreendê-lo. Sem a
menor dúvida, o uso excessivo de palavras ou de explicações
esconde dificuldades do investigador em colocar para si mes­
mo o que pretende estudar concretamente. Dialeticamente,
porém, todas as etapas de um projeto constituem uma defi­
nição e redefinição do objeto que só será plenamente defini­
do em todas as suas determinações ao final do processo. É a
essa dinâmica que Marx (1973) atribui à expressão "concreto
pensado" (Marx, 1973, p. 79).

Revisão bibliográfica

A primeira tarefa do investigador, uma vez definido seu


nhjeto, é proceder a uma ampla pesquisa bibliográfica, capaz
de projetar luz e permitir melhor ordenação e compreensão
il.i realidade empírica. A pesquisa bibliográfica pode ter vários
níveis de aprofundamento, mas deve abranger, minimamen­
te, os estudos clássicos sobre o objeto em questão (ou sobre
os termos de sua explicitação) e os estudos mais atualizados
sobre o assunto. O nível de abrangência dessa revisão precisa
ficar escrito no desenho metodológico da investigação. Esse
labor inicial parte de algumas precondições:
(a) que a bibliografia seja suficientemente ampla para tra­
çar a moldura dentro da qual o objeto se situa: a busca de
vários pontos de vista, dos diferentes ângulos do problema
que permitam estabelecer definições, conexões e mediações,
demonstrando o "estado da arte'7 Veja-se o exemplo de um
levantamento sobre Concepções de Saúde-Doença. A com­
preensão desse assunto implica uma pesquisa bibliográfica que
inclua: o perfil histórico e sociológico do segmento específico
a ser estudado e sua inserção nas relações sociais de produ­
ção; suas condições de vida e de trabalho, consumo, acesso a
bens e serviços e em especial aos que se referem à sua saúde; o
conceito historicamente constmído de saúde na sociedade em
estudo, e as políticas do setor; o conceito de representação
social que torna operacional a investigação e a análise.
Ora, o desenho desse quadro inicial exige o domínio ante­
rior de algumas categorias analíticas fundamentais em diferen­
tes níveis de abstração como Modo de Produção; Formação
Social; Cidadania; Classes; Gênero; Etnias; Consciência Social;
Condições, Situações e Estilo de Vida, para se falar em algumas.
Porém, essas categorias não necessitam estar presentes no dis­
curso teórico que organiza o projeto de pesquisa. Dele devem
constar as definições que se fazem necessárias para fazer surgir

‘ Atualmente, as facilidades da internet e das bases de dados, algumas permitindo


até mesmo cópias completas de artigos científicos retiram qualquer desculpa de
empirismo por parte dos investigadores. Esse empirismo, que infelizmente existe, leva
o pesquisador a "inventar a roda" quando tantos antes dele já se debruçaram sobre o
tema em questão. É óbvio que um investigador não encontrará nas bases de dados o
seu "objeto", pois, se assim fosse, não justificaria estudá-lo. Espera-se do investigadoi
algum grau de originalidade, seja do ponto de vista empírico ou comparativo, sej.i
questionando verdades estabelecidas.
do "caos inicial" o objeto específico com seus contornos gerais.
Uma dica muito importante é conceituar cada termo utilizado
na frase que define o objeto ou constitui o título do projeto.
Por exemplo:Objeto de estudo — Relação entre dor crônica e vio­
lência conjugal em mulheres que freqüentam clínica de dor. Cada
uma das expressões: dor crônica; violência conjugal; violência con­
tra a mulher; clínica de dor devem sair das idéias de senso co­
mum que se tem sobre elas e passar a ser teoricamente tratadas.
(b) O segundo aspecto a ser observado em relação à bi­
bliografia diz respeito à sua apropriação. É necessário abordar
o texto, primeiro num exercício compreensivo, buscando en­
tender o ponto de vida do autor para, em seguida, realizar,
sobre ele, uma abordagem crítica. Na pesquisa bibliográfica se
deve destacar as teses, as categorias centrais, os conceitos e as
noções e como tudo isso se concatena no discurso do autor.
E preciso, também, destacar os pressupostos teóricos e as ra­
zões práticas que subjazem aos trabalhos consultados. É im-
jiortante que o investigador não se esqueça de que toda teo­
ria é um discurso estruturado em proposições baseadas em
leses, hipóteses, conceitos, categorias e noções. O exercício
liennenêutico e crítico para compreensão do pensamento dos
vai ios autores consultados é fundamental para o esclarecimen-
lo d<i posição a ser adotada pelo investigador que se prepara
pai.i realizar a abordagem empírica. No entanto, após o estu­
do dos múltiplos textos, o investigador deve construir seu
piopi io marco teórico. O marco teórico de uma pesquisa não
sustenta num discurso composto pelo desfile dos autores
t oiisnltados. Ao contrário, deve constituir-se na construção
• lima síntese na qual o investigador expressa suas próprias
tdiáas, pressupostos e hipóteses.
() lerceiro ponto relativo ao material de consulta tem um
t .ii.iici o|ieracional, também necessário no processo de obje-
llv.iç.in, I rata-se da realização do fichamento, operação, por
iin lii da qnal todas as leituras vão sendo cuidadosamente clas-
•llliadas e ordenadas.
. ♦ Fichamento bibliográfico: cada livro, artigo, capitulo de
livro, documento, recorte de jornal, ou seja, todo o matéria
pesquisado vai recebendo uma ficha própria (dentro das re­
gras dr fichamento bibliográfico), em ordem alfabética por
nome do autor ou por assunto, conforme a opção do mvesti-

♦ Fichamento por assunto: as matérias lidas são resumidas e


recebem anotações críticas e criativas do leitor. É importante,
nesse tipo de operação, que o investigador destaque os prin­
cipais conceitos, categorias, teses e hipóteses utilizados pe o
autor no seu trabalho;
♦ Fichamento por temas: reúne anotações e resumos a res­
peito de questões especificamente pertinentes ao contorno
do objeto de estudo;
♦ Fichamento de citações: algumas vezes existe alguma frase
muito forte do autor que está sendo analisado e, por isso,
vale a pena transcrevê-la, tomando-se o devido cuidado de
indicar páginas, data de publicação e contexto da citaçao. Essa
modalidade de organização pode ser incluída na dassificaçao
por temas ou por assuntos.

Organização do projeto de pesquisa

Na construção de seu próprio caminho, passando pelas


idéias iniciais que o induziram à escolha bibliográfica, a leitu­
ra dos textos e as indagações referentes à realidade empírica
(que aparece sempre como premissa), o investigador precisa
organizar seu discurso teórico que pode apresentar-se da se­
guinte forma:
♦ Definição do Objeto: colocada na primeira linha do seu
documento, deixando claro, para si e para os leitores, sua pro­
posta ou sua pergunta investigativa logo ao abrir seu projeto.
Se é bem verdade que até o final de uma pesquisa o investiga­
dor estará definindo e redefinindo seu tema, dando-lhe clare­
za e precisão, a apresentação inicial da proposta é crucial para
ele próprio orientar-se, para a construção da crítica interparçg
e para avaliação dos financiadores.
♦ Justificativa: vem logo a seguir, devendo conter a descri,
ção e, se possível, até a história dos motivos vivenciais e teóri­
cos que impulsionaram a escolha da questão ou objeto
pesquisa.
♦ Objetivos: Em cada projeto, o pesquisador precisa deixar
claro, para si mesmo e para os leitores e financiadores, o obje­
tivo geral que pretende alcançar com sua investigação, o
certamente, deve estar em consonância com a definição çJq
objeto. Desdobrando o escopo principal, devem constar og
objetivos específicos, que podem ser entendidos como os des­
dobramentos ou etapas que o investigador pretende reali­
zar. Os objetivos específicos devem ser combinados com as
hipóteses e pressupostos já delineados pelo investigador.
♦ Metas: as metas, item cada vez mais exigido nos editais
de pesquisa da área da saúde, consistem em produtos quanti-
ficáveis ou qualitativos esperados como colaboração de rele­
vância social dos projetos de investigação. Geralmente as me­
las de um projeto de saúde dizem respeito à formação de
pessoal, elaboração de material técnico e instmcional, partici­
pação em eventos, publicação de livros, artigos e organização
tie seminários, dentre outros.
» Marco teórico-conceitual: estabelece o discurso argumen-
i.itivo do pesquisador, apresentando os principais conceitos,
( alegorias e noções com as quais vai trabalhar, fazendo um de-
bale com os autores sohre os quais fez uma revisão hibliográfi-
(.1, mostrando o estado do conhecimento, provocando uma
( iiiica do que já foi produzido. Ao final da discussão concei-
(iial, o pesquisador deve colocar suas hipóteses de trabalho e,
iio caso de investigações etnográficas e exploratórias, os pres-
Hiiposlos orientadores do seu "caminho do pensamento .
» Marco metodológico: fundamenta teoricamente o cami­
nho do pensamento" seguido pelo investigador, ou seja, sua
. vollia metodológica, que deve corresponder à necessidade
de conhecimento do objeto. A partir daí define, nessa ordem:
o método ou os métodos, as estratégias, as técnicas e os pro­
cedimentos que usará. A proposta metodológica deve con-
templ ir e detalhar todas as etapas de operacionalização da
pesquisa.
♦ Cronograma da pescfuisa: contendo a seqüência de ações
e a articulação de todos os passos no tempo delimitado para
a investigação, visando a dar coerência ao processo como um
todo e a assegurar a sua viabilidade.
♦ Orçamento: constitui-se na atribuição de custos a cada
etapa ou operação da investigação. O exercício de valorar cada
item é sobretudo importante para a concorrência do investi­
gador em editais cada vez mais freqüentes para se conseguir
financiar pesquisas.
♦ Referências: uma das mudanças atuais do campo da pes­
quisa é a utilização do termo referências e não a expressão refe­
rências bibliográficas. Isso se deve ao fato de também formas
virtuais de acesso ao conhecimento terem já se consagrado na
área científica. O formato oficial das referências no Brasil é o
da ABNT. Porém, há diferentes modos de referenciar que pre­
cisam ser conhecidos pelo pesquisador antes de enviar seu
projeto, no caso de concorrência em editais. Para a área da
saúde, em geral se usam as chamadas Normas de Vancouver que
podem ser encontradas na internet e em todas as bases de
dados em que existem periódicos do setor.
Capítulo 8
CONSTRUÇÃO DOS INSTRUMENTOS
E EXPLORAÇÃO DE CAMPO

Instrumentos de pesquisa qualitativa

OS INSTRUMENTOS DE TRABALHO DE CAMPO na pes-


(|iiisa qualitativa visam a fazer mediação entre os marcos teó-
rico-metodológicos e a realidade empírica. São eles: roteiro de
entrevista, roteiro para observação participante e roteiro para
di.scussão de gmpos focais.
Roteiro de entrevista — Por roteiro se entende uma lista
de temas que desdobram os indicadores qualitativos de uma
investigação. Essa lista deve ter, como substrato, um conjun-
in de conceitos que constituem todas as faces do objeto de
invi’stigação e visar, na sua forma de elaboração, a operacio-
lulização da abordagem empírica do ponto de vista dos en-
(le vistados. No formato final de sua elaboração, o roteiro
ileve apresentar-se na simplicidade de alguns tópicos que
(ini.iin uma conversa com finalidade (Minayo, 2004) sob as se­
guintes condições: (a) cada questão que se levanta, faça parte
dit ilelineamento do objeto e que todas se encaminhem para
llie d,II forma e conteúdo; (b) permita ampliar e aprofundar a
(niiinnicação e não cerceá-la; (c) contribua para emergir a vi-
»iV', os juízos e as relevâncias a respeito dos fatos e das re-
lações que compõem o objeto, do ponto de vista dos inter­
locutores.
Um roteiro difere do instrumento questionário. Enquanto
este último pressupõe hipóteses e questões bastante fecha­
das cujo ponto de partida são as referências do pesquisador,
o roteiro tem outras características. Visa a compreender o ponto
de vista dos atores sociais previstos como sujeitos/objeto da
investigação e contém poucas questões. Por vezes, num pro­
cesso de pesquisa pode surgir a necessidade de elaboração de
um questionário fechado para se captar aspectos gerais consi­
derados relevantes de um problema de investigação, visando
a iluminar a compreensão do objeto e a estabelecer relações e
generalizações. Na abordagem qualitativa, nada impede, pelo
contrário se estimula, essa combinação de métodos. No en­
tanto, nenhum roteiro substitui ou deve ser substituído por
questionários, pois ambos correspondem a lógicas específi­
cas e diferenciadas de aproximação do objeto.
Roteiro, portanto, é sempre um guia, nunca um obstáculo,
não devendo prever todas as situações e condições de traba­
lho de campo. É dentro dessa visão que deve ser elaborado e
usado, facilitando a emergência de temas novos durante o
trabalho de campo, provocados por seu questionamento.
♦ Roteiro para entrevista aberta — aparentemente mais sim­
ples de preparar, pois pouco exige quanto à lista de temas por
parte do investigador, o instrumento da entrevista aberta é a
descrição sucinta, breve, ao mesmo tempo abrangente, pelo en­
trevistador, do objeto da investigação, orientando os mmos da
fala do interlocutor. Esse tipo de instmmento exige preparação
suficiente do pesquisador, permitindo-lhe, durante a entrevis­
ta, levantar questões que ajudem o entrevistado a abranger ní­
veis cada vez mais profundos em sua exposição. Nesse caso, o
instrumento fica guardado na memória do investigador, tes­
tando sua capacidade de ver, concatenar fatos mas, sobretudo,
de ouvir e conduzir o entrevistado para que explicite, da forma
mais abrangente e profunda possível, seu ponto de vista.
(* Roteiro para entrevista semi-estruturada)- Para essa moda
lidade de abordagem, o roteiro deve desdobrar os vários indica­
dores considerados essenciais e suficientes em tópicos que con­
templem a abrangência das informações esperadas. Os tópicos
devem funcionar apenas como lembretes, devendo, na medi­
da do possível, ser memorizados pelo investigador quando
está em campo. Servindo de orientação e guia para o andamen­
to da interlocução, o roteiro deve ser constmído de forma que
permita flexibjJidade nas conversas e a absorver novos temas e
tluestões trazidas pelo interlocutor como sendo de sua estru­
tura de relevância. Na sua elaboração, o roteiro semi-estrutu-
rado deve levar em consideração as seguintes questões:
— A forma de colocação de um item na lista deve induzir
.1 uma conversa sobre a experiência. Numa entrevista de cunho
(jualitativo, não se perguntam por conceitos ou por idéias do
tipo; você acha importante a educação para valores? Ou então: o
que é 0 programa agente de saúde? Para você, o que é saúde ou
doença? Essa forma de indagação induz a respostas dicotômi-
t as do tipo sim ou não ou, então, exige definições abstratas e
|•xlernas às vivências dos entrevistados: é como se eles estives­
sem respondendo a um teste escolar. Ao contrário, deseia-se
‘l"‘‘ it linguagem do roteiro provoque as várias narrativas pos-
' vt•is das vivências que o entrevistador vai avaliar; as interpre-
ia.,ot-s que o entrevistado emite sobre elas e sua visão sobre
lelações sociais envolvidas nessa ação.
- O guia de entrevista deve conter apenas alguns itens
imlispensáveis para o delineamento do objeto em relação ã
II alid.ide empírica, facilitando abertura, ampliação e aprofun-
il.imriito da comunicação (Minayo, 2004).
(,ada questão do roteiro deve fazer parte do delinea-
mnilo ilo objeto, de forma que todos os tópicos em conjun-
lit M' encaminhem para dar-lhe forma e conteúdo e contri-
Im.im para enfatizar as relevâncias previstas no projeto (ponto
dl viNia do investigador) e as dos informantes (ponto de vista
dn^i eiiiievistados) (Minayo, 2004).
Alguns pesquisadores costumam fazer um pré-teste dos
roteiros, de certa forma imitando os pré-testes de questioná­
rios ou, freqüentemente, contribuindo para perguntas mais
precisas dos próprios questionários, nos casos de investiga­
ções por triangulação de métodos. No caso de adotá-lo, o
pré-teste em pesquisa qualitativa consiste na realização de
entrevistas com alguns interlocutores-chave, o que contribui
para tornar mais clara e precisa a lista de temas e aspectos a
serem conversados durante o trabalho de campo. Mesmo to­
mando-se todos esses cuidados iniciais, o roteiro de investiga­
ção qualitativa pode e deve ser modificado durante o processo
interativo, quando o investigador percebe que determinados
temas, não previstos, estão sendo colocados por seus interlo­
cutores, apresentando-se como de elevada significância para eles.
Uma pergunta que freqüentemente surge sobre o uso do
roteiro em campo é quanto à cientificidade desse tipo de tra­
balho que não segue as regularidades de respostas, como no
caso dos questionários. A resposta é que o investigador que
trabalha com abordagem qualitativa nunca pode esquecer-se
de que não estuda um somatório de depoimentos. Isso signi­
fica que a práxis compreensiva pode até utilizar critérios nu­
méricos (número de entrevistas), mas não necessariamente
será este o definidor de relevâncias, muitas vezes esclarecidas
pela fala de apenas um ou de poucos interlocutores. Nesses
casos, a unidade de significação não é'Composta pela soma
das respostas de cada indivíduo para formar uma relevância
estatística. E, sim, ela se constrói por significados que confor­
mam uma lógica própria do grupo ou, mesmo, suas múlti­
plas lógicas. Portanto, as modificações do roteiro em campo
precisam ser devidamente acompanhadas, constituindo-se
num processo reflexivo permanente do pesquisador.
♦ Roteiro para grupo focal — A constmção do roteiro para a
realização da entrevista em gmpo tem pelo menos duas con
dições imprescindíveis: ser suficientemente provocador paia
permitir um debate entusiasmado e participativo; e promovei
condições de aprofundamento, fazendo jus ao que se pre­
tende com esta técnica. Vários meios podem ser usados: (a) a
formulação de uma pergunta central acompanhada de alguns
itens que, durante a aplicação da técnica, possam ajudar a
condução do tema mmo à focalização; (b) a escolha de um
audiovisual, por exemplo, de pequena parte de um fdme,
abrindo uma discussão livre, no primeiro instante, e depois
direcionada por perguntas ou inserções do pesquisador, a partir
das falas; (c) a elaboração, pelo investigador, de um texto epi-
sõdico que provoque e focalize a discussão, dentre outros.
Da mesma forma que os anteriores, os instmmentos para
debate dos grupos focais necessitam ser delineados. Pode-se,
|)or exemplo, decidir que os temas de discussão e a dinâmica
adequada serão escolhidos depois da realização das entrevis­
tas. Ou, pelo contrário, o investigador opta por estabelecer de
.uitemão o conteúdo e a forma do debate para que os gmpos
locais se processem pari passu com outras técnicas de aborda­
gem. É possível também que o investigador escolha as discus­
sões em gmpo como o instmmento principal de abordagem
da pesquisa. Daí que o conteúdo dos gmpos de estudo vai
variar de acordo com seus objetivos: (a) pode ter um papel
t omplementar, dando ênfase a alguns aspectos considerados
lelevantes para aprofundamento das entrevistas; (h) pode re-
|Miii as questões do roteiro para o investigador perceber como
n ifiiia é tratado diferentemente numa entrevista ou na inte-
laçao grupai; (c) pode merecer um aprofundamento sucessi-
VII, cm várias sessões, tomando um caráter substantivo na di­
nâmica da pesquisa. Nesse último caso, os gmpos focais se
Iiiiisliluem em instmmentos únicos ou privilegiados da in-
VI -iiigação empírica.
• Roteiro para observação participante — Antes da elaboração
ili nm guia para o trabalho de campo, é necessário que os
Invi'iiigudores decidam: O que observar? Será uma observa-
i,i1ii llvic ou terá roteiro específico? Abrangerá o conjunto do
»'*|Mi,ii c do tempo previsto para o trabalho de campo ou se
limitará a instantes ou a aspectos da realidade, dando ênfase a
determinados elementos na interação?
Denomina-se observação descritiva a que se realiza de for­
ma toMlmente livre, embora o investigador de campo deva
estar sempre focalizado no que constitui seu objeto de estu­
do. Geralmente, nos casos de investigações multicêntricas, ou
feitas ao mesmo tempo em diferentes lugares por vários pes­
quisadores, preparam-se e detalham-se alguns pontos a se­
rem observados. A isso se chama observação dirigida. Nesse caso,
os tópicos precisam ser formulados tendo em vista os temas
que constituem o objeto da investigação e partir de alguns
elementos exploratórios da realidade empírica.
De acordo com os objetivos da pesquisa, deve-se estabe­
lecer a forma e o conteúdo dessa atividade fundamental na
abordagem qualitativa, ainda que no processo da investiga­
ção se perceba a necessidade de realizar mudanças. Toda a
observação deve ser registrada num instmmento que se con­
venciona chamar d i á r i o d e c a m p o . Nesse caderno, o in­
vestigador deve anotar todas as informações que não sejam o
registro das entrevistas formais. Ou seja, observações sobre
conversas informais, comportamentos, cerimoniais, festas,
instituições, gestos, expressões que digam respeito ao tema
da pesquisa. Fala, comportamentos, crenças, hábitos, usos,
costumes, celebrações e instituições compõem o quadro das
representações sociais.^
Num texto clássico de orientação para antropólogos, Mali
nowski (1975a; 1984) dá algumas pistas importantes para .i
realização da observação, considerando-a um dos elementos
mais fundamentais da pesquisa etnográfica. Chama atençao
para a necessidade de observar os imponderáveis da vida so
ciai: "toda a estrutura da sociedade está incorporada no mais
evasivo de todos os materiais, o ser humano" (Malinowski,

‘ Termos e expressões empregados aqui genericamente como e n tr ev is ta , oli.wiva


estão conceituados e prolilrm.i
ç ã o p a r tic ip a n te , r e p r e s e n ta ç õ e s s o c ia is , t r a b a lh o d e c a m p o ,
tizados no terceiro capítulo deste estudo.
1975a, p. 40). Traduzindo o que Malinowski denomina arca­
bouço da constituição do grupo, imponderáveis da vida so­
cial e espírito nativo, eu diria que é preciso estar atento a: (a)
como os processos investigados se organizam na prática e como
funcionam; (b) quais as incongruências entre o que é dito ao
pesquisador nas entrevistas e nos gmpos focais e o que é fei­
to; (c) como se processam as relações hierárquicas, as relações
entre pares e entre opostos; (e) quais são os símbolos e sinais
significativos para a pesquisa, que estão sendo emitidos e na­
turalizados no cotidiano em observação.
Roteiro para análise documental — Bachelard (1978), em Epis-
temologia chama atenção para o fato de que os textos não fa­
lam por si, eles respondem a indagações dos investigadores.
Na preparação da investigação é preciso decidir que documen­
tos listar e de que tipo: escritos, visuais, audiovisuais e ou­
tros. Que natureza de informações interessa, por exemplo,
tlados oficiais; registro dos processos em análise; relatórios de
.iv.iliação e de auto-avaliação sobre etapas e desenvolvimento
do trabalho; histórias do cotidiano; orçamentos; materiais de
divulgação e propaganda; comunicações entre diferentes ato-
u s, são alguns dos que eventualmente interessaria ao investi-
(i.idor procurar.
I Ml síntese, muitos problemas podem ocorrer nos rotei-
iHM elaborados para pesquisa qualitativa, quando eles saem
dn ambiente acadêmico e ganham espaço como mediadores
da interação do entrevistador com o entrevistado. Por essa
la.Mu, ê preferível tratá-los sempre como dispositivos desti-
ttadiis a orientar a condução de uma entrevista ou da obser­
vai, .ti I participante. A investigação qualitativa requer, como ati­
tude-. (iiiulamentais, a abertura, a flexibilidade, a capacidade
»lt nliieiv.ição e de interação com o grupo de investigadores e
íiMU MS .itores sociais envolvidos. Seus instmmentos costumam
•fi liiiilmnite corrigidos e re-adaptados durante o processo
tlv lialialho de campo, visando às finalidades da investigação,
h » MiiiKi l.ido, a flexibilidade que se exige do investigador
qualitativo na elaboração e re-elaboração dos instrumentos
nunca deve ser confundida com improviso ou desleixo. Ter
de improvisar por falta de preparação pode pôr em risco todo
o esforço trórico que deve acompanhar, passo a passo, a rea­
lização de uma pesquisa.

Exploração de Campo

Antes de se iniciar o trabalho de campo propriamente dito,


é de fundamental importância precedê-lo de uma etapa ex­
ploratória que contempla as seguintes atividades: (a) escolha
do espaço da pesquisa; (b) escolha do gmpo de pesquisa; (c)
estabelecimento dos critérios de amostragem; (d) estabeleci­
mento das estratégias de entrada em campo.
O espaço da pesquisa — deve corresponder ao delineamen-
to do objeto teórico. Quando a pesquisa qualitativa é empíri­
ca (e não apenas documental), o investigador precisa dedicar
tempo aos critérios de escolha dos locais ou do local onde a
realizará, fazendo antes uma incursão por vários ambientes,
buscando justificar a seleção do espaço. Essa escolha envolve
vários elementos: critérios lógicos, interação, conveniência e
contatos que assegurem o êxito do trabalho. No caso da pes­
quisa documental, é necessário também que se estabeleçam
critérios e que sejam justificados por que o pesquisador op­
tou por tais fontes e não por outras.
Amostragem em pesquisa qualitativa merece comentários
especiais. Envolve problemas de escolha do grupo: a quem
entrevistar, a quem observar e o que observar, o que discutir e
com quem discutir? Numa abordagem quantitativa, definida
a população, busca-se um critério de representatividade numé­
rica que possibilite a generalização dos conceitos teóricos que
se quer testar. Numa busca qualitativa o pesquisador deve
preocupar-se menos com a generalização e mais com o apro
fundamento, a abrangência e a diversidade no processo ile
compreensão, seja de um grupo social, de uma organização.
de uma instituição, de uma política ou de uma representação.
Seu critério, portanto, não é numérico, embora quase sempre
o investigador precise justificar a delimitação de pessoas en­
trevistadas, a dimensão e a delimitação do espaço. Pode-se
considerar que uma amostra qualitativa ideal é a que reflete a
totalidade das múltiplas dimensões do objeto de estudo.
O processo de definição da amostra qualitativa deve levar
em conta os seguintes critérios: (a) investir em instmmentos
que permitam compreensão de diferenciações internas e de
homogeneidades; (b) assegurar que a escolha do locus e do
gmpo de observação e informação contenham o conjunto das
experiências e expressões que se pretende objetivar na pes-
c|uisa; (c) privilegiar os sujeitos sociais que detêm os atribu­
tos que o investigador pretende conhecer; (d) definir clara­
mente o grupo social mais relevante, ou seja, sobre o qual
recai a pergunta central da pesquisa. Centralizar nele o foco
das entrevistas, dos gmpos focais e da observação; (e) dar aten­
ção a todos os outros gmpos que interagem com o do foco
principal, buscando compreender o papel de cada em suas
interações; (f) trabalhar num processo de inclusão progressi­
va das descobertas do campo, confrontando-as com as teo-
lias que demarcam o objeto; (g) nunca desprezar informa-
l, 1 )fs ímpares e não repetidas, cujo potencial explicativo acabam
poi ser importantes na descoberta da lógica interna do gmpo;
(li) considerar um número suficiente de interlocutores para
pfimitir reincidência e complementaridade das informações;
(i) (crtificar-se de que o quadro empírico da pesquisa esteja
m. ipeado e compreendido; (j) sempre que possível, prever
miu triangulação de técnicas e até de métodos, isto é, em lu-
l!.M de se restringir a apenas uma fonte de dados, multiplicar
rti tentativas de aproximação.
t) dimensionamento da quantidade de entrevistas, gm-
)Hin lixais e outras técnicas deve seguir o critério de saturação.
l'oi nitério de saturação se entende o conhecimento forma­
do pelo pesquisador, no campo, de que conseguiu compre­
ender a lógica interna do grupo ou da coletividade em estu­
do. No entanto, provisoriamente o investigador pode e deve
prever um montante de entrevistas e de outras técnicas de
abordagem a serem depois balizadas em campo, à medida
que consiga o entendimento das homogeneidades, da diver­
sidade e da intensidade das informações necessárias para seu
trabalho.
Tomando como exemplo uma pesquisa de Avaliação Qua­
litativa da Atenção a Crianças abrangidas no Programa Saúde
da Família numa comunidade, eu diria que a amostra tem de
abranger todos os atores que compõem o programa, mas seu
foco se constitui das famílias com crianças cuja faixa etária se
inclui no objeto de investigação. Dentro desse grupo, é im­
portante recobrir todas as categorias sociais que estão sob
influxo do programa. É necessário também incluir informa­
ções sobre o programa em atividade, os profissionais e agen­
tes de saúde responsáveis pela aplicação da política. E, por
fim, seria muito elucidativo abordar outras pessoas relaciona­
das com a questão, contrastando a atuação e as terapêuticas
com farmacêuticos, curandeiros e rezadeiras. Muitos atores so­
ciais importantes costumam ser descobertos no decorrer da
pesquisa e se deve promover sua inclusão progressiva na amos
tra. Certamente o número de pessoas é menos importante do
que o empenho de enxergar a questão sob várias perspectivas
e pontos de vista. A validade da amostra está na sua potência
lidade de objetivar o objeto empiricamente, em todas as suas
dimensões.
Estratégias de entrada em campo — A entrada em campo
deve prever os detalhes do primeiro impacto da pesquisa. Ou
seja, merece preparação o processo de como descrevê-la aos
interlocutores, como os investigadores se apresentarem, a
quem se apresentarem e por meio de quem. Merece cuidado
especial o estabelecimento dos primeiros contatos, o que deve
ocorrer antes das idas ao campo para que se procedam às eii
trevistas e às observações. Freqüentemente, os primeiros con
tatos possibilitam iniciar uma rede de relações, correções ini­
ciais dos instrumentos de coleta de dados e produzir uma
agenda e um cronograma de atividades posteriores.
A Fase Exploratória termina formalmente com a entrada
em campo, embora, como já tem sido repetido por diversas
vezes, as etapas se interpenetrem e o esforço de delinear esse
começo de caminho tenha sentido pela necessidade de bali­
zar tanto a teoria e como a prática. Talvez a insistência na dis-
I ipiina e no método de constmção teórica e instmmental possa
p.irecer ênfase demasiada nos procedimentos. Porém, esses
lembretes práticos ajudam a evitar uma série de mal-enten-
1lidos que geralmente ocorrem entre investigadores que usam
métodos quantitativos, os que trabalham com abordagem
i|iulitativa e desses últimos entre si.
A experiência mostra que há muitos resultados de investi-
l',.it.,to que denotam claramente um certo menosprezo por re-
leieiicias teóricas como se a verdade estivesse evidente na rea-
lid.ide empírica. Ou ao contrário, freqüentemente, se encontra
iifles claro desdém pelo trabalho de campo, como se a teoria
hf.sf (rulo de especulação e o que se pensa sobre o real refle-
,1 imagem do que é pensado.
Nesse movimento de distinção e de intercessão das eta-
l'iii de pesquisa, enfatizo que é imprescindível dar atenção a
I td.i procedimento de constmção do projeto de pesquisa. No
iiii.mlo, ressalto também que o investigador precisa traba-
lli.ii mm liberdade e inteligência para reconhecer as diferentes
Ifi iili ,is <om o guias e exemplos, para ser capaz de criar outras
iHi |m s( iiulir delas, quando se tornam obstáculos, lembran-
ilii -.1 Miiipre que investigar é um labor científico e não ape-
imi (ecnicismo. A dialética entre técnica e criatividade é o
iHiipi in (1,1 boa pesquisa.
J
Parte IV
TRABALHO DE CAMPO:
TEORIA, ESTRATÉGIAS E TÉCNICAS

A pesquisa de campo, por onde começa


toda carreira etnológica, é mãe e ama-de-
leite da dúvida, atitude filosófica por ex­
celência. Essa dúvida antropológica não
consiste apenas em saber que não se sabe
nada, mas em expor resolutamente o que
se acreditava saber e a própria ignorância,
aos insultos e aos desmentidos que infli­
gem a idéias e hábitos muito caros, àque­
les que podem contradizê-los no mais
alto grau. Ao contrário do que a aparência
sugere, é por seu método mais estrita­
mente filosófico que a etnologia se dis­
tingue da sociologia.
— L é v i - S t r a u ss , 1 9 7 5 , p. 2 2 0 .

I VI - STRAUSS (1975) FEZ A AF I RMA ÇÃ O EM E PÍ GR AF E a


|t.iilir de uma de uma consideração de Merleau-Ponty (1975),
•ii Himdo o qual, "Cada vez que o dentista social retorna às
liiitli\s vivas de seu saber, àquilo que nele opera como meio
ilf tompreender as formações culturais mais afastadas de si,
fi.' (ilosofia espontaneamente" (Merleau-Ponty, 1975, p. 222).
f iuendo por Campo, na pesquisa qualitativa, o recorte es-
p.ii l.d (|ue diz respeito à abrangência, em termos empíricos,
dii 111 orle teórico correspondente ao objeto da investigação.
|'m i exemplo, quando trato de entender as concepções de saú­
de e doença de determinado grupo social; quando busco com­
preender a relação pedagógica entre médico e paciente ou o
impacto de determinada política de saúde para uma popula­
ção específica, cada um desses temas corresponde a um cam­
po empírico determinado. A pesquisa social trabalha com gente
e com suas criacões. compreendendo-os como atores sociais
em relação, grupos específicos ou perspectivas, produtos e
exposição de ações, no caso de documentos. Os sujeitos/ob-
jetos de investigação, primeiramente, são construídos teorica­
mente enquanto componentes do objeto de estudo. No campo,
eles fazem parte de uma relação de intersubjetividade, de inte­
ração social com o pesquisador, daí resultando um produto
compreensivo que não é a realidade concreta e sim uma desco­
berta construída com todas as disposições em mãos do inves­
tigador: suas hipóteses e pressupostos teóricos, seu quadro
conceituai e metodológico, suas interações em campo, suas
entrevistas e observações, suas inter-relações com os pares.
O trabalho de campo constitui-se numa etapa essencial
da pesquisa qualitativa, que a rigor não podería ser pensada
sem ele. Opõe-se (complementarmente ou não) aos surveys
que trazem os sujeitos para o laboratório do pesquisador,
mantêm com eles uma relação estruturada, segundo Mali-
nowski, "um excelente esqueleto ao qual faltam carne e san­
gue" (1975b, p. 36). Na pesquisa qualitativa, a interação entre
o pesquisador e os sujeitos pesquisados é essencial. Todo o
empenho é investido para que "o corpo e^o sangue da vida
real componham o esqueleto das constmções abstratas" (Ma-
linowski, 1975b, p. 37).
As operações mentais decorrentes das atitudes e práticas
de integração no campo da pesquisa, segundo Lévi-Strauss,
ajudam o investigador a confrontar-se com seu objeto direta­
mente, promovendo um tipo de ciência especial: "sociologia
de carne e osso que mostra os homens engajados no seu pró
prio devir histórico e instalados em seu espaço geográfico con
ereto" (1975, p. 212). Esse mesmo autor acrescenta, de forma
radical, referindo-se à afirmação de Marcei Mauss sobre a pre
ce e o dom, temas de seus estudos antropológicos: "Não é a
prece ou o dom que importa entender, o que conta é o mela-
nésio de tal ou tal ilha. Contra o teórico, o observador deve
ter sempre a última palavra; e contra o observador, o indíge­
na" (1975, p. 211).
Pela sua importância, o trabalho de campo deve ser reali­
zado a partir de referenciais teóricos e também de aspectos
operacionais. Isto é, não se pode pensar num trabalho de cam­
po neutro. A forma de realizá-lo revela as preocupações cien­
tíficas dos pesquisadores que selecionam tanto os fatos a se­
rem observados, coletados e compreendidos como o modo
de recolhê-los. Esse cuidado leva a evidenciar, mais uma vez,
que o campo da pesquisa social não é transparente e tanto o
pesquisador como os seus interlocutores e observados inter­
ferem dinamicamente no conhecimento da realidade.
Nesta parte do livro, abrangerei os seguintes temas; No
primeiro capítulo tratarei (1) da palavra como símbolo de comu­
nicação por excelência (matéria-prima essencial para as entre­
vistas); (2) das interações sociais em campo (objeto das obser­
vações) e (3) do conceito de representações sociais como categoria
uMitral para estudo de documentos, observações e análise de
laias. No segundo capítulo apresentarei as principais técnicas
d<‘ .ibordagem empírica (1) a entrevista em suas várias modali-
ilades e como a estratégia mais importante de coleta de infor­
mações qualitativas; (2) os grupos focais como estratégia para
•Xpressão de idéias na constmção de consensos e dissensos;
( 1) a observação participante como estratégia fundamental para
I limpreensão das práticas e dos imponderáveis da vida social;
r alp.iimas outras técnicas decorrentes das primeiras.
Capítulo 9
PALAVRA, INTERAÇÕES
E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

A palavra como símbolo


de comunicação por excelência

O Q U E T OR NA O TRABAL HO I N T E RA C I O N A L um instrumen­
to privilegiado de coleta de informações para as Ciências So­
ciais é a possibilidade que tem a fala de ser reveladora de con­
dições estmturais, de sistemas de valores, normas e símbolos
(sendo ela mesma um deles) e, ao mesmo tempo, ter a magia
de transmitir, por meio de um porta-voz, as representações
gmpais, em condições históricas, socioeconômicas e culturais
específicas.
Vários estudiosos apontam a fala como a forma de comu­
nicação mais privilegiada para a sociedade humana, pela pos­
sibilidade de ela conter a experiência, permitir o entendimen­
to intersubjetivo e social e, por sua densidade, constituir-se
em si, em fato social: "no princípio era o verbo" diz a Bíblia,
evidenciando que a humanidade nasce com a fala que, ao
mesmo tempo, cria a comunidade e reflete sobre suas condi­
ções, possibilidades, sonhos e desejos. Diz Bakhtin, um dos
mais importantes estudiosos da linguagem no século XX: "a
palavra é o modo mais puro e sensível de relação social":
Existe uma parte muito importante da comunicação
ideológica que não pode ser vinculada a uma esfera ideo­
lógica particular: trata-se da comunicação da vida cotidia­
na. O material privilegiado de comunicação na vida coti­
diana é a palavra (1986, p. 36).

Em qualquer sociedade, ao mesmo tempo que a fala apro­


xima, carrega contradições sendo por isso um mecanismo de
intransparência também, como lembra Habermas (1980; 1987).
Bakhtin (1986) considera a palavra (no sentido de fala) como
o fenômeno ideológico por excelência, por seu caráter histó­
rico e social que a torna um campo de expressão das relações
e dos conflitos. Refletindo sobre como a fala sofre os efeitos
dos conflitos e serve de instmmento e de material para comu­
nicação, diz: "A palavra é a arena onde se confrontam valores
sociais contraditórios" (1986, p. 14). Por meio da comunica­
ção verbal — que é inseparável de outras formas de comuni­
cação — as pessoas "refletem e refratam" conflitos e contradi­
ções próprias dos sistemas sociais e políticos e de suas formas
de dominação, em que a resistência está dialeticamente rela­
cionada com a submissão das pessoas na vida cotidiana. "Cada
época e cada grupo social têm seu repertório de formas de
discurso, marcado pelas relações de produção e pela estrutura
sócio-política" (Bakhtin, 1986, p. 64).
Discutindo a teoria da prática de pesquisa, Bourdieu (1973)
contribui com uma reflexão esclarecedora, em resposta a uma
indagação freqüente dos que fazem pesquisa social e, particu­
larmente, utilizam entrevistas não estmturadas: Em que senti­
do a fala de um é representativa da fala de muitos? Bourdieu
responde a partir de sua experiência com entrevistas e com
observação participante, em diversas pesquisas, sendo notá­
vel no seu importante trabalho etnográfico Travail et Travail-
leurs en Algérie (1964). Segundo o autor, a identidade de con-
tlições de existência tende a reproduzir sistemas de disposições
semelhantes, por meio de um tipo de harmonização ou cris­
talização objetiva de práticas e obras que se repetem em usos
e costumes:

Todos os membros do mesmo grupo ou da mesma


classe são produtos de condições objetivas idênticas. Daí
a possibilidade de se exercer na análise da prática social, o
efeito de universalização e de particularização, na medida
em que eles se homogeneizam, distinguindo-se dos ou­
tros (Bourdieu, 1973, p. 180).

Teorizando sobre a prática da pesquisa de campo, Bour­


dieu afirma que as condutas ordinárias da vida se prestam à
decifração, ainda que pareçam automáticas e impessoais. Elas
são significantes, mesmo sem intenção de significar, e expri­
mem uma realidade objetiva que "exige apenas a reativação da
intenção vivida por aqueles que as cumprem" (1973, p. 180):

Cada agente, ainda que não saiba ou que não queira,


é produtor e reprodutor do sentido objetivo, porque suas
ações são o produto de um modo de agir do qual ele não
é o produtor imediato, nem tem o domínio completo (Bour­
dieu, 1973, p. 182).

As idéias de Bourdieu vão ao encontro das freqüentes in­


dagações sobre a questão da representatividade em pesquisa
qualitativa. Elas se expressam no esquema teórico criado por
ele, denominado "habitus":

Um sistema de disposições duráveis e transferíveis que


integram todas as experiências passadas e funciona, a todo
o momento, como matriz de preocupações, apreciações e
ações. O "habitus" torna possível o cumprimento de tare­
fas infinitamente diferenciadas, graças às transferências
analógicas de esquemas que permitem resolver os proble­
mas, da mesma forma, graças às correções incessantes dos
resultados obtidos e, dialeticamente, produzidos por es­
tes resultados (1973, p. 178).

O autor compara o "habitus" com o inconsciente: "É como


o inconsciente da história que a história produz, incorporan­
do as estruturas objetivas produzidas por esse inconsciente,
nesta quase natureza que é o habitus" (1973, p. 179). Bour­
dieu usa várias metáforas para explicar o que denomina habi­
tus, buscando dar objetividade à discussão sobre a subjetivi­
dade: seria uma espécie de lei imanente depositada em cada
ator social desde a primeira infância, a partir de seu lugar na
estmtura social; refere-se a marcas das posições e situações de
classe que permanecem e se re-atualizam no cotidiano; cons­
titui uma mediação universalizante que proporciona às práti­
cas de um agente singular, sem razões explícitas e sem inten­
ção significante, seu sentido, sua razão e sua organicidade.
Portanto, conclui:

As relações interpessoais numa pesquisa nunca são ape­


nas relações de indivíduos e a verdade da interação não
reside inteiramente na interação. É a posição presente e
passada na estmtura social que os indivíduos trazem con­
sigo em forma de "habitus" em todo o tempo e lugar, que
marca a relação (1973, p. 184).

O renomado lingüista Sapir (1967) concorda com Bour­


dieu, quando afirma que "o indivíduo é um portador passivo
de tradições". No entanto, ele mesmo relativiza sua expres­
são, ao definir em termos mais dinâmicos sua compreensão
do significado do sujeito no contexto lingüístico: "O indiví­
duo concretiza, sob mil formas possíveis, idéias e modos de
comportamentos implicitamente inerentes às estmturas ou às
tradições de uma sociedade dada" (Sapir, 1967, p. 89). Acres­
centa, referindo-se ao processo de entrevista:
Se um testemunho individual é gravado ou comuni­
cado, isso não quer dizer que se considera tal indivíduo
precioso em si mesmo. Essa entidade adulta e singular é
tomada como amostra da continuidade (1967, p. 90).

A representatividade do gmpo na fala do indivíduo, por­


tanto, ocorre porque tanto o comportamento social como o
individual obedece a modelos culturais interiorizados, ainda
que as expressões pessoais apresentem sempre variações em
conflito com as tradições. Nesse mesmo sentido, Goldmann
lembra que a consciência coletiva (de classe) "sõ existe nas
consciências individuais, embora não seja a soma delas" (1967,
p. 18) e Lukács (1974) afirma que nas consciências individuais
se expressa a consciência coletiva, pois o pensamento indivi­
dual se integra no conjunto da vida social pela análise da fun­
ção histórica das classes sociais.
Gadamer (1999) faz uma ponderação interessante, refle­
tindo sobre essa dialética que envolve expressões de indiví­
duos e sociedade, quando diz que nem o sujeito se esgota na
fala ou na conjuntura em que vive e nem sua ação e seu pen­
samento são meros frutos de sua vontade, personalidade e
desejo. Mas é indubitável, lembra, o fato de que cada indivi­
dualidade seja uma manifestação do viver total: é preciso bus­
car o que há de comum no gmpo e o que há de específico do
discurso individual.
A questão da representatividade qualitativa enseja tam­
bém outras perguntas como a seguinte: em que condições os
indivíduos representam e em que medida o indivíduo fala
por si mesmo? Noutras palavras, os indivíduos em suas re­
presentações sociais são aleatoriamente intercambiáveis?
Sim e não, seria a resposta verdadeira. Porque ao mesmo
tempo que os modelos culturais interiorizados são revelados
numa entrevista, por exemplo, eles refletem o caráter históri­
co mais geral e específico de um gmpo, como será tratado no
capítulo das representações sociais. Dessa forma, os depoi­
mentos provenientes das várias modalidades de interação têm
de ser contextualizados: de forma histórica e sociológica, den­
tro de uma análise de classe ou de segmentos sociais, de etnia
(se for o caso), de gênero e por grupos etários. Essas quatro
balizas (classe ou segmento, gênero, faixa etária e etnia) cons­
tituem hoje os parâmetros para qualquer tipo de olhar sobre
a complexidade da realidade social, devendo ser complemen­
tados por variáveis como profissão, religião, filiação política
ou outras, em cada caso específico de pesquisa. Assim, cada
ator social se caracteriza por sua participação, no seu tempo
histórico, num certo número de gmpos sociais, informa sobre
a cultura e sobre uma "subcultura" que lhe é específica e tem
relações diferenciadas com a cultura dominante de seu tempo.
Mas, como afirma Schutz (1964), cada ator social experi­
menta e conhece o fato social de forma peculiar. É a constela­
ção das diferentes informações individuais vivenciadas em
comum por um grupo que permite compor o quadro global
das estmturas de relevância e das relações, em que o mais im­
portante não é a soma dos elementos, mas a compreensão
lios modelos culturais e da particularidade das determinações.
A compreensão do indivíduo como representativo tem,
portanto, de ser completada com variáveis próprias, tanto da
especificidade histórica, como dos determinantes das relações
sociais. E, também, necessita de ser entendida no contexto do
próprio gmpo ou da comunidade, alvos da pesquisa, como
lima diversificação que torne possível a compreensão do ob-
|elo de estudo. O peso de cada indivíduo (representante de
( .ilegorias sociais, políticas, de lideranças, de organizações, de
gmpos com engajamentos específicos, de segmentos descom-
piometidos com o statu cfuo, por exemplo) necessita ser teori-
1 .1 mente pensado e problematizado na preparação da pesquisa
•• devidamente tratado e testado em campo. Para a composi-
ç.it) do estudo, gmpos e categorias diferenciados constituem
"i nipos" específicos para análise, contendo elementos comuns

i
I pei iiliares em relação à totalidade social em análise.
Interação entre pesquisador
e atores sociais no campo

Nas relações entre o pesquisador e o grupo social pesqui­


sado, as observações críticas das Ciências Sociais atingem dois
níveis de questões, ambas dando relevância ao caráter proble­
mático da interação. De um lado, há várias teorias que enfati­
zam a situação de desigualdade em que a entrevista se proces­
sa, levando os críticos a taxarem as relações entre pesquisador/
pesquisado como formas de dominação e de caráter "repro-
dutivista". De outro, como contraponto a esse primeiro gru­
po de críticas, há estudiosos que ressaltam, do ponto de vista
cultural, a interação de pesquisa como algo intrinsecamente
conflituoso, mas vivenciado dentro de um clima de liberdade
e não de necessidade. Por isso, consideram que tanto pesqui­
sadores como pesquisados são responsáveis pelo produto de
suas relações e que a qualidade do desvendamento e da com­
preensão social depende de ambos.
A premissa básica da reflexão, em ambos os casos, é que a
interação humana numa situação de entrevista, por exemplo,
não é simplesmente um trabalho de coleta de dados, mas sem­
pre uma relação na qual as informações dadas pelos sujeitos
podem ser profundamente afetadas pela natureza desse en­
contro.
Os autores que defendem a relação em campo como uma
expressão de dominação, entendem a situação de entrevista
como:
♦ uma troca desigual entre os atores sociais. Isso acontece,
justificam, sob vários ângulos: não é o entrevistado que tom<i
iniciativa; os objetivos reais da pesquisa geralmente lhe são
estranhos; sua chance de tomar iniciativa em relação ao tema
é pouca; é o pesquisador que dirige, controla e orienta o que
vai ser dito e concede a palavra, mesmo quando tenta deix.ii
o interlocutor à vontade. A atitude simpática e benévola do
estudioso minimiza o impacto, mas não anula a situação de
desigualdade entre os interlocutores. Mesmo nas chamadas
pesquisa participante" e "pesquisa-ação" essas questões se
colocariam, embora de forma menos veemente;
♦ a pesquisa social seria prisioneira da divisão social do
trabalho da sociedade capitalista, por meio da qual o pesqui­
sador, em posição institucional de poder, se atribui o labor
do questionamento dos outros, da sociedade e de si mesmo.
Dentro dessa visão, o sujeito/objeto (o entrevistado) produ­
ziría um material que seria ulteriormente explorado por seus
dominadores (no caso, os pesquisadores). Por exemplo, essa
é a opinião de Kandel (1972): "Os investigados se deparam
com quadros objetivos de referência que na maioria das vezes
lhes são estranhos. A reciprocidade quando existe (direito de
interrogar o interrogador) é outorgada" (Kandel, 1972, p. 25).
0 gmpo que relativiza e critica o círculo fechado da refle­
xão reprodutivista argumenta que se uma pesquisa empírica
inclui-se nos esquemas de dominação de classes, materializa­
do no papel dos intelectuais, essa situação não pode ser re-
( orlada de um contexto social da sociedade em geral. Portan­
to, |iarticularizar a situação de pesquisa como dominação não
piomove nenhuma conseqüência prática a não ser provocar
nm.i paralisia científica. Em segundo lugar, esses sociólogos
d.i ciência argumentam que é possível realizar investigações
lom objetivos sociais claros, estratégicos, voltados para com-
IMcnuler melhor os problemas, melhorar os serviços, avaliar
|'inj.',umas de intervenção social e outros.
N.i história da pesquisa social no Brasil, tem havido exem­
plos ic.iis de vivência desses dilemas. É o caso de um pesqui-
•tidoi i|ue deu por terminado seu trabalho na coleta de de­
poimentos, pois, a seu ver, os gmpos pesquisados, e não ele,
# que lei iam poder para produzir sua própria análise. Ou, ain-
ili( Ue hoje são comuns expressões de resistência a receber
|M»»quis.idores ou a responder questionários por parte de gm-
1 qiiH illcos, alimentados por uma ideologia basista veicu­
lada por intelectuais, verbalizando que não querem ser ex­
plorados ou que só colaboram em troca de dinheiro.
Os pesquisadores sociais precisam ter em conta que, real­
mente, a prática da pesquisa social empírica se realiza num
contexto contraditório, no qual se reproduzem formas de as­
simetria social, pois os intelectuais têm acesso a determina­
dos bens reais e simbólicos dos quais grande parte da popu­
lação está excluída. Reconhecer isso não significa ter de parar
de fazer investigação, pois os mecanismos de desigualdade e
de dissimetria na sociedade são muito mais amplos e proble­
máticos e estão presentes em todas as relações. É preciso, no
entanto, colocar com mais clareza para si mesmo o sentido
das investigações, sobretudo os pesquisadores da área da saúde,
voltando-as para a solução de problemas da população. Igual­
mente, é preciso enfatizar os meios e propostas, a partir dos
quais as informações dadas, as situações criadas e os lastros
de aliança reflitam interesses dos entrevistados também.
A posição radical da sociologia que vê na pesquisa apenas
manifestação e reprodução do poder é paralisante e tão me­
cânica e pouco dialética como o empirismo positivista que
desconhece as condições reais de produção do conhecimen­
to. Portanto, a dissimetria nas posições do entrevistador/en­
trevistado tem de ser compreendida e assumida criticamente
em todo o processo de constmção do saber. O impacto resul­
tante do pertencimento a outra classe, que se concretiza em
experiências socioculturais conflitantes, é um dado condicio-
nante das investigações sociais em geral e muito mais visível
na pesquisa de campo, junto com todos os outros fatores
(por exemplo, a questão do sexo do pesquisador para abor­
dar determinados assuntos) que acompanham qualquer uma
de suas fases.
Alguns autores se debmçam sobre as situações de campo
com uma preocupação intrínseca ao próprio ato de pesqui­
sar, produzindo um tipo de epistemologia sobre as condi­
ções da produção do conhecimento social. São, em geral, an-
iropólogos que, a partir de sua experiência empírica e das di­
ficuldades encontradas, tanto na observação como nas entre­
vistas, põem em evidência a precariedade do conceito filosó­
fico de verdade científica. Mostram as dificuldades de inserção
no mundo do "outro" e problematizam a pretensa objetivi-
tlade nas situações de pesquisa. Evidenciam que a realidade
social é um mundo de sombras e luzes em que todos os ato­
res envolvidos revelam e escondem seus segredos grupais. Em
lugar do caráter de passividade que as teorias reprodutivistas
e positivistas, de pontos de vista diferentes, conferem aos en­
trevistados, esses autores (compreensivistas, interacionistas
simbólicos e fenomenologistas) os compreendem como par­
te de um movimento ativo durante todo o processo de con­
tato com o pesquisador.
Exemplos desse tipo de estudiosos, Goffman (1959; 1961;
1975a; 1975b) e Berreman (1975) elaboraram uma reflexão
rica, plástica e carregada de detalhes a respeito do intercâmbio
i’iure pesquisador/pesquisado. Ambos usam a imagem do tea­
tro, para mostrar que esse par de opostos constitui, simulta­
neamente, atores e público na montagem de um espetáculo
singular; sua inter-relação é mediada por códigos culturais es­
pecíficos e por interesses particulares que ambos tentam pre­
servar e projetar.
Na relação do entrevistador com seus informantes, diz
( ioffman:

Ereqüentemente descobrimos uma divisão entre a re­


gião interior, onde a representação de uma rotina é prepa­
rada; e região exterior, onde a representação é apresentada.
C) acesso a essas regiões é controlado, a fim de impedir que
a platéia veja os bastidores e que estranhos tenham acesso
a uma representação que não se dirige a eles (1959, p. 238).

As palavras de Goffman, que tomam corpo em vários de


snis estudos sobre instituições totais e estigmas, são corro­

Ü
boradas pela reflexão de Berreman (1975) a respeito das difi­
culdades de acesso a informação em sua pesquisa etnográfica
numa comunidade himalaia. O título de seu estudo é muito
sugestivo- Por Detrás de Muitas Máscaras. Berreman escreveu so­
bre o assunto, partindo do princípio de que sua experiência
de tentar entender uma comunidade fechada e segmentada
em castas, dona de códigos culturais rígidos e herméticos, guar­
dadas as devidas peculiaridades, podería ser universalizada e
partilhada com outros pesquisadores em situação de traba­
lho de campo.
Berreman (1975) socializa sua experiência, descrevendo-a
em imagens. Chama de "região interior" à parte íntima da vi­
vência de uma comunidade. Essa região pode ser mais ampla
ou mais restrita, diz ele, mas qualquer grupo guarda seus se­
gredos, seu lado oficial e tem sua estratégia comportamental
no dia-a-dia. Tal coesão interna ocorre porque, ainda que in­
ternamente um grupo vivencie muitas diferenças e conflitos,
sua existência depende de um certo grau de consenso, fami­
liaridade e solidariedade que implica partilha de significa­
dos, de segredos, de zonas proibidas e do que pode ou não
pode ser dito. No mesmo sentido de Berreman, é elucidativa
a fala de Goffman, quando afirma que há poucas atividades
ou relações cotidianas nas quais os atores não se envolvam
em práticas ocultas e incompatíveis com as impressões que
buscam causar.
Por causa dessa contingência da região interior, em qual­
quer situação de trabalho de campo existirá sempre um jogo
de cena entre o pesquisador que entra em contato e a fala e os
comportamentos de seus interlocutores. Esses últimos sem­
pre pretendem manter em sigilo sua "região interior" (expres­
são usada por Berreman, 1975) ou ter "controle de impres­
sões" (expressão usada por Goffman, 1959) que provoca. Esse
controle é um aspecto básico e inerente à interação. Por isso,
é importante que todo investigador social saiba que nenhum
gmpo falará totalmente a verdade sobre sua realidade social.
Sempre haverá o "controle das impressões" e a guarda da "re­
gião interior".
Berreman (1975) insiste em que ambos os atores da pes-
(|iiisa (entrevistador/entrevistado), numa situação de intera­
ção, ainda que breve, atuam julgando os motivos e atributos
ims dos outros, definindo a situação circundante e a imagem
(|iie lhes convém projetar. Dessa forma, cada um dos dois
atores sabe o que deve revelar e o que deseja ocultar: "Cada
um tenta dar ao outro a impressão de que melhor serve a seus
interesses, tal como os vê" (Berreman, 1975, p. 141).
Enquanto, academicamente, o pesquisador é avaliado en-
tle seus pares pela sua capacidade de penetrar na "região inte­
rior" dos seus interlocutores ou observados, os entrevistados
são avaliados pela argúcia de preservar, de olhos e ouvidos
estranhos, os bastidores do grupo. Os informantes julgam
positivamente os investigadores que assumem atitude de res­
peito em relação aos segredos de seu grupo. Nenhum ator,
nesse jogo de oposições entre pesquisador/pesquisado con-
si‘gue sucesso absoluto, uma vez que nem tudo fica oculto e
nem tudo é desvendado. Lembra Goffman:

Dada a fragilidade e a necessária incoerência da realida­


de que é dramatizada pelo desempenho individual, exis­
tem habitualmente fatos que determinam ou inutilizam a
impressão que o indivíduo tenta passar (1959, p. 142).

Essas reflexões trazem algumas conseqüências práticas para


.1 situação de interação. A primeira é a necessidade de se refor­
çar a observação sobre a coesão e os conflitos dos grupos,
independentemente das entrevistas formais. Quanto mais
I ()cso é um grupo, mais ele oferece um lugar, um papel e uma
lonle de apoio moral a seus membros, de tal forma que eles
tenderão a se proteger mutuamente nas dúvidas e nas culpas.
Ao contrário, em situações de muitos conflitos, contradições
e de coesão gmpal ameaçada é mais fácil fúrar o cerco da "re­
gião interior". Os momentos de contenda, de transição e de
dúvidas são celeiros férteis para informações sobre determi­
nada coletividade.
Mesmo nas situações de coesão grupai, toda coletividade
possui alguns interlocutores privilegiados que, freqüentemen-
te, por sua respeitabilidade e de sabedoria, ou, ao contrário,
por sua situação de liminaridade, estão acima das convenções,
podendo furar os cercos do "controle de impressões".
Goffman, continuando com a imagem do teatro, comen­
ta que:

Um companheiro destituído é sempre passível de tor­


nar-se um renegado e vender à platéia os segredos da peça
que seus irmãos de ontem ainda representam. Cada papel
tem seus sacerdotes destituídos de suas vestes para nos
contarem o que acontece no mosteiro (1959, p. 164).

Geralmente, qualquer grupo está atento aos que conside­


ra que podem desvendar sua região interior e cuida de exercer
vigilância sobre os indivíduos suspeitos de falarem demasia­
do. Essa vigilância é sempre passível de burla, pois, quando
um tema é proibido, é aí mesmo que alguma comunicação
conspiratória costuma ser desvelada de forma que não levan­
te suspeitas. Revelações de bastidores são feitas, geralmente,
por pessoas não membros ou, de alguma dorma, não incluí­
das e em conflito com o coletivo. Há situações em que o prõ-
prio pesquisador é escolhido como confidente e, dessa for­
ma, passa a compor a "região interior", sob condição de não
revelar o que lhe foi relatado. No entanto, quando isso acon­
tece, seu status muda de mero investigador a membro do gru­
po a quem deve lealdade, pelo menos momentaneamente.
Berreman (1975), com base em sua experiência, cunhou
uma expressão "risco de desempenho , para denominar a si­
tuação dos indivíduos passíveis de romper a camada interior.
Ele nomeia algumas categorias (crianças, bêbados, mulheres e
velhos) que, dentro de seu universo de pesquisa, assim se
apresentaram. Generalizando seu achado, pode-se dizer que
em qualquer sociedade há sempre o perigo de que indivíduos
em situação de liminaridade ou em conflito dentro das insti­
tuições revelem os bastidores e sejam levados a sério pela pla­
téia, diz Barnett (1953), ressaltando que os membros deslo­
cados ou insatisfeitos de uma sociedade são informantes
privilegiados.
Os mais relutantes em abrir a cortina dos dados são, geral­
mente, adultos comprometidos com a gestão e o desempe­
nho do gmpo. Na experiência de Berreman (1975), os infor­
mantes mais difíceis de se abrirem foram os homens de 35 a 55
anos de idade. Na sociedade pesquisada por ele, os homens
tentavam permanecer dentro do discurso e da imagem oficial
e ainda exerciam censura sobre a fala de suas esposas, filhos
mais jovens e sobre os mais idosos. Talvez em contextos dife-
Ientes, um pesquisador classificasse outros tipos como mais
resistentes ou mais abertos, mas permanece elucidativo o prin­
cipio a que Berreman chama "compromisso com a produção
(.Io desempenho":

Eu sugeriría ser geralmente verdadeiro que os infor­


mantes mais relutantes acerca dos assuntos que não se­
jam da linha oficial, ou do desempenho da região exte­
rior, são aqueles que têm a maior responsabilidade pela
produção do desempenho, portanto o maior compromis­
so com seu sucesso (1975, p. 172).

O investigador Dean (1954) chegou a fazer uma caracteri-


z.ição dos tipos sociais que aparecem nas situações de pes-
(|iiisa. Gomo toda classificação, esta é esquemática, mas ajuda
.1 considerar os bastidores das interações:
♦ o intruso, alguém de fora ou de outra classe que está no
grupo, a partir de outro referencial e, portanto, não é confiá­
vel
• ♦ O recruta ou novato, que se surpreende com detalhes,
estranhando coisas que para outros seriam consideradas ba­
nais;
♦ o status novo, que, por estar numa etapa de transição de
papéis (sobretudo de poder), se encontra marcado por ten­
sões e receios em relação à nova experiência;
♦ o natural, que possui uma reflexão bastante elaborada
da realidade e consegue expressá-la com vivacidade.
♦ o ingênuo, que não se policia. Abre as cortinas do basti­
dor (da região interior) com grande facilidade porque não
percebe as implicações de seus atos;
♦ o frustrado ou revoltado, que se sente bloqueado em seus
impulsos e desejos pela sociedade de que é parte;
♦ os de fora ou marginais, que estão ausentes do jogo e
dos interesses do esquema oficial, mas sabem das coisas. Por
estarem alijados do desempenho, sentem-se livres para criti­
car os envolvidos no poder;
♦ os carentes, que sentem necessidade de se colar ao entre­
vistador e se julgam importantes por auxiliá-lo;
♦ o “subordinado" que, por se adaptar sempre aos superio­
res, conhece os segredos e as transgressões (Dean, 1954, pp.
222-56).
Sintetizando a descrição dos processos e sentidos da inte­
ração que se estabelece em campo para produção do conheci­
mento empírico, apresento as observações de Berreman (1975):
(a) o controle das impressões constitui um aspecto inerente a
qualquer interação social; (b) qualquer pesquisa social empí­
rica competente deve levar em conta o desempenho do pes­
quisador (união da observação com entrevista formal) e o que
resulta daí, isto é, os esforços empregados na sua produção e
nas situações de bastidores que o grupo oculta; (c) tanto a
visão oficial transmitida (a região exterior) como os segredos
de bastidores (região interior) são componentes essenciais da
realidade; (d) a relação entre o mundo interior e exterior tan­
to do pesquisador como de seus informantes, e sua produ-
ção de significados constituem materiais imprescindíveis da
própria pesquisa.
As contribuições de Berreman (1975) e Goffman (1959)
permitem dar resposta às perguntas formuladas inicialmen­
te e, também, cumprem o papel de deixar meridianamente
clara a questão do envolvimento da subjetividade dos pes-
t|uisadores e dos seus interlocutores na construção da "ver-
tlade" científica, de forma relevante na pesquisa social. Como
lembra Bacbelard (1978), todo conhecimento é um conhe­
cimento aproximado. A essa sentença é preciso acrescentar que
lodo conhecimento é um conhecimento situado no tempo,
ilentro da especificidade histórica e da especificidade das re-
hições sociais que o permeiam e o condicionam: é o conhe-
( imento possível. No entanto, é necessário ressaltar, mais
lima vez, que esse conhecimento possível é por sua vez a "ver-
tla-de possível", ainda que provisória, uma vez que foi pro­
duzida por um bom trabalho preparatório e de campo, po­
tencializado por teorias, estratégias e instrumentos que o
tornem mais e mais bem objetivado, permitindo dar relevân-
I ia à lógica interna de determinado gmpo, instituição ou co­
letividade.

Representações sociais

■* Representações sociais como conceito

Representações sociais é uma expressão filosófica que signi­


fica a reprodução de uma percepção anterior da realidade ou
do conteúdo do pensamento. Nas Ciências Sociais, são defi­
nidas como categorias de pensamento, de ação e de senti­
mento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a
(UI questionando-a. As percepções são consideradas consen-
sii.ilmente, por todas as correntes de pensamento, como par­
le da construção da realidade. Neste texto, abordo as contri­
buições dos autores clássicos sobre o mundo das idéias e seu
significado no conjunto das relações sociais, tomando o pen­
samento de Durkheim (1978) e seus seguidores, de Weber
(1985) e da escola fenomenológica, representada por Schutz
(1973). e de Marx (1984) e dos marxistas que discutem ques­
tões de subjetividade.
Do ponto de vista sociológico, Durkheim é o autor que
primeiro tratou do conceito de representações sociais, usando a
expressão representações coletivas para se referir a categorias de
pensamento por meio das quais uma determinada sociedade
elabora e expressa sua realidade. Durkheim afirma que essas
categorias não são dadas a priori e não são universais na cons­
ciência, mas surgem ligadas aos fatos sociais, transformando-
se, elas próprias, em fatos sociais passíveis de observação e de
interpretação. A observação revela, segundo ele, que as repre­
sentações sociais são um grupo de fenômenos reais, dotados
de propriedades específicas e que se comportam também de
forma específica.
Na concepção de Durkheim (1978), é a sociedade que
pensa, portanto as representações não são necessariamente
conscientes do ponto de vista individual. Assim, de um lado,
elas conservam sempre a marca da realidade social onde nas­
cem, mas, também, possuem vida independente e reprodu­
zem-se tendo como causas outras representações e não ape­
nas a estrutura social.
Embora reconheça como base das representações o que
denomina substrato social, Durkheim demonstra a autonomia
relativa do conceito. Segundo ele, algumas representações, mais
que outras, exercem, sobre uma sociedade específica, uma pe­
culiar coerção para que seus membros atuem em determina­
do sentido. Dentre as representações mais importantes e uni­
versais, Durkheim destaca a religião e a moral, assim como as
categorias de espaço, tempo e personalidade, consideradas por
ele como representações sociais e históricas.
Escreve o próprio autor:
As Representações Coletivas traduzem a maneira como
o gmpo se pensa nas suas relações com os objetos que o
afetam. Para compreender como a sociedade se represen­
ta a si própria e ao mundo que a rodeia, precisamos con­
siderar a natureza da sociedade e não a dos indivíduos.
Os símbolos com que ela se pensa mudam de acordo com
a sua natureza [. . .] Se ela aceita ou condena certos mo­
dos de conduta, é porque entram em choque ou não com
alguns dos seus sentimentos fundamentais, sentimentos
estes que pertencem à sua constituição (1978, p. 79).

Portanto, para Durkheim, não existem representações fal­


sas, todas respondem às necessidades da existência humana
de diferentes formas e em condições dadas. São símbolos atra­
vés dos quais:

É preciso saber atingir a realidade que o símbolo figu­


ra e que lhe dá sua verdadeira significação. Esses símbolos
constituem objeto de estudo tanto quanto as estruturas e
as instituições: todos dizem respeito a maneiras de agir,
pensar e sentir, exteriores ao indivíduo e dotados de um
poder coercitivo em virtude do qual se lhes impõe (1978,
p. 88).

As representações coletivas, para Durkheim, da mesma ma­


neira que as instituições e as estmturas, contêm as duas carac­
terísticas específicas do fato social: (a) exterioridade em rela­
ção às consciências individuais; (b) exercem ação coercitiva sobre
as consciências individuais ou são suscetíveis de exercer essa
coerção.
No propósito de reafirmar sempre a objetividade com que
deve agir o pesquisador, Durkheim tentou eximir a análise de
qualquer fato social e, portanto, também a das representa­
ções sociais das implicações decorrentes do envolvimento
humano, ao dizer que o método sociológico: (a) deve ser isen-
to de qualquer filosofia; (b) deve ser objetivo, isto é, os fatos
são coisas e como tais devem ser tratados; (c) os fatos sociais
são exclusivamente sociológicos. Dessa forma, a noção de es­
pecificidade da realidade social é de tal modo necessária ao
investigador, que só uma cultura especificamente sociológica
pode compreender os fatos sociais.
As idéias de Durkheim sobre Representações Sociais são com­
partilhadas por uma série de estudiosos. Bohannan (1964),
em breve ensaio sobre a consciência coletiva e a cultura, nota
que o termo consciência e a expressão representações coletivas
usados por Durkheim recobrem o mesmo campo que a noção
de cultura para antropólogos, tais como Malinowski (1975a;
1975b; 1984). Para Bohannan, "A consciência coletiva é o idio­
ma cultural da ação social [. . .] é a totalidade das representa­
ções coletivas de acordo com suas manifestações nas relações
sociais" (1964, p. 77).
Mauss (1979) também oferece relevante contribuição so­
bre a discussão do tema, mostrando que a sociedade se expri­
me simbolicamente em seus costumes e instituições por meio
da linguagem, da arte, da ciência, da religião, assim como das
regras familiares, das relações econômicas e políticas. Portan­
to, para ele, são objeto das ciências sociais tanto a coisa, o fato,
como a sua representação. O autor, no entanto, chama atenção
para a diferenciação entre esses dois níveis, considerando o
risco de se reduzir a realidade à concepção que os homens
fazem dela.
A visão de objetividade positivista das representações so­
ciais tem sido duramente criticada por várias correntes no in­
terior das ciências sociais. Para os estudiosos da Sociologia
Compreensiva e da abordagem fenomenológica, o aspecto
mais problemático da teoria positivista sobre as representa­
ções se refere ao poder de coerção atribuído à sociedade so­
bre os indivíduos, de maneira quase absoluta. Para os marxis­
tas, a visão durkheimiana elimina o pluralismo fundamental
da realidade social, em particular as lutas e antagonismo de
1 l.issc, uma vez que não distingue as diferenciações internas
tl.is representações propiciadas pela posição do sujeito no
inotio de produção.
A Sociologia Compreensiva, representada por Max Weber
f pela Fenomenologia Sociológica de Schutz, traz relevante
•tmiribuição sobre a discussão do tema das Representações.
Os termos principais que Max Weber (1985) usa para se
lelerir ao campo teórico das Representações Sociais são "idéias",
"espírito", "concepções", "mentalidade", todos eles articula­
dos e enfeixados pela noção de "visão de mundo". Para We-
bei', a vida social, que consiste na conduta cotidiana dos indi­
víduos, é carregada de significação cultural. Essa significação é
liada pela ação social que se expressa tanto na base material
tomo na expressão de idéias, dentro de uma adequação, em
que ambas se condicionam mutuamente.
Segundo Weber, as idéias são juízos de valor que os indi­
víduos dotados de vontade possuem. Portanto, as concep­
ções sobre o real têm uma dinâmica própria e podem apre-
seiilar tanta importância quanto a base material na qual os
liiiKlamentos da sociedade se assentam. É com estas duas ex-
piessões, base material e eficácia das idéias em relação de afini-
ihiile eletiva (Weber, 1985, p. 81), que ele analisa a história do
avanço do capitalismo no mundo ocidental. De um lado,
Weber afirma que o capitalismo educa e cria seus membros
pela seleção econômica (empresários e trabalhadores). De
outro, demonstra como as idéias de (a) trabalho como vir­
tude máxima e como vocação; (b) prosperidade como bên­
ção divina e (c) lucro como fator legítimo das relações econô-
luicas contribuíram para fazer avançar o capitalismo, tanto
i|uanto ou mais do que a acumulação primitiva, tratada por
(Marx, 1973) como precondição do desenvolvimento das for­
ças produtivas:

Com referência à doutrina do mais ingênuo materia-


lismo histórico, de que as idéias se originam como "um
reflexo" ou como "superestruturas" de situações econô­
micas, somente podemos opinar mais detalhadamente
neste caso [da ética protestante em relação ao avanço do
capitalismo], que a relação casual é inversa da sugerida pelo
ponto de vista materialista (Weber, 1985, p. 35).

Com base na tese da recíproca influência entre os funda­


mentos materiais, as formas de organização político-social e o
conteúdo das idéias, Weber (1985) teoriza sobre certa auto­
nomia do mundo das representações e a possibilidade con­
creta de se estudar a eficácia histórica das idéias. No entanto,
ao afirmar essa certa autonomia, ele não descarta a possibili­
dade empírica de que, em determinados momentos, o eco­
nômico seja o fator dominante e que, em outros, podem ser
ainda elementos de outro nível, os que mais influem na for­
mação social. Por isso, durante a Primeira Grande Guerra,
Weber fez a seguinte declaração:

Não são as idéias, mas os interesses materiais e ideais


que governam diretamente a conduta do homem. Muito
freqüentemente, porém, as "imagens mundiais que fo­
ram criadas pelas "idéias" determinaram como manobrei-
ros, as linhas ao longo das quais a ação foi impulsionada
pela dinâmica dos interesses materiais (1985, p. 83).

Seu pensamento vivido e complexo, tentou desmontar


os mecanicismos imperantes em seu tempo, segundo os
quais existe sempre a determinação da base material na histó­
ria social. Seus escritos alertam teórica e metodologicamente
para a necessidade de se conhecer e de compreender histori­
camente, em cada caso, quais são os fatores que contribuem
para configurar determinado fato ou ação social, como vem
resumido na conclusão de A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo:

J
Aqui se tratou do fato e da direção em apenas um, se
bem que importante, ponto de seus motivos. Seria im­
portante investigar mais adiante, a maneira pela qual a as-
cese protestante foi por sua vez influenciada em seu de­
senvolvimento e caráter pela totalidade das condições
sociais, especialmente pelas econômicas. Isto porque, se
bem que o homem moderno seja incapaz de avaliar o sig­
nificado do quanto as idéias religiosas influenciaram a
cultura e os caracteres nacionais, não se pode pensar em
substituir uma interpretação materialista unilateral por uma
igualmente bitolada interpretação causai da cultura e da
história (Weber, 1985, p. 132).

Assim, Weber chama atenção, de um lado, para a impor­


tância de se pesquisar as idéias como parte da realidade so­
cial, e de outro, para a necessidade de se compreender a que
instâncias do social um determinado fato deve sua maior sig-
nificância. Porém, a base de seu raciocínio é de que, em qual­
quer caso, a ação humana é significativa e assim dever ser in­
vestigada.
Usando o conceito de "visão de mundo", o autor trata do
tema das concepções abrangentes e unitárias, geralmente ela­
boradas pelos gmpos dominantes de determinada sociedade.
Cita, como exemplo, o fato de que: "O enriquecimento como
fim obrigatório do homem para a glória de Deus, trazido pela
ética protestante, contradiz o sentido ético de épocas históri­
cas inteiras e anteriores à atual" (1985, p. 72). Weber refere-se
nesta frase à luta dos clérigos protestantes para incluírem na
sociedade do século XVIII as idéias de prosperidade material,
em contraponto com a idéia igualmente forte de trabalhar pelo
Reino do Céu, proveniente da hegemonia da Igreja Católica,
Apostólica e Romana. Weber demonstrou que, historicamen­
te, a prática da religião católica impedia a expansão do capita­
lismo. Esse autor evidenciou em seus estudos clássicos que a
nova experiência religiosa do protestantismo europeu e ame-

4
ricano (nova visão de mundo) teve de propor concepções
abrangentes e alternativas no modo de encarar as relações entre
Deus e os homens, o tempo, o espaço, o trabalho, a divisão
do trabalho, a riqueza, o sexo e os papéis sociais.
Em síntese, Weber, junto com Durkheim, remete à impor­
tância da compreensão das idéias e de sua eficácia na configu­
ração da sociedade, e ambos chamam a atenção para o estudo
empírico dos desenvolvimentos históricos. Porém, Weber avan­
ça em relação ao que Durkheim (1978) propôs, introduzindo
a história como constmtora de especificidades e de determi­
nações. Por isso, sua contribuição sobre a eficácia das idéias é
ímpar e fundamental.
Na mesma trilha da sociologia compreensiva, a fenome-
nologia sociológica de Schutz (1964; 1971; 1979; 1982; 1987)
também traz grande contribuição para se pensarem as Repre­
sentações Sociais, sobretudo para a operacionalização desse
conceito na pesquisa social qualitativa.
A sociologia de Schutz tem por objeto o mundo do dia-a-
dia, oferecendo elementos para compreensão dos pressupos­
tos das estruturas significativas da cotidianidade. Para ele, a
compreensão do mundo se dá a partir de um estoque de expe­
riências pessoais e de outros, isto é, de companheiros, prede-
cessores, contemporâneos, consorciados e sucessores. Schutz
(1982) usa a noção de "senso comum" para falar das repre­
sentações sociais. Para o autor o senscr comum é constmído
por meio da interpretação dos fatos do dia-a-dia. Portanto, a
existência cotidiana, segundo Schutz, é dotada de significa­
dos e portadora de estruturas de relevância para os grupos
sociais que vivem, pensam e agem em determinado contexto
social. Esses significados, que podem ser objeto de estudo
dos cientistas sociais, são selecionados pelos gmpos e coleti­
vidades por meio de constmções mentais, de "representações
do senso comum" (Schutz & Luckmann, 1973). Assim o mun­
do do dia-a-dia é entendido como um tecido de significados,
constituído pelas ações humanas. O teorema clássico de Tho-
mas & Znaniecki, segundo os quais "se os homens definem
situações como reais, elas são reais em suas conseqüências"
resumem o pensamento fenomenológico:

Os homens respondem não apenas aos aspectos físi­


cos de uma situação, mas também e por vezes, primaria­
mente ao sentido que esta situação tem para eles. Uma
vez que eles atribuem algum sentido à situação, o seu
comportamento subseqüente e algumas das conseqüên­
cias deste comportamento são determinados por este sen­
tido anteriormente atribuído (1963, p. 197).

Na verdade, Thomas & Znaniecki conferem ao sentido atri­


buído à ação pelo sujeito o mesmo nível de coerção que Durk-
heim (1978) atribui às representações sociais que emanam do
coletivo.
Uma terceira corrente na interpretação do papel das re­
presentações sociais vem da dialética marxista. Se na totalida­
de de seus escritos Marx & Engels (1984) falam da relação en­
tre as idéias e a base material, pode-se dizer que A Ideologia
Alemã é uma explanação clássica sobre o tema. Neste texto, os
autores discutem o papel das representações focalizado na
análise das ideologias. Marx & Engels primeiro discorrem so­
bre o que os filósofos de seu tempo consideravam "as quime­
ras, as idéias, os dogmas, as ilusões" (1984, p. 21), produzi­
dos e reproduzidos pela mente humana ou pela consciência.
Para os filósofos com quem Marx & Engels dialogam, as mu­
danças da sociedade adviriam da substituição das "falsas re­
presentações" por pensamentos correspondentes à essência
do ser humano.
Marx & Engels são profundamente críticos em relação ao
que denominam "fantasias inocentes e pueris da filosofia ale­
mã neo-hegeliana" (1984, p. 22) e, a partir dessa crítica, ela­
boram e discutem sua teoria sobre as ideologias e que corres­
pondem neste texto ao tema das Representações Sociais. Os
autores colocam como princípio básico do "pensamento" e
da "consciência", determinado modo de vida dos indivíduos,
condicionado pelo modo de produção de sua vida material:

Indivíduos determinados, que, como produtores,


atuam também de forma determinada, estabelecem entre
si relações sociais e políticas determinadas. [. . .] Portan­
to, a produção das idéias, das representações, da cons­
ciência está, de início, diretamente entrelaçada com a ati­
vidade material e com o intercâmbio material entre os
homens, como a linguagem da vida real. O representar, o
pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparece aqui
como a emanação direta de seu comportamento material.
[. . .] Os homens são produtores de suas representações e
de suas idéias, mas os homens reais, ativos, tal como se
acham condicionados por um determinado desenvolvi­
mento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a
ele correspondente (Max & Engels, 1984, pp. 35-44).

A categoria-chave, em Marx & Engels, para tratar do campo


das idéias é dada pela noção de consciência. Para ele, as repre­
sentações, as idéias e os pensamentos são o conteúdo da cons­
ciência que por sua vez é determinada pela base material:

Não é a consciência que determina a vida, é a vida que


determina a consciência. [. . .] A consciência é desde o iní­
cio um produto social: ela é mera consciência do meio
sensível mais próximo, é a conexão com outras pessoas e
coisas fora do indivíduo. [. . .] A consciência jamais pode
ser outra coisa que o homem consciente e o ser dos ho­
mens é o seu processo de vida real (1984, pp. 43-5).

Mesmo dando primazia à vida material, Maix & Engels, em


todos os seus escritos, trabalham com a relação dialética dessa
base com a produção simbólica: "as circunstâncias fazem os
homens, mas os homens fazem as circunstâncias" (1984, p.
45). Nesse sentido, relativizam o determinismo mecânico da
Itase material sobre a consciência, chamando atenção para as
contradições existentes entre as forças de produção, o estado
social e as idéias. Para esses autores, a manifestação da cons­
ciência se faz por meio da linguagem; Ela nasce da carência, da
necessidade de intercâmbio com os outros homens: a linguagem é a
consciência real, prática, que existe para os outros e existe também
para mim mesmo (1984, p. 43).
Em A Ideologia Alemã, Marx & Engels fazem um paralelo
entre consciência e linguagem, entre representações e o que
denomina "real invertido", mostrando como as idéias estão
comprometidas com as condições de classe:

As idéias de classe dominante são, em cada época, as


idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material
dominante da nossa sociedade, é ao mesmo tempo sua
força espiritual dominante. Daí que, as idéias daqueles aos
quais faltam os meios de produção material estão subme­
tidas às classes dominantes. As idéias dominantes nada
mais são do que a expressão ideal das relações materiais
dominantes, colocadas como idéias gerais, comuns e uni­
versais de todos os membros da sociedade (1984, p. 47).

Dois outros autores marxistas deram grande contribuição


na constmção do campo das representações sociais: Gramsci
(1981) e Lukács (1974). Gramsci aborda o tema das represen­
tações, de forma muito específica, quando trata do senso co­
mum e do bom senso como categorias fundamentais para a cons-
Irução do conceito de hegemonia, termo essencial no discurso
ile sua teoria política. Este autor dá relevância à questão peda­
gógica da transformação social por meio da formação políti­
ca. O autor comenta que, nos seus Escritos, Marx se preocu­
pou com o senso comum e com a solidez das crenças das
massas, mas não para se referir ao seu valor potencial de mu-
dança. Pelo contrário, queria chamar atenção para a solidez
dessas crenças, particularmente da religião, como produtoras
de normas de conduta e de conformismo.
Gramsci rebate as teorias mecanicistas do "determinismo
econômico da base material sobre as idéias" e desenvolve o
conceito de bloco histórico por meio do qual enuncia sua visão
sobre as relações entre a base material e as idéias:

As forças materiais são o conteúdo e as ideologias são


a forma sendo que esta distinção entre o conteúdo e for­
ma é puramente didática, já que as forças materiais não
seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideolo­
gias seriam fantasias individuais sem as forças materiais
(Gramsci, 1981, p. 63).

Para esse autor, o senso comum como matéria-prima tem


potencial transformador. Mesmo como pensamento fragmen­
tário e contraditório, o senso comum deve ser levado em con­
ta, compreendido, avaliado e recuperado criticamente, uma
vez que ele corresponde espontaneamente às condições reais
de vida da população. Por isso, Gramsci faz uma crítica radi­
cal ao preconceito racionalista contra o povo e contra seus
usos e costumes em várias partes de sua obra. Evidencia, por
exemplo, em seus escritos, que todas as classes e estratos so­
ciais têm seu senso comum como um conjunto de idéias veicu­
ladas no cotidiano e é com esse conjunto de idéias que a vida
é levada:

Pela própria concepção de mundo pertencemos sem­


pre a um determinado grupo, precisamente ao de todos
os elementos sociais que partilham de um mesmo modo
de pensar e agir. Somos conformistas de algum confor­
mismo, somos sempre homens-massa ou homens-coleti-
vos (1981, p. 12).
Voltada para reflexão sobre o campo político e a prática
pedagógica, a descrição que Gramsci faz da consciência desse
"liomem-massa" (todos os participantes de uma sociedade)
ressalta, de um lado, os elementos de incoerência e conserva­
dorismo que a povoam, mas, de outro, enaltece suas possibi­
lidades e sinais de mudanças:

Nossa própria personalidade é composta de uma ma­


neira bizarra: nela se encontram elementos dos homens
da caverna e princípios da ciência mais moderna e pro­
gressista; preconceitos de todas as fases históricas passa­
das, grosseiramente localistas e, intuições de uma futura
filosofia que será própria do gênero humano mundial­
mente unificado (1981, p. 12).
O subalterno é apenas simples "paciente", simples coi­
sa, simples irresponsabilidade? Não, por certo. Em que
reside exatamente o valor do que se costuma chamar de
"senso comum" ou "bom senso"? Não apenas no fato de
que, ainda que implicitamente, o senso comum empre­
gue o princípio da causalidade, mas no fato muito mais
limitado de que, em uma série de juízos, o senso comum
identifique a causa exata, simples, imediata, não se dei­
xando desviar por fantasmagorias e obscuridades metafí­
sicas, pseudometafísicas e pseudoprofundas (1981, p. 35).

fazendo-se uma síntese da contribuição de Gramsci so-


bif o conceito de Representações Sociais, podem ser evidencia­
dos t|uatro aspectos importantes: (a) primeiramente, o autor
t luma atenção para o caráter de conformismo e de ilusão ne­
las (ontido e para a abrangência desse conformismo que in-
iliii todas as classes sociais, (b) Em segundo lugar, Gramsci
Niípcra a idéia de que o "senso comum" seja algo negativo e
iMcicnle à ignorância das massas, (c) Em terceiro lugar, o au-
loi enaltece os aspectos dinâmicos das representações que
IMidein ser geradores de mudanças, ao mesmo tempo que co-
]

existem com o conservadorismo próprio da repetição cotidia­


na das idéias e dos comportamentos que acabam por confor­
mar a cultura; (d) por fim, o autor valoriza o imbricamento das
diferentes concepções de mundo e das representações sociais
nas interações, nas contradições de classes e nas expressões
de qualquer grupo social em determinada época histórica:

A concepção de mundo de uma época não é a filoso­


fia deste ou daquele filósofo, deste ou daquele grupo de
intelectuais, desta ou daquela grande parcela das massas
populares: é uma combinação de todos estes elementos,
culminando em uma determinada direção, na qual sua
culminação torna-se norma de ação coletiva, isto é, torna-
se história completa e concreta (Gramsd, 1981, p. 32).

Essa última afirmação de Gramsci remete à compreensão


das Representações Sociais como uma combinação específica das
idéias das classes dominantes e das concepções dos grupos
subalternos, numa relação de dominação, subordinação e re­
sistência entre os dois pólos permanentemente.
Lukács (1974) aprofunda o tema das Representações em Marx
& Engels, por meio da noção de visão de mundo, expressão
que também foi utilizada por Weber. Segundo esse autor, a
visão de mundo não é um dado empírico imediato, mas um
instrumento conceituai de trabalho, indispensável para se com­
preender as expressões imediatas do pensamento dos indiví­
duos. Sua importância e realidade também se manifestam no
plano empírico. Ela é o principal aspecto concreto do fenô­
meno da consciência coletiva (expressão estmturante da teoria
de Durkheim, 1978). Segundo Lukács, a "visão de mundo" é
precisamente "esse conjunto de aspirações, de sentimentos e
de idéias que reúne os membros de um gmpo (mais freqüen-
temente, de uma classe social) e as opõem aos outros grupos"
(1974, p. 60). Mas, nesse particular, Lukács se diferencia de
Weber (1974; 1985), que concebe a noção de visão de mundo
1 omo uma espécie de código coletivo de uma sociedade, mas
11.10 entra no mérito das diferenciações culturais entre estra­
tos e posições sociais.
Ueferendando o princípio da determinação da base mate-
11.11 sobre as idéias, Lukács (1974) diz que as classes sociais
s.io ligadas por um fundamento econômico que tem impor-
i.tiK ia primordial para a vida ideológica dos seres humanos,
simplesmente porque eles são obrigados a dedicar a maior
p.irle de suas preocupações e de suas atividades para garantir
.1 i-xistência, e, quando se trata das classes dominantes, a con­
servação de privilégios, a gerência e o aumento de sua fortuna.
fazendo coro com os diferentes autores já citados, Lukács
( I9K.5; 1974) concorda que nas consciências individuais se ex-
piessa a consciência coletiva (de classe) e chama atenção para o
l.iio de que o fundamento científico do conceito de "visão de
mundo", apreendido através do indivíduo, é a integração desse
pensamento individual no conjunto da vida social, notada-
mente pela análise da função histórica das classes sociais.
Resumindo os principais aspectos da contribuição da Es-
tol.i Marxista para a discussão do tema em pauta, pode-se
tll/er que os pensadores aqui citados colocam como denomi-
n.ulor comum da ideologia, das idéias, dos pensamentos, da
t onsciência, das representações sociais, a base material. Mas sua
I nniiibuição principal é introduzir, na análise, a condição da
I l.isse. O marxismo, independentemente da contribuição de
1 .1(1,1 autor, considera que a classe dominante tem suas idéias
i l.iboradas em sistemas que se configuram como ideologia,
nioi.il, filosofia, metafísica e religião. No entanto, as classes
•iiih.ilternas também possuem idéias e representações que re-
llclnn seus interesses, embora sempre numa condição de su-
Ituidinação. Portanto, todas as representações sociais são vi-
fiucs sobre a realidade, marcadas pelas contradições devidas
iio lugar que os diferentes atores ocupam no modo de pro-
ilii(,.io. E isso que define a especificidade das relações, das
iitiulições sociais e das representações.
. Para Marx & Engels, as representações estão vinculadas à
prática social. Junto com Durkheim, ele acredita na anteriori-
dade da vida social em relação às representações. Mas, enquan­
to, para Durkheim, a sociedade é a "síntese das consciências",
para Marx, a consciência emana das relações sociais contradi­
tórias entre as classes e pode ser captada empiricamente como
produto da base material, "nos indivíduos determinados, sob
condições determinadas". O próprio Durkheim faz questão
de marcar sua diferença com as teorias marxistas quando fala
a respeito da religião:

É preciso guardar-se de ver na teoria das Represen­


tações um simples rejuvenescimento do materialismo his­
tórico. Não pretendemos dizer, mostrando na religião uma
coisa essencialmente social, que ela se limita a traduzir,
em uma ou outra linguagem, as formas materiais da so­
ciedade e suas necessidades imediatas e vitais. A cons­
ciência coletiva é outra coisa que um simples epifenô-
meno da sua base morfológica. Ela é uma síntese "sui
generis" das consciências particulares. Esta síntese tem
por efeito produzir todo um mundo de sentimentos, de
idéias, de imagens, que uma vez nascidos obedecem às
leis que lhes são próprias. Atraem-se e se repelem, seg­
mentam-se sem que todas estas combinações sejam dire­
tamente comandadas pelo estado da-realidade subjacente
(1978, p. 227).

Em relação a Weber, a teoria de Marx Engels sobre as


Representações Sociais se aproxima no que concerne ao peso
das visões dominantes:

A nova classe dominante é obrigada, para alcançar os


fms a que se propõe, a apresentar seus interesses como
sendo interesses comuns de todos os membros da socie­
dade. É obrigada a emprestar às suas idéias a forma de
universalidade e apresentá-las como sendo as únicas ra­
cionais, as únicas universalmente válidas (1984, p. 74).

Weber (1985; 1974), ressalta a necessidade de concepções


íle mundo abrangentes, formadas por categorias de pensamento
!• de ação estruturantes, para que determinada sociedade se
mantenha. No entanto, enquanto suas elaborações coincidem
nii alguns pontos com as de Marx & Engels, separam-se pela
|>ioposta marxista de incluir classe como um conceito estrutu-
lanie do social, em contraposição ao termo totalizante socie-
ihiile usado por Weber.
Com relação ao status das Representações Sociais no conjun­
to tias relações, Durkheim estabelece que a vida social causa
as idéias; para Weber existe uma relação de adequação entre
Itleias e base material; e Marx & Engels consideram a base ma­
tei ial no lugar das determinações.
Todos os três clássicos concordam com a importância de
se lompreender as representações sociais para se entender a
lealitlade social. Para Marx & Engels, as representações estão
( 4 ) Lulas ao real. Portanto, o estudo e a análise das representa-

loes tlevem ocorrer simultaneamente à análise das relações


I,

sniiais de produção nas quais determinado grupo social se


move. Durkheim, reafirmando a importância das representa­
ções, diz que o pensamento coletivo deve ser estudado, tanto
it.i lorma como no conteúdo, por si e em si mesmo, na sua
I ificidade, pois uma representação social, por ser coletiva,
|.l apresenta garantias de objetividade. Portanto, por mais es-
ii.mlias que possam parecer, elas contêm verdades que é pre-
I Tio descobrir. Para Weber, as representações e idéias têm uma
dlii.miica própria e podem ter tanta importância quanto tem
.1 base material. Devem ser estudadas em sua historicidade.
Para o conjunto dos autores, é no plano individual que
ai lepre.sentações sociais se expressam. Marx & Engels (1984)
lalam na Ideologia Alemã de sujeitos históricos ou de "indiví­
duo-. determinados", como portadores de uma forma pecu-
Liar de relações sociais, políticas e econômicas. Durkheim
(1978) chama atenção para o fato de que as idéias coletivas
tendem a se individualizar nos sujeitos, tornando-se para eles
uma fonte autônoma de ação. E Weber (1985; 1974) ressalta
que o indivíduo, como portador de cultura e de valores so­
cialmente dados, é a "constelação singular" que informa so­
bre a ação social de seu gmpo, tendo-se em conta que o limi­
te de suas informações é seu próprio valor.
Ao terminar essa reflexão, é preciso notar que em muitos
pontos esses autores coincidem, mas as suas divergências são
fundamentais, pois cada uma das teorias sociológicas que
representam partem de uma "visão de mundo" específica.
Enquanto, para Durkheim, as representações sociais exercem
coerção sobre os indivíduos e a sociedade, para Weber os indi­
víduos é que são portadores de valores e de cultura que infor­
mam a ação social dos grupos. Marx & Engels consideram,
com Durkheim, que os valores e crenças exercem papel coer­
citivo sobre "as massas", mas insiste no caráter de classe das
representações e no papel da luta de classe que se dá no modo
de produção e determina o campo ideológico. Se, para Durk­
heim, a coerção das representações é de tal monta que a so­
ciedade se configura como a "síntese das consciências", Marx
& Engels admitem o papel libertador da consciência de classe,
tratando-a como motor da mudança no interior das contradi­
ções que atravessam a sociedade capitalista.
A partir dos autores clássicos aqui invocados, conclui-se
que a categoria Representações Sociais é central para a prática da
pesquisa qualitativa tanto para a realização de entrevistas como
para a observação de campo. As Representações Sociais manifes­
tam-se em falas, atitudes e condutas que se institucionalizam
e se rotinizam, portanto podem e devem ser analisadas. Mes­
mo sabendo que o senso comum traduz um pensamento frag­
mentário e se limita a certos aspectos da experiência existen­
cial freqüentemente contraditória, ele possui graus diversos
de claridade e de nitidez em relação à realidade, como eviden-

Lj.
(i.imGramsci (1981) eSchutz (1964; 1971; 1979; 1982; 1987).
I IIIIto da vivência das contradições que permeiam o dia-a-
tli.i tias classes sociais, e sua expressão marca o entendimento
delas com seus pares, seus contrários e com as instituições. Com
o senso comum, os atores sociais se movem, constroem sua
vitla e explicam-na mediante seu estoque de conhecimentos.
Mas, além dos aspectos mencionados, o senso comum
possui núcleos positivos de transformação e de resistência na
(orma de conceber a realidade, assim, tanto o "senso comum"
(omo o "bom senso", para usar expressões de Gramsci, são
sistemas empíricos de representações sociais observáveis, ca­
pazes de revelar a natureza contraditória da organização em
(|iie os atores sociais estão inseridos.
Algumas Representações Sociais são mais abrangentes, pois
ifvelam a visão de mundo de determinada época. Mas essas
mesmas idéias abrangentes possuem elementos de conforma-
ç.io, de transformação, de inconformismo e de projeção para
0 fu tu ro.
As Representações Sociais não são necessariamente cons-
t ieiiles, porque elas constituem a naturalização de modos de
lazer, pensar e sentir habituais que se reproduzem e se modifi-
(am a partir das estmturas e das relações coletivas e de grupos.
Mesmo no caso das elaborações filosóficas, seu conteúdo re-
llele idéias, ao mesmo tempo das elites e das grandes massas,
expressando contradições vividas no plano das relações so-
<iais de produção. Por isso mesmo, qualquer esquema ideo-
logico contém elementos de dominação de classes e de resis­
tências sociais, de contradições e conflitos e de conformismo.
Ainda que algumas formas de pensar a sociedade sejam
.ihrangentes e resistentes como cimento que mantém estru-
niias e statu quo, cada gmpo social faz da visão abrangente
lima representação particular, de acordo com a sua posição
no conjunto da sociedade. Essa representação é portadora tam­
bém dos interesses e do dinamismo específicos dos gmpos e
1lasses sociais.
. Por serem ao mesmo tempo ilusórias, contraditórias e ver­
dadeiras (nos vários sentidos aqui evocados), as representa­
ções podem ser consideradas matéria-prima para a análise do
social e também para a ação pedagógica e política de transfor­
mação, pois retratam e refratam a realidade. Porém, é impor­
tante observar que as Representações Sociais não conformam a
realidade e seria outra ilusão tomá-las como verdades científi­
cas, reduzindo a análise de um processo ou fenômeno social
à concepção que os atores sociais fazem dele.
Para terminar, vale reforçar a idéia de que a mediação pri­
vilegiada para a compreensão das representações sociais é a
linguagem do senso comum, tomado como forma de conheci­
mento e de interação social embora qualquer outro tipo de
manifestação simbólica deva ser considerada uma forma de
representação da realidade (por exemplo, a forma tradicional
de disposição das carteiras na sala de aula, o desenho arquite­
tônico de um hospital, o organograma de uma instituição).
Segundo Bakhtin, "a palavra é o fenômeno ideológico por
excelência. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação
social" (1986, p. 36). Particularmente quando se trata da co­
municação da vida cotidiana as palavras são fundamentais.
Elas são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e
servem de trama para as relações sociais em todos os domínios.
Bakhtin chama atenção para o fato de que cada época e cada
gmpo social têm seu repertório de formas de discurso, deter­
minado pelas relações de produção e pela estmtura sociopo-
lítica. Portanto, a palavra é, ao mesmo tempo, uma produção
histórica e arena onde se confrontam interesses contraditó­
rios, servindo ao mesmo tempo como instrumento e como
material de compreensão da realidade.

♦ Representações sociais de saúde e doença

Desde o início do século XX, sociólogos e antropólogos


aportaram uma contribuição muito importante para o setor
saúde, ao demonstrar, por meio de estudos empíricos, o fato
de que a doença, a saúde e a morte não se reduziam a uma
evidência orgânica, natural, objetiva, mas que sua vivência pelas
pessoas e pelos gmpos sociais estavam intimamente relacio­
nadas com as características de cada sociedade: a doença, além
de sua configuração biológica, é também uma realidade cons­
truída e o doente é um personagem social. Para expressar essa
relação, Latour (2000) fala do híbrido biológico-social.
Ao introduzir a obra de Mauss (1950), por exemplo, Lévi-
Strauss fez algumas considerações que se tornaram clássicas e
t|ue dizem respeito ao tema aqui tratado. Refletindo sobre as
vivências de fenômenos que incluíam mudanças corporais,
esse autor ressaltou que:

O esforço irrealizável, a dor intolerável, o prazer e o


aborrecimento são menos função das particularidades in­
dividuais que de critérios sancionados pela aprovação ou
desaprovação coletivas [. . .] Em face das concepções ra­
cistas que querem ver no homem o produto de seu corpo,
mostra-se, ao contrário, que é o homem, sempre e em toda
parte, que faz de seu corpo um produto de suas técnicas e
de suas representações (Lévi-Strauss, 1950, pp. XIII-XIV).

Refletindo sobre os achados antropológicos de Mauss


(1950) sobre tribos neozelandesas e australianas, Lévi-Strauss
mostra que uma representação específica tão forte e enrai-
/.id.i nas culturas como a de saúde/doença manifesta vigo-
los.i mente as concepções de uma sociedade como um todo.
< .111,1 sociedade tem um discurso sobre saúde/doença e sobre
u (oipo que corresponde à coerência ou às contradições de
^ti.i visão de mundo e de sua organização social. Assim que,
.ilfiii de ser capaz de criar explicações peculiares sobre os fe-
mmienos do adoecimento e da morte, as categorias saúde/
iliM iiça devem ser consideradas janelas abertas para com-
pireiisão das ações humanas, das relações entre os indiví-
1
duos e a sociedade das instituições e de seus mecanismos de
direção e controle:

Em todas as condutas em aparência aberrantes, os


doentes não fazem senão transcrever um estado do grupo
e tornar manifestas tais circunstâncias. Sua posição perifé­
rica em relação a um sistema local não impede que eles
sejam parte integrante de um sistema total. Pode-se dizer
que, para cada sociedade, condutas normais e condutas
especiais são complementares (Lévi-Strauss, 1950, p. XXII).

O comentário de Lévi-Strauss ressalta o belo e forte texto


de Mauss (1950) intitulado "L'Idée de Mort" no qual esse an­
tropólogo analisa a maneira como povos neozelandeses e aus­
tralianos pesquisados por ele encaravam as doenças e o faleci­
mento. A idéia de morte, demonstra Mauss, com base em vários
trabalhos de campo, é construída e cria uma ligação direta
entre o físico, o psicológico e o moral, conformando uma re­
presentação social peculiar. Este autor relata que, em grande
número de sociedades estudadas por ele, o medo da morte,
de origem puramente social e sem nenhuma mistura de fato­
res mórbidos individuais, é capaz de criar manifestações men­
tais e físicas de adoecimento entre as pessoas, por razões de
consciência e de transgressão das normas vigentes. Essas pes­
soas passam a se relacionar com sua morte, mesmo que em
seus corpos não haja lesões aparentes ou conhecidas que jus­
tifiquem o óbito: "São casos acontecidos de mortes causadas
brutalmente, em numerosos indivíduos, mas simplesmente
pelo fato de que eles souberam ou acreditaram que iam mor­
rer" (Mauss, 1950, p. 313).
Mauss comenta, ainda, com base nos fatos observados
nesses povos, que viu muitos indivíduos serem possuídos re­
pentinamente por doenças causadas (segundo eles) por feiti­
ço, encantamento ou por pecado de comissão ou omissão. A
idéia cultural do que seja doença, para esses grupos, seria a
( li.ive para a compreensão dos adoecimentos e dos óbitos.
I Ima dessas idéias é de que deve morrer o indivíduo que in-
liinge alguma norma ou algum tabu. Nesses casos, o sujeito
(|iie adoece ou morre não se crê ou não se sabe doente a não ser
por causas coletivas e sagradas que o sustentam e mantêm sua
(omunidade. A partir de suas observações em campo. Marcei
Mauss criou o relevante conceito de fato social total (1950, p.
115), segundo o qual a expressão de um problema tão forte
(omo o adoecimento mobiliza o biológico, o emocional, as
lelações e toda a estrutura cultural de uma comunidade.
A seguinte afirmação de Douglas vai ao encontro da posi­
ção de Lévi-Strauss (1950) e Mauss (1950):

O corpo social limita a forma pela qual o corpo físico


é percebido. A experiência física do corpo é sempre modi­
ficada pelas categorias sociais através das quais é conheci­
da, sustentando uma visão particular da sociedade (1971,
p. 83).

Portanto, a partir das Ciências Sociais pode-se dizer que


liá uma ordem de significações culturais mais abrangentes
que informa o olhar lançado sobre o corpo que adoece e que
morre. A linguagem da doença não é, em primeiro lugar, lin­
guagem em relação ao corpo, mas linguagem que se dirige ã
socieda-de e às relações sociais de forma histórica. Seja qual
(or a dinâmica efetiva do "ficar doente", no plano das repre­
sentações, o indivíduo julga seu estado, não apenas por ma­
nifestações intrínsecas, mas a partir de seus efeitos: ele busca
no médico (ou no correspondente a ele em cada sociedade) a
legitimidade da definição de sua situação. Dessa situação legi-
Iimada, ele retira atitudes e comportamentos em relação a seu
estado e assim se torna doente para o outro, ou seja, para a
sociedade.
A referida ordem de significações culturais sobre saúde/
iloença informa e se refere: (a) ã visão do mundo; (b) a atitu­
des coletivas em face da infelicidade dominadora; (c) ao peca­
do que se personaliza na doença e significa o rompimento do
homem com limites dados pelas regras e normas da socieda­
de freqüentemente traduzidas em códigos morais ou religio­
sos; (d) ao corpo doente como espaço de fraquezas e decadên­
cia, simbolizando o sentimento de infelicidade e de alienação,
da finitude e da precariedade individual e social.
Saúde como capital econômico e social — O setor saúde é
considerado na contemporaneidade e no mundo inteiro,
como um dinamizador da economia pela sua capacidade de
produção de bens e serviços e um campo de geração de novos
conhecimentos e absorção de tecnologias. Além de a saúde
representar, na sociedade contemporânea, um direito dos ci­
dadãos e da coletividade, de ser um dos maiores ideais de
todas as coletividades que estabelecem padrões para sua qua­
lidade de vida, saúde é requisito e propulsor de desenvolvi­
mento. Como direito e ideal, a saúde é sobretudo um bem
econômico e cultural em disputa, pois os avanços científicos
e tecnológicos beneficiam desigualmente a humanidade no
interior das sociedades, evidenciando a relação entre a acu­
mulação de capital e de conhecimento e o aumento das desi­
gualdades sociais e das diferenças do perfil epidemiológico.
No caso do Brasil, o país do Jeca Tatu no passado — em
1900 os brasileiros tinham uma expectativa de vida de 33 anos
e eram dizimados por doenças infecciosas — nos últimos cin-
qüenta anos fez progressos impressionantes, alcançando mu­
danças profundas nas condições de vida e de saúde de sua
população. Apresenta tendências crescentes de aumento na
expectativa de vida e de redução acentuada dos indicadores
de mortalidade infantil e de doenças infecciosas, acompanhan­
do perfis de países considerados desenvolvidos (Barreto &
Carmo, 1994; Monteiro, 1985; Minayo, 2000).
Uma análise mais acurada, porém, mostra disparidades
imensas dos indicadores sociais e de saúde, segundo padrões
regionais e de estratos sociais (Dachs, 2002); crescimento d(
desemprego e violências (Minayo & Souza, 1999) e de enfer­
midades de origem ocupacional (Minayo-Gomez, 2005); rea-
p.iiccimento de epidemias como cólera e dengue, persistência
de grandes endemias como doença de Chagas, esquistosso-
mose e malária, que afetam as populações mais pobres; e au­
mento diferenciado da freqüência de enfermidades crõnico-
degenerativas nos grupos sociais mais vulneráveis.
l-embrando que as classes dominantes orientam o senti­
do das representações sociais embora não as monopolizem, é
mi|K)rtante ressaltar um estudo etnográfico recente de Sfez
(1997) sobre a visão de saúde/doença das elites dos Estados
I liiidos, Japão e França. Esse autor assim resumiu os achados
do seu estudo. Há hoje, nas classes afluentes dessas socieda­
des, "um mito da saúde perfeita" (1997, p. 130) que o autor
di'liiie como um misto de religião e ecobiologia, cujos textos
s.iffi.ulos estão escritos nos laboratórios de genética e de eco-
logi.i, São seus objetos de culto os produtos da biotecnologia
•|iie acenam com a juventude perene e as receitas dietéticas.
■'•'(IS praticantes, são, principalmente os antitabagistas e os
imisumidores de comida sem colesterol.
A religião da saúde perfeita, para Sfez (1997), está definindo
...... "ova representação social de saúde, e pretende definir uma
história humana, corrigindo todos os seres humanos ge­
la lu .imente defeituosos, purificando o planeta e levando a hu-
m.iiiiil.ide ao paraíso pelas mãos da ciência. Tal representação
vt m d,i crença ilimitada na tecnociência, alimentando e reavi-
v.iiido o sonho antigo dos bacteriologistas (Nunes, 1985) de
1'limiiur as mediações políticas para se resolverem os proble-
liM'i humanos de saúde. Mas essa nova representação da saúde
pnli Ma também vai ao encontro de grandes interesses econô-
IMii IIS I oiitemporâneos, talvez os maiores nesse início de sécu­
lo IIIvolvidos nos estudos de genética e na criação de medica-
............ chamados de quarta geração. Laboratórios privados de
p»si|iiisa e empresas poderosas de seguro já trabalham com o
nm<< ilo de "purificação preventiva" (Sfez, 1997, p. 139).
O conceito de purificação preventiva tem o sentido de
purificação genética pelo mapeamento dos genes e das doen­
ças antes de a criança nascer ou ser concebida e de purificação
do planeta por meio dos projetos ecológicos (exemplos, Pro­
grama Biosfera I e Biosfera II). Ele vem sobrepor-se ao de pro­
moção da saúde (de cunho social e político) e de prevenção
(de cunho médico e epidemiológico). Esse conceito reúne a
história de uma combinação de interesses econômicos, co­
merciais e da tecnociência, formando uma ideologia alimen­
tada e reproduzida pelos grupos e classes dominantes no
mundo globalizado. Conforma uma ideologia que se assenta
nos mais profundos sentimentos e desejos da humanidade
de gozar de um bem-estar absoluto, de conservar uma juven­
tude eterna e de exorcizar a morte.
Desenvolvida num contexto socioeconômico, político e
cultural globalizado que vem acirrando as desigualdades e a
exclusão social, a representação da saúde perfeita se move no
universo dos que são altamente beneficiados pelos processos
de concentração das riquezas e do poder, fazendo que os acha­
dos da biotecnologia atropelem as diferenças culturais; en­
globa os ricos da maioria dos países. Aos mais pobres e, so­
bretudo, aos mais pobres dos países subdesenvolvidos, cabe
a exclusão ou as migalhas dessas descobertas.
No seu estudo, Sfez chama atenção para dois pontos cru­
ciais. Primeiro, a representação da saúde 'perfeita é um proje­
to globalizante e de lógica totalitária e excludente fundado
cientificamente. Nele a noção de saúde coletiva se resume à idéia
da soma da saúde de cada indivíduo saudável geneticamente.
O segundo, é que essa representação se fundamenta na consli'
tuição imaginária de uma utopia que se elabora enquanto ja
está se realizando, sob o império das seguradoras que não que-
rem investir na vida imperfeita ou em pessoas defeituosas.
No Brasil, também existem mudanças ocorrendo na re­
presentação de saúde como bem econômico, embora, du
ponto de vista de abrangência, ainda desvinculadas do essem
fialismo genético. Elas aparecem em um novo discurso sobre
0 corpo, elemento importante de muitos investimentos de
(onsumo, não apenas do que possa adorná-lo, mas do que
pode ser feito para aprimorá-lo, retardar seu envelhecimento
e mantê-lo em boa forma. Percebendo esse movimento, Ron-
tlelli diz que;

Não é mais necessariamente a doença, a fonte de ela­


boração discursiva, mas a imagem de um corpo sempre
belo e jovem, construído pelas injunções dos saberes
médicos e esportivos, tendo, na mídia, seu lugar de am­
pliação e repercussão (1995, p. 38).

Uma das decorrências dessa mudança na concepção que


1'iivilegia a saúde como uma conquista do indivíduo é o afas-
(.imniio das idéias tradicionais da saúde pública de iniciativa
Hnvcmamental para dar lugar à presença cada vez mais visível
* .11 iva das empresas especializadas na gestão das necessida­
des sociais. De um lado, crescem por toda parte, sobretudo
Mi.s grandes centros urbanos, as academias de ginástica, os
é
. I.ibes de esporte e cultivo do corpo, os spas, as dietas as
•lim. as de cimrgias plásticas e esculturais. De outro lado, de-
s. molvem-se os negócios de seguros e planos de saúde,’ for-
ti.aiidu uma frente articulada de interesses que se apóiam nas
"Mhliçoes gerais de acumulação, na crise do Estado de Bem-
1M.u .So, ial e nas estratégias atuais de uso empresarial da co-
ttimih açao e da informação (Ribeiro, 1995).
s.u/(/c como responsabilidade do indivíduo — Do ponto de
Unm d.ts lepresentações dominantes, saúde é um bem pessoal
im.lMsissiino e um negócio voltado para atingir a subjetivi-
rla.l. .1.) indivíduo e movimentar a sua ação. Essa representa­
rei* I .miiga. Já Descartes (1980) dizia que nada existe que o
iMilli l•lull não possa por si mesmo, melhor que o melhor dos
IMKili. se ele quiser ter o bom senso de prolongar sua saú-
I il .iliimação faz coro com a visão hipocrática, segundo a
qual a doença pode ensinar o homem e a se comportar ou­
vindo a natureza e percebendo o que é melhor para ele. Do
ponto de vista do senso comum, a saúde como bem indivi­
dual precioso se expressa (a) no "silêncio do corpo" como
mostra Canguilhem (1978) ou na sensação de bem-estar; (b)
numa espécie de capital de reserva, uma espécie de resistência
ou de robustez que o indivíduo vai construindo ao longo da
vida e tem origem nos cuidados da primeira infância (Herzli-
ch, 1983). (c) Na vida adulta, sua representação se vincula à
idéia de equilíbrio e de sobriedade que até permite certos de­
sequilíbrios prazerosos quando a pessoa possui aquele capi­
tal inicial de reserva conservado cuidadosamente. Essas repre­
sentações da saúde supõem uma sociedade estável e passível
de ser controlada pela vontade pessoal. Tal representação, a
mais comum na sociedade brasileira, pode ser contraditada a
partir do pensamento filosófico de Marx de que a ideologia
mostra a realidade de forma invertida. Primeiramente, nem a
vida e nem a saúde são estáveis e sua robustez, ao contrário,
mostra-se nos processos de desequilíbrio quando o indiví­
duo é capaz de se superar e de constmir novos patamares a
partir das adversidades e enfermidades. Segundo, embora exija
um forte engajamento do indivíduo na sua manutenção e qua­
lidade, a saúde é também um problema coletivo, social e po­
lítico. Assim como não se pode ser feliz sozinho não se pode
ser saudável apenas individualmente. C> ser humano é parte
de vários sistemas entrelaçados nos quais se realiza.
Na formação das novas idéias de saúde como conquista
do indivíduo, a idéia "do corpo sarado" é uma das mais evi­
dentes, tendo na mídia um papel de divulgação importantís­
simo, pois ela veicula e repercute, pela mágica das imagens,
uma representação selecionada por interesses das técnicas do
culto do corpo e por um tipo de atenção médica espetacular.
O tratamento das doenças, tal como veiculado pelas empre­
sas médicas na televisão, principalmente, promove segurança,
rapidez, eficiência e eficácia quase milagrosas, por meio de
serviços privados, personalizados, acessíveis, otimizados, rá­
pidos, eficientes, modernos, especializados e valorizados por
inovações tecnológicas.
A mesma mídia alimenta e também repercute (porque
freqüentemente a imagem traduz situações reais) um serviço
público impessoal, cruel, ineficiente e ineficaz. Embora o SUS
seja hoje um bem da sociedade brasileira, infelizmente a sua
representação na sociedade brasileira corresponde à de um sis­
tema que, por estar particularmente voltado ao atendimento
lios pobres (embora se pretenda universalizado), produz um
serviço emperrado, de baixa qualidade, penalizando os usuá­
rios por meio de filas, de lentas marcações de consultas e exa­
mes e, por tudo isso, não responde às necessidades de saúde
da população.
Representação de doença — As representações dominantes
de doença em toda a sociedade ocidental são mediadas de
lorma muito peculiar pela corporação médica, embora con-
liailições entre concepções eruditas e populares marquem as
idéias de qualquer população do mundo. Intelectual orgâni-
lo dos interesses dominantes na construção da hegemonia
i|iie se expressa em torno do setor saúde, o médico é ao mes­
mo tempo o principal agente da prática e do conhecimento. A
pioMssão, conforme Boltanski (1979), situa o médico na con-
lliicncia de três lógicas absolutamente contraditórias: (a) a
liiimanitária, que se traduz na ideologia de fazer tudo pelo
•lofiite, e na qual esse profissional exerce sua visão de deposi-
i.iiio ila vida e da morte; (b) a racional e de interesse científi-
lo, (|iie faz de cada cliente um "caso" e possível laboratório
ilt experiências; (c) a da rentabilidade econômica que susten-
i.i o status profissional na sociedade capitalista. O conjunto
tli (oiillitos gerados por essas lógicas distintas leva a que os
Hit iliios não possam, como os outros comerciantes de bens e
iMços, explicitar, como fim único de seu empreendimento,
1» m.iximizações de lucros. Mas, freqüentemente, como refere
Htili.iiiski, é essa lógica que predomina no seu agir profissio­
nal e na sua corporação, informando sua relação com o Esta­
do, com a população e com os clientes.
Na visão tecnológica da medicina, as doenças funcionam
como desafio à ciência, ao progresso e reafirmam a ideologia
desenvolvimentista, segundo a qual, um dia, as descobertas
acabarão com as enfermidades e a morte será vencida. A partir
dos interesses corporativos, elas são o espaço privilegiado de
acirramento na guerra competitiva entre gmpos profissionais,
laboratórios e indústrias de equipamentos. Elas medeiam a
luta entre saber e poder econômico, organicamente relaciona­
dos com o sistema de produção médico. No entanto, a con­
tradição maior que existe entre a proposta corporativa e a rea­
lidade é que, a despeito da imagem salvadora e filantrópica
que a corporação médica tenta projetar de si e de seu poder,
sua história está carregada de fracassos que evidenciam sua
impotência ante a morte. A noção de fracasso, materializada na
morte, portanto, faz parte da representação médica da doen­
ça. Referindo-se à história da medicina moderna, Boltanski
escreve:

[Ela é] a história de uma luta contra os preconceitos


do público e, mais especialmente, das "classes baixas", uma
história contra as práticas médicas populares, com o fim
de reforçar a autoridade do médico, de lhe conferir o
monopólio dos atos médicos e colocar sob sua jurisdição
novos campos abandonados até então ao arbítrio indivi­
dual, tais como a criação dos recém-nascidos ou a alimen­
tação (1979, p. 14).

A barreira mais visível entre o médico e a população, para


expressar e tratar das doenças ocorre por meio de um código
de linguagem fechado e específico próprio da biomedicina.
Esse código, primeiramente, atém-se ao contorno biológico e
individual do doente, explicando o fenômeno da saúde como
o bom funcionamento do organismo e como responsabilida­
de individual, separando o sujeito de seu meio, de sua expe­
riência existencial, de sua classe e dos condicionamentos de
sua situação social. Em segundo lugar, transforma o conceito
de doença numa especialidade a respeito de determinado ór­
gão, considerando o corpo como objeto de saber e espaço da
doença. Em terceiro plano, cada vez mais a práxis médica
(uncionalista chega a prescindir da realidade imediata e sen­
sível que é a pessoa em sua totalidade, voltando-se para as
mensagens infracorporais fornecidas pelos equipamentos la­
boratoriais.
Do ponto de vista da sociedade, geralmente as doenças
ou são pensadas de forma articulada à saúde, como parte do
processo vital (evidenciando que não há completo bem-estar,
assim como não há saúde perfeita) ou como eventos específi-
(os vinculados a fatores endógenos e exógenos que as desen-
( adeiam. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, os fa-
(ores endógenos do adoecimento são representados como
processos biológicos funcionais, orgânicos ou como lesões
ii t|ue ocorrem nos indivíduos por sua carga hereditária ou por
tlescuidos com a saúde. Os fatores exógenos são explicados
pelo estilo de vida e pela relação dos cidadãos com o ambiente.
A doença, pensada como um problema do indivíduo, pri-
iiuMiamente é concebida como um processo que, de imediato,
luo revela seu vínculo com o social, espelhando a ideologia
medica. O foco dessa representação indica que, independen­
te de qualquer explicação que possa ser dada, é o indivíduo
<|iie ailoece e enfrenta a morte, revelando uma tendência ao
Individualismo e a uma relação de exterioridade com a socie-
il.ide em que ele vive. No entanto, a atribuição de sentidos
d.e. i .uisas endógenas é também socialmente construída por
Inieipretações que, para todas as classes sociais, incluem de-
ilgnio divino, fatalidade ou desordem, remetendo à desobe-
dleiK i.i ou à quebra de normas e tabus coletivos. Portanto,
imMim nas sociedades contemporâneas, existe um conflito
•Min- as explicações meramente biológicas individualizantes.
a contribuição do estado mental, das relações sociais e das
interpretações culturais na observação de como uma pessoa
adoece e vive sua doença (Kleinman, 1980; Good & Good,
1980; Leinman, 1988).
As concepções da origem da doença por causas ambien­
tais estão ligadas à visão construída sobre o funcionamento
da sociedade, quase sempre considerado agressivo, opressivo
einsalubre. O mododevida, definidoporHerzlich (1983; 1985)
como sendo o quadro espacial e temporal no qual o indiví­
duo vive, na maioria dos discursos sobre saúde é considerado
pernicioso por suas características (densidade de população,
atmosfera), pelo ritmo de vida (horários e estímulos), assim
como por seus reflexos em certos comportamentos cotidia­
nos (alimentação, atividades, descanso e sono). O meio am­
biente e a própria organização social são representados como
hostis, portadores de doença e desequilíbrio. Nesse sentido,
a representação das causas das enfermidades opera a partir de
uma alienação quanto ao fato de que tudo o que é e está
constmído significa uma ação humana objetivada. Em tais cir­
cunstâncias, a saúde continua a ser vista como um atributo de
quem afronta o mundo insalubre. E a doença, um fracasso de
quem é vítima dele.
Nada tão poderoso como as chamadas doenças-metáfora
para evidenciar a representação de uma enfermidade tanto para
a corporação médica como para uma sociedade dada, ensina
Sontag (1984). Por doenças-metáfora entendo o conjunto de
enfermidades cuja enunciação enseja catástrofes. Essas doen­
ças, geralmente, possuem uma longa história de desenvolvi­
mento e de envolvimento com o imaginário social e mobili­
zam forças que suscitam medo e proscrição na sociedade.
Sontag (1984) cita, como exemplos de doenças-metáfora, a
peste nos séculos XVI e XVII, a tuberculose e a sífilis no século
XIX, o câncer no século XX e a aids na contemporaneidade.
Do ponto de vista sociológico, as doenças-metáfora po
dem ser consideradas categorias-síntese, porque conseguem
criar um consenso a respeito da fonte dos males na socieda­
de. Em geral, são explicadas como parte das anomalias e catás­
trofes sociais ligadas e frutos de transgressões individuais, pro­
vocando autojulgamento e autopunição. Pelo fato de algumas
delas, como é o caso do câncer e a aids, atingirem a todos os
gmpos sociais independentemente da situação social (embo­
ra sempre existam diferenciações de classe e de cultura no seu
enfrentamento) costumam vir associadas às idéias de desor­
dem, de desvios morais e até à crença na "devassidão" do ser
humano.
Por desafiarem a arrogância da competência médica e do
poder econômico, as doenças-metáfora costumam relativizar
0 caráter de classe das propostas de saúde perfeita e de imor­
talidade. Por isso, constituem fenômenos privilegiados para
ijuestionamento da precariedade da organização social, pois
1eu nem a ameaça de morte da humanidade, anunciam sua
decadência, perpetuam a permanência simbólica ou real da
iiifelicidade e chamam atenção para os comportamentos con-
siilerados recrimináveis, vetores do mal de hoje e sempre.
No caso de algumas das doenças como é o caso da sífilis e
tl.i <úds, sua evocação como fenômeno social é conservadora,
pois apela para o retorno a um passado sempre considerado
MMis saudável, ou para motivos religiosos e transcendentais.
Nos seus efeitos, as doenças-metáfora sempre ressaltam con-
ludições entre avanços e recuos nos processos de mudanças,
<Mibora, como já referi, elas empurrem a sociedade, preferen-
I m Imente, para o conservadorismo:

As modernas metáforas da doença especificam um


bem-estar da sociedade assemelhado à saúde física que é
i.io Ireqüentemente apolítico quanto o é um apelo à nova
mdem política (Sontag, 1984, p. 96).

Um dos motivos da orientação para o conservadorismo


K' dl \'c a capacidade de as doenças-metáfora atraírem sobre
elas sentimentos, emoções e medos em doses excessivas, obs-
curecendo, no imaginário social, as relevâncias do quadro real
de morbimortalidade. Herzlich (1983), retomando a expres­
são de Sontag (1984), fala a respeito dos efeitos que levam as
pessoas a reencontrarem a visão arcaica e a redefinirem a visão
moderna do mal, e a estabelecerem uma relação conflituosa
com os valores atuais. E, ao mesmo tempo, a evidenciarem a
fragilidade permanente do indivíduo: "Somos sempre domi­
nados e mudos frente aos cataclismas de nosso corpo" (Son­
tag, 1984, p. 101). Mas, diz a autora, no mesmo caminho a
que chegou Sfez (1997) com seus estudos: "A medicina tam­
bém, e não apenas a doença, é hoje uma metáfora: em volta
dela estão articuladas nossas interrogações mais essenciais con­
cernentes ao futuro da humanidade" (Sontag, 1984, p. 105).
Os aspectos mobilizadores de sentimentos e ações de
muitas doenças-metáfora acabam por mover o desencadea-
mento de novas tecnologias e estratégias de ação, importan­
tes para a promoção e prevenção e para a atenção aos enfer­
mos. O caso mais exemplar na atualidade é o da aids. Ela
mobiliza hoje no Brasil e no mundo, energias de pesquisa, de
desenvolvimento de tecnologias, de ações estratégicas seto­
riais e intersetoriais, e outros avanços.
No entanto, a aids mata e adoece menos que as doenças
do coração, as violências, as neoplasias, as enfermidades en-
dócrinas e muitas enfermidades infecciosas. O número de ai­
déticos que precisa de assistência é muitíssimo menor do que
o contingente imenso da população que precisa de cuidados
médicos de urgência e hospitalares e se expõe nas longas filas,
esperando atendimento. Os problemas de magnitude das
enfermidades colocadas nos primeiros lugares no perfil epi-
demiológico dos brasileiros não chamam atenção tanto quan­
do a aids. Ressalto, portanto, a força das doenças-metáfora e o
fato de que, nem sempre, a representação das doenças e seus
riscos numa sociedade coincidem com o perfil de sua inci­
dência e prevalência no mapa de seus problemas de saúde.
Essa reflexão sobre as representações da doença precisa
abranger, pelo menos no caso brasileiro, as visões da medici­
na popular, por meio da qual se expressa e atua boa parte dos
segmentos das classes populares e também das classes médias.
A concepção popular, é preciso que se diga, de um lado, rea-
(Irma o poder da biomedicina, também pelo uso intenso das
instituições, equipamentos e consultas médicas. De outro lado,
0 relativiza pelas experiências e conhecimentos tradicionais e
pela recorrência ao poder da religião. No pensamento popu­
lar, incondicionalmente o poder de Deus se alinha à boa saú­
de e à cura (Minayo, 1998).
Do ponto de vista da população trabalhadora, duas no-
çoes principais estão subjacentes ao tema da doença: incapa-
<idade para trabalhar e em última instância Deus é quem cura.
1ss.is duas idéias são chave do comportamento popular que
lombina o uso da medicina emdita, terapêuticas tradicionais
f lamiliares e a invocação religiosa. A representação que se
mnslrói a partir daí tem expressões como "a saúde é tudo, é a
maior riqueza", "saúde é igual à fortuna, é o maior tesouro"
t iM oposição a "tal doença é para demonstrar o poder de
Driis", ou ainda "tal enfermidade foi por castigo divino" e
m< liii e relativiza a crença no poder dos médicos que, por sua
M/, costumam tratar os pobres com pouca atenção.

A doença (ou saúde) é considerada no quadro global


dos problemas de vida e da morte, como um fenômeno
<|ue escapa, em última instância, ao controle do homem,
(oino algo que, no limite, é produto de forças sobrenatu-
uis ou, mais comumente, de Deus (Loyola, 1984, p. 162).

A miséria, a fome e o desespero que podem advir do fato


<lt (I liabalhador estar doente, sobretudo no caso dos que
M.iii ii‘ccbem benefícios sociais instituídos, lhes mostram, na
|M,iii(.i, que seu corpo é sua fonte de subsistência e única es-
de reprodução. Para eles, a doença como responsabi-
lidade pessoal e, portanto, como custo financeiro e a medica-
lização de um conjunto de atos de sua vida, é um fato real.
Dessa forma, a apreensão essencial do corpo doente, tendo
em vista a expectativa que dele tem o trabalhador leva a que a
incapacidade de fazer, mais do que as alterações no parecer,
tornem os trabalhadores apreensivos. Os sentimentos de de­
sintegração social e o medo de ficar doente e lhe faltar o reco­
nhecimento que sempre lhe veio por meio do trabalho, mar­
cam-lhe, em primeiro lugar, o corpo e o espírito.
As representações populares fazem uma combinação espe­
cífica da medicina emdita e das terapêuticas tradicionais (Mi-
nayo, 1989; 1993; 1998; Boltanski, 1979), utilizando ambos os
códigos de acordo com seus interesses. Para os trabalhadores,
os sintomas são colocados no corpo de forma localizada, nal-
gum órgão, e expressos por meio de explicações geralmenle
vinculadas a fatos existenciais, intervenções sobrenaturais ou
a situações vividas no dia-a-dia. Essa forma de atribuição de
causas por meio de uma concepção, ao mesmo tempo locali­
zada, analítica, e que contempla o conjunto das situações in­
felizes da vida cotidiana é, talvez, o primeiro ponto de mptu
ra com a linguagem médica que é, ao contrário, funcional,
sintética e específica.
Para esses gmpos, a doença refere-se internamente a dese
quilíbrios que afetam de uma só vez espírito, alma, corpo e
matéria. As doenças espirituais causadas por "excesso de tra
balho", "exposição a agentes danosos", "mau-olhado", "tra
balho feito", "espírito encostado", "castigo divino", segundo
as crenças dos enfermos ou de seu meio social integram-se,
no indivíduo, às doenças da matéria causadas pelo meio am
biente, e pelas condições de vida e ocupacionais. De acorilo
com as circunstâncias, ora o espírito, ora a matéria são mai.s
valorizados nas explicações. No entanto, em momento al
gum, esses mesmos fenômenos são apresentados apenas do
ponto de vista biológico ou apenas sob a ótica espiritual
envolvem a visão integrada do ser humano e sua relaçao
tom as condições de vida, tomadas no sentido mais amplo
(Miiiayo, 1989; 1993).
As oposições corpo/alma, indivíduo/sociedade, que são
I omplementares e mesmo inclusivas nas representações da
I lasse trabalhadora, justificam, mais do que as dificuldades
ilf linguagem, seu comportamento em relação à medicina
olii ial. Para desespero dos profissionais (que explicam o com-
poriamento popular como ignorância), os indivíduos recor-
ifiii a outras explicações, a outras atitudes e a outras estraté­
gias, pois de verdade não crêem nas prescrições biomédicas
apenas. Por isso, tomam a liberdade de reinterpretar os pre-
leilos eruditos, de integrá-los dentro de suas condições exis-
leiii iais e, ao mesmo tempo, de prescindir deles ou de subes-
iinu los, construindo assim uma maneira especial de lidar com
I serviços de assistência médica. Essa forma particular de atua-
i.ao desconcerta e questiona até mesmo as tentativas dos ges-
liiies de racionalizar o sistema de saúde brasileiro.
() modo próprio de se relacionar com a medicina oficial,
p.Mii( ularmente por meio das estratégias religiosas e tradi-
I luM.iis, pode ser considerado um esquema de resistência pró-
piMi das classes populares, em delegar à biomedicina o sentido
dl Mia vida e de sua morte. Enquanto procuram e reivindicam
II il.imento adequado e digno no sistema oficial, e ao mesmo
iiiiipi), recriam alternativas de representação do corpo e de
iiia iclação com o mundo, reafirmam sua identidade e seu
^aliri específico que também contém sabedoria.
lliii exemplo que ilustra o código particular das classes
piipiilares para classificarem suas enfermidades se encontra
iiti'1 esiiidos do Endef (Estudo Nacional de Despesas Familia-
n>i) de 1974. Esse trabalho revela que, enquanto médicos e
•pldeiiiiologistas apontam um perfil específico de morbimor-
•idldade iio País, o Endef encontrou, no primeiro lugar das
t la-iMlii ações populares, um quadro de doenças chamadas
jtilie, eiiirevistados como "nervosas" ou "doenças dos ner­
vo*. "doenças do espírito". Essas doenças eram explicadas
pelos entrevistados como um conjunto de ansiedades e insa­
tisfações que vivenciavam por causa das "dificuldades da vida".
O cansaço permanente do sobretrabalho, a alimentação insu­
ficiente, as restrições provocadas pelos baixos salários, o de­
semprego, a incapacidade de lidar com os esquemas burocrá­
ticos e impessoais compuseram um quadro explicativo das
"doenças sentidas" pelos brasileiros, sob a denominação de
"nervoso". Essas informações, se transformadas em questio­
namento, podem constituir-se em desafio para o sistema de
saúde, pois descrevem o que os médicos costumam denomi­
nar "doenças sociais".
Ora, as chamadas doenças sociais remetem aos médicos-
pensadores da metade do século XIX, quando desde então já
ressaltavam a necessidade de se aliar o atendimento tópico e
individual aos enfermos com a discussão de questões políti­
cas e econômicas, reafirmando-se o caráter legítimo da poli-
tização da saúde pública (Nunes, 1999).
Saúde como um bem coletivo — As duas representações an­
teriores, a da saúde como um bem econômico e da saúde como
concfuista individual não são exatamente sinônimas da repre­
sentação da saúde coletiva. Não que a representação da saúde
coletiva descarte os avanços da genética e da medicina, ou seja,
contra todas as estratégias de estilo de vida que promovem o
aprimoramento do corpo pelo esporte, do lazer e dos trata
mentos estéticos e as estratégias de envelhecimento saudável.
Para a saúde coletiva, saúde é um bem social, um direito uni
versai associado à qualidade e à proteção da vida, espelhando
políticas públicas e sociais universalizantes, inclusivas na ci
dadania e superadoras das imensas desigualdades sociais.
A representação de saúde coletiva inclui a visão do pro
gresso econômico em favor da eqüidade e o uso da ciência c
da tecnologia em favor da superação dos problemas e das
doenças que atingem a maioria da população que precisa cia
atenção do Estado. Incorpora o desenvolvimento da biolo
gia, da genética, das ciências ambientais, mas, por meio dn
raciocínio epidemiológico, chega a algumas conclusões: (1) a
humanidade inteira, apesar dos avanços tecnológicos, está
sujeita à subversão dos víms; (2) as avançadas tecnologias fa-
cilitadoras da vida não estão isentas de riscos; (3) as migra­
ções e movimentações humanas cada vez mais aceleradas pela
revolução dos meios de comunicação facilitam as importa­
ções de doenças; (4) existe uma adaptabilidade dos parasitos
aos espaços desiguais e integrados; e, (5) por fim, não é pos­
sível tornar a terra um paraíso quando toda a acumulação de
riquezas produz tanta exclusão social. Ou seja, a saúde perfei­
ta, como a imortalidade, é um mito.
Por causa das conclusões acima, baseadas em evidências
epidemiológicas, a saúde coletiva representa como tarefa sua
o engajamento permanente na busca de avanços sociais, polí­
ticos e nos direitos universais da população. Por isso tam­
bém, invoca investimentos públicos para pesquisa em saúde
e para o desenvolvimento tecnológico, ao mesmo tempo que
propõe a repartição de seus avanços para contemplar tam­
bém os mais necessitados e não apenas os que podem pagar
por uma medicina de alto custo.
A representação da saúde como direito coletivo é uma
bandeira de transformação das condições de vida e de traba­
lho e que aponta para transformações do modo de produção
e das relações sociais de produção: melhores salários, acesso ã
lerra, empregos, saneamento básico, transporte, moradia, edu­
cação, lazer e condições de trabalho seguras. Mas é também
uma bandeira de redefinição das prioridades do Estado. Por
isso, as análises de saúde coletiva geralmente desvendam o
caráter de classe dos investimentos públicos, chamando aten­
ção para a ampliação dos direitos reconhecidos na Constitui­
ção Brasileira e detalhados na Lei Orgânica da Saúde. Todos
os que fazem parte do setor sabem que seus parâmetros de
investigação e ação são a universalização dos direitos, a cons-
ti lição da eqüidade e o atendimento de qualidade de todos,
sem discriminação de classe. Concluindo, a representação da
Saúde como bem coletivo se contrapõe de forma crítica ao posi­
tivismo e ao mercantilismo da medicina.
O estudo das representações sociais de saúde/doença abran­
ge aspectos universalmente observáveis no tempo e nas diver­
sas sociedades e outros, peculiares ao caso brasileiro. Esses
aspectos, tratados no presente capítulo, dizem respeito à rela­
ção indivíduo/sociedade e seu ecossistema.
Saúde e doença constituem metáforas privilegiadas para
explicação da sociedade: engendram atitudes, comportamen­
tos e revelam concepção de mundo. Mediante a experiência
do viver, do adoecer e do morrer, as pessoas falam de si, do
que as rodeia, de suas condições de vida, do que as oprime,
ameaça e amedronta. Expressam também suas opiniões sobre
as instituições e sobre a organização social e as estmturas eco­
nômicas, políticas e culturais. Saúde/Doença são também me­
táforas de explicação da sociedade: de suas anomias, desequi­
líbrios, medos e preconceitos, servindo como instrumento
coercitivo ou libertador para os indivíduos e sua comunidade.
Seu status de representação privilegiada se deve ao fato de que as
noções de saúde/doença estão intimamente vinculadas aos
temas existenciais, sendo inquestionavelmente significativas.
Como fenômeno social, saúde/doença tem seu esquema
interno de explicações, que parte de um marco referencial de
especialistas (doutores, curandeiros, rezadores, mágicos), mas
também compõe o quadro da experiência do dia-a-dia, que
se expressa por meio do senso-comum. Ambas as modalida­
des de representação do fenômeno se influenciam mutuamen­
te, de forma dinâmica, embora o saber do especialista seja
dominante. Portanto, na constmção histórica da saúde e da
doença, tanto são atores e autores, os intelectuais e técnicos
do setor, como a população.
A atribuição de causas endógenas e exógenas ao fenômeno
da saúde e da doença constitui uma atitude universalmente
comprovada. É no indivíduo que essas concepções se unifi­
cam: é ele que sofre os males ou detém a condição de saudá­
vel. As causas de origem, no entanto, expressam-se, no plano
simbólico, com referência ao social. Doença é sinônimo de
infelicidade individual e coletiva: representa o rompimento
do ser humano com os limites estabelecidos pelas normas e
regras da sociedade. Saúde significa bem-estar e felicidade: ela
própria, explicitamente ou no "silêncio do corpo", é a lingua­
gem preferida da harmonia e do equilíbrio entre o indivíduo,
a sociedade e seu ecossistema.
Cada sociedade tem um grupo de doenças que poderiam
ser chamadas de doenças-metáfora. São enfermidades que, a
partir do imaginário social, perpetuam na coletividade a idéia
tie perenidade do mal e de limites do ser humano ante a amea­
ça da morte. São doenças que, por criarem um clima de medo,
ile catástrofe e de desordem, tendem a ser usadas ideológica e
politicamente como meios de recompor a harmonia social.
Além do seu caráter de sofrimento e infelicidade, elas são cons-
li Ilidas socialmente como mitos, por meio dos quais os mem­
bros dos gmpos expressam sua coerção e coesão em torno da
organização social.
Na sociedade capitalista, a representação da saúde e da
doença passa pelas contradições sociais que caracterizam o
sisiema. Do ponto de vista dominante, a saúde é de atribui­
ção individual, como um capital de reserva e de propriedade
privada que se mantém pelo equilíbrio e pela harmonia. A
(oiicepção de doença é também marcada pela responsabili-
il.ule do indivíduo em sua luta contra o mundo opressivo.
I ssa representação baseia-se na visão anatômico-fisiológica da
pessoa, na concepção do corpo como produtor e instrumen-
lo tie trabalho e na idéia desenvolvimentista do poder da tec­
nologia contra as enfermidades. As representações dominan-
les são particularmente elaboradas e veiculadas pela corporação
medica, que faz, de seus profissionais, intelectuais orgânicos,
i.mio da elaboração do conhecimento emdito, como da im­
posição de normas e atitudes a respeito do corpo e da defini-
ç.io social do doente e da doença. No entanto, suas idéias são
permeadas pela dinâmica do senso comum que contamina o
saber científico com suas próprias categorias de interpretação.
Em contraposição, apesar de assimilarem as concepções
dominantes e agirem também a partir das regras estabelecidas
pelos especialistas do sistema, as classes populares possuem
códigos resistentes à mudança. Seu esquema interpretativo
está centrado numa visão mais totalizante do fenômeno do
adoecer, que abrange a concepção do ser humano como cor-
po/alma, matéria/espírito e inclui relações afetivas e condições
de vida e de trabalho (sua situação de classes em si) na defini­
ção de sua situação de saúde e de doença. Apesar de reconhe­
cerem o poder médico e subordinar-se à medicalização, as clas­
ses populares possuem uma visão crítica, a partir da experiência,
tanto dos profissionais e de suas técnicas como do sistema de
assistência e serviço de que fazem uso. Por isso, reinterpretam
o esquema racionalizando, usam-no de acordo com seus in­
teresses imediatos e concepções particulares e não legitimam
totalmente o saber médico. Sua relação com a medicina oficial
é sempre precária, provisória e conflituosa. Sua interpretação
da vida e da morte está inevitavelmente perpassada, junto com
a crítica ao sistema dominante, pelas crenças e tradições, pela
prática da medicina caseira, tradicional e religiosa que fazem
parte de seu imaginário social vinculado à experiência cotidia­
na. Dessa forma, a partir do senso comum, elas resistem não
apenas à linguagem emdita: contraditoriamente aceitam e recu­
sam o lugar específico de força ou instmmento de trabalho.
A saúde coletiva é o espaço no interior do sistema domi­
nante que recompõe uma representação mais abrangente de
saúde, ao englobar o social como determinante e os indivíduos
como componentes de classes em oposição, rompendo a con­
cepção centrada no biológico, no individual, na harmonia e no
equilíbrio social. Saúde toma então o sentido de uma realiza­
ção atual e uma meta futura de um padrão de vida mais eleva­
do e eqüitativo da população brasileira.
Capítulo 10
TÉCNICAS DE PESQUISA

Entrevista como técnica


privilegiada de comunicação

I j n t r e v i s t a , t o m a d a no sentido amplo de comunicação


vcihal, e no sentido restrito de coleta de informações sobre
determinado tema científico, é a estratégia mais usada no pro-
<esso de trabalho de campo. Entrevista é acima de tudo uma
I oiiversa a dois, ou entre vários interlocutores, realizada por
iniciativa do entrevistador, destinada a constmir informações
pertinentes para um objeto de pesquisa, e abordagem pelo
entrevistador, de temas igualmente pertinentes tendo em vis-
i.i este objetivo.
As entrevistas podem ser consideradas conversas com fina­
lidade e se caracterizam pela sua forma de organização. Po­
dem ser classificadas em (a) sondagem de opinião, no caso de
ser elaborada mediante um questionário totalmente estrutu-
lado, no qual a escolha do informante está condicionada a
dar respostas a perguntas formuladas pelo investigador; (b)
l•lllrelnsta semi-estruturada, que combina perguntas fechadas e
.ibertas, em que o entrevistado tem a possibilidade de discor-
lei sobre o tema em questão sem se prender à indagação for­
mulada; (c) entrevista aberta ou em profundidade, em que o in­
formante é convidado a falar livremente sobre um tema e as
perguntas do investigador, quando são feitas, buscam dar mais
profundidade às reflexões; (d) entrevista focalizada, quando se
destina a esclarecer apenas um determinado problema; (e)
entrevista projetiva que usa dispositivos visuais, como fdmes,
vídeos, pinturas, gravuras, fotos, poesias, contos, redações de
outras pessoas. Essa última modalidade constitui um convite
ao entrevistado para discorrer sobre o que vê ou lê. E geral­
mente utilizada para se falar de assuntos difíceis de serem tra­
tados diretamente. É por meio de entrevistas também que se
processam as narrativas de vida, igualmente denominadas
"histórias de vida", "histórias biográficas", "etnobiografias"
ou "etno-histórias". Acrescentam-se a essas modalidades os
gmpos focais (Minayo, Assis & Souza, 2005).
A entrevista como fonte de informação fornece dados se­
cundários e primários de duas naturezas: (a) fatos que o pes­
quisador poderia conseguir por meio de outras fontes como
censos, estatísticas, registros civis, atestados de óbitos e ou­
tros, a que Lundberg (1946) chama "objetivos"; Parga Nina
(1985) o denomina "concretos" e Gurvitch (1955) qualifica
como pertencentes ao nível "ecológico ou morfológico" da
realidade; (b) e os que se referem diretamente ao indivíduo
entrevistado. São informações que tratam da reflexão do pró­
prio sujeito sobre a realidade que vivência e a que os cientis­
tas sociais costumam denominar "subjetivos" e só podem ser
conseguidos com a contribuição da pessoa. Constituem uma
representação da realidade: idéias, crenças, maneira de pensar;
opiniões, sentimentos, maneiras de sentir; maneiras de atuar;
condutas; projeções para o futuro; razões conscientes ou in­
conscientes de determinadas atitudes e comportamentos.
É preciso lembrar também que a entrevista, como forma
privilegiada de interação social, está sujeita à mesma dinâmica
das relações existentes na própria sociedade. Quando se trata
de uma sociedade ou de um grupo marcado por acirrados
conflitos, cada entrevista expressa de forma diferenciada a luz
e a sombra da realidade, tanto no ato de realizá-la como nos
dados que aí são produzidos. Além disso, pelo fato de captar
formalmente a fala sobre determinado tema, a entrevista, quan­
do analisada, precisa incorporar o contexto de sua produção
e, sempre que possível, ser acompanhada e complementa-
tla por informações provenientes de observação participante.
Dessa forma, além da fala que é seu material primordial, o
investigador terá em mãos elementos de relações, práticas,
aimplicidades, omissões e imponderáveis que pontuam o
(otidiano.
Algumas considerações práticas são, a seguir, relatadas e
precisam ser levadas em conta em qualquer situação de inte­
nção empírica, sobretudo na formalidade de uma entrevista,
seja ela estruturada, semi-estruturada ou não estruturada.
I )izem respeito ã entrada do entrevistador em caii^jo:
• Apresentação: o princípio básico em relação a esse ponto
e (|iie uma pessoa de confiança do entrevistado (líder da cole-
iividade, pessoa conhecida e bem-aceita) faça a mediação en-
lie ele e o pesquisador. Seria muito arriscado entrar, sobretu­
do em comunidades ou gmpos conflituosos, sem antes saber
n (|iie o mediador representa: ele tanto pode abrir como fe-
I li.ir portas.
• Menção do interesse da pescfuisa: o investigador deve dis-
I itiier resumidamente sobre o trabalho para seu entrevistado
f, nmbém, dizer-lhe em que seu depoimento pode contri-
Imii ilireta ou indiretamente para a pesquisa como um todo,
p.in a comunidade e para o próprio entrevistado. Ainda é
Importante mencionar e referenciar a instituição à qual o pes-
i|iiis.ulor está vinculado.
• Apresentação de credencial institucional. Hoje, sobretudo
t III ( aso de pesquisas em equipe, o coordenador costuma es-
I ii vri uma carta introdutória em que todos os aspectos prin-
1 1pais são mencionados, o papel é institucionalmente timbra-
ilii em adendo, é apresentado um termo de adesão para ser
assinado pelo interlocutor. Esse termo passou a ser exigido
desde pela Portaria 96/1996 do Ministério da Saúde que regu­
la as pesquisas nacionais com seres humanos. Mesmo levan­
do em conta todos esses cuidados, nada substitui a introdu­
ção feita por alguém de confiança de ambas as partes que possa
fazer a mediação entre o pesquisador e seus interlocutores.
♦ Explicação dos motivos da pescjuisa em linguagem de senso
comum, em respeito aos que não necessariamente dominam
os códigos das ciências sociais.
♦ Justificativa da escolha do entrevistado, buscando mostrar-
lhe em que ponto e porque foi selecionado para essa conversa.
♦ Garantia de anonimato e de sigilo sobre os dados, assegu­
rando aos informantes que não se trata de uma entrevista de
mídia, onde os nomes precisam ser ditos e, ao mesmo tempo,
mostrando que sua contribuição faz sentido para o conjunto
do trabalho.
♦ Conversa inicial a que alguns pesquisadores denominam
"aquecimento". Visa a quebrar o gelo, perceber se o possível
entrevistado tem disponibilidade para dar informações e criar
um clima o mais possível descontraído de conversa. No caso
de estar combinada com a observação participante, a constru
ção da identidade do pesquisador pelo gmpo vai se forjando
nas várias instâncias de convivência, desde o início.
Apesar de todos os esforços e cuidados, sempre haver.i
dificuldades típicas das interações de pesquisa, como já dis
corri anteriormente. Igualmente, os procedimentos enumera
dos não são nem normas rígidas nem um preceituário a sei
cumprido de forma seriada pelo pesquisador. São sugestões,
a partir da experiência, de posturas que podem ajudá-lo no
processo de interação e no diálogo com os interlocutores.

♦Entrevista Não Estruturada, Aberta ou Não Diretiva


A entrevista não estmturada ou também chamada "abei
ta" pode ser definida como "conversa com finalidade", em
que um roteiro invisível serve de orientação e de baliza para o
pesquisador e não de cerceamento da fala dos entrevistados.
Na sua realização, o pesquisador trabalha com uma espécie
de esquema de pensamento, buscando sempre encontrar os
lios relevantes para o aprofundamento da conversa. A infor­
mação não estmturada persegue vários objetivos: (a) a descri­
ção do caso individual; (b) a compreensão das especifícidades
(iilturais mais profundas dos gmpos; (c) a comparabilidade
tie diversos casos. Procura atingir essas metas, tentando man-
lei a margem de movimentação dos informantes tão ampla
quanto possível e o tipo de relacionamento livre de amarras,
miormal e aberto, dentro das limitações já conhecidas. O en-
iievistador se libera de formulações prefixadas para introdu­
zí i perguntas ou fazer intervenções que visem a abrir o campo
ile explanação do entrevistado ou a aprofundar o nível de in-
loi inações.
Nas entrevistas abertas, a ordem dos assuntos tratados não
Iil ledece a uma seqüência rígida e, sim, é determinada freqüen-
irmente pelas próprias preocupações, relevâncias e ênfases que
n entrevistado dá ao assunto em pauta. A quantidade de ma­
tei ia! produzido nesses encontros tende a ser maior, mais den-
•M » e ter um grau de profundidade incomparável em relação
.111 (|iiestionário, porque a aproximação qualitativa permite
■illiigir regiões inacessíveis à simples pergunta e resposta. A
iltoidagem desses diferentes níveis tem sido uma questão
liiiidainental das Ciências Sociais, aprofundada por alguns
.niluu-s. Para Gurvitch,

"A superfície ecológica e morfológica, no sentido lato


do termo, os ambientes tanto naturais como técnicos, os
objetivos, os corpos e os comportamentos que participam
d.i vida social e captáveis pela percepção exterior" [. . .]
i iii seguida, "as condutas preestabelecidas que são con-
iln/.idas, hierarquizadas, centralizadas, segundo certos mo­
delos refletidos e fixados previamente em esquemas mais
o u menos rígidos". [. . .] e por fim "papéis sociais assumi-
. dos por indivíduos e por grupos, as atitudes coletivas, os
símbolos sociais (1955, p. 112).

Esse autor conclui dizendo:

Parece impossível compreender a realidade social to­


tal, se não se admite que esta superposição de planos sub­
metidos a um determinante mais ou menos flexível, re­
pousa sobre um solo vulcânico, onde se agita o que há de
mais espontâneo e inesperado na vida coletiva: as condu­
tas criadoras, as idéias e valores coletivos, os estados men­
tais e os atos psíquicos coletivos (1955, p. 113).

Segundo Michelat (1975), quando se considera que cada


indivíduo, compreendido por meio das informações ofereci­
das pela entrevista, é um exemplar restrito e peculiar de sua
cultura e de sua subcultura, pode-se dizer em conseqüência
que: [a] quanto mais importante é o material produzido n.i
entrevista, mais ele enriquece a análise que busca atingir ní
veis profundos; (b) a ordem afetiva e da experiência é mai.s
determinante dos comportamentos e da fala do que o lado
racional e intelectualizado; (c) quanto menos estmturada é .i
entrevista, mas permite emergir e ressaltar os níveis sócio-efe
tivo-existenciais.
A reflexão de Michelat (1975) questiona a pretensa "objc
tividade", vista sob o ângulo positivista e que se traduz no
não-envolvimento, no uso renitente de linguagem intelectiu
lizada que os interlocutores não dominam, no controle rigi
do de atitudes corporais, fisionômicas, de gestos, frases e p.i
lavras, a pretexto de "neutralidade".
No caso da pesquisa qualitativa, ao contrário, o envolvi
mento do entrevistado com o entrevistador, em lugar de sn
considerado falha ou risco comprometedor da objetivid.ulr,
é necessário como condição de aprofundamento de uma ic
lação intersubjetiva. A inter-relação no ato da entrevista, qiu'
contempla o afetivo, o existencial, o contexto do dia-a-dia, as
experiências e a linguagem do senso comum é condição sine
(lua non do êxito da pesquisa qualitativa. "Sem intropatia é
difícil se compreender os aspectos subjetivos da definição da
situação do entrevistado", diz Parga Nina (1985, p. 28). A quem
pensa no perigo de o entrevistador se perder nessa imersão
ila realidade, Lévi-Strauss avisa:

E bem um fato objetivo que, o mesmo espírito que se


entregou à experiência e se deixou modelar por ela, se tor­
ne o teatro das operações mentais que não anulam as in­
formações da experiência, mas transformam a experiência
em modelo, tornando possíveis outras operações men­
tais (1975, p. 217).

I.m Éssai sur le Don, Mauss (1975) ensina os investigadores


.1 verem, na interseção de duas subjetividades, a ordem de ver-
il.ule mais aproximada à qual as ciências sociais e humanas po-
ilem pretender quando enfrentam a totalidade de seu objeto.

• líntrevista semi-estruturada

A modalidade de entrevista semi-estruturada difere apenas


t m gi.iii da não estruturada, porque na verdade nenhuma in-
ii para finalidade de pesquisa, se coloca de forma total-
itii MIC aberta ou totalmente fechada. Mas, neste caso, a semi-
•Nimiiirada obedece a um roteiro que é apropriado fisicamente
• mili/ado pelo pesquisador. Por ter um apoio claro na se-
i|iit Ml ia das questões, a entrevista semi-aberta facilita a abor-
Ml c assegura, sobretudo aos investigadores menos expe-
l l t Mi cn, (|ue suas hipóteses ou seus pressupostos serão cobertos

lti« miivcisa. No entanto, os pouco experientes, na hora da


#»t.1ll’ic, lorrem sério risco pela tendência que têm de apenas
«Italêiai os lemas previamente estabelecidos, sem ter o cuida-
lln dl explorar as estmturas de relevância dos entrevistados,
lM;»»d.is do campo.
. Alguns autores lembram que, ante a explosão da utiliza­
ção da informática, é importante desenvolver técnicas que
utilizem meios eletrônicos, como grupos de discussão, entre­
vistas em profundidade por e-mail, e outros.

♦ Entrevista fechada ou questionário


Não caberia neste trabalho, que se limita à pesquisa qua­
litativa, falar sobre todas as virtudes da entrevista fechada. Há
livros específicos que não só ensinam a elaborar questioná­
rios como enunciam todos os cuidados e todo o rigor cientí­
fico exigido para a sua validade como instmmento de capta­
ção de dados e também para sua articulação com a pesquisa
qualitativa. Dentre as obras que tratam do assunto, recomen­
do o livro Avaliação por Triangulação de Métodos (Minayo, Assis
<&Souza, 2005). No caso da pesquisa qualitativa, os questio­
nários têm um lugar de complementaridade em relação às téc­
nicas de aprofundamento qualitativo. Pois, nas abordagens
qualitativas, o foco é posto na compreensão da intensidade
vivencial dos fatos e das relações humanas, ao passo que os
estudos quantitativos se dedicam a conhecer e a explicar a
magnitude dos fenômenos. A bem da verdade, é preciso dizei
com Kant (1980) que em toda abordagem qualitativa se tr.i
balha com quantidade e vice-versa: a síntese de ambas se faz
na compreensão do tema específico de estudo.

♦ Técnica Delphi
A técnica Delphi (Varela, 1991; Jones & Hunter, 1995) é mii
tipo de entrevista que visa ao consenso, por meio da utiliza
ção da comunicação por escrito. Mediante o envio de uma
série de questionários ou roteiros pelo correio, o investigadoi
busca conhecer a opinião de um gmpo de pessoas que po.s
suem informações sobre determinado problema em relaçau
à: sua dimensão, à definição de objetivos e prioridades em
sua solução, assim como sobre a abordagem teórica do tema
Numa primeira fase, o pesquisador envia o instmmento (ciiies

J
tionário ou roteiro) a um conjunto de especialistas. A partir
de suas repostas, é feito outro instmmento que leva em conta
as contribuições dos especialistas e, outra vez, lhes é endere­
çado para que se pronunciem sobre seu grau de acordo com
cada afirmação conseguida. E assim se procede sucessivamen­
te, até que se alcance consenso. É importante estratégia para
avaliação de decisões sobre instmmentos que exigem conhe­
cimentos especializados. Essa técnica é usada também para
subsidiar a constmção de instmmentos fechados ou semi-es-
(mturados de uma investigação que vai ser feita numa escala
ampliada, por exemplo, no caso dos estudos multicêntricos
oii em rede.

* Pesquisa em grupo
As técnicas de gmpo mais comuns para a atividade de pes­
quisa são as de grupo focal e as de brainstorming ou de chuva áe
Kleias. Ambas são largamente utilizadas em pesquisa qualita­
tiva, seja de forma combinada com entrevistas, seja como es-
iiatégias exclusivas.
O grupo focal se constitui num tipo de entrevista ou con-
' . isa em gmpos pequenos e homogêneos. Para serem bem-
iii.edidos, precisam ser planejados, pois visam a obter infor­
mações, aprofundando a interação entre os participantes, seja
paia gerar consenso, seja para explicitar divergências. A técnica
ili ve ser aplicada mediante um roteiro que vai do geral ao
•••ipec ifico, em ambiente não diretivo, sob a coordenação de
imi moderador capaz de conseguir a participação e o ponto
ile vista de todos e de cada um. O valor principal dessa técnica
((m.lamenta-se na capacidade humana de formar opiniões e
rttliiides na interação com outros indivíduos (Kmeger, 1988)
Nesse sentido, o uso dos gmpos focais contrasta com a apli-
Mç.iii de questionários fechados e de entrevistas em que cada
lim e ( liamado a emitir opiniões individualmente.
S. Iiiades (1987) comenta que, no âmbito de determina-
giiipos sociais atingidos coletivamente por fatos ou si-
tuações específicas, desenvolvem-se opiniões informais abran­
gentes, de modo que, sempre que entre os membros de tais
gmpos, haja intercomunicação sobre tais fatos, esses se im­
põem, influindo normativamente na consciência e no com­
portamento dos indivíduos.
A natureza dessa técnica difere também da observação em
campo, onde se focalizam comportamentos, relações e im­
ponderáveis da vida social. Os grupos focais podem ter uma
função complementar à observação participante e às entrevis­
tas individuais ou, ao contrário, ser a modalidade específica
de abordagem qualitativa. Por isso são usados para: (a) foca­
lizar a pesquisa e formular questões mais precisas; (b) com­
plementar informações sobre conhecimentos peculiares a um
gmpo em relação a crenças, atitudes e percepções; (c) desen­
volver hipóteses para estudos complementares; (ã) ou, cada
vez mais, como técnica exclusiva.
Do ponto de vista operacional, a discussão nos grupos fo ­
cais se faz em reuniões com um pequeno número de infor­
mantes (seis a doze). A técnica exige a presença de um anima­
dor e de um relator. O primeiro tem o papel de focalizar o
tema, promover a participação de todos, inibir os monopoli­
zadores da palavra e aprofundar a discussão. Scrimshaw dii
Hurtado (1987) assim resumem o papel do animador: (a) in­
troduzir a discussão e a mantê-la acesa; (b) enfatizar para o
gmpo que não há respostas certas ou erradas; (c) observar os
participantes, encorajando a palavra de cada um; (d) buscar
as deixas para propor aprofundamentos; (e) constmir relações
com os participantes para aprofundar, individualmente, res
postas e comentários considerados relevantes para a pesqui
sa; (f) observar as comunicações não verbais e (g) monitorar o
ritmo do gmpo visando a finalizar o debate no tempo previs
to. Geralmente o tempo de duração de uma reunião não deve
ultrapassar uma hora e meia.
É preciso reforçar o papel complementar dos gmpos focais,
além da sua importância específica e única. Junto com o iisu
das histórias de vida, das entrevistas abertas ou semi-estrutura-
das e da observação participante, o pesquisador constrói uma
série de possibilidades de informações que lhe permitem trian­
gular olhares e obter mais informações sobre a realidade.
Brainstorming ou, em português, chuva de idéias, é uma téc­
nica de gmpo voltada para gerar novas informações sobre te­
mas específicos e promover o pensamento criativo (March et
al., 2003). Seu criador, Osborn, em 1941 (1953), concluiu que
iim processo interativo de gmpo não estmturado gerava mais
i’ melhores idéias do que quando os indivíduos trabalhavam
individualmente. A utilidade dessa técnica é múltipla. No cam­
po da pesquisa social é muito proveitosa para ajudar a definir
mn tema ou um projeto; para diagnosticar um problema; para
discutir conceitos novos; para dar um novo mmo a um proje­
to buscando identificar obstáculos e soluções.
Nos gmpos de brainstorming há três papéis a serem de-
M-mpenhados e alguns pré-requisitos: coordenador, relator e
membros, cada um com funções específicas. Ao coordenador
I .ibe jireparar a reunião, escolher os participantes, garantir um
.imbiente calmo e relaxado. Em seguida, (1) deve nomear o
pmblema ou o tema em discussão ou colocá-lo em um porta-
Inlio ou em exposição por multimídia; (2) explicar as regras
dii iiabalho, cuja essência consiste na maior liberdade possí­
vel de expressão; (3) fixar os objetivos e recordá-los durante a
iitmiência da sessão; (4) conduzir o processo de chuva de
Idei.is e, ao final, orientar o aprofundamento do tema.
() relator, além de auxiliar o coordenador nos aspectos
iiqi.mizacionais, deve estar atento para nada deixar de anotar
»ii|iie o processo criativo e interativo, registrando-o. A esco-
llu dos membros pelo coordenador é cmcial para o êxito do
(m Im IIio, buscando-se que todos sejam compatíveis com o
nli|i iivo proposto. Pela finalidade que pretendem alcançar,
giiiiios não devem ter mais que cinco a seis pessoas.
< tiino pré-requisitos para o êxito dos gmpos de trabalho
lli' hhiinstortning, (a) é preciso que o ambiente esteja tranqüi-
lo e relaxado: (b) todas as idéias são bem-vindas e não se deve
emitir julgamento sobre elas; (c) é preciso investir na criativi­
dade das contribuições; (ã) deve-se dosar a discussão das idéias
e buscar o seu aprofundamento, no tempo previsto para o
trabalho de grupo.
As etapas a seguir para o bom uso da técnica têm muitas
variantes, mas oferecem-se aqui duas propostas como exem­
plo. A primeira tem como característica um grupo de falantes:
♦ a sessão se inicia com cada membro do grupo escreven­
do sua idéia com o menor número possível de palavras e ex­
pondo-a para o gmpo;
•* o coordenador acolhe e o relator lista as idéias sem tirar
conclusões e sem interpretações;
♦ o exercício de expressão termina quando não há mais
idéias propostas;
♦ juntos, todos analisam, avaliam e organizam a produ­
ção coletiva, visando ao objetivo proposto inicialmente.
Uma segunda modalidade é a chuva de idéias silenciosa: Os
participantes pensam e expressam suas idéias em muito breves
palavras numa folha de papel, em silêncio. O que foi escrito e
colocado sobre a mesa. A seguir todos trocam, agregando no
vas idéias ao do companheiro ou companheira, sucessivameii
te. Esse processo pode continuar num tempo médio de trinl.i
minutos, permitindo aos participantes constmir uns sobre as
idéias dos outros, valorizando todas as contribuições e evitaii
do-se intimidações dos membros mais dominantes do grupo
Vale ressaltar ainda que, como todas as outras formas df
abordagem, também os gmpos focais ou chuva de idéias es
tão condicionados pela interação social e devem ser usados a
partir da consciência de suas vantagens e seus limites.

♦ Utilização de instrumentos para registro das várias modalula


des de entrevista
O registro fidedigno, e se possível ipsis litteris, de enlievls
tas e outras modalidades de coleta de dados que têm na laia
sua matéria-prima é crucial para uma boa compreensão da
lógica interna do gmpo ou da coletividade estudada. Dentre
os instmmentos de garantia da fidedignidade o mais usual é a
gravação da conversa. Ou, ainda, quando existe possibilidade
lécnica e abertura do grupo pesquisado, podem ser usados
outros recursos, como filmagens. É necessário ressaltar que
(jiialquer tentativa de assegurar o registro em toda a sua inte­
gridade precisa do consentimento do interlocutor. Em geral,
0 pesquisador de campo não costuma ter dificuldade na apre­
sentação desses instmmentos e na consecução da licença dos
«ntrevistados para utilizá-los. Ocorrem restrições e oposições,
no entanto, quando o tema da fala é espinhoso, controverso
on polêmico e põe em risco o desempenho ou a reputação da
pessoa que continuará fazendo parte de seu grupo depois
o pesquisador tiver saído de campo.
(hiando não for possível gravar ou filmar, considero cm-
1 i.il que o investigador tente registrar a fala, imediatamente
.ipos a entrevista, devendo fazer o mesmo com os registros da
Iibsci vação participante. Não se deve confiar na memória, pois
.1 lógica do pesquisador permanentemente se infiltra na ob-
ivaçào, diminuindo a importância da dinâmica específica
ili sen objeto de pesquisa.

Observação participante

A ( dmrvação Participante pode ser considerada parte es-


n iii i.il ilo trabalho de campo na pesquisa qualitativa. Sua
Itiipniiancia é de tal ordem que alguns estudiosos a tomam
(Mo .ipenas como uma estratégia no conjunto da investiga-
plo III.IS como um método em si mesmo, para compreensão
ilit U',ilid,KÍe. Sobre o tema, Schwartz & Schwartz propõem a
«•Itnliiie formulação:

I )elinimos observação participante como um proces-


pelo qual mantém-se a presença do observador numa
situação social, com a finalidade de realizar uma investiga­
ção científica. O observador está em relação face a face com
os observados e, ao participar da vida deles, no seu cená­
rio cultural, colhe dados. Assim o observador é parte do
contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando
e sendo modificado por este contexto (1955, p. 355).

Essa conceituação aparentemente completa não pode ser


considerada unânime no debate das ciências sociais. As con­
trovérsias existem com relação ã própria prática de observa­
ção, ao "o quê" e ao "como" observar. Vale dizer que é no
seio da antropologia que se inicia a reflexão sobre a estratégia
de Observação, tratada como forma complementar de com­
preensão da realidade empírica. Uma coisa é certa na opinião
de todos os estudiosos: existe necessidade de o pesquisador
relativizar o seu espaço social, aprendendo a se pôr no lugar
do outro. No trabalho qualitativo, a proximidade com os in­
terlocutores, longe de ser um inconveniente, é uma virtude.
Como lembra Da Matta, "para distinguir o piscar mecânico e
fisiológico de uma piscadela sutil e comunicativa, é preciso
sentir a marginalidade, a solidão e a saudade. É preciso cmzar
os caminhos da empatia e da humildade" (1978, p. 35). Nes­
te texto, abordo as várias linhas de pensamento sobre o as­
sunto e sua contribuição específica para a constmção do pro
cesso de pesquisa.

♦ O D ebate Teórico em torno do conceito de Observação Par


ticipante
O texto considerado pelos antropólogos com um dássiot
sobre Trabalho de Campo foi escrito em 1922, por Malinowski,
a propósito de sua inserção entre os nativos das ilhas 3'ro
briand, denominado Os Argonautas do Pacífico (Malinowski,
1984). Embora levando-se em conta que esse estudo reflclc
as concepções fundonalistas de seu autor, a rica experiênc i,i
transmitida e as bases metodológicas por ele lançadas coiili
nuam atuais e sua legitimidade permanece intocável até hoje.
Malinowski (1984), a partir de sua experiência ressalta os pas­
sos da inserção na realidade empírica: (a) necessidade de ter
bagagem científica; (b) importância da observação participan­
te; (c) utilização de técnicas de coleta, ordenação e apresenta­
ção do que denomina evidências. Malinowski (1984) valoriza
o processo de observação direta, distinguindo-o dos outros
momentos do trabalho de campo, como os de depoimento
dos entrevistados e os de interpretações e inferências do pes-
i|Liisador.
Junto com Radcliffe-Brown (1958), outro antropólogo in­
glês, Malinowski (1975; 1984) revolucionou a antropologia
nas três primeiras décadas do século XX. São suas as seguintes
palavras:' Toda a estmtura de uma sociedade encontra-se in-
torporada no mais evasivo de todos os materiais: o ser hu­
mano (Malinowski, 1978). Sobre a tarefa do etnógrafo acres-
t cnla:

Esse material evasivo que é o ser humano não tem uma


visão integrada resultante do todo e cabe ao pesquisador
organizá-la partir de três pontos de vista: (a) o arcabouço
tia constituição; (b) os imponderáveis da vida real ou do
comportamento típico; (c) e o espírito nativo (1978, p. 40).

Malinowski faz uma crítica radical aos tipos de pesquisa


'iiií i.il que apreendem apenas um nível da realidade por meio
ticts siirveys. Comenta que esse tipo de ciência percebe apenas
11 i st|iieleto da sociedade, mas não compreende a vida que pulsa,
pnn|ne o cientista está longe do lugar onde a vida acontece.

I lá uma série de fenômenos de grande importância


i|iie não podem ser registrados por meio de perguntas ou

I .ii.t iricrência, ver B. Malinowski. A r g o n a u ta s d o P a c ífic o e outros textos na


I Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1978. Radcliffe-Brown. M e t h o d in S o c ia l
Chicago: The University o f Chicago Press, 1958.
^ n ihiu iiology.
em documentos quantitativos, mas devem ser observa­
dos em sua realidade. Denominemo-los os "imponderá­
veis da vida real". Entre eles se incluem coisas como a roti­
na de um dia de trabalho, os detalhes do cuidado com o
corpo, a maneira de comer e de preparar as refeições; o
tom das conversas e da vida social ao redor das casas da
aldeia, a existência de grandes hostilidades e de simpatias
e antipatias passageiras entre pessoas; a maneira sutil mas
inquestionável em que as vaidades e ambições pessoais se
refletem no comportamento dos indivíduos e nas reações
emocionais dos que o rodeiam (Malinowski, 1978, p. 55).

Nesse texto, Malinowski sugere um tipo de comportamen­


to em campo, por meio do qual define a essência da antropo­
logia: "Ela é uma atitude que consiste em desenvolver uma
visão estereoscópica das atividades e idéias humanas através
de conceitos inteligíveis a todos" (1978, p. 256).
Malinowski ensina o que deve ser observado numa reali­
dade empírica determinada: (a) o conjunto de regras formula­
das ou implícitas nas atividades dos componentes de um gm-
po social; (b) a forma como essas regras são obedecidas ou
transgredidas; (c) os sentimentos de amizade, de antipatia ou
simpatia que permeiam os membros da coletividade; (d) o as­
pecto legal e o aspecto íntimo das relações sociais; (e) as tra­
dições, costumes e o tom e a importância que lhe são atribuí­
dos; (f) as idéias, os motivos e os sentimentos do grupo na
compreensão da totalidade de sua vida, verbalizados ou evi
denciados em gestos e atitudes por meio de suas categorias de
pensamento.
Embora Malinowski separe, para efeito de estudo, a reali
dade social em três níveis (verbalizações, comportamentos,
estruturas), sua intenção é a reconstrução teórica da totalida
de, ao que denomina "arcabouço da constituição" da socic
dade analisada, por meio do que é típico e recorrente no gni
po social.
Para conseguir apreender a "totalidade funcional", Mali­
nowski (1978) apresenta um método, que em seus princípios
gerais pode ser assim resumido:

♦ Ter objetivos realmente científicos e conhecer os valores e crité­


rios da etnografia moderna.
Isso significa imergir na realidade e concomitantemente
tlominar os referenciais teóricos necessários à investigação.
A atitude de observador científico consiste em colocar-se do
ponto de vista do gmpo pesquisado, com respeito, empatia e
inserção, o mais intima e mais intensamente possível. Signi­
fica, por parte do pesquisador, ter abertura para o grupo, sen­
sibilidade para sua lógica e para sua cultura, lembrando-se
ilc que a interação social faz parte da condição e da situação
ilc pesquisa. Afirma Malinowski, utilizando-se de uma me-
(.ilora:

O etnógrafo não tem apenas que estender suas redes


no lugar correto e esperar pelo que nela cairá. Deve ser um
caçador ativo e dirigi-las para sua presa e segui-la até as
suas tocas mais inacessíveis (1978, p. 45).

Ou seja, cabe ao pesquisador ser um perscrutador insis­


ti nir, c|ue está sempre entre as balizas dos conhecimentos
ifiiiiios e das informações de campo:

O bom treinamento teórico e a familiaridade com os


in.iis recentes resultados científicos não são equivalentes
.1 csiar carregado de idéias preconcebidas. Se um indiví-
iliio inicia uma pesquisa com a determinação de provar
I ril.is hipóteses, se não é capaz de mudar constantemen-
ii' M‘us pontos de vista e de rejeitá-los sem relutância, sob
.1 picssão da evidência, é desnecessário dizer que seu tra-
ImIIio .será inútil (1978, p. 45).
No entanto, o mesmo autor sublinha a necessidade da
preparação teórica:

Quanto mais problemas o pesquisador trouxer para o


campo, quanto mais estiver habituado a conformar suas
teorias aos fatos e a considerar os fatos na sua impor­
tância para a teoria tanto melhor capacitado estará para
o trabalho. As idéias preconcebidas são perniciosas em
qualquer tarefa científica, mas os problemas antevistos
constituem a principal qualidade de um pensador cien­
tífico, e esses problemas são revelados, pela primeira vez
ao observador, por seus estudos teóricos (1978, p. 45).

♦ Colocar-se em boas condições de trabalho e dispor-se a viver


no contexto, aberto à realidade do grupo pespuisado.
Certamente, na frase acima, Malinowski, estava se referin­
do à sua experiência concreta entre os indígenas, onde a lín­
gua, os costumes e a organização social o apelavam, de um
lado, a imergir para entender. De outro lado, a comunidade
dos brancos presente na localidade onde investigava era uma
tentação permanente de evasão do cansaço que as profundas
diferenças sociais e culturais provocavam e o induziam a bus­
car o habitual e o conhecido. Se substantivamente a situação
de um pesquisador no seio de uma comunidade indígena e
muito diferente, a disposição de integrar-se no contexto de
pesquisa constitui uma condição importante para uma boa
investigação empírica. No mesmo sentido que Malinowski
(1978), Schutz, ao aprofundar os princípios e as formas da
abordagem fenomenológica, dá relevo ao encontro de subje
tividades ou à intersubjetividade entre o pesquisador e seus
interlocutores:

Há uma diferença essencial na estmtura dos objetos,


dos pensamentos ou construtos mentais formados pela',
ciências sociais e pelas ciências naturais. [. . .] O mundo
da natureza, tal como é explorado pelo cientista natural,
não significa nada para as moléculas, átomos e elétrons
que nele existem. O campo de observação do cientista
social, entretanto, quer dizer, a realidade social, tem um
significado específico e uma estrutura de relevância para
os seres humanos que vivem, agem e pensam dentro des­
sa realidade (1979, pp. 266-7).

Preocupado com a cotidianidade do homem simples ou do


homem da rua, esse autor diz que os objetos de pensamento,
construídos pelo cientista social, têm de estar baseados no
senso comum das pessoas que vivem cotidianamente dentro
de determinada realidade.
A fenomenologia pensa a relação entre pesquisador e pes-
i|uisado como uma interação na qual as estmturas de signifi-
( ados de ambos são observadas e traduzidas para os constm-
los consistentes de um quadro referencial teórico. Para isso,
Sdiutz (1979) propõe algumas atitudes ao trabalhador de
i.impo; (a) colocar-se no mundo dos entrevistados, buscan­
d o entender os princípios gerais que seguem na sua vida coti­
diana para organizar suas experiências, particularmente as de
MMuniverso social. Desvendar essa lógica é condição prelimi-
iMi tia pesquisa; (b) manter uma perspectiva dinâmica, que
ao mesmo tempo leve em conta as relevância dos atores so-
I lais e tenha em mente o conjunto de indagações trazidas por
•li', a partir de sua abordagem teórica. Atuar ativamente na
•oiistiução dessa relação; (c) abandonar, na convivência, uma
posiura externa de cientista, entrando na cena social dos en-
IMvislados como uma pessoa comum que partilha do coti-
di.iiio; (d) adotar no campo uma linguagem do senso comum
IMiipii.i dos atores sociais que observa.
As atitudes propostas por Schutz (1979; 1982), para quem
viii ,1 campo, são também ressaltadas por Cicourel nos seus
MMiilos sobre o observador participante. Esse sociólogo insis-
U |Miii( ularmente na constmção, pelo pesquisador, do que
denomina modelo do ator, ressaltando que os dois contextos
de pesquisa, o científico e do senso comum, "são ambos cons­
truções elaboradas pelo cientista" (1969, p. 110).

O observador científico necessita de uma teoria que


forneça um modelo do ator, o qual está orientado para
agir num meio de objetos com características atribuídas
ao senso comum. O observador precisa distinguir as ra­
cionalidades científicas que usa para ordenar sua teoria e
seus resultados, das racionalidades do senso comum que
atribui aos atores estudados (Cicourel, 1969, p. 110).

O mesmo tema relativo à inserção do pesquisador no cam­


po é também aprofundado por Raymond Gold (1958), por
meio da proposta de quatro situações teoricamente possíveis,
que vão de um extremo em que o investigador é um partici­
pante total, ao outro, em que se contenta em ser observador
total. Tal classificação que cito a seguir, ainda que esquemáti-
ca, tem o mérito de ressaltar as posturas mais comuns no tra­
balho de campo, onde a clareza de atitudes contribui para
melhor possibilidade compreensiva das realidades específicas.
É claro que as noções de "familiar" e de "estrangeiro utiliza­
das por Gold (1958) devem ser relativizadas e adaptadas, quan­
do se aplicam a estudos da sociedade contemporânea.
Por Participante Total, Gold (1958) entende a postura do
pesquisador que se propõe a participar inteiramente, "como
nativo"^ em todas as áreas da vida do grupo que está em estii
do. Gicourel também utiliza o mesmo termo quando diz;
"Quero sugerir com isso que o valor cmcial, no que diz res
peito aos resultados da pesquisa, reside mais na auto-orien
tação do participante total do que no seu papel superfici.il
quando inicia o estudo" (1969, pp. 91-2).

"Como nativo", tornar-se nativo", expressões que significam a máxima identilii.t


ção possível com o grupo pesquisado.
A categoria participação total corresponde melhor aos pes­
quisadores que se envolvem no estudo de sociedades indíge­
nas, como o mostra Lévi-Strauss:

Quando assume, sem restrição mental e sem segundas


intenções, as formas de vida de uma sociedade estrangei­
ra, o antropólogo pratica a observação integral, aquela além
da qual não há mais nada, a não ser a absorção definitiva
— e é um risco — do observador pelo objeto de sua ob­
servação (1975, p. 216).

Esse risco de imersão total num mundo diferente tem sido


assumido por muitos pesquisadores que praticam a Pesquisa
Participante ou Pesquisa-Ação, como observam certos estu­
diosos (Durham, 1986; Zaluar, 1986) ou mesmo por investi­
gadores que passaram a viver em comunidades indígenas den­
tro da cultura nativa.
O Participante-como-Observador adquire um papel signifi­
cativamente diferente do status anteriormente descrito, por­
eine, neste caso, o pesquisador deixa claro para si e para o gm-
|K) que sua relação de campo se restringirá ao tempo da
pesquisa. A participação, no entanto, tende a ser profunda
e se dar pela adoção de hábitos, formas de atuação solidária e
vivência conjunta e acompanhamento de acontecimentos jul-
It.idos importantes pelos entrevistados dentro de suas rotinas
<otidianas. A consciência, dos dois lados, de uma relação tem­
porária (enquanto dura o trabalho de campo) ajuda a mini­
mizar os problemas de envolvimento que inevitavelmente
.iiontecem, pondo sempre em questão a suposta "objetivida­
de" nas relações.
O Observador-como-Participante é uma terceira modalidade
ile observação. Costuma ser utilizada, freqüentemente, como
IMiatégia complementar ao uso das entrevistas, nas relações
I OIII c)s atores, em momentos considerados importantes para
•leKos da pesquisa. Trata-se de um modo de observação qua­
se formal, em curto espaço de tempo, e suas limitações ad­
vêm desse contato bastante superficial.
Como Observador-Total, o pesquisador não comunica aos
gmpos que está estudando o fato de que os está observando
e não se envolve com a vida dos seus interlocutores. A "obser­
vação total" é uma estratégica raramente usada de forma pura,
tendo papel complementar em relação a outras iniciativas de
campo.
Os quatro papéis do observador, tipificados por Gold
(1958), servem para fins analíticos. Na verdade nenhum deles
se realiza puramente a não ser em condições especiais. Em
diferentes fases do trabalho de campo, um procedimento pode
ser privilegiado em relação aos outros. Isso ocorre por causa
das condições de pesquisa ou de acontecimentos considera­
dos importantes em relação à finalidade da investigação. Mais
do que um a priori do tipo de pesquisador que se deseja ser
no campo, é preciso considerar a observação participante como
um processo construído duplamente pelo pesquisador e pe­
los atores sociais envolvidos. Esse processo tem momentos
cruciais, que devem ser encarados tanto do ponto de vista
operacional quanto teoricamente. O primeiro deles é a entra
da em campo.
Paul Benjamin, numa reflexão sobre a entrada em campo
diz que:

É oportuno e às vezes mesmo essencial fazer os contatos


com as pessoas que controlam a comunidade. Essas pessoas
podem ter status na hierarquia de poder ou posições infoi
mais que impõem respeito. O apoio delas ao projeto pode
ser cmcial e elas podem ser úteis para se fazer outros contatos
(1953, p. 430).

A experiência confirma e relativiza essas observações do


antropólogo americano. Certamente as pessoas que introdii
zem o pesquisador no campo são com ele responsáveis tanto
pela sua primeira imagem, como por portas que se abrirão ou
se fecharao. O relato de Berreman (1975) sobre sua experiên­
cia numa comunidade himalaia, já resumido aqui, é bastante
eloquente sobre o assunto. A experiência acumulada mostra
que o perfil dos informantes e a qualidade dos dados recolhi­
dos tem que ver com o impacto da entrada e da apresentação
do pesquisador. No entanto, sua sensibilidade e capacidade
de empatia no campo podem minimizar aspectos impactan-
les iniciais. E possível, por exemplo, na medida em que o tra­
balho avance, utilizar técnicas como a chamada "bola de
neve / po^ ^ pesquisador vai se informando
sobre outros possíveis interlocutores, sucessivamente, e as­
sim, prescindindo das pessoas que o introduziram no grupo
criando um lastro de confiabilidade para seu trabalho. Diante
( a situação particular da pesquisa, está em jogo a capacidade
de empatia, de observação e de aceitação do pesquisador que
iMo pode ser transformada em receituário prático.
Um segundo momento da inserção (segundo momento
.u|in entendido apenas para fins de análise) é o da definição
do itapel do pesquisador no interior do grupo onde está se
iiilegrando. Benjamin afirma que;

Em parte o pesquisador de campo define seu próprio


papel, em parte seu papel é definido pela situação e pela
perspectiva dos nativos (ou grupos). Sua estratégia é a de
c|uem participa de um jogo. Ela não pode predizer as jo ­
gadas precisas que o outro lado vai fazer, mas pode ante-
I ipá-las da melhor maneira possível e fazer suas jogadas
de acordo (1953, p. 431).

( )s papéis reais que o pesquisador desempenhará vão va-


ll.ii de acordo com a situação de pesquisa. Na verdade, em

l•' nl.,, "bola de neve" consiste em, por meio de um interlocutor, ir somando
...... sucesstvamente, minimizando-se efeitos de "poder de pessoas e
.......... "«sionalm ente existentes na entrada do pesquisador em campo.
relação aos grupos que elege, o pesquisador é menos olhado
pela base lógica dos seus estudos e mais pela sua personalida­
de e comportamento. As pessoas que o introduzem no cam­
po e seus interlocutores querem saber se ele é "uma boa pes­
soa" e se não vai "fazer mal ao grupo", não vai trair "seus
segredos" e suas estratégias de resolver os problemas da vida.
Há múltiplas situações de pesquisa, mas, como norma ge­
ral, a figura do pesquisador é construída com a sua colabora­
ção apenas parcial, pois a imagem que projeta reverbera no
gmpo a partir das referências que este possui, dentro de seus
padrões culturais específicos. Da mesma forma, a visão que o
investigador constrói sobre o grupo depende das pessoas com
quem travar relações. Dessa forma a visão das duas partes ser.i
sempre incompleta e imprecisa.
Essa construção mútua do pesquisador e dos pesquisa
dos por meio da interação é analisada por Berreman (1973)
valendo-se da imagem do teatro. Berreman (1975) afirma, com
base em sua experiência e usando reflexões de Goffman (1959)
sobre a A Construção do Eu na Vida Cotidiana, que pesquisadoi
e pesquisado são ambos atores representando papéis, mti
diante do outro. Assim como no teatro há os bastidores, "ir
gião interior", e o palco, "região exterior" (como já foi dito) r
as pessoas tendem a se expressar através do palco, isto é, d.ii
regras oficiais e formais. No entanto, com relação à coinpic
ensão da realidade, Berreman enfatiza que 4anto o conlin i
mento das regiões interiores (os segredos dos bastidores) d,i
vida de um grupo, como o da encenação exterior, isto é, d.i vl
são oficial, são componentes essenciais. As ponderações dn
Berreman se encontram com as Malinowski (1975a; I9/Mtj
1978), quando este antropólogo ressalta a necessidade de
investigar tanto o arcabouço estrutural como os "impondi ní­
veis da vida real" e os "aspectos íntimos das relações soi i.d»*, i
Se a entrada em campo tem que ver com os problem.in il|J
identificação, obtenção e sustentação de contatos, a said.i
também um momento crucial. As relações interpessoais i||||
se desenvolvem durante a pesquisa não se desfazem automa­
ticamente com a conclusão das atividades previstas. Há um
contato informal de favores e de lealdade que não dá para
ser rompido bruscamente sob pena de decepção: os investiga­
dores trabalham com pessoas logo com relações e com afeto.
Não há receitas para esse momento, mas algumas questões
que podem ser formuladas e respondidas pelo pesquisador;
l',m que pé ficam as relações posteriores ao trabalho de cam­
po? Qual o compromisso do pesquisador com o grupo, no
t|ue concerne aos dados primários recolhidos, ao seu uso cien­
tifico e às formas de retorno? Em resumo, a saída do campo
envolve problemas éticos e de prática teõrica. A relação inter-
Mibjetiva que se cria pode contribuir para definição do tipo e
do momento do corte necessário nas relações mais intensas e
iim plano de continuidade possível ou desejada.
Concluo evidenciando que as dificuldades de inserção do
l>t'sc|uisador no campo não podem ser pensadas apenas como
•|iK‘stão que o tempo de contato resolverá. Há as dificulda­
des prõprias desse período da pesquisa que devem ser objeto
•l*' reflexão e de planejamento como parte das estratégias de
tiinstrução do conhecimento.

• Aplicação de um certo número de métodos particulares para


*i'/i'i ionar, coletar, manipular e estabelecer os dados (Malinowski
b ).

Malinowski considera essa triangulação de perspectivas no


...... . como o terceiro parâmetro de êxito da pesquisa em-
|Miiia, Refere-se à necessidade de combinação do registro da
^'|^',•||li/.ação social e da anatomia da cultura", através do "mé-
litdii de documentação estatística concreta", com a observa-
^«11 dos "imponderáveis da vida real" mediante uma obser-
»Hi,.io minuciosa detalhada no diário de campo; "uma lista de
tifi l.ii.K.oes etnográficas, narrativas feitas pelos nativos, expres-
típicas, fórmulas mágicas, lendas e peças de folclore que
......... cia mentalidade do gmpo" (1975b, p. 61). O autor
comenta ainda que o objetivo da observação e do registro é
apreender o "ponto de vista do nativo, sua relação com a vida
e sua visão de mundo e assim apreender o sistema total
(1975b, p. 62).
Outros pesquisadores depois de Malinowski têm também
se ocupado em desenvolver procedimentos teoricamente fe­
cundos para observação participante. Alguns deles como Ci-
courel (1969b) e Denzin (1973) entram em discussão com os
apologistas dos métodos quantitativos, para quem a obser­
vação participante é sinônima de "impressionismo .
Denzin (1973) insiste em que, em comparação com os
cientistas que trabalham com surveys, o pesquisador de cam­
po que inclui em sua investigação a observação participante,
está mais livre de prejuízos, uma vez que não é, necessaria­
mente, prisioneiro de um instrumento rígido de coleta de
dados ou de hipóteses testadas antes, e não durante o pro­
cesso de pesquisa. A fluidez da própria natureza da observa­
ção participante concede ao pesquisador a possibilidade de
usufruir, ao mesmo tempo, de dados que os surveys propor­
cionam. Na medida em que convive com o gmpo, o observa­
dor pode retirar de seu roteiro questões que percebe serem
irrelevantes do ponto de vista dos interlocutores; consegue
também compreender aspectos que vão aflorando aos pou­
cos, situação impossível para um pesquisador que trabalha
com questionários fechados e antecipadamente padroniza
dos. A observação participante ajuda, portanto, a vincular os
fatos a suas representações e a desvendar as contradições en
tre as normas e regras e as práticas vividas no cotidiano do
grupo.
Cicourel (1969b) também enaltece as virtudes da obsei
vação participante, mas coloca-se de forma mais exigente que
Denzin (1973) em relação à validade dessa estratégia. Sua pre
ocupação está voltada para as condições que possibilitam o
teste de hipóteses e resolvem os problemas de inferência e ilc
provas corretas.
Com relação à questão da objetividade, opondo-se ao im­
pressionismo, Cicourel (1969b) comenta que quanto maior é a
participação do observador, maior é o risco de seu envolvi­
mento, mas, também, maior é a possibilidade de que consiga
penetrar na chamada região interior" do grupo. Se a partici­
pação mais profunda dificulta o teste de hipóteses, em con­
traposição, pode desvendar os códigos do gmpo e seus signi­
ficados mais íntimos. Esse autor ressalta que o controle da
objetividade dos dados obtidos por meio da observação par­
ticipante deve ser feito mediante revisões críticas do trabalho
ile campo, explicitação dos procedimentos adotados e dos
iliferentes papéis representados pelos membros do gmpo pes­
quisado e pelo próprio pesquisador.
Cicourel chama atenção ainda para o fato de muitos pes­
quisadores considerarem os dados conseguidos em campo
I omo a tradução da verdade, sem levar em conta a situação e
.IS Címdições de seu trabalho empírico. Através de uma pre­
tensa 'objetividade" dos dados, diz ele; "estes relatos pós-
l.u to simplesmente acrescentam observações descritivas de
v.ilidade duvidosa para o conjunto da ciência social" (1969b,
P 97). Por isso, esse autor recomenda que seja qual for o

lesiiltado da pesquisa, é preciso tomar explícitas todas as fon-


les ilc informação sobre o problema pesquisado, o contexto
IIII (|iial a pesquisa se desenvolveu, tanto do ponto de vista
iiisliliicional, da relação entre pesquisadores, como da situa-
I..II) (• das condições de trabalho de campo. Esses dados de-
vt III (azer parte do corpo de análises e são necessários para a
iiiiiipieensão contextualizada do objeto de estudo.
í licourel usa uma expressão de Becker (1958, p. 652), "his-
liiil.i natural da pesquisa", para falar da importância do re-
lll-iiii) no trabalho de campo, de forma processual; (1) das
IniriK.oes implícitas ou explícitas; (2) da teoria e da metodo-
Initi.i, (3) das mudanças de posição no decorrer do trabalho,
i|i 1,1 lido há hipóteses ou pressupostos permanentemente tes-
l i l d i IS
Cada passo produz dados que podem ser relaciona­
dos com os dados a serem obtidos posteriormente, a fim
de melhorar a teoria, a metodologia e clarificar o proble­
ma central (Cicourel, 1969b, p. 118).

Finalmente, conclui que, ainda quando o pesquisador co­


meça seu trabalho com vagas noções a respeito do tema a ser
estudado, deve testar algumas hipóteses específicas, através
do detalhamento minucioso de seus procedimentos meto­
dológicos e de suas pressuposições teóricas sobre a natureza
dos gmpos e da ordem social. Em resumo, neste ponto há
concordância entre Cicourel (1969b) e Popper (1973) quan­
do esse filósofo da ciência diz que "a objetividade dos enun­
ciados científicos reside no fato de que eles possam ser inter-
subjetivamente submetidos a teste" (1973, p. 41).
Bourdieu (1973), autor que atuou em importante traba­
lho de campo, adverte que não há virtudes mágicas na obser­
vação participante, embora essa técnica seja enaltecida por mui­
tos que julgam equivocadamente que o conhecimento vem a
partir da prática. Para Bourdieu, "a prática que aparece como
condição de uma ciência rigorosa não é menos teórica", e acres
centa:

É preciso lembrar que o privilégio presente em toda


atividade teórica, na medida em que'ela supõe um cone
epistemológico, mas também social, governa sutilmentr
esta atividade [a observação participante]. Isso conduz a
uma teoria da prática que é correlata ao fato de se omilii
as condições sociais na produção da teoria (1973, p. 1,38)

Insiste Bourdieu em que, na produção de qualquer (••n


ria, o pesquisador tem de romper com o senso comum du
grupo pesquisado. E, numa segunda mptura, põr sempre cm
questão os pressupostos inerentes à sua qualidade de obsn
vador externo e estranho ao grupo:

J
[Lugar] de estrangeiro que, preocupado em interpre­
tar as práticas de outro grupo, tende a importar para o
objeto os princípios de suas relações com esse objeto, in-
cluindo-se aqui suas relevâncias (1973, p. 160).

Retomo as reflexões iniciais deste capítulo. Como qual­


quer fase ou técnica de trabalho de pesquisa, também a ob­
servação não é neutra. O que observar? Como observar? São
questões influenciáveis pelos esquemas teóricos, preconcei­
tos e pressupostos do investigador e pelas reações dos inter­
locutores em campo.
Dessa forma, sobre a observação, a posição funcional posi­
tivista tenta dar ênfase à estmtura social e à totalidade, a partir
do "calidoscópio" que é a realidade, considerada como um sis­
tema natural redutível a leis sociológicas. A teoria fenomeno-
lógica dá ênfase à constmção do "modelo de ator", formula­
da a partir da compreensão das estmturas de relevância e da
cotidianidade compartilhada entre membros do grupo. Por
i.sso, dá importância à delimitação do "campo de ação" do
dentista social como intrinsecamente diferente do do cientis­
ta natural. Assim Schutz (1971) define o labor do pesquisa­
dor como a capacidade de reconstmir, a partir do senso co­
mum dos interlocutores uma tipificação da realidade a ser
I ompreendida, interpretada e comparada.
A etnometodologia, que na sociologia mais tradicional ad­
voga procedimentos de trabalhos de campo, tampouco desen­
volve uma metodologia particular de observação. Recolhendo
Inlliiências da sociolingüística, da antropologia e da fenomeno-
logia, procede a partir dessas tradições; reconhece como im-
poiiaiUe a realização de um tipo de observação contextualizada
que leve o pesquisador a perscmtar os fenômenos, descrevê-
lo*. e interpretá-los. É uma abordagem extremamente crítica à
nh*,ei vação positivista que vê o ato em si mesmo sem conside-
Irti pressões sociais que julgam a ação do senso comum sem
M* tonalidade (Park & Burgess, 1921; Payne et al., 1981).
A posição da etnometodologia, particularmente da etno-
metodologia etnográfica, coincide com a abordagem tradicio­
nal da antropologia. Seus adeptos, no entanto, tentam dife-
renciá-la, criticando a antropologia de ser eminentemente
descritiva. Goodenough insiste em que não se pode explicar
uma cultura descrevendo comportamentos sociais, econômi­
cos ou eventos cerimoniais e a forma como determinado fe­
nômeno se apresenta. O desafio, segundo ele, é constmir uma
teoria dos modelos conceituais a respeito do que os vários
eventos representam e dos quais eles são produtos. Portanto
"teoria e observação devem vir juntas" (1964, p. 85).
As críticas relativas à etnometodologia que utiliza primor­
dialmente a observação participante se concentram exatamen­
te na sua preocupação excessiva com o empírico e com uma
interpretação fundada nele. Nela se processa uma redução
do conhecimento aos significados subjetivos que os sujeitos
criam de seu mundo, e da estmtura social aos procedimentos
interpretativos.
A teoria marxista tem desenvolvido pouco sua reflexão
sobre o trabalho de campo. Na verdade, na "Enquête Operá­
ria", Marx (1973) propõe que os próprios trabalhadores apli­
quem os questionários. Dessa forma, a figura do pesquisador
externo ao campo não existe. As posições múltiplas do mar
xismo em relação ao trabalho de campo têm variado entre a
pura omissão e a tentativa de realizar uma sociologia crítica,
como é neste último caso a proposta de Thiollent (1987).
Comentando sobre esse assunto, Thiollent (1987) diz qnc
não se pode dizer que no marxismo contemporâneo haja uma
posição única a respeito da investigação em geral e da sociolo
gica em particular. Na apresentação do livro Existencialismo i'
Marxismo, de Lukács (1967), o tradutor comenta a polêmica
dos anos 60 do século XX na França, em que Sartre acusa os
marxistas de esclerose, de incapacidade de apreender o parti
cular, de perceber as representações como síntese de todas as
medições do ser humano na sua vida concreta. Em troca Lukac s
(1967) acusa o existencialismo de estar comprometido com a
( lasse burguesa. Ambos falavam em nome de Marx &. Engels
(1967). Essa mesma crítica, continuam a fazer os etnometo-
(lólogos a respeito da incapacidade do marxismo de abordar
(atos particulares. Na medida em que se contentou com ma-
( roanálises ou com discussões exegéticas dos textos clássicos
de Marx & Engels (1967), muitos marxistas paralisaram sua
ledexão científica sobre a realidade empírica particular. Essa
postura distante dos problemas concretos ou apenas exegéti-
(,1 é chamada por Thiollent como "teoricismo formalista"
( 1987, p. 24), que perde o sentido do que há de fundamental
nas ciências sociais: a pesquisa. Comenta Thiollent:

Sem investigações novas e sem preocupação de elabo­


rar novos modos de investigação só se pode discutir a for­
ma de apresentação de conhecimentos antigos, cuja ca­
pacidade de dar conta da realidade atual é problemática
(1987, p. 27).

1’anzieri (1968) em "A Concepção Socialista da Enquete


t ipcrária" faz a mesma crítica que Thiollent elabora sobre a
pDsição dogmática de considerar a sociologia como uma ciên-
1 1,1 burguesa. Essa postura fez que o marxismo, como socio-
li igi.t, regredisse. E acrescenta: "Parece-me que a sociologia bur-
Itui s.i desenvolveu-se a ponto de apresentar característica de
unu .málise científica que ultrapassa o marxismo" (Thiollent,
I'IH7, p . 227).
I.m contrapartida, Panzieri critica também as abordagens
UMlológicas e antropológicas que recortam a realidade e a
ulium de forma reduzida e fragmentada. Em particular sobre
it nl(servação participante, comenta:

O momento de observação sociológica, conduzida se-


p,imdo critérios sérios e rigorosos está então ligada por uma
t niitiiiuidade muito precisa à ação política; a pesquisa so­
ciológica é uma espécie de medição sem a qual nos arris­
camos a fazer uma idéia otimista ou pessimista, de qual­
quer modo absolutamente gratuita, do grau de consciên­
cia da classe e da força de oposição atingida por ela. Ora, é
claro que essa consideração influencia os objetivos políti­
cos da investigação e representa mesmo seu principal ob­
jetivo (1968, p. 228).

Panzieri considera a pesquisa como instrumento de co­


nhecimento da realidade operária e como contribuição para
elevação da consciência de classe. No mesmo caminho, Thiol-
lent (1987) também critica o que denomina atitude "passiva"
ou "positivista" da observação sociológica, propondo uma
alternativa de "questionamento" a ser desenvolvida por meio
da "pesquisa-ação". Ambos os autores preconizam o envolvi­
mento do pesquisador com a realidade que estuda e com os
atores sociais que busca conhecer.
O envolvimento do investigador com o gmpo pesquisado,
atuando em propostas de transformação, tem sido ressaltado
nas modalidades de pesquisa participante e de pesquisa-ação.
Tais abordagens, porém, merecem cuidados epistemológicos
que são mencionados por alguns pesquisadores como Dur-
ham (1986); Cardoso (1986); Zaluar (1986). Essas autoras cri­
ticam o excessivo empirismo desses tipos de investigação e
seu caráter mais militante que científico.
Alguns filósofos marxistas dão algumas pistas coinciden­
tes com a práxis da observação participante, mas sem, em ne­
nhum momento, levantar propostas técnicas de como reali­
zá-la. loja, em A Lógica Dialética afirma:

O singular e o particular manifestam a essência, o geral


numa exuberância de atributos em que é difícil distinguir
o essencial daquilo que não o é, tanto que aquilo que
não é essencial é mais visível e pode, por vezes, desempe­
nhar o papel de essencial. [. . .] No singular percebemos o
r
geral que aí está incluso e realizado: segundo a expressão
plástica de Filipon, o universal é a comunidade pela qual
todos os particulares se comunicam (1965, p. 77).

Um marxista importante como Kosik, ressaltando a im­


portância das manifestações fenomênicas da realidade, até
podería ser confundido com um fenomenologista:

No trato utilitário e prático com as coisas, em que a


realidade se revela como mundo dos meios, fms, instru­
mentos, exigências e esforços para satisfazê-las, o indiví­
duo "em situação" cria suas próprias representações das
coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções
que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade. Es­
sas representações se reproduzem imediatamente na men­
te daqueles que realizam uma determinada práxis his­
tórica, como categorias de pensamento comum (1969,
p. 10).

Mas Kosik distingue-se do clássico fenomenologista Schutz


(1979), ao ressaltar o papel das determinações maiores sobre
uma realidade empírica:

Trata-se de uma práxis fragmentária, baseada na divi­


são de trabalho, na divisão da sociedade em classe e na
hierarquia de posições sociais decorrentes da divisão em
classe. [. . .] O fenômeno indica a verdade e a esconde.
[. . .] Captar o fenômeno seria indagar e descrever como a
coisa se manifesta e se esconde nele. [. . .] A realidade é
a unidade do fenômeno e da essência (1969, p. 12).

Valorizando o sentido das realidades particulares viven-


ciadas pelas pessoas e pelos gmpos, Joja critica os desvios das
filosofias do século XVIII e XIX que consideravam as sensa­
ções, os sentimentos, a experiência vivida, as idéias e a imagi-
nação como elementos subordinados à única "instância de
conhecimento adequado, a razão":

O pensamento concreto consiste em considerar e apre­


ender os fenômenos em sua auto-relação, em suas rela­
ções com a multiplicidade de seus próprios ângulos e de
seus aspectos intercondicionados, em seu movimento e
desenvolvimento, em sua multiplicidade e condicionamen­
to recíproco com outros fenômenos ou grupos de fenô­
menos (Joja, 1965, p. 53).

Ora, o marxismo também caiu na cilada do racionalismo


que foi objeto de reflexão e de crítica de Lênin segundo o
qual: "Seria ridículo negar o papel da imaginação mesmo na
ciência mais rigorosa" como também seria reducionismo dei­
xar-se cair nas tentações dos subjetivismos: "Devemos apren­
der a explorar todos os seus aspectos, todas as suas correla­
ções e suas mediações para chegar à realidade objetiva, nos
limites de nossas possibilidades históricas" (1965, p. 215).
A idéia de que o particular não existe senão na medida em
que se liga ao geral e o geral senão no particular e através dele;
a idéia de que a dificuldade de apreensão está no pensamen­
to e não na realidade, pois é o pensamento que separa e man­
tém a distinção de momentos de um objeto; a idéia de que a
marcha do real é sempre mais verdadeira e profunda do que
nossa capacidade de apreendê-lo; a idéia de que há uma rela
tividade entre os fatores objetivos e subjetivos, materiais e es
pirituais são alguns dos princípios básicos que podem orien
tar um trabalho de campo contextualizado.
De grande utilidade para uma observação ao mesmo tem
po situada e contextualizada, é o texto "Método Dialético na
Análise Sociológica" (Cardoso, 1973). A partir do estudo do
conceito de totalidade, esse autor insiste em que a interpreta
ção, para ter foros de instmmento científico de análise, preci
sa ser utilizada sem retirar dos dados o valor heurístico qiie
possuem. "Sem sólida base empírica, a análise dialética corre
o risco de perder-se em considerações abstratas destituídas de
valor explicativo real" (1973, p. 2).
Trata-se, segundo o autor, de explicar os processos, as si­
tuações e os sistemas, não do ponto de vista da história já
decorrida, quando tudo parece ter caminhado na direção de
(inalidades engendradas por condições dadas, mas do ponto
de vista da história como realizadora da atividade humana
(oletiva, tomando o marxismo como uma teoria de aplicação
heurística. Jamais em Marx encontram-se entidades. Por exem­
plo "a pequena burguesia" na obra Dezoito Brumário "fazia
parte de uma totalidade viva, nos quadros da pesquisa e não
de uma dedução do real a partir de totalidades abstratas defi­
nidas a priori" (Cardoso, 1973, pp. 17-23).

* Diário de campo
A observação participante, em qualquer nível de profun­
didade em que for realizada ou em que teoria se baseie, tra-
tli( ionalmente utiliza um instrumento denominado diário de
I limpo. O diário de campo nada mais é do que um caderni-
nho de notas, em que o investigador, dia por dia, vai anotan­
do o que observa e que não é objeto de nenhuma modali-
tlade de entrevista. Nele devem ser escritas impressões pessoais
(|iif vão se modificando com o tempo, resultados de conver-
«i.is informais, observações de comportamentos contraditó-
iios com as falas, manifestações dos interlocutores quanto aos
v.nios pontos investigados, dentre outros aspectos. Uma per-
jinnia freqüentemente levantada pelos pesquisadores é se de-
M-m ou não devem usar dados de seu diário de campo para a
.niidise de seu objeto de investigação. A resposta tem de ser
iilliinativa. De outra forma não teria necessidade de tanto in-
vtMimento na observação. É exatamente esse acervo de im-
pn ssões e notas sobre as diferenciações entre falas, compor-
l.imnitos e relações que podem tornar mais verdadeira a
pt -Hini.sa de campo. Como lembra Denzin (1973), toda trian­
gulação de métodos e técnicas favorece a qualidade e a pro­
fundidade das análises.

♦ Saúde/Doença como Tema de Observação


Tomando-se como objeto de observação o tema Saúde/
Doença, seja tanto em relação às concepções que delas faz a
população, seja em relação ãs políticas do setor, aos proces­
sos avaliativos ou às reivindicações do movimento social, as
posturas funcionalistas, fenomenológicas ou marxistas seriam
totalmente diferentes.
No caso das abordagens funcionalistas, as observações
privilegiariam a compreensão do sistema, sua organização, seu
funcionamento, as idéias que as pessoas têm a seu respeito,
incluindo-se a busca de entendimento e de explicações para
os "desvios" funcionais. A população seria observada e inqui­
rida sobre sua aceitação e sobre sua integração ao sistema e ao
esquema médico. O "normal" e o "típico" seriam o conheci­
mento oficial. As conclusões estratégicas de tal observação
apontariam para a melhor adequação do sistema aos usuá­
rios. A fórmula positivista de percepção da realidade funda-se
na ideologia da normalidade do sistema de saúde e das corre­
ções de seus estrangulamentos, por exemplo.
O quadro referencial fenomenológico, voltado para com­
preender as estmturas de relevância das coletividades ou dos
grupos, observaria sua atuação tal como ela se apresenta. A
ênfase nos indivíduos enquanto agentes sociais torna a feno-
menologia uma teoria que se insurge contra o "oficial", o "do­
minante", o "Estado", a "sociedade" e a anomicidade. As ob­
servações se dariam em torno da valorização da lógica de vida
e de comportamento intersubjetivo dos atores, tendo no senso
comum a matéria-prima essencial.
A teoria marxista daria ênfase aos conflitos, contradições e
diferenças. Sobretudo observaria o contexto, uma vez que con­
sidera a saúde da população como uma derivação das suas
condições de vida. Sua perspectiva em campo é a observação
dos modos de vida, das práticas de classe e das formas de
organização que engendram as situações de saúde/doença.
Essas visões teóricas diferenciadas até mesmo no ato de ob­
servar, certamente, junto com outros fatores, influenciarão os
resultados da observação. As relações entre a experiência de
observação e a consciência não são de ordem acumulativa e a
subjetividade não desvenda a realidade sem a teoria, entendi-
tla como instrumento para encontrar o geral no particular.
A tentativa de cercar o objeto de estudo, sob todos os
ângulos possíveis ressalta que a noção de observação não pode
ser simplesmente confundida com "empirismo". Este é ape­
nas uma ideologia particular de observação. Criticar as ideo­
logias de observação empiristas, positivistas ou psicologistas
não significa rejeitar todos os tipos de inserção. Por outro
lado, ao empirismo não se pode opor o teoricismo. Sem in­
vestigação da realidade concreta, as ciências sociais seriam
ajienas um discurso filosófico ou político. Sem problemática
teórica, a sociologia degeneraria em pesquisa de opinião e en-
Ironização do senso comum.
É bom lembrar mais uma vez que no campo, assim como
ilurante todas as etapas da pesquisa, tudo merece ser enten-
ilido como fenômeno social e historicamente condicionado:
o objeto investigado, as pessoas concretas implicadas na ati­
vidade, o pesquisador e seu sistema de representações teóri-
( (>-ideológicas, as técnicas de pesquisa e todo o conjunto de
lelações interpessoais e de comunicação simbólica.

L
Parte V
FASE DE ANÁLISE
DO MATERIAL QUALITATIVO

O. 'S PESQUISADORES COSTUMAM ENCONTRAR


grandes obstáculos quando iniciam a análise dos dados reco­
TRES

lhidos no campo (documentos, entrevistas, biografias, resul­


tados de discussão em gmpos focais e resultados de obser­
vação).
O primeiro deles é o que Bourdieu denomina "ilusão da
liansparênda" isto é, a tentativa de interpretação espontânea
e literal dos dados como se o real se mostrasse nitidamente
ao observador. Essa "ilusão" é tanto mais perigosa quanto
mais o pesquisador tenha a impressão de familiaridade com o
objeto. Portanto, analisar, compreender e interpretar um mate-
lial qualitativo é, em primeiro lugar, proceder a uma supera-
(,.10 da sociologia ingênua e do empirismo, visando a penetrar
lios significados que os atores sociais compartilham na vivên-
I ia de sua realidade.
O segundo obstáculo é o que leva o pesquisador a su-
iiimbir à magia dos métodos e das técnicas, esquecendo-se
do mais importante, isto é, a fidedignidade à compreensão do
material e referida às relações sociais dinâmicas e vivas. Como
III icntadora de tese e avaliação de livros e artigos é o que mais
iniho encontrado: uma rendição do investigador às técnicas.
pondo-as no lugar da essencialidade dos significados e inten-
cionalidades. Como já referi inicialmente, repito aqui: méto­
dos e instrumentos são caminhos e mediadores para permitir
ao pesquisador o aprofundamento de sua pergunta central e
de suas perguntas sucessivas, levantadas a partir do encontro
com seu objeto empírico ou documental.
O terceiro obstáculo, também recorrente na interpretação
dos trabalhos empíricos, é a dificuldade que muitos pesqui­
sadores encontram na junção e síntese das teorias e dos acha­
dos em campo ou documentais. É muito comum que os pes­
quisadores apresentem denso capítulo metodológico e teórico
e, ao final, quase como um apêndice, descrevam em um ou
dois capítulos sua visão sobre o trabalho de campo, geral­
mente, sem apropriação das teorias descritas.
Uma análise do material recolhido em campo ou documen­
tal, em termos muito gerais, busca atingir três objetivos:
♦ ultrapassagem ãa incerteza: dando respostas às perguntas,
hipóteses e pressupostos;
♦ enriquecimento da leitura: ultrapassando o olhar imedia­
to e espontâneo em busca da compreensão de significações e
de estmturas de relevantes latentes;
♦ integração das descobertas, devendando a lógica interna
subjacente às falas, aos comportamentos e às relações (Bar
din, 1979, p. 29).
Sendo assim, a análise do material qualitativo possui três
finalidades complementares dentro da proposta de investiga
ção social: (a) a primeira é heurística. Isto é, insere-se no coii
texto de descoberta a que a pesquisa se propõe, (b) A seguii
da é de "administração de provas", que se realiza por meio ilo
balizamento entre os achados, as hipóteses ou os pressupôs
tos. (c) A terceira é a de ampliar a compreensão de contextos
culturais, ultrapassando-se o nível espontâneo das mensagens
(Bardin, 1979).
Para a realização das análises, vários caminhos são pos
síveis e, praticamente, todos eles dependem da corrente ilr
pensamento a que o investigador se filia. No entanto, tam­
bém nesse ponto existem problemas, pois, ao se fazer uma
metanálise das pesquisas qualitativas se observa, freqüen-
temente, que os investigadores tendem a ocultar a alquimia
que usaram para transformar dados brutos em descobertas
científicas.
Minha intenção nesta parte do estudo é discutir essa fase
de uma pesquisa social, trazendo à luz possibilidades teó­
ricas e praticas de análise do material qualitativo.
Trabalharei com três modalidades de análise já consagra­
das: (a) Análise de Conteúdo, expressão genérica que designa o
tratamento de dados qualitativos. Trata-se de um conceito his­
toricamente constmído para dar respostas teórico-metodoló-
gicas e que se diferencia de outras abordagens. A mais impor­
tante autora dessa modalidade é Bardin (1979). (b) Análise de
Discurso concebido para trabalhar com a fala e seu contexto,
sendo utilizada como alternativa às práticas de análise de con­
teúdo tradicionais. Seus expoentes mais importantes são Pê-
( lieut e atualmente toda um escola de intérpretes do campo
de comunicação; (c) Análise Hermenêutica-Dialética, proposta
por Habermas no seu diálogo com Gadamer (1987) como
lima uma terceira alternativa que superaria o formalismo das
.málises de conteúdo e de discurso, indicado "um caminho
do pensamento". Incluirei, ainda, uma reflexão pessoal, ope-
lacionalizando a abordagem hermenêutico-dialética e uma
proposta de triangulação de métodos qualitativos e quantita­
tivos, tendo em vista que hoje essa estratégia vai se tornando
Iii3|iiente nas análises do setor saúde.
Neste estudo, aos discutir as três modalidades mais comuns,
liou preferência à hermenêutica dialética. Minha escolha fun­
il.i menta-se na busca de um instmmental que corresponda às
ilimensões e à dinâmica das relações que se apreendem numa
prsquisa que toma como objeto a saúde em suas mais variadas
ilimensões: concepções, política, administração, configuração
lii‘.lilucional, representações sociais e relações.
Antes de terminar o trabalho, faço uma breve discussão
sobre validade e fidedignidade em pesquisa qualitativa, to­
mando por base o pensamento de autores consagrados nas
discussões epistemológicas.
Capítulo 11
TÉCNICAS DE ANÁLISE
DO MATERIAL QUALITATIVO

Análise de conteúdo

A E X P R E S S ÃO MAIS C O M U M E N T E para represen­


US ADA
tar o tratamento dos dados de uma pesquisa qualitativa é Aná­
lise de Conteúdo. No entanto, a expressão significa mais do
t|ue um procedimento técnico. Faz parte de uma histórica bus-
( a teórica e prática no campo das investigações sociais.
Para Bardin, a Análise de Conteúdo pode ser definida como:

Um conjunto de técnicas de análise de comunicação


visando obter, por procedimentos sistemáticos e objeti­
vos de descrição do conteúdo das mensagens, indicado­
res (quantitativos ou não) que permitam a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/recep-
ção destas mensagens (Bardin, 1979, p. 42).

Ou seja, análise de conteúdo diz respeito a técnicas de


pcsi|iiisa que permitem tornar replicáveis e válidas inferências
Hobre dados de um determinado contexto, por meio de pro-
icdimentos especializados e científicos. Em comum, as defi­
nições ressaltam o processo de inferência.
técnicas de análise de material qualitativo

A Análise de Conteúdo, como técnica de tratamento de da­


dos, possui a mesma lógica das metodologias quantitativas,
uma vez que busca a interpretação cifrada do material de cará­
ter qualitativo. Berelson, um dos primeiros teóricos da análi­
se de conteúdo nos Estados Unidos, assim a define:

"É uma técnica de pesquisa para descrição objetiva, siste­


mática e quantitativa do conteúdo manifesto das comunicações
e tendo por fim interpretá-los (Berelson, 1952, p. 18).

Os termos em itálico foram anotados por mim, com in­


tenção de enfatizar os adjetivos usados por Berelson, lem­
brando que eles fazem parte do vocabulário da sociologia
positivista. A relevância concedida ao qualitativo e ao conteú­
do manifesto ou latente das comunicações, neste caso, dá ên­
fase às regularidades da fala, à sua análise léxica' e remete à
tradicional discussão sobre a especificidade do material pró­
prio às Ciências Sociais, particularmente quanto à questão da
significação.
Historicamente a Análise de Conteúdo clássica tem oscila­
do entre o rigor da suposta objetividade dos números e a
fecundidade da subjetividade. A arte de interpretar os textos
sagrados, a exegese religiosa, coloca a hermenêutica, por exem­
plo, como uma técnica muito antiga. A atividade de desven-
damento de mensagens obscuras, do duplo sentido de um
discurso geralmente simbólico e polissêmico, remonta ã Anti­
guidade. Bardin situa a Retórica e a Lógica também como práti­
cas milenares de tratamento de discurso, anteriores à atual

A análise léxica constitui um tipo de estudo do vocabulário de um informante, por


meio da aplicação de métodos estatísticos visando a averiguar ou a medir a extensão
das suas respostas. São feitos dimensionamentos das frases (essa pessoa respondeu
concisa ou extensamente?) e também estudo da incidência quantitativa das pala­
vras, ou seja, do número de vezes que um vocábulo ou um uma idéia apareceram.
Pode-se considerar que, mediante procedimentos automáticos, o uso da análise
léxica permite interpretar com rapidez o montante de palavras e expressões ana­
lisadas tendo em vista explicar o universo total das informações.

J
técnica de Análise de Conteúdo. A Retórica estuda as modali­
dades de expressão própria de uma fala persuasiva. A lógica
analisa os enunciados de um texto, seu encadeamento, e as
regras formais que validam o raciocínio.
Análise de Conteúdo é uma expressão recente. Surgiu nos
Estados Unidos na época da Primeira Guerra Mundial, dentro
tio campo jornalístico na Universidade de Colúmbia. Dentre
os nomes que ilustram a história do desenvolvimento dessa
técnica destacam-se Lasswell (1952), que fazia análise de ma­
terial de imprensa e de propaganda desde 1915. Sua obra prin­
cipal, Propaganda Tecnique in the World War foi publicada em
1927. O trabalho de Lasswell teve como contexto um mo­
mento histórico de fascínio pelo rigor matemático como me­
dida e como parâmetro científico. Dessa forma, a Análise de
Conteúdo, em sua origem, é vítima da pretensa objetividade
t|Lie os números e as medidas oferecem.
A partir da década de 1940, os departamentos de Ciências
1’olíticas das universidades americanas tornaram-se o locus de
desenvolvimento das técnicas de Análise de Conteúdo, tendo
como material privilegiado as comunicações provenientes da
Segunda Guerra Mundial. Os investigadores visavam, dentre
outros objetivos, a desmascarar os jornais e periódicos sus­
peitos de propaganda considerada subversiva ou de caráter
nazista. Lasswell continuava seus trabalhos sobre análise de
símbolos. A ele juntaram-se estudiosos das mais diferentes
áreas: sociólogos, psicólogos, cientistas políticos. Os marcos
distintivos da técnica desenvolvida nessa época foram as aná­
lises estatísticas de valores, fins, normais, objetivos e símbo­
los. A preocupação da objetividade e da sistematicidade so-
liilificou-se tendo como foco o rigor quantitativo, para se
(ontrapor ao que os cientistas denominavam "apreensão im­
pressionista", numa crítica permanente ãs escolas etnometo-
d( ilógicas e interacionistas. Do ponto de vista metodológico,
Iterelson & Lazarsfeld (1952) sintetizaram e sistematizaram as
preocupações epistemológicas da época. Em The Analysis o f
Communications Content (Berelson & Lazarsfeld,1948), os cri­
térios fundamentais então exigidos para testificar o rigor cien­
tífico foram assim resumidos: (a) trabalhar com amostras reu­
nidas de maneira sistemática; (b) interrogar-se sobre a validade
dos procedimentos de coleta e dos resultados; (c) trabalhar
com codificadores que permitam verificação de fidelidade; (d)
enfatizar a análise de freqüência como critério de objetivida­
de e cientificidade; (e) ter possibilidade de medir a produtivi­
dade da análise.
Berelson (1952), Lazarsfeld (1952) e Lasswell (1952) são
portanto importantes teóricos e criadores das técnicas de aná­
lise de conteúdo. Neles, a obsessão pela objetividade e o rigor
se confundem com os pressupostos do positivismo. Seus no­
mes, seus trabalhos e influência continuam marcantes e ainda
atuais em relação ãs propostas de tratamento dos dados.
No período posterior à Segunda Guerra, a utilização das
técnicas quantitativas para análise de conteúdo entrataram em
decadência. Seus próprios criadores refluíram o ânimo e se
desencantaram em relação aos resultados e às repercussões de
seus trabalhos. É de Berelson a seguinte frase citada por Bardin:

A Análise de Conteúdo como método não possui qua­


lidades mágicas e raramente se retira mais do que nela se
investe e algumas vezes se retira menos. No final das con­
tas nada há que substitua as idéias brilhantes (Bardin, 1979,
p. 20).

A constatação do citado autor demonstra uma certa de­


cepção teórica em relação aos modelos matemáticos para aná­
lise qualitativa e se curva à importância da compreensão dos
conteúdos latentes. Mostra que o rigor matemático pode ser
uma meta e vir junto com outras formas de validação, mas nunca
substituir a intuição e a busca do sentido das falas.
A partir dos anos 1950, e sobretudo na década de 1960, a
questão da Análise de Conteúdo ressurge, desta vez dentro
de um debate mais aberto e diversificado. A Antropologia, a
Sociologia, a Psicologia juntam-se à Psicanálise, ao Jornalis­
mo e há uma retomada de problemáticas anteriormente qua­
se intocáveis. No plano epstemológico, confrontam-se duas
concepções de comunicação; (a) o modelo "instrumental",
que defende o seguinte ponto de vista: numa comunicação o
mais importante não é o conteúdo manifesto da mensagem
(como defendia Berelson) mas o que ela expressa graças ao
contexto e às circunstâncias em que se dá; (b) o modelo "re-
presentacional", que dá relevância ao conteúdo lexical do dis­
curso, cuja proposta é fazer uma boa análise, focalizando a
quantidade e o sentido das palavras.
Do ponto de vista metodológico, a polêmica entre a abor­
dagem quantitativa e a qualitativa na análise do material de co­
municação sempre existiu. Em relação ao primeiro tipo de
abordagem, predominaram as idéias de Berelson, Lazarsfeld e
l,asswell, acrescidas de novas formas de procedimento, todas
elas buscando "medidas" para as significações, como critério
de cientificidade (Osgood et al., 1957).
Os pesquisadores que buscam a compreensão dos signifi-
I ados no contexto da fala, em geral, negam e criticam a análise
tle freqüência das falas e palavras como critério de objetivida­
de e cientificidade e tentam ultrapassar o alcance meramente
descritivo da mensagem, para atingir, mediante a inferência,
uma interpretação mais profunda.
Atualmente vários fatores vieram a alimentar o debate dessa
prática teórica. A informática e a semiótica são duas áreas que
vêm influenciando definitivamente as modalidades de trata­
mento dos dados de comunicação. Vários softwares passaram
.1 .itualizar com maior rigor técnico as propostas quantitativis-
i.is que se originaram no início do século XX. Em todos os
longressos mundiais e locais sobre pesquisa qualitativa, exis-
i<’in postos de exposição de novidades instrumentais para
.málise de conteúdo. De outro lado, também têm-se intensi-
lii.ido as propostas compreensivistas para análise das falas e
discursos, revelando novo dinamismo nos estudos de signi­
ficações.
As atuais tendências históricas do uso e do desenvolvi­
mento de técnicas de Análise de Conteúdo conduzem a uma
certeza. Todo o esforço teórico, seja baseado na lógica quanti-
tativista ou qualitativista, visa a ultrapassar o nível do senso
comum e do subjetivismo na interpretação e alcançar uma
vigilância crítica ante a comunicação de documentos, textos
literários, biografias, entrevistas ou resultados de observação.
Do ponto de vista operacional, a análise de conteúdo parte
de uma leitura de primeiro plano das falas, depoimentos e
documentos, para atingir um nível mais profundo, ultrapas­
sando os sentidos manifestos do material. Para isso, geral­
mente, todos os procedimentos levam a relacionar estruturas
semânticas (significantes) com estruturas sociológicas (signi­
ficados) dos enunciados e a articular a superfície dos enun­
ciados dos textos com os fatores que determinam suas carac­
terísticas: variáveis psicossociais, contexto cultural e processo
de produção da mensagem. Esse conjunto de movimentos
analíticos visa a dar consistência interna às operações. Como
afirma Allport:

A consistência interna conseguida através de múltiplas


abordagens é quase o único teste que temos para a valida­
de das pesquisas. Portanto, em todos os sentidos, os do­
cumentos pessoais entram no interior de um conjunto
abrangente de estratégicas de compreensão da realidade
(1942, p. 121).

Visando à consistência referida por Allport, os teóricos da


análise de conteúdo consideram que ela deva ser objetiva, tra­
balhando com regras preestabelecidas e obedecendo a diretri­
zes suficientemente claras para que qualquer investigador
possa replicar os procedimentos e obter os mesmos resulta­
dos; si.stemática, de tal forma que o conteúdo seja ordenado
e integrado nas categorias escolhidas, em função dos objeti­
vos e metas anteriormente estabelecidos. Alguns teóricos acres­
centam a essas características o termo quantitativo, entenden­
do que é importante estudar a freqüência para que os temas
tenham a medida exata de sua importância. Esse último re-
t|uisito, no entanto, não é exigido por todos os estudiosos
t|ue questionam a quantificação dos significados.
Existem várias modalidades de Análise de Conteúdo, dentre
<ts quais: Análise Lexical, Análise de Expressão, Análise de Rela­
ções, Análise Temática e Análise de Enunciação. Definirei cada
uma resumidamente e darei relevância à Análise Temática por
ser a mais simples e considerada apropriada para as investiga­
ções qualitativas em saúde.

♦ Análise lexical
Uma análise lexical inicia-se sempre pela contagem das
palavras, avançando sistematicamente na direção da identifi­
cação e dimensão do texto em estudo. No caso das entrevis­
tas abertas, são feitos gmpamentos de palavras afins, deleta-
das palavras que apresentam pouco interesse, até se conseguir
(jiie representem o sentido do texto. As freqüências permi-
icm consolidar a aplicação de um tema ou locução, possibili-
i.uUo situar no contexto as idéias trazidas pelas palavras.
Operacionalmente, a análise léxica se faz da seguinte for­
ma. O pesquisador faz o tratamento do conteúdo de um tex­
to mediante a identificação do número total de ocorrências
ile cada palavra, do número total de palavras, do número de
(li(crentes palavras, vendo a riqueza de vocabulário utilizada
para produzir uma resposta ou um discurso. A seguir, ele clas­
sifica as palavras, de acordo com sua ordem na produção de
significados: verbos, substantivos e adjetivos e, a seguir, os
vocábulos instmmentais como artigos e preposições. A partir
ilc então, o analista reduz o número de vocábulos significati­
vos, fazendo uma análise controlada, eliminando os artigos,
picposições e as palavras que julga sem importância para o
objetivo a que se propõe. O aprofundamento do estudo pode
dar-se com a análise bi ou multivariada dos dados textuais, e
depois (o que já consiste um procedimento mais aprimora­
do), integrando-os no contexto de produção da linguagem.

♦ Análise da Expressão
Designa um conjunto de técnicas que trabalham indica­
dores para atingir a inferência formal. A hipótese da técnica de
análise de expressão é que existe uma correspondência entre
o tipo de discurso e as características do locutor e de seu meio.
A ênfase é dada à necessidade de conhecer os traços pessoais
do autor da fala, sua situação social e os dados culturais de
seu contexto. No entanto, esse tipo de técnica também utiliza
indicadores lexicais, como a repetição e a incidência das pala
vras. Mas a eles acrescenta a análise do estilo das falas, do
encadeamento lógico das idéias, dos arranjos seqüenciais e
da estmtura da narrativa. Sua aplicação mais freqüente ocorre
na investigação da autenticidade de documentos, na psicolo
gia clínica, na análise de discursos políticos e persuasivos (lí.ii
din, 1979; Unmg, 1974).

♦ Análise de Relações
Designa técnicas que, em vez da análise da mera freqüen
cia de vocábulos num texto, abordam relações entre os vái ios
elementos do discurso dentro de um texto. São duas as piiii
cipais modalidades de análise das relações: (a) a de co-o(oi
rências e a (b) estmtural.
A análise de co-ocorrências procura extrair de um texio .it
relações entre as partes de uma mensagem e assinala a presni
ça simultânea (co-ocorrência) de dois ou mais elementos ii.i
mesma unidade de contexto. Por exemplo, no estudo do dis
curso de uma doente mental, o analista observa que cada vi /
que ela define sua situação, a doença aparece vinculada a sl
tuação financeira. No caso, existe correlação entre esses <le
mentos. Osgood (1959) propõe a seguinte seqüência de pm
cedimentos para a análise de co-ocorrências: (a) escolha da
unidade de registro (essa pode ser uma palavra-chave ou uma
expresssão) e sua categorização por temas a que diz respeito;
(h) escolha das unidades de contexto (podem ser, por exem­
plo, parágrafos ou até um texto inteiro) e o seu recorte em
Iragmentos; (c) busca da presença ou ausência de cada unida-
ilc de registro nas unidades de contexto; (d) cálculo de co-ocor-
lencias; (e) representação e interpretação de resultados.
A análise de co-ocorrência tem sido utilizada para esclare-
I imento de estruturas da personalidade; para o levantamento
de relevâncias que permanecem latentes tanto nas falas dos
indivíduos como nos textos referentes ã coletividade; para
esindo de estereótipos e de representações sociais (Bardin,
Osgood, 1959; Unmg, 1974).
A análise estmtural passou a ser bastante exercitada a par-
in tia década de 1960 e tem, como pressuposto fundamental,
.1 nença na existência de estmturas universais, ocultas sob a
.1 parente diversidade dos fenômenos. Filia-se às correntes es-
iininralistas na sociologia e na antropologia (Lévi-Strauss,
l'i(>7) e na lingüística (Sapir, 1967; Barthes, 1967). Os estm-
nnalislas buscam o imutável e permanente sob a heteroge-
iMiíLHle aparente. Por trás dessa busca está a noção de siste-
m.i Analisar significará, nesse tipo de estudo, reencontrar as
nii Sinas engrenagens, quaisquer sejam as formas dos meca­
nismos em que se apresentem. A significação, no caso, fica
inhoulinada à estmturação da linguagem.
A análise estmtural não se aplica ao vocabulário, à semân-
tli .1 o n ao temário da mensagem em si. Ela se dirige à organi-
#iii,.in subjacente, ao sistema de relações, às regras de enca-
ili .nnrnio, de associação, de exclusão e de equivalência. Isto
•' t Ia liabalha com todas as interações que estmturam os ele-
♦ Mt IIIos (signos e significações), mas de maneira invariante e
Htil. prudente deles (Bardin, 1979; Lévi-Strauss, 1964, 1967;
Ifnilirs, 1967).
♦ Análise de Avaliação ou Representacional
Proposta por Osgood (1959), a análise representacional
tem por finalidade medir as atitudes do locutor quanto aos
objetos de que fala (pessoas, coisas, acontecimentos). Seu
pressuposto é de que a linguagem representa e reflete quem a
utiliza. Portanto, o estudo de seu conteúdo explícito permite
fazer inferências sobre o emissor, seu contexto e sua ambien­
te. O conceito central para o processo de análise avaliativa ou
representacional é o termo atitude. Uma atitude seria, na visão
de Osgood, a predisposição relativamente estável e organiza­
da para reagir sob a forma de opiniões ou de atos em presen­
ça de objetos (pessoas, idéias, coisas, acontecimentos), de
maneira determinada.
Sendo o conceito de atitude o núcleo ou matriz que pro­
duz e traduz um conjunto de juízos de valor, uma análise
representacioanl ou avaliativa consistiría em encontrar as ba­
ses das atitudes dos entrevistados, por trás da dispersão das
manifestações verbais. Seu objetivo é específico: atém-se so­
mente à carga avaliativa das unidades de significação, buscan­
do nelas a direção e a intensidade dos juízos selecionados (Bar-
din, 1979; Osgood, 1959).

♦ Análise da Enunciação
Apóia-se numa concepção de comunicação como proces­
so (e não como um dado estático) e do discurso como pala­
vra em ato. A análise da enunciação considera que na produ­
ção da palavra elabora-se, ao mesmo tempo, um sentido e
operam-se transformações. O discurso não seria um produto
acabado, mas um momento de criação de significados com
tudo o que isso comporta de contradições, incoerências e
imperfeições. Esse tipo de estudo parte da idéia de que, nas
entrevistas, a produção da fala é, ao mesmo tempo, espontã
nea e constrangida pela situação. Levando em conta essa dii
pia perspectiva na produção do texto, a análise da enunciação
irabalha com: (a) as condições de produção da palavra. Parte
do princípio que a estmtura de qualquer comunicação se dá
numa triangulação entre o locutor, seu objeto de discurso e o
interlocutor. Ao se expressar, o locutor projeta seus conflitos
liásicos por meio de palavras, silêncios e lacunas indicando
processos, na sua maioria, inconscientes de expressão; (b) o
continente do discurso e suas modalidades. Neste segundo tem­
po, se realiza (1) uma aproximação por meio de análise sintáti­
ca e paralingüística das estmturas gramaticais; (2) uma análise
lógica que mostra os arranjos do discurso; (3) uma análise dos
elementos formais atípicos: silêncios, omissões, ilogismos; (4)
nm realce das figuras de retórica.
A entrevista aberta é o material privilegiado da análise da
iMuinciação, no sentido de que ela evidencia um discurso di-
nâmico em que espontaneidade e constrangimento são simul-
t.ineos e em que o trabalho de elaboração se configura, ao
mesmo tempo, como emergência do inconsciente.
hm termos operacionais, a análise da enunciação segue o
seguinte roteiro:
♦ Estabelecimento do Corpus ou Corpi: delimitação do
mimero de entrevistas a serem trabalhadas. A qualidade da
iiiiálise substitui a quantidade do material. O pesquisador leva
em conta a questão central e objetiva da pesquisa para deli­
near as dimensões do Corpus e dos desdobramentos para, se
lor necessário, fazer divisões em subconjuntos que se inte-
gi.\m no conjunto (Corpus).
* Preparação do Material: cada texto (entrevista) é uma
unidade básica. Começa-se pela transcrição exaustiva de cada
nina delas, deixando-se uma margem (à direita ou à esquer­
da) para anotações ou utilizando-se algum artifício no com-
piKador. A transcrição conserva tanto o registro da palavra (sig-
m(icantes) como dos silêncios, risos, repetições, lapsos, sons
t outros.
• Etapas da Análise: na análise de enunciação cada entre-
MMa é submetida a tratamento como uma totalidade organi-
zada e singular. São observados em cada uma delas os seguin­
tes aspectos: (1) alinhamento ao coletivo e à dinâmica pró­
pria do discurso do indivíduo, para se encontrar a lógica que
estmtura cada uma delas; (2) o estilo; (3) os elementos atípi­
cos e as figuras de retórica.
Na análise da enunciação de uma entrevista, primeiramente
é preciso observar o encadeamento das proposições^ e fazer-
se uma análise lógica. Separam-se por barra ou recopiam-se
todas as orações, observando-se as relações que ressaltam a
forma de raciocínio. A seguir, realiza-se a análise seqüencial,
pondo atenção sobre a maneira de constmção do texto, seu
ritmo, sua progressão e as mpturas do discurso.
Na análise de enunciação, o estilo é um revelador do lo­
cutor, de seu contexto e de seus interlocutores, no sentido de
que a expressão e o pensamento caminham lado a lado: é
preciso tê-lo em conta. Igualmente, os chamados elementos
atípicos e as figuras de retórica são relevantes neste tipo de
prática teórica, devendo-se prestar especial atenção a: (a) repe­
tições de um mesmo tema ou de uma mesma palavra dentro
de um texto. A repetição pode ser indicador da importância
do assunto que a palavra enuncia, mas também da sua ambi­
valência e da denegação; (b) lapsos que podem significar a in­
sistência numa idéia recusada. Segundo a psicanálise, a erup­
ção irracional de um termo num contexto da racionalidade
significa uma quebra de defesa do locutor; (c) ilogismos, isto
é, os emperramentos nos raciocínios demonstrativos. Costu­
mam ser indicativos de uma necessidade de justificação ou de
um juízo contraditório com a situação real; (d) lugares-comuns.
Esses podem ter um papel justificador. Costumam também
apelar para a cumplicidade do interlocutor (frases feitas, pro­
vérbios culturalmente partilhados) ou para desviar a atenção
do entrevistador ou, ainda, para a recusa de aprofundar de-

Por proposição entende-se uma afirmação, uma declaração, um juízo. E uma


unidade que se basta a si mesma, ou seja, que pronunciada sozinha tem sen
tido.

J
terminados assuntos; (e) jogos de palavras: os chistes podem
indicar descontração mas também costumam ser usados para
ludibriar o entrevistador, visando a provocar o distanciamen­
to de uma questão que o interlocutor não quer enfrentar; (f)
figuras de retórica. Elas jogam com o sentido das palavras. As
mais comuns são: o paradoxo (reunião de duas idéias apa­
rentemente irreconciliáveis); a hipérbole (o aumento ou a di­
minuição excessiva das coisas); a metonímia (uso da parte pelo
todo, do abstrato pelo concreto e vice-versa); a metáfora (de­
signa uma coisa por outra).
Em síntese, a proposta da Análise de Enunciação, bem mais
complexa e contextualizada que as abordagens quantitativas
das falas, é conseguir, através do confronto entre a análise ló­
gica, a análise seqüencial e a análise do estilo e dos elementos
atípicos de um texto, a compreensão do seu significado. A
conexão entre os temas abordados, o processo de produção
da linguagem e seu contexto, acabam por evidenciar os con­
flitos e as contradições que permeiam e estmturam um dis­
curso. Essa técnica é bastante utilizada e com grande produti­
vidade na área de jornalismo investigativo e reflexivo.

♦ Análise Temática

A noção de tema está ligada a uma afirmação a respeito de


determinado assunto. Ela comporta um feixe de relações e
pode ser graficamente apresentada através de uma palavra, de
lima frase, de um resumo. Segundo Bardin,

O tema é a unidade de significação que se liberta natu­


ralmente de um texto analisado segundo critérios relati­
vos à teoria que serve de guia ã leitura (1979, p. 105).

Para Unmg, tema é:

uma unidade de significação complexa de comprimento


variável, a sua validade não é de ordem lingüística, mas
antes de ordem psicológica. Pode constituir um tema tan­
to uma afirmação como uma alusão (1974, p. 19).

Fazer uma análise temática consiste em descobrir os nú­


cleos de sentido que compõem uma comunicação, cuja presença
ou frequência signifiquem alguma coisa para o objeto analíti­
co visado. Tradicionalmente, a análise temática era feita pela
contagem de freqüência das unidades de significação, defi­
nindo o caráter do discurso. Para uma análise de significados,
a presença de determinados temas denota estruturas de rele­
vância, valores de referência e modelos de comportamento
presentes ou subjacentes no discurso.
Operacionalmente, a análise temática desdobra-se em três
etapas:
♦ Primeira etapa: Pré-Análise
Consiste na escolha dos documentos a serem analisados
e na retomada das hipóteses e dos objetivos iniciais da pes­
quisa. O investigador deve se perguntar sobre as relações en­
tre as etapas realizadadas, elaborando alguns indicadores que
o orientem na compreensão do material e na interpretação fi­
nal. A pré-análise pode ser decomposta nas seguintes tarefas;
T.pitiira Flutuante; do conjunto das comunicações. Este
momento requer que o pesquisador tome contato direto e
intenso com o material de campo, deixando-se impregnar pelo
seu conteúdo. A dinâmica entre as hipóteses iniciais, as hipó­
teses emergentes e as teorias relacionadas ao tema tornarão a
leitura progressivamente mais sugestiva e capaz de ultrapassar
à sensação de caos inicial.
Constituição do Comus, termo que diz respeito ao uni­
verso estudado em sua totalidade, devendo responder a al­
gumas normas de validade qualitativa; exaustividade: que o
material contemple todos os aspectos levantados no roteiro;
representatividade: que ele contenha as características essenciais
do universo pretendido; homogeneidade: que obedeça a crité­
rios precisos de escolha quanto aos temas tratadas, às técnicas
empregadas e aos atributos dos interlocutores; pertinência: que
os documentos analisados sejam adequados para dar respos­
ta aos objetivos do trabalho.
Formulação e reformulação de Hipóteses e Ohjetivos. pro­
cesso que consiste na retomada da etapa exploratória, tendo
como parâmetro da leitura exaustiva do material as indaga­
ções iniciais. Os procedimentos exploratórios devem ser valo­
rizados neste momento, para que a riqueza do material de
campo não seja obscurecida pelo tecnicismo. Por isso se fala
também em reformulação de hipóteses, o que significa a pos­
sibilidade de correção de rumos interpretativos ou abertura
para novas indagações.
Nessa fase pré-analítica, determinam-se a unidade de regis­
tro (palavra-chave ou frase), a unidade de contexto (a delimita­
ção do contexto de compreensão da unidade de registro), os
recortes, a forma de categorização, a modalidade de codificação
e os conceitos teóricos mais gerais (tratados no início ou levan­
tados nesta etapa, por causa de ampliação do quadro de hi-
põteses ou pressupostos) que orientarão a análise.
♦ Segunda etapa: Exploração do Material
A exploração do material consiste essencialmente numa
operação classificatõria que visa a alcançar o núcleo de com-
preensão do texto. Para isso, o investigador busca encontrar
categorias que são expressões ou palavras significativas em fun­
ção das quais o conteúdo de uma fala será organizado. A cate­
gorização — que consiste num processo de redução do texto
às palavras e expressões significativas — é uma etapa delicada,
não havendo segurança de que a escolha de categorias a priori
leve a uma abordagem densa e rica. A análise temática Iradi-
( ional trabalha essa fase primeiro, recortando o texto em uni­
dades de registro que podem se constituir de palavras, frases,
temas, personagens e acontecimentos, indicados como rele­
vantes na pré-análise. Em segundo lugar, o pesquisador esco-
Ihe as regras de contagem, uma vez que tradicionalmente a
Iompreensão é constmída por meio de codificações e índices

À.
quantitativos. Em terceiro lugar, ele realiza a classificação e a
agregação dos dados, escolhendo as categorias teóricas ou
empíricas, responsáveis pela especificação dos temas.
♦ Terceira etapa: Tratamento dos Resultados Obtidos e Interpre­
tação
Os resultados brutos são submetidos (tradicionalmente)
a operações estatísticas simples (porcentagens) ou complexas
(análise fatorial) que permitem colocar em relevo as informa­
ções obtidas. A partir daí, o analista propõe inferências e rea­
liza interpretações, inter-relacionando-as com o quadro teóri­
co desenhado inicialmente ou abre outras pistas em torno de
novas dimensões teóricas e interpretativas, sugeridas pela lei­
tura do material.
Como se pode perceber, a análise temática é bastante for­
mal e mantém sua crença na significação da regularidade. Como
técnica ela transpira as raízes positivistas da análise de conteú­
do tradicional. Porém há variantes desse tipo de abordagem
que trabalham com significados em lugar investir em inferên­
cias estatísticas. Entre tais variantes, a que mais valoriza os sig­
nificados é a modalidade de análise da enunciação.

Análise de discurso

Análise do Discurso é um conceito relativamente jovem no


campo de interseção entre as Ciências Sociais e a Lingüística.
Seu criador nas Ciências Sociais é o filósofo francês Michel
Pêcheux, que fundou, na década de 1960, a Escola Francesa de
Análise do Discurso com o propósito de substituir a Análise de
Conteúdo tradicional.
O quadro epistemológico dessa proposta de trabalhar a
linguagem, tanto do senso comum, como do discurso políti­
co ou erudito, de acordo com seu principal pensador, articula
três regiões do conhecimento: (a) O Materialismo Histórico,
como teoria das formações sociais, de suas transformações c
também das ideologias; (b) a Lingüística como teoria dos me
canismos sintáticos e dos processos de enunciação; (c) a Teo­
ria do Discurso como teoria da determinação histórica dos pro­
cessos semânticos.
Em suas obras, Pêcheux ressalta que as três regiões do co­
nhecimento citadas estão perpassadas transversalmente por
uma Teoria da Subjetividade, de natureza psicanalista e que deve
ser apropriada para explicar o caráter recalcado na formação
do significado.
O objetivo básico da Análise do Discurso, segundo Pêcheux,
é realizar uma reflexão geral sobre as condições de produção
e apreensão da significação de textos produzidos nos mais
diferentes campos: das relações primárias, religioso, filosófi­
co, jurídico e sociopolítico, visando a compreender o mo­
do de funcionamento, os princípios de organização e as for­
mas de produção de seus sentidos.
Os pressupostos básicos da teoria de análise de discurso
podem resumir-se em dois princípios, segundo Pêcheux: (1)
o sentido de uma palavra, de uma expressão ou de uma pro­
posição não existe em si mesmo. Ao contrário, expressa posi­
ções ideológicas em jogo no processo sócio-histórico no qual
as formas de relação são produzidas; (2) toda formação dis­
cursiva dissimula, pela pretensão de transparência, sua depen-
tlência das formações ideológicas.
Como procedimento, as técnicas de análise de discurso
pretendem inferir, a partir dos efeitos de superfície (a lingua­
gem e sua organização), uma estrutura profunda: os processos
ile sua produção (Pêcheux, 1988, p. 115). Inscrevem-se portan­
to, nos marcos de uma sociologia da linguagem, tendo como
liipótese básica o fato de que o discurso é determinado por
tondições de produção e por um sistema lingüístico.
Orlandi é uma discípula de Pêcheux, que trouxe para o
lliasil a contribuição desse filósofo. Segundo essa autora. Aná­
lise de Discurso é uma proposta crítica que busca problemati-
/.ii as formas de reflexão estabelecidas. Ela distingue e situa

L
i sse tema como objeto teórico: (a) pressupõe a lingüística,

____________________________________________________________
mas se destaca dela: não é nem uma teoria descritiva, nem
uma teoria explicativa. É uma teoria crítica que trata da deter­
minação histórica dos processos de significação; (b) considera
como foco central de análise a relação entre a linguagem e seu
contexto de produção, tendo como marco teórico a teoria das
formações sociais e as teorias da sintaxe e da enumeração; (c)
pela sua especificidade, ela é cisionista em dois sentidos: (1)
procura problematizar as evidências e explicitar o caráter ideo­
lógico da fala, revelando que não há discurso sem sujeito e
nem sujeito sem ideologia; (2) ressalta o encobrimento das
formas de dominação política que se manifestam na razão
disciplinar, instmmental e reducionista.
A Análise do Discurso situa-se, portanto e ao mesmo tem­
po, numa apropriação da lingüística tradicional e da análise
de conteúdo, e numa crítica dessas abordagens, evidenciando
que são práticas-teóricas historicamente definidas. Orlandi diz
que a análise de discurso cria um ponto de vista próprio de
olhar a linguagem como espaço social de debate e de conflito.
Nela, o texto é considerado como uma unidade significativa,
pragmática e portadora do contexto situacional dos falantes.
Comenta Orlandi que neste tipo de proposta, as palavras, as
sentenças e os períodos são valorizados também em suas pe
culiaridades lexicais, morfológicas, sintáticas e semânticas, p( >
rém, o que cria a análise do discurso, "é o ponto de vista das
condições de produção do texto" (Orlandi, 1987, p. 130).
Em relação à Análise de Conteúdo, tanto Pêcheux como
Orlandi insistem em marcar uma linha divisória. Sua crítica
fundamental é de que esse tipo de abordagem toma o lexio
como pretexto e o atravessa só para demonstrar o que já lol
definido a priori pela situação dos atores em campo, ou coinu
ilustração de uma situação. Enquanto isso, a Análise de Disaii
so considera o texto como um monumento e sua exterioridadf
como parte constitutiva da historicidade inscrita nele. ness.i
forma, entende que a situação em estudo está atestada no
texto e é preciso buscar a compreensão do seu processo produtivo,
muito mais do que realizar uma interpretação exteriorizada do
objeto de pesquisa.
A teoria de Análise do Discurso trouxe uma contribuição
fundamental para a análise do material qualitativo, sobretu­
do numa situação em que a hegemonia sempre coube às aná­
lises positivistas dos conteúdos das falas. Atualmente nichos
específicos de seu desenvolvimento teórico e técnico são, prin­
cipalmente, as áreas de informação e comunicação. A análise
dos diversos fenômenos informacionais e comunicacionais
(Sodré, 1992; Champagne, 1997) tem em comum a concep­
ção de que eles fazem parte de um sistema que se articula à
lógica da vida social. E que, nas sociedades modernas, esses
meios ocupam um lugar privilegiado de produção e reprodu­
ção do real, tornando-se poderosos "interferentes" na orga­
nização do espaço relacionai (Hobsbawm, 1995; Ramonet,
1996; Martín-Barbero, 2001).
É importante definir alguns conceitos desenvolvidos a
partir da perspectiva dos teóricos da técnica de análise de dis­
curso.
fexto — Na técnica de análise de discurso, o termo texto é
loiiiado como unidade de análise: unidade complexa de sig­
nificações. Um texto pode ser uma simples palavra, um con-
iniito de frases ou um documento completo. Texto distingue-
s<' de discurso. Enquanto este último vocábulo designa um
miiceito teórico-metodológico, o primeiro é utilizado como
miiceito analítico. O discurso é a linguagem em interação,
tnm seus efeitos de superfície e representando relações esta-
hi lcí idas. O texto consiste no discurso acabado para fins de
.iii.ilise. Todo texto, enquanto corpus, é um objeto completo.
A partir dele são realizados possíveis recortes. Como objeto
ini lico, porém, o texto é infmitamente inacabado: a análise
llir devolve sua incompletude, acenado para um jogo de múl-
llplas possibilidades interpretativas, para o contexto que o
|ii mii, para a ideologia nele impregnada e para as relações dos
tilMies (|ue o tornam possível.
Do ponto de vista analítico, o texto é o espaço mais ade­
quado para se observar o fenômeno da linguagem: ele contém
a totalidade. Essa totalidade revela-se em três dimensões de ar­
gumentação: (a) relações de força em que se demarcam lugares
sociais e posição relativa do locutor e do interlocutor; (b) rela­
ção de sentido, constituindo a interligação existente entre este e
vários outros discursos como num "coro de vozes" que se es­
conde em seu interior; (c) relação de antecipação, que diz respei­
to ao movimento do falante, prevendo a reação de seu interlo­
cutor: qualquer fala tem em mente um ouvinte e sua reação.
Segundo Orlandi (1987), o movimento que acontece no
interior do discurso é ao mesmo tempo, o processo, o produ­
to e o centro nevrálgico da significação a ser compreendido na
análise do texto. Portanto, todo texto exala ideologia e pode
determinar a relação entre o enunciador e o ouvinte, caracteri­
zando sua inserção em determinada formação discursiva.^
Qualquer discurso é referidor e referido: dialoga com outros
discursos e se produz no interior de instituições e gmpos que
determinam quem fala, o que e como fala e em que momento.
Leitura e Silêncio — Qualquer texto admite múltiplas pos­
sibilidades de interpretação. O jogo de relações e de intera­
ções sociais permite tanto o nível de leituras parafrásticas, ou
seja, possuem o sentido dado por seus autores, como o nível
polissêmico em que à fala se atribuem múltiplos sentidos.
Tanto a leitura como a significação são'produzidas pelos in­
terlocutores e leitores. A possibilidade de múltiplas interpre­
tações apóia-se no fato de que o processo discursivo não tem
um início preciso: ele acumula sentidos de discursos prévios e
parte deles, sendo reinterpretados pela experiência concreta
do leitor, do interlocutor ou do analista.

Entende-se em Pêcheux por F o r m a ç ã o D is c u r siv a as marcas de estilo que se produ


zem na relação da linguagem com suas condições de produção. A formação dis­
cursiva é definida na sua relação com formação ideológica: o que pode e deve sei
dito. Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela se
constitui, sua dependência das formações ideológicas (Pêcheux, 1988, pp. 160-2)
O Silêncio ocupa lugar de relevância na técnica de análi­
se de discurso. Tanto quanto a palavra, o silêncio tem suas con­
dições de produção: ele é ao mesmo tempo ambíguo e elo-
qüente. O silêncio conseguido pelo opressor é uma forma de
exclusão; o silêncio imposto pelo oprimido pode expressar
formas de resistência. O silêncio sobre um tema contundente
ressalta a importância de que seja abordado pelo investiga­
dor. O dito e o não dito configuram o jogo de cenas entre a
região inte-rior e exterior dramatizado no trabalho de campo,
pois há silêncios que dizem e há falas silenciadoras. A fala
autoritária visa a impedir que as pessoas se revelem, mas tam­
bém quer coagi-las a dizer o que não pretendem pronunciar.
I’ortanto, nem a fala nem o silêncio dizem por si. Ambos ex-
pressam relações e dizem muito sobre as pessoas que os em­
pregam.
Tipos de Discurso — Segundo Orlandi um tipo de discur­
so resulta de determinado modo de funcionamento discursi­
vo. Ou seja, a atividade de dizer é tipificante: todo locutor,
cjuando fala, estabelece uma configuração que tem embutido
cm si um estilo que se expressa na interação. Porém, se o dis­
curso determinado só pode ser compreendido como proces­
so, seu resultado pode ser classificado dentro de formas ou
tipos discursivos distintos. A autora propõe (na linha do tipo-
iileal de Max Weber, isto é, como instrumento de análise) a
seguinte tipologia: discurso lúdico, discurso polêmico e discurso
autoritário. No primeiro, a simetria e a reversibilidade entre os
interlocutores são totais e a polissemia é máxima. No tipo
polêmico, a reversibilidade é menor e só se dá sob certas con­
dições, comportando algum grau de polissemia. O discurso
autoritário é totalmente assimétrico e contém poucas possibi­
lidades de interpretação polissêmica. Os tipos se subdividem
c jiermitem a constmção de matrizes de interpretação dentro
d.i linha que inspira o modelo teórico, o modelo estrutural.
Caráter recalcado da matriz do sentido — Pêcheux cha­
ma atenção para o fato de que os processos discursivos reali­
zam-se por meio da produção de sentidos, mas têm um cam­
po de atuação mais amplo. Adotando a linha da psicanálise
lacaniana, Pêcheux lembra que o inconsciente atravessa toda
enunciação e que toda fala é marcada por dois níveis de recal­
que: "o esquecido número um" e o "esquecido número dois".
O esquecido número um "designa aquilo que nunca foi
conhecido e que, portanto, toca mais de perto o sujeito que
fala, na estranha familiaridade que ele mantém com as causas
que o determinam" (Pêcheux, 1988, p. 175). O autor refere-
se a uma zona inconsciente, no sentido em que a ideologia é,
por sua constituição, também inconsciente e, no entanto, de­
termina a forma de estmtura discursiva.
O esquecido número dois diz respeito a um tipo de ocul-
tação parcial em que o recalcado pode ser compreendido, re­
cuperado e reformulado pelo sujeito da enunciação. Quando
alguém tenta aprofundar ou enunciar de forma mais adequa­
da seu pensamento em linguagem, passa a se situar numa zona
intermediária, pré-consciente/consciente em relação ao senti­
do de sua fala (Pêcheux, 1988).
A contribuição dos principais autores da teoria da Análise
do Discurso se fundamenta principalmente na crítica da lin­
guagem, sempre ressaltando que o emissor e o receptor em
inter-relação na constmção de determinado discurso corres­
pondem a lugares determinados na estmtura social (patrão/
operários; padre/fiéis; pai/filhos; político/povo). A situação
dada do locutor assim como a do destinatário afetam o dis­
curso emitido, pois o sujeito produz e transmite o discurso
num espaço social: o locutor antecipa, no processo discursi­
vo, as representações de sentido de seu interlocutor, ainda
quando esse último seja configurado apenas hipoteticamen­
te na fala sempre referida do autor.
Enquanto possibilidade teórica, a análise do discurso apre­
senta meios para que o investigador entenda o processo e as
condições de produção de um discurso (fala, documento); o
sentido do campo semântico em que ele é produzido; e uma
elaboração contextualizada e crítica das realizações discursi­
vas {corpus, amostra).
Como técnica, Pêcheux e Orlandi propõem várias opera­
ções descritas a seguir: o texto deve ser submetido a várias
operações classificatórias, simultaneamente semânticas, sin­
táticas e lógicas. De acordo com Pêcheux, cada frase deve ser
decomposta em proposições, o que implica várias operações
lingüísticas: substituição das anáforas'* pelos termos que elas
representam; o restabelecimento da ordem corrente na frase;
reagmpamento dos termos de ligação e explicitação de pro­
posições latentes. Ou seja, o pesquisador deve, de certa for­
ma, refazer o discurso, buscando as dependências funcionais
da linguagem evidenciadas nas frases. Assim, as proposições
vão se reduzindo a unidades mínimas que, dentro da perspec­
tiva fenomenológica, Schutz (1979) chamaria de estruturas de
relevância. Mas a sugestão de Pêcheux é que o pesquisador che­
gue a proposições passíveis de serem colocadas em gráficos e
classificadas de forma binária. A partir de então, o pesquisador
procede à análise automática do material. Isto é, codificados os
enunciados elementares e as relações binárias, os dados po­
dem ser computadorizados em busca de correlações.
Para Pêcheux, a possibilidade da análise automática vem
do fato de que os mecanismos de produção do discurso são
I aracterizados pela repetição do idêntico, através de formas
diferenciadas. Tal concepção se apóia na análise estrutural dos
mitos em Lévi-Strauss (1967) e na própria leitura que esse
.iiitor faz da concepção estmturalista do materialismo históri-
to em Althusser (1967): "busca-se, por trás das variações de
Mi|ierfície, o princípio gerador que organiza o conjunto" (1988,
p . 180 ) .

Orlandi apresenta uma proposta técnica mais flexível. Ela


li.ibalha utilizando os seguintes procedimentos: (1) em pri-

' t ) (m no a n á fo r a diz respeito às repetições de uma ou mais palavras no início de


dii.is ou mais frases, de membros da mesma frase ou de dois ou mais versos.
meiro lugar procede ao estudo das palavras do texto (faz a
separação dos termos constituintes, análise dos adjetivos, dos
substantivos, dos verbos e dos advérbios); (2) em segundo
lugar, realiza a análise da constmção das frases; (3) em tercei­
ro lugar, constrói uma rede semântica que evidencia uma di­
nâmica intermediária entre o social e a gramática; (4) por fim,
elabora a análise, considerando a produção social do texto
como constitutiva de seu próprio sentido.
Sem dúvida, a proposta de análise do discurso, que sai do
campo reduzido da lingüística e se coloca no interior das Ciên­
cias Sociais, é um bem inestimável para a pesquisa qualitativa,
mesmo quando o investigador não a utilize em todo o seu
rigor técnico. Sua maior contribuição para quem trabalha com
análise social é dar elementos para contextualização da fala,
ultrapassando em complexidade as posturas positivistas ou
fenomenológicas. No entanto, sua pretensão de substituir a
Análise de Conteúdo é radicalmente questionada por Bardin,®
segundo a qual;

Por debaixo de uma linguagem obscôndita que por


vezes mascara banalidades, sob um formalismo que por
vezes escapa ao leitor, para além das construções teóricas,
que ao nível da prática da análise são improdutivas a cur­
to prazo, existe uma tentativa totalitária (no sentido em
que se procura integrar, no mesmo procedimento, conhe­
cimentos adquiridos ou avanços até aí dispersos ou de
natureza disciplinar estranha: teoria e prática lingüística,
teoria do discurso como enunciação, teoria da ideologia e
automatização dos procedimentos) cuja ambição é sedii
tora, mas em que as realizações são anedóticas. O que é
deplorável! (1979, pp. 220-2).

Bardin é um estudioso da Análise de Conteúdo e obviamente sua discussão com


Pècheux está influenciada por uma visão da Análise do Discurso que pretende
destmir sua pretensa concorrente.
Orlandi, no entanto, avança nas propostas concretas de
ação: suas formulações são menos estmturadas e fechadas que
as de Pêcheux. As reflexões da autora sobre o discurso peda-
gõgico, o discurso político, o discurso religioso e o discurso
escolar ampliam o campo da abordagem crítica e desvendam
os mecanismos de dominação que se escondem sob a lingua­
gem. No caso de Pêcheux, o que dificulta bastante a opera-
cionalização da proposta é a sua submissão aos procedimen­
tos estmturalistas, subtraindo muito da flexibilidade que a
teoria pretende dar ã produção de sentido. A redução do dis­
curso a proposições binárias e a finalização do processo por
meio da análise automatizada não permitem ao investigador
a compreensão das relações dialéticas constitutivas da realiza­
ção social.

A Hermenêutica Dialética

A vida pensa e o pensamento vive


— G a d a m e r , 199 9 , p. 3 2 6

Busco aprofundar a articulação entre hermenêutica e dia­


lética investindo nas raízes dessa discussão, não apenas do
ponto de vista do "como fazer" e sim, também, do "como
pensar". Na verdade, a abordagem desse assunto junta duas
questões fundamentais: a subjetivação do objeto e a objetiva-
do sujeito, temas cmciais da sociologia do conhecimento
i|iie, do ponto de vista metodológico, costumam ser reduzi-
il.is aos problemas das relações entre quantitativo e qualitati­
vo na práxis científica.
Começo, portanto, problematizando os dois conceitos
I eiiirais nos quais o texto se sustenta, a hermenêutica e a dialé-
liiii. Para, a seguir, articulá-los como caminho de possibilida­
des de constmção teórico-metodológica de base empírica e
dotiimental. O conceito de saúde será tratado apenas como
iim ( aso de aplicação dessa abordagem, à medida que, seguin­
do a tradição da medicina social e da saúde coletiva, o proces­
so saúde-doença assume um sentido ampliado de híbrido
biológico-social.
A discussão sobre hermenêutica se moverá entre os seguin­
tes termos: compreensão como a categoria metodológica mais
potente no movimento e na atitude de investigação; os ter­
mos liberdade, necessidade, força, consciência histórica, todo e
partes, como categorias filosóficas fundantes; e significado, sím­
bolo, intencionalidade e empatia como balizas do pensamen­
to. A discussão sobre dialética, que já ocupou parte deste livro
no capítulo que trata do marxismo, será desenvolvida por meio
de termos que articulam as idéias de crítica, de negação, de
oposição, de mudança, de processo, de contradição, de movi­
mento e de transformação da natureza e da realidade social.

♦ A hermenêutica como a arte da compreensão


A hermenêutica funda-se na compreensão. Ela é considerada
por Gadamer (1999), um dos maiores estudiosos do assun­
to, como um movimento abrangente e universal do pensa­
mento humano. E é vista por esse autor, de forma mais ampla
do que a que abrange a experiência científica e origina-se do
processo de intersubjetividade e de objetivação humana. A
compreensão, diz Gadamer, contém a gênese da consciência
histórica, uma vez que significa a capacidade da pessoa hu­
mana — e no caso o pesquisador — de se colocar no lugar do
outro (que é o "tu" do passado, ou o "diferente de mim" no
presente, mas com o qual eu formo a humanidade).
A hermenêutica ocupa-se da arte de compreender textos. O
termo texto está sendo usado por mim num sentido bastante
amplo: biografia, narrativa, entrevista, documento, livro, arti
go, dentre outros. Na abordagem hermenêutica, a unidade
temporal é o presente onde se marca o encontro entre o pas
sado e o futuro, ou entre o diferente e a diversidade dentro
da vida atual mediada pela linguagem que pode ser transpa
rente ou compreensível, permitindo chegar a um entendimen
to (nunca completo e nunca total), ou intransparente, levan­
do a um impasse na comunicação. Por isso, as idéias de alte-
ridade, entendimento e a noção de mal-entendido são possi­
bilidades universais tanto no campo científico como no mundo
da vida.
O enunciado básico do pensamento hermenêutico é de
que as Ciências Humanas e Sociais, nominadas por Gadamer,
em Verdade e Método como ciências do espírito (1999, p. 15), ad­
ministram uma herança humanista que as distingue da práxis
da chamada "ciência moderna". No centro de sua elaboração
está a noção de compreender. Gadamer vai mais além das Ciên­
cias Sociais e Humanas, incluindo toda a experiência científi­
ca como objeto de compreensão:

A presente investigação coloca uma questão filosófica,


o compreender. E não a coloca unicamente às assim cha-
ma-das ciências do espírito; e sobremodo não a coloca so­
mente à ciência e a suas formas de experiência — essa in­
vestigação coloca a questão hermenêutica ao todo da
experiência humana de mundo e da práxis da vida (1999,
p. 16).

Para Gadamer, compreender "jamais é apenas um com­


portamento subjetivo frente ao objeto dado, pois esse movi­
mento pertence ao ser daquilo que é compreendido" (1999,
p. 19): compreensão é, em princípio, entendimento e com-
pieender significa entender-se uns com os outros. Assim, uma
il.is idéias centrais que fundamenta a hermenêutica é de que os
sei es humanos, na maioria das vezes se entendem ou fazem
nm movimento interior e relacionai para se porem de acordo.
A (ompreensão só se transforma numa tarefa quando há al-
p.nm transtorno no entendimento, um estranhamento que se
I iHieretiza numa pergunta: "A necessidade de uma hermenêu-
Ht .1 aparece, pois, com o desaparecimento do compreender-
piH si-mesmo" (Gadamer, 1999, p. 287).
Quais são as trilhas do compreender! Gadamer começa por
um exercício de negação: esclarece que não é buscando a in­
tenção do autor, pois as palavras e discursos dizem muito mais
do que quem o escreveu quis dizer. E num raciocínio dialéti­
co, comenta que, embora muitos tenham pretensão de dizer
mais do que realmente dizem, é importante ter em conta que
cada individualidade é uma manifestação do viver total e,
portanto, a compreensão se refere, ao mesmo tempo, ao que
é comum, por meio de operações de comparação; e ao que é
específico, como contribuição peculiar de cada autor. Ainda
no exercício de negação, o autor diz que compreender não é
contemplar, pois a auto-alienação na contemplação não apro­
xima o investigador da realidade histórica. Da mesma forma,
acrescenta que compreender não é um mero captar da vonta­
de ou dos planos que as pessoas fazem, pois nem o sujeito se
esgota na conjuntura em que vive, nem o que ele chegou a ser
foi apenas fruto de sua vontade, inteligência e personalidade.
Schleiermarcher (2000), um dos autores seminais da her­
menêutica, assinala que o traço essencial do compreender é o
fato de que o sentido do peculiar é sempre resultante do con­
texto e, em última análise, do todo. E Gadamer assim se ex­
pressa, a partir dos textos de Schleiermarcher;

lá que o todo, a partir do qual se deve compreender o


individual, não pode ser dado antes do individual, [. . .|
o compreender é sempre mover-se nesse círculo, e por­
tanto é essencial o constante retorno do todo às partes e
vice-versa. A isso se acrescenta que este círculo está sempre
se ampliando, já que o conceito do todo é relativo, e a
integração em contextos cada vez maiores afeta sempre
também a compreensão do individual (Gadamer, 1999,
p. 297).

Gadamer e Schleiermacher aplicam à hermenêutica uma


descrição dialética polar, com a qual descrevem a provisorie
dade interna e as múltiplas possibilidades de interpretação e
compreensão de um autor ou de um texto. Evidenciam, en­
tão, que a compreensão não é um procedimento mecânico e
tecnicamente fechado; nada do que se interpreta pode ser en­
tendido de uma vez só e de uma vez por todas. Dentro dessa
lógica, Gadamer ensina que o investigador deve buscar enten­
der um autor melhor do que ele próprio teria se compreendi­
do ou se compreende, tentando desvendar o que ficou in­
consciente para ele. Essa imersão no texto de um autor pode
ser considerada melhor quando explicita relevâncias (Schutz,
1964) e acrescenta conhecimento novo, pois, diz Gadamer;
"A hermenêutica não deveria se esquecer de que ninguém é
intérprete vocacionado de sua obra. [. . .] No momento em
cjue o autor se converte em intérprete, converte-se em seu pró-
prio leitor" (1999, p. 300).
A leitura de qualquer realidade constitui um exercício refle­
xivo sobre a liberdade humana, no sentido de que os aconte­
cimentos se seguem e se condicionam uns aos outros, media­
dos por um impulso original; a cada momento pode começar
algo novo. Ou seja, não existe determinação total dos aconte-
( imentos e nada e ninguém estão aí "por causa" do outro ou
se esgotam totalmente na sua realidade. Os acontecimentos
históricos ou da vida cotidiana são governados por uma pro-
limda conjunção interna da qual as pessoas não são comple-
I. imente independentes, na medida em que são penetrados
por ela de todos os lados. Por isso, junto da liberdade está
sempre a necessidade.
O conceito de necessidade diz respeito ao que já se for­
mou, que não pode ser desfeito e passou a ser a base para
Ioda atividade emergente do sujeito individual e coletivo. Esse
p.ilamar, que os outros autores como Sartre (1978) denomi-
II. im o plano das determinações, constitui nexos com o que
.idvém. Mas esse nexo não deve ser tomado arbitrariamente,
poujue ele se constmiu de uma maneira determinada e não
df outra (dentro de uma especificidade histórica), a partir de
um conjunto de múltiplas possibilidades. A esse elo que amal­
gama o presente com o passado e com o futuro os antropólo­
gos denominam cultura de um povo, de uma nação, de uma
classe, de uma época. São as determinações que os marxistas
reconhecem como pano de fundo da realidade social e da
história (Marx, 1984); filósofos como Ortega y Gasset deno­
minam circunstâncias da biografia (1987) e Sartre (1978) cha­
ma de possível social, condicionante da liberdade de escolha.
Dilthey (1956) adiciona o conceito de força ao de liberda­
de, para falar de um impulso que move ou de uma projeção
do sentido na ação. Para esse autor, a noção de força ocupa
um lugar central na explicação das ciências do espírito. Diz que
na força se acham unidas interioridade e exterioridade, numa
unidade tensa. Toda força só existe na sua exteriorização, mas
é mais que a exteriorização, na medida em que significa uma
disponibilidade interior da infmitude de vida. Através da ex­
periência do limite, da pressão e da resistência, o indivíduo se
dá conta da própria força. Porém, o que experimenta "não
são as duras paredes da facticidade. Como ser histórico, expe­
rimenta também realidades históricas, e essas são sempre, ao
mesmo tempo, algo que o sustenta e espaço onde dá expres­
são a si mesmo" (1956, p. 281). Em outras palavras, nesse
espaço o sujeito realiza a objetivação de sua vida. Assim, a
categoria força representa o elemento da interioridade e da li­
berdade: tudo poderia ser diferente se cada indivíduo que age
de uma forma atuasse de outra. Por isso, conclui Dilthey, a
força que faz a biografia e a história não é um movimento
mecânico, vem da vida interior e só passa a existir quando é
objetivada.
A necessidade, que se opõe à liberdade, é o poder daquilo
que sobrevêm e o poder dos outros atuando, como um dado
prévio desde o começo da atividade livre. A necessidade exclui
muitas coisas como impossíveis, restringe a ação ao possível,
ou seja, àquilo a que o sujeito está aberto. Mas, dialeticamen-
te, a necessidade procede da liberdade e a liberdade precisa
contar com ela. Do ponto de vista lógico, a necessidade é hipo­
tética, e diz respeito a um modo de ser histórico e não de algo
inerente à natureza: o que se tornou realidade não pode ser
desfeito. O que virá é, na verdade, livre, mas a liberdade pela
qual chegará a ser encontra, em cada caso, sua limitação no
que veio a ser, isto é, nas circunstâncias em que irá atuar. A
idéia encontra na história apenas uma representação imper­
feita. Igualmente, os planos e as concepções dos que atuam
são uma força viva que se atualiza nos acontecimentos. Por
isso, o momento histórico-efeitual (Gadamer, 1999), do mes­
mo modo que o indivíduo, é finito e nunca conseguirá abran­
ger o sentido total e definitivo das coisas: sua leitura será sem­
pre a possível, se dará sob o olhar do presente e será guiada
por questões, pressupostos e interesses. A fmitude do com­
preender representa as limitações da consciência histórica do
investigador (ou de qualquer sujeito) e é uma forma de auto-
conhecimento.
Qual é a matéria-prima sobre a qual se exerce o compre­
ender? O ato do entendimento, mais que um desvendamen-
to da verdade do objeto, é a revelação do que "o outro" (o
"tu") coloca como verdade.

O modo como vivenciamos uns aos outros, [. . .] é


isso que forma um universo verdadeiramente hermenêu­
tico, no qual não estamos encerrados com barreiras in­
transponíveis, mas para o qual estamos abertos (Gada­
mer, 1999, p. 35).

A categoria básica, o chão das ciências compreensivas, é o


senso comum, expressão cuja origem se encontra em Vico e cujo
sentido engloba não apenas a capacidade universal de pensa­
mento que existe em todas as pessoas, mas também o senti-
tlo do que institui a comunidade. "O senso comum é um
juízo despido de qualquer reflexão, comumente esperimen-
l.ulo por toda uma ordem, por todo um povo, por toda uma
nação, ou por todo o gênero humano" (Vico, 1979, p. 34).
Este é o artigo 12 do célebre texto Do Estabelecimento dos Prin­
cípios, com que esse filósofo do século XVII, já naquela oca­
sião, se insurgia contra a "contabilização" da vida dentro de
propostas quantitativistas, e contra a sua fragmentação com
base no cartesianismo. O senso comum tal como definido por
Vico, é assumido por Gadamer como um saber que se dirige
para o verdadeiro e para o correto, que busca o que é plausí­
vel e prático e se apóia em vivências e não em fundamenta­
ções racionalistas. Essa definição pode ser comparada com os
termos de outros estudiosos, como é o caso de Schutz em
seu trabalho Common-sense and Scientific Interpretations o f Hu-
man Action (1982). Diz Gadamer, referindo-se ao assunto:

É um conhecimento positivo que o senso comum


transmite. [. . .] Também não é assim, em absoluto que a
tal saber contenha apenas um valor reduzido de verdade.
[. . .] Ele serve para nos guiar nos afazeres comuns da vida,
quando nossa faculdade racional nos deixa no escuro
(1999, p. 69).

O conceito de senso comum irá sendo retomado sempre na


história da ciência. Num dos seus livros que se chama Introdu­
ção a uma Ciência Pós-Moderna, editado em 1989, Boaventura
Santos (1989) faz uma pormenorizada dissertação de como,
em vários momentos históricos de seu desenvolvimento, a
ciência trata dessa problemática, ora dando ênfase a seus as­
pectos positivos ou negativos, segundo o grau de racionalis-
mo com que o método científico é tratado. De um lado, está
um grupo que opõe mundo da vida a mundo racional e cien­
tífico, pondo na expressão senso comum a carga de suspeita
das referências sobre pré-conceitos. É o caso de Durkheim,
em As Regras do Método Sociológico (1978); e de Marx <&Engels
em A Ideologia Alemã (1984). Nesses autores, senso comum é
considerado como juízo leigo, ignorante ou falsa consciência
sobre as coisas, devendo ser derrubado e vencido pela objeti­
vidade da ciência. Outros autores recuperam a positividade
do conceito tanto como matéria-prima da investigação empí­
rica, mas também como fonte de criatividade, como expres­
sam Gunnar Myrdal, em Objectivity in Social Research (1969);
Thompson em The Voice o f the Past: Oral History (1978); Tho-
mas, em The Definition o f Situation (1970); Schutz, em Com­
mon-sense and Scientific Interpretations ofHuman Action (1982).
Na sua positividade, senso comum é tratado como um gênio da
vida prática, que leva ao ajustamento em relação à realidade,
ao meio social, contendo, portanto, um valor prático-moral.
Sendo originado e lapidado na própria cotidianidade, o senso
comum permite o deslocamento de uma pessoa para o ponto
de vista da outra, por meio de uma atitude compreensiva. Um
terceiro grupo de autores problematiza o conceito, nele en­
contrando pólos de positividade e de negatividade em rela­
ção à construção científica da realidade social. É o que se lê
em Gramsd na obra Concepção Dialética da História (1981); em
Weber em A Objetividade do Conhecimento nas Ciências e na Po­
lítica Social (1974); em Granger, em Pensée Formalle et Science
de ÜHomme (1967).
Da mesma forma que senso comum, outra idéia importan­
te para a atividade compreensiva trazida por Gadamer (1999)
e a de vivência. Esse autor observa que, diferentemente do ter­
mo vivenciar que é mais antigo, vivência surge no século XIX,
(arregando o sentido de imediaticidade com que é abrangido
algo real. Vivenciar é diferente de ouvir falar, de deduzir ou de
intuir. É um termo que vem da literatura biográfica e foi pri­
meiro desenvolvido por Dilthey (1956), significando configu-
Iações de sentido e unidades de sentido que são re-interpreta-
(,oes, ou "realidades pensadas", fazendo parte da objetivação
da experiência. Mas vivência não é sinônimo de "conteúdo",
pois sua fonte é a vida mesma.
Outro termo que compõe o campo da análise hermenêu-
lua é símbolo. Denomino símbolo ao que vale, não somente

I
por seu conteúdo, mas por fazer uma mediação comunica-
cional, por existir como um "documento" e "uma senha" que
permitem aos membros de determinada comunidade se iden­
tificarem. A importância de um símbolo está em sua função re­
presentativa de algo visível e invisível, refletindo, ao mesmo
tempo, uma idéia do real e sua expressão fenomênica. Ou seja,
símbolo é a íntima unidade da imagem e do significado que não
anula a tensão entre o mundo das idéias e o mundo dos senti­
dos. A compreensão simbólica deve ser entendida como parte
da ocorrência, da formulação e do sentido de todo enunciado.
Com Husserl (1980), a hermenêutica aproxima-se da fe-
nomenologia. Essa corrente de pensamento afasta-se da idéia
de investigação do "ser" numa abordagem filosófica essencia-
lista para ir à busca de compreensão de como as coisas se apre­
sentam e acontecem nos modos subjetivos de viver. O "mun­
do da vida", tal como pensado por Husserl é, ao mesmo
tempo, um mundo pessoal (no qual se juntam tradição e pro­
jeto de futuro) e um mundo comunitário que contém a co-
presença dos outros com os quais se vive em intersubjetivida-
de. São dois os termos centrais do pensamento de Husserl:
intencionalidade e significado. O primeiro quer dizer dirigir-se
para, visar alguma coisa: "a consciência é intencionalidade" o
que significa: "toda consciência é consciência de [. . .] e todo
objeto é apreendido em sua relação com a consciência" (1980,
p. 56). O segundo pode ser traduzido como a concepção de
que os objetos são compreendidos de uma certa maneira sul)
jetiva pela consciência que lhes dão maior ou menor relevân
cia. Dessa forma, a fenomenologia não concebe a subjetivid.i
de em oposição à objetividade, porque esses dois termos est.io
em correlação: o sujeito que realiza, objetiva-se em sua ação,
e seu produto é sua própria subjetivação.

A ingenuidade do discurso que fala da objetividade,


que deixa totalmente fora da questão a subjetividade, ,i
qual experimenta e conhece e é a única que produz de
maneira verdadeiramente concreta; a ingenuidade do ci­
entista da natureza e do mundo em geral, que é cego para
o fato de que todas as verdades que ele entende como
objetivas, e mesmo o próprio mundo objetivo que é o
substrato de suas fórmulas, é a sua própria configuração
devida (Husserl, 1980, p. 16).

Em síntese, compreender implica a possibilidade de in­


terpretar, de estabelecer relações e extrair conclusões em todas
as direções. Mas compreender acaba sempre sendo compreen­
der-se. A estrutura geral dessa forma de abordagem atinge sua
concreção na abordagem histórica, na medida em que aí se
tornam operantes as vinculações concretas de costumes e tra-
ilições e as correspondentes possibilidades de seu futuro. Mas
compreender significa também e sempre estar exposto a erros
e a antecipações de juízos. A compreensão só alcança sua ver­
dadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais
se inicia uma relação não são arbitrárias. Existe realmente uma
polaridade entre familiaridade e estranheza e nela se baseia a
larefa da hermenêutica, buscando esclarecer as condições sob
.is c|uais surge a fala.

• A dialética como a arte do estranhamento e da crítica


Na história da dialética, caracterizam-se duas fases. A anti-
g.i, desde os pré-socráticos até Hegel; e a moderna, de Hegel
.iic os dias de hoje. A dialética antiga que vem do pensamento
gifgo, chegou a se constituir como um método de busca da
vcidade pela formulação de perguntas e respostas, para trazer
a b.iila as incongmências das concepções falsas da realidade.
M(’míficava a arte do diálogo ou a arte de discutir, mas tam-
In iM,1 arte de separar, distinguir as coisas em gênero e espécie
f t l.issificar as idéias para melhor analisá-las, como demonstra
ri.ii.io no Sofista.
Sócrates chamava a esse método questionador de maiêuti-
II» o (|iie significa método de parto das idéias. Entre os filósofos

L-
gregos, o debate iniciava-se pela definição do tema. Seguiam-
se perguntas, respostas e outras indagações, até que os deba-
tedores chegassem à idéia mais clara sobre o assunto em pau­
ta. Os historiadores de Sócrates comentam que ele costumava
usar essa estratégia para obter a confissão de ignorância de
seus interlocutores, com base nas contradições que manifes­
tavam na apresentação de idéias. Em Platão, a dialética é o
método de passagem de um conhecimento sensível para o
conhecimento racional. Em Aristóteles, significa a dedução que
parte de premissas formuladas sobre opiniões prováveis. No
pensamento estóico, dialética é sinônimo de lógica formal.
No Ocidente, ao longo de toda a história da filosofia, o
conceito de dialética assumiu muitos significados, freqüente-
mente não relacionados ao seu sentido original. No século
XI, o filósofo Abelardo retomou o sentido grego da noção de
dialética como o método adequado para formular dúvidas e
críticas. Mas em Descartes, que viveu do final do século XVI
até a metade do século XVII e é considerado o filósofo dos
fundamentos da ciência moderna e pai do racionalismo, pelo
mérito do conjunto de toda a sua obra, mas sobretudo pelo
Discurso do Método, escrito em 1636 (Descartes, 1980), a dialé­
tica só aparece referida como lógica falsa e inadequada ao cor­
reto uso da razão.
Mais tarde, Kant mostrou, em Crítica da Razão Pura (1980),
que as idéias e os princípios da razão levam a contradições
quando são usados como transcendentes. Schleiermacher
(2000), um dos filósofos da hermenêutica, recupera a condi­
ção da dialética como método de conhecimento, retoman­
do seu sentido na filosofia de Platão. Para Schleiermacher, a
dialética é uma regra que serve a todo entendimento, uma vez
que se constitui como uma arte de conduzir o discurso para
produzir uma representação verdadeira de um assunto em
pauta.
Foi com Hegel em A Fenomenologia do Espírito escrita em
1813 (1980) que a dialética recebeu tratamento mais amplo e
aprofundado em três dimensões: ontológica, lógica e meto­
dológica. A partir de então, o conceito passou a dominar a
teoria filosófica, sendo abordado em vários sentidos e com as
mais diferentes conotações; (a) a dialética do ser: o ser e o
nada é um e o mesmo; (b) a dialética da essência: a essência é
o ser enquanto aparência de si mesmo; (c) a dialética do con­
ceito; o conceito é a unidade de ser e essência; (d) a dialética
do ser, da essência, e do conceito: tiansformar-se em outro é
o processo dialético na esfera do próprio ser.
Para Engels, a dialética está presente na realidade, como
forma de articulação das partes num todo e como processo
de desenvolvimento dessas partes. Ela manifesta-se no conhe­
cimento como forma de pensar a história da natureza e da
natureza humana das quais são abstraídas as leis da dialética:
"a morte como momento essencial da vida, a negação da vida
como contida na própria negação da morte, de forma que a
vida seja sempre pensada com relação a seu resultado neces­
sário, o qual está sempre contido nela, em germe, em forma
da morte" (Engels, 1952, p. 37). Por isso, a dialética é a forma
mesma como a realidade se desenvolve, pois no universo tudo
é movimento e transformação e nada permanece como é. Hegel
é considerado um filósofo idealista, pois coloca a primazia
das idéias na construção da realidade. Segundo sua filosofia,
na origem o universo seria a idéia materializada e, antes de
qualquer coisa, um espírito pensou o mundo. Mas o espírito
e o universo se encontram em movimento dialético.
No marxismo, a dialética transformou-se numa maneira
tlinâmica de interpretar o mundo, os fatos históricos e eco­
nômicos, assim como as próprias idéias, sob a égide do mate-
riídismo histórico. Marx apoiou-se nas idéias de Hegel relativas
ao perene movimento universal e ao constante processo de
transformação, mas o fez invertendo os termos da reflexão
(lesse autor. Em Marx, a dialética está presente como método
de transformação do real que por sua vez modifica a mente
( Iiando as idéias. Todos os grandes pensadores marxistas de­
senvolveram uma reflexão sobre a dialética. Mencionarei ape­
nas alguns, buscando compor as idéia teóricas que vieram a
se tornar a espinha dorsal do método do materialismo dialé­
tico, e remeto o leitor ao capítulo onde trato especificamente
do marxismo.
Para o marxismo, a realidade é um todo dinâmico, em
permanente desenvolvimento, em unidade de contrários, cujo
conhecimento é um processo de conquistas de verdades rela­
tivas, como parte de uma verdade única e absoluta. A dialética
é o estudo da oposição das coisas entre si. Metodologicamen-
te, ela se traduziría numa forma de abordagem: desvendar as
relações múltiplas e diversificadas das coisas entre si; explicar
o desenvolvimento do fenômeno dentro de sua própria lógi­
ca; evidenciar a contradição interna no interior do fenômeno;
compreender o movimento de unidade dos contrários; traba­
lhar com a unidade da análise e da síntese numa totalização
das partes; co-relacionar as atividades e as relações.
Assim, do ponto de vista marxista, a dialética se constitui
num processo infinito de revelação de novos aspectos e cor­
relações; processo incessante de busca de aprofundamento
do conhecimento humano; movimento de encontro da coe­
xistência da causalidade com formas mais complexas de inter­
dependência, de reprodução e de passagem da quantidade
para a qualidade.
Em síntese, a grande contribuição marxista à dialética é,
primeiro, inverter, teoricamente e na sua aplicação prática, a
visão hegeliana de primazia do pensamento sobre a ação na
constmção da realidade, valorizando a historicidade, e a rela­
ção entre a base material e as representações da realidade. Na
prática de análise dos materiais qualitativos, essa abordagem
colabora para o entendimento de que não existe ponto de
vista fora da história, nada é eterno, fixo e absoluto, portan­
to, não há nem idéias, nem instituições nem categorias estáti­
cas. São os seguintes os princípios com os quais o método
dialético trabalha:
f
♦ Cada coisa é um processo, isto é, uma marcha, um tor­
nar-se. Cada ser (pessoa, gmpo, instituição, animais, plantas)
está submetido à lei interna do movimento, contém em si o
passado, mas está em plena realização. As coisas, as relações e
as idéias transformam-se em virtude das leis internas de seu
autodinamismo.
♦ Há um encadeamento nos processos. Por exemplo, a
flor se transformou numa goiaba que se transformará em árvo­
re e que um dia morrerá, recompondo o ciclo dos outros mo­
mentos vitais de mudanças. Mas nunca será a mesma goiaba,
nem a mesma árvore, pois os processos se dão em espiral e não
de forma linear nem circular. O que vem é uma promessa, po­
derá ou não acontecer, mas nunca será uma mera repetição.
♦ Cada coisa traz em si sua contradição, sendo levada a
transformar-se em seu contrário. O vivo marcha para a morte
porque vive; a felicidade contém a dor que virá e assim por
diante. Segundo a concepção de Hegel, uma coisa é ao mes­
mo tempo ela própria e seu contrário. Qualquer coisa que se
concretiza é apenas um momento, uma síntese de sua afirma­
ção e de sua negação.
A quantidade se transforma em qualidade. Nos processos
de transformação, as mudanças são quantitativas e conco-
mitamente qualitativas. A superação do dualismo entre quan­
tidade e qualidade expressa-se no fato de que toda qualidade
comporta sempre certos limites quantitativos e vice-versa. Ou
seja, sob o ângulo da dialética, as qualidades perdem a natu­
reza fixa e estável que lhes são atribuídas nas concepções clás­
sicas da física e da lógica. São estados ou situações momentâ­
neas, em transformação incessante motivada por mudanças
interiores. Assim, a oposição entre ambas é dialética e com-
ifiementar: a quantidade se apresenta sempre como uma dis­
tinção no interior da qualidade. E a qualidade está sempre
presente nas quantidades, sendo a quantidade em si mesma
lima qualidade do objeto ou da realidade. Essa forma de com­
preender a realidade em processo de transformação qualitati­
va, sendo gerada no seio da mudança cjuantitativa, permite
superar, no plano do pensamento, a falsa polêmica que aco­
meteu a prática científica moderna, na qual o quantitavismo
se estabeleceu de forma hegemônica, colocando todas as qua­
lidades no mesmo plano (portanto não as distinguindo e di­
ferenciando) e considerando que a realidade se esgota na sua
expressão matemática. Mas também busca ultrapassar a posi­
ção contrária, que se restringe a compreender a realidade ape­
nas nas suas expressões qualitativas.

♦ Articulação entre hermenêutica e dialética


A partir dos anos 1960, o diálogo estabelecido por Haber-
mas e Gadamer (1987) a respeito da Hermenêutica e Dialética
veio beneficiar as discussões sobre métodos em Ciências So­
ciais, uma vez que esses dois autores buscaram forma de obje­
tivar a práxis de produção de conhecimento. Referindo-se à dis­
cussão pública dos autores a respeito desse tema, Stein (1987)
reafirma a importância que deram para o avanço do conheci­
mento, dizendo que a filosofia não pode omitir-se do diálo­
go com as Ciências Sociais e Humanas, pois são elas que cons­
tituem a base da filosofia hermenêutica: "sem o diálogo com
as ciências humanas, a filosofia se torna vazia (1987, p. 131).
O movimento contrário de aproximação das ciências sociais e
humanas do pensamento filosófico também é crucial, sob
pena de os métodos dessas ciências se transformarem em me­
ras técnicas, como chamam atenção Adorno & Horkheimer
quando fazem a crítica da sociologia americana positivista:

A investigação social empírica toma equivocadamente


o epifenômeno, o que o mundo fez de nós como a pró­
pria realidade. Seu método ameaça tanto fetichizar seus
assuntos quanto se degenerar em fetiche, ou seja, a colo­
car as questões de método acima das questões de conteú­
do (1979, p. 219).
Para Stein, trabalhar dentro do movimento hermenêuti-
co-dialético "significa um esforço de proteger não só o objeto
das ciências sociais, mas os próprios procedimentos científi­
cos contra a ameaça da selvagem atomização dos procedimen­
tos do conhecimento" (1987, p. 129). Isso não significa que a
hermenêutica e a dialética devam reduzir-se a uma simples
teoria de tratamento de dados. Mas, por possibilitarem uma
reflexão que se funda na práxis, o casamento das duas abor­
dagens é fecundo na condução do processo, ao mesmo tem­
po compreensivo e crítico de estudo da realidade social.
A hermenêutica oferece as balizas para a compreensão do
sentido da comunicação entre os seres humanos; parte da lin­
guagem como o terreno comum de realização da intersubjeti-
vidade e do entendimento; faz a crítica das pretensões do Ilu-
minismo que leva a ciência moderna a crer na isenção do
possível dos pré-juízos, colocando-se fora do mundo da vida;
investe nas possibilidades da comunicação, mas as considera
em seu processo finito, marcado pela história e pela cultura e,
(ilosoficamente, propõe a intersubjetividade como o chão do
processo científico e da ação humana.
Por tudo isso, sob a ótica hermenêutica, entender a reali-
ílade que se expressa num texto é também entender o outro,
e entender-se no outro, movimento sempre possível, por mais
difícil que pareça à primeira vista. No entanto, concordando
( om uma das leis da dialética, para a hermenêutica, tal como
definida por Gadamer (1999), a compreensão só é possível
pelo estranhamento, pois a necessidade do entendimento nas-
do fracasso da transparência da linguagem e da própria
iiuompletude e finitude humana. Assim, a atividade herme-
nenlica se move entre o familiar e o estranho, entre a inter-
Mibjetividade do acordo ilimitado e a quebra da possibilida­
de tiesse acordo.
As balizas da postura hermenêutica podem ser assim re-
«.ninidas a partir de Gadamer (1999); Habermas (1987); Stein
( l')H7); Minayo (2002);
técn icas de análise de m aterial qualitativo

♦ O investigador deve buscar, ao máximo, com dados his­


tóricos e também pela "empatia" o contexto de seu texto, dos
entrevistados e dos documentos c[ue analisa. O discurso
sempre expressa um saber partilhado com outros e marcado
pela tradição, pela cultura e pela conjuntura.
♦ O pesquisador que analisa documentos passados ou
atuais (biografias, material de entrevistas, textos oficiais, etc.),
para entendê-los, necessita adotar uma postura de respeito
pelo que dizem, supondo que, por mais obscuridade que
apresentem à primeira vista, sempre terão um teor de raciona­
lidade e de sentido. Assim, como interprete, é seu dever levar
a sério o documento que tem à frente.
♦ O investigador não deve buscar nos textos uma verdade
essencialista, mas o sentido que o entrevistado (autor, bio­
grafado) quis expressar. Assim, o investigador só estará em
con-dições de compreender o conteúdo significativo de qual­
quer documento (termo usado aqui no sentido amplo), se
fizer o movimento de tornar presente, na interpretação, as ra­
zões do autor. Por outro lado, na interpretação nunca há últi­
ma palavra, o sentido de uma mensagem ou de uma realida­
de estará sempre aberto em várias direções, por causa dos novos
achados do contexto ou das novas perguntas que são formu­
ladas.
♦ Toda interpretação bem conduzida é acompanhada pela
expectativa de que, se o autor estivesse presente ou pudesse
realizá-la, compartilharia dos resultados das análises. Gadamer
(1999) exige mais: recuperando o pensamento de vários auto­
res como Dilthey (1956) e Schleiermarcher (2000), diz que a
interpretação deve ir além de quem escreveu o texto, pois o
autor quando o elaborou não tinha consciência de tudo o que
permite ser lido nele sobre seu tempo e sobre seus coetâneos.
Como práxis interpretativa são os seguintes o caminho da
hermenêutica:
♦ buscar as diferenças e as semelhanças entre o contexto
do autor e o contexto do investigador;
1

J
♦ explorar as definições de situação do autor, que o texto
ou a linguagem em análise permite. Essa definição de situação
não se apresenta de forma explícita muitas vezes, cabendo ao
pesquisador desvendá-la e compreendê-la. Para os hermeneu-
tas, o mundo da cotidianidade onde se produz o discurso é o
parâmetro da análise, pois é o único mundo possível do con­
senso, da compreensão ou do estranhamento da comunica­
ção intersubjetiva, por isso, é também 0 mundo objetivo;
♦ supor o compartilhamento entre o mundo observado
e os sujeitos da pesquisa com o mundo da vida do investiga­
dor [porque compreender é sempre compreender-se). E a partir de
tal postura, perguntar "por que" e "sob que condições" o su­
jeito da linguagem que busca entender cria determinadas si­
tuações, valoriza determinadas coisas, atribui determinadas
responsabilidades a certos atores sociais e, em síntese, expres­
sa-se e se posiciona de tal maneira e não de outra;
♦ buscar entender as coisas e os textos "neles mesmos",
distinguindo o processo hermenêutico do saber técnico que
elabora um conjunto de normas para analisar um discurso;
da lingüística, cujo objetivo é a reconstmção do conjunto de
regras que subjazem à linguagem natural; da fenomenologia,
<uja linguagem é tomada como sujeito da forma de vida e da
iradição, como se a consciência lingüística determinasse o ser
material da práxis vital; e do objetivismo positivista que estabe­
lece uma conexão ingênua entre os enunciados teóricos e os
il.idos factuais, como se fosse possível haver verdade fora da
práxis;
♦ apoiar toda a reflexão sobre determinada realidade so­
bre o contexto histórico, partindo do pressuposto de que o
iiivestigador-intérprete e seu "sujeito" de observação e pes-
t|iiisa são expressões de seu tempo e de seu espaço cultural.
I.m relação à dialética, assinalarei com base em Habermas
( 1987) e Stein (1987) as aproximações e as diferenciações que
pninitem às duas abordagens se complementarem, buscando
ilf antemão, ressaltar suas potencialidades complementares:
♦ em primeiro lugar, enquanto a hermenêutica busca es­
sencialmente a compreensão, a dialética estabelece uma atitu­
de crítica. Habermas expressa essa diferenciação, afirmando
que a razão humana pode mais que simplesmente compre­
ender e interpretar. Ela possui uma força transcendental que
lhe permite exercer crítica e superar prejuízos: "A mesma razão
que compreende, esclarece e reúne, também contesta e disso­
cia" (Habermas, 1987, p. 20). A estmtura do significado pre­
sente na linguagem, na qual a hermenêutica põe maior ênfa­
se, para a lógica dialética é apenas um dos fatores na totalidade
do mundo real. Habermas (1987) realiza uma crítica extensi­
va do campo compreensivista, que vai da hermenêutica à feno-
menologia e à etnometodologia, dizendo que esses tipos de
abordagem ignoram a totalidade da vida social. Pois essas abor­
dagens se movem num espaço de comunicação restrita da vida
cotidiana como se esse universo contivesse a totalidade do
processo sócio-histórico e cultural. Habermas (1987) critica
Gadamer, dizendo que ele se esquece de que o contexto da
tradição não é apenas o espaço da verdade, mas também da
falsidade fática, pois é atravessado por interesses e pela vio­
lência. Argumenta que, a seu ver, o mundo se compõe de tra­
balho, poder e linguagem, portanto, a linguagem que reflete
esse mundo está marcada e limitada pelo caráter ideológico
das relações de trabalho e poder:

Linguagem é também meio de dominação e de poder


social. Serve às relações de violência organizada. Na medi­
da em que as legitimações não manifestam a relação de
violência, cuja institucionalização possibilita, e na medida
em que isso só se expressa em legitimações, a linguagem
também é ideológica (Habermas, 1987, p. 21).

♦ O marxismo reafirma que toda a vida humana é social e


está sujeita às leis históricas, raciocínio no qual a lógica dialé­
tica se aproxima da fundamentação hermenêutica de Gadamer:

à
quem voltar a ler a história da tribo [dos esquimós] daqui
a 50 ou 100 anos, não só achará que essa história é velha,
porque nesse meio tempo ele sabe mais ou interpreta me­
lhor as fontes mais corretamente, mas ele pode admitir
também que no ano de 1960 liam-se as fontes de modo
diverso, porque as pessoas estavam motivadas por outras
questóes, por outros pressupostos e por outros interes­
ses" (1999, p. 138).

Assim, o exercício dialético considera como fundamen­


to da comunicação as relações sociais historicamente dinâ­
micas, antagônicas e contraditórias entre classes, grupos e
culturas. Ou seja, entende a linguagem como um veículo
de comunicação e de dificuldade de comunicação, pois seus
significantes, com significados aparentemente iguais para
todos, escondem e expressam a realidade conflitiva das desi­
gualdades, da dominação, da exploração e também da resis­
tência e da conformidade. Uma análise compreensiva ancora­
da na her-menêutica-dialética busca apreender a prática social
empírica dos indivíduos em sociedade em seu movimento
contraditório. Portanto, tendo em conta que os indivíduos
vivendo determinada realidade pertencem a gmpos, classes e
segmentos diferentes, são condicionados por tal momento
liistórico e por isso, podem ter simultaneamente interesses
coletivos que os unem e interesses específicos que os distin­
guem e os contrapõem. Sendo assim, a orientação dialética
de qualquer análise diz que é fundamental realizar a críti-
l a das idéias expostas nos produtos sociais (textos, mo­
numentos, instituições) buscando, na sua especificidade his-
lorica, a cumplicidade com seu tempo; e nas diferenciações
iiilernas, sua contribuição à vida, ao conhecimento e às trans­
formações.
♦ Enquanto a hermenêutica busca as bases dos consen­
sos e da compreensão na tradição e na linguagem, o método
dialético introduz na compreensão da realidade o princípio

i
do conflito e da contradição como algo permanente e que se
explica na transformação.
♦ Uma vez que nada se constrói fora da história, qualquer
texto (em sentido amplo) necessita estar referido ao contexto
no qual foi produzido, porque só poderá ser entendido na
totalidade dinâmica das relações sociais de produção e repro­
dução nas quais se insere. Mais que isso, o cientista que analisa
as questões sociais nunca poderá se esquecer de que os seres
humanos não são só objeto de investigação, são também su­
jeitos de relações: na defesa dessa posição, a hermenêutica de
Gadamer se aproxima da dialética marxista. Diz Goldmann:

A deformação científica não começa quando se tenta


aplicar ao estudo das comunidades, métodos das ciências
físico-químicas, mas no fato de considerar-se essa comu­
nidade "objeto" de estudo (1980, p. 22).

Diz Gadamer:

A compreensão jamais é um comportamento subjeti­


vo frente a um "objeto" dado. Mas frente à história fac­
tual, e isso significa que pertence ao ser daquilo que é
compreendido (1999, p. 19).

♦ A dialética marxista, em seu viés articulador dos pólos


da objetividade e da subjetividade (Goldmann, 1980), consi­
dera que a vida social é o único valor comum que reúne a
todos os seres humanos e de todos os lugares. Nisso coincide
com a hermenêutica que proclama o terreno da intersubjeti
vidade como o locus da compreensão. Nesse sentido é possível
haver um diálogo de ambas as abordagens sobre: (a) a com
preensão da consciência e das atitudes fundamentais dos in
divíduos e dos grupos em análise, em face dos valores da co
munidade e do universo; (b) a compreensão das transformações
do sujeito da ação dialética ser humano/natureza/sociedade.
numa busca de síntese entre passado, presente e projeção para
o futuro; (c) a compreensão das ações humanas de todos os
tipos nos diferentes lugares e dos acontecimentos inevitáveis
ligados a elas, segundo as intenções dos atores sociais e os
significados que eles atribuem aos eventos e a seu próprio
comportamento; (ã) a compreensão de que as estmturas que
condicionam os seres humanos em seu processo individual
ou coletivo são construções humanas objetivadas; (e) a com­
preensão de que a liberdade e a necessidade se condicionam
mutuamente no processo histórico.
* Por fim, levando em conta as relações entre quantidade
e qualidade, a dialética convida à superação do quantitativis-
mo e do qualitativismo na pesquisa. No primeiro caso, pro­
põe uma revisão do positivismo que exclui e não leva em conta
o que há de específico na realidade empírica: a transformação
i|ualitativa, a passagem de uma qualidade a outra. No segun-
ilo caso, induz a pensar não apenas na especificidade e dife-
leiiciação interna dos fenômenos, mas também no seu con­
junto e na sua configuração unitária como realização objetiva.
At|ui a dialética dá um passo à frente e se contrapõe à herme­
nêutica e à fenomenologia (embora Husserl fale de uma in­
vestigação de correlações), que promovem a crítica ao quan-
lilivismo sem propor nenhuma saída para o processo de
.iiticulação entre os níveis concomitantes, intensivos e exten­
sivos dos fenômenos da natureza e da vida social.
fm resumo, ressalto minha intenção de evidenciar as con-
iiiluiições e os limites da hermenêutica e da dialética na com-
liicensão e na crítica da realidade social. Ao mostrar como a
Imineira realiza o entendimento dos textos, dos fatos históri-
ins, da cotidianidade e da realidade, ressalta que suas limita-
i.iie.s podem ser fortemente compensadas pelas propostas do
iiH lotlo dialético. A dialética, por sua vez, ao sublinhar o dis-
'<1 nso, a mudança e os macroprocessos, pode ser fartamente
hrncfidada pelo movimento hermenêutico que enfatiza o
.!•tildo e a importância da cotidianidade. Dessa forma, con-
cluo que a hermenêutica e a dialética se apresentam como
momentos necessários da produção de racionalidade em re­
lação aos processos sociais e, por conseguinte, em relação aos
processos de saúde e doença.
Nessa combinação de oposições complementares, o mé­
todo dialético tem como pressuposto o método hermenêuti­
co, ainda quando as duas concepções tenham sido desenvol­
vidas através de movimentos filosóficos diferentes. Pois, como
ressalta Stein (1987): (a) ambas trazem em seu núcleo a idéia
fecunda das condições históricas de qualquer manifestação
simbólica, de linguagem e de trabalho do pensamento; (b)
ambas partem do princípio de que não há observador impar­
cial, nem há ponto de vista fora da realidade do ser humano e
da história; fc) ambas superam a simples tarefa de serem ferra­
mentas do pensamento, pois elas consideram o investigador
parte da realidade que investiga; (d) ambas questionam o tec­
nicismo como caminho capaz de realizar a compreensão e a
crítica dos processos sociais; (e) ambas referem-se à práxis e des­
vendam os condicionantes da produção intelectual, marcada
tanto pela tradição, pelos pré-juízos, como pelo poder, pelos
interesses e pelas limitações do desenvolvimento histórico.

Proposta operativa

Nossos conhecimentos são apenas apro­


ximação da plenitude da realidade, e por
isso mesmo são sempre relativos; na me­
dida, entretanto, em que representam a
aproximação efetiva da realidade objeti­
va, que existe independentemente de nos­
sa consciência, são sempre absolutos. O
caráter ao mesmo tempo absoluto e rela­
tivo da consciência forma uma unidade
dialética indivisível
— B a c h e l a r d , 1967, p. 233.

Ao pensamento de Lukács sobre o conhecimento aproxi­


mado, em epígrafe, acrescento a reflexão de Bachelard, segim
do O qual "o ato de conhecer, no seu primeiro impulso é
uma descoberta plena de incerteza e de dúvida. Sua raiz é o

Os três tipos de abordagem apresentados neste capítulo


mostram que na produção de análises sobre questões sa ia is
e mesmo de abordagens qualitativas não há consenso, há sim
vanos caminhos de possibilidades à escolha do pesquisador'
I la sem p re lim ite na capacidade hu m an a de o b i e L ç ã o um a
vez que a ctencra se faz numa relação dinâmica entre r a ^ r e
expertencta e não admite a redução de um termo ao ou r 7 s e
SSO e verdade para a totalidade do labor de investigação cien
I fica ap l.ca-se de form a m uito específica à etapa d e L a m e n t o
tios dados em píricos. tidiam em o

Poirier e colaboradores comentam que, num curso minis


n ad o na França p o r Lazarsfeld (um dos renom ados pesquisa­
dores sociars d o século XX) sobre técnicas de análisrde con -
ictido ap licad as às abordagens de história de vida, um dos
. nos lhe perguntou sob re a con d u ção de certos p r o b T e L s
I laticos. Sorrindo, o mestre lhe respondeu: "A gente diz e
.•screve muitas coisas, mas na verdade a gente faz como pode"
(l’oirier et al., 1985, p. 72) ^
A intervenção de Lazarsfeld é altamente significativa e ho
Desmitifica as idéias de perfeição, de objetividade e de
..... qne muitos cientistas sociais costumam guardar
...s carxas-pretas- de seus procedimentos analíticos, ou
.." lado, sua fala revela não apenas o lado das dificuldades
.. ais, das fraquezas e das falhas de um pesquisador, mas insi-
...... algo fnn<^lamental. Ou seja, o que se escreve ou se fala
«..l.ie o trabalho de investigação, geralmente é uma 'lógica
.. .....sirutda que se distancia da 'lógica em uso', utilizada
....... . Em outros termos e a propósito do
.... sm o tema Marx fala na Introdução à Contribuição à Crltioa
■Io t.onotma Pohuça que existem lógicas diferentes no método
11 iiifesiigaçao e no método de exposição ( 1973, p 240)
Tendo como ponto de partida a incompletude do pensa­
mento e da capacidade analítica de qualquer pesquisador, é
importante dizer que saber das limitações não exime, ao con­
trário reforça, a necessidade de aprimorar métodos, técnicas
e instmmentos de operacionalização em todo o processo de
pesquisa, sobretudo na etapa de análise. Esse desafio tem de
partir de uma revisão das alternativas até aqui apresentadas
e de uma opção que ao mesmo tempo se torne viável teórica
e praticamente. É preciso estar atento, pois muitas pesquisas
são pobres e precárias, não apenas pela escolha de uma téc­
nica errada, mas pelo mais completo empirismo ou teoricis-
mo: o primeiro, partindo do princípio de que a verdade está
nos resultados do trabalho de campo, principalmente nas falas
dos informantes; o segundo, menosprezando o potencial en-
riquecedor da contribuição dos atores entrevistados e conta­
tados.
A crítica principal às técnicas de Análise de Conteúdo tradi­
cional (nas suas mais diferentes modalidades) se refere a seu
foco apenas no discurso, reduzindo-se assim sua capacidade
explicativa. A ênfase quase absoluta na fala como material de
análise, transforma a questão da descoberta e da validade na
habilidade de manipulação de instmmentos técnicos. O ma­
terial etnográfico é arranjado como um Corpus, isto é, como
um conjunto sistematizado e fixo, privilegiando-se tudo o que
pode se constituir em sistema de signos a serem decifrados.
Dessa forma, não entram em pauta o processo de tomada de
decisões no campo e nem o contexto da ação analisada. As
entrevistas (ou comunicações em geral) costumam ser vistas
em bloco, perdem sua autoria, e o jogo dos "significantes em
cadeia" passa a ser o foco da compreensão.
A Análise de Discurso ultrapassa teoricamente as técnicas
tradicionais de Análise de Conteúdo, na medida em que se
propõe a desvendar as regras próprias do processo discursivo
e a atingir as estruturas profundas na raiz de qualquer co­
municação. No entanto, suas técnicas de análise põem a tôni­
ca na fala e, quando estabelece os procedimentos operativos,
retorna ao rigor formal típico do estmturalismo.
Os refinamentos técnicos, tanto da análise de conteúdo
como da análise do discurso, apóiam-se na crença de que a
"verdade" dos significados situa-se nos meandros profundos
dos sentidos dos textos. Ora, a absolutização dessa crença deixa
em segundo plano os aspectos extradiscursivos que consti­
tuem o espaço sócio-político-econômico, cultural e relacionai
onde o discurso circula.
A abordagem antropológica, a partir dos clássicos traba­
lhos de Malinowski, já há muito ultrapassou os limites da
ênfase na análise do conteúdo explícito da mensagem. Seu
método é cotejar a fala com a observação das condutas e dos
costumes e com a análise das instituições referentes ao tema
em estudo. Checar o que é dito com o que é feito, com o que
é celebrado e está cristalizado. Dessa forma, uma boa análise
interpreta o conteúdo ou o discurso dentro de um quadro de
referências em que a ação e a ação objetivada nas instituições
permite ultrapassar a mensagem manifesta e atingir os signifi­
cados latentes. A proposta da hermenêutica-dialética é a que
oferece um quadro referencial mais completo para análise do
material qualitativo, no entanto, não é proposta de Haber-
mas oferecer instmmentos de operacionalização.
Darei, a seguir, um exemplo de operacionalização, sempre
levando em conta a questão do contexto e da empiria. Parti­
rei de um exemplo de objeto bem genérico: Concepção de Saú-
de-Doença de um Determinado Segmento Social. Sobre esse tema,
dois níveis de interpretação precisam ser realizados.
O primeiro diz respeito ao campo das determinações fun­
damentais, que deve ter sido mapeado na fase exploratória
da investigação. Trata-se do contexto sócio-histórico do gm-
po social em questão, e que constitui o marco teórico-funda-
mental para a análise. Esse momento pode ser pensado esque-
maticamente como o de busca de compreensão: (a) da história
do gmpo, de seus ambientes, de suas condições socioeconó-

A
micas e políticas, de sua participação e inserção nas totalida-
des maiores como bairro, cidade, país; (b) do mapeamento
do sistema de saúde local e próximo (hospitais, centros de
saúde, farmácias, outras facilidades e alternativas terapêuticas,
mesmo populares) dos profissionais, da acessibilidade aos ser­
viços; (c) do perfil de morbimortalidade da população resi­
dente e objeto da investigação. Esse primeiro nível é o plano
da totalidade (sempre totalidade parcial) ou do contexto, que
significa, segundo Lukács:

Um todo coerente em que cada elemento está, de uma


maneira ou de outra, em relação com outro elemento; e
de outro, que essas relações formam na própria realidade
objetiva, correlações concretas, conjuntos, unidades liga­
das entre si de maneiras complementares diversas, mas
sempre determinadas (1967, p. 240).

No momento concreto de interpretação dos dados, o sen­


tido da totalidade se refere tanto ao nível das determinações
como à do recurso interpretativo pelo qual se busca descobrir
as conexões que a experiência empírica mantém com o plano
das relações essenciais. Nem sempre esse momento pode ser
captado apenas através das representações sociais. A operação
intelectual pela qual se obtém a totalidade concreta implica
um movimento da razão e da experiência, uma articulação da
base material e das idéias. Do ponto de vista histórico, a pos­
tura compreensiva reconhece os fenômenos sociais sempre
como resultados e efeitos da atividade criadora, tanto ime­
diata quanto institucionalizada. Portanto, toma como centro
da análise a prática social e a acão humana e as considera como
resultados de condições anteriores, exteriores, interiores e tam­
bém como práxis. Isto é, o ato humano que atravessa o meio
social conserva as determinações, mas se realiza no sujeito que
vive, pensa, sente e reflete o mundo. "O homem faz a histó­
ria: ele se objetiva nela e nela se aliena" (Sartre, 1978, p. 150).

J
As concepções de saúde e doença são frutos e manifestações
de condicionamentos sócio-históricos que se vinculam a aces­
so a serviços, tradições culturais, concepções dominantes so­
bre o assunto e da inter-relação de tudo isso. Portanto, saúde
e doença são fenômenos sociais não apenas porque expres­
sam certo nível de vida ou porque correspondem a certas pro­
fissões e práticas. Mas porque são manifestações da vida mate­
rial, das carências, dos limites sociais e do imaginário coletivo.
O segundo momento interpretativo é o ponto de partida
e o ponto de chegada de qualquer investigação: é o encontro
com os fatos empíricos, no caso, com um conjunto de con­
cepções sobre saúde e doença. É preciso encontrar nos relatos
dos informantes o sentido, a lógica interna, as projeções e as
interpretações. Isto é, nesses textos existe, ao mesmo tempo,
uma específica significação cultural própria do grupo e uma
vinculação muito mais abrangente que junta esse gmpo a cír­
culos cada vez mais abrangentes e intercomunicáveis da reali­
dade, tratados no primeiro item.
Na busca da significação específica, é preciso que a análise
contemple: (a) as comunicações individuais (entrevistas, his­
tórias de vida, resultados de discussões de gmpo); (b) as ob­
servações de condutas, costumes e relações relativas ao tema
saúde e doença; (c) a análise das falas sobre instituições ofi-
( iais (e outras informações sobre elas) e sobre outras entida-
iles ou organizações alternativas que oferecem serviços no lo­
cal; (d) observação de cerimônias e ritos atinentes ao tema.
A interpretação exige elaboração de Categorias Analíticas
(geralmente trabalhadas desde o início da investigação) capa­
zes de desvendar as relações mais abstratas e mediadoras para
a parte contextual e de Categorias Empíricas e Operacionais, cria­
das a partir do material de campo, contendo e expressando
lelações e representações típicas e específicas do gmpo em
(|iiestão. A partir dos dados colhidos e acumulados, o investi­
gador se volta para os fundamentos das teorias que fizeram
parte da elaboração dos conceitos iniciais na fase explorató­
ria, para pôr em dúvida idéias evidentes anteriormente e para
verificar em que medida o momento pós-trabalho de campo
lhe exige aprofundamento de outros temas. Assim, o pesqui­
sador constrói uma nova aproximação do objeto: o pensa­
mento antigo (proveniente da fase exploratória) que é nega­
do, mas não excluído, encontra outros limites e se ilumina na
elaboração do momento presente. O novo contém o antigo,
incluindo-o numa nova perspectiva.
Como operacionalizar esse segundo momento que, na
verdade, constitui o maior desafio da fase de análise? Por meio
de três fases, cujos passos sugiro que sejam os seguintes:

♦ Ordenação dos dados


O momento da ordenação engloba tanto as entrevistas como
o conjunto do material de observação e dos documentos popu­
lares e institucionais, referentes ao tema concepções de saúde e
doença.® Essa etapa inclui: (a) transcrição de fitas-cassete; (b)
releitura do material; (c) organização dos relatos em determi­
nada ordem, o que já supõe um início de classificação; (d) orga­
nização dos dados de observação, também em determinada
ordem, de acordo com a proposta analítica. Essa fase dá ao in­
vestigador um mapa horizontal de suas descobertas no campo.
Entendo este trabalho como um processo hermenêutico,
em que se toma o material empírico sobre concepções de saú­
de e doença como um conjunto, um Gorpus, a ser tecnica­
mente trabalhado. Caso a pesquisa empírica tenha sido feita
com gmpos diferenciados por classe social, por idade, por re­
ligião (todas essas divisões são aqui hipotéticas), vários sub­
conjuntos devem ser criados, visando-se a uma leitura que
busque homogeneidades e diferenciações por meio de com­
parações e contrastes.

Não entramos aqui nos detalhes referentes à Ordenação de Dados. Indicamos


como bibliografia complementar o trabalho de Poirier et al. L e s R éc its d e V ie. Paris:
PUF, 1983.
♦ Classificação de dados
E preciso ter em mente que não é o campo que cria o
chamado "dado", uma vez que a informação que de lá emerge
já traz em seu interior uma constmção de indagações e respos­
tas. Neste momento o processo de construção do conheci­
mento se complexifica. Proponho que o momento classifica-
tório seja constituído pelas seguintes etapas:
♦ Leitura horizontal e exaustiva dos textos, prolongando-
se uma relação interrogativa com eles. Apenas provisoriamente
toda a atenção do pesquisador deve estar voltada para esse
material. Se fosse possível sugerir uma atitude, a ideal seria fe­
char olhos e ouvidos para qualquer interferência contextuali-
zadora, tal qual é proposto pela análise fenomenológica (Ca-
palbo, 1979), mas infelizmente isso é quase impossível. Gostaria,
porém, de chamar atenção para a importância desse momento,
para não ocorrer algo muito comum das produções qualitati­
vas: ou a mera exposição das falas com comentários do pesqui­
sador ou um solene menosprezo dos achados em campo.
Essa etapa inicial de contato com o material de campo exi­
ge uma leitura de cada entrevista e de todos os outros do­
cumentos, anotando-se (no computador ou em papel impres­
so) as primeiras impressões do pesquisador, iniciando-se,
assim, a busca de coerência interna das informações.
O material escrito necessita ser cuidadosamente analisa­
do: frases, palavras, adjetivos, concatenação de idéias, senti­
do geral do texto. Sobre o tema, Bakhtin (1986) sugere algu­
mas regras metodológicas: (1) não separar a ideologia da
realidade material do signo; (2) não dissociar o signo das for­
mas concretas de comunicação (entendendo-se que o signo
faz parte de um sistema de comunicação social organizado);
(3) não dissociar a comunicação e suas formas da base mate­
rial em que ela se sustenta.
Esse exercício inicial, denominado por alguns autores como
"leitura flutuante" permite apreender as estmturas de relevân­
cia dos atores sociais, as idéias centrais que tentam transmitir
e os momentos-chave e suas posturas sobre o tema em foco
(no caso, como exemplo as concepções de saúde/doença). A
atenção imergente do pesquisador sobre o material o ajudará
pouco a pouco a construir categorias empíricas. Um passo
futuro será confrontá-las com as categorias analíticas, teorica­
mente estabelecidas como balizas da investigação, e buscar as
inter-relações e interconexões entre elas.
♦ Leitura transversal. O segundo momento é o da leitura
leitura transversal de cada subconjunto e do conjunto em sua
totalidade. O processo é do recorte de cada entrevista ou do­
cumento em "unidade de sentido", por "estruturas de rele­
vância", por "tópicos de informação" ou por "temas". Os cri­
térios de classificação em primeira instância podem ser tanto
variáveis empíricas como variáveis teóricas já construídas pelo
pesquisador. No processo classificatório, o pesquisador sepa­
ra temas, categorias ou unidades de sentido, colocando as
partes semelhantes juntas, buscando perceber as conexões
entre elas, e guardando-as em códigos ou gavetas.
Terminado este primeiro esforço em que muitas "gavetas"
foram abertas, o pesquisador parte para uma segunda tarefa,
fazendo um enxugamento de suas classificações; agrupando
tudo em número menor de unidades de sentido e buscando
compreender e interpretar o que foi exposto como mais rele­
vante e representativo pelo grupo estudado. Aqui se faz uma
reflexão sucessiva, em que a relevância de algum tema, uma vez
determinado (a partir da elaboração teórica e da evidência dos
dados de campo), permite refinar o movimento classificató­
rio. As múltiplas gavetas são reagrupadas em torno de catego­
rias centrais, concatenando-se numa lógica unificadora.
♦ Análise Final. As etapas de ordenação e classificação de­
mandaram uma profunda inflexão sobre o material empírico,
que deve ser considerado o ponto de partida e o ponto de
chegada da compreensão e da interpretação. Esse movimento
circular, que vai do empírico para o teórico e vice-versa, que
dança entre o concreto e o abstrato, que busca as riquezas do
particular e do geral é o que se pode chamar, parafraseando
Marx (1973), "o concreto pensado".
Levando-se em conta o exemplo adotado, a pesquisa so­
bre concepções de saúde e doença deve apresentar aos leito­
res um quadro complexo de respostas voltadas para esclare­
cer a lógica interna de um gmpo determinado sobre o tema
em pauta, quando o pensa, quando fala dele, quando se rela­
ciona e quando a partir dele se comporta, projeta e planeja
sua vida. Pois, como lembra Sartre (1978), as significações que
vêm do ser humano e de seu projeto se inscrevem por toda
parte, na ordem das coisas e nas relações mediadas pelas es-
tmturas enquanto ação humana objetivada.
♦ Relatório. Estou usando o termo relatório para me referir
à comunicação dos dados de uma pesquisa. Nesse sentido,
relatório passa a ser sinônimo da formatação final de uma
monografia, de uma dissertação ou de uma tese, ademais de
ser o produto (provisoriamente) acabado de uma determina­
da investigação. O relatório final de uma pesquisa deve confi-
gurar-se como uma uma síntese, na qual o obieto de estudo
reveste, impregna e entranha todo o texto. Costumo dizer a
meus alunos: da primeira à última linha de seu trabalho, falem de
seu objeto. O contexto, as determinações abstratas e tudo mais,
nessa etapa do "concreto pensado", emanam do objeto e não
ao contrário. Portanto, será um trabalho incompleto o que
apenas descreve, ipsis litteris, o processo de trabalho do inves­
tigador. A compreensão e a interpretação em seu formato fi­
nal, além de superar a dicotomia objetividade vs. subjetivida­
de, exterioridade vs. interioridade, análise vs. síntese, revelará
que o produto da pesquisa é um momento da práxis do pes-
cjuisador. Sua obra desvenda os segredos de seus próprios
condicionamentos, pois a investigação social como processo
de produção e produto é, ao mesmo tempo, uma objetivação
da realidade e uma objetivação do investigador que se torna
também produto de sua própria produção.
Do ponto de vista operativo, relatório é o instrumento mais
tradicional de apresentação dos resultados de uma pesquisa.
Há algumas normas básicas sobre esse tipo de documento. A
folha de rosto deve conter: (a) título que corresponda ao obje­
to de investigação; (b) nomes dos participantes da equipe de
avaliação com suas respectivas funções; (c) nomes ou logomar-
cas das instituições realizadoras do trabalho e das patrocinado­
ras e (d) data de finalização do informativo. Todos esses deta­
lhes facilitam a comunicação direta e a catalogação do trabalho.
Em seguida, caso o texto seja apresentado em capítulos é
fundamental acrescentar o índice do trabalho. O conteúdo
pode ser apresentado de várias formas, mas é preciso manter
o tom direto e ao mesmo tempo complexo, nunca se omitin­
do os seguintes termos: o objeto, os objetivos; o histórico, o
contexto e as circunstâncias da investigação; os conceitos cen­
trais que balizaram o olhar científico, de forma sucinta e pro-
blematizada; o método ou os métodos adotados com suas
respectivas modalidades de operacionalização técnica; a des­
crição, análise e problematização dos achados empíricos; os
resultados e, se for o caso, as recomendações.
Quem elabora um relatório precisa ter sempre em mente o
caráter da pesquisa que realizou: se foi uma pesquisa básica,
operativa ou estratégica, pois a forma de realizar a síntese deve
refletir a proposta do trabalho. Em qualquer hipótese, esse ins-
tmmento precisa ressaltar os pontos mais relevantes do estudo
e, ainda, descrever as condições de realização da pesquisa, como
já foi fundamentado na parte que trata do trabalho de campo.
Para facilitar sua leitura, o relatório deve ser escrito em
linguagem clara, objetiva, e apresentar, sempre que possível,
formatos sintéticos e visuais que permitam comparações, como
é o caso de gráficos, tabelas, mapas ou outros dispositivos.
Dados mais complexos e de difícil compreensão podem ser
postos em anexos, desde que explicados de forma simplifica­
da no relatório. Um estudo bem planejado e acompanhado
durante todo o seu processo de realização é o pré-requisito
da confiança para apresentação de resultados fidedignos.
Capítulo 12
TRIANGULAÇÃO DE MÉTODOS
QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS^

N o CAPÍTULO QUE TRATA DOS CONCEITOS BÁSICOS de


pesquisa, discuti os problemas epistemológicos das relações
entre métodos quantitativos e qualitativos. Neste momento
ofereço ao leitor um caminho de possibilidades em que os
dois termos podem se encontrar, superando dicotomias e ven­
cendo, do ponto de vista quantitativo, os marcos do positi­
vismo; e, sob a ótica qualitativa, as restrições relativas à com­
preensão da magnitude dos fenômenos e processos sociais.
Talo de um tipo de abordagem, a Triangulação de Métodos que
pode ser compreendida como uma dinâmica de investigação
que integra a análise das estruturas, dos processos e dos re­
sultados, a compreensão das relações envolvidas na imple­
mentação das ações e a visão que os atores diferenciados cons­
tróem sobre todo o projeto: seu desenvolvimento, as relações
hierárquicas e técnicas, fazendo dele um construto (Schutz,
1982) específico. Além da integração objetiva e subjetiva nos
processos de pesquisa, esta proposta inclui os atores contac-

Como anunciei na apresentação desta nona edição do livro O D e s a fio d o C o n h e c i­


m e n to , resolvi acrescentar e ampliar algumas partes dessa obra. No caso deste
capítulo "Triangulação de Métodos", o texto é , em parte, reprodução do capítulo
introdutório que escrevi para o livro A v a lia ç ã o p o r T r ia n g u la ç ã o d e M é t o d o s , publica­
do pela Editora Fiocruz, Rio de laneiro, em 2005.
tados em campo, não apenas como objetos de análise, mas,
principalmente, como sujeitos de auto-avaliação, uma vez que
são introduzidos na construção do objeto de estudo. A ética
que fundamenta a triangulação apóia-se nos princípios da fi­
losofia comunicativa (Habermas, 1987). Pois essa estratégia
propicia meios para que, no desenvolvimento do processo de
investigação e de análise, os que implementam as ações se
apropriem da compreensão dos dados quantitativos e quali­
tativos gerados pelo trabalho e recolham subsídios para as
mudanças necessárias. A tringulação de métodos é particular­
mente recomendada para estudos de avaliação.
Autores como Denzin (1979), Jick (1979), Samaja (1992)
e Minayo (1993) estudaram tecnicamente a triangulação me­
todológica, mostrando que seus princípios ecoam no interior
de larga tradição das Ciências Sociais, por motivos práticos de
validade ou por razões epistemológicas. Samaja (1992), no
artigo "Metodologia e Dialética do Trabalho Interdisciplinar",
demonstra que a integração acontece por razões práticas, so­
bretudo quando se trata de processar e analisar dados produ­
zidos por vários instmmentos, na perspectiva de diversas disci­
plinas. Mas ela acontece também, diz o autor, por motivos
epistemológicos, à medida que se tenta superar as dicotomias
entre quantitativo vs. qualitativo; entre enfoque disciplinar vs.
interdisciplinar, etc. Samaja vai além, quando afirma que o pro­
cesso de investigação, de uma forma explícita ou implícita, sem­
pre utiliza conceitos e noções de várias áreas do conhecimento.
Jick (1979) encontra um valor universal na triangulação
metodológica, ao constatar que cada método, por si só, não
possui elementos mínimos para responder às questões que
uma investigação específica suscita. E Denzin (1979) enfatiza
a contribuição metodológica como instmmento de ilumina­
ção da realidade sob vários ângulos. Mostra que essa prática
propicia maior claridade teórica e permite aprofundar uma
discussão interdisciplinar de forma interativa e intersubjetiva.
Uma das fundamentações mais importantes da triangula­
ção de métodos se pode encontrar nalgumas idéias de Kant,

J
desenvolvidas no "Sistema dos Princípios do Entendimento"
em sua obra sobre a Crítica da Razão Pura. Kant ensina que "a
possibilidade da experiência é oferecida pela realidade objeti­
va a todos os nossos conhecimentos a priori" (1980, p. 115).
Ora, a experiência se constrói na unidade sintética dos fenô­
menos, numa síntese de conceitos sem o qual a ação não che­
garia a se transformar em conhecimento. Logo, à atuação con­
creta subjazem princípios e regras universais relativos à unidade na
síntese dos fenômenos, cuja realidade objetiva pode ser mos­
trada pela experiência: "é no objeto que a unidade sintética
dos conceitos evidencia uma realidade objetiva" (1980, p. 116).
Para Kant, o entendimento da realidade fundamenta-se
em quatro princípios básicos: os axiomas da intuição; as anteci­
pações da percepção; as analogias da experiência e os postulados do
pensamento empírico em geral. Nesta introdução apenas se co­
mentam os dois iniciais. O primeiro fundamenta-se no fato
de que as intuições são quantidades extensivas no tempo e
no espaço que só podem ser apreendidas pela composição
de homogêneos múltiplos e pela consciência da unidade sin­
tética deste múltiplo. Os fenômenos, de acordo com Kant,
são quantidades, mas quantidades extensivas representadas
por partes homogêneas e sucessivas e que formam um todo.
O segundo princípio diz respeito à existência de uma quan-
(idade intensiva que ocorre como um grau de percepção dos
fenômenos. Essa percepção, segundo Kant, é a consciência
empírica simultânea da intuição e da sensação. Ela é compre­
ensão de que os objetos fenomênicos não são apenas quan-
litlades extensivas ou intuições externas. Eles contêm, tam­
bém, sensações sob forma de representação subjetiva. Dizendo
(om outras palavras, o sujeito é afetado e experimenta exis-
lencialmente o fenômeno que vivência: isso constitui uma
imidade do sistema de entendimento. Esta unidade é um grau,
rntre o qual e sua negação ocorre uma seqüência infinita de
gi.uis sempre menores. Daí se conclui que há diferentes graus
de observação de uma experiência que contém, simultanea-
iiuaite, quantidades extensivas e quantidades intensivas.
Kant chamou a quantidade intensiva de "qualidade" das
sensações, assinalando que a vivência dessa qualidade é sem­
pre empírica, não podendo, de modo algum, ser representada
a priori. Portanto, as "percepções", as "sensações", são verda­
des reconhecidas apenas posteriormente, porém a propriedade
de possuir um grau pode ser conhecida por antecipação. Da
mesma forma, nas quantidades só se pode conhecer, a priori,
uma qualidade: sua continuidade. E, na qualidade, só uma
quantidade extensiva, ou seja, a de possuir um grau: "Cha­
marei matemáticos, os dois princípios precedentes, sendo am­
bos constitutivos dos fenômenos" (Kant, 1980, p. 123).
As idéias filosóficas de Kant podem ser consideradas bási­
cas para a triangulação, pois fundamentam a possibilidade de
articulação de estudos de magnitude e de compreensão de
forma complementar. A realização metodológica da proposta
não exige grande teorização, uma vez que busca apenas inte­
grar as vantagens da avaliação tradicional com a abordagem
qualitativa e os elementos dos processos participativos. O pon­
to cmcial do processo reflexivo é o que aponta ser possível
exercer uma superação dialética sobre o objetivismo puro, em
função da riqueza de conhecimento que pode ser agregada
com a valorização do significado e da intencionalidade dos
atos, das relações e das estruturas sociais. A postura dialética
leva a compreender que dados subjetivos (significados, inten­
cionalidade, interação, participação) e dados objetivos (indica­
dores, distribuição de freqüência e outros) são inseparáveis e
interdependentes. Ela permite criar um processo de dissolução
de dicotomias: entre quantitativo e qualitativo; entre macro e
micro; entre interior e exterior; entre sujeito e objeto.

Pré-requisitos da triangulação de métodos

A proposta de triangulação depende de duas condições


imprescindíveis. A primeira é de ordem prática. Consiste na
exigência de uma equipe formada por profissionais de várias
áreas que desejam trabalhar cooperativamente. Ou seja, ela
depende de pessoas dispostas emocional e mentalmente ao
diálogo e a experimentar a possibilidade de complementação
entre diferentes métodos e disciplinas, realizando um movi­
mento intelectual específico em direção a um objeto empíri­
co. Como recorda Kant (1980), o objeto é o terceiro termo. Dian­
te dele, a abordagem quantitativa e qualitativa produzirá a
unidade sintética do múltiplo e do uno. Em torno do objeto
aprofundam-se as reflexões em busca de compreendê-lo e
explicá-lo em suas múltiplas dimensões.
A equipe de estudo deve, num esforço dialógico, partici­
par de todas as fases da investigação, desde a concepção até a
apresentação dos resultados. O êxito deste trabalho em gm-
po de "diferentes" requer capacidade de discutir, diferenciar e
relacionar teorias, conceitos, noções e métodos, tratados como
fragmentos teóricos de uma abordagem mais ampla. O resul­
tado deste processo é a substituição da hierarquia, a priori,
dos campos científicos por uma visão cooperativa entre eles e
0 mundo da vida (Habermas, 1987).
A segunda condição para o êxito de um trabalho coopera­
tivo é, paradoxalmente, a competência disciplinar de cada
componente do grupo. É a segurança disciplinar que permite
iiprofundamento teórico-metodológico em relação ao conhe-
( imento do objeto. É necessário ter claro que se trata de combi-
n.ição, de triangulação de métodos que conservam sua espe-
(ificidade no diálogo inter ou Iransdisdplinar. Trabalha-se,
portanto, de forma dialética a integração dos contrários e a dis­
tinção entre eles. Ao se juntarem, as especificidades metodoló­
#
gicas não se dissolvem, continuam a existir no trato com ques­
tões que exigem uma ou outra abordagem, como mostram a
base filosófica de Kant (1980) e os estudos de Samaja (1992)
e Minayo (1993; 1999). Samaja chama atenção para o fato de
(|iie a combinação de teorias e métodos é sempre desigual ha­
vendo, na prática, a supremacia de uma disciplina sobre outra.
1 ss.i assimetria de poder costuma ter vários motivos que vão
desde a idiossincrasia dos investigadores à experiência maior
de alguns em determinada área, mas também o peso dos ob­
jetivos pretendidos na escolha das estratégias metodológicas.
Além da articulação entre os opostos que se realiza na "dis­
tinção e integração entre teorias e métodos" e o da "dialógica
entre investigadores e várias disciplinas", os avaliadores que
trabalham com a triangulação precisam levar em conta alguns
princípios que hoje são enunciados pelas teorias da auto-or-
ganização e da complexidade (Morin, 1993; 1996; Atlan, 1979)
e consideradas a partir da própria natureza dos processos so­
ciais (Hartz, 1997; Minayo & Cmz Neto, 1999).
O primeiro é o da complexidade, que se opõe à visão de li­
nearidade entre causa-efeito, e enfatiza as dimensões de com­
plicação, de incalculáveis interações e de inter-retroações que
os fenômenos possuem. Destacam-se: (a) as relações, numa
visão hologramática, no sentido de que o todo contém as par­
tes, a parte contém o todo, mas cada um (parte e todo) possui
características e propriedades específicas; (b) a inseparabilida-
de da ordem e da desordem em qualquer projeto, proposta
ou organização; (d) a irredutibilidade do acaso, da incerteza e
do inacabado em todos os fenômenos sociais. A idéia de cau­
salidade complexa se fundamenta na constatação do dinamis­
mo da realidade. Ela se apresenta, ora em movimentos circula­
res, de mão dupla, ora em espiral, incorporando atrasos,
contradições, desvios e orientações endógerras e exógenas.
ü segundo princípio, que complementa o da complexi­
dade, é o da organização recursiva, da autoprodução e da auto-
organização, a partir de elementos previsíveis ou do acaso e
por interferências internas ou externas. Essa constatação con­
duz a pensar interativamente: o papel do observador e do
objeto; da racionalidade e da emoção; da natureza e da cultu­
ra; da ordem e da desordem; do uno e do múltiplo; da ciência
e do senso comum; do pensamento e da ação.
O terceiro princípio a ser observado é o discursivo comple­
xo, que comporta a associação entre conceitos e noções com­
plementares e concorrentes, buscando combinar níveis de
desenvolvimento teórico e prático diferentes das áreas disci­
plinares. Dentre as antinomias relevantes, encontram-se as
relações entre o universal e o particular; entre o global e o
local; entre o micro e o macro; entre o coletivo e o individual;
entre o todo e as partes; entre a análise e a síntese; entre as
relações cêntricas, acêntricas e policêntricas.
Os princípios do pensamento complexo (Morin, 1993;
1996) questionam a razão fragmentada que se coloca exterior
ao mundo da vida. A triangulação de métodos também valo­
riza a quantificação. Mas compreende a quantidade como in­
dicador e parte da qualidade dos fenômenos, dos processos e
dos sujeitos sociais, marcados por estmturas, relações e sub­
jetividade, culturalmente específicas de classes, gmpos e seg­
mentos profissionais, gênero, etnia e idade.

Passos práticos para elaboração


da triangulação de métodos

Do ponto de vista operacional, a triangulação de méto­


dos é uma atividade de cooperação que se faz por etapas.
Didaticamente podem se desdobrar em sete passos: (1) for­
mulação do objeto ou da pergunta referencial que vai guiar
todo o processo; (2) elaboração dos indicadores; (3) escolha
ila bibliografia de referência e das fontes de informação; (4)
constmção dos instmmentos para a coleta primária e secun­
dária das informações; (5) organização e realização do traba­
lho de campo; (6) análise das informações coletadas; (7) ela­
boração do informe final.
♦ Para a formulação do objeto ou da pergunta principal, é im­
portante que os profissionais de várias disciplinas estejam jun­
tos. luntos determinam também os objetivos gerais e especí-
(icos do trabalho, a elaboração de um cronograma, os ajustes
administrativos e as formas de solução de conflitos e proble­
mas que sempre surgirem. Nesta etapa de definições, fazem-
se os acertos relativos às divisões de trabalho, às coordena­
ções, aos espaços, aos ritmos e às abordagens. Em seguida, se
discutem os conceitos principais a serem trabalhados: os que
atravessam as áreas de conhecimento e os que têm sua abor­
dagem restrita a determinada área disciplinar.
■» A segunda tarefa prática é a criação dos indicadores, eta­
pa que deve reunir, outra vez, toda a equipe de pesquisa e os
grupos a serem avaliados, buscando-se decidir em conjunto
os mais pertinentes, os que foram levados em conta na ação a
ser avaliada, o valor que será dado a cada um e os critérios
para julgá-los. O processo de construção de indicadores faz
parte essencial das mediações entre a pergunta central e os
instmmentos de pesquisa. A equipe de investigação deve an­
tecipar o encontro coletivo, elaborando e apresentando sua
proposta sobre o assunto e abrindo uma ampla discussão
sobre ele. O lugar dos indicadores corresponde ao que Kant
denominou em sua matemática transcendental, a síntese entre
0 pensamento e a realidade (1980, p. 123), ou o que Samaja
chama representação de um procedimento (1993, p. 166). Segun­
do este autor, todo dado científico vincula um conceito com
o que está acontecendo na realidade a ser avaliada, mediante
a execução de um procedimento aplicado a uma ou mais di­
mensões consideradas observáveis do dito conceito. Os indi­
cadores no caso da triangulação de métodos devem ser con-
textuais, relacionais e de medição da ação-em si (absolutos).
Por isso precisam conter, em si, duas propriedades: primeiro,
que sejam observáveis e, segundo, que permitam criar proce­
dimentos para observá-los. Em síntese, um indicador deve
permitir medidas quantitativas ou qualitativas, heuristicamente
úteis para a intervenção. O momento de elaboração de indi­
cadores é de fundamental relevância para o grupo, pois ofere
ce a oportunidade de se alinhar conceitos que, geralmenle,
estão na cabeça dos vários participantes, mas não têm o mes
mo significado para todos. Sua nomeação e clarificação permi
tem um estreitamento interdisciplinar e até transdisciplin.u,
uma vez que se tornam unidades constmídas coletivamente e
sob vários ângulos de consideração.
♦ O terceiro passo consiste na definição das fontes de infor­
mação, de tal forma que cada indicador selecionado possa ser
conhecido teoricamente e na sua expressão concreta. As fon­
tes são os diferentes atores sociais (formuladores institucio­
nais, gestores, técnicos, população atendida, financiadores),
os documentos instituidores e históricos, os instrumentos
operacionais, os relatórios porventura existentes sobre o gm-
po em estudo e outros. Mas deve-se considerar também a lei­
tura de bibliografia que possa compor o campo semântico do
tema específico da pesquisa, buscando tomar comuns a todos
os participantes os conceitos centrais, os objetivos, os indica­
dores e estudos mais ou menos semelhantes e os contextos
de âmbito institucional, nacional e internacional em que o
problema se coloca.
♦ A definição e a elaboração dos instrumentos de investigação
constituem uma tarefa técnica de responsabilidade dos inves­
tigadores. Tendo em vista o objeto, os objetivos e os indica­
dores, os instmmentos de pesquisa empírica devem ser ela­
borados por meio de equipes organizadas disciplinarmente,
como se fossem subprojetos que se interligassem e contives­
sem a parte e o todo, de forma peculiar a cada um deles. As
abordagens quantitativas e qualitativas exigem teoria e méto­
dos próprios e se prestam a fins de natureza diferenciada: as
primeiras visam a dimensionar e a quantificar os dados de pro-
(esso ou de resultado. E as segundas são apropriadas para apro-
Ilindar a história; captar a dinâmica relacionai de cunho hie-
larquico, entre pares ou com a população; compreender as
lepresentações e os símbolos e dar atenção, também, aos sinais
evasivos que não podem ser entendidos por meios formais.
Na constmção dos vários instmmentos, é preciso que no
mlíiimo sejam contemplados: a cobertura do objeto em estu­
do no que se refere ao gmpo-alvo atingido; à implementação
d.is ações previstas; ao ambiente organizacional e ao envolvi­
mento dos atores. Geralmente o subgrupo responsável pela
abordagem qualitativa deve elaborar vários instmmentos, cada
um sendo destinado a atores específicos. Esse momento de
separação formal dos subgmpos não impede encontros e tro­
cas de idéias informais. O importante é que as atividades pe­
culiares aos subconjuntos redundem em reuniões coletivas
com o objetivo de socializar, criticar e adequar os instmmen­
tos constmídos por ambos os lados, ante a pergunta inicial
que provocou o processo de investigação.
♦ O momento do trabalho de campo beneficia-se de etapas
preparatórias para ajustamento de conceitos, indicadores e ins­
tmmentos. Ele precisa, para seu êxito, contar com alguns ante­
cedentes; (a) é bastante funcional que a equipe de avaliação
possa contar com uma assessoria ou com coordenação executi­
va. Sua função é administrar os cronogramas de trabalho e as
agendas de todos os atores sociais envolvidos, programando
reuniões, entrevistas, gmpos focais, respostas a questionários,
disponibilização de material, de espaços e outros. A experiên­
cia mostra que a realização de uma pesquisa interdisciplinar
exige uma boa dose de trabalho de gestão que, quanto mais
bem conduzido, mais favorece o bom desempenho de todos;
(h) os investigadores de campo precisam compreender a pes­
quisa, seu escopo, seus objetivos. Devem ser treinados para o
adequado relacionamento com o ambiente e as pessoas, para a
observação e para a aplicação dos instmmentos. Ou seja, quan­
do chega ao local da pesquisa, o investigador deve ter poucas
dúvidas quanto aos procedimentos a serem realizados e sobre
como conduzir as interações com as pessoas. Um processo de
investigação é uma ação muito delicada, como já foi dito em
vários momentos deste livro, uma vez que muitos interlocuto­
res se crêem julgados e confrontados com as perguntas e os
receios quanto aos desdobramentos de sua fala e da observa­
ção que o pesquisador faz de seu ambiente. E fundamental
que os trabalhadores de campo sejam pessoas com experiên­
cia, formação, sensibilidade e capazes de mediar conflitos.

J
♦ A análise das informações recolhidas recebe os influxos
do êxito ou dos problemas das etapas anteriores. Por isso, a
experiência em pesquisa recomenda que cada passo do pro­
cesso seja cuidadosamente preparado e realizado. Do ponto
de vista operacional, esta etapa consiste na ordenação dos
dados, na sua classiflcação e na análise propriamente dita con­
forme já tratado no capítulo anterior. O pesquisador precisa
comparar os objetivos gerais e específlcos e os resultados, ana­
lisar o uso dos recursos metodológicos, dimensionar as me­
tas estabelecidas para cada etapa do processo e as relevâncias
de seus dados quantitativos e qualitativos.
Trabalhando-se com triangulação de métodos, está pre­
visto que as operações já mencionadas sejam realizadas, pri­
meiro separadamente. Os que utilizam questionários, de acor­
do com o desenho e o modelo adotados, passam a tabular, a
digitar, a categorizar, a produzir estatísticas simples e cmza-
mentos, chegando, aos poucos, a análises capazes de trans­
formar em números, indicadores trabalhados na pesquisa.
Quem faz análise qualitativa, passa a separar as diferentes
modalidades dos instmmentos aplicados e dos materiais his­
tóricos e institucionais recolhidos. Numa dinâmica de leitura
que vai do campo para as categorias analíticas, que cria e res­
salta categorias empíricas, estabelece as bases compreensivas
da unidade reflexiva que é seu objeto ou pergunta inicial.
Depois dos trabalhos analíticos específlcos, são necessá­
rios vários encontros da equipe multidisciplinar, visando à
compatibilização entre informações quantitativas e qualitati­
vas, e análises de todo o material primário e secundário. A
Imsca de diálogo entre disciplinas e abordagens tem a finali­
dade de produzir um informe único que deve refletir, não
informações justapostas, mas o intercâmbio de teorias e mé-
lodos em favor do esclarecimento e do aprofundamento dos
vários aspectos da realidade.
♦ A elaboração do informe final merece atenção especial.
I'.le deve conter sucintamente: o objeto de estudo; os objeti­
vos; uma síntese teórica dos conceitos principais que infor­
mam as análises; as metodologias de abordagem; a contex-
tualização; a descrição dos vários processos estudados sob a
perspectiva de todos os atores; a síntese contendo o concreto
pensado em forma de resultados e as conclusões.
O informe ou relatório não é e nunca será, na concepção da
triangulação, um somatório de resultados disciplinares. É uma
constmção do coletivo de pesquisa, em forma de síntese. Nele
poderão existir capítulos mais históricos, outros de base mais
estatística, outros que dão ênfase à elaboração de significados,
mas cada um vem iluminado pela contribuição dos outros.
Avanços importantes na área de conhecimento podem
ocorrer por meio da triangulação de métodos quando uma equi­
pe de pesquisadores aceita o desafio de um trabalho coope­
rativo. Do ponto de vista teórico-prático, o sucesso desse pro­
cesso reside em três posturas opostas e complementares: (1)
profundo respeito aos campos disciplinares; (2) relativização
da visão fragmentada de cada um deles; (3) capacidade dialó-
gica dos pesquisadores ante propostas teóricas e metodológi­
cas diferentes e com os sujeitos que atuam no mundo da vida.
A triangulação não inviabiliza o desenvolvimento de teo­
rias, análises e publicações próprias ao campo de conhecimen­
to de cada pesquisador. O que se sabe por experiência é que a
produção disciplinar, resultante da experiência de triangula­
ção, que compartilha as reflexões de outras áreas, nunca será
igual ao fmto do esforço monológico do investigador indivi­
dual e solitário. Nessa proposta, independentemente da área
específica de cada um, todos recebem o influxo da interfertili-
zação de saberes que, em certa medida, durante o processo de
produção do conhecimento, rompem barreiras epistemológi-
cas, teóricas e práticas.

J
Capítulo 13
SOBRE VALIDADE E VERIFICAÇÃO
EM PESQUISA QUALITATIVA

A . PRO BLEM Á TICA DA Validade e da verificação nas Ciências


Sociais foi levantada, em primeiro lugar, pelo positivismo so­
ciológico, mas é uma discussão que ocorre em todas as cor­
rentes teóricas, pois todas se perguntam a respeito da cientifi-
cidade da produção intelectual. A crítica interna e a crítica
externa constituem o motor de desenvolvimento da ciência
sempre que um tema estabelecido para estudo se transforma
em produto da investigação. Como se pode garantir uma ade­
quação entre o pensamento sobre a realidade e a própria rea­
lidade? E no caso da pesquisa qualitativa a indagação se colo­
ca dessa forma; até que ponto o investigador conseguiu
compreender a Jó gica interna do gnipo e.stiidadp on dn.s tpv-
la s analisados? Tais perguntas são inevitáveis e fundamentais
dentro do campo científico, embora a produção intelectual
seja sempre um ponto de vista a respeito do objeto.
Os critérios de coerência, consistência, originalidade e ob-
jetivação resumem o marco da crítica interna da investigação
científica em geral (Demo, 1981) e, também, para a investiga­
ção qualitativa, para a qual alguns requisitos a mais devem ser
I onsiderados. Inicio definindo os critérios gerais.
♦ Por coerência se entende a propriedade de um discurso
logicamente construído, tanto no sentido teórico quanto no
desdobramento de todas as suas etapas de investigação. Este é
um critério formal que coloca parâmetros para que os passos
de uma pesquisa se articulem em seu desenvolvimento, impe­
dindo atividades meramente especulativas ou empiristas.
♦ Consistência é a própria qualidade argumentativa do dis­

curso, que pode ser definida pela sua capacidade de resistir


ao contraditório, permitindo adquirir um lugar no conjunto
da produção científica. A consistência é geralmente afiançada
por uma boa revisão bibliográfica que permite o levantamen­
to de hipóteses e pressupostos plausíveis, evitando que o pes­
quisador "invente a roda" em relação a temas já em processo
de reflexão e questionamento.
♦ Originalidade se mede pela contribuição nova que uma

pesquisa traz. O termo tem sido objeto de muitas controvér­


sias ante a pergunta freqüente, sobretudo para quem faz ou
orienta uma tese: o que é original? Do meu ponto de vista, a
não ser em casos excepcionais de mudança de paradigma em
que a "novidade" é total, podem ser considerados originais
trabalhos inovadores, mesmo os exploratórios que abrem
novos campos de investigação; ou os que analisam determi­
nados aspectos de um problema, respondendo a questões
ainda não respondidas; ou os que fazem avançar o conheci­
mento do ponto teórico ou de forma de abordagem. Por exem­
plo, pode ser original um conjunto, um kit metodológico que
viesse contribuir como modelo metodológico novo.
•» Por ohjetivação se compreende a consecução da melhor
aproximação possível do tema de pesquisa. Substituindo o
termo objetividade, impossível de ser alcançada por todos os
argumentos já tratados neste livro, a ohjetivação é o resultado
da interação entre teoria, método e criatividade do pesquisa­
dor diante do objeto. Esse conjunto de movimentos se une
na qualidade do produto final, de forma que o resultado da
pesquisa reflita a compreensão mais cabal possível da realida­
de e uma interpretação "pensada", contextualizada e comple­
xa. A objetivação define o próprio movimento investigativo que.
embora não consiga reproduzir a realidade, está sempre em
busca de maior aproximação. Ela significa, de um lado, o re­
conhecimento de que a idéia de "objetividade" e "verifica­
ção" é construída e dirigida, pois o próprio campo em que
essas idéias surgem é também terreno de questionamento do
que se verifica. De outro lado, o princípio de objetivação suge­
re também a crença na necessidade permanente de um dialo­
go crítico entre o investigador e seu objeto, sabendo que am­
bos compartilham a mesma condição histórica e os mesmos
recursos teóricos.
E relevante observar, como mostrei em todos os capítulos
deste livro, como as diferentes correntes de pensamento apre­
sentam a questão da fidedignidade. Iniciei com positivismo
clássico que responde à questão da validade e da verificação
com a exigência de rigor posta no método e nas técnicas de
"captação" da realidade. Como o termo captação sugere, o pres­
suposto básico dessa corrente é de que o objeto se impõe ao
sujeito que deve procurar a melhor forma de retratá-lo. No
mesmo sentido, a verificação se realizaria mediante a observa­
ção empírica que, se puder ser repetida e comprovada por vá­
rias vezes, independentemente do sujeito, será reconhecida
como "objetiva". Essas disposições propostas pelo positivis­
mo lhe permitiram desenvolver inúmeras técnicas de coleta
de dados e instrumentais de interpretação hoje socializadas e
apropriadas por outras linhas teóricas, como são os estudos de
caso-controle, da codificação, da amostragem representativa, do
uso do questionário padronizado, dos instmmentos de pro­
cessamento de dados, das análises de conteúdo e da constru­
ção de bancos de dados. Essas criações se transformaram num
acervo importante do campo da investigação empírica.
Atualmente, porém, o avanço do debate sobre os critérios
de cientificidade tem abalado a segurança dos instrumentos
positivistas. Popper (1973), por exemplo, questiona os crité­
rios tradicionais de validade do conhecimento, pois, do seu
ponto de vista, nenhuma hipótese é verificável, uma vez que
a acumulação de casos afirmativos não pode sustentar uma
generalização teórica. Para esse autor, a comparação lógica
entre as conclusões, a comparação entre várias abordagens
teóricas e, fmalmente, os testes por meio da aplicação empíri­
ca das conclusões são os procedimentos mais importantes para
se provar a validade de uma investigação. Em sua proposta
epistemológica, Popper (1973, p. 44) substitui o termo verifi­
cação por "falsificabilidade". Pois, como argumenta, o avanço
da ciência não ocorre pela acumulação de casos positivos. E
sim, pela capacidade de se mostrar os casos que negam as
teorias consagradas. A "objetividade" não é sequer uma ques­
tão para Popper (1973) assim como não existe, para o autor,
nenhuma teoria evidente, uma vez que a certeza científica é
sempre provisória, à espera de descobertas que possam mos­
trar que as anteriores são "falsas".
O grande filósofo da ciência, Bachelard (1971), da mesma
forma que Popper, diz que os critérios de validade e de verifi­
cação próprios do positivismo devem ser subvertidos para se
pôr em seu lugar a "tese do primado do erro". Para esse autor,
admitir o erro é a própria condição de cientificidade de uma
teoria, pois caso contrário essa teoria seria um conjunto de
dogmas. A renovação científica se processa pela certezã da in­
certeza daquilo que afirma, da sua colocação em xeque, por
meio de uma crítica interna irrestrita. Bachelard argumenta que
os maiores obstáculos epistemológicos são as verdades reco­
nhecidas como tal, e propõe o julgamento intersubjetivo das
descobertas: "A verdade só ganha seu pleno sentido ao fim de
uma polêmica. Não poderia haver assim verdade primeira. Não
há senão erros primeiros" (1971, p. 50).
Popper erige a intersubjetividade como procedimento fuii
damental de crítica e julgamento científico: "Direi que a obji-
tividade dos enunciados científicos reside no fato de que el*-s
possam ser intersubjetivamente submetidos a testes" (197 i,
p. 41). O critério intersubjetivo da crítica é também assumido
por autores marxistas como Goldmann, que insiste no "ti.i
balho científico como um fenômeno social que supõe a coo­
peração de numerosos esforços individuais" (1967, p. 23). A
diferença entre os marxistas, Popper e Bachelard é que, para
os últimos, a crítica é o critério central do método, ao passo
que, para os primeiros, a crítica é também a alma da teoria.
A submissão do produto do conhecimento à interface das
discussões significa que a verdade (sempre provisória) é o re­
sultado dos processos de conhecimento cumulativos (crité­
rio quantitativo), em que a pluralidade de perspectivas per­
mite lançar diferentes focos de luz nos pontos obscuros a
respeito do objeto em questão. Mas também de ruptura, pela
c|ual uma nova proposta surge (critério qualitativo). Esse últi­
mo movimento significa mais avanços que os primeiros.
É necessário também esclarecer que aceitar o "primado do
erro", como propõe Bachelard, não significa permissividade
quanto aos aspectos lógico-formais do trabalho científico.
Muitos erros em pesquisa são evitáveis, metodologicamente
lalando, pois constituem frutos de incursões ideológicas, ar­
gumentos truncados, informações incorretas e estudos apres­
sados. O erro "inevitável", do qual Bachelard (1971) faz o elo­
gio e considera motor do conhecimento, é o contrário da
»erteza ingênua e está colocado como condição do processo e
da postura científica que reconhece o caráter aproximado do
t onhecimento.
Nas abordagens compreensivistas, a questão da verifica­
ção e da fidedignidade também é vista de forma diferente do
positivismo clássico. Partindo do princípio de que o ato de
lompreender está ligado ao universo existencial humano, es-
s.is correntes de pensamento não admitem que sejam fixadas
Ifis univocamente para se produzir generalização e verdade. A
maneira de abrir o conhecimento para o universo que é sem-
pif polissêmico, é permitir a entrada de outras interpretações.
l'oi abranger exatamente o mundo da cultura, é nele que se
poile observar, como diz Stein, "uma espécie de desvio da
miivocidade e da transparência do discurso" (1987, p. 48).
Vários autores propõem que é através da comparação que
se torna mais universal o saber sobre determinado grupo cul­
tural. A comparação entre várias abordagens sobre a mesma
realidade empírica pode então ser considerada como um re­
curso fundamental para garantir maior fidedignidade e até
mais universalidade ao conhecimento. Do ponto de vista téc­
nico, certos autores como Denzin (1973) propõem a vigilân­
cia interna através da triangulação de perspectivas, como prova
eficiente de validação. A "triangulação"' consiste na combina­
ção e cruzamento de métodos, de múltiplas técnicas de abor­
dagem, de coleta de dados, de vários pontos de vista de pes­
quisadores em trabalho conjunto e de várias críticas elaboradas
sobre um mesmo resultado de pesquisa. A proposta de trian­
gulação consagra tanto a crítica intersubjetiva como a compa­
ração, embora os interacionistas simbólicos (Denzin, 1973)
utilizem o termo principalmente para se referirem ao uso de
todas as estratégias possíveis visando à compreensão do obje­
to. Sobre o uso da triangulação como meio de validação exis­
tem controvérsias. Spink (1993; 1994), por exemplo, consi­
dera que o termo deveria ser utilizado apenas para se referir a
maior enriquecimento e aproximação dos objetos de estudo.
Kirk & Miller (1986) distinguem três tipos de validação
que podem ser apropriados na pesquisa qualitativa: (1) a pri­
meira seria a quixotesca ou meramente repetitiva quando o mes­
mo instmmento gera sempre o mesmo tipo de informação;
(2) a segunda seria a ãiacrônica, que acompanha a estabilida­
de de um objeto de estudo na linha do tempo; (3) e a tercei­
ra, a fidedignidade sincrônica pelo uso simultâneo de vários
instnimentos de observação.
Na perspectiva marxista, a questão da validade do conhe­
cimento é tratada como um problema da prática:

Neste estudo o termo tr ia n g u la ç ã o está sendo utilizado para designar não apenas
várias perspectivas de abordagem e de crítica como também, da combinação en
tre métodos quantitativos e qualitativos, o que vem descrito no Capítulo 12 desle
livro.
A resolução da antítese teórica só é possível de uma
forma prática, em virtude da energia prática do homem.
Sua resolução não é, portanto, apenas um problema de
compreensão, mas um problema real da vida que a filo­
sofia não poderia resolver, precisamente porque consi­
dera tal problema simplesmente teórico (Marx, 1973, p.
141).

Nas Teses sobre Feuerbach, a prática aparece como funda­


mento do conhecimento na tese n.° 1, como critério de verda­
de na tese n.° 2 e como finalidade do conhecimento na tese
n.° 3 e na n.° 11. Na tese n.“ 1, Marx critica os idealistas que
tomam a realidade como objeto de contemplação e não como
atividade humana, construção histórica e práxis. Para ele, co­
nhecer é conhecer objetos que integram o ser humano com o
mundo e com a natureza. Portanto, a tese n.° 1 defende que a
prática é o fundamento e o limite do conhecimento e do "ob­
jeto humanizado" (porque mediado pelo ser humano, o pes-
t|uisador) que como produto da ação é, também, objeto de
conhecimento (Marx, 1973).
Na tese n." 2, Marx ressalta a prática como critério para se
verificar se determinados pensamentos pertencem ou não à
realidade objetiva. A concepção da prática como critério de
verdade, em Marx, opõe-se à concepção idealista de que a teo-
lia tem em si mesma, internamente, formas de estabelecer cri-
lerios de verdade, como a concepção positivista propõe. Esta,
iio entanto, é uma tese bastante polêmica porque ela não in-
(liii diretamente a explicação do que Marx considera "práti-
I a". Autores como Vázquez interpretam a idéia exposta na tese
M." 2, dizendo que "é na ação prática sobre as coisas que de­
monstramos se nossas conclusões teóricas a respeito delas são
vfiiladeiras" (1968, p. 157). O autor adverte que é preciso
fvilar interpretar essa relação entre verdade e prática num sen-
iiilo pragmático, como se a verdade ou a falsidade fosse de-
ii iminada pelo êxito ou pelo fracasso de uma ação.

á. j
Nas teses n.° 3 e n.° 11, Marx rechaça o papel apenas con­
templativo da teoria e chama atenção para o dinamismo do
conhecimento que só tem sentido como possibilidade de
transformação da realidade, não devendo, pois, ser tratado
nem somente como teoria e nem somente como prática,
mas como união indissolúvel de ambas na práxis. A tese n." 3,
sobretudo, reafirma o caráter complexo e interativo do que
deve ser conhecido e transformado em objeto de ação pe­
dagógica:

A doutrina da transformação das circunstâncias e da


educação, esquece que as circunstâncias têm de ser trans­
formadas pelos homens, e que o próprio educador tem
que ser educado (Marx, 1984, p. 11).

O conceito da "pratica" recebe várias interpretações e é


objeto de controvérsias entre os marxistas. Por exemplo, Lê-
nin (1965) afirma que o ponto de vista da práxis deve ser o
primeiro, o básico do conhecimento. Porém, acrescenta que
o critério da práxis não pode provar ou refutar totalmente
uma representação humana qualquer e, portanto, nem uma
representação científica, uma vez que a imprecisão da prática
dificulta a reflexão sobre sua veracidade.
Bottomore et al. (1988) comentam que o termo práxis em
Marx, ora parece referir-se à essência livre e criadora da ativida­
de humana e outras vezes se restringir ao campo político, eco­
nômico e ético e, por vezes, sugerir que a própria teoria deva
ser vista como uma das formas da práxis. Althusser emprega a
expressão prática teórica para falar da "prática específica que o
investigador exerce sobre um objeto próprio e leva a um pro­
duto próprio: o conhecimento" (1966, p. 68). Analisando a
produção científica como qualquer atividade humana produ­
tiva, esse autor diz que a atividade intelectual é: "processo de
transformação de uma matéria-prima dada num dado produ­
to, transformação que se leva a cabo através de determinado
trabalho humano, usando meios de produção determinados"
(1966, p. 67). Para Althusser,

As ciências não têm necessidade de verificação por prá­


ticas exteriores para declarar "verdadeiros" ou seja, conhe­
cimentos, os conhecimentos que elas produzem. Elas mes­
mas conferem o critério da validade de seus conhecimentos
(1966, p. 75).

Diferentemente de Althusser, Vázquez (1968) acredita que


o termo prática, do modo como é utilizado por Marx, não
pode ser generalizado e nem usado (no seu sentido transfor­
mador) para se referir à "prática teórica" porque essa ativida­
de não modifica realmente o mundo. A seu ver, o conceito
criado por Marx diz respeito à "transformação objetiva e real
do homem e da natureza" (Vázquez, 1968, p. 202). Porém,
esse mesmo autor defende que uma teoria só pode estar me­
diando a transformação e encontrar seu critério de verdade, se
permanecer exatamente como teoria, possuindo um conteú­
do cuja riqueza de consistência possa iluminar a prática.
Em Dialética do Concreto, Kosik trabalha o conceito de
práxis com base em uma concepção diferente dos autores
marxistas citados. Para ele, "a práxis é a esfera do ser humano,
ela é a própria criação humana como realidade objetiva" (1969,
p. 201). Portanto a "prática" não pode ser pensada apenas
como uma atividade humana exterior ao indivíduo. Ele a dis­
tingue do conceito de trabalho, porque, comenta, ela compre­
ende, além do momento laborativo, o momento existencial:

Ela se manifesta tanto na atividade objetiva do ho­


mem que transforma a natureza e marca com o sentido
humano os materiais naturais, como na formação da sub­
jetividade humana, na qual os momentos existenciais como
a angústia, a náusea, o medo, a alegria, o riso e a esperan­
ça não se apresentam como experiência passiva, mas como
parte da luta pelo reconhecimento, isto é, do processo de
realização da liberdade humana (Kosik, 1969, p. 204).

O foco reflexivo de Kosik em relação à questão do conhe­


cimento é o próprio ser humano dentro de uma perspectiva
circular: "o homem só conhece a realidade na medida em que
ele cria" (1969, p. 22). Mas esse processo de criação é algo
interior, à medida que o sujeito se apropria prática e espiri­
tualmente do mundo "como um todo indivisível de entida­
des e de significados" (1969, p. 24). Portanto, para esse autor,
o conhecimento representa dois modos humanos de apro­
priação: o subjetivo e o objetivo:

O processo de captação e o descobrimento do senti­


do das coisas são ao mesmo tempo criação no homem do
correspondente sentido dessas coisas. São os mesmos sen­
tidos por meio dos quais o homem descobre a realidade e
o sentido dela criando um produto histórico-social (Ko­
sik, 1969, p. 23).

Para Kosik, portanto, a coerência e a crítica interna do tra­


balho científico são colocadas como um processo indivisível
dentro da constmção do conhecimento, a partir dos seguin­
tes momentos: (a) superação da pseudoconcreticidade, da fe-
tichista e aparente objetividade dos fenômenos, para se pro­
ceder ã busca do que denomina "autêntica objetividade"; (b)
compreensão do caráter histórico do fenômeno que manifes­
ta a dialética entre o individual e o social; (c) desvendamento
do conteúdo objetivo e do significado do fenômeno em es­
tudo, de sua função e do seu lugar histórico na totalidade
social.
Kosik conclui a reflexão sobre validade do produto do co­
nhecimento com uma crítica, dizendo que seria uma "má tota­
lidade" (1969, p. 52) a que entendesse a realidade social ape­
nas sob a forma de objetos, resultados e fatos já dados e não
incluísse a análise da subjetividade na práxis humana objeti­
vada. Para esse autor, a problemática da prática não é explicá­
vel pela sua oposição à teoria ou à contemplação. Mas, ela só
pode ser compreendida dentro da realidade humano-social.
Portanto, nenhuma verdade da ciência deveria ser tomada
como dado, ou como objeto externo aos sujeitos e externa­
mente verificável ou contemplável.
Aceitar o aporte marxista para o processo de "verificação"
não pode significar o menosprezo dos instrumentais de ou­
tras abordagens que buscam a objetivação do conhecimento.
É, porém, a superação dialética do positivismo, na medida
em que o marxismo coloca, no interior da construção da ciên­
cia, as condições de prova de sua validade e fidedignidade.
Nesse sentido, se valorizam a crítica intersubjetiva, as compa­
rações e triangulações, sempre levando em conta o processo
dialético entre o lógico e o sociológico, entre o sentido subje­
tivo contido na objetividade e o sentido objetivo da criação
subjetiva: "A práxis do homem não é a atividade prática con­
traposta à teoria: é a determinação da existência humana como
elaboração da realidade" (Kosik, 1969, p. 202).
Em resumo, ao finalizar um processo de análise, um in­
vestigador conclui um trabalho no qual deve ter exercitado
uma crítica permanente com relação ã cientificidade de sua
produção. Isso é feito por meio de critérios internos de coe­
rência, consistência, originalidade e de objetivação; e de crité­
rios externos, que podem se constituir nos argumentos de
autoridade da ciência, no exercício da intersubjetividade. Esse
último aspecto é hoje, e cada vez com mais intensidade, o
responsável por uma série de procedimentos como o de pare-
ceristas para artigos e livros que serão publicados e o de ban­
cas de dissertações, teses e monografias, procedimentos esses
que reafirmam os elementos cooperativos e críticos da pro­
dução do conhecimento.
Para que a "objetivação" se realize em todo o seu poten­
cial, cada passo da pesquisa — a definição do objeto, os obje-
tivos, as hipóteses, o marco teórico e metodológico, as estra­
tégias operativas e as três etapas da análise — deveria ser sub­
metido aos critérios internos e, quando possível, aos externos
de validação. Uma boa pesquisa não pode resumir-se numa
boa análise realizada pelas técnicas mais avançadas que exis­
tem.
CONCLUSÃO

P R O C U R E I , NESTA N O NA E DI Ç Ã O DE O Desafio do Conhe­


cimento, fazer uma revisão bastante radical em relação às oito
anteriores, embora conservando a estmtura e as intenções do
texto: apresentar aos leitores um livro que contivesse uma vi­
são, ao mesmo tempo, crítica do conceito e das práticas de
metodologia e uma proposta prática e operacional. Nos dois
casos, mostrando-lbes as implicações da escolba. Evidenciei
que cada passo e cada procedimento, bistórica e teoricamen­
te, vêm de uma tradição de pesquisa e é bom saber disso ao
adotá-los. Mas, por vezes, meu trabalbo beira a um manual, o
que é proposital, uma vez que foi escrito para os estudiosos
da área da saúde, geralmente pouco familiarizados com o lin­
guajar e com os instmmentais das ciências sociais.
Acrescentei vários temas às edições anteriores, especialmen­
te, os seguintes pontos: (a) uma reflexão sobre as teorias sis­
têmicas e sobre o quanto o pensamento complexo é produ­
tivo para se pensar e fazer saúde; (b) uma discussão mais
aprofundada sobre abordagens quantitativas e qualitativas e
(c) um capítulo sobre triangulação de métodos. Hesitei sobre
este último aspecto, sobretudo porque nele eu não pude se­
parar cada passo como foi a lógica de todo o texto. Venceu a
vontade de colaborar com o número cada vez maior de estu­
dantes e estudiosos que buscam combinar as duas aborda­
gens tão importantes para quem trabalha no setor saúde. O
texto sobre triangulação de métodos quantitativos e qualita­
tivos pode ser considerado uma crítica a mim mesma, por causa
de um pensamento bastante tímido sobre o assunto no pri­
meiro livro. Uma seqúência de atividades de pesquisa, junto
com epidemiologistas, me levou a uma proposta muito mais
clara e consistente. Também tratei com muito mais profundi­
dade o texto sobre "hermenêutica e dialética", apresentando
este caminho de pensamento como bastante produtivo para
se pensar e analisar os aspectos sociais da saúde.
Ao aprofundar a epistemologia e as linhas de pensamen­
to, tentei retirar o caráter apenas técnico usualmente apresen­
tado nos manuais de metodologia, assim como demonstrar
que todo dispositivo técnico tem como pressuposto uma teo­
ria e, por isso, está vinculado a pressupostos de uma visão
social de mundo. Isso não é diferente na área da investigação
em saúde porque ela compartilha os mesmos problemas teó-
rico-metodológicos que absorvem a atenção dos cientistas
sociais e dos filósofos da ciência.
Busquei mostrar que, do ponto de vista do conhecimen­
to, saúde é um objeto tão inatingível quanto qualquer objeto
social; que dele os cientistas e profissionais têm um conheci­
mento aproximado, proveniente de esquemas teóricos que
por seu caráter peculiar, projetam luz sobre determinados as­
pectos e ocultam outros; que também a razão que o conhece
— e não apenas a realidade social objeto do conhecimento —
é dinamicamente histórica e que a ciência da saúde não é "um
sistema contido e detido numa ordenação intemporal de prin­
cípios estabelecidos e estabilizados" (Melo e Souza, 1987, p.
52); que não existe nenhuma evidência nos fenômenos so­
ciais do campo da saúde: nada é dado, tudo é construído,
inconcluso e superável; que a realidade aí encontrada como
todo o social é infinitamente mais rica, mais dinâmica, mais
T
complexa do que qualquer discurso científico sobre ela; e que
a ciência que aborda qualquer realidade social, também a da
saúde e da doença, não a captura, ela apenas indica a direção
e a organização intelectual, segundo a qual se pode ter maior
certeza na aproximação.
Tentei revelar também o caráter comprometido entre o
sujeito e o objeto da investigação, nos mais diferentes aspec­
tos, relação que se torna particularmente evidente no caso da
saúde, no qual as questões tratadas afetam de forma tão es­
sencial a todas as pessoas, ou seja, tanto os investigadores
como seus interlocutores. O reconhecimento da construção
do objeto como tarefa humana, histórica, solidária, comple­
xa, aproximativa, descontínua e inacabada também diz res­
peito à constmção do sujeito. O pesquisador das questões da
saúde não está fora da realidade que investiga. O real que ele
conhece é o que ele realiza, e sua objetividade é uma constm­
ção que se dialetiza no processo de objetivação e subjetiva-
ção. Não somente o objeto é por ele constmído, mas ele pró­
prio se constrói no labor da pesquisa.
Há uma polaridade complementar entre o cientista e o
seu objeto, de tal forma que suas formulações objetivas cor­
respondem a seu processo e formulação subjetivos. Daí que
"toda constatação por mais rigorosa que seja se passa no inte­
rior de uma consciência e se encontra, por isso, sendo um
fato subjetivo ligado a um processo de equilíbrio orientado
para um fim" (Goldmann, 1972, p. 18). As questões do in­
vestigador fazem a mediação entre o objeto e ele próprio, de
tal forma que o conhecimento que persegue é ao mesmo tem­
po retificação de seu saber e de si mesmo; é o reconhecimen­
to de seus limites e seu mobilizador para ultrapassá-los. "A
tomada de consciência que passa do vivido ao pensado não
termina o conhecimento, ela faz parte dele, pois o estabeleci­
mento dos conceitos não anula a dimensão e a incursão do
imaginário" (Canguilhem, 1972, p. 55). Isso leva a concluir
que qualquer discurso teórico não é a revelação total da reali­
dade, é a realização de um possível ao sujeito, sob condições
histórico-sociais dadas: o objeto construído anuncia e denun­
cia o sujeito que o constrói: ela é a exteriorização de sua inte-
rioridade, do seu tempo, do seu meio, de suas questões, de
sua inserção de classe.
O reconhecimento da polaridade complementar entre su­
jeito e objeto me levou também a demonstrar a necessidade
do esforço de objetivação, ou seja, a busca de minimizar as
incursões do subjetivismo e do espontaneísmo pelo compro­
misso interno de discussão teórico-metodológica e pelo com­
promisso social de submeter qualquer abordagem aos crité­
rios da prática. A compreensão teórica das complexas relações
e correlações que configuram a saúde e a doença como objeto
científico exige a elaboração de um conjunto de conceitos, de
métodos e de técnicas adequados a ultrapassar o empirismo,
a ilusão da transparência, as percepções, as intuições e os pre­
conceitos.
Os critérios de validade interna do conhecimento que pas­
sam pelos caminhos do debate teórico e técnico devem per­
manentemente ser permeados pelas questões que a prática
social no campo da saúde suscita. A relação dialética entre o es­
forço lógico e os compromissos sociais desde a definição do
problema de pesquisa até o produto provisório gerado no pro­
cesso do conhecimento e sua adequação às práticas do setor,
é o parâmetro principal da objetivaçãd. Porém, em nenhum
momento a objetividade exclui o sujeito e sua historicidade,
sua formação, seus interesses e suas questões. Incluí-lo como
condição do conhecimento faz parte da visão mais totalizan-
te do processo científico.
No quadro geral das abordagens em ciências sociais, privi­
legiei nesta obra, as chamadas "Metodologias Qualitativas",
principalmente pela importância que possuem na construção
do conhecimento sobre saúde, seja no âmbito das concep­
ções, das políticas, ou das práticas dos serviços e institucio­
nais. Como em qualquer processo social, o objeto "saúde/
doença" oferece um nível possível de ser quantificado, mas o
ultrapassa quando se trata de compreender dimensões pro­
fundas e significativas que não podem ser aprisionadas em
variáveis.
Na discussão sobre o "qualitativo", tentei desfazer sua fre-
qüente dicotomia com o quantitativo e entre os níveis macro
e micro dos fenômenos, entre representação social e base
material, entre o valor da imaginação e da razão e, no caso
específico da saúde, entre o corpo e a mente. Busquei demons­
trar que, sejam eles macro ou micro ou se refiram ao indiví­
duo ou a um gmpo social, os fenômenos referentes à saúde/
doença são complexos e o reconhecimento da sua complexi­
dade dinâmica é requisito indispensável para pensá-los cien­
tificamente: não existe nenhuma simplicidade nos microfe-
nômenos, o fato aparentemente mais simples é um complexo
de relações e precisa ser contextualizado:

Qualquer situação humana só é caracterizável quando


são tomadas em consideração as concepções que os parti­
cipantes têm dela, a maneira como a experimentam, suas
tensões e como reagem a essas tensões assim concebidas.
[. . .] O desprezo pelos elementos qualitativos e a com­
pleta restrição da vontade não constitui objetividade e sim
negação da qualidade essencial do objeto (Mannheim, 1968,
pp. 70 e 73).

As representações sociais dos indivíduos e dos grupos,


porém, estão pensadas neste livro, em relação às bases mate­
riais que as engendram: de um lado, está o ser humano como
produto de sua produção, de tal forma que as estruturas da
sociedade criam seu ponto de partida; de outro, está a pessoa
como um sujeito que constrói a história dentro das condi­
ções recebidas, ultrapassando as determinações e inscreve sua
significação por toda parte, em todo tempo e na ordem das
coisas. A compreensão qualitativa, tal como a proponho, é
um movimento que reúne a condição original, o movimento
significativo do presente e a intencionalidade em direção do
projeto futuro. Ela busca, parafraseando Sartre, "a unidade
pluridimensional do ato em sua ligação com cada um e com
todos" (Sartre, 1978, p. 161), a significação profunda que cada
época empresta à palavra, ao gesto e ao produto cultural mais
evasivo que é o pensamento humano. Trabalhando com o
material simbólico que exterioriza o ponto de vista dos atores
sociais — especificamente no que se refere aos sistemas de
saúde — tentei mostrar que, seja a partir dos indivíduos, dos
grupos ou das classes, a totalidade fundamental se expressa
no perene conúbio entre mente e corpo, entre a matéria e
espírito; que na aparente simplicidade de uma manifestação
sobre saúde, os sujeitos individuais projetam sua visão da so­
ciedade e da natureza, a historicidade das relações e condi­
ções de produção inscritas nos seu corpo, sua temporalidade
social, seus infinitos culturais, seus fetiches, seus fantasmas e
seus anseios de transcendência. Portanto, a pesquisa qualita­
tiva proposta aqui reconhece que o ser humano quando vive
seus dramas de saúde e de enfermidade não é apenas um su­
jeito sujeitado, esmagado e reprodutor das estmturas e rela­
ções que o produzem e nas quais ele se constitui. É, ao con­
trário, um sujeito-autor, um constmtor de sentidos e de mmos
sobre sua vida e sobre sua morte.
Tentei mostrar que as Metodologias'de Pesquisa Qualita­
tiva não constituem em si uma ideologia ou uma corrente de
pensamento. Pelo contrário, descrevo-as como componentes
das principais linhas teóricas das ciências sociais e, em cada
uma delas, os pressupostos e as técnicas estão submetidos a
uma organização peculiar. Não existe no livro a demonização
de nenhuma proposta. Por exemplo, embora eu critique, re­
conheço e valorizo a grande contribuição do funcionalismo e
da fenomenologia para a criação do instmmental de trabalho
de campo e para o olhar "empático" sobre a realidade. Propo­
nho, porém, a abordagem hermenêutico-dialética como a que
me parece deter maior capacidade de reter, ao mesmo tempo,
o valor heurístico dos dados e conectá-los com as relações
essenciais que não são necessariamente apreendidas através
das representações sociais. Quando se trata dos fatos referen­
tes à saúde, as representações sociais precisam ser analisadas
de forma contextualizada na totalidade maior — as relações
sociais, institucionais, políticas e as condições, situações e es­
tilos de vida — de onde brotam e para onde retornam contri­
buindo na conformação da realidade. Igualmente, a aborda­
gem hermêutica que compreende e valoriza as homogeneidades
e os consensos, faz o contraponto com a dialética que inclui
o caráter contraditório, conflitivo e totalizante de qualquer
fenômeno ou relação social, também no campo da saúde. Por
isso, na peculiaridade da abordagem que preconizo se jun­
tam a razão e a experiência, categorias analíticas e categorias
empíricas, mundo natural e mundo social, pensamento e exis­
tência, multiplicidade e unidade, exterioridade e interiorida-
de, análise e síntese.
Quanto ao instmmental prático para o trabalho empírico,
mostro que a abordagem hermenêutico-dialética não a ela­
borou. Por isso, proponho um caminho operativo que, pen­
so, consegue dar conta de reter os elementos essenciais da
teoria. A constmção do conhecimento, a partir desse referen­
cial (em todos os aspectos, e de forma particular, no trabalho
com representações sociais), é uma tarefa ainda muito pouco
desenvolvida e pouco exercitada, constituindo um desafio para
o pesquisador da área da saúde.
Por fim, faço ainda uma última observação sobre os li­
mites deste trabalho. Propus-me a desenvolver uma reflexão
teórico-metodológica, visando a uma das possibilidades de
abordagem da realidade: as metodologias qualitativas. A re­
cuperação contextualizada desse referencial parte do pressu­
posto, fundamentado na prática teórica, de que se trata de
uma contribuição atualmente importante na área de saúde.
Há, em todo o mundo ocidental, um renascer de preocupa­
ções antropológicas ante os grandes interrogantes que a so­
ciedade moderna apresenta aos seus membros. Há, em todas
as áreas das ciências sociais, uma tomada de consciência sobre
a importância de compreender a complexidade das relações
sociais que criam, alimentam, reproduzem e transformam as
estmturas, a partir do ponto de vista dos atores sociais envol­
vidos nessas relações. Isso é uma tarefa de abordagem quali­
tativa. O estudo que provisoriamente termino, porém, não se
pretende exaustivo: é e será sempre um começo de conversa.
Dessa forma, cada reflexão aqui desenvolvida deve ser reto­
mada, apropriada pelo leitor, testada e aprofundada: "a ver­
dade só ganha sentido ao fim de uma polêmica. Assim não
poderia haver verdade primeira. Só há erros primeiros. A evi­
dência primeira nunca é uma verdade fundamental" Bache-
lard (1971, p. 52). Nessa busca sem fim, nesse processo inaca­
bado, cheio de contradição e também solidário, nesse terreno
que não tem donos e nem limites, eu quis expor meu signifi­
cado e minha intencionalidade, propondo o sujeito como au­
tor, sob condições dadas, capaz de retratar e refratar a realida­
de. D e s a f i o d o C o n h e c i m e n t o !
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Medicina e Política, Giovanni Berlinguer
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Ecologia: Capital, Trabalho e Ambiente, Laura Conti
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Saúde do Trabalhador, Aparecida Linhares Pimenta & David Capistrano Filho
A Doença, Giovanni Berlinguer
Reforma Sanitária: Itália e Brasil, Giovanni Berlinguer, Sônia M. Fleuiy Teixeira & Gastão Wagner de Sousa
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Educação Popular nos Serviços de Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos
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Trabalho em Turnos e Noturno, Joseph Rutenfranz, Peter Knauth & Frida Marina Fischer
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Saúde e Trabalho. A Crise da Previdência Social, Cristina Possas
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Planejamento sem Normas, Gastão Wagner de Souza Campos, Emerson Elias Merhy & Everardo Duarte Nunes
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Sobre a Maneira de Transmissão do Cólera, John Snow
Hospital, Dor e Morte Como Ofício, Ana Pitta
A Multiplicação Dramática, Hernán Kesselman & Eduardo Pavlovsky
Cinco Lições Sobre a Transferência, Gregorio Baremblitt
A Saúde Pública e a Defesa da Vida, Gastão Wagner de Sousa Campos
Epidemiologia da Saúde Infantil, Fernando C. Barros & Cesar G. Victora
Juqueri, o Espinho Adormecido, Evelin Naked de Castro Sá & Cid Roberto Bertozzo Pimentel
O Marketing da Fertilidade, Yvan Wolffers et alii
Lacantroças, Gregorio Baremblitt
Terapia Ocupacional: Lógica do Trabalho ou do Capital? Lea Beatriz Teixeira Soares
Minhas Pulgas, Giovanni Berlinguer
Mulheres: Sanitaristas de Pés Descalços, Nelsina Mello de Oliveira Dias
Epidemiologia — Economia, Política e Saúde, Jaime Breilh
O Desafio do Conhecimento, Maria Cecília de Souza Minayo
Saúdeloucura 3, Herbert Daniel et al.
Saúde, Ambiente e Desenvolvimento, Maria do Carmo Leal et al.
Promovendo a Eqüidade: um Novo Enfoque com Base no Setor da Saúde, Emanuel de Kadt & Renato Tasca
A Saúde Pública Como Política, Emerson Elias Merhy
Sistema Único de Saúde, Guido Ivan de Carvalho & Lenir Santos
Reforma da Reforma, Gastão Wagner S. Campos
O Município e a Saúde, Luiza S. Heimann et al
Epidemiologia Para Municípios, J. P. Vaughan
Distrito Sanitário, Eugênio Vilaça Mendes
Psicologia eSaúde, Florianita Braga Campos (org.)
Questões de Vida: Ética, Ciência, Saúde, Giovanni Berlinguer
Saúde Mental e Cidadania no Contexto dos Sistemas Locais de Saúde, Maria E. X. Kalil (org.)
Mario Tommasini: Vida e Feitos de um Democrata Radical, Franca Ongaro Basaglia
Saúde Mental no Hospital Geral: Espaço Para o Psíquico, Neury J. Botega & Paulo Dalgalarrondo
O Médico e seu Trabalho: Limites da Liberdade, Lilia Blima Schraiber
O Limite da Exclusão Social. Meninos e Meninas de Rua no Brasil, Maria Cecília de Souza Minayo
Saúde e Trabalho no Sistema Único do Sus, Neiry Primo Alessi et al
Ruído: Riscos e Prevenção, Ubiratan de Paula Santos (org.)
Informações em Saúde: da Prática Fragmentada ao Exercício da Cidadania, liara Hammerty Sozzi de Moraes
Saúde Loucura 4, Gregorio Baremblit et al
Odontologia e Saúde Bucal Coletiva, Paulo Capei Narvai
Manual de Saúde Mental, Benedetto Saraceno et al
Assistência Pré-Natal: Prática de Saúde a Serviço da Vida, Maria Inês Nogueira
Saber Preparar Uma Pesquisa, André-Pierre Contandriopoulos et al
Pensamento Estratégico e Lógica da Programação, Mario Testa
Os Estados Brasileiros e o Direito à Saúde, Sueli G. Dallari
Inventando a Mudança na Saúde, Luiz Carlos de Oliveira Cecílio et al
Uma História da Saúde Pública, George Rosen
Drogas eAids, Fábio Mesquita & Francisco Inácio Bastos
Tecnologia e Organização Social das Práticas de Saúde, Ricardo Bruno Mendes Gonçalves
Epidemiologia e Emancipação, losé Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres
Razão e Planejamento, Edmundo Gallo, Ricardo Bmno Mendes Gonçalves & Emerson Elias Merhy
Os Muitos Brasis: Saúde e População na Década de 80, Maria Cecília de Souza Minayo (org.)
Da Saúde e das Cidades, David Capistrano Filho
Sistemas de Saúde: Continuidades e Mudanças, Paulo Marchiori Buss & Maria Eliana Labra
Aids: Ética, Medicina e Tecnologia, Dina Czeresnia et al
Aids: Pesquisa Social e Educação, Dina Czeresnia et al
Maternidade: Dilema entre Nascimento e Morte, Ana Cristina d'Andretta Tanaka
Construindo Distritos Sanitários. A Experiência da Cooperação Italiana no Município de Soo Paulo, Carmen
Fontes Tebteira & Cristina Melo (orgs.)
Memórias da Saúde Pública: a Fotografia como Testemunha, Maria da Penha C. Vasconcellos (coord.)
Medicamentos, Drogas e Saúde, E. A. Carlini
Indústria Farmacêutica, Estado e Sociedade, Jorge Antonio Zepeda Bermudez
Propaganda de Medicamentos: Atentado à Saúde? José Augusto Cabral de Barros
Relação EnsinolServiços: Dez Anos de Integração Docente Assistencial (IDA) no Brasil, Regina Giffoni
Marsiglia
Velhos e Novos Males da Saúde no Brasil, Carlos Augusto Monteiro (org.)
Dilemas e Desafios das Ciências Sociais na Saúde Coletiva, Ana Maria Canesqui
O "Mito" da Atividade Física e Saúde, Yara Maria de Carvalho
Saúde & Comunicação: Visibilidades e Silêncios, Aurea M. da Rocha Pina
Profissionalização e Conhecimento: a Nutrição em Questão, Maria Lúcia Magalhães Bosi
Saúde do Adulto: Programas e Ações na Unidade Básica, Lilia Blima Schraiber, Maria Ines Baptistela
Nemes & Ricardo Bmno Mendes-Gonçalvcs (orgs.)
Nutrição, Trabalho e Sociedade, SolangeVeloso Viana
Uma Agenda para a Saúde, Eugênio Vilaça Mendes
A Construção da Política Nacional de Medicamentos, José Ruben de Alcântara Bonfim & Vera Lúcia
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Ética da Saúde, Giovanni Berlinguer
A Construção do SUS a Partir do Município: Etapas para a Municipalização Plena da Saúde, Silvio Fernandes
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Sobre o Risco: Para Compreendera Epidemiologia, losé Ricardo de Mesquita Aires
Ciências Sociais e Saúde, Ana Maria Canesqui (org.) '
A^rernSflúde, EmersonEliasMerhy&RosanaOnocko (orgs.)
Contra a M aréà Beira-Mar, Florianita Braga Campos & Cláudio Maiero-vitch
Princípios Para Uma Clínica Antimanicomial, Ana Mana Lobosque
Modelos Tecnoassistenciais em Saúde: o Debate no Campo da Saúde Coletiva, Aluísio G. da Silva Junior
Políticas Públicas, Justiça Distributiva e Inovação: Saúde e Saneamento na Agenda Social, Nilson do Rosário
Costa
A Era do Saneamento: as Bases da Política de Saúde Pública no Brasil, Gilberto Hochman
O Adulto Brasileiro e as Doenças da Modernidade: Epidemiologia das Doenças Crônicas Não-Transmissíveis,
Ines Lessa (org.)
Malária e Seu Controle, Rita Barradas Barata
O Dengue no Espaço Habitado, Maria Rita de Camargo Donalisio
A Organização da Saúde no Nível Local, Eugênio Vilaça M endes (oTg.)
Trabalho e Saúde na Aviação: a Experiência entre o Invisível e o Risco, Alice Itani
Mudanças na Educação Médica e Residência Médica no Brasil, Laura Feuerwerker
A Evolução da Doença de Chagas no Estado de São Paulo, Luis Jacintho da Silva
Malária em São Paulo: Epidemiologia e História, Marina Ruiz de Matos
Civilização e Doença, Henry Sigerist
Medicamentos e a Reforma do Setor Saúde, Jorge Antonio Zepeda Bermudez & José Ruben de AJcântara
Bonfim (orgs.)
A Mulher, a Sexualidade e o Trabalho, EJeonora Menicucci de Oliveira

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Saúde Sexual e Reprodutiva no Brasil, Loren Galvão & Juan Díaz (orgs.)
A Educação dos Profissionais de Saúde da América Latina (Teoria e Prática de um Movimento de
Mudança) — Tomo 1 “Um Olhar Analítico" — Tomo 2 "As Vozes dos Protagonistas", Mareio Almeida,
Laura Feuerwerker Manuel UanosC. (orgs.)
Vigilância Sanitária: Proteção e Defesa da Saúde, Ediná Alves Costa
Sobre a Sociologia da Saúde. Origens e Desenvolvimento, Everardo Duarte Nunes
Ciências Sociais e Saúde para o Ensino Médico, Ana Maria Canesqui (org.)
Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família, Eymard Mourão Vasconcelos
Um Método Para Análise e Co-Gestão de Coletivos, Castâo Wagner de Sousa Campos
A Ciência da Saúde, Naomar de Almeida Filho
A Voz do Dono e o Dono da Voz: Saúde e Cidadania no Cotidiano Fabril, José Carlos "Cacau" Lopes
Da Arte Dentária, Carlos Botazzo
Saúde e Humanização: a Experiência de Chapecó, Aparecida Linhares Pimenta (org.)
Consumo de Drogas: Desafios e Perspectivas, Fábio Mesquita & Sérgio Seibel
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Ampliar o Possível: a Política de Saúde do Brasil, José Serra
SUS Passo a Passo: Normas, Gestão e Financiamento, Luiz Odorico Monteiro de Andrade
A Saúde nas Palavras e nos Gestos: Reflexões da Rede Educação Popular e Saúde, Eymard Mourão
Vasconcelos (org.)
Municipalização da Saúde e Poder Local: Sujeitos, Atores e Políticas, Silvio Fernandes da Silva
A Cor-Agem do PSF, Maria Fátima de Souza
Agentes Comunitários de Saúde: Choque de Povo, Maria Fátima de Souza
A Reforma Psiquiátrica no Cotidiano, Angelina Harari & Willians Valentini (orgs.)
Saúde: Cartografia do Trabalho Vivo, Emerson Elias Merhy
Além do Discurso de Mudança na Educação Médica: Processos e Resultados, Laura Feuerwerker
Tendências de Mudanças na Formação Médica no Brasil: Tipologia das Escolas, Jadete Barbosa Lampert
Os Sinais Vermelhos do PSF, Maria Fátima de Sousa (org.)
O Planejamento no Labirinto: Uma Viagem Hermenêutica, Rosana Onocko Campos
Saúde Paidéia, Castão Wagner de Sousa Campos
Biomedicina, Saber & Ciência: Uma Abordagem Crítica, Kenneth R. de Camargo Jr.
Epidemiologia nos Municípios: Muito Além dM Normas, Marcos Drumond Júnior
A Psicoterapia Institucional e o Clube dos Saberes, Arthur Hyppólito de Moura
Epidemiologia Social: Compreensão e Crítica, Djalma Agripino de Melo Filho
O Trabalho em Saúde: Olhando e Experienciando o SUS no Cotidiano, Emerson Elias Merhy et al
Natural, Racional Social: Razão Médica e Racionalidade Cientifica, Madel T. Luz
Acolher Chapecó: Uma Experiência de Mudança do Modelo Assistencial, com Base no Processo de Trabalho,
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Educação Médica em Transformação: Instrumentos para a Construção de Novas Realidades, João José
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Proteção Social. Dilemas e Desafios, Ana Luiza d'Ávila Viana, Paulo Eduardo M. Elias & Nelson Ibanez (orgs.)
O Público e 0 Privado na Saúde, Luiza Sterman Heimann, Lauro Cesar Ibanhes & Renato Barbosa (orgs.)
O Currículo Integrado do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina: do Sonho à
Realidade, Maria Solange Comes Dellaroza & MarliTerezinha Oliveira Vanucchi (orgs.)
A Construção da Clínica Ampliada na Atenção Básica, Custavo Tenório Cunha
Saúde Coletiva e Promoção da Saúde: Sujeito e Mudança, Sérgio Resende Carvalho
Saúde e Desenvolvimento Local, Marco Akerman
Saúde do Trabalhador no SUS: Aprender com o Passado, Trabalhar o Presente e Construir o Futuro, Maria
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A Espiritualidade do Trabalho em Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos (org.)
Saúde Todo Dia: Uma Construção Coletiva, Rogério Carvalho Santos
As Duas Faces da Montanha: Estudos sobre Medicina Chinesa e Acupuntura, Marilene Cabral do Nascimento
Perplexidade na Universidade: Vivências nos Cursos de Saúde, Eymard Mourão Vasconcelos, Lia Haikal Frota
& Eduardo Simon
Tratado de Saúde Coletiva, Castão Wagner de Sousa Campos, Maria Cecília de Souza Minayo, Marco
Akerman, Marcos Drumond Jr. & Yara Maria de Carvalho (orgs.)
Entre Arte e Ciência: Fundamentos Hermenêuticos da Medicina Homeopática, Paulo Rosenbaiim
A Saúde e o Dilema da Intersetorialidade, Luiz Odorico Monteiro de Andrade
Olhares Socioantropológicos Sobre os Adoecidos Crônicos, Ana Maria Canesqui (org.)
Na Boca do Rádio: o Radialista e as Políticas Públicas, Ana Luísa Zaniboni Comes
SUS: Ressignificando a Promoção da Saúde, Adriana Castro & Miguel Maio (orgs.)
SUS: Pacto Federativo e Gestão Pública, Vânia Barbosa do Nascimento
Memórias de um Médico Sanitarista que Virou Professor Enquanto Escrevia Sobre. . . , Castão Wagner de
Sousa Campos
Saúde da Família, Saúde da Criança: a Resposta de Sobral, Anamaria Cavalcante Silva
A Construção da Medicina Integrativa: um Desafio para o Campo da Saúde, Nelson Filice de Barros
O Projeto Terapêutico e a Mudança nos Modos de Produzir Saúde, Custavo Nunes de Oliveira
As Dimensões da Saúde: Inquérito Populacional em Campinas, SP, Marilisa Berti de Azevedo Barros, Chester
Luiz Galvão César, Luana Carandina & Moisés Goldbaum (orgs.)
Avaliar para Compreender: Uma Experiência na Gestão de Programa Social com Jovens em Osasco, SP, Juan
Carlos Aneiros Femandez, Mansa Campos & Dulce Helena Cazzuni (orgs.)
O Médico e Suas Interações: Confiança em Crise, Lília Blima Schraiber
Ética nas Pescjuisas em Ciências Humanas e Sociais na Saúde, Iara Coelho Zito Guerriero, Maria Luisa
Sandoval Schmidt & Fabio Zicker (orgs.)
Homeopatia, Universidade e SUS: Resistências e Aproximações, Sandra Abrahão Chaim Salles
Manual de Práticas de Atenção Básica: Saúde Ampliada e Compartilhada, Gastào Wagner de Sousa Campos
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Saúde Comunitária: Pensar e Fazer, Cezar Wagner de Lima Góis
Pescfuisa Avaliativa em Saúde Mental: Desenho Participativo e Efeitos da Narratividade, Rosana Onocko
Campos, Juarez Pereira Furtado, Eduardo Passos & Regina Benevides
Saúde, Desenvolvimento e Território, Ana Luiza d'Ávila Viana, Nelson Ibanez & Paulo Eduardo Mangeon
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Educação e Saúde, Ana Luiza d'Ávila Viana & Célia Regina Pierantoni (orgs.)
Direito à Saúde: Discursos e Práticas na Construção do SUS, Solange L'Abbate
Infância e Saúde: Perspectivas Históricas, André Mota e Lilia Blima Sduaibei (orgs.)
Conexões: Saúde Coletiva e Políticas de Subjetividade, Sérgio Resende Carvalho, Sabrina Ferigato, Maria
Elisabeth Barros (orgs.)
Medicina e Sociedade, Cecília Donnangelo
Sujeitos, Saberes e Estruturas: uma Introdução ao Enfoque Relacionai no Estudo da Saúde Coletiva, Eduardo
L Menéndez
Saúde e Sociedade: o Médico e seu Mercado de Trabalho, Cecília Donnangelo & Luiz Pereira
A Produção Subjetiva do Cuidado: Cartografias da Estratégia Saúde da Família, Tulio Batista Franco,
Cristina Setenta Andrade & Vitória Solange Coelho Ferreira (orgs.)
Medicalização Social e Atenção à Saúde no SUS, Charles D. Tesser (org.)
Saúde e História, Luiz Antonio de Castro Santos & Lina Faria
Violência e Juventude, Mareia Faria Wesiphal & Cynthia Rachid Bydlowski
Walter Sidney Pereira Leser: das Análises Clínicas à Medicina Preventiva e à Saúde Pública, José Ruben de
Alcântara Bonfim & Silvia Bastos (orgs.)

SÉRIE " lin h a de frente"


Ciências Sociais e Saúde no Brasil, Ana Maria Canesqui
Avaliação Econômica em Saúde, Leila Sancho
Promoção da Saúde e Gestão Local, Juan Carlos Aneiros Femandez & Rosilda Mendes (or^.)
Ciências Sociais e Saúde: Crônicas do Conhecimento, Everardo Duarte Nunes & Nelson Filice de Barros
aria Cecília divide com o eterno poeta Car­
M los Drummond de Andrade o privilégio de
ter vivido a infância e estudado na cidade mineira
de Itabira, antes de escolher o Rio de Janeiro como
“pátria” de sua vida profissional. E casada com o
professor Carlos Minayo e mãe de Deborah,
Cbristiana e Miryam. A primeira faleceu durante a
elaboração da primeira edição deste livro com
onze anos de idade. Seu sofrimento, tratamento e
morte fizeram parte da reflexão deste livro.
Socióloga, antropóloga e doutora em Saúde Pú­
blica, Maria Cecília é pesquisadora titular da Fun­
dação Oswaldo Cruz, onde leciona, orienta estu­
dantes de mestrado e doutorado e tem o papel de
coordenação científica do Centro Latino-Ameri­
cano de Estudos sobre Violência e Saúde.
A autora possui vários livros e artigos publicados
em revistas científicas nacionais e internacionais
e, em todos, seus temas estão vinculados ao campo
das ciências sociais em saúde.
D
esde sua nona edição, O Desafio fio Coiihirhnento
apresenta um conteúdo ampliado c apiiiiioi.ulo
das oito edições anteriores, trazendo ao leiioi uma
reflexão madura sobre pesquisa social e pesquisa (pialitaiiva
em saúde. A autora, uma das mais importaiilcs l ieniisi.is
sociais do campo da saúde no Brasil, oferece .los leiimes
orientações sobre teoria, metodologia, estrauígias, íéi iiii as e
exemplos práticos a partir de seus mais de triiu.i anos tie
experiência profissional. Por isso, este livro problem.iii/.uloi
e questionador apresenta também instrumenios pi.iiiios
para o passo-a-passo de uma investigação.
Por sua complexidade e abrangência, é uma obi .i impiesi in
dível para cientistas sociais, planejadores, epidemiologist.is
e para diferentes categorias de investigadores, pt oiissioiuis e
estudantes que se proponham a pesquisar uiili/.iiulo .1 .iboi
dagem da pesquisa social qualitativa.

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