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Entretanto, ele levanta desde já que a situação não é mais preto no branco, e usa
exemplos como o Documenteur, de Agnès Varda
A DISTÂNCIA DO REAL
Para complicar mais a diferenciação entre real e ficcional, Gauthier nos lembra que
qualquer filme não consegue ser transparente ao real. Isto porque o que vemos
enquanto espectadores são na verdade significantes, um universo composto por
formas e cores que se movimentam, simulando ou não o real. Esse universo é o
mesmo para o documentário e a ficção – visto que ambos são registrados e
projetados pelas mesmas máquinas e utilizando-se, em sua maioria, das mesmas
técnicas de linguagem – a tal ponto que é comum vermos filmes de ficção simulando
documentários, bem como introduzir imagens documentais em filmes ficcionais.
Não que os demais espectadores sejam tolos, mas porque as condições de projeçãoo
e exibição nos deixam em baixa vigilância, em ego baixo.
Para Gauthier, essa sensação de estar “em outra parte”, inserido na estória, funciona
perfeitamente para a ficção, posto que ela não tem de justificar nada em termos do
que está fora da esfera fílmica. Já o documentário é o oposto: deve não só dar
explicações como também manejar aquilo que a ficção tenta ocultar: o referente (o
que diz respeito a). Por conta disso, ele coloca que devemos conhecer algumas
nuanças à oposição clássica documentário/ficção
INCERTEZAS TERMINOLÓGICAS
GAUTHIER passa a defender então que deveríamos usar a expressão cinema do real
se o filme fizesse uma passarela com o real/referente, posto que no documentário o
real só é real no momento das filmagens, e o deixa de ser no momento da projeção.
Ele menciona ainda a expressão cinema-verdade, que chegou a ser usada nos anos
1960, mas logo caiu em desuso, pois “pode-se exigir o real, mas quem pode
pretender mostrar a verdade?”
A COISA VIVIDA E A INVENÇÃO: DIFERENÇAS E PROXIMIDADES
A ideia fixa – e sua reprodução como se fosse regra – de captar, capturar a vida em
sua fonte adaptou-se com os anos ao que GAUTHIER coloca como uma alquimia da
criação: escolhe-se o que se filma, organiza-se na montagem
Outra crítica ainda mais persistente aponta que as filmagens encontram limites. Por
exemplo, equipes reduzidas raramente estão no âmago dos acontecimentos, bem
como não dão conta de registrar tudo aquilo que é importante e acontece
simultaneamente nos diversos espaços de um protesto, por exemplo
“o fato histórico nem sempre acontece lá onde o esperamos. Falta muito para que a
história se componha unicamente de solenidades previstas e que se organizam de
antemão, prontas para posar diante das objetivas”
Outros poderiam apontar ainda que testemunhas dariam conta daquilo que escapa
aos olhares da câmera. GAUTHIER replica: o que é uma testemunha senão um ser
humano com todas as suas fraquezas? Mesmo com silêncios ou balbucios de uma
intensa e emocionada verdade, trata-se da verdade daquela pessoa, logo, verdade
corrompida. Trata-se portando de um contador, aproximando-se do campo da
ficção, inclusive porque como coloca o autor, os mentirosos são muitas vezes os
melhores contadores.
Do outro lado deste embate, temos os filmes de ficção que se colocam como obras
da verdade. De fato, alguns deles podem ser documentos (mas não documentários)
das geografias das cidades, dos seus períodos econômicos, sociais, etc. Mas estes
filmes seguem ficções, posto que são documentos não sobre a vida, mas sobre o
imaginário de uma época. “Quem poderia negar que o imaginário faz mesmo parte
da vida?”
Ainda no campo das reconstituições, temos por exemplo os filmes de época, que
GAUTHIER insere como filmes que buscam a autenticidade profunda na narrativa,
em termos de criação do mundo fílmico, muito mais do que a reconstituição
científica ou a busca pelo real em termos de acontecimento.
Ele apresenta ainda o perigo dos filmes de ficção que representam – e se colocam
como reconstituições de – momentos históricos. Usando o exemplo de A lista de
Schindler, GAUTHIER aponta que, em momentos em que faltam registros fílmicos ou
fotográficos de certos momentos em que há debates sobre o que aconteceu – por
exemplo os banhos nos campos de refugiados e se saía ou não gás venenoso dos
chuveiros – o espectador acaba tomando a ficção como realidade certa – é o caso,
por exemplo, do filme Tropa de Elite no Brasil (em termos menores). Para
GAUTHIER, aqui a ficção ultrapassa seus limites, posto que as reconstituição
banalizam alguns destes momentos.
Essa lógica, para GAUTHIER, expressa de forma profunda a crença que funda a ficção
para os olhos do espectador: a de que a estória atinge o coração do real, mesmo que
longe das aparências. Se partilharmos desta crença, a aposta está ganha.
FILMES DE VIDA/FILMES DE SONHO
Levanta-se então a questão: será mesmo que os filmes roteirizados de antemão não
têm nada a nos dizer da vida? Em sua resposta, GAUTHIER afirma que,
simplesmente, eles escolhem falar dela de outro modo, assumindo o que Buñuel
considerava como a função-sonho da mesma natureza do cinema. Para Buñuel, o
mecanismo criador das imagens fílmicas lembra o trabalho da mente durante nosso
sono. Assim, os filmes seriam as imitações involuntárias do sonho.