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<Tema: Cinema-filmagens>

<Data: 12/03/2024>
<Site da coleta:>
<Pesquisadores: Doris-João>

Corpos acolhidos, retocados e revelados: os gestos da câmera e o ator 1 Hosted,


retouched and revealed bodies: the gestures of the camera and the actor Andrea C.
Scansani2 (doutoranda – ECA/USP e docente - Cinema/UFSC) Resumo: Os gestos da
câmera cinematográfica são estabelecidos pelas possibilidades de criação
disponíveis em seu mecanismo e em sua operação. As combinações são infindas e a
cada configuração diferentes estímulos são arquitetados. Por sua vez, cada corpo
filmado expressa sua singularidade, seu modo único de estar em cena - e para a
cena. O fio-condutor deste estudo é a intercorporalidade da câmera e do ator no ato
cinematográfico - onde o gesto de um fomenta e traz visibilidade e relevância ao
outro. Palavras-chave: gesto, câmera, corpo, intercorporalidade Abstract: The
gestures of the movie camera are established by the creative possibilities
available in its mechanisms and operation. The combinations are infinite and at
every configuration different stimuli are architected. In turn, each filmed body
expresses its uniqueness, its own way of being on the scene – and for the scene.
The guiding principle of this study is the intercorporality between the camera and
the actor during the cinematographic act – where the gestures of one fosters and
brings visibility and relevance to the other. Keywords: gesture, camera, body,
intercorporality 1
Trabalho apresentado no XVIII Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na
sessão 4 do Seminário Temático: Corpo, gesto, performance e mise en scène. 2
Doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP e professora do curso de
Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Área de pesquisa e
atuação: direção de fotografia, materialidade da imagem, corpo e câmera. O que
seria um gesto? Ou, mais precisamente, de que se trata um gesto cinematográfico? Ao
enumerar algumas Notas sobre o gesto, Agamben (2008, p. 09) inicia seu percurso com
o minucioso trabalho dos ‘estudos clínicos e fisiológicos sobre o andar’ de Gilles
de la Tourette3, onde este escreve: Enquanto a perna esquerda serve de ponto de
apoio, o pé direito se eleva da terra sofrendo um movimento de rotação que vai do
calcanhar à extremidade dos artelhos, que deixam o solo por último; a perna inteira
é levada adiante e o pé vem a tocar o solo pelo calcanhar. Neste mesmo momento, o
pé esquerdo, que terminou sua revolução e se apoia somente sobre as pontas dos pés,
se eleva por sua vez do solo; a perna esquerda é levada para frente, passa ao lado
da perna direita, da qual tende a aproximar-se, ultrapassa-a e o pé esquerdo vai
tocar o solo com o calcanhar enquanto o direito acaba sua revolução.4 A descrição
acima é tão meticulosamente exagerada que em algum momento seu objeto, o passo de
um homem, se perde em seus artelhos. Não à toa, paralelo às exaustivas descrições,
sua pesquisa utilizava imagens impressas em dióxido de ferro que era polvilhado nos
pés de seus pacientes e que deixavam suas pegadas sobre um rolo de papel branco. É
desnecessário dizer que este procedimento tampouco dá conta de reproduzir a
amplitude de um passo. Seria o gesto tão escorregadio que nem por excesso ou por
vestígio poderíamos apreendê-lo? No empenho em dar visibilidade ao gesto e, quiçá,
compreendê-lo, Gilles de la Tourette e seus contemporâneos recorreram à fotografia.
É de Muybridge os estudos intitulados: "a mulher que anda e recolhe um cântaro" ou
"a mulher que anda e envia um beijo", expressões que mais parecem terem sido
retiradas de um roteiro cinematográfico. Mas que mulher é essa? Como movem seus
quadris? Será que seus lábios brilham? Seria a fotografia - que nesse momento
caminha para a ‘invenção’ do cinema - capaz de revelar esses mistérios? Claro que
para os estudos propostos pelo neurologista francês essas seriam questões
totalmente irrelevantes, mas que despertam questionamentos quando Agamben afirma:
"o elemento do cinema é o gesto e não a imagem". Trazemos esta assertiva menos como
uma concordância sobre o que viria ser definido como gesto por Agamben e mais como
uma ação 3 Médico
neurologista, contemporâneo e amigo de Etienne-Jules Marey e Albert Londe
(fotógrafo do Hôpital de la Salpêtrière onde também trabalha com Charcot) 4 Études
clinique et phyosiologique sur la marche empreendidos no Hôpital de la Salpêtrière
e que fazem parte da Nouvelle Iconographie de la Salpêtrière (séc. XIX).
provocadora de pensamento. Se o elemento do cinema é o gesto, de qual gesto se
trata? Seria possível detectar o gesto na imagem em movimento? Apenas imagens em
movimento seriam capazes de evidenciar gestos ou encontraríamos o gesto nas que são
destituídas deste? [um questionamento paralelo] A imagem cinematográfica, a nosso
ver, constrói sua materialidade através do intangível. Mesmo que pudéssemos
descrever cada pixel, ou cada grão de prata, e remontar tecnicamente como este ou
aquele foi sensibilizado; como cada corpo filmado movimentou-se em maior ou menor
harmonia com os gestos da câmera; como as luzes penetraram o cenário e pintaram o
quadro; ou mesmo como a concepção de um argumento foi imaginada em filme; nenhuma
descrição, por mais acurada que fosse, daria a conhecer a natureza da imagem em
movimento, nem mesmo a própria obra projetada. O corpo fílmico é matéria viva e
abre-se à percepção de outros corpos formando um corpo único e em constante
transformação. A realização cinematográfica, como forma artística, não é construída
através de um ideal préestabelecido, mas através de uma experiência sensorial, onde
o mais abstrato e o mais concreto se unem. Onde a parafernália técnica corrobora
com as sutilezas da criação. Independentemente do tipo de produção, do tamanho da
equipe, ou mesmo da finalidade da criação, a câmera - elemento técnico central - se
transforma no agente de uma força centrípeta para o qual convergem todos os gestos,
físicos e mentais dos sujeitos envolvidos. Saberes, sensações, estímulos de toda
sorte lhe são oferecidos como a uma espécie de catalisadora do cinema. No momento
em que a câmera é acionada um estado criativo especial - que envolve tanto o que
está sendo filmado e o corpo que filma - é estabelecido. Esse vínculo criado entre
os gestos da câmera cinematográfica e os gestos dos atores no momento da filmagem
guarda seus mistérios, transforma-se numa espécie de comunhão.5 Alguns cineastas -
que empunham a câmera - já descreveram este momento, como Jean Rouch: Quando estou
com a câmera [...], não sou o que normalmente sou, fico num estado estranho, num
cine-transe. Este é o tipo de objetividade que podemos esperar, a total consciência
da presença da câmera por todos os envolvidos. Deste momento em diante,
5 Um termo muito feliz utilizado por Cristian Borges em sua arguição durante o
exame de qualificação da tese de doutorado a qual dá origem às pesquisas
empreendidas neste texto. vivemos em uma galáxia audiovisual6 (ROUCH em
entrevista concedida a Dan Yakir, 1978). Artur Omar, por sua vez, em seu texto
foto-gnose (publicado no livro A antropologia da face gloriosa de 1997), proclama
que estar com uma câmera torna-se uma ação, um agir em si mesmo e dentro de si
mesmo [...]. Na reposturação indispensável e inevitável, na relação entre
pensamento e luz, na alteração de ser que ocorre quando o pensamento e a luz se
encontram no interior de uma câmera, [...] uma máquina: um aparelho em que se dá a
união ou a interseção entre a luz exterior e a luz interior. Na outra ponta do
iceberg está o [...] [o câmera] velocíssimas operações de [...] discriminação
sensorial são exigidas pela câmera [...] e esta lhe faculta, esse pequeno estar
fora de si, esse pequeno êxtase, quando a pulsão fotográfica o transforma numa
espécie de caçador feroz e puramente instintivo, um animal fótico. [...]. As
narinas latejam, e ele avança com sua ativíssima, especialíssima e secreta
passividade. [...]. Não se trata de captar a realidade. É apenas o ato que está
circulando em suas veias (OMAR, 1997, p. 30-32). O ato cinematográfico convida-
nos a refletir sobre essa ‘realidade’ que circula nas veias, sobre essa comunhão,
esse gesto, esse mistério, essa hora mágica entre o lobo e o cão na qual não
distinguimos com clareza o corpo humano e o corpo técnico e sobre a qual “nunca
seremos capazes de reivindicar [qualquer] conhecimento final [...] salvo o que for
descrito em carne e osso”7. No entanto, o fato de haver certa conexão - de maior ou
menor grau - durante as filmagens não garante que o plano resultante deste
encontro, ao ser projetado, ofereça conexões similares às sentidas por seus
agentes. O próprio filme de Jean Rouch, Tambores do passado (Tourou et Bitti, 1971)
que inspira seus pensamentos sobre o cine-transe representa uma experiência, a
nosso ver, exclusivamente de filmagem. A câmera sem dúvida catalisa as ações das
várias tentativas de incorporação espiritual em um plano único de cerca de dez
minutos - é ela quem instiga o transe - contudo ao espectador lhe é dado apenas o
papel de uma testemunha, de um observador objetivo de um processo de filmagem como
na maioria dos trabalhos de Rouch. Neste exemplo temos certa clareza de que o elo
criado entre os gestos da
6 Disponível em: http://www.der.org/jean-rouch/content/index.php?id=crack_cine;
último acesso em fevereiro de 2014. 7 "Digamos que a verdade significaria uma
correspondência precisa entre nossa descrição e o que descrevemos ou entre nossa
rede total de abstrações e deduções e certo entendimento total do mundo externo.
Verdade neste sentido não seria alcançável. E mesmo se ignorarmos os obstáculos da
codificação, as circunstâncias nas quais nossas descrições serão em palavras
ou figuras, salvo o que for descrito em carne e osso7 e ação - mesmo
desconsiderando as barreiras da tradução, nunca seremos capazes de reivindicar o
conhecimento final sobre o que quer que seja"7 (BATESON, 2002, p. 26, grifo nosso).
câmera e os gestos dos atores no momento da filmagem pode não alcançar a
visibilidade na obra projetada. Quer seja pelo desejo do diretor ou pelo simples
fato de não acontecer a transposição das sensações da filmagem para o quadro.
Partir de relatos de filmagem pode torna-se tarefa ingrata e de certo modo
ineficaz. Sendo assim, faz-se necessário partir do polo oposto, do plano filmado,
aquele que eventualmente propicie a ampliação da comunhão ao espectador, ou melhor
dizendo a algum espectador específico, pois a experiência cinematográfica é
singular e intrasferível. Ao investigar o plano filmado - o fragmento
cinematográfico - exploramos este momento misterioso que é convertido em quadro
pela ação da câmera. Essa transformação ocorre num duplo processo de codificação:
um realizado pela interface corporal (ator/operador) e outro pelo aparato foto-
cinematográfico. A confluência dos gestos acolhidos pela câmera se dá de forma
ativa, recíproca e simultânea. Por sua vez, as possibilidades de expressão
disponíveis no corpo de uma câmera são inúmeras. Estas podem ser abordadas desde um
ponto de vista interno ao aparato (velocidade de obturação, textura do
sensor/emulsão, exposição, ângulo de visão, profundidade de campo, movimento de
foco) ou a partir da sua relação com o espaço e os objetos (posicionamento,
movimento, composição). Cada escolha efetuada no momento da filmagem - como uma
simples mudança da altura da câmera por exemplo - resulta em uma significativa
alteração do mosaico que constitui a imagem. O domínio sobre a complexidade deste
universo de configurações é o instrumento fundante da criação fílmica e um dos mais
valiosos dispositivos de estímulo sensorial e de produção de presença8. No entanto,
o gesto ‘técnico’ isolado não nos interessa, sua real contribuição apenas acontece
na conexão recíproca entre quem filma e o que é filmado - sempre em favor dos
resultados almejados pela obra. A performance do ator acontece na sua interação com
elementos concretos - como cenário, objetos de cena, outros corpos, luz etc. - e a
câmera. Deste modo, o ator é acolhido e impulsionado pelo contexto físico e, ao
mesmo tempo, conduz e oferece uma nova forma à imagem captada. A câmera é
alimentada e guiada por seus gestos que, por sua vez, são estimulados pelo
desempenho do aparato. Esta relação de criação interdependente, onde o gesto de um
fomenta e traz visibilidade ao gesto do outro, é o que
8 Produção de presença aqui refere-se aos estudos de Gumbrecht (2010) e ao texto de
Susan Sontag Against Interpretation (1966). buscaremos observar nos filmes a
seguir. É a conexão sutil entre os corpos (humano e técnico) que propicia a
elaboração da experiência fílmica. A intercorporalidade do ato cinematográfico
parece-nos fundamental para a investigação, dado que concentra sua atenção no
espaço que está entre os agentes da ação. Temos especial apreço pelo termo
intercorporalidade cunhado por Merleau-Ponty quando descreve o toque da mão
esquerda sobre a mão direita [aqui encontra-se seu interesse pelo que chamará de
quiasma] e formula que o 'tocar' vem acompanhado necessariamente do ser 'tocado'
(MERLEAU-PONTY, 1964, p. 308) sendo impossível tocar o mundo exterior sem sermos
tocados por ele. Sob os efeitos dessa convicção e através de alguns singelos
exemplos que nos afetam, investigaremos diferentes gestos, diferentes toques entre
atores e câmera. Em alguns filmes, mais particularmente em alguns momentos
específicos de certos filmes, algo parece mover-nos. As escolhas aqui apresentadas
não seguem categorias. De forma indisciplinada e, quiçá irresponsável, misturamos
documentário com ficção, clássicos do cinema com filmes recém-lançados, câmeras
operadas na mão com travellings e gruas, filmes nacionais e não nacionais. Nosso
percurso talvez nos propicie trilhar alguns estágios distintos de interação da
câmera com os corpos filmados, numa curva crescente de reciprocidade. Em
Francofonia, de Alexandre Sokourov, 2015, a câmera orquestrada por de Bruno
Delbonnel (diretor de fotografia), que flutua em travellings, gruas e drones tem
uma relação muito próxima ao narrador. No entanto, o que nos interessa aqui não é a
interpretação dos procedimentos da narrativa e sim a forma como a lente da câmera
investiga os rostos e os corpos esculpidos em tinta, metal ou pedra do Museu do
Louvre. Em uma de suas tomadas vemos a feição de Lamassu, o touro alado assírio
(700 a.C.), que se transfigura ao ser acariciado tão de perto pela câmera. Em outro
momento seguimos os passos dos pranteadores que carregam o corpo de Philippe Pot em
seu cortejo fúnebre (tumba de Philipe Pot, atribuída a Antoine de la Moiturier,
séc. XV), com a nítida sensação de que estes seres inertes se movem lentamente e
com pesar, como é esperado em um ritual desta sorte. As estátuas não atuam, não
podem nos tocar em strictu sensu, mesmo que saibamos de sua potência em nos
comover. Mas isso não as impedem de se oferecerem a essa câmera que, feito
Afrodite, concede vida à Galathea, a estátua idealizada e amada por Pigmalião.
Seguindo o caminho das estátuas e da observação minuciosa e precisa dos corpos pela
câmera chegamos a O ano passado em Marienbad de Alain Resnais, 1961. Aqui, a câmera
de Philippe Brun, sob o comando do diretor de fotografia Sasha Vierny, está via de
regra, sobre trilhos e gruas. Ela, novamente, tem estreita relação com a narração
da figura masculina com forte sotaque italiano (Giorgio Albertazzi) sem,
necessariamente estar aliada a esta. Os movimentos de câmera e os gestos dos atores
parecem ser os únicos elementos que desfrutam de certa continuidade, visto que a
fragmentação e intercalação espacial, a mudança do vestuário e a repetição dos
diálogos formam a estrutura da obra. O que permanece nos tempos apresentados de
memórias incompletas são os gestos. A dança entre câmera e atores se dá de modo
muito particular, pois ora parecemos observar estátuas em carne e osso, como em um
plano onde a câmera, ao circundar a enigmática figura feminina (Delphine Seyrig),
apenas parece reiterar seu mistério sem nada nos oferecer a não ser a recapitulação
de sua pose sedimentada na memória da narração. Os longos, fluidos e precisos
gestos da câmera muitas vezes têm como testemunhas os próprios corpos imóveis dos
atores que, em respeito, aguardam sua parada para iniciar sua ação. Como se um
concedesse ao outro a permissão para desempenhar seu papel. Câmera e atores parecem
desfrutar de certa autonomia, de um certo respeito mútuo, de um excesso de
cortesia. Na ordem do respeito e das concessões dos corpos filmados temos um belo
momento em O tigre e a gazela, de Aloysio Raulino, 1979. Neste documentário, como
em seus tantos outros, a câmera de Raulino afeiçoa-se por alguns rostos, os observa
e é observada por eles. Toca e faz-se tocar. No entanto, ela age de forma mais
contundente apenas quando tem o consentimento, neste caso o convite explícito, de
seu interlocutor. Neste curto plano o rosto transforma-se em matéria fílmica numa
penetração da câmera em sua carne. Aqui não há autonomia, o gesto da câmera faz com
que o observador se desmaterialize e o observado se converta em grãos. De quando
em quando a câmera espera por alguns instantes o momento preciso para iniciar seus
movimentos, como em O tigre e a gazela. Ou, no caso de O ano passado, para
interromper seu gesto. Por outras vezes ela precisa ser realmente paciente e
aguardar quase um filme inteiro para colocar-se em ação. Essa espera com a qual o
espectador se habitua e cria um forte impacto quando é rompida, é o que vemos em
História da eternidade, de Camilo Cavalcante, 2013. A construção fílmica de quase
cinquenta minutos da mais rígida imobilidade é descontinuada pela câmera de Beto
Martins na cena mais emblemática do filme onde João (Irandhir Santos) executa sua
dublagem performática ao som dos Secos e Molhados. Por pouco mais de um minuto, o
mundo, que até então estava estacionado no tempo, inabalável, entra em regozijo com
giros extasiantes ao redor de João. Menos um diálogo, ou melhor, uma dança entre
câmera e ator, o que a movimentação do aparato possibilita é a rendição do universo
à magia e aos encantos do personagem. Se até então podíamos pensar na câmera como
uma força motriz, centrípeta, onde a ânima e os ânimos eram depositados em seu
interior, aqui temos o corpo do ator neste lugar. É em sua direção que o mundo se
dobra. É nele e por ele que a cena é catalisada. Dentro do percurso planejado para
trazer alguns exemplos diversificados desta relação imbricada entre câmera e ator,
falta-nos aquele onde não encontramos real distinção entre suas partes. Onde a
imagem captada em celuloide é da mesma ordem da carne de seus agentes. Onde a
atuação do operador de câmera está intimamente ligada e dependente da atuação dos
personagens. Em Os fuzis, de Ruy Guerra, 1963 a câmera de Ricardo Aronovich respira
a cena tanto quanto Mario (Nelson Xavier) e Luísa (Maria Gladys). Ela deseja,
espera, foge, conduz e deixa-se levar, não como um ser em ação e reação, mas em
plena comunhão. A câmera aqui, a nosso ver, não compartilha da natureza da visão,
ela é pele e suor, um corpo participante que não é nem instrumento, nem tampouco
sujeito. Ela pulsa no mesmo ritmo da cena, ela é a própria cena. Aliás, os três,
Ricardo Aronovich (e seu foquista), Nelson Xavier e Maria Gladys transformam-se em
cinema.

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