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1ª Edição
Brasília/DF - 2018
Autores
Ana Paula RIBEIRO
Sonia Beatriz dos SANTOS
Maria Alice GONÇALVES
Joana BARROS
Produção
Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e
Editoração
Sumário
Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa...................................................................................................... 4
Introdução.............................................................................................................................................................................. 6
Aula 1
Uma ciência da diferença: o que é Antropologia?............................................................................................. 7
Aula 2
Como emerge a Antropologia enquanto disciplina?.......................................................................................16
Aula 3
Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e
Pluralidade Cultural.................................................................................................................................................... 27
Aula 4
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos
humanos......................................................................................................................................................................... 36
Aula 5
Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural...................................................................................................49
Aula 6
O legado cultural africano – Lei no 10.639/2003 e indígena – Lei no 11.645/2008............................ 62
Referências...........................................................................................................................................................................73
Organização do Caderno de
Estudos e Pesquisa
Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos,
de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com
questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável.
Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras
e pesquisas complementares.
A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de
Estudos e Pesquisa.
Atenção
Cuidado
Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.
Importante
Observe a Lei
Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem,
a fonte primária sobre um determinado assunto.
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Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa
Para refletir
Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa
e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio.
É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus
sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas
conclusões.
Provocação
Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.
Saiba mais
Sintetizando
Posicionamento do autor
Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.
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Introdução
Nos dias atuais, quando diferenças culturais são parte do cotidiano de um mundo cada vez
mais globalizado, é cada vez mais importante pensar nos desafios que essa pluralidade coloca
à Educação. Neste Caderno, apresentaremos a disciplina Educação e Pluralidade Cultural e
procuraremos entender como os conceitos de cultura, educação e pluralidade cultural estão
relacionados na sociedade em que vivemos.
Objetivos
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AULA
UMA CIÊNCIA DA DIFERENÇA:
O QUE É ANTROPOLOGIA? 1
Apresentação
Nesta aula apresentaremos a problemática da pluralidade cultural a partir de uma disciplina que
foi forjada para lidar com ela: a antropologia. Trabalharemos alguns dos seus conceitos básicos,
a partir da leitura do texto “O Ritual do Corpo entre os Sonacirema”, de Horace Minner.
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
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AULA 1 • Uma ciência da diferença: o que é Antropologia
Para início de conversa, propomos a leitura de um texto introdutório, que nos levará a pensar
questões relevantes sobre a própria disciplina. O nome do texto é O Ritual do Corpo entre os
Sonacirema, e foi escrito nos anos 1940, nos EUA, por um antropólogo chamado Horace Minner.
Vamos ler?
Saiba mais
A maioria das culturas possui uma configuração particular, ou estilo. Frequentemente, um determinado valor central ou uma
forma específica de perceber o mundo deixa suas marcas em várias instituições das sociedades. Como, por exemplo, temos o
“machismo” nas culturas de influência ibérica, a “face” na cultura japonesa, e a “contaminação pelas mulheres” em algumas
culturas dos planaltos da Nova Guiné. Neste artigo, Horace Minner demonstra que ”atitudes quanto ao corpo” têm uma
influência generalizada em muitas instituições da sociedade Sonacirema.
O antropólogo tornou-se tão familiarizado com a diversidade de modos com que diferentes povos reagem diante de
situações similares, que ele não consegue se surpreender com os costumes exóticos possíveis. Com efeito, se quaisquer
entre todas as combinações logicamente possíveis de comportamento não tiverem sido encontradas em alguma parte do
mundo, ele tem o direito de suspeitar que elas devem estar presentes em alguma tribo ainda não estudada. Esta observação
já foi realmente feita por Murdock, no que diz respeito à organização do clã. Neste sentido, as crenças e práticas mágicas dos
Sonacirema apresentam aspectos tão pouco usuais, que nos parece importante descrevê-las como exemplo dos extremos a
que o comportamento humano pode chegar.
O Professor Linton foi o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para o complexo ritual dos Sonacirema, há vinte
anos, mas a cultura deste povo é ainda muito pouco compreendida. Os Sonacirema são um grupo norte-americano que vive
no território que se estende desde os Cree do Canadá aos Yaqui e Tarahuma do México, e aos Carib e Aruaque das Antilhas.
Pouco se sabe quanto à sua origem, embora a tradição mítica afirme que eles vieram do leste.
A cultura Sonacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que se beneficiou de um habitat
natural muito rico. Embora a maior parte do tempo das pessoas, nesta sociedade, seja devotada à ocupação econômica,
uma grande porção do fruto destes trabalhos e uma considerável parte do dia são despendidas em atividades rituais. O foco
dessas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante dentro do etos deste
povo. Embora tal tipo de preocupação não seja realmente pouco comum, seus aspectos cerimoniais e a filosofia aí implícita
são únicos.
A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é feio, e que sua tendência natural
é a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é evitar essas características através do
uso de poderosas influências do ritual e da cerimônia. Todo grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal
propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em suas casas e, de fato, a opulência de uma
casa é frequentemente aferida em termos da quantidade dos centros de rituais que abriga. A maioria das casas é de taipa,
mas os santuários dos mais ricos têm paredes cobertas de pedras. As famílias mais pobres imitam os ricos, aplicando placas
de cerâmica nas paredes de seus santuários.
Embora cada família possua ao menos um desses santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares,
mas sim privadas e secretas. Os ritos, normalmente, só são discutidos com as crianças, e isto apenas durante a fase em que
elas estão sendo iniciadas nesses mistérios. Eu pude, entretanto, estabelecer com os nativos uma relação que me permitiu
examinar esses santuários e anotar a descrição desses rituais.
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Uma ciência da diferença: o que é Antropologia • AULA 1
O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções
mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários profissionais
especializados. Dentre estes, os mais poderosos são os curandeiros, cujos serviços devem ser retribuídos por meio de
presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não fornece as poções curativas para seus clientes, decidindo apenas os
ingredientes que nelas devem entrar, escrevendo-os em seguida em uma linguagem antiga e secreta. Tal escrito só pode ser
decifrado pelo curandeiro e pelos herbanários, os quais – mediante outro presente – fornecem o feitiço desejado.
O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu propósito, mas sim é colocado na caixa de mágicas do santuário
doméstico. Como estes materiais mágicos são específicos para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais
ou imaginárias deste povo são muitas, a caixa de mágicas costuma estar sempre transbordando Os pacotes mágicos são
tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original e temem usá-los de novo, embora os nativos tenham-se
mostrados vagos em relação a esta questão, só podemos concluir que a ideia subjacente ao costume de se guardar todos os
velhos materiais mágicos é a de que sua presença na caixa de mágicas, diante da qual os rituais do corpo são encenados,
protegerá de alguma forma o fiel.
Embaixo da caix de mágicas existe uma pequena fonte. Todo dia cada membro da família, em sucessão, entra no quarto do
santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura diferentes tipos de águas sagradas na fonte e realiza um breve
rito de ablução As águas sagradas são obtidas do Templo da Água da comunidade, onde os sacerdotes conduzem elaboradas
cerimônias para manter o líquido ritualmente puro.
Na hierarquia dos profissionais da magia, e abaixo do curandeiro em termos de prestígio, estão os especialistas cuja
designação é mais bem traduzida por “homens-da-boca-sagrada”. Os Sonacirema têm um horror pela boca e uma fascinação
por ela que chegam às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas
relações sociais. Não fosse pelos rituais da boca, os Sonacirema acham que seus dentes cairiam, suas gengivas sangrariam,
suas mandíbulas encolheriam, seus amigos os abandonariam, seus amantes os rejeitariam. Eles também acreditam na
existência de uma forte relação entre características orais e morais. Assim, por exemplo, existe uma ablução ritual da boca
das crianças que se considera como forma de desenvolver sua fibra moral.
O ritual do corpo cotidianamente realizado por todos inclui um rito bucal. Apesar de sabermos que este povo é tão
meticuloso no que diz respeito ao cuidado da boca, este rito envolve uma prática que o estrangeiro não iniciado não
consegue deixar de achar repugnante. Conforme me foi descrito, o rito consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas
de porco na boca, juntamente com certos pós-mágicos, e em seguida na movimentação desse feixe segundo uma série de
gestos altamente formalizados.
Além desse rito bucal privado, as pessoas procuram o homem-da-boca-sagrada uma ou duas vezes por ano. Estes
profissionais possuem uma impressionante parafernália, que consiste em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas
e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica uma quase inacreditável tortura ritual do cliente. O
homem-da-boca-sagrada abre a boca do cliente e, usando as ferramentas citadas, alarga quaisquer buracos que o uso tenha
feito nos dentes. Materiais mágicos são então depositados nesses buracos. Se não se encontram buracos naturais nos dentes,
grandes seções de um ou mais dentes são serradas para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do
cliente, o objetivo destas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado
e tradicional do rito fica evidente no fato de que os nativos retornam todo ano ao homem-da-boca-sagrada, embora seus
dentes continuem a se deteriorar.
Deve-se esperar que, quando um estudo intensivo dos Sonacirema for feito, seja realizada uma pesquisa cuidadosa sobre a
estrutura de personalidade desses nativos. Basta observar o brilho nos olhos de um homem-da-boca-sagrada, quando ele
enfia uma agulha em um nervo exposto, para que se suspeite de que certa dose de sadismo está presente. Se isto puder ser
verificado, uma configuração muito importante emergirá, posto que a maioria da população mostra tendências masoquistas
bem definidas. Era a tais tendências que o Professor Linton se referia, ao discutir uma parte especial do ritual cotidiano do
corpo, que é realizada apenas pelos homens. Esta parte do rito envolve uma arranhadura e laceração da superfície do rosto
por meio de um instrumento cortante. Ritos femininos especiais ocorrem somente quatro vezes por mês lunar, mas o que
lhes falta em frequência lhes sobra em barbárie. Como parte dessa cerimônia as mulheres assam suas cabeças em pequenos
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AULA 1 • Uma ciência da diferença: o que é Antropologia
fornos durante mais ou menos uma hora. O ponto teoricamente interessante é que um povo dominantemente masoquista
desenvolve especialistas sádicos.
Os curandeiros possuem um templo imponente, o latipsoh, em cada comunidade de algum tamanho. As cerimônias
mais elaboradas, necessárias para o tratamento de pacientes muito doentes, só podem ser realizadas neste templo. Tais
cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais que se movimentam lentamente
nas câmaras do templo com uma roupa e um penteado distintivos.
As cerimônias no latipsoh são tão violentas que chega a ser fenomenal o fato de que uma razoável proporção dos nativos
realmente doentes que entram no templo consiga curar-se. Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta,
costumam resistir às tentativas de levá-las ao templo, alegando que “é aonde você vai para morrer”. Apesar disso, os doentes
adultos não apenas desejam, como ficam ansiosos para submeter-se a uma prolongada purificação ritual, se eles possuem
meios para tanto. Os guardiões de muitos templos, não importa quão doente o suplicante ou quão grave a emergência,
não admitem o cliente se ele não pode dar um rico presente ao zelador. Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se
sobreviveu às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente.
O (a) suplicante, ao entrar no templo, é primeiramente despido(a) de todas as suas roupas. Na vida cotidiana, os Sonacirema
evitam a exposição de seu corpo e das suas funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade
do santuário doméstico, onde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais. A súbita perda da privacidade corporal,
ao se entrar no latipsoh , costuma causar um choque psicológico. Um homem, cuja própria mulher jamais viu quando ele
realizava um ato excretório, de repente encontra-se nu, assistido por uma vestal enquanto executa suas funções naturais
dentro de um vaso sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque as excreções são usadas por um adivinho
para diagnosticar o curso e a natureza da doença do paciente. Os clientes femininos, por seu lado, veem seus corpos nus
submetidos ao escrutínio, manipulação e espetadelas dos curandeiros.
Poucos suplicantes nos templos estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa que não seja ficar deitados em suas
camas duras. As cerimônias diárias, como os já citados ritos do homem-da-boca-sagrada, implicam desconforto e tortura.
Com precisão ritual, as vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis pacientes, rolam-no em seus leitos de dor
enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são objetos de treinamento intensivo das vestais. Em outros
momentos, elas inserem varas mágicas na boca do paciente, ou obrigam-no a comer substâncias que são consideradas
curativas. De tempos em tempos, os curandeiros vêm a seus clientes e atiram agulhas magicamente tratadas em sua carne. O
fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, ou possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a
fé do povo nos curandeiros.
Ainda resta um outro tipo de especialista, conhecido como um escutador. Este tipo de feiticeiro tem o poder de exorcizar
os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os Sonacirema acreditam que os pais fazem
feitiçaria contra seus próprios filhos. As mães são especialmente suspeitas de colocarem uma maldição nas crianças,
enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A contramagia do feiticeiro “escutador” é singular por sua relativa
ausência de ritual. O paciente simplesmente conta ao “escutador” todos os seus problemas e medos, começando com
as primeiras dificuldades de que pode se lembrar. A memória exibida pelos Sonacirema nessas sessões de exorcismo
é verdadeiramente notável. Não é incomum que o paciente lamente a rejeição que sentiu ao ser desmamado, e alguns
indivíduos chegam a localizar seus problemas nos efeitos traumáticos de seu próprio nascimento.
Para concluirmos, deve-se mencionar certas práticas que estão baseadas na estética nativa, mas que dependem da aversão
generalizada ao corpo e a suas funções naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas ficarem magras, e banquetes
cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem gordas. Outros ritos, ainda são usados para fazer os seios das mulheres
maiores, se eles são pequenos; e menores, se eles são grandes. Uma insatisfação geral com a forma dos seios é simbolizada
pelo fato de que a forma ideal está virtualmente fora do espectro da variação humana. Umas poucas mulheres que sofrem
de um quase inumano desenvolvimento hipermamário são tão idolatradas que podem viver muito bem através de simples
viagens de aldeia em aldeia, permitindo aos nativos admirá-las mediante uma taxa.
Já fizemos referência ao fato de que as funções excretórias são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao domínio do secreto.
As funções reprodutivas naturais são igualmente distorcidas. O intercurso sexual é tabu como tópico de conversa, além
de programado e planejado enquanto ato. Grandes esforços são feitos para evitar a gravidez por meio do uso de materiais
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Uma ciência da diferença: o que é Antropologia • AULA 1
mágicos ou pela imitação do intercurso a certas fases, da lua. A concepção é realmente muito pouco frequente. Quando
grávidas, as mulheres se vestem de forma a ocultar seu estado. O parto se realiza em segredo, sem amigos ou parentes
assistindo, e a maioria das mulheres não amamenta nem cuida de seus bebês.
Nossa descrição da vida ritual dos Sonacirema certamente mostrou que eles são um povo obcecado pela magia. É difícil
compreender como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo debaixo dos pesados fardos que eles mesmos se
impuseram. Mas, mesmo costumes tão exóticos quanto esses ganham seu verdadeiro sentido quando encarados a partir do
esclarecimento feito por Malinowski, que escreveu:
Após a releitura do texto, você deve estar mais ler este trabalho, o que você sente? Quais são as sensações
que você tem a respeito dos Sonacirema? Quais são as
familiarizado com a linguagem e diversos
ideias preconcebidas a respeito desse povo que passa a lhe
trechos que antes ficavam confusos ou eram acompanhar? De que forma você se identifica, estranha, se
objetos de estranhamento passaram a fazer afasta dos rituais daquele povo ou fica indiferente?
Na sociedade Sonacirema, Minner vai demonstrando que, em sua particularidade, este povo
prioriza as atitudes quanto ao corpo e, consequentemente, este é um aspecto fundamental da
sua cultura. No texto, descobrimos que a crença dos Sonacirema é de que “o corpo humano é
feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença”. Isto posto, em seguida descobrimos
que aquele povo utiliza de rituais para evitar a decadência física.
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AULA 1 • Uma ciência da diferença: o que é Antropologia
Estes curandeiros prescrevem os feitiços e poções mágicas por meio de uma linguagem antiga
e secreta, que é a imagem mais próxima do que entendemos como receita médica. Herbanários
são farmacêuticos e embaixo da caixa de mágica existe uma pequena fonte – a pia, em que “Todo
dia, cada membro da família, em sucessão, entra no santuário, curva a cabeça diante da caixa
de mágica, mistura diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução”,
que é a nossa escovação dos dentes.
Há hierarquia entre os profissionais da magia. Em termos de prestígio, abaixo dos médicos, estão
os “homens-da-boca-sagrada”, isto é, os dentistas.
Sobre a relação dos Sonacirema com “homens-da-boca-sagrada” e seus dentes, Minner nos diz que
Os Sonacirema nutrem um misto de horror e fascinação por suas bocas que chega
às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência
sobrenatural nas relações sociais. Assim, o ritual do corpo, cotidianamente
realizado por todos, inclui um rito bucal. O rito consiste na introdução de um
pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com uma espécie de creme mágico
e, em seguida, na movimentação deste feixe, segundo uma série de gestos
altamente ritualizados.
Ora:
Latipsoh – hospital
Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais
que se movimentam nas câmaras do templo com uma roupa distintiva.
Os guardiões do templo, não importa quão doente o suplicante esteja ou quão grave a emergência,
não admitem o fiel se ele não puder dar um rico presente ao zelador.
Esses guardiões do templo têm uma função: “Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se
sobreviveu às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê ainda
outro presente”, que é o pagamento pelos serviços prestados no Latipsoh, isto é, no hospital!
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Uma ciência da diferença: o que é Antropologia • AULA 1
Em outra parte, já ao final, Minner nos diz que “Os Sonacirema acreditam que os pais fazem
feitiçaria contra seus próprios filhos. As mães são especialmente suspeitas de colocarem uma
maldição nas crianças, enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A contramagia do
feiticeiro ‘escutador’ é singular por sua relativa ausência de ritual”. E nesse caso, o feiticeiro
“escutador” que cuida da maldição nas crianças se torna um... profissional da área de psicologia!
Sonacirema são os americanos! E suas experiências com relação ao corpo, são, de certa forma,
as nossas também.
Sugestão de estudo
Aprender Antropologia, de François Laplantine, prioriza a constituição da Antropologia enquanto disciplina e suas escolas na
teoria antropológica, isto é, seus principais autores e seu desenvolvimento na Europa e Estados Unidos.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
Cultura: um conceito antropológico, de Roque de Barros Laraia, é um livro introdutório sobre o conceito de cultura, tratado
por excelência dentro da antropologia. A partir do que é a cultura e do que não pode ser a cultura. Laraia desvenda, em uma
linguagem simples, a importância desse conceito.
Segundo Cristina Costa (2002, p. 106), o homem – objeto de conhecimento quase exclusivo da
filosofia – foi finalmente enfocado pela ciência a partir do século XIX. Desenvolveram-se então
as ciências humanas – a Sociologia, a Ciência Política, a Psicologia e a Antropologia. As razões
desse florescer de explicações científicas da natureza humana estão em parte nos problemas que
a sociedade enfrentava, trazidos pela urbanização, pela industrialização e pela expansão europeia
no mundo. Tais razões estão também na grande aceitação do pensamento científico no mundo
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AULA 1 • Uma ciência da diferença: o que é Antropologia
ocidental. Se a ciência adquiria uma inquestionável credibilidade, por que não utilizá-la para o
conhecimento do homem? O resultado foi um desenvolvimento extraordinário dessas ciências,
de seus métodos e pressupostos teóricos.
François Laplantine (1998, p. 13) entende que, ainda no início, a Antropologia irá atribuir-se um
objeto que lhe é próprio: o estudo das populações que não pertencem à civilização ocidental. Serão
necessárias ainda algumas décadas para elaborar ferramentas de investigação que permitam a
coleta direta no campo das observações e informações. Mas logo após ter firmado seus próprios
métodos de pesquisa – no início do século XX –, a Antropologia percebe que o objeto empírico
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Uma ciência da diferença: o que é Antropologia • AULA 1
que tinha escolhido (as sociedades “primitivas”) está desaparecendo; pois o próprio universo
dos “selvagens” não é de forma alguma poupado pelo imperialismo existente à época e pelo
acelerado desenvolvimento, principalmente o industrial. Ela se vê, portanto, confrontada com
uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma questão permanece desde seu nascimento: o
fim do “selvagem” ou, como diz Paul Mercier (1966), será que a “morte do primitivo” há de causar
a morte daqueles que haviam se dado como tarefa o seu estudo? A essa pergunta vários tipos de
resposta puderam e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em três deles:
1. O antropólogo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o âmbito das outras
ciências humanas. Ele resolve a questão da autonomia problemática de sua disciplina
reencontrando, especialmente, a Sociologia, e notadamente o que é chamado de
“sociologia comparada”;
2. Ele sai em busca de outra área de investigação: o camponês, este selvagem de dentro,
objeto ideal de seu estudo, particularmente bem adequado, já que foi deixado de lado
pelos outros ramos das ciências do homem;
3. Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive não exclui o anterior (pelo
menos enquanto campo de estudo), ele afirma a especificidade de sua prática, não mais
por meio de um objeto empírico constituído (o selvagem, o camponês), mas por meio
de uma abordagem epistemológica constituinte.
O objeto teórico da Antropologia não está ligado, na perspectiva na qual começamos a nos situar
a partir de agora, a um espaço geográfico, cultural ou histórico particular.
Sintetizando
Que a Antropologia surge de uma expansão das preocupações e métodos da ciência em direção à sociedade humana nas
diferentes formas em que se apresenta;
Assim como ficou claro na discussão do texto “O ritual do Corpo entre os Sonacirema”, os conceitos de etnocentrismo e
relativismo cultural são centrais para a disciplina e permitem transformar nossos valores em objeto de reflexão à luz de
outros modos de vida.
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AULA
COMO EMERGE A ANTROPOLOGIA
ENQUANTO DISCIPLINA? 2
Apresentação
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
16
Como emerge a Antropologia enquanto disciplina • AULA 2
Saiba mais
Fonte: http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=186
Os zoológicos humanos, exposições etnológicas ou aldeias negras, continuam sendo assuntos complexos a serem abordados
por países que exaltam a igualdade de todos os seres humanos. De fato, esses “zoos”, nos quais indivíduos “exóticos”
misturados a animais selvagens eram mostrados atrás das grades ou em recintos delimitados a um público ávido de
distração, constituem a prova mais evidente da defasagem que existe entre o discurso e a prática no tempo da construção
dos impérios coloniais.
“Canibais australianos, machos e fêmeas. A única colônia desta raça selvagem, estranha,
desfigurada e a mais brutal nunca antes capturada das regiões selvagens em todos os tempos.
A ordem mais baixa da humanidade.” [1]
“Exibições etnológicas”
A ideia de promover um espetáculo zoológico pondo em cena populações exóticas aparece paralelamente em vários países
europeus ao longo da década de 1970 do século passado. Inicialmente, na Alemanha, onde em 1874, Karl Hagenbeck,
vendedor de animais selvagens e futuro promotor dos principais zoos europeus, decide apresentar aos visitantes, ávidos
de “sensações”, nativos de Samoa e da Lapônia como populações “genuinamente naturais”. O sucesso dessas primeiras
exibições o conduz, a partir de 1876, a enviar um de seus colaboradores ao Sudão egípcio, a fim de trazer animais, bem
como nubianos, para renovar a “atração”. Esses últimos tiveram sucesso imediato em toda a Europa, sendo apresentados
sucessivamente em diversas capitais como Paris, Londres e Berlim. Tal sucesso influenciou, sem dúvida alguma, Geoffroy de
Saint-Hilaire, diretor do Jardim de Aclimação, que procurava atrações capazes de reverter a situação financeira delicada em
que se encontrava seu estabelecimento. Ele decide então, em 1877, organizar dois “espetáculos etnológicos”, apresentando
os nubianos e esquimós aos parisienses. O sucesso foi fulminante. A frequência ao Jardim dobrou e alcançou, naquele ano,
milhões de ingressos pagantes. Os parisienses acorreram para descobrir o que a grande imprensa qualificava de “grupo de
animais exóticos, acompanhados por indivíduos não menos singulares”. Entre 1877 e 1912, foram montadas com sucesso no
Jardim Zoológico de Aclimação, em Paris, cerca de trinta “exibições etnológicas” desse tipo.
Vários outros lugares iriam rapidamente apresentar os mesmos “espetáculos” ou adaptá-los para fins políticos, a exemplo
das exposições universais parisienses de 1878 e de 1889 (com a torre Eiffel, como “atração máxima”), que tinham como
principais atrações uma “aldeia negra” e 400 figurantes “indígenas”; a de 1900, com seus 50 milhões de visitantes, além
do famoso diorama[2] “vivo” de Madagascar; e ainda, mais tarde, as exposições coloniais de Marselha, em 1906 e 1922, e
também as de Paris, em 1907 e 1931.
Estabelecimentos passam a se especializar no “lúdico”, como as representações programadas no Campo de Marte, na boate
Folies-Bergères ou na Cidade Mágica, e na reconstituição colonial, como, por exemplo, a da derrota dos daomeanos,[3]
liderados por seu último rei, Behanzin, para o exército francês, no teatro da Porte Saint-Martin...
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AULA 2 • Como emerge a Antropologia enquanto disciplina
Para atender a uma demanda mais “comercial” e ao apelo do interior do país, as feiras e as exposições regionais tornaram-se,
bem depressa, os principais lugares de promoção dessas exibições. É nesta dinâmica que são estruturadas, muito rapidamente,
as “turnês” itinerantes – passando de exposição a feira regional –, e se popularizam as célebres “aldeias negras” (ou “aldeias
senegalesas”), como por ocasião da exposição de Lyon em 1894. Não há uma só cidade, uma exposição ou um francês que não
tenha descoberto, numa tarde ensolarada, uma reconstituição “autêntica” desses ambientes selvagens, povoados de homens e de
animais exóticos, entre uma exposição agrícola, a missa dominical e o passeio no lago.
São milhões de franceses que vão, de 1877 ao início dos anos 1930, ao encontro do Outro. Um “outro” levado à cena na gaiola.
Quer seja um povo “estranho”, vindo dos quatro cantos do mundo, ou indígenas do império, trata-se, para a maioria dos
metropolitanos, do primeiro contato com a alteridade. É grande o impacto social desses espetáculos para a construção da
imagem do Outro. Principalmente porque eles são combinados com uma propaganda colonial onipresente (pela imagem e
pelo texto) que impregna profundamente o imaginário dos franceses. No entanto, esses zoos humanos ficaram ausentes da
memória coletiva.
O aparecimento, depois o impulso e o entusiasmo pelos zoos humanos, resulta da articulação de três fenômenos
concomitantes: inicialmente, a construção de um imaginário social sobre o Outro (colonizado ou não); em seguida, a
teorização científica da “hierarquia das raças”, na esteira dos avanços da antropologia física; e, enfim, a edificação de um
império colonial, então em plena construção. Bem antes da grande expansão colonial da Terceira República dos anos 1870-
1910, que termina com o traçado definitivo das fronteiras do império ultramarino, manifesta-se, na metrópole, uma paixão
pelo exotismo, ao mesmo tempo em que se constrói – na fronteira de várias ciências – um discurso sobre as “raças” ditas
inferiores. Logicamente, a construção da identidade de toda civilização dá-se sempre sobre as representações do outro,
permitindo – como num espelho – elaborar uma autorepresentação e se situar no mundo.
No que diz respeito ao Ocidente, as primeiras manifestações são encontradas na Antiguidade (a categorização do “bárbaro”,
do “meteco”[4] e do cidadão), retomadas pela Europa do tempo das Cruzadas e, depois, por ocasião da primeira fase de
explorações e conquistas coloniais nos séculos XVI e XVII. Mas até o século XIX essas representações da alteridade não
passaram de incidências, não necessariamente negativas, não parecendo ter penetrado profundamente no corpo social.
Com os impérios coloniais consolidados, o poder das representações do outro se impõe num contexto político muito
diferente e num movimento de expansão histórica de amplitude inédita. A questão fundamental continua sendo a
colonização porque ela impõe a necessidade de dominar o outro, de domesticá-lo e, portanto, de representá-lo.
As imagens ambivalentes do “selvagem”, marcadas por uma alteridade negativa, mas, também, pelas reminiscências do mito
do “bom selvagem” de Rousseau, são substituídas por uma visão claramente estigmatizante das populações “exóticas”. A
mecânica colonial de inferiorização do indígena pela imagem é então acionada e, nessa conquista dos imaginários europeus,
os zoos humanos constituem, sem dúvida alguma, a engrenagem mais viciada da construção dos preconceitos sobre as
populações colonizadas. A prova está lá, para todos verem: trata-se de selvagens, vivendo e pensando como selvagens. A
ironia da história é que esses bandos de indígenas que atravessavam a Europa (e mesmo o Atlântico), ficavam muitas vezes
de 10 a 15 anos fora de seus países de origem e aceitavam a encenação, desde que remunerados. Não é outro o cenário da
selvageria instalada no zoo pelos organizadores dessas exibições: ao final do século: o selvagem reivindica um salário![5]
A estigmatização da selvageria
Paralelamente, um racismo popular instala-se na grande imprensa e na opinião pública, como pano de fundo da conquista
colonial. Todos os grandes meios de comunicação, dos jornais ilustrados mais populares – como Le Petit Parisien ou Le Petit
Journal – às publicações de caráter “científico” – La Nature ou La Science amusante –, passando por revistas de viagens e de
exploração como Le Tour du Monde e o Journal des Voyages –, apresentam as populações exóticas – e muito particularmente as
submetidas à conquista colonial – como vestígios dos primeiros estágios da humanidade.
18
Como emerge a Antropologia enquanto disciplina • AULA 2
O vocabulário de estigmatização da selvageria – bestialidade, gosto de sangue, fetichismo obscurantista, estupidez atávica
– é reforçado por uma produção iconográfica de uma violência inaudita, propagando a ideia de uma sub-humanidade
estagnante, humanidade dos confins coloniais, na fronteira da humanidade e da animalidade.[6]
Simultaneamente, a inferiorização dos “exóticos” é consolidada pela tripla articulação do positivismo, do evolucionismo e
do racismo. Os membros da Sociedade de Antropologia – criada em 1859, mesma data que o Jardim da Aclimação de Paris
– estiveram por várias vezes nessas exibições de grande público, com o objetivo de realizar suas pesquisas voltadas para a
antropologia física. Esta ciência, obcecada pelas diferenças entre os povos e o estabelecimento de hierarquias, dava à noção de
“raça” um caráter predominante nos esquemas de explicação da diversidade humana. Através dos zoos humanos, assiste-se
ao desenvolvimento da construção de uma classificação das “raças” humanas e da elaboração de uma escala unilínea, que
permite hierarquizá-las de cima a baixo na escala evolucionista.
O conde de Gobineau, por exemplo, com sua obra Essai sur l’inégalité des races humaines (1853-1855), estabeleceu a
desigualdade original das raças, criando a “beleza das formas, da força física e da inteligência”, e consagrando, assim, as
noções de “raças superiores” e “raças inferiores”. Como muitos outros, postula a superioridade original da “raça branca”,
que detém, segundo ele, o monopólio desses três elementos e serve de norma, permitindo classificar o negro num estado de
inferioridade irremediável, no degrau mais baixo da escala da humanidade, e as outras “raças” como intermediárias.
Os pensadores da desigualdade
Essa classificação encontra-se nas programações parisienses dos zoos humanos, condicionando grandemente a ideologia
subjacente desses espetáculos. Quando, por exemplo, os cossacos foram convidados ao Jardim Zoológico da Aclimação, a
embaixada da Rússia insistiu para que eles não fossem confundidos com os “negros” vindos da África. Do mesmo modo,
quando Buffalo Bill chegou com sua trupe encontrou seu lugar no Jardim, contando com a presença de “índios” em
seu espetáculo! Finalmente, os liliputianos foram, sem nenhum problema, apresentados ao público, segundo a mesma
terminologia da diferença, da monstruosidade e da bestialidade aplicada às populações exóticas!
O darwinismo social, vulgarizado e reinterpretado na virada do século por Gustave Le Bon e Vacher de Lapouge, encontra
sua tradução visual de distinção entre “raças primitivas” e “raças civilizadas” nessas exibições de caráter etnológico. Esses
pensadores da desigualdade descobrem, por meio dos zoos humanos, um laboratório fabuloso de espécimens até então
inimagináveis na metrópole.
Tanto a antropologia física como a emergente antropometria – na época, uma gramática dos “caracteres somáticos” dos
grupos sociais, sistematizados desde 1867 pela Sociedade de Antropologia com a criação de um laboratório de craniometria,
e depois a frenologia – legitimam a continuidade dessas exibições. Incitam os cientistas a manterem ativamente as
programações por três razões pragmáticas: a disponibilidade de um “material” humano excepcional (variedade, número e
renovação dos espécimens?); o interesse do grande público por suas pesquisas, e portanto a possibilidade de promover seus
trabalhos na grande imprensa; e finalmente, a demonstração mais comprobatória da procedência dos enunciados racistas
pela presença física dos “selvagens”.
Ora, nesta percepção linear da evolução sociocultural e proximidade ao mundo animal, as civilizações não europeias são,
evidentemente, consideradas como atrasadas, mas passíveis de serem civilizadas, portanto, colonizáveis. Fecha-se o círculo.
A coerência dos espetáculos torna-se uma evidência científica, ao mesmo tempo em que uma perfeita demonstração das
teorias nascentes sobre a hierarquia das raças e uma perfeita ilustração in situ da missão civilizadora ultramarina. Cientistas,
membros do lobby colonial e organizadores de espetáculos, todos tiram proveito.
A aplicação dos fundamentos antropológicos “darwinianos” da ciência política, celebrizada e popularizada por essas
exibições, vai muito rapidamente influenciar as ciências irmãs e o projeto “eugenista” de Georges Vacher de Lapouge, que
consistia na melhoria das qualidades hereditárias, desta ou daquela população, por meio de uma seleção sistemática e
19
AULA 2 • Como emerge a Antropologia enquanto disciplina
voluntária. Muito significativamente, as exibições de “monstros” (anões ou liliputianos no Jardim Zoológico da Aclimação,
em 1909; corcundas ou gigantes nos inúmeros parques de diversão itinerantes; macrocéfalos ou “negros” albinos em Paris,
em 1902) conhecem, na virada do século, um grande sucesso, acompanhando e interpenetrando o sucesso estrondoso dos
zoos humanos. É lógico que, dialeticamente, eugenia, darwinismo social e hierarquia racial têm correspondência entre si. E
compartilham uma mesma angústia diante da alteridade, angústia que encontra seu exutório[7] na racionalização desigual
das “raças”, numa estigmatização comum do “corrompido” e do “indígena”.
Os “zoos humanos” encontram-se assim na confluência do racismo popular e da objetivação científica da hierarquia racial,
ambos frutos da expansão colonial. Índice notável desta confluência, as “exibições etnológicas” do Jardim Zoológico da
Aclimação são legitimadas, como vimos, pela Sociedade de Antropologia e pela quase totalidade da comunidade científica
francesa. Ainda que entre 1890 e 1900 a Sociedade de Antropologia se torne claramente mais circunspecta quanto ao caráter
“científico” desses espetáculos, ela não pode deixar de apreciar o afluxo de populações que lhe permitem aprofundar suas
pesquisas sobre a diversidade das “espécies”. A ruptura se dará, finalmente, devido à crescente importância que passam a ter
essas diversões apreciadas pelo público e, sobretudo, pelo fato de eles se tornarem cada vez mais populares e burlescos.
É preciso dizer que esses espetáculos – assim como as exibições no Campo de Marte e nas Folies-Bergères – são estruturados
a partir de uma representação cada vez mais elaborada da “selvageria”: trajes rdículos no estilo barroco, danças frenéticas,
simulação de “combates sanguinários” ou “ritos canibalescos”, insistência em programas publicitários sobre a “crueldade”, a
“barbárie” e os “costumes desumanos” (sacrifícios humanos, golpes com armas cortantes?).
Tudo converge para que, entre 1890 e a primeira guerra mundial, uma imagem particularmente sanguinária do selvagem
se imponha. Os “espetáculos” – construídos sem nenhuma preocupação de verdade etnológica, cumpre dizer – remetem,
desenvolvem, atualizam e legitimam os estereótipos racistas mais doentios que formam o imaginário sobre o “outro” no
momento da conquista colonial. Na realidade, é fundamental destacar que o “fornecimento dos indígenas” segue de perto
as conquistas da república ultramarina, recebe o aval (e o apoio) da administração colonial, contribuindo para sustentar
explicitamente a empreitada colonial da França.
Os tuaregues, por exemplo, foram exibidos em Paris nos meses que se seguiram à conquista francesa de Tumbuctu, em
1894; também os malgaxes, que apareceram um ano após a ocupação de Madagascar; e finalmente, o sucesso das célebres
amazonas do reino de Abomey, que se seguiu à comentada derrota de Behanzin para o exército francês no Daomé. A
vontade de degradar, humilhar, animalizar o outro – mas, também, de glorificar a França ultramarina através de um
ultranacionalismo que conheceu o auge após a derrota de 1870 – é então plenamente assumida e destacada pela grande
imprensa, ao mostrar aos colonizadores “indígenas” exaltados, cruéis, cegos pelo fetichismo e sedentos de sangue. Assim,
as diferentes populações exóticas tendem todas a ser mostradas em seu cotidiano pouco atraente: há um fenômeno de
uniformização na caricatura do conjunto das “raças” apresentadas, que as torna praticamente indiferenciadas. Entre “eles” e
“nós”, há, a partir deste momento, uma barreira intransponível.
A animalização do outro
Os “selvagens” trazidos ao Ocidente são sem dúvida atraentes, mas no entanto despertam um sentimento de medo. Suas
ações e movimentos devem ser rigorosamente controlados. São apresentados como absolutamente diferentes e sua
incursão europeia os obriga a se comportarem como tal, pois lhes é proibido manifestar qualquer sinal de assimilação,
de ocidentalização, durante o tempo em que são exibidos. Deste modo, é impossível que eles se misturem aos visitantes
na maior parte das manifestações. Caracterizando-se segundo os estereótipos em vigor, seus trajes são concebidos para
parecerem o mais originais possíveis. Os exibidos devem, além disso, permanecer no interior de uma parte especificamente
delimitada do espaço da exposição (sob pena de aplicação de multa sobre seus já parcos salários), o que marca a fronteira
intangível entre seu mundo e o dos cidadãos que os visitam e os inspecionam. Uma fronteira delimita escrupulosamente a
selvageria e a civilização, a natureza e a cultura.
20
Como emerge a Antropologia enquanto disciplina • AULA 2
O que mais chama a atenção nesta brutal animalização do outro é a reação do público. Ao longo dos anos de exibições
quotidianas, poucos jornalistas, políticos ou cientistas comoveram-se com as condições sanitárias e de abrigo – muitas vezes
catastróficas – dos “indígenas”; sem falar nos inúmeros casos de morte (como os ocorridos em 1892, com os índios Kaliña, de
Galibi, em Paris[8]) pouco habituados ao clima francês.
Contudo, alguns relatos ressaltam o horror desses espetáculos. Com relação a isso, a atitude do público não é o assunto
menos chocante: inúmeros visitantes jogam alimento ou quinquilharias aos grupos expostos, comentando suas fisionomias,
comparando-os aos primatas (retomando com isso uma das cantilenas da antropologia física, ansiosa em revelar os
“caracteres simiescos” dos indígenas), ou rindo abertamente à visão de uma africana doente e tremendo em sua cabana.
Essas descrições – algumas cheias de lacunas – demonstram razoavelmente o sucesso da “racialização latente dos espíritos”
contemporânea. Em tal contexto, o império podia crescer com a consciência tranquila, instituindo a desigualdade jurídica,
política e econômica entre europeus e “indígenas”, com base no racismo endêmico, uma vez que na metrópole se encontrava
a prova de que fora dela só havia selvagens recém-saídos das trevas.
Evidentemente, os zoos humanos nada revelam sobre as “populações exóticas”. Por outro lado, constituem um instrumento
extraordinário de análise das mentalidades do final do século XIX até os anos trinta. Na verdade, zoos, exposições e jardins
tinham o objetivo básico de mostrar o raro, o curioso, o estranho, todas as expressões do não habitual e do diferente, por
oposição a uma construção racional do mundo, elaborada segundo padrões europeus.[9]
Não seriam essas dissimulações raivosas, afinal, a imagem invertida da ferocidade – esta, bem real – da própria conquista
colonial? Não haveria a vontade – deliberada ou inconsciente – de legitimar a brutalidade dos conquistadores por meio
da animalização dos conquistados? Nesta animalização, a transgressão dos valores e das normas do que representa para a
Europa a civilização constitui um elemento-chave.
A ambivalência do fascínio
No domínio do sagrado, a norma sexual é evidentemente a primeira. A poligamia toca, assim, num dos fundamentos
sociorreligiosos da família cristã. O fato que os zoos humanos acolham famílias inteiras – com as diferentes esposas do chefe
de família – é significativo. Na melhor das hipóteses, o espectador vem contemplar uma coisa bizarra e incompreensível, e na
pior, a manifestação de uma lascívia animal, trazendo, na interrogação expressa no olhar, o desejo insaciado de um fantasma
que, mesmo no Ocidente, constitui o inverso do proibido.
O tema da sexualidade é particularmente desenvolvido. Para os “negros”, cresce o mito de uma sexualidade bestial, plural.
Nesse mito, que abrange considerações físicas (uma grande vitalidade e órgãos genitais considerados superdesenvolvidos,
tanto no homem quanto na mulher), cristaliza-se a ambivalência do fascínio por seres que se encontram no limiar entre
a animalidade e a humanidade. A própria vitalidade sexual remete a uma vitalidade corporal de conjunto – visível, por
exemplo, em inúmeras gravuras dos grandes jornais ilustrados da época, que evocam o combate vigoroso de “tribos”
quase nuas diante das tropas coloniais –, provocando um fascínio pelo corpo do “selvagem”. Esse fascínio é o produto da
preocupação, vivida no final do século XIX, com a “degeneração biológica” do Ocidente.[10]
A partir da exposição universal de 1889 e até o final do período entre as duas guerras, vão se multiplicar as exposições,
em particular as coloniais. Em sua quase totalidade, são propostos à curiosidade dos visitantes: uma aldeia “negra”,
“indochinesa”, “árabe” ou “kanak”. Simultaneamente, essas aldeias “negras” ou senegalesas – sinal de uma evolução
21
AULA 2 • Como emerge a Antropologia enquanto disciplina
semântica muito interessante no período que se seguiu à grande guerra – tornam-se atrações autônomas, itinerantes e
perfeitamente instrumentalizadas no interior do país, mas, também, por toda a Europa e nos Estados Unidos.
As apresentações se sucedem, ano após ano, com quatro ou cinco trupes distintas que percorrem as grandes exposições
regionais como Amiens, Angers, Nantes, Reims, Le Mans, Nice, Clermont-Ferrand, Lyon, Lille, Nogent, Orléans e as grandes
cidades (e jardins zoológicos) europeias como Hamburgo, Antuérpia, Barcelona, Londres, Berlim ou Milão, onde chegam a
afluir de 200.000 a 300.000 visitantes por exibição.
As encenações passam, então, a ser muito mais “etnográficas” e as “aldeias” parecem enfeites fabricados em papelão, dignos
das produções hollywoodianas da época sobre a África misteriosa[12]. São admirados os produtos típicos e o “artesanato”
comercializado (provavelmente uma das primeiríssimas exposições de “arte negra” destinada ao grande público); formas
originais de organização social são progressivamente reconhecidas e geralmente mostradas como traços de um passado que
a colonização deve necessariamente abolir. As reconstituições fantasiosas de “danças indígenas” e os episódios históricos
famosos são espaçados e acabam sumindo.
Outra conjuntura se revela: o “selvagem” volta a ser doce, cooperativo, à semelhança, para dizer a verdade, de um império
que quer, às vésperas da primeira guerra mundial, passar a imagem de definitivamente pacificado. Nessa época, os limites
territoriais do império são, de fato, traçados. À conquista sucede-se a “missão civilizadora”, discurso que será ardentemente
defendido pelas exposições coloniais. O administrador sucede ao militar. No momento em que o tema propriamente racial
tende a desaparecer, sob a influência “benéfica” da França das Luzes, da República colonizadora, os “indígenas” voltam a
ocupar a base da escala das civilizações. As aldeias negras substituem os zoos humanos. Certamente, o indígena continua
sendo um ser inferior, porém “domesticado”, em quem se descobre o potencial de evolução que justifica o gesto imperial.
Esta nova percepção do outro indígena encontrará sua maior intensidade por ocasião da Exposição Colonial Internacional
de Vincennes, em 1931, que, com uma área de centenas de hectares, constitui a mutação mais bem conduzida do zoo
humano sob o manto da missão civilizadora, de boa consciência colonial e de apostolado republicano.
Os zoos humanos constituem, portanto, um fenômeno cultural fundamental – até aqui totalmente oculto – por sua
amplitude e também por permitirem compreender como se estrutura a relação com o outro pela França colonial e também
pela Europa. De fato, não estaria a maior parte dos arquétipos encenados pelos Zoos humanos projetando a raiz de um
inconsciente coletivo – que assumirá, ao longo do século, múltiplas faces –, e que se torna indispensável desconstruir,[13]
com base numa pesquisa[14] recente que revela que mais de dois terços dos franceses são racistas?
Texto traduzido por Nena Mello
Referências
[1] Plakate, 1880-1914, Historiches Museum, Frankfurt.
[2]N.T.: Trata-se de uma tela panorâmica, sem bordas que, projetada em sala escura, produz a ilusão de movimento, graças
ao efeito do jogo de luzes. O primeiro diorama foi instalado em Paris em 1922 por Daguerre e Bouton. Cf. Petit Larousse en
Couleurs. Paris: Librairie Larousse, 1972, p. 281.
[3] N.T.: Os daomeanos eram, até 1975, os habitantes de Daomé, hoje República Popular do Benin. Béhanzin foi seu último
rei, tendo governado entre 1889 e 1893, quando foi aprisionado e derrotado pelos franceses.
[4] Palavra que designava em Atenas o estrangeiro residindo na cidade. Hoje, de sentido pejorativo, é utilizada para designar
o estrangeiro vivendo em um país. (NT)
[5] Nem todos os grupos “importados” dispunham de um mesmo e único status. Os “fueguinos”, por exemplo, habitantes da
Terra do Fogo, situada no extremo Sul do continente sul-americano, parecem ter sido “transportados” como espécimens de
zoológico propriamente ditos; enquanto, os “gaúchos”, espécie de artistas contratados, tinham plena consciência da máscara
que vestiam em cena para os visitantes.
[6] Ler, de Nicolas Bancel, Pascal Blanchard e Laurent Gervereau, Images et Colonies, Ed. Achac-BDIC, Paris, 1993.
22
Como emerge a Antropologia enquanto disciplina • AULA 2
[7] Ferida artificial cujo fim é provocar uma supuração permanente. Cf. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo
Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1ª ed. (NT).
[8] Ler, de Gérard Collomb, “La photographie et son double. Les Kaliña et ’le droit de regard’ de l’Occident”, in L’Autre et Nous.
Éditions Syros-Achac, 1995.
[9] Ler, de Anne McClintock, Imperial Leather. Race, Gender and Sexuality in the Colonial Contest. Ed. Routledge, Londres,
1994.
[10] Ler, de Christian Pociellot e Daniel Denis (org.). A l’école de l’aventure. Ed. PUS, Voiron, 2000.
[11] Ler, de Didier Dæninckx, Cannibale. Ed. Gallimard (coleção Folio) e Éditions Verdier, reedição, 1998.
[13] Ler, de Nicolas Bancel e Pascal Blanchard. De l’indigène à l’immigré, col. “Découvertes”. Ed. Gallimard, 1998.
[14] Ler, de Sylvia Zappi, “Un sondage révèle une progression du racisme et de l’antisémitisme”, Le Monde, 16/3/ 2000.
Uma das questões principais trazidas pelo texto “Os Jardins Zoológicos Humanos” é a articulação
entre racismo (e as teorias racistas do século XIX) e o sentido de evolução e progresso que
considerava a Europa como única detentora de cultura, como se esta fosse a única a existir, e
justificando o tratamento dado a outros povos colonizados por países europeus. Estamos falando,
na realidade, de culturas. De uma diversidade de culturas que não eram compreendidas, naquele
momento, em sua totalidade. Vejamos.
Artefatos, desenhos, poemas, manuscritos e construções são alguns dos registros que documentam
a produção da humanidade ao longo dos tempos. Desde o século XIX, chamamos a produção
humana de cultura.
Embora ainda não nomeassem dessa forma, os relatos de viajantes europeus que partiam ao
encontro desses “outros” foram essenciais para o acúmulo de um conhecimento sobre o que
mais tarde se chamaria “cultura”.
E. Tylor, só surgirá no século XIX. Mas o que é um número limitado de classificações, baseadas nas
diferenças aparentes existentes entre os homens.
cultura?
23
AULA 2 • Como emerge a Antropologia enquanto disciplina
Como vimos no texto “Os Jardins Zoológicos Humanos”, durante o século XIX, as Ciências
Biológicas formulam o atualmente superado conceito de raça. Acreditava-se que a humanidade
era formada por raças diferentes entre si, biológica e psicologicamente. Nessa perspectiva, eram
desiguais em valor absoluto, mas também diversas nas suas aptidões particulares. Essas ideias
foram adotadas pela Ciência Social da época para explicar as diferenças entre as culturas. No
campo social, surgem as chamadas teorias racistas que pressupõem uma hierarquização entre
os seres humanos. Cabe lembrar que essas afirmações foram contestadas pela genética moderna.
A obra de Charles Darwin sobre a evolução humana revolucionou as ciências naturais e provocou
um grande impacto na Europa do século XIX. Em A Origem das Espécies (1859), ele confirma
cientificamente a unidade de espécie humana, daí a inoperância do termo raça.
Influenciado pelas ciências naturais, Edward Tylor (1832-1917) assim define Cultura: “todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem com o membro de uma sociedade”, ou seja,
todo conhecimento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética. Tylor
considerava cultura como um fenômeno natural. A diversidade cultural presente na espécie
humana era explicada como resultado da desigualdade dos estágios existentes no processo de
evolução. Sendo assim, todas as culturas deveriam passar pelas mesmas etapas de evolução.
Lewis Henry Morgan (Estados Unidos, 1818-1881) e James Frazer (Escócia, 1854-1941) foram
importantes pesquisadores que fomentaram, não apenas a emergência da disciplina, como,
também, o evolucionismo cultural, que pressupunha, na mesma humanidade, um único caminho
possível de ser seguido. Fosse em temas como etnologia e história dos indígenas americanos e
de um estudo sistemático das relações de parentesco, no caso de Morgan ou dos estudos sobre
as diversas religiões, no caso de Frazer, a perspectiva de evolução das sociedades “primitivas”
para as “civilizadas” era uma constante, assim como o trabalho de gabinete, aquele que buscava
conhecer outros grupos por meio da literatura etnográfica disponível em cartas, diários, relatórios,
livros, sem estabelecer, de forma constante, um contato com os nativos que buscasse conhecer
melhor e mais profundamente as culturas estudadas. Culturas, a partir de agora, no plural.
Entre o final do século XIX e o início do século XX, esses dois quadros (evolucionismo e trabalho
de gabinete) passam a mudar. Primeiro com Émile Durkheim (1858-1917) e seu sobrinho Marcel
24
Como emerge a Antropologia enquanto disciplina • AULA 2
Concluímos, a partir de Clifford Geertz, que a cultura distancia o homem dos outros animais,
tornando-o o único ser possuidor de um mapa orientador, ou seja, de um conjunto de orientações
conscientes ou não, mas que o ajudam a viver em sociedade. Por exemplo, a intenção de oferecer
flores como presente ou a arte de transformar um conjunto de sementes em colar são marcas
da presença do homem interagindo com o mundo e se apropriando do meio ambiente. A partir
dessa interação, damos outro significado, diferente do original, às flores ou sementes, e que será
diferente também para cada um de nós. Nesse exemplo, a flor e o conjunto de sementes assumem
um significado simbólico tanto para o grupo quanto para o sujeito da ação.
25
AULA 2 • Como emerge a Antropologia enquanto disciplina
Se é verdade que a primeira metade do século XX definiu muitos parâmetros do que viria a ser a
Antropologia moderna, não podemos desprezar outras escolas, fundamentais para a consolidação
e difusão da disciplina.
Sintetizando
»» o que foram os jardins zoológicos humanos e como eles se relacionam com a nossa disciplina;
26
AULA
PRINCIPAIS CONCEITOS
ANTROPOLÓGICOS E A RELAÇÃO
ENTRE ANTROPOLOGIA, EDUCAÇÃO E
PLURALIDADE CULTURAL 3
Apresentação
Nesta aula, apresentaremos conceitos utilizados na Antropologia que ancoram alguns dos
principais debates sobre pluralidade cultural no campo da Educação.
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
»» Compreender os diversos conceitos que fazem parte desta disciplina, tais como natureza
e cultura, indivíduo e sociedade, etnocentrismo e relativismo cultural, diversidade, raça
e etnia, sexo e gênero.
27
AULA 3 • Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural
Natureza e Cultura
A Natureza tem sido definida em oposição à cultura. Em outras palavras, tem-se dito que Cultura
é tudo aquilo que não é natureza, ou que é produzido pelo ser humano.
Cultura é, num sentido amplo, definida como um conjunto de regras, símbolos, tradições, práticas
rituais, formas de arte, cerimônias, mas, também, a linguagem, a fofoca, histórias e rituais do
cotidiano, que podem se traduzir em objetos, sentimentos, pensamentos e comportamentos de
grupos de indivíduos. Portanto, a cultura pode se constituir em material e imaterial.
Bellah et al. (1985), por exemplo, definiram cultura como “aqueles padrões de significado que
qualquer grupo ou sociedade utiliza para interpretar e avaliar a si próprio e sua situação” (Habits
of the Heart, p. 333).
28
Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural • AULA 3
Para Geertz (1989), a cultura é como uma “teia de significados que o homem tece ao seu redor
e que o amarra (p. 15)”; e ainda, valendo-se de Max Weber, Geertz afirmava “que o homem é um
animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (p. 15). Nesse sentido, uma das
tarefas do antropólogo é a de buscar apreender os seus significados.
Saiba mais
29
AULA 3 • Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural
A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu
trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor
divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. O índio queria
que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguível em
meio às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma
função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o relógio.
Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores
seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em
congresso sobre evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze
para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu
escritório. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria
ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o
que aquele índio foi fazer com o meu relógio.
Essa estória, não necessariamente verdadeira, porém, de toda evidência, bastante plausível,
demonstra alguns dos importantes sentidos da questão do etnocentrismo.
Em segundo lugar, essa estória representa o que se poderia chamar, se isso fosse possível, de
um etnocentrismo “cordial”, já que ambos – o índio e o pastor – tiveram atitudes concretas sem
maiores consequências. No mais das vezes, o etnocentrismo implica uma apreensão do “outro”
que se reveste de uma forma bastante violenta. Como já vimos, pode colocá-lo como “primitivo”,
como “algo a ser destruído”, como “atraso ao desenvolvimento”, (fórmula, aliás, muito comum e
de uso geral no etnocídio, na matança dos índios).
Outros conceitos
Indivíduo e Sociedade
Ruth Benedict (s/d) afirmava que “a sociedade e o indivíduo não são antagônicos, mas
interdependentes (p. 276)”. Podemos afirmar que sociedade é um sistema de inter-relações que
integra os indivíduos em uma mesma cultura. Segundo Marina Marconi (2001), uma sociedade
é constituída por seres humanos que seguem “uma forma de viver normativa”, ou seja, “tornam-
30
Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural • AULA 3
se portadores de culturas, em geral, adaptadas à ambiência local (p. 193)”. Assim, elementos
como as atitudes, as condutas e os comportamentos são parte integrante do “complexo cultural
e são ditados pelas normas e padrões adotados pelo grupo como saudáveis ao desenvolvimento
sociocultural (p. 193)”. Também é importante ressaltar que nas sociedades simples as normas
e padrões tendem a ser mais persistentes. Outro aspecto é que não há sociedade humana sem
cultura, e vice-versa.
Quanto ao conceito de indivíduo, ele está intrinsecamente ligado ao de sociedade, pois este
somente se torna humano mediante sua interação com outros seres humanos. E nesse sentido,
a cultura é a responsável pela padronização dessa intercessão.
Ao buscarmos informações sobre o conceito de raça, veremos que ele foi utilizado para classificar e
analisar distintas populações oriundas da mesma espécie biológica observando-se seus caracteres
genéticos. Durante os séculos XVII e XX, muitos antropólogos, sobretudo os denominados
evolucionistas, utilizavam a ideia de raças humanas para classificar grupos humanos. Entretanto,
o termo raça, na perspectiva biológica, foi contestado pela ideia de que há somente uma raça, a
humana, de modo que ele deixou de ser utilizado com a conotação biológica ou genética. Hoje,
a utilização do termo raça remete a uma posição política, a exemplo de quando é utilizado pelo
movimento negro quando se pede por “igualdade racial” e cria-se uma legislação para efetivar
esse tipo de demanda.
A etnia tem sido utilizada como um conceito alternativo e sinônimo de raça. Entretanto, há
críticas a essa equiparação, contestando que esses conceitos não podem ser considerados iguais.
A diferença entre ambos está no fato de que, no caso da etnia, ela compreende fatores culturais
a exemplo da nacionalidade, da religião, da língua, das tradições; ao passo que a raça envolve
apenas os fatores morfológicos, tais como cor da pele, constituição física, traços faciais, entre
outros, que de forma alguma são homogêneos ou inequívocos em um grupo.
Sexo e Gênero
No dicionário Aurélio (mini), sexo apresenta duas definições importantes para nossa compreensão:
“o conjunto das características que distinguem os seres vivos, com relação à sua
função reprodutora; e qualquer das duas categorias, macho ou fêmea, na qual
eles se classificam.”
31
AULA 3 • Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural
Ao final da década de 1980 e início da década de 1990, o conceito de gênero substituiu os estudos
sobre as condições femininas. Hoje inclui temas mais amplos, como discussões sobre masculinidade
e transexualidade. Para os especialistas em gênero e feminismo, a substituição de uma discussão
sobre as questões femininas para a adoção do conceito de gênero ampliou o campo de discussão
e aliviou tensões no debate entre a universidade e os movimentos sociais, fazendo com que as
discussões sobre mulheres passassem a ser mais bem aceitas em alguns grupos.
Maria Luiza Heilborn (1999) afirma que o gênero é uma construção social do sexo. E ainda segundo
Heleieth Saffioti (s/d), ele “diz respeito às imagens do feminino e do masculino, historicamente
construídas (p. 1)”. E, ao contrário do que muitos indivíduos pensam, a ideia de gênero não está
vinculada à diferenciação sexual biológica, porque essa distinção entre os sexos assume dimensões
da ordem do simbólico (HEILBORN, 1999), produzindo significados no que se refere às diferenças
corporais (SCOTT, 1994). Nesse sentido, podemos falar, então, na existência de construções,
as quais antropólogos clássicos tanto quanto modernos têm se dedicado a compreender. Um
exemplo desse tipo de construção pode ser vislumbrado na afirmação de Heilborn (1999) que
identifica que “... há machos e fêmeas na espécie humana, mas a qualidade de ser homem e ser
mulher é condição realizada pela cultura”. (p. 5).
Na sociedade, assumimos papéis de gênero, ou seja, se somos identificados como mulher, devemos
nos apresentar com comportamentos, padrões de vida que evidenciem o que está previamente
estabelecido na sociedade que condiz com a ideia de uma menina ou mulher, tal como falar e
agir tal qual uma; o mesmo deverá ser seguido pelos homens ou meninos. O papel atribuído aos
gêneros varia entre as diferentes sociedades e também no tempo. O papel que se esperava de
uma mulher durante a era colonial era bem diferente do que se apresenta hoje no Brasil, o que,
por sua vez, difere do que se espera de uma mulher no Irã, por exemplo. Em fins do século XX, os
pesquisadores da área incorporaram a essa questão de gênero os estudos sobre masculinidade.
Identidade(s)
Os estudos de Stuart Hall (1999) apontam para uma questão extremamente discutida na teoria
social – as identidades. Argumenta-se que, quando as velhas identidades estão em declínio, surgem
novas identidades, fragmentando o indivíduo moderno, até então visto como sujeito unificado.
32
Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural • AULA 3
Atenção
O termo pós-modernismo nasceu na arquitetura do final dos anos 1950 e início dos anos 1960 e depois se generalizou para
todos os campos da cultura. Esse termo investiu no ataque ao universalismo, enfatizando o localismo, o particularismo e
o regionalismo. Assim, pós-modernidade refere-se à tendência ao pluralismo e à diferença, ou seja, à cultura do outro, do
diferente (mulheres, gays, negros, terceiro mundo).
A partir dessa perspectiva, admitimos que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos. Enfim, a identidade unificada, aquela entendida como construída desde o nascimento
até a morte, é uma fantasia, já que somos confrontados com uma multiplicidade de identidades
possíveis e, por vezes, contraditórias.
Raça e Etnia
A noção de raça foi elaborada pelas Ciências Biológicas do século XIX para explicar as diferenças
existentes entre os homens. Posteriormente superado com a constatação da igualdade existente
na humanidade, tornou-se incompatível com a ideia de diferenças biológicas dentro de uma
mesma espécie.
Gênero é uma construção social. Refere-se às diferenças sexuais entre os indivíduos de dada
sociedade. Inicialmente, foi usado como sinônimo de estudos sobre a mulher. Atualmente,
expressa mais do que diferenças entre homens e mulheres: refere-se à pluralidade de papéis e às
práticas sociais e sexuais existentes em nossa sociedade, tais como heterossexuais, homossexuais,
bissexuais, transexuais entre outros grupos, ressaltando que essas identidades são heterogêneas
e cambiantes.
33
AULA 3 • Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural
Raça difere de outras noções, como gênero, por exemplo. Raça não se refere a nenhuma
característica física inequívoca, enquanto gênero vincula-se à noção biológica de sexo.
Etnia é o termo empregado para designar um grupo social que se diferencia de outros grupos
por sua especificidade cultural.
Etnicidade é um neologismo que surgiu no âmbito dos estudos sobre as relações interétnicas no
início da década de 1960. Esse neologismo é inseparável do conceito de grupo étnico, podendo
ser definido como a condição de pertencer a um grupo étnico. Etnicidade e constituição de
grupos étnicos baseiam-se na diferenciação cultural dos indivíduos e na criação de laços sociais
entre os que partilham de uma cultura comum. Enquanto raça se refere às diferenças físicas,
biologicamente herdadas, a diferenciação étnica se dá em termos de diferenças culturais que
têm de ser aprendidas.
Após a introdução aos termos etnia e raça, cabe a explicação do que é a questão étnico-racial.
Conhecida nos meios acadêmicos como “questão racial”, a adoção do termo étnico-racial
visa a superar as ambiguidades presentes nos termos etnia e raça, a fim de retratar as relações
entre brancos e negros na sociedade brasileira. Seria apropriado o uso do termo etnia para nos
referirmos às diferentes populações brancas ou negras brasileiras? Seria apropriado o uso do
termo raça para nos referirmos às relações raciais entre as populações brancas e negras do Brasil?
Certamente que não. Essa constatação tem levado alguns pesquisadores a adotarem o termo
étnico-racial, com vistas a superar os limites dos dois termos. Cabe esclarecer que nesse contexto
o termo raça assume seu significado social, ou seja, refere-se às diferenças na aparência, tais
como cor da pele, tipo de cabelo, laços culturais, entre outras, e não na essência dos indivíduos.
A antropologia se debruça sobre a cultura dos diferentes povos desde a sua criação como
disciplina ou área do conhecimento. O interesse pelos hábitos de higiene e alimentação, pela
relação dos nativos com seu corpo, pelos modos como resolviam problemas relacionados à
saúde ou a doença, pelos aspectos religiosos, entre tantos outros, tornou-se, ao longo do século
34
Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural • AULA 3
XX, uma preocupação corrente com a educação e muitas vezes com o espaço escolar, mesmo
que indiretamente.
O que queremos dizer com isso? Que a relação do homem com a sua cultura ou a influência que
dela recebe é essencial para entendermos os aspectos peculiares da educação em relação a sua
sociedade.
Podemos compreender a Antropologia como a ciência social que se dedica ao estudo do “homem
de todos os tempos e tipos” (CAVEDON, 2008).
Além disso, uma das questões essenciais do nosso debate é de que maneira percebemos a
cultura como um elemento de análise importante para a criação de políticas públicas, para o
desenvolvimento das políticas sociais, para o combate às desigualdades e ainda para conhecer
melhor a população com a qual estamos interagindo. É nesse sentido que precisamos saber
melhor o que é Antropologia e os conceitos correlatos com os quais trabalharemos, antes de
partirmos para as outras aulas. É importante observar que hoje há uma área consolidada sobre
as especificidades da Antropologia e sua interseção com a Educação, chamada Antropologia da
Educação. Essa área pretende refletir sobre como os autores clássicos da teoria antropológica
trataram o tema educação e como as metodologias de pesquisa desenvolvidas na Antropologia
são fundamentais hoje para compreendermos os espaços educacionais em nossa sociedade.
Sintetizando
»» os principais conceitos da Antropologia, fundamentais para o entendimento da relação entre Antropologia, Educação e
Diversidade Cultural;
»» os diversos conceitos que fazem parte desta disciplina, tais como natureza e cultura, indivíduo e sociedade,
etnocentrismo e relativismo cultural, determinismo biológico e geográfico, diversidade, raça e etnia, sexo e gênero,
ritos e mitos.
35
AULA
MOVIMENTOS SOCIAIS, DIREITOS
HUMANOS E IDENTIDADES:
INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE
DIREITOS HUMANOS 4
Apresentação
Esta aula tem por objetivo geral debater as questões relativas aos movimentos sociais, direitos
humanos e lutas por direitos. Abordaremos as principais correntes de pensamento que refletiram
sobre a ação social coletiva, buscando estabelecer bases para refletirmos sobre o lugar desse
acúmulo histórico na construção de uma educação que contemple a pluralidade cultural.
Tomaremos como exemplo o caso das discussões de gênero.
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
36
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4
Movimentos sociais
Grosso modo, podemos dizer que o termo movimento social refere-se à ação coletiva de um
grupo de pessoas, com finalidade de alguma transformação ou questionamento da ordem social,
num contexto específico. A maior parte dos teóricos sociais concorda que esse tipo de ação social
envolve uma relação social específica e conflitiva entre partes de uma mesma sociedade. São
exemplos de movimentos sociais: o movimento negro que luta contra o racismo e segregação
racial, o movimento estudantil, movimento indígena, o movimento de trabalhadores do campo,
movimento feminista, movimento ambientalista, movimentos pelos direitos civis, movimento
de moradia e reforma urbana, separatistas, movimento de juventude, e tantas outras formas de
lutas sociais, aparecimento público e representação política.
Evidentemente, cada um desses movimentos tem uma história, atuação e organização diferentes,
que mudam ao longo do tempo e variam de acordo com a região onde se encontram, são mais
ou menos amplos nas suas lutas, têm atuação mais centralizada, têm um viés reivindicatório
mais focalizado ou mais amplo... e por aí seguem as diferenças.
No início do século XX partidos da classe operária já se haviam firmado por toda a Europa – onde
alguns deles, em especial na Alemanha e na Áustria, já eram bastante grandes. E também, em
escala menor, na América do Norte.
Nas primeiras décadas do século XX, por volta dos anos 1950 e 1960, o movimento operário e
movimentos revolucionários desde a Revolução Francesa tiveram grande incidência sobre a cena
dos países onde eclodiram, mas, também, sobre os outros países, e, por que não dizer, sobre a
cena mundial que se desenhava.
Durante os anos 1940 a 1960, vivenciou-se especialmente nos países da Europa a constituição
do que se chamou de Estado de Bem-Estar Social, ou Estado Providência ou ainda, o Welfare
State. Ou seja, a constituição de uma estrutura estatal de promoção e gestão de regras e políticas
públicas que tomam o Estado como agente regulamentador de toda vida social, política e
econômica do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, cabendo ao Estado do
bem-estar social garantir serviços públicos e proteção à população. A influência e a importância
dos movimentos de trabalhadores, sindicatos e movimentos sociais neste processo são sublinhadas
37
AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos
por diversos autores que tratam do tema, mostrando a centralidade dos sujeitos políticos
(movimentos sociais lato senso) ligados à mudança social.
Nos anos 1960, a maioria dos países do Ocidente vivenciou importantes movimentos sociais, tais
como o estudantil, os movimentos pelos direitos civis e os movimento pela paz, enquanto em
países do Terceiro Mundo surgiram movimentos de libertação nacional. Durante os anos 1970
e início dos anos 1980 um grande número de movimentos sociais proliferou pela América do
Norte e a Europa – movimentos de mulheres, ecológicos, antinucleares e pela paz, bem como
movimentos por autonomia regional.
Não só os movimentos sociais sacudiram a cena política dos anos 1960, 1970 e 1980 quanto do
ponto de vista teórico, também os movimentos sociais se colocam no centro da discussão das
Ciências Sociais.
Tal como a maioria das noções das Ciências Sociais, a de movimento social não descreve parte
da realidade, mas é um elemento de um modo específico de construir a realidade social.
Assim como em outros países, o Brasil viveu anos intensos desde a eclosão de novos movimentos
sociais. Não teríamos condição aqui nesta aula (e nem mesmo no Caderno todo) de recompor
o nascimento de cada um deles ou mesmo de alguns. O que importa sublinhar é que com o
aparecimento dos movimentos sociais:
A problematização da vida pública brasileira e seus impasses encontrou, nos anos 1980, seu
centro no aparecimento de novos sujeitos políticos ou “novos personagens”, usando expressão
38
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4
célebre cunhada por Eder Sader. Essas leituras do cenário brasileiro ao mesmo tempo em que
analisavam a cena pública da época, “acertavam as contas” com a história da formação brasileira,
relendo e problematizando atuação política das classes populares no cenário público, lidos até
ali na chave da incompletude e da impossibilidade de acesso à cidadania, aos direitos sociais e
à vida pública.
Esses movimentos sociais dirigem sua ação e colocam-se em oposição em relação ao Estado
autoritário brasileiro, naquele momento ainda nos estertores da ditadura formal, cobrando-lhe,
além de maior porosidade e permeabilidade a suas reivindicações por direitos, maior participação
na definição de suas políticas públicas e na sua gestão.
A Constituinte de 1988 é um momento importante, uma vez que representou um novo marco
jurídico que, em alguma medida, representava os anseios e expectativas de uma sociedade
democrática, instituindo mecanismos e formas de participação popular e social na vida política
do Brasil, para além da democracia representativa.
A importância da Constituinte também reside no fato de que, a partir desse novo arcabouço
jurídico-legal, formas de participação popular foram reconhecidas, ao menos formalmente,
como justas e abriram caminho para afirmar-se como uma prática de gestão compartilhada
das políticas públicas, dos programas sociais e dos recursos concernidos nessa disputa. Tudo
isso, tornou-se referência nos rumos da democratização brasileira ao longo dos anos 1990,
consolidando uma nova cultura política e uma cidadania renovada. Destaca-se, também,
por exemplo, o debate sobre as causas ambientais.
Para entender a noção de direito que muitos movimentos sociais reivindicam e que estruturam
políticas públicas implementadas no Brasil e no mundo, precisamos dar um passo atrás e
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AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos
entender o que são Direitos Humanos. Esses são um conjunto de princípios e diretrizes que
buscam resguardar todas as pessoas de injustiças.
Além disso, têm o objetivo de lhes garantir o direito de usufruir da liberdade de expressão por
meio da sua fala, de suas crenças e sua visão de mundo, a salvo de ameaças e de necessidades,
materiais inclusive. Esses direitos estão estabelecidos num documento redigido e aprovado pela
Organização das Nações Unidas, a ONU, em 1948, justamente em função do reconhecimento
da violação de direitos experimentada na Segunda Guerra Mundial.
Para que uma declaração feita na ONU seja efetiva é preciso criar instrumentos legais internacionais
e também leis em cada nação que reafirmem o que se disse nas Nações Unidas.
Podemos dizer que Direitos Humanos são os direitos básicos de todos os seres humanos. Os
direitos humanos de primeira geração seriam os direitos de liberdade, compreendendo os direitos
civis, políticos e as liberdades clássicas. Os direitos humanos de segunda geração, ou direitos de
igualdade, constituiriam os direitos econômicos, sociais e culturais. Já como direitos humanos
de terceira geração, chamados direitos de fraternidade, estariam o direito ao meio ambiente
equilibrado, uma saudável qualidade de vida, progresso, paz, autodeterminação dos povos e
outros direitos difusos.
São direitos civis e políticos: o direito à vida, à propriedade, à liberdade de pensamento, de expressão,
de crença, igualdade formal, ou seja, de todos perante a lei, direitos à nacionalidade, de participar
do governo do seu Estado, podendo votar e ser votado, entre outros. São direitos econômicos,
sociais e culturais: direito ao trabalho, à educação, à saúde, à previdência social, à moradia, à
distribuição de renda, entre outros, fundamentados no valor igualdade de oportunidades. E, por
fim, são direitos difusos e coletivos: o direito à paz, Sugestão
direito aode
progresso,
estudo autodeterminação dos
povos, direito ambiental, direitos do consumidor, inclusão digital, entre outros, fundamentados
no valor fraternidade. A Plataforma Dhesca desenvolve o Projeto Relatorias de
Direitos Humanos, por meio de relatores e missões pelo país;
Nem sempre os movimentos sociais se acompanha a situação dos direitos humanos no Brasil.
40
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4
Entretanto, muitas vezes acabam por utilizar-se de conceitos, ideias e mecanismos de proteção
contra violações de direitos ou de garantia de direitos, que estão lastreadas nesse debate dos
direitos humanos. Há uma forte corrente dos direitos humanos que busca ampliar o escopo de sua
atuação para além dos direitos civis, especialmente nos países ditos em desenvolvimento. Esses
movimentos, organizações e entidades lutam pela garantia dos direitos humanos compreendidos
como integralidade dos econômicos, sociais, culturais e ambientais (Dhesca) visando ao
fortalecimento da cidadania e à radicalização da democracia.
A Plataforma Dhesca Brasil é uma articulação nacional composta por movimentos e organizações
de direitos humanos da sociedade civil, que desenvolve ações de promoção, defesa e reparação
dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – Dhesca. A Plataforma atua
também incidindo na formulação, efetivação e controle de políticas públicas sociais.
Mulheres e Gênero
Como vimos, quando falamos em gênero ou relações de gênero, estamos falando da construção
social das identidades feminina e masculina e a forma de relação social que se estabelece
entre mulheres e homens, entre mulheres entre si e homens entre si. Gênero é, portanto, uma
categoria relacional, é uma maneira de pensar as relações entre mulheres e homens e também
se deslocando de uma leitura essencialista.
As identidades de gênero e relações de gênero são uma construção social, não são determinadas
apenas pelo sexo, mas pela maneira como, no interior de um contexto cultural, são imaginados
os papéis sociais de cada gênero.
41
AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos
Essa noção, combatida pelo conceito de gênero, partia das diferenças biológicas para
argumentar que o sexo feminino traria consigo fragilidade física e emocional, desequilíbrio
psíquico, menor inteligência e capacidade de exercer papéis importantes na esfera pública,
cabendo aos homens, que possuiriam força física, capacidade maior de racionalização e
de exercer autoridade, ocupar os espaços públicos e cargos importantes, enquanto, às suas
mulheres caberia o cuidado apenas com o espaço privado. Nessa explicação, o destino é
traçado biologicamente para cada um dos sexos e não diz respeito a uma opção.
Relações de gênero estão também presentes nos símbolos culturalmente disponíveis sobre
homens e mulheres. O que significa que o gênero e as suas múltiplas distinções estão presentes
nas atribuições sociais associadas às masculinidades e às feminilidades e, portanto, estão por
dentro de regras e normas da vida social, as organizações, na maneira como constituímos
nossas relações de trabalho, familiares e afetivas, assim como, na educação, nas políticas
públicas.
É preciso dizer que atualmente o debate sobre o feminismo tem várias vertentes, concepções,
movimentos e organizações.
A luta das mulheres, no entanto, não é uma novidade na história humana. Muitas mulheres
lutaram em seu tempo e da forma como podiam contra as violações e violências sofridas, e
buscando o direito de existir como sujeitos de suas próprias vidas. Algumas autoras apontam
o final do século XIII como o começo do feminismo, com a tentativa de criação de igreja
das mulheres, por Guillermine de Bohemia. Mas é somente em meados do século XIX que
podemos considerar o movimento feminista como uma luta organizada e coletiva.
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Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4
Assim, o feminismo é um movimento social, voto. Foi uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino, organização que fez campanha pública
filosófico e político que reivindica direitos
pelo voto, tendo inclusive levado, em 1927, um abaixo-
equânimes para mulheres e que luta pela assinado ao Senado, pedindo a aprovação do Projeto de Lei,
libertação de padrões opressores baseados de autoria do Senador Juvenal Lamartine, que dava o direito
de voto às mulheres. Esse direito foi conquistado em 1932,
em normas de gênero. Envolve diversos
quando foi promulgado o Novo Código Eleitoral brasileiro.
movimentos, teorias e filosofias, advogando
pela igualdade entre mulheres e homens,
além de envolver a campanha pelos direitos das mulheres e seus interesses.
É preciso dizer que atualmente o debate sobre o feminismo tem várias vertentes, concepções,
movimentos e organizações. E nem sempre – como em muitos, se não todos os movimentos
sociais – há uma e apenas uma forma de se organizar, de compreender as questões, nem apenas
uma forma de reivindicação...
A luta das mulheres contra as opressões vividas por elas não é uma novidade na história
humana. Muitas mulheres lutaram em seu tempo e da forma como podiam contra as
violações e violências sofridas, e buscando o direito de existir como sujeitos de suas próprias
vidas. Algumas autoras apontam o final do século XIII como o começo do feminismo,
com a tentativa de criação de igreja das mulheres, por Guillermine de Bohemia. Mas é
somente em meados do século XIX que podemos falar de movimento feminista como
uma luta organizada e coletiva.
A chamada primeira onda do feminismo tem início nas últimas décadas do século XIX,
com a luta das mulheres pelo direito de voto. A luta pelo sufrágio seria a primeira de muitas
conquistas. As sufragetes promoviam grandes manifestações pelas ruas de Londres, fizeram,
também, greve de fome e, muitas vezes, foram presas por suas lutas.
43
AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos
O novo feminismo começa nos anos 1960 e segue até meados dos anos 1980 com certa
homogeneidade. Essa será a segunda onda, da qual os autores falam, que trará ao debate as
questões de igualdade que vão além do sufrágio, como acabar com a discriminação. Percebem
as desigualdades culturais e políticas das mulheres como intrinsecamente ligadas.
Já a terceira onda, que coexiste com a segunda, tem início nos anos 1990 e contrapõe-se as
definições essencialistas da feminilidade feitas pela segunda onda que enfatizou as experiências
das mulheres brancas de classe média alta. Nesse momento, as discussões dentro da esfera
feminista sobre as questões relacionadas à raça ganham muito peso e importância, seja como
tema seja como questão política.
Assim como para outros movimentos sociais no Brasil, a década de 1980 foi especialmente
importante. As mulheres se engajaram fortemente no processo por redemocratização do País,
nos movimentos sociais mais relevantes da época.
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Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4
Saiba mais
Uma das formas mais candentes de manutenção do poder na escola dá-se pela reprodução das desigualdades de
gênero nas relações escolares e na organização do sistema e do cotidiano escolar. Nesse sentido, é tarefa urgente a
reflexão sobre o papel de educadoras e educadores na garantia da qualidade do ensino, a partir da ótica das relações
de gênero.
A educação tem, entre suas funções, a transmissão de modelos culturais, valores e concepções; com eles, determina
padrões de conduta, modelos de pensamento. (...) Mas ultrapassar o sexismo implica compreender seu significado
e seu funcionamento. Ou seja, supõe compreender que ele está ligado ao modo como a nossa sociedade opõe,
hierarquiza e naturaliza as diferenças entre os sexos, reduzindo-as às características físicas tidas como naturais e,
portanto, imutáveis. Supõe criticar os vários estereótipos que justificam a permanência da desigualdade entre os
sexos.
Exige, também, superar as hierarquias que apresentam significados masculinos e significados femininos como
categorias excludentes e que afirmam o status inferior das características femininas. Implica, ainda, perceber que
esse modo único e difundido de compreensão é reforçado pelas explicações oriundas da medicina e das ciências
biológicas e também pelas instituições sociais, como a escola, assim como por nós, professores e professoras ou
alunos(as), que omitimos que essas referências são construídas socialmente – com base em imagens que a sociedade
nos oferece –, não são “naturais” e, portanto, são passíveis de mudanças.Esse é o primeiro passo para sairmos do
sexismo, isto é, das concepções naturalizadas, polarizadas que diferenciam meninos e meninas, masculinos e
femininos de modo permanente, inevitável e que atribuem a essas diferenças uma hierarquia na qual os significados
femininos são desvalorizados socialmente. Sair dessas concepções é, antes de tudo, entender que são construídas
socialmente e, portanto, podem ser mudadas. (...) Muitas são as possibilidades de construção de uma escola não
sexista: introduzir o ponto de vista da mulher nos livros didáticos, nos conteúdos escolares; não hierarquizar
significados masculinos e femininos; interferir na reprodução de estereótipos pelas crianças e pelos jovens; analisar
com alunos(as) as atribuições e significados dominantes para cada sexo, explorando os pontos positivos e negativos
presentes nos modelos da TV, nos jornais e gibis; descobrir a existência de inúmeros esquemas, sentidos e ações para
cada sexo que não têm relação com capacidades inatas, comportamentos espontâneos e, principalmente, trabalhar
com vários modelos de menino/menina, feminino/masculino.
Essa é uma tarefa difícil, mas urgente e necessária. Requer luta em todas as esferas: na denúncia das revelações ditas
científicas que perpetuam preconceitos; nas reivindicações por direitos; na discussão de propostas e atividades
realizadas na escola; na conscientização do corpo docente; na análise crítica dos livros didáticos; na luta diária
contra aquilo que aprendemos como verdade, mas que nos transmite imagens relativas à discriminação de gênero;
na reconstrução da história imediata, da vida cotidiana feita por homens e mulheres; no preparo de menino(as),
garotos(as) para novos caminhos com o pensamento lógico, com as emoções, com o cuidado, com os sentimentos;
com espaços e com atividades consideradas femininas; com o questionamento dos significados femininos e
masculinos dominantes na sociedade e nas relações escolares; não hierarquizar significados masculinos e femininos;
interferir na reprodução de estereótipos pelas crianças e pelos jovens; analisar com alunos(as) as atribuições e
significados dominantes para cada sexo, explorando os pontos positivos e negativos presentes nos modelos da
TV, nos jornais e gibis; descobrir a existência de inúmeros esquemas, sentidos e ações para cada sexo que não têm
relação com capacidades inatas, comportamentos espontâneos e, principalmente, trabalhar com vários modelos de
menino/menina, feminino/masculino.
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AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos
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Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4
Essa tensão se revela no nosso cotidiano e poderia ser condensado numa formulação do
mesmo autor:
Na perspectiva dos movimentos sociais, as ações afirmativas não são o fim das
lutas sociais antirracistas – são as próprias lutas. E, como tais, são ações de
afirmação de identidade e produção de direitos. (...) Entretanto, no contexto
dos debates que se travam na sociedade, as políticas de ação afirmativa são
comumente definidas como políticas compensatórias, específicas, focalizadas,
sendo, portanto, opostas ao ideal republicano de igualdade e direitos universais,
que devem ser materializados através de políticas também universalistas,
aquelas definidas como “para todos”. Por um lado, trata-se de um alerta,
pois pensar políticas de ação afirmativa sem pensar em democratização de
direitos surge como um equívoco, pois o verdadeiro objetivo dos movimentos
sociais é a universalização dos direitos, a constituição material daquilo que a
constituição formal define como direitos da cidadania. Por outro lado, trata-se
de uma concepção estreita do que significa ação afirmativa, que não leva em
consideração o seu potencial constituinte, à medida que o que está instituído
e socialmente aceito (caso das desigualdades e dos privilégios coorporativos)
está sendo profundamente questionado pelos defensores de tais ações e pode
sofrer abalos significativos se algumas políticas forem implementadas.
Com isso, chegamos ao final desta aula. Procuramos construir um caminho que possibilitasse
uma reflexão sobre aquilo que acreditamos ser a própria prática da constituição de direitos.
Resta-nos voltar a essa questão e nos interrogar sobre o que esses temas que discutimos nos
revelam sobre a nossa sociedade e as formas que construímos de viver num mundo comum,
justo e sem violência.
Resta-nos voltar a essa questão e nos interrogar sobre o que esses temas que discutimos nos
revelam sobre a nossa sociedade e as formas que construímos de viver num mundo comum,
justo e sem opressão e violência.
(Hannah Arendt. As origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1990, pp. 329-331)
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AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos
Sintetizando
»» o contexto e historicidade dos conceitos como movimentos sociais, direitos humanos e direitos sociais, entre outros, e
situar-nos no seu campo de debates;
»» o contexto de surgimento das políticas públicas voltadas para grupos específicos, por meio da reivindicação de
movimentos sociais.
48
AULA
EDUCAÇÃO, DIVERSIDADE E
PLURALIDADE CULTURAL 5
Apresentação
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
»» Refletir sobre os preconceitos, o racismo e a escola. Por uma educação que promova
relações democráticas.
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AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural
Introdução
Todos nós fazemos parte da mesma espécie. Não existem raças superiores ou inferiores,
nem qualquer diferença biológica entre os povos do mundo. O preconceito nega a nossa
humanidade, privando as sociedades da convivência sem conflitos étnico-raciais. Ele também
alimenta as desigualdades e as disparidades de poder, incentivando o abuso e a exploração
dos grupos vulneráveis.
A sociedade brasileira tem sido moldada e profundamente afetada pelo racismo, pelo sexismo
e por diversas outras formas de preconceito. Nossa nação enfrenta o desafio de encontrar
caminhos para desfazer o legado de desvantagens cumulativas que afeta não só a população
negra, mas diversos grupos que hoje encontram dificuldades para acessar seus direitos de
cidadãos.
Nesta aula você lerá somente sobre o combate ao racismo. Definimos por estratégias
antirracistas e aquelas que combatem a ideia de inferioridade e superioridade de indivíduos
e de grupos, pautada em raça/etnia.
Aqui, passamos a tratar do movimento negro para tentarmos compreender como, nos
anos 2000, ações afirmativas e a inclusão de história e cultura africana e afro-brasileira
passaram a ser questões de políticas públicas educacionais. E esses movimentos se
iniciam nos anos 1970.
Saiba mais
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Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5
Segundo Hanchard (2001), no Brasil não houve uma mobilização tão forte quanto a
ocorrida nos Estados Unidos pela luta dos direitos civis, também na década de 1960,
pois aqui ocorreu uma preocupação muito mais cultural. Com o black is beautiful,
criação norte-americana, passamos a valorizar a estética do cabelo crespo, o soul, o
funk e, posteriormente, o hip-hop, que buscam se afirmar como elementos da cultura
negra, a partir da década de 1970. Em Salvador, o bloco carnavalesco Ilê Ayê é criado
em 1974 e nos mostrou suas influências nas roupas e nos conteúdos políticos de suas
letras: reafricanização, direitos civis norte-americanos, lutas de independência e contra
os sistemas de apartheid na África, explosão da música negra serão questões a serem
refletidas nos discursos e na prática política.
A década de 1970 pode ser descrita como a década em que houve uma “revivificação da
cultura negra”, ao mesmo tempo em que se constituía uma crescente luta antirracista. Em
1975, é fundado no Rio de Janeiro o Instituto de Pesquisas de Cultura Negra (IPCN), um dos
movimentos mais relevantes e uma das poucas entidades a ter sede própria.
Com vários grupos antirracistas espalhados em diversas regiões do Brasil, em 1979 é criado
o Movimento Negro Unificado (MNU), uma denominação genérica e aglutinadora desses
diversos movimentos.
Apesar de seu nome, o Movimento Negro Unificado nunca apresentou uma coordenação
unificada de suas ações. Trata-se de iniciativas e organizações variadas que só se condensam
numa plataforma única diante de acontecimentos de especial relevância como foram,
por exemplo, a Constituição de 1988, a comemoração dos 300 anos da morte de Zumbi
em 1995, e a preparação para a III Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em
Durban em 2001 (COSTA, 2005, p. 14).
O ano de 1988 foi marcado pela comemoração dos cem anos do fim da escravidão. Ao mesmo
tempo em que o Movimento Negro lutava para dar visibilidade ao dia 20 de novembro, Dia
da Consciência Negra, escolhido em homenagem a Zumbi dos Palmares, houve toda uma
movimentação por parte da sociedade, inclusive dos intelectuais e do estado, para comemorar
e discutir o Centenário da Abolição, suas consequências e os avanços políticos conquistados
pela população negra brasileira.
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AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural
Independente do significado dado, Yvonne Maggie (1994, p. 4) aponta que naquele momento
o 13 de maio foi mais comemorado que o 20 de novembro e identifica 30 tipos de eventos
acontecidos ao longo do ano de 1988:
Foram inúmeras as conquistas dos movimentos negros no século XX, principalmente as ações
implantadas ao longo dos últimos 30 anos de combate ao racismo e à discriminação racial.
Como as leis antirracistas ficaram ausentes do debate nacional até a década de 1980, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos foi utilizada como respaldo por muitos dos
movimentos negros que surgiram ao longo das décadas de 1940 e 1950, em resposta às suas
demandas, críticas, avaliações e reivindicações.
Dentre elas, talvez as mais visíveis sejam as demandas e as conquistas pela educação
dos afrodescendentes. Segundo Silva (2003, p. 227), “a educação formal e a preparação
profissional foram sempre perseguidas pelos negros organizados, em diferentes épocas”.
Nesse sentido, podemos sistematizar alguns exemplos da relação entre movimentos
negros e educação:
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Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5
Assim, apontou-se em que medida essas práticas afetam a formação de crianças e adolescentes
negros e brancos, destruindo a autoestima do primeiro grupo e, no segundo, cristalizando
imagens negativas e inferiorizadas da pessoa negra, em ambos, empobrecendo o relacionamento
humano e limitando as possibilidades exploratórias da diversidade racial, étnica e cultural
(CARNEIRO, 2002, p. 209)
Podemos estabelecer, nesse sentido, três das conquistas sobre essas questões: em 1996,
entre os critérios de avaliação dos livros didáticos comprados e distribuídos pelo Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), as questões raciais foram incluídas. Em 1998, a Pluralidade
Cultural foi incluída entre os temas transversais nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Em
2003, a publicação da Lei no 10.639 tornou obrigatório o ensino da História da África e dos
Afro-brasileiros no Ensino Fundamental e Médio.
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AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural
São Paulo, em 1997, por um grupo ligado à Igreja Católica que atuava no PVNC) (NASCIMENTO,
2005, pp. 140-144).
Legislação antirracista
A primeira lei considerada contra a discriminação racial foi a de no 1.390, de 1951, conhecida
como Lei Afonso Arinos. Contava com nove artigos e foi promulgada no Rio de Janeiro pelo então
presidente Getúlio Vargas. Nos artigos que selecionamos a seguir, veremos que a Lei Afonso
Arinos constituía a discriminação racial como contravenção penal, podendo o agente dessa
discriminação receber pena de prisão simples, ou simplesmente pagar uma multa:
Art. 1o Constitui contravenção penal, punida nos termos desta Lei, a recusa,
por parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de
hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito
de raça ou de cor.
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Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5
Com essa lei, uma multa de apenas R$ 0,50 (valores atualizados por Carneiro, em 2000) reparava
os danos. Para muitos militantes do movimento negro, como, por exemplo, Sueli Carneiro e Abdias
do Nascimento, a Lei Afonso Arinos não representou uma modificação real e tampouco respondeu
às demandas da população negra. A lei surgia no contexto em que o mito da democracia racial
brasileira estava em seu auge. Foram precisos 37 anos (entre 1951 e 1988) para que o racismo se
constituísse como crime, inafiançável e imprescritível (sem prazo estabelecido para prescrição).
Nossa oitava Constituição Brasileira de 1988 foi batizada de “Constituição Cidadã”, por seu
conjunto de princípios democráticos que ajudam a reger a vida social e política brasileira. Nela,
há uma preocupação em garantir a todos a mesma dignidade e a possibilidade de exercício da
cidadania. Para tanto, é preciso considerar que existem diferenças étnicas, culturais, regionais,
de gênero, etárias, religiosas e desigualdades sociais que devem ser consideradas, para que a
igualdade seja alcançada. Em destaque alguns artigos:
II – a cidadania;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação;
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AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural
Art. 5o Todos são iguais perante e lei, sem distinção de qualquer natureza;
O autor da lei que trata o racismo como crime, o deputado Carlos Alberto de Oliveira Caó (PDT-
RJ) – jornalista, ex-secretário do Trabalho do estado do Rio de Janeiro – integrava , à época, a
Assembleia Nacional Constituinte de 1988, quando legislava a respeito da tipificação do crime de
racismo. Ele obteve uma ampla votação: 520 votos favoráveis, dois contrários e uma abstenção.
Destacamos alguns trechos da lei (DATAFOLHA, 1995).
Para refletir
Oliveira foi condenado, em 1995, a dois anos de reclusão por incitar a prática racista em meio radiofônico.
O locutor – mais conhecido em São Carlos (SP) como Oliveira Jr. – diz ter sido desfavorecido, pois membros do movimento
negro municipal teriam influenciado o julgamento. Na ocasião, o acusado não apresentou a cópia da fita em que estava
supostamente gravada a frase racista.
Oliveira, que continua na mesma rádio, não quis comentar. “Tanta coisa boa para falar e a gente vai falar de racismo”.
Paulo Duarte, advogado de Oliveira, diz que hoje não vê racismo contra o negro no Brasil e defende o locutor.
“A intenção de Itamar não foi racista. Quando ele disse “tem que prender esse negro mesmo”, ele poderia ter falado “tem que
prender esse cabeludo”, ou esse “viado”, diz.
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Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5
(...)
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AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural
Art. 12. Impedir o acesso ou o uso de transportes públicos, como aviões, navios,
barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte
concebido:
(...)
(...)
Art. 18. Os efeitos de que tratam os artigos 16 e 17 desta Lei não são automáticos,
devendo ser motivadamente declarados na sentença.
(...)
Art. 20. Praticar, induzir, ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por
publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor,
religião, etnia ou procedência nacional:
A criminalização do racismo
A Lei Caó, em conjunto com a Constituição de 1988, formaram base legal para a tipificação e a
criminalização do racismo. Mesmo assim, ainda se pode encontrar alguns entraves nessa questão.
O primeiro é que poucas pessoas denunciam que foram vítimas de racismo. O segundo é que,
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Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5
mesmo com a existência da lei, não há uma disposição do Judiciário em julgar o racismo como
crime, e, sim, como delito. Para alguns juristas, isso acontece pela persistente ideia de que no
Brasil vivemos numa democracia racial.
Vejamos: em 1995, o livro O racismo cordial constatou que a lei conseguia punir poucos casos.
O titular da Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo assim explicava esse fato:
Quase tudo que aparece é injúria, ou nem isso, diz. Ele explica como são
interpretadas, perante a lei, as acusações de suposto crime de racismo. “Quando
uma pessoa chama a outra de ‘macaco’, isso é injúria. Se a ofensa for chamar alguém
de ‘ladrão’, sem provar, isso é calúnia. E no caso de um profissional classificar o
outro de ‘incompetente’, aí é difamação. Tudo isso aí é muito confundido com
racismo, principalmente quando há um branco e um negro envolvidos” (p. 25).
Por isso, desde 1997, a injúria (ofensa à dignidade ou ao decoro de alguém) que seja baseada em
cor, raça/etnia passou a ser qualificada e implicar pena maior. O deputado Paulo Paim (PT-RS)
equiparou a pena de injúria relacionada à raça ou cor à mesma punição da Lei Caó: três anos
de prisão e multa.
Mesmo assim, ainda há no Brasil poucos processos por crime de racismo. Em levantamento (dos
anos de 1995 a 1999) do Ministério das Relações Exteriores feito para a Conferência de Durban,
ocorrida na África do Sul em 2001, havia menos de 150 processos em todo o País. No Rio de
Janeiro e em São Paulo eram apenas 25 ações penais.
§ 2o Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios
de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, a pena é de reclusão de
dois a cinco anos e multa.
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AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural
5. Na Lei da Tortura: a Lei no 9.455, de 7 de abril de 1997 – prevê em seu art. 1o, inciso I,
letra c: “Constitui crime de tortura:
Os homens e mulheres que foram trazidos como escravos para o Brasil partiram de diferentes pontos
da África. Na viagem, trouxeram as culturas de seus grupos étnicos. No Brasil, desembarcaram em
vários portos, como o de Salvador, na Bahia, e no porto do Rio de Janeiro. Lá, eram vendidos para
trabalhar como escravos em diferentes lugares do nosso território. A diáspora africana deu início
a um processo de criação, invenção e recriação das tradições africanas, visando à preservação
dos laços de identidade, cooperação e solidariedade. Por meio dessa rede de interação, esses
povos preservaram marcas visíveis das culturas africanas.
Gilroy (2000) considera que as culturas e as identidades negras são indissociáveis da experiência
da escravidão moderna (nas Américas) e de sua herança racializada espalhada pelo Atlântico. É na
memória da escravidão e na experiência do racismo e do terror racial que se funda politicamente
a identidade cultural dos negros no Ocidente. Gilroy aborda radicalmente a identidade negra
como construção política e histórica marcada pelas trocas culturais por meio do Atlântico.
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Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5
Segundo o autor, em se tratando de identidade negra, a questão das origens interessa menos
que as experiências de desenraizamento, deslocamento e criação cultural. Essas experiências
se produziriam desde o tráfico negreiro, trauma original, até as mais diversas experiências de
encantamento e estranhamento em viagens e exílios entre América, Europa e África.
Sintetizando
»» Como analisar as relações étnico-raciais no Brasil e as Desigualdades étnico-raciais e refletir sobre os preconceitos, o
racismo e a escola para pensarmos em uma educação anti: antirracista, antissexista e anti-homofóbica.
61
AULA
O LEGADO CULTURAL AFRICANO –
LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA –
LEI N o 11.645/2008 6
Apresentação
Nesta aula veremos a relevância das Leis n os 10.639/2003 e 11.645/2008, que incluem,
respectivamente, história e cultura africanas e afro-brasileiras, e indígenas no ensino básico e
seus desdobramentos político-sociais.
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:
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O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008 • AULA 6
Nos anos de 1980, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) produziu oito volumes para a redação de uma História Geral da África que,
segundo os pesquisadores da área, continuam atuais. Tais volumes chamam a atenção
para a importância da África para a história da humanidade. Recentemente traduzidos
e disponibilizados para download, esses livros são facilmente encontrados no site da
Fundação Palmares.
Saiba mais
Mineração – Até o século XV, as moedas europeias e islâmicas eram cunhadas com ouro da África.
Arquitetura – Para construir superfícies lisas, polidas e impermeáveis, alguns povos africanos misturavam azeite
de dendê ou manteiga de carité ao barro, construindo edifícios e palácios encavados em rochas. Os africanos são os
senhores do sopapo, técnica também conhecida com pau a pique, que consiste em atirar o barro comprimindo-o com
socos numa estrutura de madeira, com um teto de palha em duas abas. Esse tipo de construção pode ser visto até hoje
de norte a sul do Brasil.
Música – A música brasileira recebeu uma significativa contribuição das culturas africanas. Os africanos foram
responsáveis pela introdução nas Américas de instrumentos musicais, como a cuíca, o birimbau, o ganzá e o reco-
reco.
Estratégias Militares – Os povos africanos possuíam organizações militares desenvolvidas, com estratégias e armas
eficientes. No Brasil, essas técnicas foram recriadas na organização dos Quilombos.
Língua – Muitas línguas africanas foram faladas no Brasil e deixaram como herança vocábulos que foram
incorporados ao português do Brasil
(Secad/MEC, Calendário 2006 – Meu Brasil Africano, Minha África Brasileira).
Como você sabe, as culturas africanas e as culturas afro-brasileiras são culturas vivas,
contemporâneas. Desse modo, o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades
(CEERT, 2004, pp. 19-23), a partir da produção de intelectuais que realizam estudos na área da
educação das relações étnico-raciais e o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana,
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AULA 6 • O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008
apresenta conteúdos que poderão ser explorados na temática em questão. A seguir, destacamos
alguns pontos para estudos sugeridos por esse documento:
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O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008 • AULA 6
valorização das matrizes culturais que fizeram do Brasil o país rico, múltiplo e plural que
somos.
Em 2003, a Lei n o 10.639 alterou a LDB (lei n o 9.394/1996) para incluir no currículo oficial
da rede de ensino a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira.
No ano de 2008, a Lei n o 11.645 alterou novamente a LBD para incluir no currículo a
obrigatoriedade do estudo da história e cultura dos povos indígenas. Assim, a legislação
passou a exigir a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade do
estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. Seguem as partes principais das
Leis n os 10.639 e 11.645:
Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional
da Consciência Negra’.
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AULA 6 • O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008
Podemos dizer que, no caso das comunidades remanescentes de quilombos, a identidade étnica
de um grupo é a base para a forma de sua organização – ao se denominarem / definirem como
quilombolas. Esta é resultado de uma “confluência de fatores escolhidos por eles mesmos: de
uma ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos linguísticos e
religiosos” (SEPPIR, 2004, p. 10). Não é muito diferente da maneira como os diversos grupos
étnicos indígenas existentes no Brasil constroem sua identidade. No caso dos remanescentes
de quilombos, temos alguns exemplos nos quais podemos pensar: o primeiro é a presença das
religiões afro-brasileiras ou do catolicismo popular (mesmo que já haja uma mudança no perfil
religioso dos moradores de quilombos). O segundo é a presença de linguagem ou língua própria:
a cupópia falada em Cafundó, “terra de preto” localizada no interior de São Paulo é um bom
caso para pensarmos. O terceiro exemplo é o de uma ancestralidade comum com os primeiros
habitantes, como no caso da doação das terras para uma mesma família e a posterior fixação
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O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008 • AULA 6
dos seus descendentes (como se deu no quilombo São José, em Valença ou no Campinho da
Independência, em Parati).
O território não é apenas um espaço geográfico, mas, sim, tudo que efetivamente diz respeito ao
grupo – objetos, valores, relacionamentos. Está confuso? O território é também o espaço vivido,
local em que se dá a construção de culturas e práticas sociais bem definidas. Para utilizar uma
definição de Muniz Sodré (1988), mais forte que a territorialidade física, o espaço fundiário
adquire outra conotação nesse sentido, pois ele também tem energia (axé), capaz de unir e
irmanar seus integrantes.
Quilombos e educação
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AULA 6 • O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008
Além das inúmeras pesquisas etnográficas ou nas áreas do direito à terra, a questão da educação
quilombola tem aparecido bastante nos campos da pesquisa. O fato é que ainda existem poucas
escolas no interior dos territórios quilombolas, fazendo com que jovens e adultos migrem para
as cidades para estudar e trabalhar.
Cabe, nesse sentido, afirmar que essa população quilombola deve ter acesso a uma educação
plural, que dê conta de suas especificidades de raça, gênero, faixa etária e classe social, e que
ainda a insira em uma discussão maior sobre a educação brasileira nos diversos níveis e sobre
a relação da escola com os afro-descendentes. É necessário não isolar esses indivíduos, mas
estimulá-los a portar-se, manter-se e situar-se no mundo, na busca do seu autoconhecimento
(NUNES, 2006).
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O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008 • AULA 6
Na escola, ao explicar o ensino religioso, deve ser feito de forma plural, respeitando a fé dos
alunos, seja ela qual for, e também seus ritos, práticas e visões de mundo, dentro de uma
perspectiva multicultural que retrate a diversidade do País.
A questão indígena
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AULA 6 • O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008
Atenção
Populações indígenas
Hoje, no Brasil, vivem cerca de 460 mil índios, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, que perfazem cerca de 0,25%
da população brasileira. Cabe esclarecer que esse dado populacional considera tão somente aqueles indígenas que vivem
em aldeias, havendo estimativas de que, além desses, há entre 100 e 190 mil vivendo fora das terras indígenas, inclusive em
áreas urbanas. Há, também, 63 referências de índios ainda não contatados, além de existirem grupos que estão requerendo o
reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista. (www.funai.gov.br)
A população indígena brasileira tem crescido nos últimos anos, embora povos específicos
tenham diminuído demograficamente e alguns estejam até ameaçados de extinção. Hoje são
várias etnias, parte delas residindo também em outros países. A situação de pobreza da maior
parte das comunidades indígenas nacionais os aproxima da questão de desvantagem social
a que são submetidos os afro-brasileiros. No entanto, só podemos identificar étnicas entre os
indígenas. Devido à intensa miscigenação das étnicas africanas provocada pelo tráfico negreiro,
hoje, identificamos uma variedade de populações afro-brasileiras. Devido às implicações
históricas e à complexidade do debate em torno dos termos raça e etnia, há pesquisadores que
fazem opção pelo termo etnia para se referir aos afro-brasileiros. No que diz respeito à luta
pela defesa dos direitos de cidadão, os grupos indígenas aproximam-se dos afro-brasileiros
na luta pela inclusão social.
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O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008 • AULA 6
Sugestão de estudo
Eu não quero voltar sozinho (De Daniel Ribeiro, Brasil, 2010, 17min) Cores & Botas ( Juliana Vicente, Brasil, 2010, 16 min) e
Vista a minha pele (Joel Zito de Araújo, Brasil, 2003, 24min). Divirtam-se!!!!!
Podemos refletir acerca da questão indígena na atualidade com um fragmento do texto a seguir:
Os não indígenas brasileiros se caracterizam pela variabilidade, mudança e complexidade. Não são
grupos congelados num passado localizado antes da chegada do colonizador distante do presente
avançado e moderno. A Constituição brasileira reconhece que os indígenas foram submetidos a
um processo violento de colonização e, hoje, são portadores de sua própria voz com demandas
específicas de inclusão social.
O reconhecimento pelo Estado de sua condição dos descendentes das populações autóctones visa
superar as desvantagens construídas ao longo de anos: a expropriação territorial, o extermínio de
etnias e a perda de parte de seu patrimônio cultural. Para constituir analiticamente as culturas
indígenas, é preciso partir da produção cultural dos indígenas contemporâneos e, sem dúvida,
garantir os direitos à cidadania para todos os brasileiros.
Na Constituição de 1988, há vários artigos destinados à defesa dos direitos dos índios, entre eles,
destacamos o capítulo VIII – Dos Índios (arts. 231 e 232). Observe outros artigos como arts. 129
V, 210, 215, 242, entre outros.
Art. 231, caput – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre a terra que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para
ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério
Público em todos os atos do processo.
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AULA 6 • O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008
Sintetizando
Vimos a relevância das Leis nos 10.639/2003 e 11.645/2008, que incluem, respectivamente, história e cultura africana e
afro-brasileira, e indígena no ensino básico e seus desdobramentos político-sociais.
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