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ENTRECRUZAMENTO DE FONTES
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Os eventos são: 25a e 26a Reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação –
ANPED (2002 e 2003) e o II Congresso Brasileiro de História da Educação (2002).
como o de representação, tão característico desta. Essa situação pode ser observada, por
exemplo, em muitos trabalhos que, embora declarem seus vínculos com a História Cultural, ao
proporem trabalhar com a noção de representação, acabam por realizar uma análise de
discurso sem as conexões necessárias com o universo cultural no qual se movem seus objetos
de pesquisa. No entanto, não há como negar a preocupação dos pesquisadores, iniciantes ou
veteranos, na construção de objetos de investigação – temáticas e problematizações – que
permitam, ou até mesmo que exijam, uma razoável diversificação das fontes de pesquisa. Não
se quer dizer que a diversidade seja condição sine qua non da História Cultural. Porém, dada a
complexidade e também os grandes riscos que a cercam por procurar “captar subjetividades e
sensibilidades” (Pesavento, 2003. p.119), tal diversidade vai se impondo e requer
procedimentos cuidadosos.
O estudo dos processos e das práticas educativas no cotidiano escolar nos permite
refletir mais detidamente sobre a questão em foco neste texto e é dele que tratarei a seguir, por
meio dos elementos de uma pesquisa em andamento. O objetivo é analisar a circulação do
discurso da intolerância e as estratégias educativas presentes na escola primária brasileira no
período do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), visando a construção de uma
identidade nacional coletiva. Esta pesquisa está marcada pela utilização de razoável variedade
de fontes (escritas, iconográficas, orais) que se entrecruzam no campo de análise da História
Cultural e de alguns de seus conceitos-chave, principalmente os de representação e de
imaginário2. Ao tratar da questão das apropriações, pelos sujeitos históricos, de práticas e de
discursos, faz-se necessário ampliar o universo documental, procurando pelos vestígios e
testemunhos produzidos por estes sujeitos. O que se pretende demonstrar é, também, a
necessidade do aprofundamento do estudo para além da simples análise do discurso, voltando-
se a atenção do historiador para as experiências históricas efetivas dos sujeitos envolvidos no
processo de construção daquela identidade, no contexto de um governo autoritário e
centralizador, o que exige a busca pelas apropriações e permanências, no universo escolar, de
concepções e de práticas culturais.
A historiografia brasileira já produziu relevantes trabalhos sobre as ações do primeiro
governo de Getúlio Vargas (1930-1945) concernentes à educação escolar. Os projetos, as
reformas, os processos de intervenção, principalmente a partir da implantação do Estado
2
Cf. Chartier (1990, 1998) e Baczko (1984).
Novo, têm sido objeto de muitos pesquisadores, privilegiando perspectivas bastante
diversificadas. O cotidiano das escolas brasileiras neste período, no entanto, não tem merecido
a mesma atenção, bem como muitas práticas educativas que acabaram por constituir parte
importante da cultura escolar contemporânea no país. Preocupado, entre outras coisas, com a
construção de uma identidade nacional coletiva, o governo de Vargas concentrou grande parte
de suas energias na educação, vista como instrumento ideal de difusão dos valores
considerados essenciais para a formação do cidadão desejado para a “nova” nação. Os ensinos
primário e secundário receberam, assim, a missão de tornar as crianças e jovens os protótipos
desse cidadão, acabando por tornar-se, também, instrumentos de propaganda.
A pesquisa acerca deste problema tem demonstrado como se construiu uma sintonia
bastante fina entre as formulações governamentais para a educação brasileira, e o elenco de
materiais e de procedimentos pedagógicos elaborados para as escolas primária e secundária.
Estudos sobre esta temática utilizam-se tanto dos documentos oficiais, quanto de propostas
pedagógicas elaboradas por intelectuais e educadores da época, que acabaram por ser
incorporadas parcialmente nas proposições oficiais do Estado. O espectro de fontes geralmente
se completa com o material didático-pedagógico produzido e utilizado nas escolas do período,
cuja análise, combinada com a das fontes já mencionadas, ajuda a demonstrar as direções
tomadas pelos objetivos definidos pelo Estado para a educação brasileira.
No entanto, o estudo das práticas ocorridas no universo escolar e que têm relação com
as políticas definidas pelo governo de Getúlio Vargas naquele momento implica na busca por
outras modalidades de fontes, que permitam uma aproximação maior com as ações, as
expectativas, as concordâncias e dissonâncias dos sujeitos imersos naquele universo,
principalmente os professores e os estudantes. Sendo assim, documentos por eles produzidos,
nos quais puderam de alguma maneira expressar suas formas de apropriação daquelas políticas
e por meio dos quais podemos captar indícios do movimento de circulação das idéias, valores
e atitudes, acabam sendo incorporados à pesquisa, acrescentados, quando possível, de
depoimentos desses sujeitos, fontes que podem nos aproximar um pouco mais deste objeto de
estudo.
Um dos aspectos que marcou a educação nacionalista durante as décadas de 30 e 40 do
século XX foi o discurso da intolerância, que visava desqualificar elementos indesejados para
a formação da identidade nacional coletiva, ao mesmo tempo em que procurava exaltar os
valores e formas de comportamento que se desejava conformar na construção do novo tipo de
cidadão. Muitas vezes esse movimento de desqualificação/valorização incidia sobre aspectos
bastante precisos e definidos – como o comunismo, por exemplo – e outras vezes aparecia
mais sutilmente, diluído em ensinamentos de natureza moral e comportamental. As conhecidas
associações presentes na construção do imaginário anticomunista no Brasil – utilizando com
muita freqüência referências do imaginário cristão e elementos de uma concepção orgânica da
realidade social – circularam pela escola durante nas décadas de 1930 e 1940, alimentadas
pelas referências culturais presentes no cotidiano da população, o que inclui, obviamente, a
comunidade escolar.
Muitos depoimentos realizados no desenvolvimento do estudo têm demonstrado a
recorrência das referências ao medo que se tinha do comunismo, e como as crianças
assimilavam o discurso circulante. Muitos entrevistados lembram-se de ouvir falar da
“doença”, da “lepra” que era o comunismo, e de associá-lo às posições anti-cristãs, o que era
reforçado pelas aulas de religião que muitos assistiam nas escolas e pelo testemunho de ações
do movimento integralista. Além disso, a mensagem também se difundia por meio do material
de propaganda produzido pelo Estado e distribuído nas escolas, como o Álbum A Juventude
no Estado Novo. Concebido como um instrumento ao mesmo tempo pedagógico e
propagandístico, trazia em suas pranchas imagens de crianças em situações variadas, das quais
eram extraídos temas para a formação moral e patriótica, conectados com trechos de discursos
de Getúlio Vargas. Numa dessas pranchas, Vargas aparece discursando para uma pequena
multidão de crianças uniformizadas que seguram bandeirinhas do Brasil, tendo ao lado a
transcrição de um dos discursos do ditador: “Precisamos reagir em tempo contra a indiferença
pelos princípios morais, contra os hábitos do intelectualismo ocioso e parasitário, contra as
tendências desagregadoras infiltradas pelas mais variadas formas nas inteligências moças,
responsáveis pelo futuro da Nação.” No entanto, não se pode considerar a escola como
portadora exclusiva desse discurso, nem sua única difusora, uma vez que as referências
culturais que sustentavam a propaganda anticomunista no Brasil estavam marcadas pela
formação cristã, principalmente católica, da população.
Embora contivesse elementos inspirados no nazi-fascismo europeu, o regime de
Getúlio Vargas não adotou explicitamente pontos mais polêmicos, como o discurso claramente
racista, problemático num país profundamente mestiço como o Brasil. Isso não significa, no
entanto, que esse discurso não estivesse presente, marcado, inclusive, por preconceitos
históricos, como os relacionados à herança da escravidão. A percepção desse discurso da
intolerância, oculto nos documentos oficiais, fica mais claro quando se privilegia outras
fontes, como o material didático presente nas escolas primária e secundária do período.
Cartazes, cartilhas e livros de leitura se revelam surpreendentes e mostram um fundo de
elementos de longa duração da nossa formação cultural, como o preconceito em relação ao
trabalho manual ou as utopias de um país que para ser civilizado deveria ser também branco.
No já mencionado Álbum A Juventude no Estado Novo, de todas as crianças
representadas nas pranchas, não há uma única que seja negra, mestiça ou oriental. São todas
crianças brancas, não obstante a predominância dos cabelos escuros. A idéia de uma nação
moderna e civilizada continuava a ser fundamentada nos princípios herdados do século XIX,
das propostas de branqueamento da população e da identificação da civilização com o modelo
de sociedade e de povo europeus. A evidência também pode ser encontrada nas relações
presentes em muitos textos de livros de leitura da época, nos quais essas concepções, presença
marcante na formação cultural brasileira, apareciam diluídas em singelas historinhas para
crianças. Num livro de leitura, em sua terceira edição, publicada em 1942, o autor procurava
colocar o pequeno leitor em contato com a cultura indígena por meio de um diálogo entre duas
crianças. O título do texto já indica seus fundamentos preconceituosos e intolerantes: “Feio”.
E inicia-se o diálogo:
- Mas que homem feio, disse Judite ao ver a estampa dum índio, numa revista
que estava folheando.
- Não fale assim que pode ser o retrato de seu tataravô, replicou, brincando, seu
irmão mais velho. Você não sabe que nós descendemos de índios?
- Sei sim, e papai tem muito orgulho disso. Diz sempre que eles eram vigorosos,
de boa estatura, pele e cabelos escuros, os olhos negros e rasgados, valentes e
bem dispostos. Mas esse é muito feio. Não é parente, não. Tem o nariz
achatado, os cabelos raspados, os lábios, as orelhas e o nariz furados com
berloques e os dentes separados em ponta, como os de rato. (Costa, 1942. p.
62).
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Depoimento de Sebastião Danilo de Oliveira. Maio de 2004.
arcabouço conceitual. Mover-se no campo da História Cultural significa considerar que as
experiências culturais – que são evidentemente históricas – de grupos e de indivíduos atuam
de maneira significativa em suas práticas e são fundamentais para o processo de análise das
fontes. O estudo da história da educação escolar, tradicionalmente associado à sua dimensão
oficial e legal – na qual são depositados interesses e diretrizes geralmente emanados do Estado
– pode também ser orientado para o movimento de circulação que promove intensas trocas e
apropriações segundo códigos distintos; para a análise de manifestações presentes na cultura
escolar e que têm suas origens fora da própria escola, carregando em si fortes tradições
culturais, às vezes de longa existência no tempo; para a consideração das relações entre a
educação, a política e a cultura, na construção e na circulação de práticas e de concepções.